Você está na página 1de 184

D A D O S D E CO P Y R I G H T

SO B R E A O B R A P R ESEN T E:

SO B R E A EQ U I P E L E L I V R O S:
À amada Camila
por ser e permanecer tanto.
É sempre
a hora da
nossa morte
amém

Mariana Salomão Carrara


O que nos aconteceu
o que não nos aconteceu
têm o mesmo peso no poema

ANA MARTINS MARQ UES


− Tive sim uma filha
− Ah então hoje vai ser um daqueles dias com filha
− Não, é definitivo desta vez, lembrei tudo, eu tive a minha
filha Camila
− Sempre é definitivo. Foca um pouco mais na sua
juventude, que você lembra direito e sempre igual… Eu vou
procurando a sua casa
− Não é a mesma casa, você insiste nisso da casa, Rosa
− Mas vamos comigo achar a casa da sua infância, quem
sabe você não lembra melhor assim
− Já me lembrei de tudo, claro como nunca
− Claro como sempre!
− Rosa, Rosinha, você tem que acreditar em mim quando
eu falo que me lembrei da minha filha
− Então pronto, vamos achar a Camila e tirar você daqui,
Aurora
− Eu não quero tanto assim sair daqui
− Ah mas eu quero que saia! Você ainda tem uma vida pra
viver
− Eu tenho uma vida pra lembrar, Rosa, a vida de viver já
acabou
− Vai logo, Aurora, hoje não estou com a manhã toda
−…
− Você tem pelo menos, o quê, mais uns dez anos de
vida, imagina só, uma década, nesse quarto você não pode
ficar uma década, não tem nem vinte dias e você já está
meio caída, onde foi que eu deixei o lápis, tinha umas
canetas aqui, não tinha?
− O nome dela é Camila. Aí, atrás do calendário
− Certo, Ca-mi-la, anotado, sempre é Camila
− O problema é que a minha filha está morta
− Ah, que ótimo, de que forma será que ela morreu dessa
vez, acho que foi um penhasco que se abriu bem no meio da
avenida exatamente na hora que ela passava, aposto que foi
isso, ou senão uma onça, na verdade um animal gigante que
desceu do céu e
− Desse jeito, não vai me tirar daqui nunca
− É que, Aurora-do-céu, eu estou perdendo a paciência
− Ah, Rosa, não perca, sua paciência é tudo o que eu
tenho
−…
− Aurora-do-céu, o lado bom de quando você perde a
paciência é esse, eu gosto de ser Aurora-do-céu
− ….
− Mas de toda forma toda aurora é do céu
− Aurora, me escuta, você precisa entender que a maior
probabilidade é sua filha estar viva que nem a maioria das
filhas brancas deste país e a Camila está lá fora procurando
a mãe enquanto você
− Foi um avião, Rosa
SU MÁ R I O

Capa
Dedicatória
Folh a de rosto
Citação
Um
Dois
Trê s
Q uatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onz e
Doz e
Trez e
Q uatorz e
Q uinz e
Dez esseis
Dez essete
Dez oito
Dez enove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e trê s
Vinte e q uatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e trê s
Trinta e q uatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Q uarenta
Q uarenta e um
Q uarenta e dois
Q uarenta e trê s
Q uarenta e q uatro
Q uarenta e cinco
Créditos
U M

Um filh o pode morrer em etapas.


Uma das maneiras de um filh o morrer em etapas é justamente
um avião desaparecido. Primeiro some um avião, o q ue você já
sabe q ue pode acontecer e, contra todas as ex pectativas, mesmo
assim deix a a sua filh a entrar nele, de férias ou sei lá o q uê , uns
tempos em outro continente servindo bebidas, as necessidades
q ue as pessoas arrumam. Até terem seus próprios filh os, os
filh os não sabem dimensionar o esforço de mantê -los vivos até
aq ui e arriscam-se demais.
Então, uma vez desaparecido o avião – isso foi uns dez ,
q uinz e anos atrás, eu soube na h ora pela televisão e derrubei o
bule, como num filme, os filmes estão certos, as falanges se
distendem e o bule tomba no ch ão –, está desaparecido o filh o
dentro dele.
J á começa de imediato uma reação dentro do corpo q ue é
tentar eliminar depressa tudo q ue foi comido recentemente,
porq ue não h á mais tempo para cuidar da digestão, é h ora de
reagir a essa dor indescritível e para isso é preciso um estô mago
livre.
Talvez seja uma longa nuvem, você vislumbra essa nuvem
acabando e dela desponta um avião, o avião onde está a sua
filh a e os filh os de tantas pessoas, como pode uma coisa q ue voa
para outros continentes levando filh os no meio do ar.
Mas a nuvem não termina e já são h oras demais para um filh o
estar desaparecido dentro de um avião desaparecido enq uanto
você recebe notícias pela televisão, pelo telefone a companh ia
aérea ainda não pode ajudar, senh ora, como se fosse uma ajuda.
Antes dessa viagem ela disse q ue precisava se despregar de
mim, porq ue isso aq ui não é vida. É uma frase q ue se espera de
um adolescente, ela já tinh a pelo menos vinte anos e h avia várias
formas de se despregar de mim q ue não envolviam um avião
desaparecido, saiu brigada comigo, mas não tinh a importâ ncia,
uma briga à toa, não significa nada diante de tudo o q ue fomos,
q uando uma mãe q uer lembrar de um filh o pensa nele aos sete
anos de idade rindo de uma comida q ue caiu do prato, esse é o
retrato definitivo de um filh o.
Depois ach aram no mar. Primeiro o avião, então começou mais
uma etapa da morte da minh a filh a, q uando o avião já não estava
desaparecido, mas ela sim. Então você imagina q ue h á uma ilh a,
ela escapou. E cada tolice q ue você imaginou pesa um pouco
mais q uando vem a ligação, ach aram o corpo dela também.
D O IS

Minh a filh a Camila tinh a uma cor ensolarada pux ada do pai, um
cabelo forte q ue crescia rápido na frente dos olh os e eu mandava
q ue cortasse a franja, mesmo já moça eu insistia com a coisa da
franja porq ue ela andava de bicicleta com o cabelo no olh o e a
gente põ e filh os no mundo pra andarem de bicicleta, as cabeças
debaix o dos pneus dos ô nibus, tudo porq ue não cortaram a franja
e enx ergam mal, um ch arme.
A minh a Camila apesar de tentar tanto morrer de franja foi
morrer de outros cortes, sepse, a palavra q ue eu já conh ecia e
q ue era apenas uma palavra, embora uma palavra nunca seja
verdadeiramente pouco, foi uma comoção na escola, estava no
ú ltimo ano e ia cursar jornalismo.
A Camila não ia ex istir, nenh um filh o ia, porq ue o Antô nio
q ueria viver solto, grudado em mim, mas solto de todo o resto,
ninguém ch orando de madrugada, é nessa h ora q ue eu me perco
um pouco, q uem foi q ue venceu, mas ando convicta, eu venci, a
Camila nasceu e ch orou dentro de todas as madrugadas do
Antô nio até ele ir embora, era um ch oro igual ao de q ualq uer
criança, eu já estava preparada pra isso, no começo do
magistério tive classes de crianças q ue eram q uase bebê s, h oras
e h oras ch orando, é o canto deles, mas é isso, no fim se bota
uma criança no mundo pra q ue ela ch ore muito e faça uns anos
de companh ia mas a maior probabilidade mesmo é q ue morra,
por isso talvez estivesse certo o Antô nio, q uem é q ue consegue
viver assim lado a lado com a possibilidade da pior morte e a pior
morte era a da Camila, sábios os q ue evitam a possibilidade da
morte de suas Camilas e a ú nica forma segura é impedir q ue
ex istam.
Eu ach ei q ue eu fosse famosa, uma artista, mas não tem
nenh uma foto minh a na internet, a Rosa disse, então eu já sei
q ue sou professora, se eu fosse artista já teriam encontrado tudo
sobre mim, o médico perguntou se pode ser q ue Aurora não seja
o meu nome, eu espero realmente q ue seja, é um ex celente
nome, professoras de portuguê s tê m uma coisa curiosa q ue é
viver ensinando a língua q ue os jovens já falam o tempo todo e
portanto ach am q ue não precisam aprender mais ainda, e então
você divide aq uilo q ue eles ach am q ue sabem numa porção de
conceitos q ue eles decidem q ue não q uerem saber e no fundo
você só deseja q ue eles se comuniq uem bonito, é somente isso
q ue q uer uma professora de portuguê s, mas passa a vida
ensinando o q ue todos já sabem ou minú cias q ue ninguém q uer
saber dentro daq uilo q ue todos já sabem, por isso a Camila q ue
se comunicava bonito e amava a sua língua ia ser jornalista, e
não professora de portuguê s.
A ideia de ter um filh o vai além de gerar e apertar e amar uma
criança, o q ue você q uer é ter também um filh o adulto, ficar velh a
perto de alguém q ue ficou adulto e ainda te ama, porq ue os
alunos não, eles ficam adultos e esq uecem a professora de
portuguê s ou pelo menos não a amam, e é por isso q ue eu fico
revoltada com a Rosa, ela q uer q ue eu me lembre de tudo isso
q uando na verdade era muito melh or não lembrar q ue eu gastei a
minh a vida protegendo Camila de todas as q uinas dos móveis, o
perigo das pontas das facas, para ficarmos velh as juntas, ela
ainda não seria velh a h oje, mas certamente adulta, talvez q uase
q uarenta anos, q ue delícia ter uma filh a de q uarenta anos, foi
para isso q ue eu despejei e transbordei toda a minh a juventude
no berço da Camila, pra q ue um dia ela tivesse q uarenta anos.
Q uarenta anos, a idade q ue a Camila deveria ter h oje, é uma
idade q ue as pessoas imaginam, é uma idade normal, mas eu
me lembro de q uando eu ch eguei aos setenta anos, isso foi antes
de eu esq uecer a Camila e o meu endereço, portanto não h averia
em tese motivo para espanto, mas ch egar aos setenta anos foi a
maior surpresa da minh a vida, a novidade mais inédita de todos
os fatos previsíveis, porq ue nunca ninguém pode se imaginar
com setenta anos até de fato ch egar neles. Q uando a pessoa se
imagina com essa idade é feito assistir por trás dos olh os a
q ualq uer coisa q ue não é ela, é outra velh a, uma velh a q ue já
não é ela, porq ue ninguém pode ser o mesmo aos setenta, então
nunca somos realmente imaginados aos setenta, os
septuagenários imaginários são completos factoides, e bastava
q ue tivéssemos, aos trinta ou q uarenta, pensado em nós
mesmos, ainda q ue bem mais velh os, mas não o fiz emos,
pensamos numa outra velh a, e em sermos assim tão inusitados é
q ue reside a ex trema solidão de ch egar aq ui: nem nós nos
esperávamos.
Dou comigo mesma aos setenta e poucos q uando por toda a
minh a juventude me esperava outra, não assim, tão mesma, uma
outra q ue não pudesse se dar conta de todo o tempo q ue passou
– q ue é bem maior q ue aq uele q ue sobra.
Eu ach ava q ue indivíduos de setenta anos só deviam pensar
nas curvaturas de sua velh ice e o q ue passou já teria passado,
era a vida q ue aconteceu e pronto, mas não, as culpas ficam
jovens, não temos a idade das nossas culpas, são ch eias de
energia e ach o q ue não dormem, parece q ue ficam ainda mais
vigilantes no nosso sono, traz em insistentes sonh os sem
criatividade q ue são na verdade arremedos da própria culpa,
releituras da vida q ue já foi. Eu sonh o insistentemente q ue não
tive Camila e q ue portanto Camila não morreu e estou transando
com Antô nio belíssimo, talvez não seja Antô nio, estamos
bê bados numa festa e temos q uarenta anos, q ue é a idade q ue
deveríamos ter sempre, ao ser h umano deveria ser assegurado o
direito de ter a todo momento q uarenta anos, do princípio ao fim.
O problema desses sonh os é acordar deles, são ch icletes q ue
mastigamos seis, oito h oras, entusiasmando o estô mago, sem
engolir nada.
Eu ach ava q ue aos setenta sonh ávamos menos, ou q ue
acordávamos sem lembrança da noite, preocupados com a
cafeteira, a água dos beija-flores, o leiteiro q ue vai passar. E
nessa imagem q ue eu tinh a dos velh os morava até mesmo o
absurdo de um leiteiro na década de sabe-se lá q ue futuro em
q ue ch egaríamos todos aos setenta anos. Ch eguei aq ui, e ainda
h á pesadelos – q ue são também os sonh os bons, por tornarem
aterroriz ante a própria realidade q ue lh es sucede. Ch eguei, e
como h á pesadelos.
Então foi isso, Camila cresceu dócil, teve uma adolescê ncia
inofensiva, indício de q ue q uando tivesse q uarenta seríamos
amicíssimas, um dia ela fech ou o caderno e iluminou com o
lustre um corte mal cicatriz ado no q uadril, engrumado e cinz a,
muito q uente, a Camila tinh a a pele ensolarada q ue pux ou do pai
e além disso tinh a tomado muito sol com as amigas, era
importante a marca do biq uini, importantíssima, sobre isso eu
não poderia intervir, ela ia de bicicleta até a casa da amiga q ue
tinh a q uintal, mas não tinh a piscina então se molh avam na
mangueira, lindíssimas, eu mandava cortar a franja q ue
atrapalh ava os olh os na bicicleta, o perigo do pneu dos ô nibus
sobre a cabeça, também mandava avisar q ue ch egou, q ue saiu,
tomar suco de laranja fresco, mandava também q ue corrigisse a
redação q ue esq ueceu em cima da mesa repleta de sujeitos
preposicionados, como me enervam os sujeitos preposicionados,
logo minh a filh a, e agora o bronz eado escamoteando os
descaminh os da ferida, a verdade é q ue eu posso nunca ter
avisado q ue ela precisava lavar com sabonete na h ora q ualq uer
mach ucado, um assim tão grande precisava ainda mais
desinfecção, ou não pedi duas vez es no mesmo dia e aos filh os
tudo q ue se q uer de verdade é preciso ordenar ao menos duas
vez es, em ocasiõ es próx imas.
Ela tentou desconversar ao mesmo tempo em q ue me pedia
ajuda, mostrar a ferida era pedir ajuda, tinh a se cortado no jardim
da amiga enq uanto corriam com a mangueira aberta, não sabe
diz er em q ue espécie de prego saltado de um cano ou árvore,
talvez algo q ue pregasse a rede, não era q uestão de ferrugem,
não, mas talvez tenh a sido um pouco mais fundo, coloq uei a mão
na testa dela, febril.
Tinh a prova no dia seguinte, é impressionante, a morte além
de tudo tem desses ardis, disfarça-se tanto q ue parece estar em
algum lugar rindo enq uanto nos ocupamos do cotidiano como se
ela não estivesse à espreita, limpei o corte, dei um antitérmico,
no dia seguinte ela não se levantou para a prova, vomitava, a
febre muito mais alta, um ch eiro esfumaçado saía do
mach ucado.
Foi tanto tempo no h ospital q ue passei a ter rotinas
completamente naturaliz adas q ue envolviam a identificação
constante junto à recepção, ligar para o professor q ue me
substituía e ex plicar detalh es de cada aluno para as avaliaçõ es
finais, e correntes de oraçõ es q ue a escola me mandava e eu
ach ava q ue desprez ava mas em verdade eram a minh a ú nica
companh ia, esse deus dos outros.
À infecção generaliz ada seguiu-se um coma induz ido por
meses, eu me despedia a cada noite da minh a menina minguada
e esmaecida. Camila morreu numa manh ã em q ue eu estava tão
ex austa de temer a sua morte q ue não tive a força para o
desespero, o médico disse q ue O fato dela estar com o sistema
imunológico um pouco fraco… , e esta é uma culpa q ue mesmo
aos setenta e poucos anos eu deveria ter conseguido suprimir, o
incô modo q ue eu senti com o sujeito preposicionado q ue o
médico usou, ficava voltando a frase, E o fato dela ter demorado
tantos dias, Dela Dela Dela Dela, se este h omem não sabe diz er
uma coisa tão simples talvez não saiba de bactérias, não saiba
de mães e filh as, desde o instante em q ue eu decidi q ue teria um
filh o eu sabia q ue era possível perdê -lo algum dia, foi escolh a
minh a. Mais uma culpa.
T R Ê S

Hoje Rosa vai ficar muito ch ateada, mas estou segura: não tive
filh os. Como Antô nio está morto, não tenh o nenh um nome para
ela procurar, mas lembro sempre o nome da minh a amiga, uma
grande amiga, a maior amiga q ue poderia h aver, Rosa, mais do
q ue uma filh a, é esta amiga q ue você deve procurar e ela vai
saber resgatar cada segundo da minh a vida, deve estar me
procurando desesperada, ela vai te contar q ue eu nunca tive
filh os, o Antô nio não q ueria e de tanto ele não q uerer eu não
q uis, e certo ele, o mais provável era q ue o filh o morresse antes
dos q uarenta depois de h aver esgotado nossa juventude, essa
grande amiga vai ficar ch ocada q ue me encontraram
desorientada assim, depois vai rir da minh a cara, Aurora-do-céu
como isso foi acontecer! Não vai diz er Aurora-do-céu porq ue
Aurora possivelmente nem é meu nome, mas vai gritar aq uele
q ue é meu nome e com esse nome ch afurdar todo o calabouço
da minh a vida, um abraço apertado, vamos pular ainda q ue
velh as, ela vai tirar uma garrafinh a de cach aça da bolsa
ex plicando q ue é de Minas, muito boa, eu vou amar, vai procurar
neste q uartinh o verde e branco algum copo e não vai ach ar,
então tomaremos no gargalo, eu lembro perfeitamente desta
amiga, o nome dela é Camila.
Rosa vai ficar ex ultante com esta minh a memória, Camila
sempre foi adorável e agora deve estar uma velh a divertidíssima,
ficou viú va no momento correto, já sem paix ão, só um amor
gastadinh o, bem usado, numa h ora em q ue ela já era velh a o
bastante pra ter entendido q ue não precisava de h omem, mas
Camila teve um filh o, ele mora no Méx ico, ou era Novo Méx ico,
aposto q ue isso faz toda a diferença mas infeliz mente não tenh o
como lembrar um detalh e desses, Camila vai perdoar, ela perdoa
cada coisa.
Então ela virá me buscar soltíssima de h omem e amargurada
porq ue o filh o q ue tem justamente a faix a dos q uarenta ou
q uarenta e cinco anos não é aq uele amigo q ue estava no
contrato, não, q uando ela gestou e pariu e az edou toda a casa de
leite e fralda e depois acordou tão cedo para levar na escola e
parou de pintar – ela pintava – para pegar mais trabalh os odiosos
– mais tarde lembrarei a profissão dela –, então Camila estará
frustrada com esse filh o q ue em vez de ser um incrível laço foi
morar no Novo Méx ico ou Méx ico, mas ainda assim permanece
sendo um filh o, e vivo, coisa q ue não é tão comum, como todos
sabem, então ela vai tirar a cach acinh a da bolsa e vamos tomar
inteira – é daq uelas peq uenas, de bolsa, q ue incrível ex istir uma
cach aça de bolsa –, e depois q ue terminar de resgatar minh a
vida inteira ela vai me mostrar onde é minh a casa e como ela é
finalmente viú va vai acabar ficando pra dormir, vamos ver filmes
de madrugada como se tivéssemos q uinz e ou q uarenta anos,
depois vai perguntar se q uero ir à praia no final de semana.
Eu vou falar q ue não precisamos esperar o final de semana,
com meu nome recuperado eu provavelmente terei uma
aposentadoria caindo em algum banco, nós não temos mais
q uarenta anos, talvez esteja aí a ú nica vantagem de uma boa
velh ice – não como a velh ice dos idosos deste lugar –, q ualq uer
dia é final de semana, então vamos acordar e eu vou falar pra
tomar cuidado com o ch uveiro elétrico q ue faz tempo q ue
ninguém vem me ajudar com uns fios q ue estão soltando
estranh os por cima, melh or ela pelo menos tomar banh o de
ch inelos, porq ue Camila é uma sobrevivente, espantoso q ue
tenh a conseguido permanecer viva, tamanh o o perigo das suas
condutas, a começar pela bicicleta q ue q uando jovem ela usava
indiscriminadamente, em q ualq uer avenida, com uma franja q ue
caía pelo olh o, não enx ergava nada.
Antô nio deveria ter vivido um pouco mais, pelo menos até o
marido da minh a amiga Camila morrer, porq ue h ouve um período
em q ue fui mais soz inh a do q ue uma pessoa pode ser, mas
ninguém sabia, porq ue a solidão dos outros é uma coisa q ue a
gente lembra só de vez em q uando e logo joga para longe da
cabeça antes q ue se instale a culpa, porq ue é muito mais fácil vir
a culpa do q ue uma visita, Camila me visitou pouq uíssimo, pelo
menos na minh a opinião, e eu ch eguei a culpar o Antô nio q ue me
fez não ter filh os pra vivermos juntos essa maravilh a q ue é a
liberdade e o tonto não conseguiu passar dos sessenta e poucos,
grande porcaria de liberdade uma vida até os sessenta e poucos.
Fiq uei tão soz inh a q ue corrigia meus próprios erros de
portuguê s, erros não, gafes, desliz es. Camila é uma mulh er boa,
ela tinh a sempre alguma companh ia para faz er ao marido, então
eu peguei um jabuti de jardim, porq ue os cach orros já tinh am
morrido também e eu fiz um cálculo. Se eu pegasse um cach orro
aos sessenta e dois anos, vamos supor q ue o cach orro tivesse
uns trê s anos, e vivesse uns dez esseis, seriam mais trez e anos
de vida, era possível q ue eu sobrevivesse a ele, de modo q ue lá
pelos meus setenta e cinco anos, q ue é mais ou menos o q ue
devo ter h oje, poderia ver a morte de mais um cach orro, e isso
não, isso eu não suportaria, então, tal como a q uestão dos filh os,
era melh or não ter um bich o cuja dor da morte você é incapaz de
suportar.
O jabuti ficou na minh a casa aonde nunca mais voltei porq ue
não sei onde está, então deve ter comido q uase todo o jardim e
talvez escapado por baix o do portão, se fosse um cach orro teria
morrido olh ando a porta obcecado com a ideia do meu retorno.
Q uando Rosa encontrar a minh a amiga elas vão entrar juntas e
eu estarei deitada com um livro, será algum dos livros q ue líamos
na época de meninas, para ficar mais dramático, assim ela vai
primeiro se assustar com as paredes descascadas daq ui e o
verde q ue gosto de ch amar de verde-velh o, h á o az ul-bebê , o
verde-água e o verde-velh o q ue é esse tipo de verde vulgar q ue
usam em lugares para velh os, depois ela vai se ch ocar com o
meu cabelo e então os olh os vão baix ar até a capa do livro e ela
vai ch orar instantaneamente, pegar a cach aça da bolsa, et
cetera.
Q U A T R O

Hoje ch ove, ouço tiros. Os idosos estão acumulados na sala de


vídeo e o vaz io sem móveis faz um eco no tiroteio do filme, ouço
o dublador descrever estratégias para encontrar o alvo e não h á
a menor ch ance de os telespectadores estarem de fato
acompanh ando a agilidade dessa fuga, todos q uase derretidos
nas cadeiras, de rodas ou não, os do fundo constantemente
repetem q ue é pra colocar no futebol.
Vou ali perto espiar. Q uando um ator sussurra no filme, não se
pode escutar porq ue o ventilador faz muito barulh o e num janeiro
desses não dá pra desligar, embora eles detestem as correntes
de vento, eu por mim desligava também. Se não é o ventilador, é
o trovão. Q uando estão todos juntos assim numa sala o ch eiro de
urina seca é mais evidente, misturado aos produtos baratos e à
ferrugem das janelas posso apostar q ue é ch eiro de cadeia, só
falta o ch eiro de suor dos jovens q ue até nisso os velh os ficam
fracos.
Hoje tenh o consulta no médico e estou aguardando as
diretriz es, aq ui fora da sala de vídeo estamos eu, a fax ineira q ue
jamais dará conta soz inh a de tantos ch eiros e ainda assim sorri
para mim q uando cruz o com a sua pressa, h á o idoso q ue lê
muitos jornais, h á também a dupla do dominó incansável, não
param mesmo q uando a ch uva espirra por baix o da mesa e
começa a umedecer as meias, um perigo um idoso com as meias
ú midas, e h á também aq ui fora a acumuladora, pelo q ue soube
foi resgatada da própria casa q uando já somava trinta e oito
gatos, cento e noventa copos vaz ios de req ueijão lavadinh os sem
rótulo, uma graça de coleção, empilh ados pelos cantos não
apenas os rótulos mas q ualq uer papel de anú ncio ou revista q ue
tenh a entrado pela porta, já não era possível usar a pia da
coz inh a, preench ida de ração de gato, no box do ch uveiro ela
estocou embalagens vaz ias de x ampu e todas as escovas de
dentes das ú ltimas décadas, é fascinante uma pessoa q ue não
pode viver soz inh a porq ue se apega demais a todo o seu arsenal
de coisinh as transitórias. E gatos.
Sento ao lado dela, à mesa, para ver a ch uva, os tiros
dublados ao fundo, um ou outro resmungo no dominó, com a
umidade o ch eiro de urina sobe, é nostálgico para ela, lembra os
trinta e oito gatos. Este lugar é tão completo, ach o q ue posso
viver aq ui para sempre.
Como eles ainda tê m receio de q ue eu vá esq uecer tudo de
novo e não saberei voltar da consulta, mandam a coitada da
Rosa me acompanh ar, tantos problemas para acudir e precisa
ficar aq ui investigando uma velh a confusa, isso é o q ue sinto, ela
não, ela perde a paciê ncia, mas é um poço de amor, na volta já
avisou q ue vamos aproveitar pra passar no postinh o e cobrar a
listinh a toda dos remédios dos idosos, q ue eles não mandaram
vários, poucas são as ch ances de isso ser uma função da Rosa e
também poucas as ch ances de h aver alguém encarregado disso
neste país e se h ouver ele não está ou não dá conta, a
enfermeira sobrecarregadíssima, e o país sempre largado em
cima de alguma Rosa q ue está q uando os outros não estão.
Na fila do médico nem todos são velh os e ainda assim não
ficam atentos aos malditos nú meros das senh as apitando no
painel eletrô nico, mesmo com o barulh inh o insistente, valh a-me
Nossa Senh ora q ue basta olh ar para cima a cada bipe e conferir
se é o seu nú mero, uma tarefa tão simples e ainda assim toda
essa gente atrasando a vida dos outros, as funcionárias tê m de
vir ch amar o nome. Por mim, deix avam por ú ltimo.
O doutor refaz um monte de perguntas q ue já me fiz eram antes
de me liberarem do h ospital e depois me olh a com algum
desgosto porq ue eu simplesmente não me encaix o em nenh uma
das suas teorias, como tento desanuviar o ambiente faz endo um
gracejo ou outro a Rosa q uestiona se eu estou ciente do
privilégio q ue é uma consulta com um neurologista neste país, e
é claro q ue estou, não me lembro se tive ou não tive uma filh a
mas fora isso estou ciente de tudo, a consulta avança e o cinismo
do médico ganh a tons de irritação, ele repassa o meu polê mico
itinerário, encontrada na madrugada de Ano Novo z anz ando
praticamente na beira da estrada perguntando por Camila, uma
coleira vaz ia na mão, depois segue numa longa fich a anotando
os meus ex ames, olh a de novo pra mim, h umor eutímico,
pragmatismo preservado, eu interrompo, pragmatismo
preservadíssimo! Era uma piada e ele não ri.
Neuromoduladores em ordem, sem problema visível no córtex
pré-frontal, nenh um déficit nas enz imas nem na síntese proteica,
peço para falar mais devagar para eu anotar, já vou apanh ando
uma caneta, ele diz q ue estará tudo no laudo, gosto da ideia de
q ue terei um laudo, não h á estreitamento nas sinapses, nenh um
sinal de apoptose, Aurora Aurora Aurora, ele está desgostoso de
mim, vai diz er Aurora-do-céu, depois registra algo com a palavra
fosforilar, e eu fico mais encantada.
Estou ciente do privilégio de estar diante de um neurologista e
no entanto ele não está gostando do meu caso porq ue sou um
desafio, ele precisa saber q ue eu detesto ser um desafio, sou
uma pessoa totalmente devota à ideia de diagnóstico. Este
h omem precisa gostar um pouco mais de mim então me estico
para ver a tela com o ex ame colorido, digo q ue a imagem do meu
h ipocampo parece uma lesma craq uelada ao sol, e então ele
finalmente sorri e responde q ue é assim mesmo, são as fibras
aferentes do fórnix , elas são colinérgicas.
Como minh a sintomatologia e meus neurô nios não condiz em
com a ciê ncia, ele pergunta se por acaso eu tinh a muito medo de
fogos de artifício. Não, mas um dos meus cach orros tem, demais,
o Perdoai, para isso ele não tem perdão, dou risada com meu
trocadilh o e o médico fica com o olh ar um pouco parado, talvez
pense em reconsiderar o Pragmatismo Preservado. De tanto não
rirem das minh as graças lembro q ue o Perdoai está soz inh o no
meu q uintal com a Camila, o meu J abuti, e isso é o pior de tudo.
Por q ue a senh ora ach a q ue esq ueceu sua vida, Dona Aurora?
A pergunta é séria e a dú vida genuína. Mas não gosto de
senh ora e muito menos de Dona, também não esq ueci a minh a
vida toda, não é bem assim, doutor, talvez , não sei.
A Rosa suspira e conclui de repente q ue tenh o um distú rbio
poético. Agora sim os dois riem.
CI N CO

A Rosa outro dia fez q uarenta anos, o pessoal do abrigo


preparou um bolo pra ela, q ue idade perfeita, q ue coisa boa é ter
q uarenta anos, mas ela é assistente social e tem muito trabalh o,
talvez já esteja mais cansada do q ue deveria estar nessa idade,
não fala da vida dela, sei q ue teve dois filh os, ela se irrita comigo
q uando conto q ue minh a filh a morreu, porq ue como à s vez es
pode parecer q ue estou confusa deve ach ar q ue invento tudo, vai
ver um dos filh os dela morreu e ela pensa q ue estou caçoando
porq ue é muito mais improvável morrer a filh a de uma professora
branca de colégio particular do q ue um dos filh os da Rosa, ela
me fala isso toda h ora, e, realmente, tem raz ão, mas nem tudo
são probabilidades, infeliz mente, porq ue eu teria absolutamente
todas as probabilidades do mundo a meu favor, mas as tragédias
nem sempre verificam os nú meros antes de açodarem uma
vítima improvável.
Aliás, para uma pessoa precavida como eu, nada q ue ocorra
fora das probabilidades é espantoso ou causa desconfiança,
precavida é sinô nimo de prevenida, uma pessoa q ue já foi
avisada de tudo o q ue possa vir a acontecer, não é natural
manter-se vivo, todo o corpo fica permanentemente combatendo
nossa tendê ncia a morrer, a vida em si é q ue é surpreendente,
todos os órgãos funcionando, o milagre da respiração, q uando
ouvia adultos rez ando eu me detinh a particularmente na
passagem q ue eu escutava errado, Agora é a h ora de nossa
morte amém, por isso eu tinh a tanto medo q ue rez assem perto
de mim, mas mesmo depois q ue me ex plicaram continuei
desconfiada, Agora e na h ora de nossa morte amém, q ue h ora
era essa, a h ora de nossa morte, como se fô ssemos morrer em
apenas um momento, estávamos morrendo já ali mesmo
enq uanto eles rez avam, com o detalh e de q ue por sorte neste
preciso momento o corpo venceu, agora venceu de novo, e
venceu agora também, até q ue de repente não.
Antô nio jovem tinh a muito ímpeto, era um tipo franz ino, mas
conservava os melh ores bigodes, numa época de vastos
bigodes, era ousado com os cabelos e cores das calças,
tính amos um fusca também bastante colorido, casamos na igreja
os dois sem entender muito bem por q uê , era o q ue se faz ia e
pronto, até q ue a morte nos separe, na h ora de nossa morte
amém, então íamos a muitos bares, uns sh ow s de bandinh as dos
amigos dele, eu sempre com medo de tudo porq ue era ditadura,
eu ficava paralisada, culpadíssima de q uerer tanto sobreviver,
acabei me afastando de q ualq uer amigo q ue poderia ser assim
mais interessante porq ue os muito interessantes tinh am a
tendê ncia a estar ocupados em derrubar o regime, e eu
preocupada com a minh a integridade física, ch orava todo dia por
ensinar sujeito, predicado, adjuntos adnominais, permanecer
totalmente não revolucionária, por favor, nem um pouq uinh o
revolucionária, amém, não cabe revolução na gramática, cada
transformação custa um século, e o Antô nio contente dirigindo o
fusca, ímpetos.
À s vez es voltando do Largo onde bebíamos de pé ou mal
sentados em meio à raspa dos artistas de circo tocando nos
botecos cada um seu instrumento à procura de um contratinh o
aq ui ou ali à caça de empresário ou coisa assim, enq uanto o
Antô nio com suas mãos de óbitos e perícias batucava a mesa ou
então sacudia o saleiro empedrado tentando acompanh ar a
sanfona sem notar atrás de si o malabarista desesperado por
atenção – isso era à s segundas e terças-feiras na folga do
pessoal dos circos, o q ue pra mim era ruim porq ue as aulas
começavam cedo, mas o Antô nio gostava de me ex aurir para q ue
nunca coubesse um filh o nos meus h orários –, pois bem, à s
vez es voltando do Largo eu tinh a certa pressa, uma agonia,
tính amos de escapar logo dali porq ue o fusca num q uarteirão
escuro distante das cantorias, a viola triste abafada pelos
prédios, e eu temendo ai meu Deus se pensam q ue somos
alguma coisa, terroristas importantes, artistas subversivos, e o
fusca engasgando sem ligar nas noites mais frias e eu aflita,
Antô nio vamos com isso e ele insistente na ch ave, o fusca
tossindo teimoso, não tinh a absolutamente ninguém da polícia
interessado em nós e no entanto o fusca aprontando dessas e
um carro q ue não sai com naturalidade é sempre uma coisa
suspeita, h ouve uma noite em q ue o Antô nio precisou pegar a
minh a meia e dar um nó para substituir a correia da ventoinh a
q ue q uebrou e eu tive certez a de q ue íamos presos porq ue
apenas um casal engajado em alguma luta estaria no meio da
noite no centro colocando uma meia nas engrenagens do fusca,
o fusca q ue era o q ue tính amos de mais h eroico.
É vergonh oso ser assim tão apaix onada por estar viva q uando
os melh ores estão dedicados a muito mais e além.
Ele q ueria faz er tudo isso pra sempre e de fato era uma vida
boa de se levar, tính amos férias regulares e saíamos com o
fusca, cach oeiras, praias, eu q uis muito ter uma filh a, parei a
pílula, ele ch orou, bateu portas, depois beijou minh a barriga dura
e grande, mas ainda ch orava e batia portas, depois era só a
Camila q ue podia ch orar.
Se eu coloco h oje a mão na minh a barriga é muito claro q ue
ela esteve ch eia, eu não tenh o mais a menor dú vida, não consigo
seq uer entender como foi possível q ue algum dia eu tenh a dito
para a Rosa q ue nunca tive filh os, Camila é minh a maior certez a
e eu q uis tanto q ue ela ex istisse porq ue não tem o menor
cabimento uma pessoa assim apaix onada pela vida como eu não
q uerer viver o amor mais intenso, pelo menos era isso q ue a
Aurora jovem sentia, e também a vontade de ter um dia uma filh a
de q uarenta anos e nunca ser uma velh a soz inh a com um jabuti
silencioso no q uintal tendo como ú nica lembrança e conq uista da
juventude as variz es trombóticas turbinadas por anos de pílulas
anticoncepcionais.
Desde o primeiro instante em q ue eu soube q ue tinh a um filh o
dentro da minh a barriga e mais ainda assim q ue segurei a
peq ueníssima Camila, já entendi q ue todo o meu tempo passaria
a ser dela, não diretamente, mas absolutamente, tudo voltado
para precaver, ou antever o q ue pudesse ser contra ela, como é
frágil a vida porq ue o tempo todo se ex aure combatendo nossa
morte, é sempre a h ora da nossa morte.
O filh o é isso, esse grande potencial da pior fatalidade, inteira
condensada na maciez ex trema, cada lufada de amor q ue me
arrebatava de um lado me golpeava em seguida pelo outro lado
com toda a força do medo de perder Camila.
Minh a filh a peq uenininh a me traz ia uma dobradura banal q ue
tinh a feito, um encanto, e em seguida virava-se correndo para
outra ponta da casa e eu de imediato tolh ia o gesto, correr é o
maior dos descuidos, e então ela desacelerava, por obediê ncia e
também por um gérmen de medo q ue ela vinh a aos poucos
nutrindo sem entender ainda o q ue é a morte.
Este q uarto vai ficando fedido de um ch eiro q ue não é meu, ou
então fui eu q ue esq ueci também q ue sou velh a e q ue portanto
este é o ch eiro de velh a, mas duvido, é uma coisa de ferrugem,
os pregos nessas maçanetas baratas, o lençol q ue arranh a, sou
tão desacostumada a esse lençol q ue ch ego de novo a pensar
q ue sou rica, famosa, daí dou risada, h á poucas famas possíveis
para uma professora de portuguê s e é bem provável q ue não
ch eguem a se ch amar fama, o nome q ue devem dar é
notoriedade, q ue é a fama possível para aq ueles q ue faz em algo
tão impopular q ue só podem mesmo ter fama entre seus pares,
um prê mio consolação.
Nem isso, porq ue já h á muitos dias minh a foto está na internet.
A Rosa antes não q ueria colocar a foto, ela ficou com receio de
receber alarmes falsos sacanas, não foi sacana q ue ela disse, foi
mal-intencionados, alguém q uerendo se passar por meu marido,
filh o, q uem é q ue vai vir reclamar uma velh a q ue não é a sua, as
disputas são sempre para devolver a velh a e não para ter uma
em casa.
De fato, não me procuraram. Rosa fica frustrada, diz q ue sou
intragável, daí ri muitíssimo e me dá um beijo na cara, q ue não
q uer mais me ver pela frente, q ue logo mais a gente ach a
alguém, e eu vou lembrar meu nome, q ue eu q uero tanto q ue
seja Aurora, lembrar meu endereço, o q uintal onde um dia viveu
felicíssimo um cach orro q ue eu amava tanto, Perdoai, o nome do
cach orrinh o, vira-latíssimo, pelos tão confusos q ue era comum
não sabermos onde estava a cabeça e o rabo, diz íamos Perdoai
e ele abanava o rabo e então sabíamos da cabeça, esse foi meu
ú ltimo cach orro.
Na verdade tính amos dois, o Perdoai e o Ofendido, q ue ficava
sendo apenas Dido, mas Dido foi embora um dia, viu o portão um
instante esq uecido e partiu, segundo o Antô nio partiu
ofendidíssimo – esse h omem tinh a sempre uma piada a faz er – e
nunca mais q uis ou soube voltar, vai ver ficou como eu, sem
lembrar q uem era e onde ficava sua casa.
Camila tinh a q uatro anos, desconsolada, como um bich o ia
embora assim, sem diz er aonde ia, se aq ui ele tinh a tudo, se nós
o amávamos tanto, mas logo ela superou essa q uestão por outra
maior porq ue umas semanas depois o pai foi embora, aproveitou
um instante do portão aberto e saiu, não disse aonde ia, nem se
despediu, mandava algum dinh eiro, desconfio q ue à s vez es
espiava o q uintal só pra ver como corria o Perdoai com a sua
pelagem varrendo a grama e se tornando um adorno repleto de
berloq ues. Só mesmo o cach orro ele via, não a filh a, q ue essa
ele nunca q uis q ue ex istisse e eu q ue me iludi q ue viriam uns
h ormô nios ou q ualq uer coisa de instinto e ele se tornaria pai mas
faltou parto ou h ormô nio, ou não sei, a Camila segurando o
brinq uedo q ue o pai tinh a comprado semanas antes me
perguntava com seus olh inh os o q ue é q ue faltava nela e não
faltava nada meu amor a coisinh a mais perfeita, agora somos
nós duas e o Perdoai, e eu me perguntava como ia consolá-la
q uando um dia morresse aq uele cach orro e tivéssemos de cavar
um buraco no jardim.
Q uase um ano depois q ue Antô nio foi embora, levei Camila
como sempre até uma praça ali próx ima, o Perdoai seguia ao
lado sem coleira porq ue ao contrário do Ofendido e até mesmo
do Antô nio ele nunca se afastava de nós. Estava perto do Natal,
as casas tinh am uns enfeites deformados repetidos dos outros
anos, ela ia saltitando, mãos dadas comigo.
Na praça tinh a um parq uinh o com areia, eu detestava aq uela
areia porq ue pode dar leptospirose, os gatos e ratos ach am q ue
aq uilo é um banh eiro. Pessoal se uniu e a prefeitura fez um
gradeado em volta da areia e do escorregador, uma placa
proibindo animais.
Deix ei Camila cavar bastante a areia com as unh as feito um
bich inh o porq ue era isso q ue a sociedade ex igia de mim, q ue eu
permitisse q ue a minh a filh a usasse os instintos as mãos a língua
o tempo todo o mundo contra mim e os meus laços o meu
cuidado era uma culpa de tolh er inteira a vida da minh a menina
q ue ia crescer parecendo um cacto pontudo e h ostil, imóvel no
seu canteirinh o, então era isso q ue eles q ueriam, a Rosa vai ficar
ch ocada, ela diz q ue não se pode prevenir tudo só q ue eu
poderia prevenir, eu já detestava aq uela areia mas todas as
mães deix avam as crianças praticamente enterrarem umas à s
outras em todas as areias, é importante para q ue cresçam
respeitando a naturez a e o meio ambiente e eu pergunto q uando
foi q ue o meio ambiente respeitou a minh a família.
O Perdoai saiu andando soz inh o na direção de uma árvore, a
parte do corpo dele q ue era certamente o rabo abanando sem
parar. Estranh ei e fui atrás. Camila q uieta no cercadinh o em
contato com a mãe-terra, era Antô nio ridículo atrás de uma
árvore, o cach orro festejando como se tivesse ele próprio
h eroicamente encontrado o dono perdido.
O médico disse q ue eu tenh o ilh as preservadas de memória,
gosto da imagem, mas como saber se são ilh as ou, ao contrário,
miragens de oásis no meio da minh a indistinta porção de terra.
Uma vez pedi na prova para a turma o conceito de ilh a e um
aluno dos mais ternos ch egou a ultrapassar as linh as
descrevendo em detalh es o lugar mais lindo em q ue já esteve
com o avô , Ilh a Comprida era o seu conceito de ilh a. Aceitei.
Agora q ue tenh o um médico intrigado com meu distú rbio
poético e não posso ser passada para trás por ele com aq uela
cara desafiadora e ch eia de empáfia estou estudando memória
também então posso diz er q ue essa mesma situação é lembrada
pelo cach orro de outra forma.
Perdoai lembra-se talvez do ch eiro da Camila e do sú bito
ch eiro saudoso do Antô nio despontando entre as árvores, então
a tex tura da terra e pedrinh as da praça nas almofadas das patas
derrapando na corrida, as imagens são poucas, sem cores, a
criança fica sendo um borrão ao longe, e então as voz es
h umanas q ue são sempre disparatadas ganh am um tom mais
agudo e caótico, o volume doeu nos ouvidos, isso ele lembra, por
anos o esgar de sobrancelh as e crispar de lábios h umanos vão
alarmá-lo pelo trauma do barulh o dos gritos, ao q ue se segue o
instantâ neo desaparecimento dos h umanos e à noite ele retorna
soz inh o ao q uintal, foi um grande dia.
Perdoai festejava Antô nio q ue, q uando me viu, fez q ue ia sair
correndo, mas começou a ch orar – o Antô nio, não o cach orro –,
ach ei q ue ia pedir pra voltar mas essa era a ú ltima coisa q ue ele
q ueria, a vida dele estava arruinada porq ue tudo o q ue mais
amava ele não podia suportar, aq uela menina era um anjo, ele
ficou diz endo, meio baix o pra ela não ouvir, babando e cuspindo
no meio do ch oro, mas ele não aguentava, não era pai, era
mentira q ue ele era pai porq ue não cabia essa palavra nele, e eu
não sabia se consolava, se ch amava Camila para ver o papelão
do pai, e então ela gritou muito alto.
Acudimos depressa os trê s. O cach orro não podia entrar no
cercado, mas entrou mesmo assim e acabou em luta com
alguma coisa q ue se esgueirou depressa pela areia. Antô nio viu:
um escorpião.
Trê s dias de internação, nada continh a os vô mitos, a perninh a
endurecida numa imensa auréola vermelh a e q uente em torno da
peq uena pú stula, não resistiu, a Rosa diz q ue tenh o medo de
tudo, mas como ser diferente se a vida é um fio solto no meio da
morte. Acabou q ue foi para o cach orro q ue eu tive de ex plicar o
desaparecimento total da criança da casa, q ue não enterramos
no jardim e então Perdoai nunca pô de entender o abandono.
Pensei q ue eu não fosse sobreviver ao Natal ou à virada do
ano, mas fui vivendo uma a uma cada noite, toda do avesso,
encolh ida na caminh a da Camila q ue tinh a ch eiro de lavanda.
Nunca mais ninguém ouviu falar do Antô nio.
SEI S

