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SO B R E A O B R A P R ESEN T E:
SO B R E A EQ U I P E L E L I V R O S:
À amada Camila
por ser e permanecer tanto.
É sempre
a hora da
nossa morte
amém
Capa
Dedicatória
Folh a de rosto
Citação
Um
Dois
Trê s
Q uatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onz e
Doz e
Trez e
Q uatorz e
Q uinz e
Dez esseis
Dez essete
Dez oito
Dez enove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e trê s
Vinte e q uatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e trê s
Trinta e q uatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Q uarenta
Q uarenta e um
Q uarenta e dois
Q uarenta e trê s
Q uarenta e q uatro
Q uarenta e cinco
Créditos
U M
Minh a filh a Camila tinh a uma cor ensolarada pux ada do pai, um
cabelo forte q ue crescia rápido na frente dos olh os e eu mandava
q ue cortasse a franja, mesmo já moça eu insistia com a coisa da
franja porq ue ela andava de bicicleta com o cabelo no olh o e a
gente põ e filh os no mundo pra andarem de bicicleta, as cabeças
debaix o dos pneus dos ô nibus, tudo porq ue não cortaram a franja
e enx ergam mal, um ch arme.
A minh a Camila apesar de tentar tanto morrer de franja foi
morrer de outros cortes, sepse, a palavra q ue eu já conh ecia e
q ue era apenas uma palavra, embora uma palavra nunca seja
verdadeiramente pouco, foi uma comoção na escola, estava no
ú ltimo ano e ia cursar jornalismo.
A Camila não ia ex istir, nenh um filh o ia, porq ue o Antô nio
q ueria viver solto, grudado em mim, mas solto de todo o resto,
ninguém ch orando de madrugada, é nessa h ora q ue eu me perco
um pouco, q uem foi q ue venceu, mas ando convicta, eu venci, a
Camila nasceu e ch orou dentro de todas as madrugadas do
Antô nio até ele ir embora, era um ch oro igual ao de q ualq uer
criança, eu já estava preparada pra isso, no começo do
magistério tive classes de crianças q ue eram q uase bebê s, h oras
e h oras ch orando, é o canto deles, mas é isso, no fim se bota
uma criança no mundo pra q ue ela ch ore muito e faça uns anos
de companh ia mas a maior probabilidade mesmo é q ue morra,
por isso talvez estivesse certo o Antô nio, q uem é q ue consegue
viver assim lado a lado com a possibilidade da pior morte e a pior
morte era a da Camila, sábios os q ue evitam a possibilidade da
morte de suas Camilas e a ú nica forma segura é impedir q ue
ex istam.
Eu ach ei q ue eu fosse famosa, uma artista, mas não tem
nenh uma foto minh a na internet, a Rosa disse, então eu já sei
q ue sou professora, se eu fosse artista já teriam encontrado tudo
sobre mim, o médico perguntou se pode ser q ue Aurora não seja
o meu nome, eu espero realmente q ue seja, é um ex celente
nome, professoras de portuguê s tê m uma coisa curiosa q ue é
viver ensinando a língua q ue os jovens já falam o tempo todo e
portanto ach am q ue não precisam aprender mais ainda, e então
você divide aq uilo q ue eles ach am q ue sabem numa porção de
conceitos q ue eles decidem q ue não q uerem saber e no fundo
você só deseja q ue eles se comuniq uem bonito, é somente isso
q ue q uer uma professora de portuguê s, mas passa a vida
ensinando o q ue todos já sabem ou minú cias q ue ninguém q uer
saber dentro daq uilo q ue todos já sabem, por isso a Camila q ue
se comunicava bonito e amava a sua língua ia ser jornalista, e
não professora de portuguê s.
A ideia de ter um filh o vai além de gerar e apertar e amar uma
criança, o q ue você q uer é ter também um filh o adulto, ficar velh a
perto de alguém q ue ficou adulto e ainda te ama, porq ue os
alunos não, eles ficam adultos e esq uecem a professora de
portuguê s ou pelo menos não a amam, e é por isso q ue eu fico
revoltada com a Rosa, ela q uer q ue eu me lembre de tudo isso
q uando na verdade era muito melh or não lembrar q ue eu gastei a
minh a vida protegendo Camila de todas as q uinas dos móveis, o
perigo das pontas das facas, para ficarmos velh as juntas, ela
ainda não seria velh a h oje, mas certamente adulta, talvez q uase
q uarenta anos, q ue delícia ter uma filh a de q uarenta anos, foi
para isso q ue eu despejei e transbordei toda a minh a juventude
no berço da Camila, pra q ue um dia ela tivesse q uarenta anos.
Q uarenta anos, a idade q ue a Camila deveria ter h oje, é uma
idade q ue as pessoas imaginam, é uma idade normal, mas eu
me lembro de q uando eu ch eguei aos setenta anos, isso foi antes
de eu esq uecer a Camila e o meu endereço, portanto não h averia
em tese motivo para espanto, mas ch egar aos setenta anos foi a
maior surpresa da minh a vida, a novidade mais inédita de todos
os fatos previsíveis, porq ue nunca ninguém pode se imaginar
com setenta anos até de fato ch egar neles. Q uando a pessoa se
imagina com essa idade é feito assistir por trás dos olh os a
q ualq uer coisa q ue não é ela, é outra velh a, uma velh a q ue já
não é ela, porq ue ninguém pode ser o mesmo aos setenta, então
nunca somos realmente imaginados aos setenta, os
septuagenários imaginários são completos factoides, e bastava
q ue tivéssemos, aos trinta ou q uarenta, pensado em nós
mesmos, ainda q ue bem mais velh os, mas não o fiz emos,
pensamos numa outra velh a, e em sermos assim tão inusitados é
q ue reside a ex trema solidão de ch egar aq ui: nem nós nos
esperávamos.
Dou comigo mesma aos setenta e poucos q uando por toda a
minh a juventude me esperava outra, não assim, tão mesma, uma
outra q ue não pudesse se dar conta de todo o tempo q ue passou
– q ue é bem maior q ue aq uele q ue sobra.
Eu ach ava q ue indivíduos de setenta anos só deviam pensar
nas curvaturas de sua velh ice e o q ue passou já teria passado,
era a vida q ue aconteceu e pronto, mas não, as culpas ficam
jovens, não temos a idade das nossas culpas, são ch eias de
energia e ach o q ue não dormem, parece q ue ficam ainda mais
vigilantes no nosso sono, traz em insistentes sonh os sem
criatividade q ue são na verdade arremedos da própria culpa,
releituras da vida q ue já foi. Eu sonh o insistentemente q ue não
tive Camila e q ue portanto Camila não morreu e estou transando
com Antô nio belíssimo, talvez não seja Antô nio, estamos
bê bados numa festa e temos q uarenta anos, q ue é a idade q ue
deveríamos ter sempre, ao ser h umano deveria ser assegurado o
direito de ter a todo momento q uarenta anos, do princípio ao fim.
O problema desses sonh os é acordar deles, são ch icletes q ue
mastigamos seis, oito h oras, entusiasmando o estô mago, sem
engolir nada.
Eu ach ava q ue aos setenta sonh ávamos menos, ou q ue
acordávamos sem lembrança da noite, preocupados com a
cafeteira, a água dos beija-flores, o leiteiro q ue vai passar. E
nessa imagem q ue eu tinh a dos velh os morava até mesmo o
absurdo de um leiteiro na década de sabe-se lá q ue futuro em
q ue ch egaríamos todos aos setenta anos. Ch eguei aq ui, e ainda
h á pesadelos – q ue são também os sonh os bons, por tornarem
aterroriz ante a própria realidade q ue lh es sucede. Ch eguei, e
como h á pesadelos.
Então foi isso, Camila cresceu dócil, teve uma adolescê ncia
inofensiva, indício de q ue q uando tivesse q uarenta seríamos
amicíssimas, um dia ela fech ou o caderno e iluminou com o
lustre um corte mal cicatriz ado no q uadril, engrumado e cinz a,
muito q uente, a Camila tinh a a pele ensolarada q ue pux ou do pai
e além disso tinh a tomado muito sol com as amigas, era
importante a marca do biq uini, importantíssima, sobre isso eu
não poderia intervir, ela ia de bicicleta até a casa da amiga q ue
tinh a q uintal, mas não tinh a piscina então se molh avam na
mangueira, lindíssimas, eu mandava cortar a franja q ue
atrapalh ava os olh os na bicicleta, o perigo do pneu dos ô nibus
sobre a cabeça, também mandava avisar q ue ch egou, q ue saiu,
tomar suco de laranja fresco, mandava também q ue corrigisse a
redação q ue esq ueceu em cima da mesa repleta de sujeitos
preposicionados, como me enervam os sujeitos preposicionados,
logo minh a filh a, e agora o bronz eado escamoteando os
descaminh os da ferida, a verdade é q ue eu posso nunca ter
avisado q ue ela precisava lavar com sabonete na h ora q ualq uer
mach ucado, um assim tão grande precisava ainda mais
desinfecção, ou não pedi duas vez es no mesmo dia e aos filh os
tudo q ue se q uer de verdade é preciso ordenar ao menos duas
vez es, em ocasiõ es próx imas.