A Rosa troux e dez oito fotos de cach orro pra eu apontar q ual
parece o meu e a partir dele lembrar muito mais. Evocação, o
médico disse, e eu gosto de rituais ch ancelados pela medicina. O
remédio q ue ele passou contém na bula a palavra agonista,
também estou satisfeita com isso, um transtorno poético só se
trata mesmo com algum tipo de agonia.
O meu cach orro está soz inh o no meu q uintal q ue não lembro
onde fica, está sofrendo muitíssimo ach ando q ue deix ei de amá-
lo, não sabe q ue é impossível deix ar de amar um cach orro.
Ela diz q ue se esse cach orro de fato ex iste os viz inh os já
acolh eram, ou acabaram com ele. Q ue adiantam dez oito fotos de
cach orro se o Perdoai é vira-latíssimo, não lembro a cor, mas é
uma mistura tão total q ue constitui a essê ncia, o cach orro
absoluto.
Não adianta, Rosa, Rosinh a, Rosa-do-céu, as fotos não tê m
nada do meu Perdoai. Ela riu desse nome, mas é um nome muito
q uerido, minh a amiga Camila tinh a acabado de sair do coral num
começo de tarde de sábado e foi me encontrar lendo numa mesa
de bar na praça, aposentadíssima, plena, daí fomos num evento
de plantas, no fundo do evento de plantas tinh a é claro cach orros
massacrados pela vida, miseráveis, numa jaula improvisada,
implorando q ue duas senh oras viz inh as e amigas de toda uma
vida adotassem pelo menos dois deles para serem amigos de
toda a vida, então o meu ficou ch amando Perdoai e o dela
Ofendido, mas só diz íamos Ofendido q uando dávamos bronca,
normal era Dido.
Não sei muito sobre o q ue me tornei, mas é certo q ue sou uma
pessoa q ue tem sonh os de vida enq uadráveis em peq uenas
imagens precisas, eu seria totalmente feliz se alcançasse ao
menos um dos meus q uadros de perfeição, mas sempre algum
detalh e me escapa. A ideia de duas senh oras amigas de toda a
vida criando e passeando com seus dois vira-latas igualmente
amigos da vida era toda a minh a motivação, e realiz ei dedicada
todos os passos para alcançar essa felicidade, caminh aríamos
sorrindo pelo bairro, também nos parq ues. Com o tempo os dois
seguiriam soltos, sem coleiras, saltitariam um do lado do outro
disputando a bolinh a q ue jogaríamos ora ela, ora eu, sem
interromper o assunto, porq ue temos muito assunto, Camila e eu,
depois levaríamos os dois à praia, ficariam duros e salgados
amaçarocados de areia e, como não teríamos filh os a perder, os
cach orros poderiam lamber nossa boca enq uanto riríamos
estiradas na canga e eu seguraria a mão dela e com a outra ela
abriria uma cach acinh a de bolsa e sorriria com os dentes
transbordando e me diria q ue pux a q ue bela vida nós levamos
assim com todo o tempo q ue tivemos pra nós e enfim ex austos
os cach orros dormiriam no pô r do sol aninh ados um no outro.
Porém duas semanas depois q ue os pegamos da jaula da
ONG no fundo do evento de planta os dois desenvolveram um
ciú me doentio de mach os e só h avia ofensas e nenh um perdão,
ch egavam a arrancar sangue e babavam rosnando à distâ ncia
q uando pressentiam um ao outro, Camila e eu tính amos de
revez ar o cach orro q ue ia nos acompanh ar nos passeios, mas
nenh uma q ueria deix ar o seu soz inh o, o Perdoai já identificava a
ligação telefô nica e ficava com as orelh as em pé, e acabou q ue
por causa deles nos víamos cada vez menos.
Era tanto o ciú me q ue um atendia muito mais pelo nome do
outro, e de tanto acudirem trocados q uando os ch amávamos,
tropeçando nas próprias brigas, aceitamos trocar os nomes, e
Ofendido ficou sendo Perdoai e vice-versa.
Houve outros q uadros ideais da minh a vida q ue, antes deste,
falh aram por algum detalh e. Eu q ueria tanto ter um filh o, de
preferê ncia uma filh a com Antô nio e cada um de nós seguraria
uma das mãoz inh as dela, uma foto a cada ano de vida na
mesma posição e q uando ela tivesse q uarenta anos, q ue é a
melh or idade de um filh o, ela nos faria ficar na mesma posição
para uma foto igual, os pais idosos, q ue é isso q ue pensaria q ue
sou, idosa, não combina comigo, prefiro velh a, consigo acreditar
mais, ela seria tão gentil, faria um álbum com todas, não na
internet, um álbum revelado mesmo, q ue eu adoro a palavra
revelar, no tempo em q ue se revelavam as fotos as imagens não
ex istiam até q ue fossem reveladas e as lojas se ch amavam
reveladoras e os nomes eram variaçõ es de revelaph oto e q uando
a pessoa ia buscá-las h avia a emoção de adivinh ar se aq uela,
ex atamente aq uela cena se revelou ou falh ou, porq ue também
tinh a isso de as imagens falh arem, como as minh as imagens dos
sonh os ideais, q ue no fim não constavam do meu envelope na
Aurora Revelaçõ es® .
Antô nio não q uis de forma alguma o filh o e eu tonta me perdi
naq uele h omem q ue nem era amplo nem vasto, era facílimo sair
das suas dimensõ es, ainda assim ele era a perspectiva de outra
imagem q ue eu também poderia revelar à perfeição e q ue de fato
funcionou por muitos anos, era o nosso romantismo indefectível
tépido cálido, todas as palavras confortavelmente sensuais
cabiam no nosso amor, mas para a imagem completa ficar
realmente revelada era preciso envelh ecermos juntos, eu
precisava ter nele o registro de toda a minh a memória, a
cumplicidade de uma vida inteira. Antô nio morreu mal tinh a
começado nossa aposentadoria.
Vou diz er à Rosa q ue é por isso q ue demoro a lembrar a minh a
vida, não foi revelada, fui buscar minh as fotos e o rapaz falou q ue
o filme todo q ueimou, ou então não sei, ficaram todas borradas,
minh a vida foi um grande dedo na frente da lente, o fotógrafo
diz ia Sorriam, mas sempre faltava alguém na foto, e sempre o
dedo na frente.
SET E

As minh as aulas tomavam toda a manh ã e um pouco da tarde, e


antes de anoitecer ainda dava reforço para o neto da viz inh a em
retribuição por olh ar a Camila para mim desde seis e meia da
manh ã, eu deix ava minh a filh a na porta e se a viz inh a demorava
dez segundos para abrir eu já me impacientava, inteira atrasada
num estado inviável de nervos, era tão cedo q ue a viz inh a mal
me olh ava, eu trocava uma criança por outra, saía com o menino
dela q ue era bem mais velh o e entendia tão pouco de estudos, a
Camila subia devagar os degraus, ainda atrapalh ada com a
fralda ampla de panos embolados, e acenava sonolenta um
tch au resignado, à s vez es eu não tinh a tempo de retribuir e
depois no meio da aula lembrava e me culpava, meu Deus não
dei tch au para a minh a filh a.
O moleq ue batia a porta do fusca q ue o Antô nio tinh a
amorosamente esq uecido comigo e coch ilava até ch egar na
escola, o q ue não dava nem dez minutos de corrida, ainda dava
trabalh o removê -lo do banco.
Ch egando na sala de aula mesmo tão cedo a maior dificuldade
era pará-los, comecei a pensar se tinh a vocação para isso q ue
era silenciar um nú mero ex cessivo de alunos do primário
apinh ados em carteiras rompidas e embriagados do álcool do
mimeógrafo, meus ombros doídos de girar as cópias enq uanto eu
calculava q ual a frase possível para motivá-los a ouvir-me mais
esta manh ã, o q ue poderia calá-los, e a isso se somava outra
linh a de pensamento q ue era indagar-me q uanto tempo mais
aguentaria deix ar a minh a filh a com aq uela senh ora silenciosa e
froux a, já faz ia mais de um ano q ue ela olh ava a Camila e digo
apenas olh ar mesmo porq ue ela não dava conta de nenh um
outro verbo, minh a filh a crescendo num ambiente sem verbos.
Um aluno arremessa no outro um estojo de lata a ponto de
abrir-lh e o supercílio, arma-se no entorno uma comoção q ue
evidencia q ue eu jamais terei algo importante para ensinar, o
menino q ue arremessou me atravessa com alguma insolê ncia em
palavrõ es q ue nem domino, é imediata a raiva q ue sinto e em
seguida a tontura porq ue um professor não pode ter raiva de uma
das suas crianças, se ele arremessou o estojo, Aurora, você
precisa investigar se o pai dele anda arremessando coisas dentro
da casa, isto aq ui são anjos impolidos.
Apenas mais um supercílio aberto de tantas as peles q ue se
abrem, passo uns minutos sem me lembrar de Camila e q uando
ela me toma a mente é como um afogamento abrupto, sento na
minh a cadeira enq uanto se engolfam em mais gritarias, serei eu
o árbitro deste caos?
E q uem salvará a mãe q ue deix a sua menina q ue não tem nem
dois anos aos cuidados da viz inh a triste, pessoas tristes não
servem para olh ar crianças, mas eu me consolava, não tinh a
outra opção, a minh a mãe estava convenientemente morta, uma
viz inh a era a solução q ue todos procuravam, uma pessoa q ue
não tem viz inh os não tem nada, eu trocaria todos você s por um
minuto da minh a filh a, eu detesto estar com você s em vez de
estar com a minh a filh a, mas isto é vocação, a didática está
inteira em mim, eu preciso q ue você s escrevam corretamente e
também aprendam sobre saneamento básico, sou a responsável
pelo engrandecimento dos cérebros de você s e isso também é
um fardo q ue tensiona os ombros, e se eu não conseguir, não
parece q ue estou conseguindo, o ano avança e você s continuam
mentecaptos, já q uase não são crianças e no entanto não h á
uma frase q ue escrevam sem percalços e eu não sei se o
problema sou eu ou a falta de nutrientes nas coz inh as de você s
porq ue as suas mães soz inh as também estão estafadas em
algum lugar talvez imaginando com q ue professora elas vê m
deix ando os filh os todas as manh ãs, será q ue é uma professora
triste, e talvez tenh am pena de mim porq ue se pra elas já é tão
difícil com um ou dois destes aq ui imagina tantos, até as risadas
de você s me irritam porq ue não são câ ndidas ou graciosas, são
de um h umor sórdido e empobrecido porq ue você s estão se
tornando mais burros e se h á algo q ue eu possa faz er contra isso
não estou conseguindo faz er e o ano passa e a viz inh a continua
olh ando a minh a filh a sem lh e ensinar uma ú nica palavra.
A minh a aluna preferida lança ela própria uma bolota de papel
inofensiva sobre o amontoado de colegas e volta a sentar-se,
incomodada como eu, sorrio para ela, q ue retribui tímida, depois
folh eia o caderninh o, ignoro a q uestão do supercílio e passo a
preench er a lousa, o preench imento da lousa tem o poder de
traz er alguns de volta à s carteiras, q ual o aumentativo de
cadeira, q ual o plural de o aluno faz silê ncio.
Nessa época não faz ia tanto tempo q ue o Antô nio tinh a
escapado de nós, escapado é uma boa palavra diante do q ue
nossa vida tinh a se tornado para ele. Eu ainda tinh a alguma
esperança de q ue ele voltaria, de toda forma a Camila
continuaria com a viz inh a, porq ue o Antô nio o dia todo no
Instituto Médico Legal, a não ser q ue ele aceitasse o período
noturno para cuidar da Camila de manh ã e depois dormir, mas
daí isso seria outra pessoa, não seria jamais o Antô nio, e é
preciso faz er setenta anos para assimilar uma coisa dessas.
Depois do parto, enq uanto eu imergia no cabedal de
ensinamentos acerca de um recém-nascido, o Antô nio se
afundava, talvez literalmente, na várz ea em torneios de futebol
q ue eram cada vez mais amplos a ponto de terem a audácia de
ch amá-los de Festival, passava q uatro ou mais finais de semana
escapulido de casa no Festival com os times de vários bairros,
ele jogando tanto melh or q uanto mais q ueria estar longe das
fraldas e ch oros. Eu sei q ue algumas esposas até levavam as
crianças pra tomar sorvetes vendo o pai jogar ao som de alguma
desfalcada bateria de escolinh a de samba, mas eu não ia ser
essa esposa q ue vê futebol de marido com os braços apinh ados
de filh os e de toda forma ele não convidava.
Nem ficava bem um h omem daq uele no futebol, bigodudo e
comprido, um traq uejo involuntário meio lombricoide nos q uadris.
O pior era aguentá-lo na semana à mesa do jantar, o bebê
finalmente dormindo um pouco, ele entusiasmado com a
arbitragem do próx imo jogo, e talvez um ô nibus fretado para levar
alguma torcida, e q uanto mais ele me dava palavras do léx ico
futebolístico menos faz ia sentido aq uela família q ue talvez ele já
estivesse bastante empenh ado em desagregar.
Então era isso q ue eu tinh a, uma viz inh a desenergiz ada q ue
olh ava a Camila em troca de umas aulas para o neto delinq uente
enq uanto as aulas na escola pú blica q ue inclusive era a melh or
da região sugavam todas as minh as iludidas pretensõ es de
influenciar e elevar criaturas, num desgaste q ue atacava o meu
reflux o e um salário q ue ch egava a me faz er escolh er se eu
compraria papel h igiê nico para mim ou carne para ela, e isso é
um ex emplo aleatório, mas é irô nico porq ue minh a mãe tinh a
sido mais ou menos subgerente de um subsetor de fábrica de
papel h igiê nico e nem para isso ela me valia à q uela altura.
Deve ter sido assim, sem saber se estava rouca de gritar com
alunos ou do reflux o de nervoso por ter gritado tanto com alunos,
q ue eu arranjei um segundo emprego, à tarde, como substituta,
aux iliar e apoio de uma escola particular encantadora, trê s
funçõ es inex istentes na outra, e a Camilinh a passou a ficar ainda
mais tempo na viz inh a, mas era só por mais um aninh o, até q ue
fosse aceita no maternal dessa escola colorida, e a viz inh a
apesar de silenciosa resolveu q ue tinh a de cumprir uma função
na Terra e essa função era faz er a minh a filh a largar a ch upeta,
então sem q ue eu soubesse minh a filh a passava as manh ãs e as
tardes ch orando uma falta carnal inestimável, sem entender por
q ue a privavam de tudo o q ue mais importava na vida e
acumulando um turbilh ão insondável de desgostos.
Enq uanto no turno da tarde eu faz ia uma letra A cursiva
gigante no ch ão do pátio só com itens da brinq uedoteca para as
crianças sentirem o formato da sua primeira letrinh a, minh a filh a
no q uintal da viz inh a enx ugava o ch oro na toalh inh a catingada,
depois encontrava em algum saq uinh o q ue a viz inh a jamais
saberá me ex plicar, silenciada para sempre em ch oq ue, uma bala
q ue entala perfeitamente na sua gargantinh a, as balas q ue
depois protegeram as geraçõ es futuras com furinh os
ergonô micos mas não pouparam a minh a filh a, eu tinh a avisado
tanto q ue não era pra tirar o olh o de cima dela, era para olh ar a
minh a criança enq uanto eu olh ava trinta e seis, nem ao delegado
ela soube o q ue diz er, eu q ueria q ue dessem um tapa na cara
dela para q ue falasse, o pescoço ch icoteando para trás, as
lágrimas num rompante entre as rugas, no entanto o delegado
alisando com a ponta dos dedos o papelz inh o da bala, todo
lastimoso, uma tragédia.
O IT O

Hoje a idosa acumuladora me perguntou se eu vou usar esta


bandeira para alguma coisa ou se posso doar para ela. Não
tenh o uma bandeira e então é isso, h á outras loucuras nesta
mulh er e foi iniciado um diálogo, não tenh o mais saída.
Pior, o gestor mandou me avisar q ue eu preciso faz er minh a
evocação depressa – ainda não sei se ele estava caçoando da
palavra no meu laudo ou se também ach ou o máx imo – porq ue
logo mais será inevitável uma colega de q uarto, já estão q uase
todos aos pares e aos trios e eu com meu q uarto provisório de
princesa, h á limites para q ue uma velh a seja provisória e ainda
mais para q ue seja princesa. E se alguém me vir falando com a
acumuladora podem ach ar q ue temos afinidade, e pronto,
apinh am o colch ão dela ao lado do meu.
No fim o q ue ela q ueria era o meu guardanapo, resq uício da
Copa passada ou retrasada q ue o abrigo desentulh ou de alguma
despensa porq ue acabaram os outros, é a bandeira deste triste
país lamentavelmente desbotada, entrego para ela sem limpar o
feijão dos lábios, e ela guarda depressa no sutiã antes q ue
tomem dela. Digo dentro da minh a cabeça Aurora fiq ue q uieta
não continue o assunto você é provisória neste local uma
princesa provisória continue comendo, mas eu faço uma
pergunta casual, você gosta de bandeiras?
A acumuladora é bem mais nova q ue eu, o drama q ue é já
ex istirem idosos bem mais novos q ue você , ela não deveria
gostar de bandeiras, bandeiras são para crianças e q uando um
adulto continua gostando é porq ue faltou alguma coisa, amor de
mãe, proteína animal.
Uma vantagem de ser criança é poder gostar de bandeira de
país, do seu país, e até ch amá-lo de pátria, eu aliás amava
q uando a mãe me levava nas festividades do Dia da Pátria, as
ruas organiz adíssimas, sem a desordem do carnaval, os espaços
todos bem marcados, a avenida preparada para a Parada Militar,
lá em cima no palanq ue alguma autoridade, um monumento ao
patrono do ex ército, o povo todo separadinh o do desfile, tão
diferente do caos do carnaval q ue agredia aq uela criança
sistemática q ue eu era, a cerimô nia segue imponente com as
tropas nas suas h ierarq uias q ue aos meus olh inh os eq uivaliam à
alegria de uma ala das baianas, porta-bandeiras, isso tudo muito
antes de sermos verdadeiramente ensinados a obedecer ao
ex ército, eles ocupavam a minh a infâ ncia como um pai protetor
q ue eu não tinh a, e era bonito abraçar a bandeira sentindo q ue o
meu país era uma espécie de animalz inh o adorável q ue se pode
acolh er num manto verde az ul e amarelo e celebrar seu
aniversário todo ano, bom menino.
Depois é isto, o país nos ench e de culpas porq ue ou você é
uma h eroína ou você uma h ora larga de vez as aulas no ensino
pú blico.
A acumuladora é bonita para a idade. Bonita para a idade é
outra frase q ue eu gostaria de retroceder, não está mais aq ui
q uem pensou em bonita para a idade e tampouco q uem
continuou o assunto com ela, você gosta de bandeiras? Contudo
ela me surpreende na resposta imponderada: eu gosto de tudo.
A acumuladora é intensa como somente uma mulh er q ue
acumula pode ser, é indescritível a sanh a com q ue se agarra aos
panfletos, guardanapos, notícias q ue coleciona q uem sabe como
um registro do ú ltimo mê s q ue passou, outro dia todos ouvimos o
seu brado retumbante, seguido de um ch oro sincero, os braços
se agarrando aos próprios braços num consolo q ue não vinh a,
enq uanto coletavam do seu q uarto todos os copos descartáveis
q ue reuniu a cada tarde após seu almoço, ela termina o suco em
pó no q uarto e então é impossível desfaz er-se do copo já q ue é
uma mulh er q ue gosta de tudo.
Começo a me lembrar do guardanapo q ue acabei de entregar
a ela e de fato parece adorável, é algo q ue se pode mesmo
adorar, a estampa diluída desde a copa faz parecer um registro
fotográfico da nossa infâ ncia q uando podíamos amar bandeiras
sem parecermos tolas ou perigosas, e cada vez q ue eu olh o para
esta senh ora me parece mais possível viver aq ui para sempre.
N O V E

Foram trê s vez es, eu ach ei q ue era impossível pensar uma coisa
dessas de um filh o q ue ex iste e já se tornou toda a raz ão da sua
vida mas h á uma linh a de abstração a q ue as mães tê m direito e
segue paralela ao amor maternal, sem afetá-lo, e nessa linh a
abstrata foram trê s as vez es em q ue ch eguei a pensar q ue teria
sido melh or ela nunca ter ex istido, são brevíssimos pensamentos
q ue não ch egam a tomar a forma de palavras mas ficam
cravadinh os no peito ou no estô mago, e no geral tê m a ver com o
tamanh o insuportável da dor q ue a gente percebe q ue um filh o é
capaz de provocar com a ameaça do seu perecimento.
A primeira vez teve relação com abaulamento da moleira, a
moleira é uma coisa q ue ex iste para diz er aos pais q ue eles tê m
uma missão e essa missão é garantir q ue aq uela cabeça ainda
aberta permaneça imaculada, é só isso, não deix ar cair, não
golpear. Parece simples mas pode ocupar todos os espaços
vaz ios das ideias de uma mãe, não se pega o bebê minú sculo
sem tatear com os dedos os espaços vagos, suspira-se a
moleira, lamenta-se a lentidão geográfica das suas placas, se eu
fosse de rez ar teria rez ado, não nos deix eis cair sobre a moleira
livrai-nos do mal, perdoai nossas ofensas, ofendido, amém.
Não h ouve nenh um abaulamento, nunca. Mas era a
possibilidade de h avê -lo q ue uma vez no seu ex tremo plantou um
susto de pensamento diz endo q ue era melh or não ter tido aq uela
criança já q ue a minh a vida – aq uela vida q ue eu sempre amei
mil vez es mais do q ue os outros pareciam amar as suas próprias
vidas e de um jeito paralisante a ponto de ter passado tantos
anos bem q uietinh a pra não provocar nenh um general, porq ue a
minh a vida era a coisa mais importante do mundo – tinh a sido
completamente arruinada pela mera h ipótese de abaulamento da
moleira da Camila.
Mas então a cada dia q ue a moleira resistia minh a bebê
aprendia algo novo, um sorriso, uma sílaba, e q ue coisa
impressionante e total e absoluta era isso de se entregar inteira
para faz er outra pessoa q ue na melh or das h ipóteses seria igual
a você q uando ch egasse à maravilh a dos q uarenta anos.
A segunda vez foi q uando aos onz e ela teve uma apendicite
primeiro silenciosa e depois aguda, agudíssima, já com todo o
poder acumulado na fase silenciosa, e apendicite é uma coisa
irritante porq ue todos sabem q ue dói mas q ue pode se passar a
q ualq uer um e então tudo bem, eu estava dando aula e vieram
me ch amar porq ue no outro andar a minh a filh a convulsionava de
dor e inflamaçõ es, depois já no h ospital cada h ora era uma
notícia e a inflamação já tinh a tomado conta de tantos órgãos,
órgãoz inh os o médico diz ia, como se a criança fosse eu, e talvez
fosse, e eu sacudia os ombros do h omem, a tex tura do avental
na minh a mão, era só uma apendicite h omem-do-céu, e ele
simplesmente não diz ia q ue tudo ia ficar bem porq ue ele não
sabia e naq uele momento ele era tudo q ue tính amos e eu me
imaginei saindo daq uele h ospital sem a minh a Camila q ue ontem
mesmo tinh a ficado até tarde faz endo lição de casa ainda q ue
indisposta mas sem q uerer alarmar a mãe porq ue a sua não é
uma mãe q ue se possa alarmar sem graves conseq uê ncias mas
vejam só o q ue é uma grave conseq uê ncia e aprendam q ue o
medo e a precaução estão sempre certos e andam juntos, eu ia
perder a minh a filh a para uma apendicite q ue é uma doença de
merda q ue q ualq uer idiota tem e trata, e a ú nica coisa q ue me
restaria a faz er no auge dos meus q uarenta e poucos anos, a
idade perfeita, era encerrar de imediato a minh a vida e eu pensei
meu Deus se era pra morrer assim aos onz e anos porq ue raz ão
você foi ex istir e esse pensamento veio apenas para me carimbar
a ch umbo q uente e escapar de imediato, dias depois ela ficou
bem, fomos pra casa, as amigas da escola fiz eram uma roda em
volta perguntando coisas q ue ela respondia como um médico,
inflamou todos os órgãoz inh os.
A terceira e definitiva vez foi aos q uatorz e dela, cursava a
mesma série em q ue eu lecionava, mas em outra turma, o
colégio evitava coincidir professores com seus filh os alunos,
algum problema de autoridade, e então h ouve uma grande
viagem q ue congregava diversas disciplinas, os jovens veriam
roch as específicas, basálticas areníticas magmáticas lá sei, e
então veriam usinas, nascentes, cach oeiras, culminando outro
dia num centro h istórico com igrejas de séculos atrás,
provavelmente casas de taipa, esculturas religiosas, construçõ es
barrocas e rococós cujos â ngulos eles estudariam com esq uadro
e compasso, e refeiçõ es não inclusas. Depois ch egariam à praia
para uma ú ltima noite recreativa em q ue alguns iludidos
planejavam perder a virgindade com estilo, pú blico e h umilh ação.
Os professores ch egaram a me perguntar se eu não conseguia
incluir alguma atividade no contex to da língua portuguesa, mas
eu discordava da viagem, o Portuguê s estará como sempre em
toda parte, repliq uei, até pensei em propor escanção dos
câ nticos das igrejas, poetas locais, optei por uma redação, na
volta, relatando a viagem, seria feita ao vivo, sem q ualq uer
consulta, a cada erro perderiam um ponto, para aprenderem a
substituir as ex pressõ es q ue não dominam por outras mais
simples, meus colegas ach aram uma atividade enfadonh a e
desestimulante, mas era sempre assim, por troça começaram a
me ch amar pelo nome de alguma personagem da novela da
época, já não lembro.
E então essa foi a terceira vez q ue por um instante ch eguei a
pensar q ue era melh or Camila nunca ter ex istido, na transição
entre uma cidade e outra, já no começo da noite, os meninos
suados provavelmente brincando de pux ar os sutiãs das meninas
por trás e soltar num estalo dolorido, não sei o q ue a Camila
faz ia, talvez uns fones de ouvido, ou dormia, ou beijava um
daq ueles imundos no fundo do ô nibus porq ue só isso justifica
q ue estivesse praticamente no ú ltimo assento q uando eu sempre
lh e disse q ue o meio é mais seguro, na verdade os assentos 27 e
28 são os mais seguros, estatisticamente, apesar q ue o
precavido não aceita estatísticas, não entra no ô nibus e pronto, a
estrada serpenteava uma montanh a, a ch uva, a noite, a areia,
toda a metade de trás do ô nibus morreu.
Havia uma diferença palpável entre mim e as outras mães,
todas estávamos destruídas e sem a menor possibilidade de
continuarmos a ter alguma coisa parecida com o q ue
ch amávamos de vida, mas elas ao contrário de mim estavam
surpresas, incrédulas, perguntavam ao seu deus como é q ue foi
acontecer uma coisa dessa com sua família, enq uanto eu
afundava na minh a poltrona do Instituto Médico Legal sentindo
q ue me tornava parte do plástico e nunca mais sairia dali, ach ei
isso curioso, era possível q ue as mães não tenh am pensado e
adivinh ado aq uela e tantas outras cenas centenas de vez es? Era
possível q ue não tivessem enterrado o filh o em pensamentos
sofridos em todos os contex tos em q ue saíam de casa ou
tossiam ou comiam frutas com caroço ou peix e com espinh o?
Rosa vai ficar revoltada comigo mas essa é q ue é a verdade,
as estatísticas vão muito contra cerca de q uinz e adolescentes
brancos de classe média morrerem, mas é isso, eu não vivo
estatísticas e são estes os fatos, para o precavido não importa
q ue alguma fração de z ero por cento de jovens morra de
septicemia após um corte no joelh o na q uadra de vô lei, basta q ue
tenh a morrido um. Eu sempre avisei a Rosa q ue era melh or me
deix ar com minh a h istória esq uecida q ue se eu tinh a esq uecido
devia ser por bastante motivo mas ela é assistente social então
ela precisa faz er isso, assistir as pessoas a encontrarem seu
meio social, a viverem dentro de uma sociedade e enq uanto
estou aq ui ela não está faz endo bem o papel dela em me assistir
porq ue este abrigo definitivamente não é a sociedade.
Antô nio, naturalmente, estava no Instituto Médico Legal, h á
anos não ouvia falar nele, ficou com uma cara desfigurada
esfacelada feito espelh asse os corpos e em seguida deu um jeito
de sumir depressa e não foi ao velório, era capaz q ue mesmo
depois de tanto tempo eu ainda amasse aq uele h omem e me
desse conta disso q uando ele surgisse no velório com seu
melh or terno e uma flor, a cara inteira apagada porq ue depois de
toda a covardia para surgir numa ocasião assim é preciso
ausê ncia de q ualq uer traço facial, e eu me jogaria aos pés dele
ch orando tudo q ue estava entalado, agora q ue Camila não
poderia ouvir a minh a dor eu seria inteira drama e ele seguraria
meus cabelos sem ch orar para manter a ausê ncia de
ex pressõ es, um vulto de h omem.
Vieram todos os dez oito colegas de sala q ue não morreram
naq uele ô nibus – a não ser os gravemente feridos – e os dos
outros ô nibus, jovens demais para acreditar na possibilidade da
morte, deix aram faix as feito um protesto contra a tragédia, e eu
concordo, como se pode viver e faz er planos num mundo onde
tudo acaba tanto.
D EZ

Camila ficou sendo minh a melh or amiga desde o momento q ue


olh ou pra trás e perguntou se ench arcado era com ch ou x . Era
antes do ginasial, tính amos nove ou dez anos e eu não sabia por
q ue ela q ueria escrever essa palavra no meio da lição de
matemática, ou no meio de q ualq uer coisa, não usávamos a
palavra ench arcado e ela não me conh ecia, era aluna nova,
como poderia saber q ue eu era a colega certa pra faz er esta
pergunta, fiq uei encantadíssima, passei a viver todos os dias
ansiosa pela próx ima pergunta, temendo em silê ncio q ue fosse
uma palavra q ue eu não soubesse, ou regra, o ponto-e-vírgula
ainda me era obscuríssimo, Senh or, q ue não seja uma pergunta
sobre ponto-e-vírgula, e como estava demorando muito a
próx ima dú vida da menina, cutuq uei suas costas, tão fraco q ue
ela apenas se coçou espantando um tipo de mosq uito, cutuq uei
mais forte e ela ainda passou um tempo faz endo o q ue q uer q ue
fosse, e gentilmente estendeu a mão para trás num gesto de q ue
eu esperasse um instante, pronto, virou-se, eu já não sabia o q ue
diz er, só q ueria q ue ela virasse de novo na mesma curvatura
rápida da primeira demanda, a q uestão do ench arcado, como era
bonita aq uela criança e como deve ser delicioso ser bonita, eu
pensei, devem ser tão diversos os olh ares q ue lh e dirigem, a
forma como empurram uma menina bonita na q uadra do recreio
deve ser diferente, ali estava eu ch eia de conh ecimentos
gramaticais e ela nada me perguntava, então eu disse Ex ceção é
com cedilh a, mas não estávamos escrevendo ex ceção, ela até se
virou de volta para conferir o caderno, não tinh a nenh uma
ex ceção, então me ach ou louca e gostou de mim.
Ench arcado ela tinh a usado numa carta para a mãe em q ue
pedia desculpas por algum detalh e doméstico, ach ei curioso isso,
de precisar pedir desculpas à mãe por alguma besteira, e q uerer
faz ê -lo por escrito, com palavras q ue ainda não se sabe escrever.
Depois eu passaria a vida tentando mandar na Camila a respeito
dessa mãe q ue até no final já anulada de Alz h eimer era capaz de
ex ercer sobre ela um insólito congelamento q ue não combina
com essa mulh er q ue é espontâ nea e fluida.
Deve ser porq ue ela, como eu, também tem q uadros e
imagens ideais de vida e uma delas era o casamento perpétuo e
a outra era a docilidade diante da mãe e esta ú ltima eu realmente
custo a compreender, porq ue um filh o, depois de crescido, o q ue
ele mais sabe é q ue se tudo der certo sua mãe um dia vai morrer,
então esse amor é desde logo moldado por essa falh a de
sincronia, uma relação q ue já nasce sabendo q ue na melh or das
h ipóteses está fadada ao encerramento inevitável, ao passo q ue
as mães, ao contrário, entregam-se à ex pectativa de passarem o
resto de suas vidas sendo a mãe daq uele filh o, e portanto aí sim
tem-se uma relação determinante.
J á os amigos e companh eiros oscilam nesta escala de mortes
e é no mistério dos limites de suas contemporaneidades q ue
reside a mágica das afeiçõ es. Eu amo Camila, a melh or amiga
q ue alguém poderia ter, e não sei se vou enterrá-la. Posso
imaginá-la ch orando demais no meu enterro, ou pode ser q ue
seja eu, por isso podemos nos amar de igual para igual,
nenh uma está predestinada a abandonar a outra décadas mais
cedo, nem a outra claramente agraciada de antemão com
invejável sobrevida.
J á a mãe, não. Não vale a pena q ue Camila tenh a dedicado
todos os seus anos a moldar a personalidade à aprovação da
mãe, e se não moldava gastava energia nas farsas, tudo por uma
mãe q ue não estaria mais com ela durante ao menos toda a
q uarta parte da vida – isso claro se tudo desse certo mas não
são essas as tais probabilidades? – justo no fim, q uando somos
tão nós mesmas, não h averia mais mãe nenh uma a julgá-la,
então não compreendo o esforço. Ench arcado. O q ue poderia
estar ench arcado, mamãe me perdoa não guardei os pratos
estavam ench arcados. Mamãe me perdoa. Mamãe.
Na semana seguinte em q ue ficamos amigas fui jantar na casa
dela, Camila me forçou a ver fotos da sua primeira comunh ão,
linda de branco parecendo uma noiva mirim, o cabelo grosso
preto brilh ando na luz , a língua marota recebendo a h óstia,
q uando a mãe saiu da sala pra buscar a comida do forno Camila
coch ich ou algo pra mim, não acredito em Deus, olh ei de volta
assustada, mas depois ri, ela tinh a a cara seríssima na sua
primeira rebeldia, e eu sacana já manjando as fragilidades, vou
contar pra sua mãe, eu disse, em seguida me arrependi porq ue o
efeito naq uele rosto foi mais grave do q ue pude calcular e por
instantes q uase não ach ei mais a amiga q ue já amava tanto,
ficou travada, endurecida de pavor do seu próprio deus
doméstico q ue era a sua mãe, parecia não conseguir mais
engolir a saliva em espasmos na gargantinh a q ue era tão
estrangulável, e eu pensei pela primeira vez como era fácil matar
alguém, e no susto de corrigir a ameaça emendei um conluio,
também não acredito em Deus, sem q ue aq uilo pra mim tivesse
um q uinto do peso q ue tinh a pra ela, mas ficou sendo nossa
primeira lealdade, se para mim tanto faz ia Deus ou não Deus
porq ue minh a mãe não se importava com a minh a crença, para
ela tripudiar em segredo de toda aq uela liturgia era o mais longe
q ue podia ir no desafiar da mãe.
Então comíamos o lanch e dentro da capela da escola para q ue
o banco de rez ar fosse apenas um banco de sentar, e
contávamos para o boneco de J esus muitas fofocas da turma,
para q ue ele ficasse menor, ficasse um amigo, e do tanto q ue
vivemos ali sob a luz colorida do sol nos vitrais e no eco dos
nossos sapatinh os no mármore e das nossas voz es amigadas
com Cristo acabamos gostando cada vez mais da nossa própria
ideia de Deus, até q ue um dia ela q uis rez ar, como uma rebeldia
contra nossa rebeldia, ensaiamos o gesto, rimos tímidas, daí
endireitamos o olh ar para a Santa, tão benevolente, a Santa q ue
era a mãe do nosso amigo J esus e q ue portanto também podia
ser a nossa mãe, desprovida de todas as ordens domésticas,
inteira compaix ão e colo, Santa Maria mãe de Deus rogai por nós
os pecadores, ela rez ou devagar e me olh ou para q ue
completasse, um jogral, Agora é a h ora de nossa morte amém.
Camila riu e me corrigiu, Agora E na h ora de nossa morte amém,
eu não acreditei, desafiei, a risada dela ecoou no teto celestial e
um pouco de lanch e escapou da boq uinh a.
Muito antes disso, q uando minh a mãe à s vez es não tinh a mais
aonde me levar me levava à procissão. No meio do tumulto das
cançõ es e rez as eu ouvia Agora é a h ora de nossa morte amém,
o pavor q ue me dava aq uilo, J esus sangrando pendendo numa
cruz sobre os ombros de umas velh as frágeis vestidas de preto,
Agora é a h ora de nossa morte amém, enq uanto passávamos as
casas abriam as janelas para ver a nossa morte, punh am vasos
com flores e toalh inh as rendadas, se algum de nós pedia água
vinh am logo traz er um copo ch eio, estávamos sagrados e agora
era a h ora de nossa morte.
Camila me consolou com a rez a correta, essas divindades em
q ue combinamos não acreditar estariam conosco agora e na h ora
de nossa morte, Camila ficou tão confortável com essa nova
mãe, a Nossa Senh ora, e eu mesmo assim ainda não
propriamente consolada, Agora e na h ora de nossa morte,
q uando seria essa morte, será q ue eu me lembraria de Santa
Maria mãe de Deus q uando fosse morrer, e será q ue não
estávamos morrendo ali mesmo a cada instante, tão frágeis.
Hoje eu não q uis tomar sol no pátio nem ouvir nenh um desses
idosos do abrigo, eles são idosos porq ue são sábios, ch eios de
noçõ es e um pouco das loucuras de setenta anos de rua, eu não,
sou velh a, é outra coisa, ando muito bem soz inh a, a postura boa,
desde q ue me aposentei não tenh o nem mesmo reflux o, se não
fosse olh ar para as minh as mãos ou para o espelh o diria q ue
tenh o q uarenta anos, e tenh o vergonh a de conversar com os
idosos daq ui porq ue eles sabem tudo e eu não sei nada, não é
só q ue sabem da própria vida, é q ue a própria vida deles já foi
saber demais, um deles, sem nenh um dente, gosta de contar aos
outros q ue teve vinte e oito cach orros, dois de cada vez , todos
morreram, cuidava muito bem, mas eles não duram, e ele fala o
nome de cada um deles e vai mareando o olh o, é uma coisa
bonita de ver, cada dupla de cach orros é uma fase da sua vida,
um bairro por onde perambulava com seu carrinh o imenso de
sucata e papelõ es, isso tudo ele fala para os outros porq ue eu
evito q ue falem comigo, ach am q ue sou totalmente louca e tudo
bem, muda, até porq ue se eu falasse muito tudo q ue já destoa
em mim ia destacar mais ainda nas frases completas com sujeito
predicado os verbos nos seus lugares os pronomes concordando
nominalmente, já q uase cultivo um encanto por essa nova língua
daq ui, as frases espicaçadas ou então afetadíssimas numa
eloq uê ncia forjada em verbetes, provérbios, salmos, começo
mesmo a amar este lugar, não fosse a comida e os poucos
funcionários, toda h ora é um idoso q ue tomba da cadeira, discute
por causa do jornal, discordam do jornal, discordam do outro q ue
discorda do jornal, ou falam de netos q ue sumiram no mundo
sem pagar nem mesmo o aluguel pra eles, e q uando x ingam
demais os netos os q ue não sabem nada de netos diz em Ave
Maria Senh or J esus Cristo e maldiz em os q ue x ingam desse jeito
a família porq ue cada um sabe a cruz q ue carrega e os netos
podem estar até mesmo presos ou mortos.
Gosto q uando a Rosa repete q ue já acionou a rede para tentar
me ajudar, adora falar q ue acionou a rede, toda uma eq uipe
socioassistencial deficitária e estafada. Uma rede imensa
colorida toda trançada pendurada nas duas pontas da minh a vida
e eu deito no meio balançando de um lado para o outro, de um
lado eu tive uma filh a, a Camila, do outro lado claramente não
tive filh a nenh uma, melh or era ficar deitada q uieta na rede sem
balanço nenh um, com o Antô nio q uem sabe, e ele beijaria a
minh a nuca e me faria carinh o no cabelo q ue nem q uando
casamos e ele româ ntico diz ia q ue tinh a muita sorte, agora
teríamos outro ch eiro, não o ch eiro de água sanitária, urina e
ferro deste lugar q ue mais parece alguma adaptação de
delegacia antiga, mas o ch eiro de velh os domésticos, q ue abrem
pouco a janela e grudaram muito o olh ar um no outro até ficarem
com odor de guardados.
Ela, a Rosa, organiz ou um caderno para anotar os meus
resumos e marcar a freq uê ncia das minh as memórias, porq ue
senão eu fico teimosa, ach ando q ue encontrei a minh a verdade,
q uando oito vez es no mesmo mê s acordei diz endo outra coisa e
outro nome, e então ela consegue circular o q ue é estável,
minh as ilh as de memória, a infâ ncia com a amiga Camila, o
casamento com Antô nio, as aulas de Portuguê s, isso sim é um
verdadeiro caderno de memórias, mas eu fico me perguntando,
fora a necessidade da rede socioassistencial em me assistir na
busca pela minh a casa, q ual a importâ ncia de assinalar meu
caderno de memórias, se memórias são ex atamente lembranças
e se as coisas me vê m como lembranças q ue sentido tem
circular as reais, q ue valor tê m esses fatos se não a sensação
q ue tenh o de serem a minh a h istória.
Rosa vai aparecer mais tarde, ou vai ser amanh ã, com o
caderno todo circulado, q uerendo indeferir as memórias q ue
surgiram uma vez só, inválidas, incipientes, está ach ando q ue é
médica, o peq ueno poder q ue as pessoas tê m, no fim me calh a
mesmo a Rosa q ue gosta de fingir q ue me odeia e me tratar
como criança teimosa, mas é um amor de mulh er de q uarenta
anos no auge da vida, um sorriso bom uma risada brusca num
golpe de cabeça pra trás, a cabeleira frondosa, um balanceio no
tronco, fica ajeitando a alça do sutiã q ue tomba dos ombros, eu
poderia amar a Rosa, mas não sinto grande coisa, esq ueci isso
também, como amar novas pessoas.
A Camilinh a tão graciosa comendo na capela da escola sem
acreditar em nenh um deus e depois rez ando muito para aq uela
Santa q ue era tão mãe e mais benevolente q ue a sua, eu poderia
voltar nessa imagem e morar nela, essa criança encantada q ue
era a minh a nova amiga Camila, ao mesmo tempo desafetada,
audaciosa e espavorida, mas não adianta voltar a nenh uma
dessas imagens, não tenh o ninguém para rez ar comigo ao deus
e à santa em q ue não acredito, bendita sois vós entre as
mulh eres, q ue sensação completa era rez ar naq uele escuro sob
os feix es do vitral sem acreditar em nada e enq uanto se
recitavam os versos decorados, Agora e na h ora de nossa morte
amém, ir sentindo um turbilh ãoz inh o no ventre, uma espiadela
pelas costas, presença transcendental e mágica, uma criança
olh a para a outra, tremendamente céticas, mas agora sublimes,
no meio da cumplicidade do ritual, dois sorrisos apertados de
peraltice e medo de q ue algo parecido com um deus pudesse de
fato ex istir ali, Ele está no meio de nós.
O N Z E

Uma pessoa q ue se lembra da morte o tempo todo não pode lidar


com burocracia. Toda vez q ue me dava conta de q ue estava
numa fila para carimbar alguma coisa q ue depois seria levada a
outro balcão, e mais outro, com uma pasta de papéis, para a
carteira de motorista, o documento do fusca do Antô nio – o fusca
já foi circulado várias vez es no caderno de memórias, então
Rosa fica muito contente porq ue o fusca é real e é
importantíssimo q ue tenh amos tido realmente esse fusca
décadas atrás –, a averbação da certidão de nascimento com a
certidão de casamento, a fila no banco para gerar nova senh a do
caix a eletrô nico porq ue a outra senh a eu h avia errado trê s vez es,
tudo isso é incompatível com um ser h umano dotado de finitude e
constante consciê ncia de sua efemeridade. Houve vez es em q ue
a fila tinh a demorado demais e eu tentava aproveitar aq uele
tempo lendo um livro mas não conseguia porq ue tinh a de ficar
dando curtos passos e ouvindo pessoas q ue conversam em filas
mesmo sem q ualq uer conh ecimento umas sobre as outras, e
q uando enfim era minh a vez faltava um documento a ser obtido
em outra fila, e nisso eu começava a ch orar, o mundo
sucumbindo sobre meus ombros, o atendente q ue sempre sente
muito mas não pode faz er nada, e se me perguntassem se
estava tudo bem eu diria q ue não, se ele se dá conta de q ue
vamos todos morrer, e acabamos de perder duas h oras,
perdemos duas h oras como se não fô ssemos morrer, mas
vamos.
E então eu imaginava a pessoa q ue enfrentou algum desses
desvios de tempo e enfim obteve o q ue precisava e então morreu
no dia seguinte e como foi q ue ela passou o ú ltimo dia? Nas filas
para um documento q ue não precisa mais. A solução, se não
cabe a imortalidade, é q ue ninguém precise de documento
nenh um, nunca mais.
Falando em burocracia, não sei se já mencionei isso antes e é
curioso q ue não tenh a, a Rosa vai conferir no caderninh o e
circular ou indeferir esta memória, mas é evidente e irrefutável:
Antô nio tinh a a profissão mais proibitiva das profissõ es de um
marido meu, funcionário do necrotério, mais precisamente
técnico em necropsia, na primeira vez ele me disse apenas
funcionário pú blico, na verdade servidor pú blico, eu na época
dava aulas no ensino pú blico então também podia me apresentar
servidora pú blica e fiq uei contente com a h armonia e estabilidade
daq uela promissora união q ue se aventava em flertes e h olerites.
Demorei a saber, porq ue não é natural a pessoa no restaurante
medindo a abertura ideal do entredentes para q ue caiba apenas
uma peq uena garfada elegante, o guardanapo no colo, o
espumante barato e doce, sou técnico em necropsia, não, não,
não, ele sabia q ue era preciso me preparar, numa tarde começou
a ex plicar como tinh a sido desvendado um assassinato passional
da época, usou a palavra decú bito, gostei de um h omem q ue
usava a palavra decú bito, mas depois a ex plicação começou a
agregar outras como rigidez , h ipóstase, prolapso e eu interrompi,
você q uer me contar alguma coisa Antô nio, e ele româ ntico com
seu paletoz inh o de mangas mais curtas q ue o braço dado comigo
na praça, o silê ncio dominical, só nossos sapatinh os nos
paralelepípedos, ficou lívido talvez q uase como um cadáver, o
rosto voltado para baix o, o olh inh o molh ado ardido de tanto ver a
cara da morte, sou técnico em necropsia Aurora.
Eu não disse nada e passei a tarde pensando, depois me casei
e pronto, talvez nós fô ssemos dois opostos da mesma obsessão,
eu não compreendendo como pode ser aceitável morrermos e
ele faz endo o possível para escarafunch ar e apreender cada
meandro dessa morte insuportável, depois q uando me disse q ue
não q ueria filh os aí sim eu gritei e h umilh ei q ue era porq ue ele
tinh a as mãos e a alma inteira apodrecidas das mortes da cidade
toda e já não era capaz de acolh er nascimentos, a mente inteira
voltada ao talh o e retalh o dos corpos acabados e incapaz de
encampar começos.
E de tanto escâ ndalo q ue eu faz ia, a viz inh ança ouvindo,
Aurora-do-céu, brados de q ue ali jaz ia um h omem q ue só gosta
de desfaz er corpos, jamais criá-los, um h omem apegado a larvas
da fauna cadavérica, como consta num dos seus absurdos livros
técnicos, passei a apelidá-lo Coveiro, e ele tentando ser discreto,
mais um dos motivos da minh a culpada passividade naq ueles
tempos, a ditadura escamoteando seus corpos diretamente na
mesa do meu marido q ue pelo menos não era o médico canalh a
ou apavorado ou ambos q ue ao final constaria Marcas de
Suicídio onde h avia um ch oq ue uma bala um afogamento,
Antô nio no começo uma sobra um restolh o de pessoa q ue
voltava do trabalh o ch eirando a formol e q uerendo festas com
muita cerveja e cach aça esperando q ue nenh um outro ser
h umano fosse posto no mundo menos ainda um filh o dele num
país desses e eu ach ando tudo muito dolorido e poético porém
minh a ú nica vida despejada naq uele balde de depressõ es e
niilismos como se eu fosse ter outra vida para minh as realiz açõ es
e ex periê ncias e então enfim sob as bê nçãos de uma década
melh or e ch eia de franjas cach eadíssimas, ainda o nosso fusca
colorido – circular a palavra FUSCA –, engravidei.
Rosa vai procurar a lista de funcionários aposentados do
Instituto Médico Legal até ach ar Antô nio, esq uecendo ela própria
q ue ele me abandonou h á pelo menos trinta ou trinta e cinco
anos ou até q uarenta anos e está provavelmente morto, não
suportou a alegria e as dores de uma criança na mortalh a dos
nossos dias q uietos e noites saudosas de festas q ue ele mesmo
não entendia q ue já deix avam de acontecer porq ue os amigos
também ch eios de filh os e ele ali preso no fabrico impossível de
uma juventude forjada enq uanto ainda me amava e procurava
em mim uma mulh er q ue nunca ex istiu, destemida e livre das
verdades da morte q ue ele dominava tão bem com seus
instrumentos e macas geladas, foi embora.
Camila não tinh a nem q uatro anos q uando ele sumiu, voltei da
escola e abri o portão, falávamos eu e ela sobre ovos de Páscoa,
ela diz endo ex atamente cada detalh e do q ue q ueria dentro do
ovo dela, q ue variava de leite condensado a uma boneca de
cabelo az ul, Perdoai e Ofendido, q ue eram os cach orros, este
ú ltimo ficou sendo apenas Dido, vieram nos festejar mas não
com a intensidade de q uando sabem q ue estamos enfim todos
em casa, a matilh a inteira reunida, família feliz , é só isso q ue
q uerem os cães, então abri a porta da sala e já senti o ch eiro de
vaz io dos armários q ue estavam abertos no q uarto sem nada
dentro, Camila perguntava ainda as suas perguntinh as, h ein mãe
pode ter leite condensado, e eu desconcertada, sim claro meu
amor você vai receber todo o leite condensado do mundo até
entender q ue sim o seu pai te amava, um tipo diferente de amor,
q ue é aq uele em q ue a pessoa não consegue suportar sua
ex istê ncia.
Não tem por q ue encontrar essa casa onde já não me resta
nada, talvez apenas o jabuti q ue peguei pra ficar sendo velh o
junto comigo, se é q ue não morreu a essa altura, a Camila aos
onz e anos morreu após uma cambalh ota ou pirueta entre as
duas camas de solteiro do seu q uarto, ela tinh a duas camas
porq ue à s vez es vinh am dormir amiguinh as para aplacar a nossa
solidão, deve ter juntado as duas para amparar a acrobacia,
encontrei-a de ponta cabeça o pescoço torcido sobre o ch ão e as
pernas na pose estilosa do salto, eu tinh a alarmado tantas vez es,
Cuidado sempre com o pescoço! , aconteceu h á pouco tempo de
novo com uma garota em J undiaí, q uando se supera a q uestão
da moleira começa imediatamente a do pescoço e a mania das
crianças de se imporem desafios ex óticos, como não pude crer
q ue aq uilo fosse a morte retirei depressa a minh a filh a daq uela
tumba em q ue se metera e então foi evidente a dobradura
impossível do corpo e foi Antô nio q uase afô nico no Instituto
Médico Legal q uem me ex plicou a etiq ueta constando Morte
Suspeita, falou q ue era o protocolo não tinh a suspeita nenh uma
como é q ue poderia h aver, ele q ue não via a filh a h á q uase uma
década e apesar disso e do ch eiro de produtos para dirimir os
aromas da morte era um h omem com um coração imenso e era
capaz q ue eu ainda o amasse e como ele não poderia receber
catalogar e abrir o corpo da filh a ficou comigo do lado de fora
com seu ch eiro de produtos e suas mãos mórbidas amparando a
minh a insistente q ueda de joelh os no ch ão pontudo da calçada e
tornou a sumir sem q ue eu me desse conta, não faz sentido
voltar para aq uela casa onde só h á, se tanto, o jabuti.
É capaz q ue eu desvairada de tudo fiz alguma coisa muito ruim
e esta é a ú ltima oportunidade para um recomeço. Não vou falar
à Rosa sobre o trabalh o do Antô nio no Instituto Médico Legal q ue
é capaz q ue ela acione a rede e recupere em alguns dias o meu
nome numa certidão de casamento e o meu endereço esvaz iado
de sentido e lembranças e sobretudo pessoas.
D O Z E

Pouco depois dos nossos casamentos Camila e eu tính amos o


costume cafona de irmos a reuniõ es sociais de nossos maridos,
e levávamos uma à outra feito um mascote, para termos com
q uem conversar afinal éramos terrivelmente intolerantes e
antissociais e não suportávamos a conversa peq uena das
mulh eres dos outros, dependendo dos círculos, claro, mas
q uando se tratava de colegas de trabalh o tudo ficava ainda mais
superficial porq ue colega de trabalh o tem essa peculiaridade do
ex tremo convívio com nenh uma real afinidade, então fomos a um
desses concílios com o marido dela q ue era um rapaz pouco
espirituoso, repetitivo e carente, ch egamos na casa das pessoas
de q ue não decoramos previamente os nomes, a minh a presença
era sempre inex plicável no entanto eu sorria com naturalidade e
mostrava as cervejas porq ue uma pessoa q ue mostra cervejas
logo na entrada é sempre mais acolh ida.
Não suportamos a conversa peq uena dos outros, mas para a
nossa temos todo o riso e dedicação, ela uma h ora muito fina
segurando sua taça de vinh o alternando discreta com a
cach acinh a de bolsa, você não sabe, Aurora, o sabonete deles é
de uma marca sofisticadíssima, você tem ideia de q uanto custa,
e eu não tinh a ideia, era o eq uivalente h oje a uns duz entos reais,
um peq ueno recipiente de sabonete líq uido q ue recendia à s
melh ores e mais estupendas flores de todos os campos, ela
continuava incrédula, será q ue esse é o sabonete padrão deles,
todo dia ele está ali na pia para livre uso cotidiano, não é possível
uma coisa dessas, só eu devo ter usado trinta ou q uarenta reais,
lavei até os cotovelos, sente aq ui.
Fomos ao banh eiro e ch eiramos um pouco o sabão, sem
gastar, direto no pote. Era uma pérola da perfumaria. Fiq uei
pensando q ue engraçado se fosse um encontro dos colegas de
trabalh o do Antô nio, o ch eiro a formol permanente nas peles, e
aq uele sabonete num rompante de aromas na ironia florida de
verbena, lavanda e bergamotas.
Q uando fomos as duas pela primeira vez a um desses
encontrinh os do Antô nio com o pessoal do Instituto Médico Legal
esperávamos uma conversa naturaliz ada de cadáveres, os
h omens competindo o maior estado de putrefação q ue já
encararam, um desfile de palavras, decú bitos larvas nitrogê nio.
Não. Falavam de futebol – mesmo a ú nica colega mulh er,
mostrava-se ou estava mesmo interessadíssima nos ú ltimos
pê naltis, o q ue nós duas injustas julgamos afetação –, Argentina,
cerveja, no máx imo ch egavam ao pum do médico legista, q ue
ach ava q ue ninguém mais ali discernia a naturez a dos odores.
Esse era de fato o máx imo q ue podiam ir nos tópicos de trabalh o
porq ue era a década de setenta e q ualq uer assunto ch egaria ao
ú ltimo corpo seviciado e todo enrijecido de sofrimentos em q ue o
médico também ele talvez sofrido fez constar um infarto apenas.
De volta à varanda, a Camila no terceiro cigarro da noite, um
ex cesso q ue eu ach ava q ue ia matá-la antes dos setenta e não
matou, já mais alta dos vinh os e cach acinh as, os olh os
rasgadinh os da felicidade simples q ue ela tinh a de estar comigo,
a franja pretíssima balançando em cima das sobrancelh as
grossonas q ue ondulavam mais ex pressivas conforme a bebida,
ela continuava a investigação, ao mesmo tempo esse pessoal
não parece o tipo de gente q ue guarda um sabonete específico
para visitas, e deix a outro para o dia a dia… Também não h á o
menor risco de não saberem o preço daq uilo, terem ganh ado de
presente e simplesmente deix ado ali, não, tudo nesta casa é
calculadíssimo, esse sabonete é muito intrigante.
A essa menina sim q ue era bom a Rosa encontrar pra mim,
essa moça, a Camila de 1974 belíssima no inverno em cima das
botas despropositadas com franjas nas canelas, uma impudicícia,
eu ach ava graça sem de fato reprovar porq ue ela ficava mesmo
atraente, olh ava-se para ela segurando a cach aça e de imediato
se podia transportá-la na mente para cima de um cavalo, as
ancas suavemente arq ueadas sobre a sela, os cach os da franja
balançando no galope, e tudo bem.
Mas essa menina, ela a Rosa não pode ach ar, vai encontrar no
máx imo uma velh a ex aurida, ensimesmada nos caprich os de um
lar com mais ch eiro de guardado q ue os velh os daq ui q ue na
verdade nunca foram de fato guardados, pobrez inh os, o ar q ue
entra por todas as frestas das janelas de esq uadrias de alumínio,
e com grades de ferro como se fô ssemos tombar debruçados
sobre parapeitos térreos, e tombaríamos.
Naq uela noite do sabonete elegante, a Camila agora no q uinto
cigarro na varanda, nós duas num canto, absolutamente bem-
sucedidas na tarefa de nos mantermos apenas entre nós, como
as duas crianças q ue ainda éramos, feito nos recreios dentro da
capela, agora é a h ora de nossa morte amém, foi ali q ue eu
disse, Camila, o Antô nio, ele não q uer ter filh os, ela me olh ou
muito grave, medindo depressa por trás do olh o o próprio futuro,
depois riu, babando um pouco a bebida, daí me disse q ue ia ser
melh or assim.
É aí q ue me perco. Talvez , não sei, ela tenh a me dito uma
outra coisa, esticando a mão para q ue eu ch eirasse mais uma
vez o sabonete, agora contaminadíssimo de tabaco, o q ue
tornava o ch eiro mais especial, todo apropriado das fragrâ ncias
dela, talvez tenh a dito uma coisa mais ardilosa e espontâ nea,
como ela costumava ser em todos os assuntos q ue não a própria
mãe, a fumaça saindo antes da boca, dramaticidade, é só parar a
pílula e pronto, Aurora.
T R EZ E

Minh a filh a tinh a q uatro anos e diz ia q ue os nossos cach orros


tinh am ch eiro de almofada. Eu ria e duvidava, mandava ch eirar
de novo as almofadas e depois fungar os cach orros, e ela
concluía, científica, q ue claramente os cach orros tinh am ch eiro
de almofada, sem permitir a noção de q ue talvez nossas
almofadas q ue fossem permanentemente impregnadas deles. Ela
gostava de diz er q ue o Perdoai e o Ofendido eram
aconch egantes, adorava essa palavra, talvez porq ue ch eirassem
a almofadas e fossem macios, embora Perdoai mais parecesse
uma maçaroca de lãs encardidas desenganch adas de um tear à
força, de modo q ue algumas pontas desfiadas sobressaíam nas
bordas, todas as bordas, porq ue difícil adivinh ar q ual era a
cabeça e q ual o rabo.
Meses depois de o Antô nio nos abandonar, o Ofendido comeu
algum veneno q ue jogaram no q uintal, ou terá sido no passeio, e
morreu no meio do próprio vô mito, os olh os saltados de pavor e
incredulidade, não tem tamanh o a maldade h umana, deve ter
pensado isso antes de terminar de sofrer, ach ei o corpinh o só na
manh ã seguinte já em rigidez cadavérica, diriam os livros q ue
Antô nio fez q uestão de largar na casa, e limpei depressa os
traços todos daq uela noite terrível q ue ele tinh a enfrentado
soz inh o sem nenh um deus porq ue nem o alívio da fé os animais
podem ter se q uiserem, ao lado apenas do Perdoai q ue perdoa
toda a maldade h umana e é incapaz de um latido pra me acordar
e avisar q ue o amigo está morrendo, talvez porq ue não saiba de
morte.
Fiz uma cova no q uintal, bem perto das rosas, e como ataú de
me vali de um saco de sisal onde vinh am as batatas da feira,
pensei se acordava Camila para o funeral, mas não q uis q ue ela
visse o corpinh o h irto e entendesse q ue era isso a morte, e já se
pusesse a imaginar os destinos da carcaça sob a terra,
desintegraçõ es, formaçõ es putrefativas, então q uando ela
desceu do seu q uarto festejada pelo outro animal q ue também
ainda não entendia a morte mesmo tendo acompanh ado a
agonia e o enterro, ela estranh ou as batatas espalh adas pelo
ch ão da coz inh a, perguntou sobre Dido, com a sua voz inh a
arranh ada de sono, os cabelos para cima, o pez inh o sempre
descalço contra a minh a vontade, e eu disse q ue o Ofendido
morreu.
Camila sabia q ue morrer era a pior coisa q ue poderia
acontecer e q ue era algo a ser evitado, e por isso ela devia andar
na calçada sem soltar a minh a mão, ficar longe de piscinas e do
mar, não colocar objetos na boca, mas não sabia ex atamente
q ue coisa era essa, morrer. E q uando ele volta? Não volta, meu
amor, já não temos nosso amiguinh o.
Em todos os dias q ue seguiram, Camila se dedicou a forjar
naturalidade, as coisas tinh am de continuar iguais, duas tigelas
de comida no ch ão, duas caminh as, o Perdoai carentíssimo
demandando muito mais atenção, q uase se tornando um
cach orro em dobro. Acordou então de bom h umor e sentiu o sol
no jardim, os dedinh os na grama, Bom dia, Perdoai! E de
imediato se corrigiu, penitente, Bom dia, Perdoai e Dido!
Então talvez morrer fosse isso, não estar mais, deix ar as
coisas correndo sem estar presente em nada, e isso era
imensamente pior q ue não ex istir. Para a minh a filh a, morto ficou
sendo aq uele q ue não consegue participar, uma coisa q ue dói o
tempo todo, principalmente q uando você dá bom-dia apenas aos
vivos.
O ch eiro de almofada ficou, porq ue Perdoai dava conta de
mantê -lo. Dava conta de tudo com seu espalh afato incansável
por toda a casa e nas ruas, uma companh ia q ue pensava q ue
alguém vivo era isso, uma coisa q ue precisa ser lembrada e
tocada o tempo todo, senão pode se tornar como o Ofendido,
terrivelmente ausente.
Tão amalgamados nós trê s q ue era capaz q ue os dois
ach assem q ue só ex istíamos nós no mundo, e alguns pedestres
figurantes da nossa h istória. Eu tão afastada de q ualq uer amiga,
tão mergulh ada na minh a condição maternal, dedicadas todas as
h oras à manutenção daq uela criança como um ser totalmente
vivo. Sentadinh a comendo o cereal me perguntou olh ando a
estante q uem é q ue faz ia os livros, eu disse q ue eram as
melh ores pessoas, e q uem escolh e essas pessoas? , ela q ueria
q ue eu respondesse Deus, parece q ue as crianças nascem
sedentas pelas maiores fantasias, eu disse q ue eram os dedos,
q ue dedos? Das pessoas, de repente começam a escrever, tão
rápido q ue não dá tempo de a pessoa nem pensar antes, a
pessoa mesmo vai lendo e fica surpresa, e entrega depois para
outros dedos q ue folh eiam tudo, primorosos, e montam, pronto,
assim é feito um livro.
Ela tinh a a colh er pousada na tigela e olh ava os dedinh os, será
q ue aq ueles dedos iam aprender a escrever, mas mãe e se a
pessoa não tiver as mãos mas for uma melh or pessoa? Daí os
dedos estão por dentro, filh a, vão escrever de outro jeito. Ela
sorriu, feliz q ue eu era a fonte de q ualq uer resposta para
q ualq uer pergunta, eu era totalmente absoluta, fundamental e
suficiente, mas só enq uanto ela não soubesse q ue a ex pectativa
de todos, o melh or q ue nos poderia acontecer, era q ue ela me
enterrasse um dia, e seguisse vivendo sua vida sem mim, e q ue
portanto absoluta era apenas ela, minú scula afogando os cereais
no iogurte, enq uanto eu olh ava aq uela perfeição pensando
sempre Camila-do-céu, h á tantas formas de perder você , como é
desafiadora a manutenção da vida.
E como são insuficientes os anos q ue nos dão como futuro, h á
um h omem neste abrigo q ue tem cento e noventa e trê s anos,
adora mostrar a certidão, algum erro nos confins dos cartórios
dos idos de 1930 q ue trocou o nove pelo oito, e brinca q ue ainda
viveria mais cem, fala isso rindo, a certidão de nascimento
murch a esfacelando no ar, ainda viveria mais cem! , daí vai
baix ando o olh ar até as pernas mortuosas q ue são q uase mesmo
uma ossada do século dez enove, e ele inteiro se recolh e sob a
mortalh a q ue é o cobertor q ue leva sempre nos ombros, cem
anos mais e não bastariam.
Agora a minh a Camila já não precisava tanto da viz inh a triste
cujo neto continuava precisando muitíssimo de aulas particulares
cada vez mais elaboradas, minh a filh a agora mais velh a tinh a a
bê nção de ir comigo para o meu serviço, a escola particular
bastante integral, eu tinh a me tornado uma dessas pessoas q ue
abandonaram totalmente o ensino pú blico mas não consegue
falar abertamente sobre isso porq ue o país é assim, este
repositório de culpas.
De toda forma h avia também os domingos. Eu poderia morar
para sempre naq ueles domingos com a minh a filh a aos q uatro,
cinco, seis anos, massinh as coloridas feitas de farinh a e
beterraba, ou mesmo à s sex tas na volta da escola assávamos
pães de q ueijo em formatos alternativos, ela faz ia minh ocas,
aranh as, ficava deslumbrada com tudo q ue eu mostrava, q ue
delícia é sermos provisoriamente fonte de fascínio puro, q ue
perfeito era o ch eiro daq uela criança e a ergonomia dos
bracinh os apoiados nos meus ombros q uando eu ainda arriscava
um colo noturno para subir as escadas depois do leite, o som dos
meus pés cuidadosos estalando a madeira dos degraus, ela
pedia q ue eu ficasse até q ue ela dormisse e alguma coisa dentro
do meu coração vibrava descompassado num galope de amor
q ue não cabia no ritmo das válvulas e ventrículos.
Minh a filh a tinh a passado os primeiros anos mal vigiada na
casa da viz inh a silenciosa e triste e então ela era uma
sobrevivente, se alguma vez ex istiu um respirar aliviado em mim
foi após essa sobrevivê ncia, e um respirar aliviado é sempre um
vacilo.
A roupa faz ia barulh o na máq uina, ao mesmo tempo a panela
de pressão assoprava o seu apito constante com ch eiro de feijão
e alh o, pairava esse silê ncio de coz inh a, o Perdoai latia lá longe
no portão para q ualq uer outro cach orro, a casa estava imersa
nos ruídos de casa, Camila e a melh or amiga brincavam no
q uarto lá em cima, era domingo, ouvi um estrondo a q ue se
seguiu uma q uietude mórbida, escalei de dois em dois degraus,
as duas estavam sentadas no ch ão aflitíssimas sob o meu olh ar,
Camila se adiantou e mostrou o cotovelo sem conseguir diz er
nada, tremia, o olh o esvaz iado e afogando lento nas lagriminh as
contidas, tinh a batido o cotovelo no armário, o armário
ligeiramente afundado na parte debaix o, gritei q ue parassem
imediatamente com as brincadeiras de mão, testei o bracinh o
q ue ia e vinh a sem ranger, o cotovelo em ordem, nenh uma
imobilidade, deix ei gelo, voltei à s roupas, concluí o feijão,
comemos.
A menina foi embora, era sempre um drama na h ora da
despedida, como se fosse a ú ltima vez , imploravam mais dez ,
q uinz e minutos, mas nessa noite a minh a filh a logo se deitou,
nem deu trabalh o, dormiu de imediato. De manh ã atrasou para a
escola.
À tarde vomitou, em seguida desmaiou. No h ospital enq uanto
eu esperava notícias do médico liguei para amiguinh a, o telefone
preso à parede do corredor gelando a minh a orelh a, a voz vinh a
fraca e longínq ua e também por isso eu respondia gritando, não,
não q uero falar com a sua mãe, q uero falar com você , estou no
h ospital, você vai se arrepender pelo resto da vida se continuar
mentindo, eu preciso da verdade agora, foi a cabeça não foi? Ela
bateu a cabeça no armário.
Começou a gaguejar, mais preocupada em informar q uem
tinh a decidido mentir, brincavam de guerra de travesseiros e a
minh a filh a tombou de cima da cama até o ch ão, a cabeça no
armário, foi a Camila q ue resolveu mentir, ficou com medo, fez
um sinal com a boca pedindo silê ncio enq uanto eu vencia
estrondosa a escada portando toda a minh a insustentável arca
de pavores.
Desliguei o telefone e informei ao médico, não deu tempo nem
mesmo para a tomografia. Na certidão de óbito constou
Concussão. Morte Violenta.
No Instituto Médico Legal Antô nio me ex plicou q ue é normal, é
violenta uma morte por pancada na cabeça, como se não fossem
violentas todas as mortes, a polícia escutou a garotinh a q ue não
parava de ch orar e q ue deve até h oje falar desta tarde em q ue
jogava travesseiros e comia feijão e sua melh or amiga morreu
por temor à própria mãe.
Voltei para casa sem a minh a vida, o cach orro me festejou
ainda desentendido dos assuntos da morte, Bom dia, Perdoai.
Bom dia, Camila.
Q U A T O R Z E

Q uando éramos moças e o Antô nio tinh a o fusca, minh a amiga


Camila vinh a dormir lá em casa comigo num ritual de juventude,
como se fô ssemos meninas sem h orário para acabar a
brincadeira, mas a diferença é q ue ela tinh a sono cedo, então
dormíamos de toda forma com muita responsabilidade antes da
meia-noite, Antô nio soz inh o no q uarto, nós no sofá-cama da sala
junto com o Perdoai – q ue era o meu cach orro na época –,
Camila mantinh a outros h ábitos q ue as pessoas diriam de idosa,
além de dormir cedo, tinh a implicado de aprender tricô , faz ia e
desfaz ia o mesmo cach ecol, ficava ridículo uma mulh er de trinta
anos, tão bonita e ch eia de calças e cabelos sentada embaix o de
um tricô , vai ver q ueria mostrar pra mãe q ue era capaz de faz er
uma malh a para o inverno, já q ue para a mãe não bastava talvez
o diploma de faculdade, era preciso construir do z ero a malh a ou
pelo menos um cach ecol com as próprias mãos, de repente se
dava conta de h aver errado um ponto muitas voltas atrás e ia
desfaz endo irritadíssima, de Penélope não tinh a nem o marido
sumido q ue aq uele não sumia por nada, liberava no máx imo
essas escapadas para a minh a casa com uma cach acinh a e um
tricô , isso nas noites em q ue ele ia ficar até muito tarde na
empresa, o marido também tinh a alguma coisa de idoso mesmo
aos trinta, q uando se sentava h avia o gesto final de largar-se
inteiro nas poltronas, seguido de um suspiro em q ue verbaliz ava:
Upa Lálá. Infalível, sentava e Upa Lálá.
Mas h avia nela o lado ex acerbado, afetado de uma juventude
inex plicável, q ue eram as calcinh as, mesmo enq uanto tricotava
Camila trajava sempre a calcinh a mais desconfortável, inteira
rendada e escavada feito um triâ ngulo tolh ido de concavidades,
se tomasse mais de um banh o na minh a casa o varal ficava
parecendo cenário de pornoch anch ada, Antô nio brincava q ue se
o corpo dela ch egasse ao Instituto Médico Legal numa dessas
calcinh as iam supor diversos motivos para o traje e nenh um
deles seria a mera rotina de se impor sempre os mais graves
desconfortos q ue não serão visualiz ados por ninguém salvo o
Upa Lalá, ou, no varal, pelo meu marido técnico em necropsia
q ue ao ver uma calcinh a vaz ia imagina o tipo de defunto q ue a
vestiria.
A Rosa me perguntou ontem por q ue eu ando tão convicta de
q ue não tive filh os, mas essa é uma pergunta impossível, porq ue
no momento em q ue estou convicta simplesmente não h á o
sopro da h ipótese de q ue esta minh a barriga tenh a algum dia
portado uma vida, então minh a convicção reside em si mesma,
não sinto a ex istê ncia de um filh o, nunca h ouve, então ela me
mostrou q uantas vez es circulou o fusca no caderno de memórias,
a Rosa é a ú nica pessoa do mundo q ue registra apontamentos
num caderno de memórias q ue não são suas, são alh eias, e com
isso do fusca ela q uer q ue eu fech e os olh os e me lembre
q uantas pessoas algum dia entraram no fusca, o banco de trás,
se h ouve algum dia um bebê no banco de trás, e é possível q ue
sim, o filh o da Camila, passeávamos tanto, h oje em dia ele
praticamente não ex iste, é da naturez a dos filh os deix arem suas
mães para lá q ue elas tê m essa vida tediosa de tricô s e calcinh as
desconfortáveis e de toda forma cedo ou tarde vão morrer, como
é natural, então tanto faz , vão viver suas vidas em países ou
cidades ou bairros melh ores, então se entrou algum bebê no
fusca foi o dela, q ue ela esperou até q uase os q uarenta para
parir, superada a trabalh eira q ue foi preparar-se para a tarefa
constante de evitar ser como a própria mãe.
A Rosa é uma criatura ex traordinária, q uer muito ach ar a
minh a casa, troux e um leite pra eu tomar, puro, um leite gordo e
morno, mandou q ue eu ch eirasse, se o ch eiro não lembrava o
meu bebê , ri bem alto porq ue eu ach o q ue a Rosa q ueria estudar
psicologia, mas virou assistente social, e assim presta muita
assistê ncia, o ch eiro é um sentido poderosíssimo, tão poderoso
q ue lembrei diretamente dos leites da minh a infâ ncia, minh a mãe
milh õ es de anos atrás deix ando o leite na minh a mãoz inh a e
saindo de perto como se um bebê não se engasgasse, não
morresse afogado na própria regurgitada az eda e no entanto os
anos passaram e não morri, por um acaso dos nú meros, q ue tê m
os seus caprich os, e nisso a Rosa se irrita de novo e vem com o
assunto de q ue a tendê ncia das crianças brancas neste país é
q ue fiq uem vivas, mas viver não me parece a tendê ncia de
ninguém, todas as células o tempo todo caminh ando para a
ox idação e a falh a, q ue insuportável é a consciê ncia do absurdo
q uímico q ue é ex istirmos.
Hoje no abrigo é dia de feijoada, a turma toda fica
contentíssima agitando suas bengalas e colesteróis, a mesa farta
de laranjas abertas atraindo moscas, a farinh a sem tempero e
crua numa enorme tigela, o ch eiro do feijão preto é bom,
caprich ado de alh o, mas abrindo a tampa logo se vê q ue vem
ch eio de água para render melh or, o arroz é sempre bem mole,
como gostam os idosos, e não ch eira à cebola como é
fundamental q ue ch eire, o mosto de carnes diversas no panelão
do meio não me atrai, a couve murch a q ue eles vão pux ando
com o próprio garfo num constante ciclo de contágio de suas
gripes q ue nem precisam se dar ao trabalh o de deix ar este lugar
para continuarem suas sórdidas mutaçõ es.
Fui ali na feira da rua ao lado pegar o pastel q ue eu ganh o
desde q ue me plantei do lado da barraca e contei a minh a
h istória, então basta ch egar perto e a mulh er muito gentil me
estica um pastel pra viagem, antes q ue eu comece a contar de
novo. Comi no q uarto na mesa meio metálica q ue ch amo de
minh a escrivaninh a, bem no cantinh o q ue pega o sol da tarde, o
silê ncio é o de um aq uário com as voz es fantasmagóricas e
ruídos de pratos ao fundo, o ch eiro da fritura orna bem com o de
ferro e água sanitária q ue tem este lugar, no meu q uarto ainda
não ch ega o fundinh o de urina q ue preench e todo o resto, todos
esses ch eiros já começam a ser uma lembrança afetiva, q uando
Rosa me tirar daq ui e me devolver à minh a casinh a triste e ao
jabuti solitário q ue neste momento devora toda a minh a h orta
sem se perguntar por um instante onde é q ue posso estar,
q uando eu lá ch egar e passarem os anos sempre q ue abrir a
água sanitária e ch eirar uma ch ave, um cadeado, enq uanto frito
um pastel, vou lembrar imediatamente isto aq ui.
Rosa perguntou por q ue não ach o possível q ue eu tenh a
mesmo a minh a amiga Camila depois da nossa adolescê ncia,
minh a grande amiga, procurando obstinada por mim, mas tenh a
também a minh a menina, já q uase na próspera idade dos
q uarenta anos, e eu respondo q ue simplesmente as coisas não
são assim, é da minh a amiga Camila q ue lembro, não h á filh a
nenh uma, eu garanto, e se amanh ã eu vier a lembrar da filh a, o
q ue sinceramente duvido, e a amiga estiver ali parada na
infâ ncia, é porq ue assim é, não se presenteiam duas Camilas a
uma ú nica pessoa. Rosa tem um peso sombrio numa das
sobrancelh as, uma risada largada q ue de sú bito ela recolh e e se
contém inteira dentro de alguma dor, tenh o certez a de q ue
perdeu um filh o, e perdeu-o ela sim para as probabilidades de um
país de merda, mas ela diz q ue não estamos aq ui para investigar
as memórias dela, q ue ela sabe com clarez a onde mora, ainda
q ue não more muito bem e não goste tanto de voltar todos os
dias para lá, q ue fui eu q uem foi encontrada em devaneios solta
na beira da estrada descalça ch orando por uma Camila q ue não
volta mais, você viu a minh a Camila? Devo focar na minh a vida,
e q uando ela diz isso usa um tom benevolente, de q uem concede
a alguém toda a sua atenção, a maravilh a q ue é alguém nos
pedir q ue falemos de nós mesmos, ela com o aventalz inh o
professoral q ue poderia ser para cuidar de crianças numa crech e,
mas é para falar com velh os, na verdade idosos, dos q uais
podem voar dentes e restos de comida, importante o avental.
Hoje depois do almoço vê m os voluntários com o bingo,
valendo um pacote de pilh as novas e sabonetes artesanais,
estão todos animadíssimos, mas nem sempre traz em lápis para
todos os interessados e fica uma bagunça com os grãos de feijão
saindo de um nú mero e indo parar em outro e toda h ora um idoso
grita bingo mas é reprovado na conferê ncia e vaiado pelos
demais. Acabei o meu pastel e vou ficar atenta, q uando
ch egarem q uero jogar e não posso errar a marcação, não
suportaria a vaia.
Camila traz ia pastéis da feira q uando vinh a nos ver aos
domingos, vinh a de bicicleta, a franja na cara, eu morrendo de
medo daq uela bicicleta dela, lembrei q ue não era somente
q uando o Upa Lalá ficava na empresa q ue ela vinh a para a
minh a casa, era também q uando discutiam demais, e brigavam
sempre a respeito da h erança do pai dele, ach o ch iq uérrimo falar
isso, brigavam a respeito da h erança, mas ela ficaria iradíssima
se eu colocasse a q uestão desse jeito, a briga era na verdade
pela forma como ele e os irmãos estavam lidando com tudo isso,
a venda de uma casa envelh ecida no ex tremo oposto da cidade,
uma empresa caída e desatualiz ada q ue era mais do q ue justo
ficasse com ele e Camila já q ue desde sempre era ele q uem
cuidava de tudo e permanecia até tarde lá resolvendo o q ue h á
para ser resolvido numa empresa familiar mambembe enq uanto
ela jantava comigo, mas os irmãos discordavam disso e q ueriam
vender tudo, e o Upa Lalá não sabia impor seus direitos, ao
contrário da Camila q ue sabia muito bem impor todos os direitos
em todas as situaçõ es q ue não envolviam a mãe dela, então é
isso, brigavam muito pela q uestão da h erança e ela ia dormir na
minh a casa, faz íamos juntas o jantar, o q ue poderia caber numa
das minh as imagens e q uadros ideais de felicidade, as duas
jovens bonitas, ela muito mais do q ue eu, o q ue por si só já traz ia
um encanto, desde cedo me agradou a posição profunda e
contundente de amiga feia, mas a imagem não ficava ideal
porq ue coz inh ávamos descoordenadíssimas.
Ela gostava de fumar mesmo enq uanto picava coisas, o q ue na
época não era impróprio nem desagradável, pelo contrário, o
normal era q ue tudo em todos os lugares ch eirasse a nicotina
parada, segurava o cigarro apenas com os lábios, a boca
retorcida, e se apressava toda porq ue a fumaça ardida ia subindo
até os olh os, então tinh a de bater a cinz a na pia feito um bárbaro,
daí deix ava apoiadinh o na borda da pia no ú nico local em q ue
não molh asse, muito mais cuidado com isso do q ue se tivesse de
depositar minh a cabeça desmaiada num travesseiro, e, como
q ueria voltar a usar depressa uma das mãos para a q uestão do
cigarro, picava ainda mais vigorosa as coisas, cortes grosseiros,
espicaçava legumes por toda a minh a pia, no ch ão nacos de
cascas q ue o Perdoai testava dentro da boca e cuspia, mais
grudados ainda no ch ão com vestígios agora de pelos, ela na
coz inh a era tempestuosa e espontâ nea como em todo o resto –
menos com a mãe –, um bich o solto, selvagem, não aceitava
mediçõ es, eu abria um livro para mostrar q ue o ideal era o forno
mais baix o, ela desdenh ava, apegada a praticidades q ue
inventava sem comprovaçõ es científicas, banh o-maria então
jamais h avia entrado no seu livro mental de boas práticas
culinárias, eu vencida abandonava minh as pressurosas dádivas e
sentava ao lado admirando o estabanado bonito daq ueles gestos
todos desagregados, enq uanto ela contava sobre a postura
absurda do Upa Lalá no lance da h erança, ou comentava
pormenores da personalidade intragável de algum cliente q ue lh e
pagaria muito pouco por um litígio de família, talvez também
sobre uma peq uena h erança, de modo q ue ali estava Camila de
toda forma administrando brigas sobre q uestõ es de h eranças
enq uanto fatiava minh as batatas com tão pouco esmero q ue
mais pareciam talh os de problemas psicanalíticos da infâ ncia
dela q ue arremessava mal-ajambrados numa travessa e cobria
com um molh o branco meio talh ado, tudo num forno q uente
demais q ueimando por fora antes de coz er por dentro.
Na janta eu comia tudo com muito gosto mas apontava um a
um cada detalh e q ue teria ficado melh or caso ela não fosse um
bich o selvagem, e então ela diz ia q ue não tinh a nenh um motivo
para os detalh es, afinal só ela, eu, e Antô nio comeríamos aq uilo,
ao q ue eu replicava sobre o despropósito das suas calcinh as
sensuais desconfortáveis q ue só o marido via e olh e lá e ela ria
deix ando voar um pouco das batatas por cima do bife, abria as
pernas se estivesse de saia e espiava a calcinh a, sim, bastante
rendada, mas eu não sabia o q uanto as rendas eram de fato
confortáveis, Antô nio sorria satisfeito com a felicidade q ue era e
seria a nossa vida por décadas desde q ue ele soubesse recusar
o tempo todo o papel de pai, para ele a vida era aq uilo, as festas
discretas junto à s pessoas q ue não irritavam a ditadura e q ue
portanto não perguntariam desafiadoras sobre destinos de
corpos, de modo q ue nem eu nem ele pudéssemos vir a nos
tornar corpos tão rápido, e a vida era também a visita da Camila
com suas calcinh as sensuais e sua gastronomia desregrada e
livre, como deveríamos todos ser, para sempre, e fomos.
Q U IN Z E