Ela tentou desconversar ao mesmo tempo em q ue me pedia
ajuda, mostrar a ferida era pedir ajuda, tinh a se cortado no jardim
da amiga enq uanto corriam com a mangueira aberta, não sabe
diz er em q ue espécie de prego saltado de um cano ou árvore,
talvez algo q ue pregasse a rede, não era q uestão de ferrugem,
não, mas talvez tenh a sido um pouco mais fundo, coloq uei a mão
na testa dela, febril.
Tinh a prova no dia seguinte, é impressionante, a morte além
de tudo tem desses ardis, disfarça-se tanto q ue parece estar em
algum lugar rindo enq uanto nos ocupamos do cotidiano como se
ela não estivesse à espreita, limpei o corte, dei um antitérmico,
no dia seguinte ela não se levantou para a prova, vomitava, a
febre muito mais alta, um ch eiro esfumaçado saía do
mach ucado.
Foi tanto tempo no h ospital q ue passei a ter rotinas
completamente naturaliz adas q ue envolviam a identificação
constante junto à recepção, ligar para o professor q ue me
substituía e ex plicar detalh es de cada aluno para as avaliaçõ es
finais, e correntes de oraçõ es q ue a escola me mandava e eu
ach ava q ue desprez ava mas em verdade eram a minh a ú nica
companh ia, esse deus dos outros.
À infecção generaliz ada seguiu-se um coma induz ido por
meses, eu me despedia a cada noite da minh a menina minguada
e esmaecida. Camila morreu numa manh ã em q ue eu estava tão
ex austa de temer a sua morte q ue não tive a força para o
desespero, o médico disse q ue O fato dela estar com o sistema
imunológico um pouco fraco… , e esta é uma culpa q ue mesmo
aos setenta e poucos anos eu deveria ter conseguido suprimir, o
incô modo q ue eu senti com o sujeito preposicionado q ue o
médico usou, ficava voltando a frase, E o fato dela ter demorado
tantos dias, Dela Dela Dela Dela, se este h omem não sabe diz er
uma coisa tão simples talvez não saiba de bactérias, não saiba
de mães e filh as, desde o instante em q ue eu decidi q ue teria um
filh o eu sabia q ue era possível perdê -lo algum dia, foi escolh a
minh a. Mais uma culpa.
T R Ê S
Hoje Rosa vai ficar muito ch ateada, mas estou segura: não tive
filh os. Como Antô nio está morto, não tenh o nenh um nome para
ela procurar, mas lembro sempre o nome da minh a amiga, uma
grande amiga, a maior amiga q ue poderia h aver, Rosa, mais do
q ue uma filh a, é esta amiga q ue você deve procurar e ela vai
saber resgatar cada segundo da minh a vida, deve estar me
procurando desesperada, ela vai te contar q ue eu nunca tive
filh os, o Antô nio não q ueria e de tanto ele não q uerer eu não
q uis, e certo ele, o mais provável era q ue o filh o morresse antes
dos q uarenta depois de h aver esgotado nossa juventude, essa
grande amiga vai ficar ch ocada q ue me encontraram
desorientada assim, depois vai rir da minh a cara, Aurora-do-céu
como isso foi acontecer! Não vai diz er Aurora-do-céu porq ue
Aurora possivelmente nem é meu nome, mas vai gritar aq uele
q ue é meu nome e com esse nome ch afurdar todo o calabouço
da minh a vida, um abraço apertado, vamos pular ainda q ue
velh as, ela vai tirar uma garrafinh a de cach aça da bolsa
ex plicando q ue é de Minas, muito boa, eu vou amar, vai procurar
neste q uartinh o verde e branco algum copo e não vai ach ar,
então tomaremos no gargalo, eu lembro perfeitamente desta
amiga, o nome dela é Camila.