Ao q ue consta, a h umanidade resolveu enviar para o universo


uma ou duas naves com uma série de recordaçõ es do q ue
somos, nós h umanos, faz umas q uatro ou cinco décadas, meio
século, se isto voltasse para a Terra já seria nostálgico para nós
mesmos, q uem dirá aos seres q ue vivem fora do sistema solar e
q uando encontrarem vão sentir tanta ternura por este planeta
q ue, por um caprich o q ualq uer dos astros, h á tanto tempo terá
deix ado de ex istir.
Pelo q ue li, entre os barulh os gravados num disco dourado h á
o som do beijo de uma mãe no seu filh o. Gosto de saber q ue
ex iste um som específico para esse beijo, q ue não é um beijo
q ualq uer, e a eq uipe cautelosamente destacada para nos
apresentar à s galáx ias julgou q ue fosse um som digníssimo, tão
representativo do amor terráq ueo. Trem, trator, coração batendo,
cach orro doméstico, beijo – de mãe em filh o, é assim q ue está
escrito em todo lugar, até nas páginas da Nasa.
Pedi para a Rosa procurar no celular dela. Q ueria saber se o
som do meu beijo na minh a filh a, o som q ue lembro, é como
aq uele q ue enviaram ao espaço q uase na mesma época, q uando
nada disso me interessava, galáx ias, e não me interessam, essas
dimensõ es só se prestam a reforçar a h umilh ação q ue é nossa
efemeridade.
O outono está lindíssimo, no fim da tarde parece q ue pintaram
as paredes todas de rosa, ou laranja, as pessoas ficam com os
olh os bonitos, aguados, os idosos se tornam tão profundos,
porq ue no fim do dia conseguem olh ar diretamente para o sol,
encaram a luz e brilh am. Começo a falar da minh a filh a, então a
Rosa logo abre o caderno e aponta a q uestão do fusca, onde
está a outra Camila? Ela q uer q ue eu visualiz e o carro ch eio e
então constate a presença de todos na minh a vida, e de tanto
q ue me pressiona eu q uase ch ego a ver, mas tudo tem o vapor
de imaginação, isso q ue ela faz me dá falta de ar, não sei da
outra Camila, foi minh a amiga, muito amiga, crescemos juntas,
seguimos nossos casamentos, freq uentava muito minh a casa,
engravidamos, não sei, sumimos uma da outra, claramente
h ouve alguma coisa gravíssima e ainda bem q ue não me lembro,
não h á imagem dela segurando a minh a filh a, não adianta a
Rosa q uerer, brandindo o caderno com as Camilas circuladas
centenas de vez es e Antô nio e o fusca, fico ofegante, ch orosa, e
ainda assim ela não desiste, ach a q ue isto é uma catarse,
q uando apenas me arremessa no lamaçal das minh as
indistinguíveis solidõ es e perdas.
Rosa nota q ue estou ch orando, baix a enfim o caderno, ch ora
também, discretíssima, um ch oro de cinema, não limpa talvez pra
não ch amar a atenção e o percurso da lágrima acaba dentro do
nariz , aí sim ela usa as mãos, talvez para evitar um espirro,
q uero saber do filh o dela, mas Rosa não dá espaço, q uero saber
q ue comida ela faz em casa aos sábados e se tem amigas na
viz inh ança ou somente um marido enlutado e bruto, q uero saber
se q uem matou foi a polícia, ou coisa de bairro, eu entendo
desses mundos, Rosa, não parece, sou assustada e doméstica,
mas uma professora é obrigada a saber das coisas, mesmo q ue
seja uma professora de Portuguê s q ue h á duas ou trê s décadas
abandonou o ensino pú blico, ela desconversa, vamos falar da
minh a filh a então, a ú nica Camila q ue importa agora.
Ela tinh a uns amigos novos, meio ricos, umas casas nuns
lugares bonitos perto de praias isoladas, deix ou o cabelo crescer,
moreníssima, e foi ficando irremediavelmente solta de mim, a
faculdade de jornalismo é uma profissionaliz ação em rebeldia, foi
com os amigos bonitos aos lugares ricos, nem me contou, q ue
era pra eu não ficar preocupada, outro jeito de diz er q ue era pra
eu não a aborrecer com as minh as verdades sobre os perigos do
mundo.
Rosa avisa q ue tenh o médico amanh ã, detesto q ue me falem
as coisas em cima da h ora, uma idosa a q uem não compartilh am
a agenda, o médico é aq uilo de sempre, esse não é o
neurologista q ue também não se pode q uerer um neurologista
assim toda h ora, os ex ames normais, eu sei q ue eles não
ironiz am por mal, ele mesmo deve estar intrigadíssimo, já deix ei
claro q ue não é do meu feitio gostar de ser um caso inusitado de
medicina, pelo contrário, vou perguntando por cima do
prontuário, o q ue está escrito aq ui, e nesta linh a aq ui, tenh o todo
o direito de saber, ele ri e me obedece como se obedece a uma
professora de Portuguê s – com pena – e recita suas anotaçõ es,
um aluninh o decifrando a própria caligrafia, paciente submetida a
ampla propedê utica complementar. Para de ler e pergunta se
precisa de crase, mas nem espera minh a resposta, Vitamina B
normal, sífilis negativa, urina sem alteraçõ es, liq uor normal,
eletroencefalograma sem parox ismos epiléticos – este eu q uis
decorar porq ue ach ei as palavras todas bonitas, parox ismos –, e
mais alguns detalh es de córtex , então ele toca mú sicas de cada
década para a evocação da memória, uma graça o doutor,
lembro de todas, é claro, mas ele fica sorrindo com as
sobrancelh as erguidas esperando q ue das mú sicas brotem
lembranças e eu olh o o relógio na parede dele.
Para me estimular nas evocaçõ es o outro médico me disse q ue
um rato é capaz de lembrar, até um ano depois, q ue em
determinado compartimento de uma específica caix a, feriu-se.
Custa-me crer no q ue estão faz endo com os nossos ratos.
Rosa agora com a canetinh a batendo na lateral do caderno de
minh as memórias, angustiada q ue h oje estou confusíssima, ela
num mau h umor, respira fundo, q ue ex asperante sou eu, já não
suporta o meu cabedal de mortes, e a verdade é a pior de todas
elas, talvez por isso tudo h oje tão difícil de concatenar, não estou
preparada para esta lembrança q ue me arrebatou na madrugada
e me cuspiu da cama, a minh a filh a tão dourada resplandecente
torneada de colágenos nas praias dos lugares bonitos e ricos
com os amigos protojornalistas bonitos e ricos, eu ach ando q ue
estivesse no plantão do estágio cobrindo as manch etes da
madrugada, fulano de tal é visto em aeroporto com fulana de tal,
essas praias q ue são paraísos insulados por miséria e
precariedade, J ovem encontrada morta em trilh a para a Praia do
Coq ueiralz inh o Mirim, foram até a minh a casa ex plicar e
consolar, os amigos bonitos, por q ue ela tinh a ido soz inh a, não
h avia ex plicação, tentaram mostrar q ue era corriq ueiro, uns
faz iam uma coisa, outros q ueriam outra praia, espairecer a
cabeça, bati uma garrafa contra a mesa, ela estraçalh ou
relampejando a sala nos reflex os do lustre, os meninos acuados
ch orosos, espairecer a cabeça, se h ouvesse alguém com ela os
bandidos não tinh am força para todo esse estrago, jogar o corpo
para dentro da mata, será q ue os assassinos riam enq uanto ela
morria, é de se odiar mesmo uma moça feliz num país de
infelicidades, eu entendo o ódio, eu não entendo a trilh a solitária,
não é assim q ue criei a minh a filh a, os amigos ali diante de mim
q uerendo absolvê -la, e a si mesmos, repetiam-se, não era bem
uma trilh a, era só um caminh o, eu já não tinh a garrafas à mão,
senão lançava outra.
A cidade bonita era tão longe q ue nem era no Instituto Médico
Legal do Antô nio q ue fui aguardar a minh a filh a e seus laudos de
laceraçõ es, será q ue os amigos tocavam mú sica na casa bonita
dançando alcooliz ados e a Camila muito cerebral e reflex iva
precisou dar um tempo de todos, será q ue um deles além de
protojornalista era seu protonamorado e h ouve uma briga, ela
saiu sem nem diz er aonde ia, os outros falaram Dá um tempo pra
ela esfriar a cabeça, porq ue os jovens tê m isso da cabeça, q ue
precisa esfriar ou espairecer, q uando na verdade ela é feita para
estar constantemente pensando, alerta, por isso filh os são uma
responsabilidade tão longa, mesmo adultos é preciso listar
continuamente os perigos.
Não avisei o pai, não era justo q ue a visse morta se por q uinz e
anos não tinh a visto viva, ele q ue descobrisse um dia,
procurando seu nome nos cadastros de mortos a q ue deve ter
acesso, arregalasse os olh os diante do nome da filh a, repetisse a
pesq uisa, não é possível, de novo, pronto, meu Deus.
Rosa encontrou no celular os sons todos q ue os seres
h umanos enviaram à s outras galáx ias, o áudio é muito baix o, ela
praticamente se deitou ao meu lado, ouvimos juntas o beijo-de-
mãe-e-filh o, é na verdade um bebê , ch orando, um bebê q uase
irritante, a mãe pedindo q ue fiq ue q uieto, consola o filh o com
embalos monossilábicos, não ouço beijo nenh um, Rosa toca de
novo e de novo, ach o q ue escutamos um beijo, volta, não era,
ficamos sem entender. Os alienígenas nunca saberão como é o
som do beijo materno.
D EZ ESSEI S

Q uando Camila e eu tính amos catorz e ou q uinz e anos, ela


apareceu na minh a casa, ah , a Rosa vai ach ar divertido este
episódio, veio com uma moch ila imensa, a cara inteira empapada
de ch oro, um catarro já seco, o cabelo ensebado de lágrima
dormida, o coração sibilando no decote absurdo, eu olh ando o
decote, ela ofegante ch egou sussurrando, fugi de casa, eu ri,
olh ei de novo o decote, escolh a inusitada para uma fuga de casa,
prenú ncio das calcinh as aos trinta, mas Camila só crianças de
até doz e anos podem fugir de casa.
Ela foi entrando com a moch ila imensa, trâ nsfuga. Do tampo
vaz avam pedaços de roupas, fui ajudar e pesava muito, ela disse
q ue eram livros, os da escola e os nossos, q uanto tempo será
q ue ela planejava viver na minh a casa, fiq uei animadíssima, eu
tinh a uma irmã, tinh a uma irmã igual tinh am todos os meus
colegas, irmã significava alguém q ue me amava e q ue nunca ia
embora, na h ora de dormir apenas diz ia o boa-noite, e
continuava conversando, rindo, até o sono vencer. Fui subindo
com a moch ila até meu q uarto, cruz amos com minh a mãe
fumando o seu ch aruto masculino, ela olh ou de lado o nosso
carregamento, você s mataram alguém?
Mesmo espontâ nea e tempestuosa, Camila não era de
rompimentos e transformaçõ es, não os abruptos, as situaçõ es se
encerravam na vida dela feito uma coisa q ue se deix a estragar
na geladeira pela insuportável culpa de jogá-la fora, era capaz de
conviver com bolores por anos e anos. Então era isso, eu tinh a
uma irmã, era preciso q ue durasse.
Então o certo era não faz er perguntas, até porq ue claramente
não tinh a acontecido nada, não era preciso q ue acontecesse
nada para q ue alguém ach asse necessário escapar do jugo
daq uela mãe, ainda q ue fosse para ficar sob o jugo de mãe
nenh uma – q ue era a minh a. Ela q ueria contar, ela estava louca
para soar como a revoltada q ue ela q ueria q ue eu pensasse q ue
era, embora eu não pudesse de fato me enganar assim, olh ei de
novo o decote, minh a irmã.
Dobrei todas as roupas dela misturadas com as minh as nas
gavetas, q uanto mais misturado mais irreversível era aq uela
mudança, isso enq uanto ela ch orava encostada na q uina entre
as paredes, encolh ida no meu travesseiro, aflita q ue eu não
perguntava o q ue era a briga com a mãe e q uanto mais eu não
perguntava mais ficava evidente pra ela q ue sua casa era
impraticável, não era um lugar para se viver, não importavam os
detalh es.
Tomou um banh o do jeito q ue a minh a mãe odiava, molh ando
o banh eiro ao sair, gastando uma toalh a da casa, porq ue embora
a moch ila fosse imensa ela não pensou na q uestão do lençol e
da toalh a, e a minh a mãe detestava lavar, mesmo na máq uina,
gastava muito os tecidos. Deitou na cama no meu colo,
amolecida do vapor do banh o por cima das decepçõ es todas,
fiq uei esticando com os dedos o cabelo molh ado sobre as
minh as cox as.
Camila, você pode ficar aq ui o q uanto q uiser, minh a mãe nem
vai perceber. Você limpa a coz inh a, ela já vai ficar satisfeita, eu te
ajudo na lição de gramática, você me ajuda em todas as outras,
de manh ã temos aq uele iogurte q ue você gosta, à noite no
inverno é sopa, nas férias de verão temos uns lanch es, você vai
gostar, não precisa rez ar, nunca mais. Talvez a Camila q uisesse
rez ar, não sei, olh ou pra trás condoída.
Q uinz e anos depois ela apareceu na casa em q ue eu vivia com
o Antô nio, a maleta muito mais elegante e módica, Fugi de casa,
a cara empapada de ch oro, mas sorria da piada, as brigas com o
Upa Lalá pelas q uestõ es da h erança do pai dele, alguma besteira
assim, mas ele tinh a dito talvez um impropério mais inaceitável,
eu fiq uei animadíssima, eu tinh a uma irmã, era preciso aproveitar
os poucos dias q ue me rendessem esse novo rompante de
ousadia, Antô nio foi à coz inh a pegar mais um copo.
Enfim, estava ali a Camila menina, molh ada na minh a cox a,
olh o parado no teto sofrendo o desmaz elo q ue era ser
eternamente tão filh a, tính amos a vida inteira pela frente, só
precisávamos permanecer vivas, o q ue na época já me afligia,
uma antiga colega de sala tinh a morrido de sarampo, já estava
bem claro o q uanto seria difícil essa batalh a, mas de toda forma
estaríamos juntas.
Ajudamos minh a mãe a finaliz ar os bolos das encomendas,
Camila girava o prato do bolo enq uanto nós despejávamos a
cobertura bem devagar faz endo um desenh o bonito q ue depois
minh a mãe ainda ia enfeitar com morangos macerados. Camila e
eu tão meninas tính amos um grande medo, maior e menos
nomeável q ue todos os outros, q ue era o de sermos tudo de ruim
ou sofrido q ue h avia em nossas mães, mas naq uele momento eu
aceitaria, sim, tornar-me aq uela mulh er.
Na janta minh a mãe estava como sempre um pouco
alcooliz ada, ch ateada com o domingo, como era de costume, a
pensão do meu pai morto não valia um uísq ue, ela gostava de
falar assim, mesmo q ue não bebesse uísq ue, ela trabalh ava
numa fábrica de papel h igiê nico, mais ou menos ch efe de um
mais ou menos subsetor, então as segundas-feiras eram um
assombro, e para pagar os meus caprich os também vendia
bolos, a coz inh a ch eirava a glacê , a viz inh ança vinh a buscar os
bolos, eram os momentos em q ue ela mais sorria, tão gracioso o
sorriso, eu podia entender como era invejável uma mãe daq uela,
q ue não espera nada de você a não ser limpez a, não cobra
seq uer q ue a filh a permaneça viva, minh a mãe alcooliz ada de
cach aça serviu um dedinh o pra mim e outro pra Camila, deve ter
sido incutido aí o h ábito agradável da cach acinh a de bolsa,
tomamos q ue nem remédio, precisávamos daq uilo, nem ornava
com a sopa.
Mamãe respirou ardido da cach aça, ficou olh ando pra Camila,
faz ia uma cara cotidiana e ao mesmo tempo moída de sabedoria
e desilusõ es, você é tão bonita, Camila, nunca vai saber usar
tudo isso, minh a mãe disse, e então tocou o telefone e ela
atendeu, Camila está aq ui sim, só um minuto.
Ela andou devagar e dramática até o aparelh o. Fui vendo o
rostinh o da minh a nova irmã arredondar enq uanto ouvia a voz da
mãe ao telefone, a voz ch egava a mim picadinh a, arrulh os de
uma pomba desagradável e insistente, os traços da Camila foram
perdendo todos os sinais de mulh er, ganh ou de volta o lábio
tremido de criança frustrada, titubeou umas respostas, eu tive
vontade de dar um soco muito forte no meio da cara dela, subiu,
pegou a moch ila q uase vaz ia, não encontrou direito os livros, as
roupas todas já dobradas irremediavelmente imiscuídas à s
minh as, agradeceu à minh a mãe, porq ue aparentemente apenas
à s mães devíamos q ualq uer consideração, não olh ou na minh a
cara até a buz ina do carro soar na calçada, acenou um tch au
descontraído, como se fosse um tch au de q ualq uer noite, e no
dia seguinte me ligou depois da aula pra contar q ualq uer
aleatoriedade, um assunto q ue ela caçou para costurar nossas
interrupçõ es, aceitei o jogo, como aceitaria sempre, era preciso
não pensar demais sobre as coisas q ue não se resolvem
facilmente, problemas mais confortáveis do q ue suas soluçõ es,
minh a mãe não soube q ue eu tive essa breve irmã, ela teria rido
tanto de mim.
D EZ ESSET E

Rosa, Rosinh a, você não imagina o q ue descobri esta manh ã,


senta aq ui, traz a caneta, h oje estou ch eia de dados, não ri,
mulh er! Mania de desconfiar de velh a. O médico disse q ue estou
em perfeito estado, eu ia mesmo lembrar tudo a q ualq uer
momento, e olh a q ue coisa traiçoeira é a morte, ou, eu diria mais,
q ue traiçoeiro pode ser um filh o.
A minh a menina tinh a acabado de faz er vinte e sete anos,
todas as noites me ligava, tinh a ch egado bem, o percurso da
redação até a casa dela envolvia ruas escuras por onde
perambulavam uma porção de pessoas injustiçadíssimas a q uem
não se poderia culpar se rasgassem alguém por algumas notas e
um salgado, faltavam apenas trez e anos para q ue ela ch egasse
à idade maravilh osa dos q uarenta, q uando eu teria enfim uma
filh a sobrevivente, madura e satisfeita, dali em diante bastaria
q ue mantivesse em dia os ex ames de rotina, minh a maior
companh eira.
A Rosa h oje está particularmente empertigada, não sei, Rosa,
q ue outra Camila? Ah , minh a amiga de infâ ncia, sim, continuo
não sabendo dela, brigamos. Não estou me lembrando disso
h oje, você q uer q ue eu esq ueça o q ue de fato sei? Essa Camila
tinh a os seus rompantes, vivemos algum escâ ndalo, eu
provavelmente sentei a mão na cara dela como q uis faz er
durante toda a nossa juventude. As voluntárias de h oje estão
faz endo as unh as das idosas e até mesmo dos idosos mais
esmerados, então enq uanto falo com a Rosa preciso manter o
olh o na cutícula porq ue h á essa mania de tesourar cutículas.
Minh a filh a tinh a poucos amigos, trabalh ava demais, tinh a o
cérebro muito estimulado, era ex igente com as companh ias,
resgatou um cach orro no caminh o do trabalh o na esperança de
satisfação pessoal, ch amou de Ofendido, para faz er par com o
meu Perdoai, o vira-lata despenteadíssimo q ue eu tinh a na
época, criou uma rotina obstinada com todos os intuitos de faz er
o animal feliz q uando na verdade ele já estava pleno apenas de
subir na cama dela e me visitar aos finais de semana, ficava num
canto apavorado de enfrentar o território do Perdoai q ue era
espaçoso e sem noçõ es de h ospitalidade.
Rosa apanh a a garrafinh a de água e dá um peq ueno gole, ela
tem mania com essa garrafinh a, em vez de beber logo inteira e
manter o corpo h idratado até a próx ima água, ficam esses
golinh os recorrentes interrompendo os diálogos, já não suporto o
gesto, estica-se toda para trás até alcançar, bebe um segundo,
devolve ao local pouco ergonô mico, estica-se novamente
minutos depois, um gole, assim por diante. O q ue faz uma
assistente social se alocar nos abrigos de velh o, talvez ela seja
referê ncia de abrigos diversos, mas passa tanto tempo por aq ui,
tem a idade ideal para ser a filh a q ue eu deveria ter a esta altura,
ah , Rosa, a sua paciê ncia é tudo o q ue eu tenh o.
Aproveito para contar à Rosa q ue me parece bastante claro
q ue, se não fui famosa, tive alguma prox imidade com o mundo
das celebridades, e digo mais, fiz isso com a coisa da língua
portuguesa, h ein, juro q ue foi. Ela q ue não procurou direito. Outro
dia acabei revelando q ue Antô nio foi funcionário do Instituto
Médico Legal, não sei até q uando, mas certamente estava lá na
década de setenta, em plena ditadura, ela foi procurar, ach ou q ue
ia ser rápido, não deram a lista assim, ela com essa postura
impávida de militante, a h istória da velh a perdida não ia colar tão
fácil, eu ach o q ue eles precisam tomar as cautelas porq ue h oje
em dia h á pessoas atrás desses nomes, e h á o perigo dos crimes
de ódio, q ue na verdade seriam crimes de amor, movidos a ódio
pelo ódio de antes, mas o Antô nio era um idiota q ue não odiava
nada, só odiava ter filh os, apenas recebia os corpos, botava uma
etiq ueta com o nome no dedão, ajudava a abrir, empastar de
formol, fech ar, melh orar os rostos para os sepultamentos, q uem
faz ia o trabalh o sujo não era ele, apesar q ue ali tudo era imundo,
desintegraçõ es e larvas da fauna cadavérica, ex iste uma lista dos
médicos legistas apontados pelas fraudes e omissõ es, isso é fácil
de ach ar, a Rosa perdeu-se nisso, ficou h orroriz ada, mas o
Antô nio estava muito longe de ser um médico legista, o q ue
nesse caso sempre foi um consolo, enfim, dito tudo isso,
superadas as burocracias todas e os praz os para as pesq uisas e
a má vontade geral da nação, Rosa terá uma lista com todos os
funcionários da época dos Institutos Médicos Legais de todo o
estado, porq ue eles não possuem a lista por cidade, era uma
distribuição interna, ademais não h avia seq uer computadores,
senh ora Rosa, um pedido deste não é comum, ainda q ue h aja a
boa intenção, talvez seja necessário autoriz ação judicial ou ao
menos da superintendê ncia de não sei q uem, ou pelo menos
precisa voltar o fulano das férias porq ue ele é q uem guarda as
fich as do Recursos Humanos de décadas atrás.
Minh a filh a Camila e seu trabalh o de jornalista q ue era
basicamente coletar e esmiuçar as informaçõ es sempre
devastadoras do país, dormindo q uase de manh ã e acordando
ainda de manh ã mesmo porq ue ela não tinh a tempo para o
descanso, também não tinh a tempo para a tristez a porq ue o
Ofendido entornava pela casa seus tons de contentamento e ela
acabava ficando ch eia de sorrisos, ligava narrando as ú ltimas do
cach orro, mijou na sacola da velh inh a na feira, e ria h orroriz ada
da própria figura q ue ela era. Filh a, volte a morar comigo, faço
comida pra você .
Ela tinh a essa mania de morar soz inh a, e com isso éramos
duas morando soz inh as, com nossos cach orros soz inh os, duas
insones sem espaço para estarmos tristes, primeiro porq ue
ninguém veria nossa tristez a, então seria um despropósito,
depois porq ue tính amos cach orros.
Uma coisa q ue eu estranh ei muito foi q ue eu sempre ach ei q ue
saberia na h ora, sentiria um golpe por dentro, um sacolejo feito
uma alma tivesse se acoplado à minh a e revirado tudo. Mas não
senti nada, foi no dia seguinte q ue os viz inh os estranh aram tanto
o latido insistente, alternado com uivos, os bombeiros me
ligaram, ao lado dos diversos remédios vaz ios tinh a o bilh ete,
Desculpa eu não consegui, bilh ete sem vírgula, sem nem mesmo
grandes intençõ es de ser encontrado e entregue, e q ue os
bombeiros presumiram fosse pra mim, e eu fiq uei sem ter certez a
se era para alguém q ue eu não conh ecia, para o cach orro q ue
ela tinh a prometido faz er feliz pelo resto da curta vida dele, q ue
coincidiria talvez com os futuros q uarenta anos dela, e, se era pra
mim, fiq uei sem saber ao certo o q ue ela não conseguiu,
permanecer viva, eu suponh o, mas em q ue sentido, não
conseguiu lutar contra todos os caminh os da morte, ou não
conseguiu suportar isso q ue ch amam de vida e é na verdade a
fuga incansável da morte.
Rosa ch ora um pouco h oje, no meio de toda essa manicure.
Não tem coragem de me acusar de nada, vive comigo essa
perda da minh a Camila para o ú nico perigo q ue não fui capaz de
alertar. Essa coisa q ue eu jamais vou compreender q ue é
abreviar de propósito aq uilo q ue já q uase não dura, e q ue me é
tão custoso manter.
J unto com o bilh ete e com o corpo da minh a filh a no Instituto
Médico Legal – o Antô nio escapando da minh a vista, incrédulo,
esq uálido e todo talh ado do cotidiano da morte –, os bombeiros
me entregaram também o Ofendido, q ue passou a viver num
canto da minh a casa, circunscrito nos metros q uadrados q ue o
Perdoai lh e concedia.
Ofendido vivia agora assim inteiro consciente do q ue é a
tristez a, todo silencioso e culpado, ele q ue só precisava faz er
uma jovem feliz e não conseguiu. Não conseguimos.
D EZ O I T O

Era um rapaz elegante q ue falava de Língua Portuguesa na


televisão, lembro agora. Um moço totalmente embebido em
gentilez as e os telespectadores paravam para ouvi-lo ex plicar a
nossa língua, usava umas camisas de manga curta um pouco
folgadas, as mãos juntinh as diante de uma mesa limpa
enq uadrada na câ mera, ele entrevistava ótimas pessoas
famosas, numa época em q ue h avia famosos ótimos, tinh a um
rosto q ue lembrava um boneco de pano a q ue se q uisesse
permanentemente abraçar, o amante ideal.
O Antô nio com a coisa de não q uerer filh os e eu sordidamente
calculando a possibilidade de sacá-lo da minh a vida, uma peça
obsoleta, mas ele com o talento de tornar a ideia de um filh o mais
obsoleta q ue ele, a ponto de eu sentir q ue a ideia de não ter um
filh o estava desde o princípio em mim, até q ue surgiu o
apresentador gramatical, não sei precisar como, mas é certo q ue
entrou na minh a vida, alguma frase estonteantemente correta, eu
me virei, ele sorriu o seu sorriso televisivo, o mesmo de q uando
comenta a gramática da letra de alguma mú sica adorável, era um
nome bíblico, a Rosa vai lembrar, famosíssimo, basta procurar
por ele, vai saber indicar q uem sou eu, mas com a discrição q ue
lh e é indispensável.
Algo no nome desse h omem me remete a comida e amor em
família, então enq uanto a Rosa não vem me lembrar o nome dele
vamos ch amá-lo de Natalício.
Natalício não foi, logicamente, um tipo de romance tórrido,
ocupávamo-nos de outras proparox ítonas, por ex emplo Tímido.
De toda forma foi surpreendente a minh a froux idão moral e a
facilidade com q ue menti para Antô nio pela primeira vez , saiu-me
num instante q ualq uer h istória plausível e insuspeita, e a partir da
primeira tanto faz ia q uantas mais viessem, comecei a mentir com
ódio daq uele Antô nio q ue me empacava os planos uterinos com
as suas obstinaçõ es q uase malth usianas, e q uando se mente
com ódio aí sim q ue saem fluidas as mentiras, sem nenh um
compromisso com a estratégia, mentiras cínicas q ue driblam a
vítima com ex trema eficácia, os cálculos do mentiroso odiento
vê m sem culpa ou titubeio, perfeitos.
Meu amor com Natalício avançava gentil, e na cama também
tinh a lá suas vantagens, a elegâ ncia das pessoas normativas,
sem afetaçõ es, a malemolê ncia encadeada dos sintáticos, até
h oje se me aparece esse h omem na frente não resisto. Então
com o tempo Natalício notou q ue meus talentos didáticos
também mereciam aproveitamento televisivo, a Rosa pode
procurar direito e vai ach ar, apresentei diversos programas com
ele, a minh a amiga Camila ia me buscar de vez em q uando na
produtora, perturbada, mas ex tasiada com a h istória de ter uma
amiga famosa e ainda por cima mentirosa, o marido enganado
em casa orgulh oso da esposa q ue agora dá aulas na televisão,
eu com meus ex emplos coloridos na tela, a regê ncia do verbo
enganar, transitivo direto, Eu engano meu marido, mas h á
ex ceçõ es, é sempre importante evitar ambiguidades, q uando os
programas abordavam ex ceçõ es Natalício ficava animadíssimo.
Vou precisar da Rosa para reconstituir tudo isso porq ue depois
Natalício e eu caímos em obscuridades dentro da minh a mente,
porq ue é certo q ue alguma coisa desandou já q ue eu continuei
com Antô nio, Camila não foi mais me encontrar na porta da
produção do programa, posso ter errado alguma coisa ao vivo,
alguém enviou uma pergunta justamente sobre alguma ex ceção,
eu sou mais ch egada à s regras, as ex ceçõ es me apavoram, é
nisso q ue residia a nossa incompatibilidade, vai ver então
respondi errado, Natalício em frê mitos de frustração registrados
ao vivo nos detalh es das boch ech as murch ando de desilusão.
Ainda assim é algo de q ue me gabar, é sempre um lux o viver
um caso de amor com um grande ídolo, o q ue é o contrário de
passar a vida inteira ao lado de Antô nio sem enganá-lo uma
ú nica vez , vivendo da forma como ele decidiu – ainda q ue possa
até mesmo ter sido uma boa vida, o q ue já nem importa porq ue
não me lembro dela e uma vida assim h edonista q uando é
esq uecida parece um vapor inapreensível.
Esta semana a Rosa vem mais tarde, porq ue antes ela faz os
atendimentos no abrigo infantil. Deve ser uma sensação
interessante, começar e terminar seu dia pelas duas pontas da
desgraça h umana, o começo desviado e o final em abandono,
q uando sai daq ui a Rosa vai para o ponto de ô nibus na avenida e
fica ali desmilinguida segurando sua bolsinh a puída e os
seq uilh os q ue compra da fax ineira daq ui, por caridade, porq ue
toda vez q ue morde ela se afoga depressa nos seus golinh os de
água e larga a outra metadinh a em cima da minh a mesa, a
instituição Seq uilh o é q uestionável por si só, não deve ser
inabilidade da fax ineira. Então a Rosa no ponto de ô nibus pega e
lamenta mais um seq uilh o porq ue deu fome, e pensa primeiro
nas crianças q ue não conseguiu ajudar de manh ã, e depois nos
idosos esperando a morte num municipal, e também outros
abrigos filantrópicos, e daí ela se lembra de mim e dá uma breve
risada q ue vem um pouco ch eia de raiva, mas uma raiva
enternecida pelo convívio, a gente se apega à s h istórias dos
outros na insistê ncia, por mais irritantes q ue sejam, e ela tem
raiva de mim porq ue estou largada aq ui sem precisão e também
sem solução, uma espécie peculiar de abandono, para ela fui eu
q uem abandonei a todos para me pendurar nas saias longas e
floridas dela e tomar o leite desnatado ralo deste local cercada de
idosos miseráveis q ue já venceram tantas vez es a morte ao
longo dos anos q ue agora já não sabem o q ue faz er enq uanto
não morrem.
A Rosa vai se lembrar de mim no ponto de ô nibus enq uanto
lamenta mas engole o seq uilh o e vai sorrir animada para procurar
na internet a minh a imagem ao lado de algum Natalício,
ensinamos regras e ex ceçõ es para um país atento, criativo,
eq uivocado, falh o, e ela vai rir mais ainda das paix õ es h umanas,
ela q ue sabe das paix õ es das crianças infeliz es q ue ela visita de
manh ã e dos velh os andrajosos q ue ela entrevista à tarde,
ch ama de entrevistas os nossos encontros e é isso q ue
provavelmente são.
Antes da frustração brutal de Natalício com meu eq uívoco ao
vivo em rede nacional, Camila ch egou a jantar conosco, os olh os
dela atrás da fumaça do prato ocultos em brumas de mentiras, o
ilícito era todo meu, mas ela o apanh ava para si numa espécie de
fetich e do remorso, mentíamos juntas ao Antô nio, o q ue elevava
e destruía a vida dela. Num desses jantares falamos brevemente
sobre a mãe dela, um comentário sem importâ ncia, comíamos
fondue enq uanto Antô nio cumpria um turno no necrotério, h ouve
uma época em q ue o brasileiro sofisticado se ocupou bastante
com a coisa do fondue, Camila ficou perturbadíssima, a mãe não
tinh a q ualq uer relação com nosso pernicioso fondue a trê s e
acabou conspurcada em pecaminosos nacos de pão duro
perdidos no q ueijo q ue já esfriava e endurecia sobre nosso fogo
minguante.
O marido da Camila nunca conh eceu nem soube do Natalício,
não porq ue fosse amigo do Antô nio, não era, minh a impressão
inclusive era de q ue não o suportava, mas sempre h á o perigo de
um h omem se projetar na dor do outro e então olh ar Camila
como uma mulh er q ue tinh a uma amiga como eu, então talvez
ela estivesse certa em mantê -lo limpo de toda a minh a
brevíssima sujeira, brevíssima porq ue nem para amantes sei
evitar nossa naturez a efê mera. As minh as pessoas não duram,
por isso invisto tanto na amiga Camila, uma pessoa de ponta a
ponta na h istória, todinh a imbricada em mim, a ú nica
permanê ncia possível.
Semana q ue vem Rosa volta diz endo q ue não encontrou coisa
alguma sobre mim com Natalício, e tudo bem, porq ue já não me
lembrarei disso, provavelmente não será uma grande dor nem
decepção amorosa, o lado bom da efemeridade das minh as
lembranças é doerem só durante o seu curto voo, não tê m o
encravamento implacável das memórias firmes.
D EZ EN O V E

O Natal na família da Rosa deve ser uma coisa assim


gostosamente despojada, imagino q ue alguém tem um q uintal
onde juntam diversas mesas, um tio pode traz er as mesas de lata
do bar q ue ele ajuda a tocar trê s q uarteirõ es pra baix o, algumas
pessoas traz em doces em travessas imensas, outras o salgado,
à mesa criticam livremente cada prato, comparando com o ano
passado e comendo ao som das crianças q ue não param muito
q uietas, alguém na viz inh ança solta fogos, as luz inh as piscam
numa velh a árvore da calçada, a dona do q uintal repara q ue
esq ueceu de tirar a roupa do varal e pondera se agora vale à
pena correr com isso, as calcinh as e camisolas secando num
canto, o cach orro abrigado embaix o com medo dos fogos e
comendo alguma coisa q ue uma criança ou um velh o jogou pra
ele. À meia-noite Rosa pensa no filh o q ue ao q ue tudo indica
morreu, e como é uma morte q ue ela não esq uece é terrível em
todos os Natais e em todos os dias.
Q uando eu era peq uena não tinh a muito Natal porq ue minh a
mãe ou não se importava ou cumpria turnos na mais ou menos
gerê ncia do subsetor na fábrica de papel h igiê nico e depois se
matava de faz er bolos para as encomendas, faz ia um
q uestionável Papai Noel de pasta americana, coberto de neve de
coco ralado, e então uma vez ela me enviou para o Natal na casa
da Camila, mas eu não q uis mais nos outros anos, porq ue a
Camila ficava outra criança na frente da mãe, uma criança de
mentira e sem a menor graça, saída de um filme dublado, as
palavrinh as mal encaix avam na boca q ue eu conh ecia, e ela
q ueria controlar também as minh as palavrinh as para q ue não
fossem as mesmas q ue costumavam sair da minh a boca, a mesa
arrumada com coisas douradas, eu ach ava ch iq uérrimo uma
mesa dourada, ela com um vestido engomado, uns parentes q ue
ninguém amava, ninguém beijava, discutiam política e futebol
como se pudessem faz er as duas coisas melh or do q ue os
profissionais estavam faz endo, eu com muito sono e era preciso
esperar J esus nascer para podermos dormir, não sem antes
darmos todos as mãos numa ciranda estática, olh os fech ados, a
rez a completa q ue também sai desencontrada da boca q ue eu
conh ecia, dubladíssima, eu buscando nos olh inh os dela um
lampejo de rebeldia, mas ela inteira com os olh os para dentro de
J esus e eu não sabendo as palavras para acompanh ar o ritual
q ue ia muito além do Agora é a h ora de nossa morte amém, q ue
eu ainda teimava em errar. Fiq uei q uerendo estar na minh a casa
escura com a minh a mãe ex austa dos bolos e papéis h igiê nicos,
bê bada de ch ampanh e barata assistindo a algum filme na
televisão q ue, daí sim, era bom ser dublado.
No ano em q ue Antô nio ch orou e sumiu da nossa vida, minh a
filh a Camila tinh a trê s anos e não h avia ninguém para o nosso
Natal. A Camila amiga ocupadíssima com um Natal
grandiloq uente na família do Upa Lalá, ela ficou de faz er o
tender, eu avisei q ue o tender era o mais polê mico, cada um com
uma opinião sobre molh os e suculê ncias, e ainda assim ela
escolh eu o tender, as searas em q ue ela se impõ e desafios. Eu
perguntei se não podíamos ir também, minh a filh a e eu, e ela riu,
como se fosse piada, porq ue a Camila tem seus conceitos do
q ue é família, e os parentes distantes do Upa Lalá certamente
não eram a minh a. E já q ue Natal é para família e família ex ige
casamento ou nascimento, minh a filh a e eu não tính amos
propriamente um Natal.
Enfeitei Perdoai e Ofendido com gorrinh os de Papai Noel,
recuperei lá de cima da estante a caçarola de ferro q ue era
presente do meu casamento e ficou comigo como presente de
divórcio, assim como a casa, a filh a, a geladeira, um h omem
culpado pode apresentar diversas facetas do desapego, fiz uma
moq ueca q ue ela adorava, porq ue já q ue não tinh a ninguém,
nem mesmo J esus, no nosso Natal não era preciso tradiçõ es e
ch ester.
A moq ueca eu botei ainda fervendo em cima da mesa, um
gesto tão destacado de mim. Como a memória me vem
esfumaçada fica difícil entender por q ue, entre a coz inh a e a
mesa da sala, eu me desfigurei tanto a ponto de deix ar a
caçarola de moq ueca fervente sobre a mesa do Natal. A toalh a
também era do casamento, literalmente, porq ue usamos na mesa
do bolo ostentando uns bordados ligeiramente dourados, eu
seguia ach ando ch iq uérrimo o dourado.
Perdoai corria atrás do Ofendido, os gorros escorregando e
pendendo para baix o feito barbas vermelh as, Camila ria. Essa
risada, eu fech o os olh os para dormir e é sempre o primeiro som
q ue me vem, ela sentada no ch ão, ainda elevada sobre a fralda
polpuda e um pouco tardia, bate as mãos no vão entre as
perninh as ch amando os bich os, q ue correm por cima do vestido
dela, a risada.
Uma das muitas crueldades da morte é soar evitável, condenar
os sobreviventes a permanecer estagnados, refaz endo
mentalmente as ú ltimas condutas numa espécie de máq uina do
tempo insistente e ineficaz q ue ao mesmo tempo em q ue tenta
destecer o passado vai moendo na outra ponta q ualq uer tipo de
futuro.
Outra das muitas crueldades da morte é aproveitar aq uele
ú nico lapso q ue tivemos dentro dos nossos sistemas cotidianos,
isso tudo para q ue ela, a morte, nunca seja a culpada, sempre h á
um h umano a condenar, invariavelmente a mãe, o q ue de novo
bota a raz ão em Antô nio porq ue ao evitar um filh o se evita
eficaz mente o q ue h á de melh or e também certamente o q ue h á
de mais dolorido e perigoso no mundo.
Duas coisas para perguntar à Rosa q uando ela ch egar,
esbaforida de calores e sacolas, com a garrafinh a de água: como
são os Natais dela, e se ela já viu neblina se movendo entre as
copas das árvores. Q uando a neblina desce, as árvores mais
próx imas de nós ficam limpas, e as de trás, ao longe, ficam
parcialmente encobertas por uma neblina q ue se move, e isso faz
parecer q ue é o passado, lá atrás, encoberto e difuso,
repassando esfumaçado, enq uanto as árvores do presente ficam
aq ui diante de nós implacavelmente estáticas, nítidas. Rosa vai
se irritar com a minh a metáfora e implorar q ue h oje tentemos
focar bastante porq ue não temos avançado nada e minh a vida
inteira é uma neblina, e vou diz er q ue agora a metáfora é dela e
rirei soz inh a, ela vai beber um golinh o de água.
Q uando eu era muito jovem e apaix onada uma vez eu tive um
pensamento atroz , senti q ue é pior seu namorado morrer do q ue
seu filh o, porq ue com o namorado faz emos sex o e então o corpo
todo fica marcado dessa falta, e está aí a terceira crueldade da
morte, é iludir os jovens com essa tolice, a impressão de q ue o
contrário de estar morto é estar praticando sex o. O bom de ser
velh a é já não ser tão patética.
Tem algo místico em morrer no Natal, mesmo nas famílias q ue
não tê m Natal, nem Deus, nem J esus, até mesmo nas q ue
deix am por completo de ser uma família, fica uma aura angelical
e uma dor renovada a cada final de ano, guilh otina q ue desce
nas contagens regressivas e retumba nos fogos de artifício, são
dolorosos e q uentes os dez embros, irritantes nos seus votos de
esperança q uando não h á seq uer o q ue esperar.
A neblina subia por cima da caçarola, era evidente q ue
separava o q ue seria presente do q ue já estava q uase no
passado, correndo nebuloso por trás, o móvel com os porta-
retratos ocultos na fumaça da moq ueca, o barulh o das patinh as
dos cach orros correndo em círculos, a gargalh ada da Camila
sentada no ch ão perto da mesa, não sei o q ue h ouve, é
insondável o mundo das ideias infantis e por isso a nós cabe
cercá-las das nossas impossibilidades.
Eu ch egava na sala segurando os pratos, sobre eles os
talh eres e a colh er gigante para apanh ar o ensopado de peix e
q ue eu ch amei de moq ueca mais porq ue estava na caçarola e
essas coisas faz em efeito. A mãoz inh a sú bita na toalh a, não h á
como saber o q ue ela pensou e disso é q ue se compõ em as
crianças, de pensamentos inex plicáveis, pux ou com força as
bordas da toalh a até tocarem o ch ão, talvez q uisesse impedir a
passagem dos cach orros na sua correria por baix o da mesa, um
truq ue q ue os deix aria comicamente desnorteados, esta é outra
crueldade da morte, principalmente q uando se impõ e sobre as
crianças, aproveita a brech a dos seus intentos sempre
encantadores, gosta de avançar justamente sobre q uem menos
desconfia dela.
A caçarola de ferro diretamente na cabecinh a e em seguida o
caldo fervente para garantir q ue se tivesse salvação por um lado,
já não teria pelo outro, não era o turno do Antô nio no Instituto
Médico Legal, o q ue nos teria imposto alguma espécie de Natal
em família, mas nem isso.
Faz q uase q uarenta anos e o som é o mesmo, a risada, as
patas dos cach orros no piso, os pratos e talh eres saltando das
minh as mãos arrebentando no ch ão, o resto não importa narrar à
Rosa q ue ela já deve saber o q ue é perceber q ue um filh o está
morto, esse instante vertiginoso em q ue alguma coisa de ferro
tomba por dentro e parece q ue não é possível q ue estaremos
vivas no próx imo segundo, e no entanto ch ega o próx imo
segundo e infeliz mente continuamos ali, segurando o filh o morto,
e o próx imo dia, e o próx imo Natal.
Q ue ideia absurda isso de darmos à morte um filh o q ue ela nos
possa tomar a q ualq uer instante.
V IN T E