Rosa vai ficar ex ultante com esta minh a memória, Camila
sempre foi adorável e agora deve estar uma velh a divertidíssima,
ficou viú va no momento correto, já sem paix ão, só um amor
gastadinh o, bem usado, numa h ora em q ue ela já era velh a o
bastante pra ter entendido q ue não precisava de h omem, mas
Camila teve um filh o, ele mora no Méx ico, ou era Novo Méx ico,
aposto q ue isso faz toda a diferença mas infeliz mente não tenh o
como lembrar um detalh e desses, Camila vai perdoar, ela perdoa
cada coisa.
Então ela virá me buscar soltíssima de h omem e amargurada
porq ue o filh o q ue tem justamente a faix a dos q uarenta ou
q uarenta e cinco anos não é aq uele amigo q ue estava no
contrato, não, q uando ela gestou e pariu e az edou toda a casa de
leite e fralda e depois acordou tão cedo para levar na escola e
parou de pintar – ela pintava – para pegar mais trabalh os odiosos
– mais tarde lembrarei a profissão dela –, então Camila estará
frustrada com esse filh o q ue em vez de ser um incrível laço foi
morar no Novo Méx ico ou Méx ico, mas ainda assim permanece
sendo um filh o, e vivo, coisa q ue não é tão comum, como todos
sabem, então ela vai tirar a cach acinh a da bolsa e vamos tomar
inteira – é daq uelas peq uenas, de bolsa, q ue incrível ex istir uma
cach aça de bolsa –, e depois q ue terminar de resgatar minh a
vida inteira ela vai me mostrar onde é minh a casa e como ela é
finalmente viú va vai acabar ficando pra dormir, vamos ver filmes
de madrugada como se tivéssemos q uinz e ou q uarenta anos,
depois vai perguntar se q uero ir à praia no final de semana.
Eu vou falar q ue não precisamos esperar o final de semana,
com meu nome recuperado eu provavelmente terei uma
aposentadoria caindo em algum banco, nós não temos mais
q uarenta anos, talvez esteja aí a ú nica vantagem de uma boa
velh ice – não como a velh ice dos idosos deste lugar –, q ualq uer
dia é final de semana, então vamos acordar e eu vou falar pra
tomar cuidado com o ch uveiro elétrico q ue faz tempo q ue
ninguém vem me ajudar com uns fios q ue estão soltando
estranh os por cima, melh or ela pelo menos tomar banh o de
ch inelos, porq ue Camila é uma sobrevivente, espantoso q ue
tenh a conseguido permanecer viva, tamanh o o perigo das suas
condutas, a começar pela bicicleta q ue q uando jovem ela usava
indiscriminadamente, em q ualq uer avenida, com uma franja q ue
caía pelo olh o, não enx ergava nada.
Antô nio deveria ter vivido um pouco mais, pelo menos até o
marido da minh a amiga Camila morrer, porq ue h ouve um período
em q ue fui mais soz inh a do q ue uma pessoa pode ser, mas
ninguém sabia, porq ue a solidão dos outros é uma coisa q ue a
gente lembra só de vez em q uando e logo joga para longe da
cabeça antes q ue se instale a culpa, porq ue é muito mais fácil vir
a culpa do q ue uma visita, Camila me visitou pouq uíssimo, pelo
menos na minh a opinião, e eu ch eguei a culpar o Antô nio q ue me
fez não ter filh os pra vivermos juntos essa maravilh a q ue é a
liberdade e o tonto não conseguiu passar dos sessenta e poucos,
grande porcaria de liberdade uma vida até os sessenta e poucos.
Fiq uei tão soz inh a q ue corrigia meus próprios erros de
portuguê s, erros não, gafes, desliz es. Camila é uma mulh er boa,
ela tinh a sempre alguma companh ia para faz er ao marido, então
eu peguei um jabuti de jardim, porq ue os cach orros já tinh am
morrido também e eu fiz um cálculo. Se eu pegasse um cach orro
aos sessenta e dois anos, vamos supor q ue o cach orro tivesse
uns trê s anos, e vivesse uns dez esseis, seriam mais trez e anos
de vida, era possível q ue eu sobrevivesse a ele, de modo q ue lá
pelos meus setenta e cinco anos, q ue é mais ou menos o q ue
devo ter h oje, poderia ver a morte de mais um cach orro, e isso
não, isso eu não suportaria, então, tal como a q uestão dos filh os,
era melh or não ter um bich o cuja dor da morte você é incapaz de
suportar.