O marido da minh a amiga Camila morreu h á alguns anos, o filh o


veio para o enterro e logo voltou para o Méx ico ou Novo Méx ico,
e resolvemos q ue enfim moraríamos juntas. Décadas depois da
primeira tentativa, ela estava agora pronta para ser minh a irmã.
É importante encontrá-la depressa, porq ue ela deve estar
numa aflição sem limites, Rosa falou q ue passaria de novo na
repartição, consultar a q uestão dos nomes dos funcionários do
Instituto Médico Legal na década de setenta, h ouve novo entrave
ligado ao almox arifado, enfim.
Passamos dois dias, Camila e eu, encaix otando tudo, as
roupas do Upa Lalá tinh am destinos certos conforme as
caridades dela, uns ternos q ue faz iam sentido apenas na cabeça
dele e q ue agora teriam novas vítimas. De vez em q uando ela me
contava uma h istorieta vivida em algum movelz inh o da casa, uma
visita, uma viagem em q ue tinh am comprado tal e tal coisa, daí
limpava uma lagriminh a, e ia ficando claro q ue não era saudade
do marido o q ue ela tinh a, pelo menos não completamente, ela
enterrava ali com ele a vida dela toda, dali por diante começava
apenas uma espécie de bô nus, algo q ue se insere no fim da fita
da vida apenas para fãs ou especialistas, a h istória dela
dependia da cumplicidade daq uele h omem, ou pelo menos do
seu testemunh o.
Enq uanto ela dobrava e empacotava suas trivialidades,
terminando de sepultar as ú ltimas décadas, eu provava as
roupas dela brincando de supor o q ue poderíamos faz er juntas
vestidas assim ou assim, lançava aos ares lembranças aleatórias
das nossas noitadas jovens, meninices, mas nada era capaz de
suspender seu ritual mortuário. Q uando o caminh ão partiu
levando as coisas para a minh a casa, ela fech ou a porta devagar,
limpou mais uma lagriminh a. Ajeitou o nú mero torto sobre a porta
e na verdade o q ue arrumou foi a sua lápide, ficou muito claro pra
mim, o q ue eu recebia eram seus despojos.
Até o Ofendido, o cach orro dela, q ue também naq uele dia veio
morar comigo, era só metade de um cach orro, meio enterrado
com o dono, para a Camila ele seria sempre um cach orro q ue já
perdeu um h umano e agora reinicia um arremedo de vida. Ainda
assim, mesmo q ue alguma coisa dentro dela a impedisse de
perceber, começamos ali a ser felicíssimas.
A primeira coisa q ue notamos é q ue duas coz inh as não se
somam, não faz sentido o dobro de espátulas, peneiras,
liq uidificadores, batedeiras. Cada uma tinh a suas manias com
seus próprios itens, então o desapego era difícil, poderíamos nos
tornar também duas acumuladoras, depois dos sessenta e cinco
as cavernas do cérebro parecem mais solidificadas, fica mais
doloroso aprender, mas juntas éramos garotas, pouco a pouco
aperfeiçoamos nossos métodos decisórios, a panela de pressão
q ue primeiro apitasse e fiz esse o melh or caldo de carne com
menos escapes e frustraçõ es ficaria na família, foi ela q uem
disse isso e a palavra família me deix ou num breve
encantamento, talvez fosse possível então, era capaz q ue dentro
das caves embrutecidas da cabeça septuagenária dela ainda
pudéssemos moldar algum tipo de parentesco maior q ue todo o
resto, maior q ue a minh a falta de filh os e a nossa viuvez , maior
q ue a distâ ncia até o filh o dela no Méx ico ou Novo Méx ico.
Enq uanto eu terminava de faz er o almoço ela lia um livro ou se
distraía com o croch ê ensaiado desde os trinta anos e nunca
perfeitamente dominado, a mão alternando com o cigarro, um
cach orro em cada cox a, as cox as q ue tinh am envelh ecido tão
pouco e tão devagar, umas pintas, um leve retorcer na pele, lá do
fogão eu podia vê -las repux adas sob a saia longa ch eia de
fendas por onde escapavam todos os trech os sempre
estupendos dela, as dobrinh as idosas q uase imperceptíveis
sobre os joelh os, concluí de novo q ue muito melh or do q ue ser a
mulh er bonita é ser a amiga dela, a q uem ninguém lembrará de
ex aminar como envelh eceram as cox as ou os joelh os, e q ue
pode acompanh ar com doçura os caminh os da decrepitude e
acolh er as mudanças apoiando sobre a mesa uma ch eirosa
panela flamejante q ue desperta a amiga bonita das brumas do
cigarro, livro, croch ê s, cach orros, ou das próprias cox as, para
saltitar animada até a mesa, daí lembrar de ir pegar a pimenta
q ue eu sempre esq ueço, não sou uma mulh er de pimentas.
Era isso, eu ach o, a plenitude. Foi preciso esperar tantas
décadas para q ue eu não precisasse mais me despedir da minh a
amiga toda vez após o jantar, fech ar a porta da sala, recolh er os
pratos, copos, subir as escadas q ue rangem mais a cada ano,
agora não nos despedíamos mais, não tính amos cada uma a sua
casa, conversávamos até a h ora de acender os abajures para
adormecer com as caras enfiadas dentro dos livros, ainda dava
tempo de comentar um ou outro parágrafo enq uanto o sono não
se instalava.
O Antô nio já tinh a morrido faz tempo, frágil, até a Camila
enviuvar e entender tudo q ue poderíamos ser, eu fui uma mulh er
intensamente sem família, de uma forma q ue nunca tinh a
imaginado, não sabia q ue era possível alguém tão sem lastro no
mundo, nunca me entediei, não, q ue q uem gosta da língua
portuguesa não fica entediado mesmo q ue não tenh a ninguém
com q uem ex ercitá-la, era um buraco muito além do tédio, se eu
faz ia um bolo ligava para a Camila, Pux a eu tenh o aq ui um bolo
inteiro, mas ela em algum lugar com a família do Upa Lalá,
passei a dividir as receitas em um terço, um q uarto. A minh a
solidão era concreta: precisava jogar fora meio ovo para adeq uar
um pudim ao tamanh o da minh a ex istê ncia.
Agora finalmente juntas, q uando faz ia muito sol, se eu não
estivesse com dor nas costas podíamos lavar o Ofendido e o
Perdoai no q uintal, eles corriam de nós enq uanto ch amávamos
mirando com a mangueira, Camila atacava com o sabão e
cantava ao mesmo tempo alguma canção de ninar q ue
provavelmente lh e lembrava o filh o criança, porq ue ela ficava
toda maternal esfregando o cach orro q ue tentava escapar
inabalado pela cantiga enq uanto eu obstinadamente molh ava o
outro cão.
Ex iste uma coisa preciosa entre nós duas, q ue eu tinh a muito
medo de q ue fosse embora q uando ficássemos adultas, mas na
verdade nunca h ouve um marco em q ue percebemos Hoje
somos adultas, e então ficamos velh as antes mesmo de sermos
adultas e com isso a coisa preciosa se conservou, q ue é a plena
e incansável deselegâ ncia. É primordial sermos assim
deselegantes, nunca um silê ncio delicado, cerimô nias, é
importante q ue ela entre no banh o e esq ueça a toalh a no varal e
grite Aurora traz a toalh a, e eu não escuto, então ela bota a cara
na janelinh a q uebradiça do banh eiro de onde desponta uma boca
riscada de ruguinh as preench idas de espumas para gritar, a
toalh a no varal! , e mesmo com a toalh a entregue ela sai meio
molh ada já falando de algum assunto q ue nunca pode esperar, e
os dois cach orros lambendo a aguinh a das canelas dela sempre
bastante colaborativos na deselegâ ncia e nós duas não
acertamos de cara o nome daq uele q ue q ueremos repreender e
por isso são sempre os dois nomes, Ofendido e Perdoai, q ue
gritamos em seq uê ncias alternadas, enq uanto ela traz da coz inh a
uma x ícara de ch á transbordando e um copinh o de cach aça,
eq uilibrando na prensa do dedinh o um pires com seq uilh os – este
país e o seq uilh o, uma cultura eq uivocada –, sempre traz muito
mais coisas do q ue deveriam ser carregadas ou mesmo
consumidas juntas, e fala sobre o filme dubladíssimo q ue vimos
ontem no Tela Q uente e eu respondo o comentário também num
volume impressionante porq ue é raro estarmos no mesmo
cô modo. Eu esperei décadas até q ue essa deselegâ ncia se
instalasse inteira e amorosamente na minh a casa, na nossa
casa, e ali estávamos, enfim.
V IN T EEU M

Q uem você vai ser? Camila me perguntava sempre antes de


q ualq uer brincadeira para definir nossos personagens, mas teve
essa vez em q ue eu estava distraída, tính amos ainda dez anos, a
pergunta retumbou diferente. Eu não sei, respondi. Não sabia
q uem eu viria a ser, essa é a maior durez a de q uem não tem
trinta ou q uarenta anos, e aos dez é ainda mais poderosa a
dú vida, eu não faz ia a menor ideia de q uem eu seria, duas
menininh as insignificantes num canto do pátio do colégio minutos
antes de terminar mais um recreio, a pressa em concluir algum
tipo de brincadeira, éramos completamente nada e h avia talvez o
perigo de continuarmos assim.
Normalmente a Camila era a Miss Brasil, e ainda faz ia q uestão
de botar algum reparo, tirar uma pinta, diminuir um dente. Mas
justo naq uele dia ela q uis ser a Norma Bengell e eu ri. Ela nunca
seria a Norma Bengell, tinh a sido a escolh a mais fora da
raz oabilidade. Ela não entendeu o riso, eu ex pliq uei, e ela
continuou sem compreender, retorq uiu q ue era tudo fantasia,
tentou me persuadir q ue de brincadeira a gente podia ser
q ualq uer um, mas Norma Bengell não era possível, não a
Camila, e ela se irritou e disse q ue eu então não poderia ser nem
Hebe Camargo com aq uela minh a cara feia, e não me abalei,
subitamente tive uma amostra do q ue era ser madura como
alguém q ue tem trinta ou q uarenta anos e iluminadíssima falei
q ue não tinh a nada a ver com belez a, Camila era de fato
bonitíssima, ia ser mais bonita q ue a Norma Bengell, mas ia ficar
faltando tanta coisa, eu não tinh a todas as palavras aos dez anos
então eu não disse isso q ue era o q ue eu pensava, Camila você
jamais será disruptiva.
O recreio terminou sem q ue tivéssemos sido ninguém e Camila
não falou mais comigo o resto da aula, até o mata-borrão ela
pediu de outra aluna, sendo q ue eu sabia q ue ela preferia o meu,
e depois precisou do tinteiro e os do lado não tinh am mais e ela
ficou sem escrever, normalmente eu ach aria engraçado esse
esforço de mágoa, mas naq uele dia eu tinh a trinta ou q uarenta
anos dentro daq uele corpinh o tronch o e só pensei q ue triste era
ser assim criança e não saber comunicar, porq ue na verdade o
tanto q ue Camila nunca seria Norma Bengell era um dos traços
q ue eu mais apreciava nela.
Q ue fascinante essa dança h armô nica por cima do traço ex ato
das regras, nós teríamos q uinz e, depois vinte, ou sessenta e
cinco anos e ela ainda seria esse balanço perfeito entre cálculo e
aventura, docemente encaix ada nas tradiçõ es sem angú stia
sobre outros caminh os, a Norma Bengell veria a própria ruína
antes q ue Camila ousasse q ualq uer salto para além da
demarcada felicidade e eu ficaria ali espiando, logo atrás dela, no
meu embotamento, na minh a complicação, meu amante Natalício
e outros mais, meus projetos de eternidade, pensamentos de não
ter um filh o q uando fomos feitas totalmente articuladas para isso.
Q uem você vai ser? Neste outro dia eu estava animada, Madre
Teresa de Calcutá. Dessa vez foi ela q uem riu, eu jamais seria
Madre Teresa, entendi aq uele riso, não me ofendi, nada em mim
era bom, desprovida de caridades e resguardos, Você disse q ue
não acredita em Deus, ela desafiou. Mas justamente! Hoje eu era
Madre Teresa então podia acreditar, e além de tudo eu seria de
alguma forma eterna, era uma escolh a acertadíssima.
A menina Camila bem de vez em q uando ia jogar q ueimada no
recreio com as outras e isso de início eu não compreendia, o
corre-corre, a força na bola, o suor desagradável na testa
secando devagar nas próx imas aulas. Eu sentava no canto do
pátio e assistia, não como q uem acompanh a jogadas, eu era
incapaz de acompanh ar o q ue constituía um ganh o ou uma
perda, se eu não tivesse dez anos estaria pensando q ue aq uelas
crianças eram todas incautas gastando a sua meia h ora numa
competição sem se lembrar q ue em q uestão de anos estariam
mortas, ou talvez eu já pensasse isso, sem as palavras, assistia
ao jogo como q uem vê um balé alienígena, a Camila subitamente
ch eia de agilidades, desvios, ali ela ganh ava o seu brilh o mais
intenso e se eu não tivesse apenas dez anos teria entendido q ue
era por isso, ela ex ercia ali sua arte de aplicar as regras, ao
mesmo tempo q ue articulava com louvor todo o resto, a violê ncia
do arremesso, o oblíq uo dos gestos, ali ela podia derivar-se
gloriosa, encurvar e envergar-se ch eia de ê x itos, no jogo ela
ficava completa.
Ela tinh a uma boneca com cabelos reais, gostávamos de lavar
com x ampu e ficar secando ao sol no q uintal, Camila segurava o
bebê cantando sempre a mesma canção de ninar e a boneca era
tão verdadeira q ue me dava um pavor, eu ficava também um
pouco tímida na presença grandiosa daq uela criança q ue ela
acalentava com destrez a, ela é de verdade, Aurora, eu aflita
diante do peso daq uela h ipótese, se fosse de verdade não
estaria aq ui com a gente, Camila. Mas terminava de ajeitar o
cabelo q ue era tão de verdade e emendava alguma reprimenda
ao bebê , eu não continh a a minh a angú stia, você não tem medo
de derrubar no ch ão, Camila?
Ela não tinh a medo de derrubar a filh a tão frágil no ch ão
porq ue simplesmente essas coisas não acontecem, Aurora, é
simples, é só segurar uma filh a, mas ela não entendia a
dimensão q ue uma falh a pode ter, as pessoas falh am, as mães
sobretudo, você não tem medo de ser infeliz ? Camilinh a me
olh ava consternada, a felicidade dela era tão automática, se ela
soubesse crescer nesse mesmo tino, como era fácil a felicidade
dela segurando a boneca q ue para mim já era o cadáver de um
filh o.
V IN T EED O IS

Hoje o dia está agitado, marcaram de pintar o mural dos fundos,


atrás das cadeiras empilh adas – são diversas cadeiras de
saguão de espera q ue foram perdendo pernas, braços,
propósitos, no fim somos todos um tanto acumuladores –,
ach aram então q ue era melh or o muro se tornar um peq ueno
jardim de spray verde, uma funcionária caprich ou nos girassóis à
direita, um idoso q ue era pintor fez todo o resto, inclusive galh os
q ue se estendem até causarem a impressão de q ue a serpentina
de segurança, toda encravada de espinh os, é também ela um
longo desdobramento espiralado do galh o pintado, ficaram todos
feliz es, ch egou um cantor da igreja com o seu violão e a caix a de
som com o microfone, já nem ouço as letras, acabo batendo
palma junto, muito grata pelo mural e pela festividade, o q ue diria
minh a amiga Camila se isto aq ui fosse a escola e tivéssemos dez
anos, fingiria para mim q ue não acredita em Deus e então eu não
poderia bater palmas, mas tudo bem porq ue q uando se tem dez
anos h á muito mais pela frente q ue o violão da igreja e o jardim
de tinta spray .
J usto h oje q ue os idosos tinh am todos combinado de ser
feliz es com o cancioneiro de J esus e o jardim no muro, foi
retornar o senh or J esus q ue é dependente q uímico e tinh a
sumido h á dias, e somente neste lugar é q ue se pode dar conta
de q ue h á no mundo h omens muito velh os ch amados J esus e
q ue precisam desesperadamente de drogas, então não é q ue os
velh os tenh am todos se livrado das drogas, pode ser q ue as
drogas é q ue se livraram de todos antes q ue ficassem velh os, a
não ser o Seu J esus, um sobrevivente, q ue retornou h oje em
estado lastimável, voltou na verdade sem voltar, todo ausente de
si, o h omem do violão teve de parar porq ue Cristo já não podia
com os brados do nosso J esus todo moído de fome e Brasil.
A Rosa fala q ue vai conseguir traz er os parentes dele um dia
para visita e depois esses parentes vão levá-lo daq ui, mas q uem
visitaria um J esus desse, a Rosa é esperançadíssima, não sei
como não se ex aure de tanta esperança vaz ia, o fardo q ue são
esses balõ es sobre os nossos ombros, antes de vir parar aq ui é
bem capaz q ue J esus revirou abaix o a casa, colocou todo mundo
em perigo, Rosa, se h ouvesse um jeito de as pessoas de fato se
salvarem não tinh am inventado os milagres.
Então aconteceu q ue o J esus voltou, estado alterado, é o q ue
vai constar na fich a dele, e voltou no dia errado, q ue domingo
não tem ninguém de reforço pra ajudar, estão segurando os
braços dele por trás das costas, daq ui da minh a cama os gritos
ch egam com uma reverberação estranh a, metálica, por causa
das portas e janelas com grades, ouço q ue ele q uer botar fogo
em tudo, sempre q ueremos, sempre h á alguém q ue q uer botar
fogo em tudo, deve soar como uma boa solução para o caos,
renascimentos.
O jardim de tinta spray ficou muito alegre. Tentaram faz er no
canto um cach orro, mas saiu deformado, transformaram em
pantera, depois acabaram optando por arredondar numa pedra,
de toda forma ficou muito alegre. Faz em tanta falta os meus
cach orros, o Perdoai e o Ofendido, espero mesmo q ue os
viz inh os tenh am acudido, não lembro de nenh um viz inh o, mas
em todo lugar h á viz inh os, uma pessoa q ue não tem viz inh os não
tem nada, ilh ada em si mesma, se esq uece o próprio endereço e
é levada da beira da estrada pela assistê ncia social não h á q uem
salve os cach orros no q uintal da pessoa sem viz inh os.
Eu tinh a uma viz inh a q ue já era um tanto velh a q uando eu
tinh a os meus ideais q uarenta anos, dei aulas particulares para o
neto dela q ue dava poucos frutos. A viz inh a q uase não me diz ia
nada, tinh a uma falta crô nica de energia q ue faz ia parecer q ue o
ar não ch egava do pulmão à s cordas vocais, mas ao mesmo
tempo q uando q ueria ser solícita sorria e abraçava
ex cessivamente, era uma pessoa q ue deix ava a cordialidade de
cada um confusa e desorientada. Essa viz inh a talvez pela idade
já esteja morta, certamente morta, não vai acolh er cach orros de
q uintais alh eios, q uando o neto dela me disse q ue q ueria ser
médico no futuro eu passei uns segundos buscando uma boa
ex pressão facial e depois disse q ue devemos perseguir os
nossos sonh os, preciso ir atrás desse rapaz só para ver se ele se
iluminou q uando o futuro ch egou, duvido.
O Perdoai é especialmente bagunçado, os pelos vão tomando
conta da carinh a toda e q uando tem uma brisa no q uintal ele
gosta de encarar o vento, completamente imóvel, os olh os duros
contra o ar, só as orelh as tremelicando, talvez brinq ue de estar
na janela de um carro em viagem para algum lugar melh or,
embora na verdade esteja felicíssimo ali, o sucesso q ue ele e
Ofendido fariam neste abrigo se entrassem por acaso pelo portão
à minh a procura, farejando os meus rastros!
Na verdade a Rosa deveria faz er um retrato falado dos meus
cach orros e aí sim postar na internet, as pessoas compartilh am
muito mais cach orros do q ue velh as perdidas, o q ue é
compreensível, eu mesma nunca compartilh aria uma velh a
perdida.
Minh a amiga Camila gostava de diz er q ue pegar um
cach orrinh o no colo era o ú nico consolo para um dia difícil, mas
eu realmente não entendo q ue dias dela eram difíceis, se ela
tinh a tudo q ue precisava, porq ue ela não precisava de muito, um
filh o, um marido, não tinh a o cach orro, mas daí podia vir pegar os
meus no colo, satisfeitíssima e ainda assim um nú mero
impressionante de dias difíceis, talvez o melh or seja ser
insatisfeita como eu, e então os dias não são difíceis, são apenas
incompletos.
Abraçar um cach orro, senti-lo no colo. O q uentinh o da barriga
acalenta o coração, e é possível sentir o borbulh o do estô mago
dele, abaix ando-se o rosto até a cabecinh a se sente o ch eiro de
almofada. Não permitem cach orros neste abrigo, o q ue é um
erro.
Um q ue era completo e talvez também satisfeito era o Upa
Lalá, os maridos à s vez es tê m uma singelez a de espírito. E no
meio da sua satisfação simples, parece q ue cismou de implicar
com o Antô nio, foi na q uestão do futebol de bairro, entrou no
mesmo time de várz ea e os dois deram de se desentender logo
de cara q uanto à s posiçõ es em campo, disputas, a Camila troux e
a notícia rindo mas era aq uele riso dela q ue ia ficando duro e
encrespado de irritaçõ es, começando por menosprez ar os
caprich os do Upa Lalá e terminando por diz er q ue o Antô nio bem
q ue poderia deix ar essas coisas de lado, q ue o Upa é h ipertenso,
então novamente uma risada mais forte diante do absurdo de
estarmos as duas perdendo cinco minutos a respeito do futebol
dos maridos, sem calcular a q ue ponto podem ch egar e por
q uantos anos os combates de maridos, q uem sabe um pê nalti
perdido, uma noite solitária, as calcinh as rendadas da esposa
ventando no nosso varal, as iras q ue os h omens acumulam e
ch utam em redes para gritar gol.
Q uando Antô nio me informou q ue não q ueria ter filh os eu ri.
Depois, q uando levei a sério, ch orei, mas muito menos do q ue eu
imaginava. Ch orei e argumentei muito menos do q ue eu mesma
esperava, e a cada dia em q ue continuávamos juntos ficava mais
claro, era eu q uem não q ueria um filh o. Mas ninguém saberia de
uma coisa dessas, nem mesmo o Antô nio, q ue ficou sendo uma
sombra por cima do meu ú tero, ch egávamos em casa tarde,
descíamos do fusca colorido rindo de q ualq uer besteira da noite,
porq ue a vida é assim leve para q uem não tem filh os,
entrávamos na nossa casa silenciosa e vaz ia, no instante em q ue
acendíamos a luz eu via minh a coz inh a e todos os meus objetos
e pensava como é gostosa e ridícula a vida, a minh a vida, a vida
dos q ue não se desdobram em novos seres q ue se desdobrarão
em outros.
Q uando eu era uma mulh er de trinta e cinco ou q uarenta anos
prestes a definitivamente não ter tido filh os o q ue eu mais
imaginava em segredo é a velh a q ue eu seria, e então eu diz ia
q ue tudo bem, eu pelo menos estaria grata pela vida q ue tive,
sem tragédias, não ter um filh o é praticamente certificar-se da
ausê ncia de tragédias. Ch eguei, a velh a q ue eu seria, e não h á
graça nenh uma na vida q ue eu tive, o despropósito de uma velh a
q ue não teve filh os é o da ponta de um cadarço q ue arrasta no
ch ão, melh or cortar fora uns centímetros, q ue não faz diferença
nenh uma.
Essa é uma das crueldades do mundo, você não se torna uma
mulh er sem filh os, você é para sempre algum tipo de mãe, porém
de filh o nenh um, a mãe q ue não deix ou um filh o ex istir.
J esus continua gritando lá no pátio e ele teve inú meros filh os,
está bem longe da ponta do cadarço. Não vou diz er isso pra
Rosa, mas à s vez es eu sinto q ue é capaz q ue ela não encontre
minh a amiga Camila, não encontre a minh a casa e os meus
cach orros, e eu termine de envelh ecer neste lugar, porq ue é
apenas isso q ue me resta, terminar de envelh ecer.
V IN T EET R Ê S

Os filh os também servem para isso, escolh er o ú nico caminh o


q ue não alertamos. Não sei diz er onde é o tú mulo da minh a filh a,
o q ue pode restar de uma mãe q ue não lembra onde deix ou o
caix ão da filh a.
Uma dor pontuda q ue não encontro dentro do meu próprio
corpo, um membro fantasma fisgando no meio da noite sendo
q ue eu tenh o todos os membros, estou mal-assombrada.
Também não sei onde está a tumba da minh a mãe, mas mães
servem mesmo para serem superadas um dia, já tiveram a graça
maior da vida q ue é o filh o e a bê nção de serem enterradas por
ele, a boa sorte de ser enterrada por um filh o, q ue grande
porcaria a vida se isso é o melh or q ue podemos esperar do
destino, sermos enterradas por um filh o e não o contrário.
Talvez tenh amos um mausoléu da família, família sendo minh a
mãe falecida h á milh ares de anos lá soz inh a até ch egar o esq uife
da minh a filh a no ex ato local em q ue deveria ter entrado o meu, e
q uem sabe mandei cavar mais um pouco para ainda ter espaço
pra mim, então tenh o duas casas q ue não sei onde estão, numa
delas minh a mãe e minh a filh a estariam me esperando se eu
com dez anos não tivesse parado de acreditar em Deus e
q uando não se acredita em Deus sobra apenas a morte para
crer.
Sei q ue tem um tampo pintado de rosinh a onde me deitei numa
tarde ensolarada, jovem ainda e já arruinada, ch amei pela minh a
mãe, foi a primeira vez q ue precisei dela desde sua morte, mãe
por favor me ajuda, não sei sobreviver a isso, ninguém me
ensinou.
Tinh a mais alguém comigo, parece, alguém deitado ao meu
lado sobre o tampo rosa do mausoléu da minh a família, minh a
família inteira para dentro da tumba, menos eu, alguém do meu
lado e não era o Antô nio q ue nunca mais deitou ao meu lado em
lugar algum, mas pode ter sido um fantasma, eu assombrada.
Neste dia eu tinh a um vinh o em h omenagem à minh a filh a q ue
não podia mais beber, lembro q ue verti errado a taça e derrubei
na roupa q ue tudo bem era preta de luto e a pessoa q ue estava
comigo se abalou com o gesto, deve ter me ach ado desnorteada
e eu dei risada, minh a primeira risada, justo em cima do tampo
da minh a filh a, a pessoa era uma amiga, não, talvez fossem o
Perdoai e o Ofendido deitados ao sol na sua maneira de cach orro
entender e não entender a morte, como nós.
Venh a ver o pô r do sol, eu disse, e a pessoa q ue estava ao
meu lado e q ue agora sei q ue certamente não era um cach orro
deix ou cair uma lágrima, porq ue esse era um conto q ue
amávamos em comum com a minh a filh a Camila, e ela agora
irremediavelmente enterrada, o conto perdia todo o sentido.
Em cima do ataú de da minh a filh a naq uela tarde de sol tinh a,
sim, alguém comigo, porq ue a lembrança não é da solidão mais
profunda q ue alguém pode ter, é outro tipo, é uma solidão
apavorada, porq ue era evidente q ue aq uela pessoa jamais
poderia estar comigo tanto tempo q uanto eu precisaria, ninguém
poderia, ia ch egar o momento em q ue ela sairia do meu lado
para tocar por um segundo a própria vida, e eu não saberia onde
enfiar a minh a.
A menina Camila tinh a começado a morrer antes, eu não tinh a
entendido, os amigos não souberam me diz er se o problema foi
justamente falta de ex periê ncia, ou se mesmo com só vinte e
sete anos ela já tinh a ch egado no fundo do fundo dessas coisas
q ue q uem olh a de fora só consegue ch amar de Essas coisas.
Ela tinh a largado a terceira tentativa de faculdade e pra sair de
uma vez debaix o dos meus olh os arrumou um subemprego
q ualq uer numa videolocadora de dia e numa boate de noite,
começou também a cantar nessa boate, uma espécie peculiar de
casa noturna, os amigos dela não sabiam me ex plicar q uase
nada.
Cantava bonito, a minh a filh a, mas q uase não cantava em
casa, tinh a vergonh a de mim, diz ia q ue eu era muito absoluta. Eu
ri e disse q ue esse era um uso inadeq uado das palavras, porq ue
não cabe modulação em Absoluta, q ue já tem um significado
total, não se diz muito ou pouco absoluta, e ela continuou me
olh ando, riu para si, algum desprez o no discreto balanço de
incredulidade no rosto, e reafirmou devagar, tão absoluta, mãe.
Fugiu da mãe absoluta para outros absolutismos absoluts
absintos, eu poderia prever acidentes de carro, assaltos, mas eu
era tão absoluta q ue não imaginava a h ipótese de a minh a filh a
morrer por decisõ es ruins. A pessoa q ue estava comigo no
cemitério naq uela tarde em algum momento pegou minh a mão e
apertou e aq uele aperto agravou minh a solidão, porq ue eu senti
o tempo todo q ue aq uela mão cedo ou tarde ia me soltar, não
consegui apreciar os poucos segundos daq uela mão na minh a
mão, pensando q ue insuportável seria a minh a própria mão em
todos os outros instantes em q ue não h ouvesse aq uele aperto.
Os amigos da minh a filh a primeiro não falaram nada, depois
falaram todos ao mesmo tempo, duas meninas dispararam a
ch orar, contradiz iam uns aos outros, foi uma grande mistura, mas
ninguém sabe ex plicar como ela não foi vista no estado em q ue
estava, como ninguém fez nada, como é q ue pode ser normal
deix ar alguém dormir empilh ado sobre um sofá escondido
embaix o de uma mesa, tinh a um dos amigos, o menorz inh o, com
cara de alguém q ue poderia ter sido meu próprio amigo, foi ele
q ue sentou do lado dela no fim da madrugada, foi diz er uma
coisa engraçada e faz er um carinh o na testa – ele inclusive
relatou q ual era a coisa engraçada q ue ele disse pra ela q uando
ela já estava morta, e de todo jeito não tinh a graça nenh uma – e
então q uando tocou no cabelo e no rosto dela sentiu um arrepio
impossível, esses jovens pensavam q ue sabiam tanto e não
sabiam nada de morte, ach am q ue tê m a vida toda, é sempre a
h ora da nossa morte.
Foi uma mistura de coisas, cocaína e ecstasy , e muito álcool, o
legista depois me ex plicou, não era o plantão do Antô nio no
Instituto Médico Legal e não avisei da morte da nossa filh a,
drogas depressoras agem de um jeito e drogas estimulantes de
outro, foi me ex plicando como um pedreiro ex plicaria os
problemas de uma obra feita na minh a casa e em seguida
ofertaria soluçõ es, mas as soluçõ es não vinh am, ele aventou a
possibilidade de ter sido ex cesso de água, causou um
desbalanço na bomba de sódio e potássio, e eu pensando na
minh a menina diligente totalmente drogada porém sem deix ar de
se h idratar, cinco, seis, sete litros.
Como é possível q ue isso tenh a acontecido, a morte, a
ex plicação dos amigos, a ex plicação do legista, por q ue é q ue
você s estão tentando me ex plicar a morte da minh a filh a, meu
Deus, por mais q ue eu tenh a me adiantado a todas as possíveis
mortes dela, alertando cada perigo, a minh a menininh a q uerendo
andar de bicicleta, patinete, a carinh a amuada diante das minh as
proteçõ es, por mais q ue eu tenh a encarado a possibilidade dessa
tragédia, eu não poderia ter alcançado o tamanh o disso.
Naq uela tarde de sol em cima do tampo rosa da tumba da
minh a filh a a pessoa q ue estava comigo e q ue nunca poderia
estar suficientemente comigo me ouviu refaz er cada h ipótese
daq uela noite, como seria possível num local com tantas pessoas
uma delas ser deix ada para morrer, se eu pudesse saber q uem
foi q ue ofereceu uma dose a mais, o ex cesso fatal, eu ach o q ue
eu matava, não diria nada, ch egaria matando e tch au.
A Rosa falou q ue q uando me ach aram eu estava transtornada
na beira da estrada, manca e suada, segurando uma coleira
vaz ia. Eu perguntava muito cadê Camila, Devolvam a Camila, e
por uns momentos ach aram q ue procurava um cach orro, mas eu
segurava a coleira sem percebê -la, feito um resto de q ualq uer
coisa a q ue a gente se apega q uando falta tudo, e eu já não me
lembro também desse dia, na beira da estrada, q uando deveria
ter alguém ao lado, um aperto na minh a mão, e não tinh a.
V IN T EEQ U A T R O

Rosa inventou uma atividade q ue talvez me mantenh a entretida


pela próx ima década. Ch egou suada, ch eia de papeis de outros
casos, fico enciumadíssima com os papéis de outros casos, daí
ela fala q ue sou a preferida. Como eu andei diz endo q ue a tumba
da minh a filh a tem uma tampa rosa ela me sentou aq ui diante do
computador da secretaria e passeou comigo na tela por dois
cemitérios da cidade, e anotou os nomes de outros nas cidades
próx imas da estrada onde me ach aram, devo olh ar todos até
sentir alguma coisa.
Eu sinto alguma coisa em cada mausoléu, cada cruz inh a
montada em cima dos mortos. Os cemitérios ch iq ues tê m árvores
majestosas, dá vontade de andar nessas sombras, o sapato
estalando nos gravetos. A pessoa vai clicando com a seta
adiante nas ruelas, avança pelos becos, dá para focar nos nomes
das famílias, estátuas, monumentos, de repente dobrei uma
esq uina e dei com dois vira-latas fora de foco, q uis me aprox imar
e eles sumiram, tentei voltar e nunca mais ach ei o instante
fotográfico em q ue estavam ali contentes ao sol acompanh ando a
câ mera do Google q ue invadiu minuciosamente o luto dos
h umanos, o Google e os cach orros não entendendo de morte.
Senti q ue eram Perdoai e Ofendido, eu vi, a cara embaralh ada,
o rabo incontido. O sol estava tão forte no dia em q ue o Google
veio neste cemitério q ue em algumas tumbas não consigo ler as
inscriçõ es metálicas, as pessoas morrem em tão variadas idades,
como podem acreditar num Deus tão sórdido q ue foi nos
conceder a consciê ncia apenas para ocultar-nos a data da nossa
morte, um Deus aflitivo e sádico só poderia ter saído da nossa
própria invenção.
Neste outro também não h á um tampo rosa q ue me lembre o
tú mulo da minh a filh a, a Rosa q uer q ue eu de repente me lembre
de tudo e ch ore, então ela vai aprox imar a tela até ler o nome da
minh a filh a, o meu sobrenome, daí pronto, fim. Perto do
campanário dou com um grupo de pessoas, já aprendi q ue não
posso seguir caminh ando senão elas somem, apenas me
aprox imo no z oom, amei essa tecnologia, muito mais prático para
visitar o tú mulo do seu parente. O grupo de pessoas está muito
descontraído, ch inelos, bermudas, dois estão sentados num
banco, parecem fumar. É possível q ue estejam ali como numa
tarde num parq ue, um parq ue revestido de mortos, e tudo bem, é
isso também q ue somos, um restinh o incalculável de vida,
revestido dos nossos mortos, e dos mortos dos outros, h oje estão
vivendo apenas sete por cento do total de pessoas q ue já
viveram neste planeta, eu li, passamos tão mais tempo mortos do
q ue vivos.
J á não lembro a tumba da minh a filh a e da minh a mãe. Diz a
Rosa q ue eu falei q ue era de concreto, pintado de rosa, mas não
feio como pode estar soando, era um rosa gentil, de jardim,
deitava-se sobre o tampo como se deita num jardim, uma árvore
em cima, a sombra oscilando na brisa.
Alguns mausoléus são tão grandes e com telh adinh os,
parecem casas, dá para morar dentro, Venh a ver o pô r do sol.
Não tinh a como a Ly gia usar o Google para passear no cemitério
e escrever Venh a ver o pô r do sol, ela já não era jovem q uando
publicou isto, deve ter pisado ela mesma, não jovem, num
cemitério real, “ subiu sem pressa a tortuosa ladeira” , reparou
num jaz igo aberto, as grades enferrujadas, e então imaginou q ue
tudo isso estava abandonado, e pronto, a mente fez o resto de
trabalh o sujo.
Q uando passei esse conto aos meus alunos do ensino médio
eles me ch amaram de sórdida, nas palavras deles, q ue são
sempre menores, mas sórdido, eu já disse, é o Deus de você s,
q ue deix a q ue tenh am q uinz e anos e não saibam mensurar o
ridículo de tempo q ue pode faltar até a morte. Rosa, esses
cemitérios aq ui são ch iq ues demais, eu sou professora, minh a
mãe trabalh ava numa fábrica de papel h igiê nico e vendia bolos,
tudo bem q ue era mais ou menos gerente de um mais ou menos
subsetor, tudo bem q ue o Antô nio tinh a um emprego
interessante, digamos assim também mais para sórdido do q ue
interessante, mas daí isso é com ele.
A Rosa digita o nome de um outro cemitério, sempre tem um
Cemitério da Saudade, como se os outros não fossem. Mas esse
o Google não foi visitar, fiq uei vendo as fotos q ue as pessoas
colocaram, nada lembra a minh a filh a, muitos tampos abertos
direto sobre a terra, soltos, por isso o Google não foi, era capaz
de fotografar algum morto. Um dos vídeos q ue colocaram lá são
aves pretas barulh entíssimas gritando de uma árvore para outra,
nunca ouvi esse som sobre o tú mulo da minh a filh a, não é lá.
Noto q ue o Google não foi em q uase nenh um cemitério, fico
vendo as fotos q ue os visitantes tiram e botam lá, o q ue já é uma
coisa curiosa de se pensar, pessoas q ue fotografam tumbas em
cemitérios h umildes e sobem as fotos e vídeos para o Google,
certamente não era a ideia q ue eu faz ia de futuro. Percebo
também q ue isso foi uma espécie de placebo, a Rosa q ueria q ue
eu ficasse vendo esses cemitérios ach ando q ue podiam ser o
meu, o jaz igo da minh a peq uena família, até produz ir uma
lembrança precisa, gritar, ela daria z oom, e então me h umilh aria
com o nome de alguma socialite dos anos oitenta.
No fim estou visitando todos os cemitérios do Google em
outros países, lindíssimos, estou ainda mais lú gubre. O jaz igo da
minh a peq uena família deve ser gostoso de deitar em cima
porq ue minh a filh a Camila era muito apegada nisso de deitar no
ch ão, eu não podia distrair um segundo e ela deitada na areia
imunda dos parq uinh os, rolava no asfalto, gostava de se enfiar
nesses dutos gigantes q ue eles faz em para crianças e mais
parecem um encanamento abandonado atafulh ado de penas e
teias de aranh a, eu avisei mil vez es, mas não se avisa uma
criança, a uma criança precisamos apavorar, devia ter descrito
em detalh es tudo q ue podia acontecer, é esse o papel de uma
mãe e eu não cumpri, era também o papel da minh a e ela nunca
cumpriu, mas eu dei muita sorte, aprendi logo cedo a tomar
minh as próprias precauçõ es.
No começo o fungo do pombo parecia uma gripe, foi ficando
mais forte, a menina febril desmilinguida em febre, um
formigamento, a maldição sobe logo para o cérebro e os médicos
tê m um jeito peculiar de consolar, q ue é a ex plicação, ex plicaram
a morte da minh a filh a, tudo branco, o barulh o oceâ nico do eco
h ospitalar, eu me afogava na ciê ncia daq uela morte, a inalação
do fungo pode ter sido em q ualq uer lugar, q ue não era pra eu me
culpar, q uando se escuta uma frase dessas se instala de
imediato a mais irrefragável das culpas, eu deveria ter respirado
primeiro todo o ar q ue passaria por ela, filtrado cada partícula,
não posso ver um pombo, q uero gritar, pareço maluca, uma velh a
maluca dos pombos só q ue ao contrário.
Alguém passeia pelo cemitério onde está a minh a filh a e olh a a
sua foto e as datas de começo e fim da sua ex istê ncia e conclui
q ue a vida é absurda, esse visitante pensa numa h ipotética
versão de mim, na desgraça q ue devo ter me tornado desde q ue
enterrei a menina, imagina se o caix ão q ue tem dentro é de um
tamanh o menor, e é, durante vários meses precisei de muito
esforço para não pensar na Camila literalmente embaix o da terra,
porq ue isso era pensar num cadáver, minh a filh a era cada vez
mais massa pastosa e ch eia de larvas, é por isso q ue teria sido
mais elegante cremar, mas fiq uei ach ando q ue seria muito
solitário, isso de voltar para casa com um pote, cada vez q ue me
ocorria o seu possível estado de carnes eu agarrava a ú ltima foto
pra gravar na mente o sorriso, o vestido amarelo, a pele inteira e
viçosa. Eu ansiava q ue o tempo corresse logo e eu tivesse direito
à palavra ossada. Ossada seria minh a nova forma de paz .
V I N T E E CI N CO

A minh a filh a Camila começou a ir mal na escola no terceiro


colegial, justamente em Portuguê s, além da Física, q ue é mais
esperado, mas o Portuguê s foi para afrontar. Oração subordinada
substantiva subjetiva, no Subordinada ela já não me ouvia.
Ch eguei a faz er um bolo, servi no meio das apostilas, q uentinh o,
era de cenoura, o brigadeiro por cima, embora ela não devesse
comer ch ocolate, porq ue além do regime tinh a a coisa com as
espinh as, a cara toda empelotada, e q uanto mais antiestética
ficava aq uela adolescê ncia, mais ela me destratava. E ao
portuguê s.
No meio de uma correção de uns testes de gramática numa
tarde eu troux e o bolo e ela pegou com a mão o pedaço e jogou
no ch ão. Pensei em pegar do ch ão e enfiar na boca dela, tudo
esfarelando sobre os cadernos, minh a filh a engasgando ardida
das migalh as na laringe, o brigadeiro no nariz , no olh o, pra tirar a
minh a mão da boca ela dá socos na minh a barriga, no meio disso
engole muito bolo com pelo de cach orro, porq ue a cobertura caiu
virada para o ch ão, os cach orros latindo.
Q uando enfim apaz iguássemos, ofegantes, eu subiria as
escadas, impávida, e sairia do q uarto somente no dia seguinte
para trabalh ar na mesma escola em q ue ela reprova
sistematicamente na minh a matéria.
Mas não me movi, os cach orros comeram o bolo
imediatamente feito um regalo frugal, então subi as escadas em
silê ncio, não triunfante como imaginei, os sons das tábuas dos
degraus marcando o compasso da minh a desistê ncia, eu subia
bem devagar para comunicar Eu desisto de você , como q uem
desiste da Gramática, do bolo de cenoura, do casamento.
Eu tinh a receio de q ue q uando a minh a filh a fosse moça eu
sofresse de inveja da sua juventude, olh aria as pernas animadas
no sh ort do uniforme, as conversas com amigas, o futuro, e ia me
doer a minh a velh ice. E agora ela estava ali, sendo q ualq uer
coisa q ue ninguém almejaria, empolada de acne, incompetente
nos estudos, ch egava o sábado e ela não tinh a com q uem sair.
Eu q ueria q ue ela fosse feliz pelo menos ao ponto de me dar
vontade de ser a minh a filh a.
Ela q ueria muitíssimo a viagem de formatura, q ue além de me
custar um parcelamento infinito, era um panteão de álcool,
drogas, mú sica ruim, oportunidade para q ue ela fosse h umilh ada
por garotas bonitas e jovens estragados. Não é pra esse tipo de
viagem q ue a gente põ e filh o no mundo.
De noite depois de terminar de estudar ou de encarar o livro
sem nenh um resultado, ela subiu bem mais depressa q ue eu,
ouvi os degraus, ficou em silê ncio uns instantes diante da minh a
porta, depois gritou q ue eu faço bolo pra depois ficar falando q ue
ela engordou. Ninguém tem um filh o supondo precisamente a
adolescê ncia.
Por q ue ela q ueria tanto ir? As pessoas iam vê -la de biq uíni.
Fotos oficiais q ue depois iam q uerer me faz er comprar, diversas
meninas iguais, peq uenos sh orts, a minh a filh a na ponta do pé ao
fundo tentando aparecer, o sorriso atrás da aba do boné de
alguém.
O ano foi escalonando o imbróglio, eu não sabia o q ue diz er
q uando servia a janta, ficávamos em silê ncio, ela esq uecia de
propósito os panfletos da viagem na mesa, fez o h omem da
agê ncia me ligar, ele me ch amava de Mãe em tom de marketing,
tanto faz a mãe, são todas iguais, só precisam ficar seguras.
Eu q ueria q ue eles devolvessem minh a filh a, q ue ela me
olh asse, falasse comigo, acertasse a lição de Portuguê s,
escolh esse uma profissão, lembrasse o vestibular, q ueria q ue
nunca mais eles inventassem viagem nenh uma para os jovens se
destruírem coletivamente no ano mais ch eio de
responsabilidades, falei tudo isso e muito mais para o agente
enq uanto ouvia Camila ch orar na ex tensão, e uma h ora ela não
se conteve e começou a gritar comigo na linh a telefô nica, o
h omem tentou conciliar, disse q ue não era jeito de falar com a
mãe, e eu também não gostei de ele educar a minh a filh a,
falamos os trê s muito ao mesmo tempo, até ele bater o ganch o.
Foi assim q ue eu desisti da Camila. Fui ex aurida. Eu q ueria
q ue ela voltasse a falar comigo, passasse um dia sem ch orar, eu
simplesmente entreguei minh a filh a para a viagem de formatura
do colégio. Fiz uma lista dos perigos todos, ela teve de
memoriz ar mais fielmente isso do q ue todo o conteú do do
vestibular, drogas, bebida, mar à noite, mar de dia, bebidas de
estranh os, porta do q uarto destrancada, os perigos são notórios
e rendem um pergaminh o, o próprio avião já era um risco
desmesurado.
Se eu tivesse levantado o bolo do ch ão e enfiado na boca dela,
será q ue ela teria ido nessa viagem, eu fico pensando, ou
teríamos brigado tão terminantemente q ue não h averia mais o
assunto. Apesar de todos os itens de cuidado da lista, faltou um.
Dentro da minh a cabeça se instaurou um trem barulh ento q ue
volta insistentemente em alta velocidade para o mesmo ponto,
q ue é o instante h ipotético em q ue eu adiciono à lista de perigos
esse q ue faltou, e então ela toma cuidado.
O q ue a Camila estava faz endo soz inh a no coq ueiral.
Procurava detalh es da morte da Camila nas reportagens. Só
foram encontrar o corpo no dia seguinte, nenh uma reportagem
ex plicava por q ue no meio de uma viagem em grupo ela estava
soz inh a num ex tenso coq ueiral afastado da praia, trilh a para
outra praia, talvez , não ex plicam, por q ue ninguém q uis ir com
ela, onde estavam todos os outros.
Fiq uei pensando será q ue a minh a filh a estava ch orando
q uando um coco caiu dez enas de metros até ex plodir na cabeça
dela, será q ue ela entendeu o golpe, por uns segundos ach ou
q ue foi assassinada? Isso eu nunca vou saber, se a minh a filh a
estava ch orando enq uanto caminh ava soz inh a no coq ueiral no
meio da viagem de formatura.
V I N T E E SEI S

A Rosa me perguntou do q ue eu mais sinto falta fora deste lugar


e eu disse q ue é do ch eiro de rodelas de cebola caramelando
numa panela com manteiga. Também o ch eiro do vinh o branco
fervendo em cima dessa cebola até evaporar e se instalar na
casa inteira.
É um ch eiro q ue me lembra da minh a amiga Camila, nós
coz inh ávamos muito, sempre em desalinh o, até no tempo da
cebola discordávamos, ela q ueria deix ar parado até q uase
q ueimar e eu mex ia antes. Eu q ue cortava as cebolas, sempre,
porq ue q uando íamos começar ela q ueria antes fumar um cigarro
então eu ia faz endo e o cigarro não terminava nunca.
Daí ela levantava serelepe na h ora mais gostosa q ue era jogar
a manteiga e deitar as cebolas por cima, o sal, uma pitadinh a de
açú car, à s vez es tinh a mascavo, o ch eiro, Rosa, o ch eiro q ue
isso ficava! Nós duas até nos olh ávamos em silê ncio,
abençoadas por uma amiz ade q ue podia ter esse ch eiro.
Q uando não estávamos de dieta ela pedia pra eu faz er a torta,
e pedia fingindo pra mim q ue não sabia faz er, como se fosse uma
torta toda minh a, especial, mas era só um truq ue pra ficar
fumando enq uanto eu fincava os dedos nos cubos de manteiga e
farinh a até virar uma bola imensa e dura q ue eu tinh a de abrir em
fú ria com o rolo de macarrão até cobrir a assadeira inteira, daí as
cebolas carameladas, o creme de leite, os ovos, e ela levantava
pra palpitar na q uantidade de noz -moscada, discordávamos.
E então comíamos com alguma tristez a porq ue sempre
deveríamos estar de dieta, principalmente eu. Não,
principalmente ela q ue era bonita então as pessoas tê m mais
ex pectativa de q ue consiga se manter magra, isto é, sem tortas.
Uma vida inteira assim.
Não tem como uma torta ser melh or q ue aq uela, se a Rosa me
troux er q uarenta cebolas, dez manteigas, farinh a, muito creme de
leite fresco, uns vinte ovos, noz -moscada e um bom q ueijo, eu
passo um domingo faz endo as tortas pra esse abrigo inteiro, mas
precisa de muitas assadeiras redondas também, e um forno bom,
o forno daq ui está tão esbeiçado, mas não tem frescura, só não
vai gratinar tão bem aq ui, Rosa, será q ue não dá pra conseguir?
Ninguém aq ui neste lugar imagina o q ue é uma torta de cebola
assim, essas pessoas comeram tão mal a vida inteira. Pelo
menos elas se lembram da vida inteira.
A minh a amiga Camila estava grávida e eu olh ava a barriga
imensa dela atrapalh ando o caminh o da pia, a barriga me faz ia
sentir insuportavelmente não grávida, e ao mesmo tempo era um
alívio indescritível, já imaginava aq ueles dois braços, uma das
mãos fumando porq ue naq uela época as grávidas podiam dez
cigarros por dia, e a outra mão segurando a cach acinh a, q ue
também podia, já imaginava os dois braços terminantemente
ocupados com um bebê difícil de pousar em q ualq uer canto, os
ch oros, a fragilidade da moleira, a figura q ue ela seria, ela inteira
essa mãe doméstica, ainda mais atada ao Upa Lalá q ue tudo
bem era h omem h onesto, era isso, um h omem h onesto, h oje em
dia isso já é tanto, ela satisfeitíssima com o bebê e o h omem
h onesto, ainda assim muitos dias difíceis, eu faz ia a torta.
Era bom o apoio do Antô nio para eu estar livre disso. E era
bom também a barriga da Camila na minh a coz inh a prestes a ser
um bebê , eu já educava tantas crianças como professora, essa
eu poderia educar especialmente, intimamente, mas nunca do
meu jeito, se já discordávamos da noz -moscada. Mas tudo bem,
ajudaria a educar do jeito da Camila, uma criança obediente e
discreta, com peq uenas h eresias.
Mas teria os perigos, a Camila nunca estava suficientemente
alerta, esse papel seria irresistível pra mim. No fim a criança
sobreviveu, depois virou h omem e se mudou pro Méx ico. Ou era
Novo Méx ico.
Depois da despedida no aeroporto ela veio pra minh a casa e
ch orou tanto, eu fiz a torta. Ela ch orava sem consolo e eu só
sabia diz er q ue não era tão ruim assim, eu nem tinh a filh o, ela
tinh a um no Méx ico ou Novo Méx ico, na prática as duas não
conviveriam com filh o nenh um, e tudo bem.
No dia do parto eu fiq uei do lado do Upa Lalá, à s vez es ele
levantava a cara do ch ão e me olh ava e a gente sorria
desconcertado, como pode ser normal isso, aguardar um
nascimento, um começo de vida, sabendo q ue as vidas acabam,
e q ue a partir daq uele dia se inaugura o mais aniq uilador dos
perigos, q ue é aq uela morte, o tempo todo pode ser a morte, os
sapatinh os do futuro pai agitados no ch ão, ele tinh a os pés
peq uenos, estava sempre de sapatos, nunca tê nis, um h omem
h onesto, várias vez es cruz amos nossos olh ares e talvez nos
q uestionássemos como seria agora essa família, com essa
criança q ue para mim era alguma espécie de filh o meu ou no
mínimo sobrinh o, sendo q ue para o Upa Lalá eu era no máx imo
um incô modo, uma parasita, sorriu de novo, nervoso, não
pensava no perigo da morte dessa criança, h á pais q ue nunca
pensam, o q ue angustiava era justamente a vida, e é angustiante
mesmo, dali em diante não seriam mais as mesmas pessoas
nem teriam a mesma fluê ncia e liberdade nos braços, é tão
evidente o fastio nos braços dos q ue tê m filh os, se não estão
segurando o bebê estão segurando sua parafernália, será q ue
era nisso q ue pensava, como seria possível à Camila ao mesmo
tempo fumar e ter um filh o, em como faria para segurar o resto
da vida sempre alguma coisa nos braços.
Ajudei a entrar com o bebê no carro, nem isso sabíamos faz er,
não lembro se era o fusca colorido do Antô nio ou o carro do Upa
Lalá, q ue absurdo era entrar no carro com um bebê daq uele
tamanh o, a Camilinh a q ue segurava a boneca com tanta
convicção agora tremia inteira diante da realidade de voltar com
um bebê pra casa, talvez as mulh eres entrem para o parto sem
estarem tão conscientes disso, a materialidade de voltar com um
bebê pra casa.
Daí em diante não lembro mais nada, não sei q ue espécie de
tia me deix aram ser a esse menino, não sei do menino, sei do
Méx ico, ou Novo Méx ico, as tortas de cebola. A Rosa vai bater
tudo isso com o q ue já tem no caderninh o, ela não me deix a ver
o caderninh o, só sei q ue h á vários círculos em volta de fusca, ela
diz q ue é a coisa mais firme e resistente do relato, eu dou risada,
mas não ach o tanta graça.
V I N T E E SET E

Rosa diz q ue eu estava descalça mancando q uase na beira da


estrada sem nenh um documento ou telefone, só uma coleira
vaz ia na mão, gritando Q uero a Camila de volta. Eu posso ter
ch amado minh a cach orra de Camila e vai ver ela sumiu e eu
enlouq ueci de vez com essa ú ltima perda.
Não me lembro de nenh uma cadelinh a Camila, só sei do
Perdoai e do Ofendido, q ue os viz inh os os tenh am, Perdoai
morre de medo de fogos e no Revéillon isso fica enlouq uecedor.
Gosto de deitar uma h ora olh ando para o teto antes do h orário da
Rosa, já sei de cor cada falh a na pintura, poderia brincar de ver
formas como se faz com nuvens. É boa essa h ora pra coletar
tudo q ue lembro no dia, à s vez es não é muito, tem dias q ue só
consigo mesmo pensar em tudo q ue já sei da infâ ncia, a minh a
amiga Camila foi a minh a infâ ncia, q uando é q ue nós duas
disputando personagens no recreio – Q uem você vai ser? –
poderíamos supor q ue eu terminaria em surto poético, desfeita
por dentro, na beira da estrada, senh ora, q ual seu nome? Q ual
seu endereço? Aurora.
Na casa dela eu não gostava de ir porq ue ela ficava q uieta e
dura diante da mãe, não dava pra brincar direito de nada, e na
minh a também era esq uisito porq ue ela percebia q ue a minh a
mãe não estava nem aí, à s vez es nem tinh a janta, e eu ficava
constrangida de acender o fogo e coz inh ar ovo, mas ela ach ava
o máx imo, o olh inh o brilh ando diante da minh a liberdade.
O ruim também de levar a Camila em casa é q ue depois minh a
mãe não parava de falar o q uanto ela era bonita, porq ue isso era
a coisa mais importante do mundo, de mim ela não falava nada,
mandava pentear meu cabelo, o q ue q ueria diz er alisar com a
escova até parecer uma peruca eletriz ada, o pior q ue pode h aver
é uma mãe q ue não entende como funciona o cabelo da filh a, daí
em diante se instalam todos os demais desentendimentos.
Depois eu comecei a ach ar gostoso, sim, eu sou amiga da
menina bonita, ela me escolh eu, era uma forma de me elogiarem,
ela sempre apresentável em tudo, dócil, gentilez as,
condescendê ncias, autocomiseração, o guardanapo no colo,
minh a mãe caiu na gargalh ada, o copinh o de cach aça ao lado, a
Camilinh a discreta estendendo o guardanapo barato de papel
para ajeitar no colo feito uma dama, sabia q ue não acredito em
Deus?
No carnaval da escola jogavam serpentina e confete na
q uadra, a mesma q uadra em q ue à s vez es ela atingia sua plena
desenvoltura jogando q ueimada, e as crianças podiam ir
fantasiadas. Eu sempre tinh a engordado um pouco mais e não
cabia em nenh um adereço do ano anterior, no máx imo a tiara,
então íamos improvisando e não sabia ex plicar a ninguém do q ue
eu estava vestida, até q ue respondi: sou o Carnaval. Tomaram
distâ ncia, ex aminaram meu maiô listrado, uma saia vermelh a de
tules q ue minh a mãe ajudou a costurar – essa era a melh or parte
do carnaval, embora ela criticasse minh a incapacidade de seguir
cabendo nas roupas, ficava bordando comigo, na barra iam
lantejoulas e lantejoula é uma coisa q ue demora –, a Rosa gosta
muito q uando eu falo da minh a mãe, ach o q ue ela está cursando
psicologia, porq ue não bastava ser uma h eroína desta cidade
dando conta dos filh os vivos e do filh o morto e de todos os órfãos
do subdistrito e dos velh os órfãos também, além de tudo ela
consegue faz er outra faculdade, a faculdade cara q ue ela deu um
jeito de financiar não sei onde, ainda assim não tem um olh ar
endividado, os golinh os calculados de água a cada dois minutos,
eu vou sentir mais falta da Rosa do q ue sinto agora da minh a
vida.
A Rosa não gosta de me dar informaçõ es técnicas, mas à s
vez es escapa, é mais forte do q ue ela, e depois reclama q ue meu
transtorno de ordem poética pega as palavras dela e transforma
em melancolia. Hoje ela disse q ue um senh or q ue eu q uase não
vejo porq ue de fato sai pouco dos q uartos está atingindo o grau
III na classificação de dependê ncia e vão precisar lutar para
ach ar vaga em outro lugar para ele, q ue aq ui não tem enfermeiro
suficiente, agora me digam como é q ue uma velh a escuta o
conceito Grau III de Dependê ncia e não transforma
automaticamente em melancolia.
Outro dia também ouvi a Rosa no telefone falando a palavra
desfamiliariz ação, ela ex plicou q ue usou no bom sentido, não sei
o q ue é e não vou nem diz er o q ue eu penso dessa palavra.
Na q uadra da escola ex aminaram minh a fantasia, as antenas
feitas de uma tiara com molas e nas pontas bolas de outra cor,
serpentinas trançadas nos meus ombros, e concluíram q ue de
fato eu poderia ser o Carnaval, ou uma abelh a venenosa. A
Camila resplandecia na fantasia de h avaiana, a barriga esbelta
de fora, o carnaval logo ch ega aq ui no abrigo e é capaz q ue
coloq uem nos idosos aq ueles colares h avaianos, sem q ue nada
mude em volta, tudo igual, porém com colares h avaianos, será
isso o carnaval. No alto-falante da escola as march inh as
repetiam em ciclo, eu ficava tão triste com a Camélia q ue caiu do
galh o, deu dois suspiros e depois morreu, e além de tudo foi
tranq uilamente substituída pela jardineira q ue era muito mais
bonita. O Carnaval sempre foi um troço tristíssimo, é a receita
para a melancolia, multidão em frenesi, mú sicas repetidas, e a
tentativa de parecer algo q ue não se é, o q ue sempre foi minh a
maior dificuldade, a Camila me pux ou para pular no centro da
q uadra, porq ue em tese o verbo para o Carnaval é pular, pula-se
carnaval, e eu pulei o q uanto pude segurando as mãoz inh as
dela, não podia soltar, porq ue o sentido da festa estava naq uilo,
os saltinh os de mãos dadas, se eu soltasse seríamos duas almas
solitárias no meio do barulh o, alalaô sem saber o q ue seria a vida
e podendo apenas torcer q ue fosse mais q ue aq uilo.
Minh a mãe não gostava de carnaval e me deix ou ir ao desfile
mais ou menos improvisado uma vez com a família da Camila,
sentados comportadamente na arq uibancada, mas o h orário dos
folguedos era muito tarde e desregulou todo o meu sono, depois
voltamos de madrugada e era longe, o pai da Camila ex austo ao
volante, os absurdos q ue a minh a mãe me deix ava faz er, eu
mesma depois tive de passar a controlar os perigos q ue corria.
Fiq uei pensando se ex istia mesmo abelh a venenosa.
Nem foi legal porq ue a Camila sentou de perna aberta e a mãe
deu uma bronca e ela ficou toda amuada o resto da noite, uma
porcariaz inh a de bronca à toa q ue ninguém ouviu, eu aproveitei e
abri as minh as, mas a mãe dela não ligou, não se importava se
eu sentava de perna aberta ou sem perna nenh uma.
Q uando eu ch eguei neste abrigo estava acontecendo algum
simulacro de festa, não, na verdade os restos da festa de
Réveillon de dias atrás estavam despendendo das fitas crepes na
parede misturados a um ou outro adorno de Natal
meticulosamente aguardando o Dia de Reis, e os idosos
tentavam parecer celebrativos na fila do almoço, a Rosa
conversou muito comigo, repassou as informaçõ es do
neurologista e do psiq uiatra do h ospital, desafiou, instigou, ficou
inteira interessada por mim, toda inflada da própria irrefragável
benevolê ncia, passou do h orário, perdeu a paciê ncia, retomou a
paciê ncia, e foi embora já estava escuro, eu q ueria q ue tivesse
ido embora de dia, escuro foi muito triste, este q uarto pela
primeira vez , sem a Rosa e o caderninh o e a aguinh a dela, lá
fora um restolh o de conversas e rastejar de andadores.
Daí depois do desfile os pais da Camila me deix aram em casa,
eu q ueria dormir na casa deles, mas não deix aram porq ue a
Camila estava de castigo por alguma besteira q ue ela nem
q uestionava, q ue raiva q ue me dava q uando ela não q uestionava
nada pra ficar mais um tempo comigo, h ora de devolver a
amiguinh a, e me deix aram na porta da minh a casa com tanto
sono q ue não conseguia dormir, ainda vinh a barulh o de gente na
rua ficando louca de carnaval e foi uma noite muito melancólica,
é ruim ser devolvido em algum lugar para dormir soz inh o de
madrugada, é ruim ser devolvido em q ualq uer lugar.
V IN T EEO IT O

Foram trê s as minh as gestaçõ es, da mesma criança Camila.


Primeiro, h ouve o instante em q ue após tantos anos negando,
Antô nio acordou, numa terça-feira, bem disposto e já ajeitado
para o trabalh o, virou o café pelando naq uela garganta q ue devia
ter calos porq ue não doía nunca, os militares finalmente tão
arrefecidos q ue ele q uase ia feliz para o Instituto Médico Legal e
já não falava no absurdo q ue era o fato de as pessoas
continuarem produz indo novas pessoas para este mundo, e falou
assim – se eu não tivesse escutado direito suporia q ue era
q ualq uer banalidade sobre a janta mais tarde –, ach o q ue
podemos ter um filh o, e de tão assustado com a própria frase
saiu batendo a porta.
Fiq uei ali num silê ncio de coz inh a, umas águas pingando,
motores de uma geladeira jurássica, máq uina de lavar roupa
bombardeando no fundo, foi um susto aq uele começo de
gravidez , finalmente escutar o q ue eu mesma tinh a a diz er sobre
isso em vez de apenas implorar a um h omem q ue aceitasse o
título de pai sendo q ue eu nem precisava dele, tinh a amantes,
h avia o Natalício q ue se eu q uisesse, q uem sabe, no silê ncio de
coz inh a um filh o já não parece uma boa ideia, mas à q uela altura
o bebê já q uase implantado em mim.
Q uando avisei minh a mãe q ue ela seria avó ela respondeu q ue
jurava q ue a essa altura eu não conseguiria mais engravidar e
me deu os parabéns, então esclareci q ue não estava grávida
ainda, era uma decisão, e ela riu, filh os não eram decisõ es, eram
desdobramentos, está bem mãe então vou me desdobrar,
literalmente, q ue é isso q ue mães faz em até serem na melh or
das h ipóteses enterradas pelos filh os, elas se desdobram.
Eu não precisava decidir nada, era capaz mesmo q ue a essa
altura não engravidasse e daí pronto, estávamos todos a salvo,
só q ue engravidei muitíssimo, com a determinação e eficácia dos
indecisos, e começou a segunda gestação da Camila. Tomei um
café com Natalício, o feto ficou eriçadíssimo de cafeína e ele
sugeriu q ue eu rebatesse com um ch á de camomila, mas era só
pretex to para mais um tempo à q uela mesa q ue talvez ele tenh a
acreditado q ue fosse mesmo a ú ltima, eu mex ia o saq uinh o do
ch á pensando q ue camomila era um nome lindo, se pudesse
batiz aria assim a minh a filh a, ou o mais perto possível disso.
Naq uela época o programa de televisão do Natalício estava um
sucesso, muito mais sucesso do q ue pode ser um programa
sobre detalh es da língua portuguesa, ach o q ue ele falava no
rádio também então se podia ouvir a voz dele em q ualq uer
cô modo, se tivessem me dado essa ideia eu teria jurado q ue
seria um fracasso, no entanto ele ali contentíssimo partindo para
a própria vida, da q ual provavelmente jamais tinh a estado perto
de sair, enq uanto eu apenas totalmente grávida e nada além
disso, logo depois q ue eu marq uei aq uele café para diz er q ue
agora não nos veríamos mais já me arrependi, por q ue diabos
não o veria, mas alguma coisa já estava sendo gestada, algo
devastador e pleno, alguma comunicação placentária já me
avisava q ue nada mais na minh a vida atual ia ter o menor
sentido.
Antô nio parecia arrependido da ú nica vez em q ue decidiu q ue
seria pai, basta uma vez , uma decisãoz inh a com o café pelando
na garganta, traz ia até flores de vez em q uando e um breve
carinh o na minh a barriga, depois ia reclamar do ch eiro da ração
do Perdoai e do Ofendido e eu pensando q uantos ch eiros dali em
diante h averia para ele reclamar e meu Deus do céu aq uele
h omem não ia durar nem mais um ano na minh a vida, eu q ueria
q ue o Natalício ao menos uma vez perguntasse se tinh a alguma
ch ance de o filh o ser dele e não tinh a mas eu q ueria tanto q ue
ele perguntasse, q ue angú stia ia me dando a barriga frágil q ue
ex igia atençõ es, não podia estar parada demais nem faz er
contraçõ es ex cessivas e se eu não soubesse escutar os sinais e
a q uestão da moleira q ue eu lia muito, vários cuidados com a
moleira e a possibilidade de engasgo com a própria saliva
durante o sono, como era possível isso de estar inteira dedicada
a fabricar um ser q ue pode morrer com a própria saliva durante o
sono e q ue ia ser o amor mais absoluto da minh a vida e o
Antô nio com o sorriso engessado de q uem q uer voltar atrás e o
Natalício q ue não ligava para perguntar se o filh o poderia ser
dele, e não era.
Vários dos pavores q ue adq uiri lendo todos os pavores q ue
ex istem sobre o parto aconteceram comigo, a minh a jornada
h ospitalar alcançou q uase vinte h oras e eu não acreditei q ue não
ch egou a vinte e duas h oras porq ue esse era o ú nico consolo
para aq uele martírio já q ue o meu nascimento custou à minh a
mãe vinte e duas h oras de luta e então nem mesmo essa glória
me coube. Eu estava ali inteira esvaz iada e escorregadia dos
sucos todos, estufada de respiraçõ es e inch aços, grumos
vermelh os estourados em toda a pele, nos meus braços uma
criança ex austa de nascer, o médico satisfeito foi ch amar minh a
mãe e o Antô nio, no pouco tempo em q ue me deix aram ali
entorpecida eu q ueria pensar na Camila mas pensava q ue a
minh a mãe entraria e se dirigiria à minh a filh a Pux a você
demorou q uase tanto q uanto a mãe h ein sua danada, a ê nfase
no q uase, o silê ncio q ue ficou depois do parto era o mesmo
silê ncio de coz inh a, motores abafados distantes e um tintinar de
metais, o meu rebento ofegante caladíssimo sem forças pra me
contar direito como era a sua voz , a cara amaçarocadinh a do
esforço de se esgueirar pelos meus dutos, a cabeçona cô nica e
careca, uma criatura inteira desgastada daq uela desova, Pronto,
pronto, descansa q ue estamos as duas vivas e isso é fenomenal,
e minh a mãe surgiu primeiro q ue o Antô nio doendo meu olh o no
relance de luz q ue veio do corredor e foi ch egando junto com o
ch eiro de cigarro q ue era evidente mesmo ali no meio do ch eiro
de sangue e obstetrícia, fez uma saudação celebrativa e q uando
ch egou perto começou uma risada alta demais para o meu novo
silê ncio, Nossa Senh ora q ue bebê feio!
Tinh a começado a terceira gestação da minh a Camila.
Ex iste todo um sistema de h umanidade calcado na
naturalidade com q ue mães e pais levam minú sculos bebê s para
a casa e sentam-se atô nitos no silê ncio de coz inh a cientes de
q ue ex iste a Síndrome da Morte Sú bita Infantil e pelo próx imo
ano h á pouco a faz er sobre isso e tudo a temer, cada instante de
sono é vigília e cada despertar um alívio, uma glória.
J unto com a terceira gestação da minh a Camila também gestei
uma paradox al solidão q ue era aq uela de estar com o meu bebê
na totalidade do tempo e não h aver mais ninguém no mundo q ue
pudesse alcançar a importâ ncia daq uele ser q ue não tinh a
nenh uma palavra a dirigir a mim e no entanto transformava todo
o meu corpo num receptáculo das suas comunicaçõ es, o leite me
escorria na primeira nota ainda abafada de um ch oramingo. A
casa inteira num silê ncio de coz inh a, de vez em q uando uma
televisão distante q ue eu só aumentava q uando era o programa
do Natalício, q ue ainda não h avia perguntado se a filh a tinh a
alguma ch ance de ser dele, e não tinh a.
Antô nio além do futebol de várz ea faz ia h oras ex tras cada vez
mais longas no Instituto Médico Legal, tão longas q ue para mim
já estava parcialmente morto numa das mesas de metal, tudo
para não estar numa casa q ue pertence a um bebê cujo ch eiro é
muito diferente de clorofórmio e morte, mas ainda assim pode ser
um ch eiro az edo, eu já não sentia, inteira enredada q ue estava
na tessitura das nossas trocas, minh as h oras de sono se não
eram picotadas por ch oros eram brutalmente aniq uiladas pelo
silê ncio e minh as constantes corridas até um berço q ue poderia
estar contendo ardilosamente a Morte Sú bita Infantil.
Antô nio já não vinh a mais pra casa e nós duas ficamos ali
nessa incubação, eu ainda tão buch uda q ue à s vez es sentia q ue
a filh a continuava em mim, ou q ue me cairia outra a q ualq uer
momento por baix o da pança numa seq uê ncia natural daq uela
q ue agora era a minh a vida, toda filh enta, frutuosa, o bebê
ficando cada vez mais bonitinh o para alegria da minh a mãe q ue a
cada sábado reparava no progresso das feiçõ es faz endo voz es
pouco convincentes de ternura, mas onde você foi arranjar um
nariz desses minh a netinh a, o Lobo Mau engoliu a vovó e agora
visitava a neta, e q uando não era sábado minh a mãe ligava um
pouco antes das nove da noite durante os meus dez minutos de
janta só pra sondar se Antô nio não tinh a mesmo voltado, e
lamentar a sina das mulh eres dessa família em repelir todos os
h omens.
Num desses sábados minh a mãe fumou muito no meu jardim,
criticou minh as cadeiras e fez uma pipoca q ue empreteceu minh a
melh or panela. Entre uma mãoz ada e outra de pipoca, o bebê
aninh adinh o no meu peito, os cach orros contentíssimos com a
visita q ue era a ú nica novidade em toda a semana, ela me disse
q ue talvez estivesse doente, antes q ue eu me alarmasse já
conteve q ualq uer pergunta q ue eu tivesse, e eu não tinh a. Ainda
estava investigando, nada demais, mas poderia começar uma
fase difícil, ela não é de ficar falando q ue nem eu, não gosta de
alarde e nem de ficar vendo morte em tudo, mas q ue, sim, de
fato, podia vir uma barra meio pesada pela frente, e q uanto mais
ela falava mais jovem parecia, de tanto me pedir bebidas q ue eu
não tinh a dessa vez ela troux e uma garrafa e se serviu na mesa
do q uintal q ue estava bamba – ela reclamou –, e virou
sucessivas doses, mas q ue eu não me preocupasse, q ue eu já
tinh a bastante o q ue cuidar, é isso q ue faz em as mães,
desdobram, elas se desdobram até q ue na melh or das h ipóteses
são enterradas pelos filh os.
Na mesma mesa bamba do jardim e fumando igual também
tinh a de vez em q uando outra pessoa, outra mulh er, outra mãe,
não sei, lembro os cach orros no colo de outro adulto, ex tasiados
e barulh entos irrompendo no meio do meu silê ncio de coz inh a,
alguém com uma risada insubstituível q ue ia coloniz ando tudo de
riso, povoando as estantes e regando as minh as plantas, tinh a
também uma outra criança, bem mais velh a, inq uieta, incapaz de
se conter em nenh um espaço, um menino q ue talvez esteja h oje
no Méx ico ou Novo Méx ico, não sei q ue visita era essa, mais rara
do q ue eu precisava, mais intensa do q ue eu suportava.
Então h ouve esse sábado em q ue minh a mãe falou da
disposição inadeq uada das roupas da minh a filh a nas gavetas e
aproveitou pra me avisar q ue ia começar a morrer, tch auz inh o,
até sábado, e eu q uis perguntar se então já q ue ia morrer não
compensava se aposentar e vir também nos dias de semana,
mas não cabíamos juntas em lugar algum.
O caix ão de um bebê é uma imagem q ue nunca ninguém
deveria ver. Não sei se é do conh ecimento geral, mas deveria
ser, um colega q ue dava aula de Ciê ncias me contou uma vez
com bafo de estô mago e café na Sala dos Professores, nunca
esq ueci, a mãe polvo Gigante do Pacífico passa seis meses
alisando todos os seus ovos sem descansar por um segundo, os
tentáculos doídos, não para nem pra comer, e q uando eles
finalmente eclodem, a salvo, ela sorri para o seu destino e morre
de ex austão e fome. A naturez a não espera menos q ue isso de
nenh uma mãe.
Q uando seu filh o nasce é preciso oito tentáculos incansáveis,
você não deve dormir, é tudo muito mais perigoso do q ue dentro
da sua barriga, deve verificar de trê s em trê s minutos se as vias
aéreas estão desobstruídas, pode h aver um reflux o um pouco
mais denso, pode ser q ue de repente o seu filh o não vingue, feito
uma planta mal ex posta ao sol, e tudo isso pode ser no mesmo
sábado em q ue sua mãe avisa q ue vai calmamente começar a
morrer e depois você pensa como seria diferente a vida se você
ainda tivesse os dois braços livres sem um bebê , mas é um
pensamento de menos de um segundo, tão peq ueno, a imagem
do caix ão de um bebê é uma coisa q ue faz dobrarem os seus
joelh os e alguém segura os seus ombros, uma mulh er q ue não é
a sua mãe, sua mãe ainda está viva e você deu um jeito de
roubar o protagonismo da morte dela, essa pessoa q ue segura
os seus ombros e desdobra o seu joelh o – é isso q ue faz em as
mães, elas se desdobram – é uma pessoa q ue você ama
também, a sua grande amiga, mas q ue agora não vai bastar
nunca mais, porq ue você viu a imagem do caix ão de um bebê , o
seu bebê .
V IN T EEN O V E

Q ual é melh or, essa ou essa? A voz dela toda juvenil antes das
décadas de cigarro roufenh ando as cordas, se eu pudesse sair
deste lugar diretamente de volta para uma tarde talvez fosse uma
dessas em q ue tính amos dez essete anos e a Camila comparava
duas fantasias para um baile ridículo de carnaval no sindicato
dos papeleiros, minh a mãe viajando com um colega da fábrica
porq ue era feriado e ela resolveu q ue podia ser uma pessoa q ue
aluga um carro de praça e viaja em feriados, ainda q ue apenas
para a colô nia de férias do sindicato, então Camila e eu tính amos
a casa vaz ia para brincar de adultas, eu servi dois copinh os de
cach aça q ue sorvemos em bebericadas imperceptíveis, naq uele
calor o corpo dela bronz eado suava nas lantejoulas e ela
levantava os braços e assoprava as ax ilas delicadamente, eu
amava aq uele gesto.
A festa do sindicato era num galpão de péssima acú stica e
iluminação de futebol, as march inh as estourando em caix as
insuficientes, de vez em q uando entrava por cinco minutos uma
idosa bandinh a de sopros, os confetes grudando no ch ão no
açú car embarreado de refrigerantes e solas de sapato. Era nossa
festa mais incrível, eu tentava usar um salto alto.
Rosa me pergunta se o sindicato era perto de casa, mas não
adianta, Rosa, não é a mesma casa, essa era a da minh a mãe
q ue talvez não seja nem na mesma cidade, mas sim, Rosa, o
galpão, q ue nem deve mais ex istir, talvez seja um sh opping, ou
galpão de armaz enamento de grãos, era perto de casa, íamos
andando, mesmo de salto, as duas de fantasia ach ando legal o
alvoroço dos h omens tão velh os nas ruas aplaudindo nossas
cores, algumas avenidas fech adas só para pedestres porq ue
esses eram dias especiais para os pâ ndegos.
A Rosa não gosta de carnaval, aq ui no abrigo eles devem
colocar colares h avaianos nos idosos e pronto está instalada a
folia, ninguém verdadeiramente gosta de carnaval, eu suponh o, é
uma celebração com inú meras falh as, mas vale como filosofia de
vida, desde q ue saibamos não morrer e nem correr perigos na
avenida, é uma proposta interessante, vestir-se de colorido, ouvir
mú sica o tempo todo, encontros carnais, álcool de manh ã, o
desafio realmente está em não correr perigos.
Entramos no galpão e a luz desagradável já me deu vontade
de ficar bê bada para conceder formosura ao evento. Eu tinh a um
outro pavor, para além de morrer, q ue era casar virgem – isso
antes de me dar conta de q ue eu teria amantes, pelo menos um
–, e o carnaval continh a a proposta adeq uada pra evitar esse tipo
de problema. A Camila ria e ach ava divertido o meu propósito,
disfarçando a sua elevadíssima conduta, ela no máx imo ch egaria
ao seu casamento com uns estraguinh os, isso era uma h ipótese
q ue me apavorava, à s vez es imaginava deix á-la de lado e
procurar uns amigos artistas, não sei, tinh a a impressão de q ue
artistas jamais foram virgens.
A Camila era um arraso naq uele baile miserável, poderia
escolh er o menino q ue q uisesse, mas levava a festa inteira a
decidir, um beijo escondido, uma besteira à toa, depois falava
disso por semanas, era q uase um fetich e a mera h ipótese de a
mãe descobrir a ousadia, depois virava uma paranoia, a boca
q ue foi beijada ardia e ela cismava q ue a mãe percebia, uma
coloração de pecado, um tô nus alterado, e então eu me cansava
totalmente do assunto.
Eu q ueria descobrir a fórmula q uímica dessa inata noção de
autoridade, q ue não se ex plicava a partir de nenh um gesto ou ato
daq uela mãe, senão pelo empenh o obstinado da Camila em
obedecer. Q ueria saber se eu fosse mãe dela, se daí ela faria
tudo do jeito q ue eu ach asse certo.
Horas mais tarde, eu com os sapatos nas mãos e os pés
empastados de confete molh ado, um rapaz mais novo e mais
baix o q ue eu pouco vestido numa improvisada fantasia de bebê
me tirou para uma dança desajeitada enq uanto me seduz ia com
sua imensa ch upeta colorida pendurada no pescoço. Fingia q ue
ia roçar o brinq uedo na minh a boca e eu ria deslavada, a cabeça
pendendo para trás, a Camila se afastando um pouco num
risinh o cú mplice, e eu sabendo q ue aq uele peq ueno garoto tinh a
me escolh ido em vez da Camila porq ue eu era o cálculo possível,
ele ciente das suas próprias limitaçõ es, éramos esteticamente
compatíveis e aq uilo era a minh a juventude.
Não lembro a minh a roupa, pode ser q ue fosse um inseto fofo,
uma joaninh a. Na verdade eu estava vestida de noiva, um
vestido branco barato q ue rodava bonito q uando eu girava no
baile, a noiva q ue tinh a alguns minutos para perder a virgindade
antes do altar.
Depois de ouvir pouq uíssimo o meu próprio corpo naq uela
barulh eira, levei o bebê pela mão até o vestiário dos fundos,
mamãe eu q uero mamar continuou tocando abafado depois da
porta, tivemos dificuldade em tirar a fralda, nem ele contava com
tudo isso, não tinh a saído de casa pensando em tirar a fantasia,
q uanto mais tudo parecia desagradável e sujo mais eu ia em
frente animadíssima com o q ue é decadente, o galpão era o
cenário perfeito e o jovem afobado era o contrário da libido, tudo
naq uela esfregação de az ulejo suado escapava do campo dos
impulsos e sentidos, entrava para algo mais conceitual.
Não conseguimos faz er com q ue a lógica teórica fosse
aplicável na prática, nenh uma das murch idõ es q ue perscrutei
naq uelas umidades se materializ ou em algo perto do q ue eu
esperava, e com isso a moça q ue eu era não contava, tinh a
aprendido apenas q ue os rapaz es estariam sempre ávidos por
nós. Saí dali galopante cuspindo lantejoulas, a boca porca de
lambidas desesperadas, eu não valia nem isso, não era essa a
decadê ncia q ue eu tinh a buscado.
Reencontrei fácil a Camila rodopiando soz inh a na pista
esvaz iada, a visão me lembrava a destrez a dela criança numa
q uadra, tantos recreios. Lamentei q ue eu não conseguisse mentir
pra ela, q ue se eu mentisse seria um caminh o sem fim,
estaríamos em mundos cindidos até q ue eu conseguisse
desfaz er a mentira e macular para sempre o nosso vínculo, então
não pude ch egar e diz er olh a só Camila não caso mais virgem,
na mesma animação q ue ela um dia disse a sua ousadia, não
acredito em Deus, mas ainda assim pude contar sem floreios,
gritando por causa das march inh as estouradas na caix a, pude
contar toda a minh a lassidão, não senti nada, o corpo parecia
morto, mas encostei em tudo, estive em todos os lugares daq uele
menino ignóbil q ue eu não sabia o nome, frisei q ue não sabia o
nome porq ue tudo o q ue eu q ueria era h orroriz á-la, q ueria q ue
ela me condenasse, abominasse a mulh er q ue eu começava a
ser, e ao mesmo tempo procurasse em si uma fagulh a desses
caminh os, mas a Camila sempre foi tão boa e me abraçou,
embriagadas, jovens. Ela articulou um consolo folião, as
mãoz inh as pra cima, no próx imo carnaval ia dar certo, q ue eu
fosse paciente.
Caminh amos para a minh a casa desprovida de adultos, a
intenção era nos sentirmos tão grandes, autô nomas, mas arrastei
pela calçada um cabedal de fragilidades, Camila solitária dentro
da melancolia dela q ue nunca foi a mesma q ue a minh a, e tudo
bem, entramos no banh o e a água preta q ue escorria dos nossos
pés e o ch eiro festivo de cigarro alh eio q ue escorria dos cabelos
sob o ch uveiro, nada disso era a decadê ncia q ue eu buscava,
depois do banh o ela disparou a falar muitíssimo, era o q ue ela
faz ia q uando q ueria adiar o fim da noite, e eu morrendo de medo
de me casar antes de conh ecer o sex o, e de morrer antes de
tudo isso.
Camila ench eu copos de água para nós e deitou-se na minh a
cama, eu ao lado no colch ão no ch ão, virou-se na minh a direção
e fez um carinh o descompromissado na minh a testa, nas
pálpebras fech adas grudadinh as de rímel, nossas melancolias
ficaram sintoniz adas por um instante e ela lamentou a morte
recente de uma professora nossa, professores não podem de
forma alguma morrer, a morte de um professor escancara aos
alunos a farsa q ue é a escola, todos um bando de mortais, não
h á nada de ex traordinário naq uele sábio conduz indo a massa,
pode morrer a q ualq uer momento deix ando dez enas de órfãos
apavorados com a inutilidade de tanto conh ecimento apagado de
repente, e ela continuou o carinh o no meu rosto e cabelo e eu
senti q ue estava mesmo tudo bem, q ue eu podia suportar não
saber o q ue ia acontecer na minh a vida, o q ue ia ser de mim,
desde q ue ela continuasse ali, q ue fô ssemos sempre juntas.
T R IN T A

Minh a amiga Camila na sala de parto e eu na sala de espera com


o Upa Lalá, pode ser q ue o parto da sua grande amiga mude sua
vida q uase como se fosse o seu parto, pelo menos até q ue o filh o
vá morar no Méx ico ou Novo Méx ico, os pais dela ainda na
estrada vindo da cidade em q ue foram morar, eu já sentia o
campo gravitacional se alterar q uanto mais se aprox imavam da
Camila, no fundo somos cach orros e passamos a vida lutando
para q ue as coisas simplesmente continuem como estão.
Q uando a Rosa anda de um lado pro outro deste q uarto ela
parece esperar um parto, o meu renascimento numa iluminação
sú bita dentro da minh a mente, devolvam a Camila, eu diz ia na
estrada segurando uma coleira vaz ia, a Rosa diz q ue olh ou as
etiq uetas da minh a roupa tão doméstica, mas a calça não tinh a, e
a blusa era de uma rede grande de departamentos em q ue
ninguém saberia de mim, não tinh a nenh um recado à caneta
diz endo favor devolver esta velh a na rua tal. A Rosa me levou
num banco uma vez , entramos e saímos da porta giratória
levantando suspeitas, ela q ueria saber se meu corpo apitava no
detector de metais porq ue viu na televisão um caso tipo o meu
em q ue a velh a tinh a pinos na perna e então abriram a pele e do
pino ex traíram dados de registro do fornecedor até ch egarem ao
h ospital da cirurgia e ao nome dela, eu ri muito porq ue isso era
ficção e se não era ficção era no mínimo nos Estados Unidos.
Tomamos um sorvete na rua, ela pagou.
A Camila parecia q ue não terminava de parir, porq ue eu q ueria
muito q ue o menino nascesse antes de os pais dela ch egarem,
antes q ue a sociedade me deix asse por ú ltimo lá longe da fila da
relevâ ncia naq uela maternidade. Antô nio no serviço, no
necrotério, porq ue ele estava ainda mais longe na fila da
relevâ ncia daq uele parto, então não teve folga. Eu tinh a dado
aula de manh ã, então era o meio de uma tarde num dia de
semana mais ou menos perto do Natal, eu comia um panetone
com as mãos arrancando nacos, o Upa Lálá estava claramente
com vontade mas não aceitava assim direto da minh a mão, os
barulh inh os de telefones de recepção, sapatos emborrach ados, a
Sessão da Tarde baix inh a num canto e o celofane do meu
panetone eram a ú nica trilh a sonora. Depois fiq uei com massa e
frutas secas embaix o das unh as.
Eu ensinaria esse menino a ler e escrever, toda vez ele
ch egaria à minh a casa e procuraria um livro novo na estante
colorida, e jamais daria pulos, nem subiria nos móveis, nem
correria q ualq uer perigo, q uando Camila comprasse para ele uma
bicicleta eu ia mostrar como são mais divertidos os livros, ou ia
ao menos instalar rodinh as e comprar um peq ueno capacete, e
ele passaria muito tempo na minh a casa brincando com o
Perdoai e o Ofendido. Depois eu conseguiria desconto para ele
na escola, poderia diz er q ue era q uase meu filh o, e em dado
momento ele alcançaria a minh a turma e enq uanto eu ensinava
regê ncia verbal ele me sorriria animadíssimo de ser o aluno mais
próx imo da professora.
A Rosa me deix a ir à biblioteca lá no centro escolh er livros de
vez em q uando, no começo ela falou q ue eu tinh a de focar na
minh a lembrança e não na h istória dos outros, mas o barato é
q ue à s vez es no meio de um livro eu lembro q ue já o tinh a lido
trinta e cinco anos atrás, e junto com essa lembrança volta com
força numa golfada tudo o q ue h avia na minh a vida ao redor
daq uele livro, o parq ue em q ue eu lia num domingo, com q uem,
se minh a mãe estava ou não estava morta, se a mãe da Camila
estava ou não estava por perto, se h avia ou não h avia Antô nio.
Então calh ou q ue é bom q ue eu leia e releia muitos livros, nossa
própria h istória pode estar imbricada na metáfora de alguém,
espero q ue a Rosa um dia escreva um livro sobre mim e alerte
todos os neurologistas sobre essa técnica.
Q uando a enfermeira do parto veio ch amar era pra olh ar o
menino por trás de um vidro, a touq uinh a az ul, já todo limpinh o,
Meu Deus q ue bebê feio, eu disse, e ri para o Upa Lalá q ue
provavelmente pensava a mesma coisa mas me olh ou
ch ocadíssimo, depois não me deix ou entrar no q uarto para ver a
Camila, esperei um montão até me liberarem.
Ou não terá sido isso. Não, os pais da Camila ch egaram
correndo da viagem, o carro parado à s pressas no caríssimo –
segundo a mãe dela – estacionamento da maternidade, e o
poder daq uela mãe era tal q ue ela nem sentou e já fomos todos
ch amados para ver o bebê pelo vidro, q ue bebê feio! , ela disse
sem rir, incomodada mesmo, e o pai da Camila a cutucou com o
cotovelo porq ue o Upa Lalá estava ouvindo e afinal convinh a
lembrar q ue era o pai da criança.
Q uando pudemos entrar no q uarto fiq uei num canto, discreta,
onde não incomodasse, a Camila inch ada e emocionada anotava
mentalmente as orientaçõ es da mãe sobre aleitamento e
educação, tinh a de aprender a deix ar ch orar, não pode acudir
q ualq uer ch orinh o, e eu imaginando q uantos ch orinh os daq uela
Camila não tinh am restado desassistidos até ela ficar assim tão
desamparada e encantadora.
Antô nio me buscou e me levou pra comer frango frito. Era
q uase Natal, a cidade inteira piscando, tinh a ch ovido à tarde, a
rua molh ada e q uente, na espera eu li um livro de contos q ue
agora estava na bolsa sujo de panetone, um bebê morto no colo
da mãe numa barca, ela nem se dava conta disso, é este livro
aq ui, Rosa, tenh o certez a, já li mil vez es, e você ? Tem este outro
conto, é de carnaval, imperdível. É fato, esta técnica de reler os
livros precisa ch egar aos neurologistas. No fim comemos o
frango frito, Antô nio perguntou por educação sobre o nascimento,
porq ue não estava verdadeiramente interessado, por isso eu
preferi contar sobre o conto, a mãe segurando o bebê gelado e
lívido, o milagre, o Natal.
O filh o da Camila tinh a nascido e isso me arrebatava de um
inédito amor impossível, eu estava inteira preench ida daq uele
nascimento e insuportavelmente fora dele, minh a cara ch eia da
gordura de um maldito frango frito, as mãos do Antô nio
escorrendo óleo e eu pensando se ele tinh a lavado direito
aq uelas mãos de cadáver, como era possível q ue na noite do
nascimento do filh o da Camila eu estivesse numa lanch onete
barata tentando manter a atenção do meu marido na h istória de
um conto de Natal na barca sem conseguir diz er a ele q ue mal
pude segurar o menino, na verdade não pude, tinh a tantos
parentes no q uarto, a mãe dela uma h ora até me tomou por uma
das enfermeiras, depois se lembrou de mim, daí esq ueceu meu
nome, e então era isso, Antô nio, q uase terminei de ler o livro todo
na sala de espera, este conto de Natal era tristíssimo.
Nos dias q ue se seguiram, ou terão sido meses, fui um discreto
fantasma na casa da Camila, escapava depressa na h ora q ue ia
ch egar o Upa Lalá, era importante q ue tivessem o espaço deles,
constituíssem cada vez mais isso q ue se pode ch amar de família.
Começou a me apavorar o q ue eu percebia ali, a minh a amiga
segurando o seu bebê com a atenção e os braços e os peitos
inteiros consumidos por ele e nos olh os um vaz io imantado pelos
olh inh os dele, e aos poucos notei q ue aq uela maternidade era
uma lenta construção de uma casa no deserto, muito q uente de
dia e gélida de noite, uma casa em q ue não se pode permanecer,
a Camila ficando árida, arenosa, e a ponto de se desfaz er no
vento.
T R IN T A EU M