O jabuti ficou na minh a casa aonde nunca mais voltei porq ue
não sei onde está, então deve ter comido q uase todo o jardim e
talvez escapado por baix o do portão, se fosse um cach orro teria
morrido olh ando a porta obcecado com a ideia do meu retorno.
Q uando Rosa encontrar a minh a amiga elas vão entrar juntas e
eu estarei deitada com um livro, será algum dos livros q ue líamos
na época de meninas, para ficar mais dramático, assim ela vai
primeiro se assustar com as paredes descascadas daq ui e o
verde q ue gosto de ch amar de verde-velh o, h á o az ul-bebê , o
verde-água e o verde-velh o q ue é esse tipo de verde vulgar q ue
usam em lugares para velh os, depois ela vai se ch ocar com o
meu cabelo e então os olh os vão baix ar até a capa do livro e ela
vai ch orar instantaneamente, pegar a cach aça da bolsa, et
cetera.
Q U A T R O
A Rosa troux e dez oito fotos de cach orro pra eu apontar q ual
parece o meu e a partir dele lembrar muito mais. Evocação, o
médico disse, e eu gosto de rituais ch ancelados pela medicina. O
remédio q ue ele passou contém na bula a palavra agonista,
também estou satisfeita com isso, um transtorno poético só se
trata mesmo com algum tipo de agonia.
O meu cach orro está soz inh o no meu q uintal q ue não lembro
onde fica, está sofrendo muitíssimo ach ando q ue deix ei de amá-
lo, não sabe q ue é impossível deix ar de amar um cach orro.
Ela diz q ue se esse cach orro de fato ex iste os viz inh os já
acolh eram, ou acabaram com ele. Q ue adiantam dez oito fotos de
cach orro se o Perdoai é vira-latíssimo, não lembro a cor, mas é
uma mistura tão total q ue constitui a essê ncia, o cach orro
absoluto.
Não adianta, Rosa, Rosinh a, Rosa-do-céu, as fotos não tê m
nada do meu Perdoai. Ela riu desse nome, mas é um nome muito
q uerido, minh a amiga Camila tinh a acabado de sair do coral num
começo de tarde de sábado e foi me encontrar lendo numa mesa
de bar na praça, aposentadíssima, plena, daí fomos num evento
de plantas, no fundo do evento de plantas tinh a é claro cach orros
massacrados pela vida, miseráveis, numa jaula improvisada,
implorando q ue duas senh oras viz inh as e amigas de toda uma
vida adotassem pelo menos dois deles para serem amigos de
toda a vida, então o meu ficou ch amando Perdoai e o dela
Ofendido, mas só diz íamos Ofendido q uando dávamos bronca,
normal era Dido.
Não sei muito sobre o q ue me tornei, mas é certo q ue sou uma
pessoa q ue tem sonh os de vida enq uadráveis em peq uenas
imagens precisas, eu seria totalmente feliz se alcançasse ao
menos um dos meus q uadros de perfeição, mas sempre algum
detalh e me escapa. A ideia de duas senh oras amigas de toda a
vida criando e passeando com seus dois vira-latas igualmente
amigos da vida era toda a minh a motivação, e realiz ei dedicada
todos os passos para alcançar essa felicidade, caminh aríamos
sorrindo pelo bairro, também nos parq ues. Com o tempo os dois
seguiriam soltos, sem coleiras, saltitariam um do lado do outro
disputando a bolinh a q ue jogaríamos ora ela, ora eu, sem
interromper o assunto, porq ue temos muito assunto, Camila e eu,
depois levaríamos os dois à praia, ficariam duros e salgados
amaçarocados de areia e, como não teríamos filh os a perder, os
cach orros poderiam lamber nossa boca enq uanto riríamos
estiradas na canga e eu seguraria a mão dela e com a outra ela
abriria uma cach acinh a de bolsa e sorriria com os dentes
transbordando e me diria q ue pux a q ue bela vida nós levamos
assim com todo o tempo q ue tivemos pra nós e enfim ex austos
os cach orros dormiriam no pô r do sol aninh ados um no outro.