Aq ui na frente do abrigo, q uase na esq uina, h á um boteco com


mesas de plástico, uma televisão de tubo minú scula pendurada
num canto, sempre ligada em volume altíssimo, e os h omens se
sentam e jogam dominó ou reclamam, o ch eiro de fritura e bebida
barata deveria ser repulsivo, mas tenh o muita vontade de me
sentar ali. Há alguma familiaridade nessa decadê ncia.
O barulh o da televisão vez ou outra é abafado brevemente por
um liq uidificador de outros séculos, só q uando alguém pede uma
vitamina ou, mais comum, uma batida ch eia de leite condensado
e cach aça ou vodca. Q uando é de abacax i fico com vontade,
piñ a colada.
Consigo ouvir e ver o boteco da esq uina aq ui da janela do
q uarto, é igualz inh o ao lugar em q ue uma vez encontrei sem
q uerer o Natalício, e não acreditei, eu comprava um cigarro pra
minh a amiga Camila e um ch ocolate pra mim, ela me esperava
com os dois cach orros e o filh inh o dela do outro lado da rua, ele
não me viu, continuou falando com os amigos, eu não tinh a
imaginado q ue aq uele h omem tão gramaticalmente elegante e
televisivamente tão cortê s era capaz de se sentar numa cadeira
de plástico e apoiar cotovelos numa mesa de boteco, depois
desapoiar os cotovelos para verter uma cerveja aguada e bater
em seguida com o copo ao mesmo tempo em q ue dispara uma
risada concatenada com a dos demais h omens, bem h omens,
q ue estão adorando a h istória dele, q ue é uma h istória q ue
contém palavrõ es, nunca na minh a vida eu tinh a imaginado o
Natalício diz endo palavrõ es, ele só falava gentilez as e regras de
Portuguê s, as piadas costumavam ser anedotas linguísticas, fui
saindo com o ch ocolate no bolso e o maço de cigarro apertado
na mão.
Pode ser paradox almente delicioso descobrir q ue não
conh ecemos alguém íntimo, ch eguei em casa ainda mais
enlouq uecida por aq uele amante q ue agora sabia manejar
palavrõ es e liderar uma mesa de bar barato. Tudo sem nenh um
erro de portuguê s.
Se eu fosse agora a este boteco da esq uina eu me sentaria
nessas cadeiras pouco ergonô micas e os velh os das outras
mesas nem me notariam, a televisão alta demais para ouvir o
q ue conversavam e de toda forma não h averia o Natalício na sua
camisa cáq ui de mangas curtas e o cabelo alinh adíssimo
narrando talvez o q ue um h omem disse a outro nos bastidores do
programa de televisão, ou festejando em amplos goles a nova
Constituição do país, e não h averia alguém q ue, para brincar
com ele, dissesse q ue anticonstitucionalissimamente é a palavra
mais longa da língua portuguesa, e tampouco h averia o Natalício
ali para provavelmente q uerer botar um reparo nessa
observação, mas por ser um h omem acima de tudo agradável
apenas tomar mais um vasto gole da cerveja para não concordar
nem discordar.
Então de nada adianta q uerer me sentar neste bar anódino. A
Rosa falou q ue teve uma pista ex traordinária sobre mim, mas
não vai me contar ainda porq ue tem q ue amarrar umas pontas,
palavras dela, não q uer criar ex pectativas. Eu preferia saber
q ualq uer novidade porq ue preciso voltar a dormir. A coisa mais
difícil de se faz er sem passado é dormir, a não ser claro q uando
você é uma criança feliz , daí h á pelo menos um imenso futuro
q ue passa a noite sussurrando, dorme, dorme, h á tempo
suficiente para todo o resto. Agora eu fech o os olh os para dormir
e em vez das angú stias sobre o dia de amanh ã me assomam
planejamentos para o ano retrasado.
Minh a mãe ach ou q ue eu já não conseguiria engravidar, o filh o
da minh a amiga Camila já era uma criança alfabetiz ada, tinh a
idade para brigar no corredor do colégio – está vendo, Rosa,
você sempre tem toda a raz ão, é possível h aver duas Camilas na
nossa vida ao mesmo tempo –, e o Antô nio tomando o café
pelando e diz endo Podemos ter um filh o, à q uela altura eu
acostumadíssima com o meu silê ncio de coz inh a e ele
instaurando esse barulh o de dentro para fora, então era isso, eu
deveria ter aprendido com a amiga Camila q ue a ideia de ter um
filh o é uma coisa q ue não termina, q ue vai esgarçando as bordas
dos dias e das noites até q ue já nem conseguimos nos virar na
cama porq ue não h á bordas e o filh o custa a completar q uarenta
anos e tornar-se o amigo q ue sonh amos e à q uela altura nós duas
não poderíamos seq uer prever q ue aos q uarenta o trabalh oso
filh o dela estaria no Méx ico ou Novo Méx ico.
Depois de muitas h oras de parto eu só q ueria q ue o
nascimento terminasse de acontecer, q ue finaliz asse a minh a
ex austão e toda aq uela dor, mas era tudo o contrário disso,
começávamos juntas, minh a filh a e eu, uma lenta luta de
sobrevivê ncia e aceitação, eu não tinh a olh ado direito pra ela,
toda empastada de mim, como era possível q ue eu não tivesse
olh ado, tinh a sentido a barriguinh a q uente e a boch ech a dura do
ch oro, foram ch amar as minh as visitas e enq uanto isso me
devolveram a bebê limpa e domesticada, tranq uiliz ada dos
ch oros todos, conformada com a vida q ue ganh ou e q ue era só
aq uela, e as pessoas demoravam a ch egar ao q uarto, eu soz inh a
com a menina, a intensidade daq uele instante e todas as coisas
impactantes q ue eu gostaria de estar pensando para os fins da
minh a própria literatura mental e no entanto olh ei direito para ela
e Q ue bebê feio.
A naturez a h umana testa as mães enviando filh otes difíceis de
amar, temos de ser grandiosas.
Tudo isso para descobrir q ue de fato o amor materno é uma
ex periê ncia incomparável, o q ue não q uer diz er q ue seja uma
ex periê ncia cabível a q ualq uer um, dias e dias o bebê frágil
demais nos meus braços traz endo todo aq uele som ao silê ncio
da minh a coz inh a ia me torcendo por dentro num amor q ue talvez
não fosse adeq uado pra mim, eu não era a pessoa certa para
amar aq uela filh a, pra conter a ex plosão de amor eu tive de me
ampliar e ocupar todos os espaços em volta dela, um imenso
airbag armado em torno dos seus passinh os, todo insuflado e
vaz io por dentro.
Nos primeiros dias h avia ainda o coto do cordão umbilical
gelatinoso e amarelento e q ue se tudo desse certo sofreria o
milagre da mumificação e cairia seco num dia q ualq uer, até lá eu
tinh a de encarar aq uele naco de necrose a cada troca de fralda
em meticulosos cotonetes com álcool e se eu falh asse nessa
h igieniz ação do ú nico pedaço já morto da minh a filh a sabe-se lá
q ue inflamaçõ es subiriam por ela inteira, q uando o bebê faz ia
força ou ch orava o seu intestino parecia q uerer escapar por uma
h érnia no umbigo e me diz iam q ue era normal, o q ue apenas
reforça q ue o ser h umano é bastante absurdo e precisa de ajuda
até mesmo para se livrar dos restos da mãe q ue ficam pegados
no corpo.
Será q ue Rosa já pesq uisou no sistema penitenciário, pode ser
q ue eu seja na verdade uma fugitiva, e então é por isso q ue ela
ainda não me contou, precisa amarrar umas pontas primeiro,
então ela ch egará aq ui com a polícia pra me levar de volta presa.
Rosa está neste momento descobrindo de q ue forma matei
minh a filh a.
Eu tinh a ach ado q ue fabricando uma neta eu forjaria na minh a
mãe uma avó, enternecida e solícita, e então nos olh aríamos tão
apaz iguadas, eu sendo a fonte eficaz de toda a ternura, o bebê
faria balbucios e aos poucos se tornaria apraz ível ao olh ar, mas
minh a mãe o segurava pragmática, aos sábados, enq uanto
pescava pela casa minú sculos assuntos incô modos, o limo no
meu rejunte, ou, na mesma naturalidade, estou começando a
morrer.
Minh a mãe tinh a então começado a morrer antes q ue eu
tivesse conseguido transformá-la inteiramente em avó, tampouco
eu era inteiramente mãe, nascimento é um gesto tão protelado,
como é ilusório o plano da grávida: certo dia parir.
Minh a mãe ia morrer muito mais cedo do q ue o previsto para
uma mãe deix ar sua filh a, ainda q ue esteja previsto justamente
isso, q ue as mães sempre morram e não as filh as, e está aí
também uma transformação curiosa q ue nos ocorre ao termos
um filh o, tornamo-nos automaticamente aq uela q ue se espera
q ue morra primeiro, minh a mãe estava seguindo o flux o correto,
porém precoce. Minh a filh a e eu ficaríamos ainda mais
desamparadas e o meu receio é q ue na verdade a sua partida
não fiz esse a menor diferença.
Havia as tardes absolutamente perfeitas e isso era q uando
todas as mulh eres da minh a vida estavam reunidas no meu
q uintal com os meus cach orros sendo integralmente parte de
mim, as Camilas e minh a mãe, tinh a também o menino da
Camila q ue ficava boa parte do tempo entediado, o pior do ser
h umano é o tédio, a marca mais profunda da mediocridade, como
pode ser tão vaz io um cérebro q ue não preench a totalmente o
mísero tempo q ue temos de vida, mas q uando os cach orros
corriam e brincavam com ele o tédio passava um pouco e toda a
atmosfera vespertina se iluminava desse simulacro de perfeição
q ue era estarmos ali.
Havia levez a naq uelas raras tardes mesmo q uando minh a mãe
contava os recentes avanços da sua doença q ue eram na
verdade atualiz açõ es sobre os caminh os da sua morte, ela
ach ava um jeito de emplacar uma piada da q ual ria
genuinamente, a minh a amiga Camila servia uns biscoitinh os
amanteigados q ue eu morria de medo de serem seq uilh os, e
eram, mas h avia sempre alguma umidade abaunilh ada q ue era
uma espécie de carinh o na língua, eu mordia e sorria para ela.
Perguntei à minh a mãe se ela sofria de não poder ver a neta
crescer, perguntei porq ue sinceramente ela não parecia sofrer
por coisa alguma, crescer é o q ue os bebê s todos faz em, ela
disse, depois de um silê ncio de isq ueiros falh ando no vento, q ue
era o tipo de silê ncio q ue eu tinh a q uando Camila e minh a mãe
estavam juntas no q uintal, agora é q ue a vida ia começar a ficar
boa, minh a mãe completou.
Esse era o grande problema da minh a mãe, crer tão
singelamente q ue os bebê s todos crescem e pronto. Eu tive a
sorte de crescer, porq ue para q ue isso ocorresse ela não tomou
nenh um especial cuidado.
Q uando minh a mãe terminou de morrer a minh a filh a já tinh a
um ano, engatinh ava pela casa junto com os cach orros, foram
ambas para o mesmo jaz igo q ue já não sei onde fica, o tampo
rosa, Antô nio voltou e guiou o fusca só pra me levar ao enterro,
primeiro da minh a mãe, depois da nossa filh a q ue ele mal tinh a
visto, não ouvi a voz dele, nem ele ouvia a minh a, o fusca
colorido era uma afronta à ocasião.
O filh o da Camila já tinh a sete anos, se eu o encontrar agora,
se ele tiver coragem de voltar do Méx ico ou Novo Méx ico eu vou
finalmente confrontar, agora q ue você é um h omem inteiramente
crescido, ninguém vai trancar você no castigo, fale o q ue
aconteceu ex atamente naq uela tarde, você precisa diz er, seu
h omenz inh o de merda.
Logo embaix o da torneira um balde imenso e ch eio de água,
de partida já não se sabe q uem ench eu o balde, mas isso pode
mesmo ter sido a Camila q ue volta e meia cismava q ue as fraldas
precisavam ficar de molh o, ou os tapetes, q ualq uer coisa na
minh a casa q ue desagradava, os ch eiros, como se na casa dela
a fax ina fosse impecável, então vamos supor q ue ela tenh a
ench ido o balde para depois jogar sabão e panos, mas distraiu-
se no meio com os procedimentos do cigarro, ach ar o maço,
depois em outro cô modo o isq ueiro, nos dias mais civiliz ados
buscar algo q ue servisse de cinz eiro.
Nisso o bebê , q ue engatinh ava em ex cesso com os cach orros,
e o filh o da Camila sentiam a minh a grama, eu assava pães de
q ueijo, tinh a feito também no formato de cobrinh a, o menino
mesmo fez os compridos, a h ipótese é de q ue a minh a filh a
engatinh ou até o imenso balde e ergueu-se nele pela alça,
debruçou-se, tombou dentro, os pez inh os para cima.
Os pães de q ueijo q ueimavam a ponta dos meus dedos, além
disso estavam um pouco grudados no fundo, então apanh ei uma
espátula e fui tirando um por um, enq uanto minh a filh a morria.
Ch eguei ao jardim com a cestinh a fumegante, apoiei sobre a
mesa, primeiro vi o cigarro aceso e perguntei ao menino onde
estava a Camila, eu me referia à Camila mãe dele, q ue estava,
depois eu soube, faz endo x ix i, no meio de um cigarro, sempre
me enervou a desorganiz ação fisiológica do corpo dela, e então o
menino me apontou o bebê Camila, tombado para dentro do
balde ch eio.
Ele precisa voltar do Méx ico, ou Novo Méx ico, e então me
ex plicar h á q uantos minutos ele tinh a reparado nisso, a menina
dentro do balde, q uando saq uei pelos pés o corpinh o inflado de
dentro da água o menino começou a gritar e a ch orar
imediatamente, então a pergunta é por q ue não gritou antes,
como é q ue você seguiu com sua vida de menino inú til, como foi
q ue dormiu naq uela e em todas as outras noites, a primeira
namorada, o primeiro carro, o diploma, tudo isso sabendo q ue já
tinh a sete anos q uando olh ava por uns instantes um bebê e não
soube gritar q uando ele tombou num balde.
Talvez ele tenh a ach ado engraçado, as crianças nascem
torpes, precisam de muita lapidação, vai ver ficou rindo em
silê ncio dos pez inh os do bebê para fora da água.
Não me lembro de ter visto Camila e o filh o mais nenh uma vez
desde o enterro. Pode ser q ue eu tenh a matado ambos, ou um
dos dois, pode ser q ue os corpos estejam na terra do meu
q uintal, o jabuti andando por cima, a Rosa me entenderia, ela
entende de tudo.
T R IN T A ED O IS

A Rosa h oje ch egou para falar comigo e com mais trê s idosos,
comigo ela passa muito mais tempo porq ue os outros trê s só
precisam resolver burocracias do benefício assistencial, eu
segundo ela sou uma novela, ainda não concluí se ela usa
novela no bom ou no mau sentido. Ela ch ega com uma saia
longuíssima q ue tem tantas cores q ue ficamos todos iluminados,
a saia é uma cauda q ue arrasta atrás dela tudo q ue ela faz de
impressionante e ex austivo e eu q ueria duas coisas, q ue ela
pudesse descansar, e q ue ela fosse a minh a filh a.
Seríamos muito amigas, h ein Rosa, se você fosse minh a filh a
de q uarenta anos, toda filh a deveria ter sempre desde o começo
até o fim q uarenta anos. Não vou nem mostrar pra ela as notícias
q ue andei lendo, se não ela fala q ue fico atrás de fatalidades,
como se não fossem as fatalidades todas q ue ficam atrás de nós,
estatisticamente muito mais atrás dela, não sei dos bairros q ue
ela freq uenta com a saia colorida majestosa, a saia cabedal dos
superpoderes todos q ue se ela pudesse largava no ch ão e saía
vivendo sem superpoder nenh um, mas ela não pode, a Rosa,
não h á vida para a Rosa sem os superpoderes, mas eu já disse
q ue para as fatalidades as estatísticas não importam, não
vivemos dentro da armadura das nossas probabilidades.
Semana passada mesmo, deu no jornal, um bebez inh o caiu
dentro de um balde ch eio de água, ninguém viu. Morreu afogado
onde ninguém esperava um afogamento, nossa própria dose de
tragédia pode ser um litro de água.
Hoje está um alvoroço porq ue o congelador do abrigo
amanh eceu q uebrado e os funcionários estão passando as
coisas para a geladeira, em q ue já não cabe nada, então
resolveram faz er algumas comidas aleatórias e servir
combinaçõ es descabidas, eu até ajudei, fui buscar gelo para os
isopores imundos, mas não gostam q ue eu vá muito longe,
ach am q ue vou ter outro apagão e de novo vou parar na estrada
em andrajos diz endo cadê a minh a Camila.
Q uando a minh a amiga Camila já morava comigo, coisa de uns
dez anos atrás, nossa geladeira também amanh eceu q uente, é
uma espécie de vô mito de uma residê ncia q ue já não suporta
armaz enamentos, nosso iogurte caseirinh o todo revestido de
uma penugem branca era o sinal de q ue tinh am passado h oras
demais sem q ue notássemos as nossas comidas perdendo o
gelo, o pior foram os congelados q ue depois de vinte h oras
boiando no gelo dos baldes estavam amolecidos e aguados
necessitando de rápida intervenção.
A Camila sempre gostou dessas ocasiõ es em q ue o caos é
tamanh o q ue fica autoriz ada toda forma de criatividade, eu
estava com vontade de ch orar vendo os nossos sacos de peix es
descongelados inflando de água, os bifes, polpas de frutas,
feijão, canja, um frango inteiro, pensei em pegar na mão dela e
partirmos dali, começar uma nova vida em q ualq uer lugar em q ue
h ouvesse um congelador em ordem e nenh um animal cru
descongelando em bacias e isopores com os pelos do Perdoai e
do Ofendido boiando ou grudados nas laterais, era importante
faz er as malas e reiniciarmos nossa h istória, os cach orros nos
seguiriam pela rua, e q uem sabe caminh ássemos tanto q ue tudo
fosse perdendo o sentido, eu na beira da estrada segurando a
coleira vaz ia, devolvam a minh a Camila.
Enq uanto eu derretia na minh a coz inh a junto aos restos da
nossa família, a Camila animada investigava simulacros de
receitas mentais q ue envolvessem todo aq uele amálgama de
estoq ues, ria do absurdo q ue seriam nossas próx imas refeiçõ es,
antes q ue me desse conta eu já estava seguindo ordens, picando
temperos, cebolas, abrindo embalagens ench arcadas e tentando
amar o conteú do triste q ue despencava delas, espirrando limõ es
sobre peix es murch os craq ueladinh os de gelo, e como nos
negamos a complementar tudo aq uilo com q ualq uer detalh e q ue
faltasse, a moq ueca ficou sem coentro, o frango assado sem
alecrim, também não tinh a mostarda ou páprica para a marinada,
demos um banh o de cerveja no bich o, aplaudíamos ali o
espetáculo do desperdício, q uando vi já estava jogando pimenta
sobre nacos de bife q ue ela grelh ava na ú ltima boca do fogão
ainda livre, cada vez mais estabanada na tentativa de agilidade
porq ue claramente q ueria sentar e fumar um cigarro e q uanto
mais tempo passava sem fumar um cigarro mais coisinh as ia
derrubando e pingando pelo ch ão, Perdoai tentava lamber, mas
à s vez es estava muito q uente, então minutos depois vinh a o
Ofendido e tirava a sorte grande. Camila levou umas q uentinh as
pros viz inh os.
Pode ser q ue isso tenh a acontecido na verdade muitos anos
antes, ela ainda não tinh a o filh o, distraía-se na minh a casa numa
noite q ualq uer, e de repente estávamos envoltas no banq uete
improvisado, de toda forma éramos duas meninas rindo na
coz inh a o regoz ijo da nossa fartura num país sempre em ruínas.
Há essa q uestão deste país, especialista em culpas. De
repente somos muito cú mplices, ainda q ue não se trabalh e no
Instituto Médico Legal na década de setenta recebendo os
corpos escamoteados, q ueimados de eletrodos, h á sempre um
momento em q ue este país borbulh a desagradável no estô mago
e indispostos olh amos a janela irremediavelmente cú mplices de
tudo isso e só h á dois tipos de pessoas nessas circunstâ ncias, os
q ue lutam e os q ue de alguma forma fogem, sou dos q ue fogem
brutalmente, só luto até o fim pelo meu direito de fugir, à s vez es
só q ueremos tocar o nariz na cabeça do cach orro pra sentir o
ch eiro aconch egante de almofada e não lutar e muito menos
morrer, nem mesmo se dedicar, e você q uer gritar q ue tudo bem,
você tem todo o direito de estocar o seu congelador e afagar os
seus cach orros até aplacar a gastrite q ue é o seu país, mas é
uma falácia, tudo isso cobra o seu preço, passam q uarenta,
cinq uenta anos e fica a culpa.
Mesmo q uando não se trabalh a no Instituto Médico Legal ou
q uando são outros os corpos q ue aportam nos frigoríficos, outras
as farsas, h á sempre uma engrenagem barulh enta, mas é um
ruído tão contínuo q ue ninguém escuta mais, um imenso motor
do refrigerador do país, o refrigerador de um enorme necrotério
q ue é esta nação e então você fech a a sua porta e abraça os
seus cach orros e decide q ue você definitivamente não é o tipo de
lutar, é o tipo de abraçar cach orros e escolh er alimentos de baix o
colesterol, ex ames anuais, e deveria estar tudo bem mas não, o
país não deix a, e de repente os seus amigos já não sabem como
amar você já q ue o seu marido trabalh a no Instituto Médico Legal
de um país como aq uele da década de setenta, ou porq ue você
se ocupa de preservar a própria vida como se a própria vida
fosse grande coisa q uando lá fora h á tudo isso, ou pode ser q ue
os seus amigos precisaram fugir ou morrer enq uanto você fingia
q ue era possível não saber de coisa nenh uma porq ue essa era a
ú nica saída, caramba, é uma maldita de uma vida só, como se
pode doá-la assim por um país e seu congelador q uebrado de
corpos boiando nos baldes, eu não saberia faz er uma coisa
dessas e eu apaguei, eu esq ueci a minh a vida inteira mas não
esq ueço isso, essa culpa, isso sou eu.
Se a Rosa pudesse, talvez se fech asse numa casa fresca com
cach orros ch eirando a almofadas e não ajudava mais país
nenh um, nem guerreava sua luta pessoal por esse bando de
velh os lascados, q ue inferno pertencer a tudo isso, você q uer
falar da sua vida e dos desafios naturais para mantê -la mas em
volta h á o incê ndio q ue é sempre a sua nação, e até agora não
arrumaram vaga para o idoso do grau III de dependê ncia.
Então pode ser q ue fô ssemos jovens q uando minh a geladeira
se desfez e o Antô nio no plantão do Instituto Médico Legal
colh endo digitais ch amuscadas enq uanto ríamos do banq uete e
era para termos todo o direito de rirmos, os cach orros
aconch egantes, a ú nica vida q ue tính amos e precisava ser
maravilh osa. Ou pode ser q ue já fô ssemos velh as e ainda assim
a culpa por este país, como era possível um freez er tão repleto
num país como aq uele, ou este, e agora esse abrigo devastado
de infiltraçõ es e os idosos ú midos vendo o almoço degelar feioso
nos baldes enq uanto a Rosa investiga se a minh a vida foi ou não
foi maravilh osa e eu q uero ex plicar q uantos problemas eu tive
q uando na verdade a Rosa deve ter tido muitos mais e era
melh or q ue eu simplesmente enterrasse a minh a cabeça numa
bandeira de culpas e deix asse de q uerer desesperadamente
viver uma vida q ue é apenas a minh a vidinh a inú til, eu q ue tenh o
uma aposentadoria pingando fielmente em algum banco q ue não
sei e estou aq ui ocupando a cama de um velh o miserável q ue
talvez espere vaga deitado num lugar pior ou em lugar nenh um.
A Rosa termina as burocracias dos trê s idosos e vira-se
majestosa na minh a direção, vem caminh ando no meio de toda a
confusão de alimentos degelando e coz inh eiros tentando ser
criativos como a Camila gostaria de ser, mas ela sem o peso de
licitaçõ es e orçamentos, um país em q ue ou se morre, ou se é
infeliz , ou se é totalmente cú mplice e culpado, Rosa me abraça
de olh os fech ados e me funga feito eu fosse um cach orro
aconch egante ch eirando à almofada, e me ocorre q ue talvez eu
tenh a um ch eiro fofo de velh a.
A acumuladora olh a os baldes com o olh o brilh ando de água,
não sei q uais coisas diante de toda essa perda ela precisa salvar,
talvez isto seja uma cura.
Rosa diz q ue conseguiu finalmente a lista de funcionários do
Instituto Médico Legal na década de setenta, aq ui e nas cidades
mais próx imas h á q uatro Antô nios, ela está animada, amanh ã
mesmo vai visitar o mais próx imo dos Antô nios com a minh a foto,
ela vai me tirar deste lugar, diz , e sorri tão encantada q ue me dói
todo esse esforço, a comoção para me remover deste q ue na
verdade é um lugar q ue eu não mereço, obrigada, Rosa.
T R IN T A ET R Ê S

A generosidade de ter um filh o talvez seja isso de produz ir no


mundo um ser cuja sobrevivê ncia é mais importante do q ue a
sua, e para q uem a sua morte é a melh or das probabilidades, se
absolutamente tudo der certo você vai morrer muito antes e esse
ser está perfeitamente conformado e confortável com isso,
consola-se na ideia de q ue vai demorar, mas ch ega um momento
em q ue não vai demorar mais e então h á algum sofrimento todo
caramelado da naturalidade dessa perda.
Então minh a mãe comunicou q ue ia começar a morrer e a
minh a cabeça apenas adiantou um planejamento, é esse o h orror
de pô r no mundo alguém q ue merece morrer depois de você . E
q ue você mesma não suportará se as coisas se passarem
invertidas.
O q ue esse filh o vai seguir faz endo no mundo depois q ue não
tiver mais a sua opinião.
É ridículo o tempo de vida q ue temos, q uando se retira a lupa
q ue mantemos diante das nossas cabeças se nota mais ainda
q ue o nosso tempo q uase não ex iste e ainda assim é tudo q ue
temos e então talvez ter um filh o seja mesmo essa tentativa de
nos prolongarmos nele, o q ue é absolutamente vão porq ue a
primeira coisa q ue o filh o faz é ceifar-nos, e recomeçam de outro
ponto, longe de onde nos terminaram.
Está no jornal de h oje, numa praia próx ima daq ui, um raio
matou uma jovem q ue passeava pela areia, não era nem
tempestade, entre todos os postes, árvores, prédios em q ue
poderia cair o raio escolh eu a filh a de alguém, os jornais não são
bons com essas notícias, não investigam a fundo, então temos
de imaginar, os pais poderiam estar em casa discutindo
severamente detalh es sobre o divórcio, a menina não suportando
a briga foi espairecer na praia.
É tudo muito ridículo. Uma efemeridade h umilh ante, para onde
vai tudo o q ue se leu, estudou, mais corretos talvez estejam os
inú teis, q ue cabimento h á nos detalh es da língua portuguesa, as
frases, os sujeitos q ue circulei na lousa, a cada vez em q ue eu
diz ia Predicado morriam diversas pessoas em tantas
circunstâ ncias, poderia morrer eu mesma segurando o giz e
traumatiz ando os alunos q ue não podem saber q ue professores
morrem, senão param de estudar.
Eu não sei, Rosa, o q ue você tem pra descobrir da minh a vida,
mas certamente se eu pudesse mesmo escolh er eu q ueria um
futuro, não um passado, é insuportável deix ar de ex istir, e não h á
a menor possibilidade de q ue você me comuniq ue q ue descobriu
isto, q ue não vou morrer jamais.
Se a minh a mãe ainda fosse viva q uando eu tinh a q uarenta e
cinco anos não seríamos amigas, nunca teríamos sido amigas.
Talvez tivéssemos sido amigas se ela vivesse q uando eu tinh a
q uarenta e oito anos, pode ser q ue assim com q uase setenta
anos ela conseguisse me ver, deix asse de estar ocupada com as
distraçõ es do seu cérebro agitado, o seu cinismo, todo o
desgosto, aq uele pouco apreço à vida, à minh a vida inclusive, eu
a criança q ue ficava soz inh a em casa desde muito nova como se
não h ouvesse perigos, a criança q ue podia correr no jardim na
tempestade ch orando, como se não h ouvesse raios,
pneumonias.
A mesma mãe q ue na estafa de ensinar uma vez olh ou fundo
nos meus olh os segurando firme o meu bracinh o e disse q ue se
eu não parasse de insolê ncia ela ia me devolver pra Deus.
Lembrei J esus pendendo sobre os ombros das senh oras na
procissão, Agora é a h ora da nossa morte amém, mas fiq uei uns
instantes em silê ncio preparando a próx ima insolê ncia e respondi
q ue tudo bem, era maravilh oso ser devolvida pra Deus, e então
ela inteira impacientada de mim ainda no uniforme da fábrica e
mex endo sem vontade um feijão q ue ela req uentava inteiro
grudado no fundo começou a bradar q ue nunca, nunca era bom
ser devolvido em lugar nenh um, q ue aq uelas pessoas todas q ue
a gente vê caminh ando à margem da estrada enq uanto
passamos de fusca, pessoas q ue parecem não estar indo nem
vindo de lugar nenh um, eu não sabia disso, mas aq uelas
pessoas tinh am todas sido crianças devolvidas para Deus por
suas mães e desde então vagavam ali sem ter aonde ir, as linh as
tortas de Deus. Nunca, Aurora, nunca é bom ser devolvido onde
q uer q ue seja.
E eu ach ei q ue ela ia me bater embora não fosse um h ábito,
mas o tom da conversa combinava com pelo menos um tapa e
talvez eu merecesse, mas ela voltou a mex er o feijão tentando
desgrudar do fundo da panela, tão cansada q ue ach ei q ue fosse
ch orar.
Se a minh a mãe estivesse viva neste instante eu poderia deitar
no colo dela, uma velh inh a inerme e afável q ue eu nunca
conh eci, ela já não fumaria, nem verteria cach aças, não por
precaução, mas por falta de praz er, as coisas ardem, rasgam por
dentro, os cach orros subiriam em nós devagar, doloridos, velh os
também, e ela sorriria confusa dentro das próprias ternuras,
faltariam mãos para faz er carinh o em mim e nos dois cach orros
ao mesmo tempo e esse ex cesso a arrebataria de amor.
Q uando a minh a mãe avisou q ue ia começar a morrer eu devia
ter gritado, brandido os ex ames no ar. Eu devia ter feito um
escâ ndalo. O silê ncio q ue eu deix ei naq uele q uintal. O silê ncio
q ue eu deix ei naq uele q uintal.
T R IN T A EQ U A T R O

Encontrei Elvis dentro de uma caix a de papelão no canto da


praça, soz inh o, se ele tinh a irmãos alguém já tinh a levado,
sobrou só o Elvis com um topete inusitado entre as orelh inh as,
ele cabia numa só mão, e eu estava no primário, tinh a uns sete
anos.
Fui andando pra casa com o cach orro dentro da jaq ueta, subi
direto para o q uarto, coloq uei água pra ele dentro da tampa da
minh a saboneteira, eu não sabia como ia alimentar uma coisa
q ue era assim tão menor q ue eu e me amava como se ama a
mãe, montava pela minh a saia e escalava os meus botõ es, o
rabo sorrindo de gratidão, era um rabo muito maior do q ue o
esperado para as suas dimensõ es diminutas e todo ele
ch acoalh ava de devoção à minh a ex istê ncia.
Então era assim q ue eu deveria me sentir em relação à minh a
mãe, e algo estava indo miseravelmente errado entre nós. Era
capaz q ue ela esperasse isso de mim, porq ue eu descobria ali
naq uela tarde com o Elvis q ue receber um amor assim era um
jú bilo incomparável, toda a minh a mísera ex istê ncia tinh a se
inflado de sentidos e propósitos.
Talvez esse fosse o problema, era isso o q ue faltava, eu
precisava me jogar no colo da minh a mãe sem aviso e beijar toda
a cara dela e me embrenh ar no seu pijama, e talvez ela
começasse a rir e tudo se alinh asse brutalmente. Mas eu não
conseguia.
Ela ch egava da fábrica, abria a porta com os q uadris, um
cigarro na boca, as mãos ocupadas com algumas compras –
garrafas – e me lançava um Oi enfastiado q ue talvez significasse
Por favor se atire no meu colo e escale os meus ombros
ex austos me ch amando de mamãe, e no entanto um abismo,
ninguém tinh a me ensinado como transpor esse tragadouro entre
nós duas, as outras crianças sabiam muito bem como faz er,
ninguém tinh a precisado ensinar, o Elvis obstinado nos
caminh oz itos do amor com as patinh as cavando a minh a barriga,
a Camila q ue eu só conh eci uns anos depois amava a mãe talvez
como se ama a um deus doméstico tirâ nico e indispensável,
aq uilo me irritava e atraía, q ue fascínio me brotava daq ueles
abraços calculados q ue ela dedicava à mãe sem h esitação e
eram recebidos com prontidão de autô mato, eu só precisava
dominar o repertório desse gestual e reproduz ir em casa, mas
nem disso eu era capaz , nem minh a mãe, duas atrofiadas.
Naq uela tarde enq uanto eu tentava memoriz ar com o Elvis
como é q ue se amava, outra preocupação era como escondê -lo
da minh a mãe, q ue ch egaria do serviço impávida e colossal
despencando seus desgostos pela mesa e amontoando-os em
latas na dispensa, totalmente despreparada para aq uela lufada
de fofura, ela rosnaria para mim até q ue o Elvis estivesse de
volta numa caix a na praça.
O ch ato é q ue o Elvis deveria ter ch egado um ano antes,
porq ue agora todos já sabiam q ue não pode levar cach orro na
escola, então eu não poderia me faz er de sonsa. No ano anterior
a professora tinh a deix ado levar no ú ltimo dia antes das férias
uma coisa de muita estimação, e um menino sacou da bolsa o
cach orrinh o, foi a maior confusão, todas as crianças q uerendo
pegar no bich o, pux ar o rabo, assoprar as orelh as, a professora
correndo atrás. Eu tinh a levado a minh a fronh a preferida.
Eu ach o mesmo q ue este abrigo deveria ter um ou dois
cach orros, não sei como não aparecem alguns da rua mesmo,
pedindo um fundo de arroz velh o q ueimado na panela de
alumínio, então eu e dois ou trê s idosos, dos mais lú cidos,
deix aríamos entrar em princípio apenas para a refeição num
canto do q uintal, ali perto do jardim de tinta spray pintado no
muro, e como q uem não q uer nada derrubaríamos uma toalh a ou
cobertor, e o animal como q uem não q uer nada deitaria em
princípio brevemente e depois sucumbiria diante de toda a sua
ex austão e q uando algum funcionário se desse conta ele já
estaria inteiro imbricado na nossa rotina, jogaríamos um limão
para ele buscar, cada idoso o ch amaria pelo nome de sua
preferê ncia, porq ue jamais teríamos um consenso, eu poderia
ch amar de Elvis, embora fora de moda h oje.
A Rosa é muito elegante e talvez não gostasse do cach orro
com as pulgas roçando na sua saia longa colorida e majestosa,
mas ela sentiria o alívio no ar, porq ue é isso q ue um cach orro
dissemina, alívio. O rabo abanando, o sono entregue, um
cach orro aq ui deveria ser obrigatório, coisa de lei mesmo.
Pensando bem, esse seria o nome, Alívio. Q ue bonitinh o,
como ele ch ama? Alívio. Lívia? Não, Alívio.
Enq uanto o Alívio não vem, recarregamos rotineiramente o
bebedouro para beija-flores, foi feito com uma garrafinh a plástica
furada com prego q uente, uma idosa artesã cortou tampinh as
coloridas no formato de flores e colou, digo artesã porq ue é
assim q ue ela se apresenta, artesã, não é uma conclusão minh a
apenas porq ue ela montou um bebedouro antiestético e ineficaz
raramente visitado por algum pássaro q ue é de imediato
apontado por algum observador atento, e nunca dá tempo de os
demais idosos se posicionarem para ver.
É preciso pô r q uatro partes de água para uma de açú car, mas
eles gostam de colocar muito menos açú car por causa da
diabetes, então nenh um pássaro vem.
O plano para o Elvis seria q ue ele crescesse no meu q uarto,
com breves banh os de sol no q uintal antes de a minh a mãe
ch egar. Enq uanto eu estava na escola, ele ficaria fech ado no
meu q uarto, e então eu precisaria correr pra recolh er toda a
sujeira antes de ela ch egar, e ao mesmo tempo soltá-lo um
pouco no q uintal, minh a vida seria bastante conturbada, mas
esse era o meu papel de mãe, é o preço a pagar pela devoção,
ser amada daq uele jeito obviamente teria o seu custo.
Ela jamais poderia ver o cach orro porq ue eu como mãe já
pensava mais nele do q ue na dor q ue eu mesma sentiria sem
ele, e ser devolvido à caix a de papelão seria o seu pior destino,
devolvido para Deus, para sempre q ualq uer amor h umano q ue
recebesse se revestiria de efemeridade, eu ainda não conh ecia
Camila então não sabia como é ruim ser devolvido em casa de
madrugada após um carnaval em vez de dormir com a amiga,
ainda assim já sabia q ue é muito ruim ser devolvido em algum
lugar para dormir soz inh o de madrugada, é ruim ser devolvido
em q ualq uer lugar, q uanto mais numa caix a na praça.
Tem um idoso aq ui q ue já foi reinserido na família trê s vez es
desde q ue estou aq ui e sempre é devolvido, a Rosa é repleta
dessas ex pressõ es, reinserção familiar, fortalecimento de
vínculos, convívio comunitário preventivo, protetivo e proativo,
mas se tudo der errado ela se vale da desfamiliariz ação, amo as
palavras da Rosa e a Rosa e q ueria q ue ela fosse a mulh er mais
feliz do mundo, ainda assim esse idoso é devolvido, diz ele q ue é
porq ue é bich a, mas deve ser porq ue bebe, então ele ch ega
bê bado cantando q ue a bich a voltou, vai entrando arrastando a
maleta q ue ele ch ama de valise, parece contente mas é muito
ruim ser devolvido onde q uer q ue seja.
A Rosa está entrando pelo nosso portão e não h á nenh um
Alívio para felicitá-la, o q ue é uma lástima, a saia longa avança
desimpedida pelos entulh os e cadeiras q uebradas do q uintal na
direção da mesinh a em q ue ela apoia a pranch eta, cadernos,
pastas, todo o seu arsenal de h eroísmo, e um por um vai ch ecar
com ela os seus benefícios, benefício é um nome estranh o pra
uma coisa q ue pessoas recebem de um país como contrapartida
por tê -las tornado tão miseráveis, benefício.
Depois ela caminh a ex aurida e abafada até o meu q uarto com
sua garrafinh a de água e conversamos aq ui no meu silê ncio
porq ue não tenh o benefícios, mas muitos privilégios. Entre um
golinh o e outro, conta q ue visitou o Antô nio mais próx imo daq ui,
q ue trabalh ava no Instituto Médico Legal na década de setenta,
um velh o solitário numa casinh a simples, mal q uis recebê -la,
bronco e desconfiado, olh ou minh a foto, nunca vi essa velh a! , o
q ue não q uer diz er nada, não sei q uando foi a ú ltima vez q ue vi
Antô nio, mas certamente eu era ainda muito jovem, q uando a
nossa filh a morreu esse h omem já não tinh a contato conosco h á
uma década, um raio na cabeça, uma tragédia, q uem iria
imaginar, não era nem uma tempestade, ch uvinh a à toa, uma
moça tão alegre. A Rosa pediu q ue ele mostrasse a certidão de
casamento e ele riu e não mostrou, parecia na verdade já um
tanto senil, então a Rosa entrevistou viz inh os até ter certez a de
q ue ele estava bem cuidado, toda assistencial, mas não tem
problema q uanto à certidão de casamento porq ue ela já solicitou
no cartório, tem uma tax a, eles dão um jeito, uns trâ mites, pronto,
nuns cinco dias está disponível, talvez conste Aurora e toda a
seq uê ncia de sobrenomes q ue sou eu.
Rosa se despede e segue para o seu ponto de ô nibus talvez
perigoso e talvez com seq uilh os e a garrafinh a de água q ue ela
recalibra no nosso filtro terroso, seria mais digno se fosse
acompanh ada pelo Alívio q ue pacientemente esperaria com ela o
ô nibus e voltaria para cá com a missão cumprida, um cão de
guarda.
Na primeira noite o Elvis ch orou tanto q ue eu tive certez a de
q ue a minh a mãe ia descobrir tudo e enfurecida com o barulh o ia
jogá-lo pela janela, ele q ueria ficar tão perto de mim q ue nada
bastava, dormiu aninh ado no meu pescoço com as patas de trás
dentro do meu pijama, então era assim o amor, uma afobação.
No dia seguinte era sábado, guardei o cach orro no armário
depressa q uando ela se aprox imou, q ue ch eiro é esse?
Falei q ue eu estava fedida, q ue rolei na grama e dormi sem
banh o, q ue fiz cocô na cama, nada foi suficiente, conh eço essa
tua cara, e saiu abrindo os armários, q uando ch egou no do canto
deu com a criatura terna, resignada sobre os meus casacos,
aninh ada num cach ecol, arderam os olh inh os com a luz q ue
entrou mas ainda assim o bich inh o olh ou pra cima direto pra ela,
o topete, as orelh inh as erguidas, minh a mãe estagnada
segurando ainda a porta do armário, o rabo dele começou um
h esitante movimento, ainda sem saber se era h ora de amar.
Na minh a cara já corria um ch oro imediato e q uieto. Minh a mãe
se abaix ou devagar, um movimento tão alienígena q ue parecia
q ue tinh am deslocado o seu eix o e agora ela orbitava diferente,
pegou o cach orro com as duas mãos embora uma só bastasse e
sobrava, ele piscou os olh inh os e a sobrancelh a estranh a fez
sacudir o topete, ela me olh ou muito séria, voltou a olh ar o filh ote,
aprox imou-se para ch eirá-lo e ele aproveitou pra lamber o nariz
dela. Minh a mãe começou a rir uma risada nervosa, alternava os
olh os para mim e para o Elvis cada vez mais depressa, o peito
retumbando, seria possível q ue ela precisasse muito de um
cach orro e nem desconfiasse disso? O alívio.
Ela abraçou o bich o com o rosto, vamos limpar essa sujeira e
arrumar um leite pra você , e saiu do q uarto levando o meu
cach orro, eu ainda podia ouvir a sua voz conversando com ele
num tom estranh amente carinh oso, então era isso, era assim q ue
eu me jogaria no colo da minh a mãe e afagaria o seu cabelo e
era assim q ue ela responderia Eu também te amo, o Elvis seria o
nosso mensageiro, ele se encarregaria de todos os carinh os q ue
não soubéssemos faz er.
T R IN T A E CI N CO

Rosa, as coisas estão muito claras h oje, a minh a amiga Camila ia


no banco traseiro, eu dirigia, depois q ue o Antô nio foi embora eu
precisei voltar a dirigir, talvez fosse o mesmo fusca colorido, ele
deix ou para nós duas, alguma coisa ele tinh a de deix ar, pagava
em silê ncio os eventuais impostos, tax as, o fusca ficou sendo
nossa comunicação, enq uanto ele mantivesse o carro mais ou
menos regular eu saberia q ue ele ex istia e se lembrava de nós.
Não sei se o filh o da Camila estava ali também, não, devia
estar com o Upa Lalá, não, estava no acampamento da escola,
nós pegamos o fusca e fomos à praia. Rosa, eu realmente
preciso q ue você anote isso, agora estou inteira iluminada desta
lembrança, deve ter sido o psicoterapeuta q ue você me arrumou.
Ele basicamente escutou as mesmas coisas q ue você , porém
sem anotar.
Minh a mãe tinh a morrido h á coisa de um ano, minh a Camila ia
na cadeirinh a de bebê , minh a outra Camila ia no banco traseiro
ao lado dela para distrair, cantar cançõ es, íamos pela pista da
direita.
A Camila me ex plicava uma receita q ue faríamos na praia com
um peix e q ue ela já sabia certinh o onde comprar, eu respondi
q ue precisava comprar coentro e tomate, ex atamente nesta
palavra o boi surgiu, de lugar nenh um do meio da mata fech ada
do trech o sem acostamento, disparou fugido de q ualq uer susto,
não faz ia seq uer sentido um boi ali, escapado de algum pasto,
colocou-se tão diante do carro q ue eu só pude saber q ue era um
boi depois, atravessou o vidro e massacrou o banco ao lado do
meu, indo parar inteiro em cima das Camilas, eviscerado e
implacável, a cabeça e o ch ifre direto sobre a minh a amiga, todo
o tronco e as ancas sobre a criança, o carro deu voltas em si
mesmo marcando a estrada de pneus, com as patas do animal
erguidas para fora, comigo nada de relevante se passou fora o
sangue de todos e o conteú do de diversos estô magos e
intestinos arrebentados q ue vieram me tingir compondo o ch eiro
da morte escorrendo no meu cabelo.
Isso faz uns trinta anos, Rosa, pode procurar nos jornais, deve
ter alguma coisa, ali sim eu saí em andrajos pela estrada gritando
por Camila, era evidente q ue já não tinh a Camila nenh uma, tentei
remover o boi com a minh a força, mas era impossível e inú til,
começaram a parar os carros, as pessoas q ue ch egavam perto
de imediato gritavam ou ch oravam, desmaiei e despertei muito
tempo depois e é isso, Rosa, vivi trinta anos tendo longos
apagõ es, e então alguém me encontra perdida no q uarteirão,
vem um psicoterapeuta.
Alguma coisa na minh a cara paralisa o olh ar da Rosa numa
seriedade q ue h á tempos não provoco, ela mex e no seu
celularz inh o, vai pra fora com ele porq ue aq ui dentro essa
porcaria não pega, já faz muitas décadas, esse acidente não vai
estar na internet, depois de nós trê s muitos outros atingiram
animais na estrada, você terá de faz er melh or q ue isso, Rosa.
Agora eu pergunto q ual o objetivo de tudo isso, para q ue
lembrar uma vida assim, elas eram tudo q ue eu tinh a, Rosa, no
h ospital me perguntaram para q uem ligar, não tinh a ninguém pra
ligar, Rosa, teve de ser o marido da Camila, e eu não consegui,
Rosa, não consegui contar pra ele, passei o telefone para a
enfermeira, não lembro o nome nem a cara dela, ela disse q ue a
filh a e a esposa dele infeliz mente faleceram, eu pressenti q ue ele
estava confuso, intervim: a filh a era minh a. Essa frase impossível
ficou ressoando, q ue tipo de frase é essa, A filh a era minh a, q ue
porcaria é isso de estar vivo se a q ualq uer momento podemos
ser emissores de uma frase assim, a filh a era minh a.
T R IN T A E SEI S

O Elvis articulava todos os espaços da casa antes insulados,


revolvia as nossas poeiras na sua liq uidez de filh ote preench endo
os cantos, pulava nos meus joelh os e depois escalava as pernas
da minh a mãe tentando entregar a ela o meu abraço, e assim
seguíamos diz endo Eu te amo por meio das lambidas do
cach orrinh o q ue era uma novidade ainda não inteiramente
assentada nas nossas emoçõ es.
Ela ch egava da fábrica mais animada, ouvia-se a voz dela
antes mesmo de estar na sala, o rabo do cach orro parafusando o
ar num desnorteio, os rituais de ch egadas naq uela casa eram
tudo q ue ele tinh a e poderia q uerer, e diante de todo aq uele
festejo eu sorria tímida, dava um embaraço vê -la assim entregue
a algum tipo de felicidade.
Eu era também uma espécie de filh ote, mas flanava sem
encanto entre os meus afaz eres enfadonh os, num sú bito regoz ijo
de ver o aporte de alegria q ue o meu cach orro podia traz er à
minh a mãe. Eu ainda não tinh a a amiga Camila, nem o medo de
derrubar uma boneca, ou falh ar na sua educação, as coisas
ainda eram mais ou menos simples, desde q ue se soubesse
sobreviver sempre, h avia uma coleção de perigos a q ue a minh a
mãe não estava atenta, mas como eu ficava soz inh a em casa
precisei me apropriar deles.
Então eu olh ava de longe a caix a de energia parcamente
encapada, os móveis q ue eu poderia escalar perto demais da
janela do andar de cima, os botõ es do fogão q ue fariam vaz ar o
gás, tudo isso eu olh ava para concluir q ue minh a mãe deveria me
alertar q ue ficasse longe desses perigos, ela devia diz er Filh a
nunca entre dentro da geladeira, não entre em lugar algum, como
eu já tinh a ouvido diz er alguma outra mãe na porta da escola a
respeito dos perigos do piq ue-esconde, aliás isso é um cuidado
q ue os adultos devem ter ao alertar as crianças alh eias sobre
q ualq uer coisa, num alerta inédito podem tomar-nos a própria
mãe, onde estava a cabeça da minh a mãe q ue não lembrava de
me dar aq ueles alertas q ue outra mãe veio dar?
Eu tinh a no q uintal uma amplíssima bacia baix inh a onde eu
cabia inteira, um tipo de cuia de metal gigante, se me deitasse
como um feto poderia dormir na bacia, deix ava o negócio ch eio
de água com sabão e as bonecas de molh o, lavava também
algumas pedras do jardim q ue q ueria ter comigo no q uarto, meus
bibelô s, aproveitava a água com espuma para simular um mar
revolto ch acoalh ando o barco q ue era uma leiteirinh a enferrujada
tripulada de h eroicos feijõ es. Era também a minh a piscina
possível.
Senti o vento e a sombra das pernas dela atrás, pendurando
as roupas, como se estivesse distraída ela me fez o primeiro
alerta de q ue eu me recordo em toda a nossa h istória – salvo o
de lavar sempre as mãos, mas isso era porq ue ela trabalh ava
numa fábrica de papéis h igiê nicos e então pensava o dia inteiro
em sujeira: esvaz ia essa bacia depois porq ue o Elvis pode cair
aí. Seguiu-se um silê ncio, então ela sabia antever perigos, esse
mecanismo ex istia dentro dela.
Olh ei bem a bacia gigante, o cach orro diminuto nem
conseguiria debruçar ali, q uicava contente pelo q uintal sem
atentar para o nosso embate, mãe, não tem como ele cair aq ui.
Estava declarada uma guerra. Eu não poderia ser considerada
justamente a fonte de algum perigo.
Estou te avisando, esvaz ia essa bacia depois. Ela entrou para
casa com o monte de roupas, lençóis, o cach orro foi com ela,
desbravando a rotina. Eu deveria ter percebido direito, assim
como diz íamos Eu te amo pela língua do Elvis, era de mim q ue
ela cuidava calculando os tropeços do cach orro, z elava
tardiamente pelo bebê q ue eu fui e q ue deve ter engatinh ado
livremente no q uintal desvigiado.
A bacia ficou ch eia, naq uela e outras tardes, e até com
espuma. Sempre q ue ela via, antes de dormir esvaz iava toda a
minh a água deix ando espalh adas pelo q uintal as minh as
bonecas encardidas, duras de sabão. Q uanto mais ela se
lembrava de abaix ar e doer as costas no esforço de tombar a
aguaceira pesada, mais me dava vontade de ch orar.
Num sábado ch egamos da venda, ela ia faz er um bolo para
fora, precisava de uns corantes especiais, também buscamos
frango pronto e uma ração de filh otes. Elvis tinh a de alguma
forma escalado e tombado para dentro da bacia, pode ter sido
um salto meio cambalh ota no fim de uma corrida, nadou o q uanto
pô de, as patinh as arranh ando as bordas escorregadias, fui eu
q ue o ach ei boiando, tentei depressa esvaz iá-lo do afogamento,
secá-lo, forjar q ualq uer outro acidente, mas ela foi ch egando de
pé por trás, correu para o q uarto e trancou-se, não fez o bolo da
encomenda, nunca mais aceitou q ue eu pegasse outro cach orro,
não soube amar direito o Perdoai e o Ofendido, pegou um deles
no colo trinta anos depois, vou começar a morrer, e eu não disse
nada.
T R IN T A E SET E

Há uma notícia da década de oitenta envolvendo um fusca e um


animal na estrada, uma das vítimas se ch amava Camila, o nome
da criança não constou na matéria, a Rosa lançou essa
informação e foi atender outras pessoas, de modo q ue me
instalei de novo no computador da secretaria onde antes tinh a
visitado cemitérios online e descobri por acaso listas e mais listas
dos mortos q ue o Instituto Médico Legal enviou para os
cemitérios pú blicos nos ú ltimos cinco ou seis anos, só no começo
da lista não tính amos nem deix ado o primeiro semestre de um
ano q ualq uer e já eram tantos os indigentes enterrados nesta
cidade, afundamento encefálico, objeto perfurocontundente,
perfurocortante, alguns tantos com um ou até dois sobrenomes
foram mortos a tiros – projéteis – no próprio bairro, outros só
mesmo a palavra DESCONHECIDO, não se ch ega seq uer no
mê s seguinte de tantos os óbitos, a impressão q ue temos diante
da lista dos nossos mortos é q ue estamos caminh ando sobre
pilh as deles, DESCONHECIDOS, se eu tivesse morrido na beira
da estrada confusa gritando Cadê a Camila a descrição do meu
corpo estaria nesta lista, DESCONHECIDA, como é simples
morrermos, concretiz ados numa lista de mortos, q uantos mortos
esta nação despach a todos os dias, dão-nos uma ú nica certez a,
q ue é nossa morte, e ainda assim nos deix am sem nenh um
detalh e, amontoam-nos em missas ou q ualq uer sorte de ritual
desesperado, entoamos coros, Agora e na h ora de nossa morte
amém, q ue h ora é essa, a da nossa morte, não custa avisarem
q uando será, deix am-nos aq ui faz endo planos à toa, é sempre a
h ora da nossa morte.
Rosa põ e as mãos no meu ombro doído, mira por cima de mim
a lista e diz q ue isso não tem nada a ver, e não tem mesmo, são
apenas mortos, Rosa, vê -los assim empilh ados em nomes ou
falta de nomes é uma espécie mais ch ocante de cemitério. Ela
repete q ue uma Camila e uma criança morreram num acidente
num fusca trinta e oito anos atrás, o animal atravessou o vidro,
ela ainda não conseguiu encontrar o nome da criança nem da
motorista sobrevivente, q ue ficou em estado de ch oq ue, usou
essa ex pressão, como é q ue você me comunica uma coisa
dessas desse jeito, Rosa?
Ela desconcertada, afinal, fui eu mesma q ue relatei esse
acidente, ela só está, veja bem, calma, Aurora, tudo isso ainda é
nebuloso. Como é q ue eu pude cansar tanto esta mulh er, a Rosa,
a tal ponto q ue ela deix e de perceber q ue uma coisa sou eu falar
q ue a minh a filh a morreu, outra coisa é ela vir me contar q ue a
minh a filh a morreu.
T R IN T A EO IT O

Rosa veio correndo h oje, um dia fora da escala, ninguém a


esperava, nem mesmo eu q ue a espero tanto, traz um envelope
na mão, deve ser a certidão de casamento do Antô nio, q ue é
também a minh a, eu suponh o, o meu nome inteiro.
Embora ela perceba tantas coisas, não parece notar q ue pode
ser até difícil aos trinta e poucos anos a mulh er decidir se q uer
ter um filh o. O difícil mesmo, porém, é ter setenta e cinco e não
conseguir decidir se deseja ter tido um filh o.
T R IN T A EN O V E

Aurora Almeida Alves, junto com meu cacofô nico sobrenome


outras peças da minh a vida despencam na mesinh a em frente
sem q ue eu tenh a a agilidade de ajeitar tudo, minh a amiga
Camila também era Almeida, brincávamos q ue éramos casadas,
minh a mãe diz ia q ue o meu pai só serviu para me deix ar para
trás com esse amontoado de As, na verdade Aus, já q ue os
sobrenomes iam ter assim a q uestão dos fonemas repetidos era
bom logo de cara acrescentar mais um, Aurora Almeida Alves, de
todos os motivos para q ue eu me ch amasse Aurora levei o mais
tolo.
A Rosa está suada do calor q ue faz aq ui, e lá fora, e nos
transportes pú blicos todos q ue ela deve utiliz ar muitíssimo, mas
não para de sorrir mostrando a certidão, minh a separação e meu
divórcio averbadíssimos décadas atrás, o q ue só pode significar
q ue tivemos mesmo a minh a filh a e ele não suportou, como seria
previsível, ficaria muito bem eu diz er q ue me divorciei porq ue não
suportei o laço com um funcionário do Instituto Médico Legal, de
todos os funcionalismos e burocracias corrompidas da época ele
tinh a de estar logo nessa, ia ficar bonitíssimo eu diz er q ue foi por
isso, mas por todos os â ngulos q ue se olh e aq uele divórcio foi
apenas um abandono, um abandono q ualq uer.
Agora não entendo o sorriso triunfante da Rosa se daq ui em
diante tudo q ue ela averiguar vai ser um novo enterro das minh as
Camilas.
Q U A R EN T A

Hoje aq ui no abrigo estão umas adolescentes voluntárias mais ou


menos ricas, de uniforme escolar, o voluntariado faz parte de
uma das matérias, eu sei como funciona, já dei aula em escola
assim, os alunos reclamam muito, ou então se inflam no regoz ijo
de serem tão importantes e voluntários enq uanto selecionam as
entidades q ue podem recebê -los e debatem se não é melh or um
lugar mais perto, fora de comunidades, o q ue eu compreendo
perfeitamente, este país insiste q ue temos de arriscar a nossa
própria vida, parece q ue esq uece q ue tudo q ue temos é essa
miséria de própria vida.
Então como este abrigo está assim até q ue bem localiz ado,
podemos supor q ue essas meninas são do time q ue não deseja
arriscar a própria vida, gosto de olh ar para elas, não são bonitas
nem feias, eu era assim também esteticamente apagada, essas
são as q ue mais dão certo. Entraram tímidas, logo se deram
conta de q ue não possuem nada a oferecer num abrigo de idosos
pobres despojados acima de tudo das famílias, enq uanto elas
estão aq ui resplandecendo sua saú de e lastro familiar, elas tê m
ch eiro de lastro familiar.
Tentam conversas minú sculas com os idosos de jardim, aq ui
não temos propriamente um jardim mas temos os idosos de
jardim, q uase fix am raíz es na sombra feia q ue faz em os postes e
fios da calçada, o olh ar pastoso na direção do portão como se
alguém fosse ch egar, e h oje ch egaram as voluntárias.
As meninas estão constrangidas sobretudo porq ue percebem
q ue estão presenteando idosos desconh ecidos apenas com a
graça da sua presença, e alguém q ue oferece um regalo desses
precisa estar inteiro enfeitado e preench ido de si, e elas não
estão, são melh ores q ue isso, ensaiaram alguma coisa, mas
agora parece q ue não faz sentido, não são cantoras, a mais alta
delas transpira muito e pergunta ao funcionário se algum
morador gostaria de aprender algo, se forem analfabetos elas
podem ensinar a escrever, a ler, a entoar cançõ es em inglê s, as
ideias já saem logo pegajosas de silê ncio e despropósito, logo se
vê q ue deveriam ter escolh ido um abrigo infantil, o q ue
encontram aq ui são crianças desgastadas e sem futuro.
Antes de me aposentar dei muita aula em colégio de pessoas
mais ou menos ricas e mais ou menos interessantes, era uma
escola boa, e as meninas me olh avam com condescendê ncia,
plenas da certez a de q ue eu gostaria de ser imediatamente
q ualq uer uma delas, voltar dez enas de anos e me tornar firme no
sh ort do uniforme, cadernos com ch eiro de ch iclete e fotos de
h omens estú pidos, e é evidente q ue eu gostaria, enfrentaria de
novo toda a minh a vida e ainda mais a delas q ue vai ser
maravilh osa e ch eia de familiares esclarecidos e amorosos,
então cada vez q ue eu as repreendia pela conversa no meio das
minh as frases e conjugaçõ es era isso q ue eu diz ia, fiq uem
q uietas um minuto por mim, não é por você s, você s tê m muito
tempo, fiq uem q uietas por mim, então com pena as alunas me
davam um minuto da atribulada atenção adolescente enq uanto
curtiam a vontade q ue eu possivelmente tinh a de sê -las, e depois
do sinal amargavam isso q ue é estar na melh or época de toda a
sua vida e ainda assim não ser feliz .
Nessa idade Camila e eu andávamos pelo bairro depois da
aula, não pensávamos em visitar abrigos pú blicos nem derrubar
generais, talvez pensássemos também em causar inveja à
professora, q ueríamos ler uns livros e comer doces, e eu
especificamente q ueria não me casar virgem, uma das coisas
mais estranh as de ser uma velh a é olh ar o jovem e não encontrar
q uase nenh uma semelh ança com o jovem q ue você foi, se eu
tivesse de me tornar essas meninas agora eu nem saberia como
conversar com as minh as amigas e pode ser q ue seja isso q ue
deix a essa sensação injusta de beira da vida, eu não estou na
beira da vida, elas q ue estão, incautas e frágeis.
Numa dessas andanças com a Camila um idoso de repente
abriu a porta de casa bem no instante em q ue subíamos a rua,
eu tomei um susto, parecia q ue ele estava ali o tempo todo
esperando a nossa passagem apenas para abrir a porta. Ele
estendeu um bolo em nossa direção, sorria afetuosíssimo,
ch amou com as mãos, encantador, e fomos indo para dentro da
sala dele pensando ambas q ue caminh ávamos para a morte e
q ue no entanto era impossível agir de q ualq uer outra forma. Ele
mostrou q ue tinh a trê s bolos, e não poderia ficar com tudo aq uilo,
faz ia q uestão q ue levássemos um, éramos subitamente netas
numa tarde q uente, o sol da janela iluminava misticamente os
bolos e a névoa de pó q ue flutuava na sala, pegamos o bolo
respondendo muito pouco, tímidas, apavoradas, a Camila
conseguiu sorrir e agradecer bem mais do q ue eu, ela sempre
conseguia.
Uma das voluntárias tenta falar com um dos idosos de jardim
q ue q uase não escuta e agrava o constrangimento geral.
Entregam brindes, inclusive para a acumuladora q ue se agarra
ao bibelô de plástico e me olh a buscando cumplicidade. Comigo
não tentam nada porq ue a minh a cara é inteira o avesso de
receptiva, o q ue não é intencional, elas deveriam vir conversar
comigo e me ensinar a escrever enq uanto eu digo q ue minh a
filh a morreu e eu não me lembro onde deix ei minh a casa.
Com o sú bito bolo nos braços mudamos o rumo, em vez de
irmos até a casa dela fomos até a minh a q ue era mais perto,
também porq ue o bolo do velh o estranh o causaria alguma
polê mica entre os adultos da Camila. O prato de isopor sob o
bolo faz ia os ruídos de isopor a cada passo nas ladeiras
enq uanto debatíamos o q ue tinh a sido isso, o q ue era esse
senh or na nossa vida. Se ele fosse Deus, q ual seria o resultado
de uma mordida no bolo, e de mordida nenh uma? Eu convencida
de q ue estava envenenado, ela já tinh a concordado em jogar
fora, mas os q uarteirõ es passavam e ela não jogava, depois me
convenceu de q ue deix ar num lix o poderia matar algum morador
de rua, e então era isso, tính amos uma bomba de Deus nas
mãos, e cada vez mais vontade de comê -la.
Não consigo imaginar essas voluntárias com um bolo nas
mãos, inviabiliz ados de repente os projetos para a tarde vaz ia. O
velh o q ue nos presenteou, se não era Deus, está h oje
certamente mortíssimo e esta é a barbaridade da vida.
Pousamos o objeto bolo na mesa da minh a sala q ue também
recebia um fach o de sol místico, a cobertura brilh ava, era uma
farta camada de açú car colorido ligeiramente gelatinoso,
cintilante, nós duas fedíamos um pouco, o suor da caminh ada e
da escola, tomamos banh o enq uanto o bolo esperava nossa
decisão.
Limpas tính amos mais fome. Num impulso voraz decidimos
q ue ninguém envenenaria uma cobertura, a cobertura
escandalosa é aq uilo q ue usam para cobrir e disfarçar com
açú car e calda de laranja o gosto e a feiura do veneno da massa,
só podia ser isso, e à s colh eradas devoramos depressa toda a
cobertura, ao q ue seguiu uma série de envenenamentos
psicológicos e revertérios de glicose.
Curiosamente as voluntárias sacam de uma sacola um bolo
caseiro, os idosos assomam à mesa e saem com fatias
migalh entas num guardanapinh o. Pego meu bolo também, mais
ou menos de fubá.
Hoje a Rosa não vem, foi bom q ue eu tive alguma distração.
De toda forma depois não durmo à noite. Camila e eu nunca
soubemos se o velh o tinh a envenenado a massa do bolo,
jogamos tudo fora depois de comer a cobertura.
Q U A R EN T A E U M

Desde q ue eu ch eguei aq ui botaram um relógio de parede no


meu q uarto, desses velh os de coz inh a com marrecos
desbotados, detesto o barulh o do ponteiro dos segundos, mas o
médico escreveu q ue era bom q ue eu me mantivesse o mais
situada possível, colocaram também um calendário.
Q uando a Rosa veio pendurar o reloginh o eu q uis brincar q ue,
q uando dão a você um relógio, não dão somente um relógio, mas
fiq uei q uieta pensando q ue uma alusão aleatória a um livro q ue
nem é deste país ia soar pedante, talvez eu tivesse de ex plicar:
um inferno enfeitado. Q uanto mais eu ex plicasse mais pernóstica
eu seria, e q uando ela desceu da cadeira satisfeita com a
simetria do relógio no prego eu lembrei q ue sou professora de
Portuguê s, então seria até natural q ue eu fosse um personagem
desses q ue cita um intelectual argentino q uando a assistente
social do abrigo pú blico de idosos pendura um relógio na parede,
O presente é você , é a você q ue oferecem para o relógio. Mesmo
ornando tão bem com a professora q ue eu sou, fiq uei q uieta,
porq ue sou ponderada e parcimoniosa nas minh as afetaçõ es.
Então a Rosa veio até mim e ofereceu seq uilh os.
Eu sei o tempo todo perfeitamente q ue h oras são e em q ue dia
estamos, o q ue já me coloca entre as velh as mais lú cidas deste
local, se as voluntárias q ue dia desses estiveram no pátio
viessem falar comigo uma delas descobriria o amor pela língua
portuguesa e decidiria ser escritora, e então faria um relato da
minh a vida, talvez em primeira pessoa pelo ex ercício de
alteridade, e como ela não tem nem q uinz e anos buscaria
palavras idosas para soar como eu, como a personagem q ue eu
sou, Patavinas.
É enfim carnaval e as march inh as estão repetindo num volume
bem baix o no rádio, a fax ineira folgou ontem e h oje, talvez esteja
pulando, mais provável pegou outro bico de fax ina, ou está
faz endo seq uilh os pra vender nos bloq uinh os, é uma opção, não
ach o q ue combina, mas seq uilh os francamente não combinam
com nada.
A Rosa também não vem, vem um enfermeiro descontente,
notei q ue o carnaval no abrigo de idosos é isto, a ausê ncia dos
q ue aprendemos a amar, e então nos cabe torcer q ue estejam se
divertindo. Ganh amos serpentina, mas a sugestão é q ue q uem
jogar depois passe uma vassoura, a acumuladora e eu
guardamos a nossa para outra ocasião. Não fiq ue triste q ue esse
mundo é todo teu tu és muito mais bonita q ue a camélia q ue
morreu.
Minh a mãe não era fã de carnaval, mas não é assim q ue
detestasse laz er, à s vez es me levava na matinê de domingo no
circo, o ch ato é q ue tinh a o segundo ato q ue era sempre uma
comédia ou melodrama e eu coch ilava no ombro dela. Talvez
isso fosse um carinh o.
Ela não gostava do carnaval, mas não devia ser pela bagunça,
eu concluí ainda meio criança, porq ue nunca esq ueci uma noite
em maio de 1959, era sex ta-feira, eu sei porq ue ela tinh a
ch egado cantando da fábrica e ela cantarolava só q uando não ia
trabalh ar no sábado, tinh a uma porção de bolos pra faz er, mas
isso era tranq uilo, ch egou fumando o ch aruto masculino portando
tantas sacolas de farinh a e açú car q ue nem tinh a mão pra abrir a
porta, ench eu um copo e largou-se na poltrona, Camila e eu
paramos nosso jogo da memória q ue estava mesmo sem graça,
ficamos as duas olh ando pra ela fumando na poltrona puída à
meia-luz do abajur com o copo na mão, estava bonita, eu não
tinh a reparado como minh a mãe podia ser bonita, pux ei um
assunto e ela me silenciou para ouvir o rádio, eram notícias sobre
este país.
O locutor ex tasiado narrava q ue a greve dos marítimos de
Niterói evoluiu para uma coisa ainda sem nome, a população
como sempre e agora mais do q ue nunca aglomerada nas barcas
precárias, h ouve alguma truculê ncia das Forças Armadas
despreparadíssimas para a logística do transporte pú blico, em
reação passageiros q uebraram uma vidraça da barca, e então
h ouve tiros para o ar, ao q ue seguiu uma espécie de motim
inacreditável. A cara da minh a mãe muito tensa, em nós trê s
começou a crescer um formigamento típico de q uem está
vivendo uma data h istórica, é isso a h istória q uando se forma
diante dos nossos ouvidos e enq uanto estamos vivos, o povo de
repente insuflado march ou até a casa dos donos dessa imensa e
ineficiente empresa de barcas até ocupar o palacete, o olh o da
minh a mãe arregalado, o ch aruto q ueimando devagar soz inh o
nos dedos, morreram algumas pessoas, mais de cem feridos, o
povo dentro da casa fez o q ue se pode ch amar de carnaval,
depois de arremessarem pelas janelas uma legião de móveis
elegantes e pich arem protestos nas paredes, os h omens
surgiram trajando as roupas das esposas e filh as da companh ia
de transporte, joias, vestidos, sapatos, roupas íntimas mais
sensuais do q ue seriam futuramente as da Camila esgarçadas
em corpulentos operários urrando nas varandas, seguiu-se um
desfile de sombrinh as, maiô s e toucas, em meio à s ch amas dos
colch õ es incendiados. O rádio entrou para os anú ncios, minh a
mãe abaix ou o volume e continuou com o olh ar estupefato no ar,
nós duas muito tensas sem saber se todos os revoltosos de
Niterói ou mesmo as Forças Armadas, q ue só conh ecíamos dos
trajes do Dia da Pátria q ue mais pareciam fantasias organiz adas,
iam atravessar estradas e montanh as até tomar a nossa casa e
os nossos vestidos, e de repente minh a mãe ex plodiu na maior
gargalh ada, longa, espasmódica, parando apenas para pux ar um
pouco do ch aruto e um gole da cach aça, fomos nos juntando a
ela, dançamos, isso então era um carnaval feliz .
Se a minh a mãe estivesse viva, teria a carcaça amainada de
velh ice, eu conseguiria um abraço tenro. É mentira q ue ela nunca
me alertou de perigos, lembrei q ue ela jamais me deix ava andar
com as mãos no bolso, Se você tropeça não tem tempo de apoiar
as mãos.
Começa a anoitecer e duas idosas mais a acumuladora estão
varrendo as serpentinas. No mais, este lugar começa a ser tudo
q ue tenh o, estou inteira entregue de presente ao relógio.
Q U A R EN T A E D O I S

A Camila q ue morreu junto a uma criança perto daq ui q uando


atropelaram um boi na estrada não era a minh a amiga Camila, o
bebê morto não tinh a o nome da minh a filh a, a motorista
sobrevivente matou-se anos depois, eu ainda estou aq ui.
Com o meu nome Aurora Almeida Alves a Rosa ch egou depois
ao nome da minh a filh a Camila, q ue de fato nasceu e na sú bita
certez a desse parto fico h ormonal, ex tasiada do amor pela minh a
filh a q ue tem uma certidão de nascimento e não tem uma de
óbito, esta q ue é o carimbo final da nossa ex istê ncia nesta
nação, minh a filh a q ue não demora a ter q uarenta anos, a melh or
idade q ue uma filh a pode ter, e eu consigo finalmente isto q ue é
parir uma mulh er q ue vai ter q uarenta anos.
Então foi isso, munida do nome da minh a filh a a Rosa
conseguiu com a ajuda de alguém da J ustiça o emprego atual da
minh a filh a, q ue é um desses cargos sem nomes nem definiçõ es
precisas em empresas despersonaliz adas, um trabalh o sem
tema, deve dar algum dinh eiro, mais ou menos gerente de um
mais ou menos subsetor de alguma coisa mais ou menos
importante e abstrata, e a Rosa ficou telefonando, não aq ui, num
outro lugar em q ue ela trabalh a, naq uele lugar em q ue h á muito
mais o q ue faz er do q ue cuidar de mim e ainda assim ela tecla
diversos nú meros até ch egar na voz da minh a filh a Camila, e no
meio disso tudo ela por óbvio já tinh a conseguido também o meu
endereço, mas ainda passou uns dias atrás da minh a filh a, o q ue
é sinal de q ue a minh a casa era o q ue menos importava, ou pode
ser q ue tenh a estado lá e a casa não tenh a q ualq uer informação
sobre mim fora talvez os esq ueletos do Perdoai e do Ofendido
em posição de fome.
Q U A R EN T A E T R Ê S

Q uando a minh a amiga Camila estava grávida do filh o dela q ue


foi morar no Méx ico ou Novo Méx ico, eu pensei se deveria
engravidar junto, a gravidez pode ser um tipo de relógio q ue se
dá a alguém e q ue nunca é apenas um relógio, é uma mulh er
q ue estamos oferecendo de presente ao relógio, como talvez
pudesse diz er o mesmo autor q ue não é deste país e falava de
dar de presente ao relógio, e é preciso estar muito atenta para
não a perder no flux o dessas engrenagens, se eu me desse de
presente ao relógio ao mesmo tempo estaríamos ainda mais
conectadas de rotinas, as rotinas dos anos.
Mas eu não fiz isso, pelas contas, não, demorei ainda muito,
eu não sei, filh a, não era só o Antô nio, claro q ue não era, eu não
estava preparada para a possibilidade, para a eventualidade da
sua morte, não sei q ue coragem me tomou anos depois, talvez
um rápido transe, um lapso q ue acomete as mulh eres e de
repente decidem q ue podem traz er para a própria vida o risco
mais absoluto, q ue é um filh o.
Q U A R EN T A E Q U A T R O

A Rosa demora muitíssimo a falar, eu finjo q ue q uero q ue ela


diga tudo de uma vez , mostro-me afoita, não q uero, a cara dela
já é um retrato lívido e frustrado do meu vaz io, então é isso,
minh a amiga Camila matou a minh a filh a, foi um acidente, ela se
matou depois. Minh a filh a Camila matou a minh a amiga, e está
presa. Minh a filh a Camila matou o filh o da minh a amiga Camila.
Pois calh ou q ue a minh a filh a Camila não me vê h á q uinz e
anos, proibiu q ue me forneçam o seu endereço, o nome do local
onde ex erce seu emprego despersonaliz ado, disse para a Rosa
q ue a Rosa não tinh a condição de entender, logo a Rosa, q ue é
uma mulh er q ue entende muito mais q ue Camila e eu juntas,
ex igiu q ue não ligasse nunca mais, falou alguma coisa ligada aos
anos de esforços e rupturas para ch egar aonde ela estava, q ue
se ela não tivesse sumido estaria presa dentro da minh a casa,
talvez tenh a usado a palavra sobrevivê ncia, sobreviver a mim,
mas é normal, é o q ue faz emos, sobreviver à nossa mãe, não é
isso, Rosa, não fiq ue assim sentida, pelo menos ela está viva,
mesmo q ue não possa ainda reconh ecer nisso nenh um mérito
meu.
Q U A R EN T A E CI N CO

E na insistê ncia a minh a filh a lembrou o nome da minh a amiga


Camila, de início não se lembrou, mas pux ou pela infâ ncia, veio
um possível sobrenome e um emprego antigo, a amiga q ue
rendeu o próprio nome dela, Camila, a Rosa ex austa de
escarafunch ar a minh a vida em mais e mais telefonemas, se eu
soubesse tinh a dito q ue não se apressasse assim, cuidasse
primeiro de todos os outros, eu posso ir ficando por aq ui, depois
nós vemos tudo isso com calma.
De início o telefonema foi confusíssimo, aos poucos ch egaram
aos nomes, a minh a amiga Camila ficou ch ocada com o
problema da memória, compadeceu-se muito de mim, usou
ex pressõ es benevolentes e idosas, minh a amiga ficou idosa e
gentil, não sabe de mim h á uns trinta anos, trocamos cartõ es de
Natal no final da década de oitenta, sabe como são essas coisas,
o marido fech ou a empresa familiar e arranjou um emprego bom
numa cidade mais ou menos longe, não, não tão longe assim, de
fato, mas as ocupaçõ es diárias, o menino na escola, a luta pra
recomeçar os trabalh os dela nesse outro lugar, a Rosa já não
ouvia direito, projetando como me diria tudo isso, não h ouve uma
discussão, nunca, nenh uma briga, a Camila riu ao telefone,
melíflua, nos primeiros anos faz íamos ligaçõ es longas, Camila
está q uase contente de se lembrar de repente de toda essa
h istória perdida, depois a Rosa sabe como essas coisas são, os
tecidos vão se esfiapando, mas veja bem, ela pode ver se não
consegue me encontrar um dia, o complicado é q ue o joelh o não
aguenta muito, então a viagem é difícil, mas dá-se um jeito,
talvez seja um pouco estranh o, mas se mesmo com o problema
da memória sobraram tantas coisas da nossa juventude, é coisa
de se pensar, novas risadinh as, o marido dela não anda muito
bem de saú de, somos todos velh os, é notório q ue o Upa Lálá não
ia gostar da ideia desse reencontro despropositado, ele toma
muitos remédios e se ela passar dois dias fora ele vai se
atrapalh ar. Então Camila respira fundo no telefone, ri de novo,
Era uma peça essa Aurora!
Sento finalmente no boteco da esq uina em frente ao abrigo
onde jogam dominó com a televisão ligada altíssima, apoio os
cotovelos na mesa plástica, h á um spray de garoa gelando as
variz es da minh a canela. Eles vê m colocar uma toalh a de papel
q ue imediatamente ganh a grumos molh ados, não sei o q ue pedir,
nem sei o q ue se pede num boteco assim, a Camila compraria
cigarros, eu normalmente um bombom murch o. Pergunto se tem
cach aça mineira, com a mesma insegurança com q ue eu faria
uma citação literária sobre presentear alguém com um relógio,
mas tem, sim, tem cach aça mineira, eu deveria ter engravidado
ao mesmo tempo q ue a minh a amiga. Aviso q ue vou pagar em
breve.
É normal, pode acontecer de a sua vida não dar em grande
coisa e então um dia os fogos de Réveillon são brutais e você
lembra q ue precisa proteger o seu cach orro q ue já não ex iste h á
algumas décadas então sai com ele andando assustado e
inex istente na coleira vaz ia à procura de silê ncio e de alguma
lembrança boa.
A cach aça tem o gosto dos meus vinte e seis anos recém-
casada, a garrafinh a na bolsa da Camila, o país morrendo em
silê ncio, alçapõ es, o Instituto Médico Legal, nossa risada com a
cach acinh a tentando ser feliz , era só o q ue precisávamos,
enq uanto ela ria eu pensava na morte q ue a q ualq uer momento
vem e termina as risadas e ela pensava no filh o q ue um dia
estaria esperando e depois seguiria esperando contente as
visitas raras do Méx ico ou Novo Méx ico, e eu tentando imitar
essa certez a de q ue as coisas todas seguem o seu caminh o
tranq uilas, e essa certez a nunca me preench eu enq uanto eu
cuidava de arruinar todas as coisas antes q ue se arruinassem
soz inh as.
A televisão do bar altíssima alerta q ue ninguém sabe
ex atamente o q ue está acontecendo mas está para ch egar neste
país uma espécie de pandemia, eu volto os olh os para o repórter,
penso q ue deve ser um filme ruim, dou risada, mas é o repórter
de sempre, já nos próx imos dias h á q uem diga q ue ninguém
deve sair de casa, e h á q uem diga q ue ninguém deve se
importar, um entrevistado diz q ue todos os velh os morrerão. Não
q uero dar muita atenção, uma coisa dessas não faz o menor
sentido, a cadeira de plástico cede um pouco q uando me ajeito,
não sei mais como me sentar num bar, eu não preciso ser assim
soz inh a, talvez na semana q ue vem eu possa me juntar a algum
clube de piscinas, ou de sinuca ou clube de livros, com ch á e
cach aça, talvez eu tenh a de esperar q uinz e dias segundo o
repórter, pode ser q ue alguém pergunte o meu nome e goste
muito do nome Aurora e sentaremos para almoçar num boteco
como se fosse um dia q ualq uer, mas na verdade será um grande
dia, estaremos ambas, minh a amiga nova e eu,
emocionadíssimas.
Pego dois canudos e escondo o copo na camiseta, presente
para a acumuladora.
Q uando eu andar cem metros de volta para o abrigo será q ue
os idosos todos estarão mortos de pandemia, será q ue a Rosa
vai parar de vir aq ui, o outro entrevistado avisa q ue na Europa
estão morrendo aos montes e isso sim é um bom alarme porq ue
se até na Europa estão morrendo assim q uem é q ue vai nos
valer por aq ui. Eu ia pedir um pastel, mas lembrei q ue de fato
não tenh o como pagar. Depois eu volto e pago, porq ue amanh ã a
Rosa vai me levar até a minh a casa, vou ser devolvida, talvez
mesmo para Deus. É muito ruim ser devolvido onde q uer q ue
seja.
− A minha filha disse o que eu fiz?
− Não pareceu nada específico, Aurora… Eu
− E a minha amiga?
− Realmente não houve nada, vocês foram se afastando
sem querer
− Eu mandei cartas
− Achei umas cartas na sua casa, numa caixa. Acho que
você não enviou
− Ela se lembrou rápido de mim?
− Falou que você foi uma amiga da juventude
−…
− U ma grande amiga
− Ela não reclamou mesmo nada de mim, Rosa?
− Nada, foram os caminhos, ela disse, caminhos da vida
− Ela é assim, não reclamaria nunca, mais fácil
desaparecer do que reclamar
− Foi só o tempo mesmo, Aurora
− Como está a voz dela?
− Delicada, cheia de gentilezas
− Ah, então ainda é a mesma voz de telefone. Ela tem
essa voz para telefonemas
− Ela ficou animada ao se lembrar de você
− L embrar. Nós nunca moramos juntas, Rosa?
− Não…
− Rosa, não fique assim, o marido dela está para morrer,
não está?
− Doente
− Ela vai me procurar. Vai morar na minha casa
−…
− E o filho, está no México ou Novo México?
− Novo México
− Sabia!
− Aurora, você tem mais uma consulta com o médico, vai
seguir em acompanhamento, eu posso tentar mais uma vez
ligar para a sua filha e
− E os cachorros?
− Vi uma foto deles, bem antiga
−…
− Sua casa é gostosa, assim que você entrar lá vai
lembrar muita coisa
− Tudo deu tão errado, Rosa, tão errado que era melhor
deixar esquecido
− Você tem um limoeiro!
− Nós vamos nos ver de novo?
− Sim
− Você tem a idade da minha filha
− No seu jardim uns passarinhos fizeram ninho
− É muito ruim ser devolvido
− É a sua casa, Aurora
− É muito ruim ser devolvido onde quer que seja, Rosa
Agradeço a todas as pessoas q ueridas q ue colaboraram com
este livro fornecendo medos e lidando com os meus tantos
pavores. Obrigada à tia e aos tios pelo fusca, ao primo Gui pelas
perícias e necrópsias, ao Danilo pelos palpites musicais, e à
Marieta pelas anedotas escolares. Obrigada à Luciana pelas
noçõ es de abrigos, instituiçõ es e muito mais.
Obrigada à Rafa e ao Du pela leitura atenta e carinh osa, e à
escritora Ana Rü sch e pela leitura profissional e afetiva. Obrigada
à Tati Bernardi pela leitura tão intensa e generosa.
Agradeço também aos meus pais, com seus medos tão
adeq uados, sempre na medida certa para amparar minh as
ponderaçõ es e ousadias.
Obrigada ao Perdoai e ao Ofendido, pseudô nimos dos meus
vira-latas Tabu e Lori Lamby .
Obrigada à Mila por ser tudo isso, e topar brincar assim com
nossas verdades e fantasias.
© Editora NÓS, 2021
Direção editorial SIMONE PAULINO
Preparação ANA LIMA CECILIO
Projeto gráfico BLOCO GRÁFICO
Assistente de design NATHALIA NAVARRO
Revisão ALEX SENS
Produção de ebook S2 Books

Imagem de capa CRISTINA CANALE


[P assante, 2011, 200 × 300 cm, técnica mista sobre tela.]
Reprodução fotográfica ROMULO FIALDINI
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
de acordo com ISBD

C313s
Carrara, Mariana Salomão
É sempre a hora da nossa morte amém:
Mariana Salomão Carrara
São Paulo: Editora Nós, 2021
272 pp.

ISBN 978-65-86135-37-4

1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.

2021-2963
CDD 869.89923
CDU 821.134.3(81)-31

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410


Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura brasileira: Romance 869.89923
2. Literatura brasileira: Romance 821.134.3(81)-31

Você também pode gostar