Porém duas semanas depois q ue os pegamos da jaula da
ONG no fundo do evento de planta os dois desenvolveram um
ciú me doentio de mach os e só h avia ofensas e nenh um perdão,
ch egavam a arrancar sangue e babavam rosnando à distâ ncia
q uando pressentiam um ao outro, Camila e eu tính amos de
revez ar o cach orro q ue ia nos acompanh ar nos passeios, mas
nenh uma q ueria deix ar o seu soz inh o, o Perdoai já identificava a
ligação telefô nica e ficava com as orelh as em pé, e acabou q ue
por causa deles nos víamos cada vez menos.
Era tanto o ciú me q ue um atendia muito mais pelo nome do
outro, e de tanto acudirem trocados q uando os ch amávamos,
tropeçando nas próprias brigas, aceitamos trocar os nomes, e
Ofendido ficou sendo Perdoai e vice-versa.
Houve outros q uadros ideais da minh a vida q ue, antes deste,
falh aram por algum detalh e. Eu q ueria tanto ter um filh o, de
preferê ncia uma filh a com Antô nio e cada um de nós seguraria
uma das mãoz inh as dela, uma foto a cada ano de vida na
mesma posição e q uando ela tivesse q uarenta anos, q ue é a
melh or idade de um filh o, ela nos faria ficar na mesma posição
para uma foto igual, os pais idosos, q ue é isso q ue pensaria q ue
sou, idosa, não combina comigo, prefiro velh a, consigo acreditar
mais, ela seria tão gentil, faria um álbum com todas, não na
internet, um álbum revelado mesmo, q ue eu adoro a palavra
revelar, no tempo em q ue se revelavam as fotos as imagens não
ex istiam até q ue fossem reveladas e as lojas se ch amavam
reveladoras e os nomes eram variaçõ es de revelaph oto e q uando
a pessoa ia buscá-las h avia a emoção de adivinh ar se aq uela,
ex atamente aq uela cena se revelou ou falh ou, porq ue também
tinh a isso de as imagens falh arem, como as minh as imagens dos
sonh os ideais, q ue no fim não constavam do meu envelope na
Aurora Revelaçõ es® .
Antô nio não q uis de forma alguma o filh o e eu tonta me perdi
naq uele h omem q ue nem era amplo nem vasto, era facílimo sair
das suas dimensõ es, ainda assim ele era a perspectiva de outra
imagem q ue eu também poderia revelar à perfeição e q ue de fato
funcionou por muitos anos, era o nosso romantismo indefectível
tépido cálido, todas as palavras confortavelmente sensuais
cabiam no nosso amor, mas para a imagem completa ficar
realmente revelada era preciso envelh ecermos juntos, eu
precisava ter nele o registro de toda a minh a memória, a
cumplicidade de uma vida inteira. Antô nio morreu mal tinh a
começado nossa aposentadoria.
Vou diz er à Rosa q ue é por isso q ue demoro a lembrar a minh a
vida, não foi revelada, fui buscar minh as fotos e o rapaz falou q ue
o filme todo q ueimou, ou então não sei, ficaram todas borradas,
minh a vida foi um grande dedo na frente da lente, o fotógrafo
diz ia Sorriam, mas sempre faltava alguém na foto, e sempre o
dedo na frente.
SET E
Foram trê s vez es, eu ach ei q ue era impossível pensar uma coisa
dessas de um filh o q ue ex iste e já se tornou toda a raz ão da sua
vida mas h á uma linh a de abstração a q ue as mães tê m direito e
segue paralela ao amor maternal, sem afetá-lo, e nessa linh a
abstrata foram trê s as vez es em q ue ch eguei a pensar q ue teria
sido melh or ela nunca ter ex istido, são brevíssimos pensamentos
q ue não ch egam a tomar a forma de palavras mas ficam
cravadinh os no peito ou no estô mago, e no geral tê m a ver com o
tamanh o insuportável da dor q ue a gente percebe q ue um filh o é
capaz de provocar com a ameaça do seu perecimento.
A primeira vez teve relação com abaulamento da moleira, a
moleira é uma coisa q ue ex iste para diz er aos pais q ue eles tê m
uma missão e essa missão é garantir q ue aq uela cabeça ainda
aberta permaneça imaculada, é só isso, não deix ar cair, não
golpear. Parece simples mas pode ocupar todos os espaços
vaz ios das ideias de uma mãe, não se pega o bebê minú sculo
sem tatear com os dedos os espaços vagos, suspira-se a
moleira, lamenta-se a lentidão geográfica das suas placas, se eu
fosse de rez ar teria rez ado, não nos deix eis cair sobre a moleira
livrai-nos do mal, perdoai nossas ofensas, ofendido, amém.
Não h ouve nenh um abaulamento, nunca. Mas era a
possibilidade de h avê -lo q ue uma vez no seu ex tremo plantou um
susto de pensamento diz endo q ue era melh or não ter tido aq uela
criança já q ue a minh a vida – aq uela vida q ue eu sempre amei
mil vez es mais do q ue os outros pareciam amar as suas próprias
vidas e de um jeito paralisante a ponto de ter passado tantos
anos bem q uietinh a pra não provocar nenh um general, porq ue a
minh a vida era a coisa mais importante do mundo – tinh a sido
completamente arruinada pela mera h ipótese de abaulamento da
moleira da Camila.
Mas então a cada dia q ue a moleira resistia minh a bebê
aprendia algo novo, um sorriso, uma sílaba, e q ue coisa
impressionante e total e absoluta era isso de se entregar inteira
para faz er outra pessoa q ue na melh or das h ipóteses seria igual
a você q uando ch egasse à maravilh a dos q uarenta anos.
A segunda vez foi q uando aos onz e ela teve uma apendicite
primeiro silenciosa e depois aguda, agudíssima, já com todo o
poder acumulado na fase silenciosa, e apendicite é uma coisa
irritante porq ue todos sabem q ue dói mas q ue pode se passar a
q ualq uer um e então tudo bem, eu estava dando aula e vieram
me ch amar porq ue no outro andar a minh a filh a convulsionava de
dor e inflamaçõ es, depois já no h ospital cada h ora era uma
notícia e a inflamação já tinh a tomado conta de tantos órgãos,
órgãoz inh os o médico diz ia, como se a criança fosse eu, e talvez
fosse, e eu sacudia os ombros do h omem, a tex tura do avental
na minh a mão, era só uma apendicite h omem-do-céu, e ele
simplesmente não diz ia q ue tudo ia ficar bem porq ue ele não
sabia e naq uele momento ele era tudo q ue tính amos e eu me
imaginei saindo daq uele h ospital sem a minh a Camila q ue ontem
mesmo tinh a ficado até tarde faz endo lição de casa ainda q ue
indisposta mas sem q uerer alarmar a mãe porq ue a sua não é
uma mãe q ue se possa alarmar sem graves conseq uê ncias mas
vejam só o q ue é uma grave conseq uê ncia e aprendam q ue o
medo e a precaução estão sempre certos e andam juntos, eu ia
perder a minh a filh a para uma apendicite q ue é uma doença de
merda q ue q ualq uer idiota tem e trata, e a ú nica coisa q ue me
restaria a faz er no auge dos meus q uarenta e poucos anos, a
idade perfeita, era encerrar de imediato a minh a vida e eu pensei
meu Deus se era pra morrer assim aos onz e anos porq ue raz ão
você foi ex istir e esse pensamento veio apenas para me carimbar
a ch umbo q uente e escapar de imediato, dias depois ela ficou
bem, fomos pra casa, as amigas da escola fiz eram uma roda em
volta perguntando coisas q ue ela respondia como um médico,
inflamou todos os órgãoz inh os.
A terceira e definitiva vez foi aos q uatorz e dela, cursava a
mesma série em q ue eu lecionava, mas em outra turma, o
colégio evitava coincidir professores com seus filh os alunos,
algum problema de autoridade, e então h ouve uma grande
viagem q ue congregava diversas disciplinas, os jovens veriam
roch as específicas, basálticas areníticas magmáticas lá sei, e
então veriam usinas, nascentes, cach oeiras, culminando outro
dia num centro h istórico com igrejas de séculos atrás,
provavelmente casas de taipa, esculturas religiosas, construçõ es
barrocas e rococós cujos â ngulos eles estudariam com esq uadro
e compasso, e refeiçõ es não inclusas. Depois ch egariam à praia
para uma ú ltima noite recreativa em q ue alguns iludidos
planejavam perder a virgindade com estilo, pú blico e h umilh ação.
Os professores ch egaram a me perguntar se eu não conseguia
incluir alguma atividade no contex to da língua portuguesa, mas
eu discordava da viagem, o Portuguê s estará como sempre em
toda parte, repliq uei, até pensei em propor escanção dos
câ nticos das igrejas, poetas locais, optei por uma redação, na
volta, relatando a viagem, seria feita ao vivo, sem q ualq uer
consulta, a cada erro perderiam um ponto, para aprenderem a
substituir as ex pressõ es q ue não dominam por outras mais
simples, meus colegas ach aram uma atividade enfadonh a e
desestimulante, mas era sempre assim, por troça começaram a
me ch amar pelo nome de alguma personagem da novela da
época, já não lembro.
E então essa foi a terceira vez q ue por um instante ch eguei a
pensar q ue era melh or Camila nunca ter ex istido, na transição
entre uma cidade e outra, já no começo da noite, os meninos
suados provavelmente brincando de pux ar os sutiãs das meninas
por trás e soltar num estalo dolorido, não sei o q ue a Camila
faz ia, talvez uns fones de ouvido, ou dormia, ou beijava um
daq ueles imundos no fundo do ô nibus porq ue só isso justifica
q ue estivesse praticamente no ú ltimo assento q uando eu sempre
lh e disse q ue o meio é mais seguro, na verdade os assentos 27 e
28 são os mais seguros, estatisticamente, apesar q ue o
precavido não aceita estatísticas, não entra no ô nibus e pronto, a
estrada serpenteava uma montanh a, a ch uva, a noite, a areia,
toda a metade de trás do ô nibus morreu.
Havia uma diferença palpável entre mim e as outras mães,
todas estávamos destruídas e sem a menor possibilidade de
continuarmos a ter alguma coisa parecida com o q ue
ch amávamos de vida, mas elas ao contrário de mim estavam
surpresas, incrédulas, perguntavam ao seu deus como é q ue foi
acontecer uma coisa dessa com sua família, enq uanto eu
afundava na minh a poltrona do Instituto Médico Legal sentindo
q ue me tornava parte do plástico e nunca mais sairia dali, ach ei
isso curioso, era possível q ue as mães não tenh am pensado e
adivinh ado aq uela e tantas outras cenas centenas de vez es? Era
possível q ue não tivessem enterrado o filh o em pensamentos
sofridos em todos os contex tos em q ue saíam de casa ou
tossiam ou comiam frutas com caroço ou peix e com espinh o?
Rosa vai ficar revoltada comigo mas essa é q ue é a verdade,
as estatísticas vão muito contra cerca de q uinz e adolescentes
brancos de classe média morrerem, mas é isso, eu não vivo
estatísticas e são estes os fatos, para o precavido não importa
q ue alguma fração de z ero por cento de jovens morra de
septicemia após um corte no joelh o na q uadra de vô lei, basta q ue
tenh a morrido um. Eu sempre avisei a Rosa q ue era melh or me
deix ar com minh a h istória esq uecida q ue se eu tinh a esq uecido
devia ser por bastante motivo mas ela é assistente social então
ela precisa faz er isso, assistir as pessoas a encontrarem seu
meio social, a viverem dentro de uma sociedade e enq uanto
estou aq ui ela não está faz endo bem o papel dela em me assistir
porq ue este abrigo definitivamente não é a sociedade.
Antô nio, naturalmente, estava no Instituto Médico Legal, h á
anos não ouvia falar nele, ficou com uma cara desfigurada
esfacelada feito espelh asse os corpos e em seguida deu um jeito
de sumir depressa e não foi ao velório, era capaz q ue mesmo
depois de tanto tempo eu ainda amasse aq uele h omem e me
desse conta disso q uando ele surgisse no velório com seu
melh or terno e uma flor, a cara inteira apagada porq ue depois de
toda a covardia para surgir numa ocasião assim é preciso
ausê ncia de q ualq uer traço facial, e eu me jogaria aos pés dele
ch orando tudo q ue estava entalado, agora q ue Camila não
poderia ouvir a minh a dor eu seria inteira drama e ele seguraria
meus cabelos sem ch orar para manter a ausê ncia de
ex pressõ es, um vulto de h omem.
Vieram todos os dez oito colegas de sala q ue não morreram
naq uele ô nibus – a não ser os gravemente feridos – e os dos
outros ô nibus, jovens demais para acreditar na possibilidade da
morte, deix aram faix as feito um protesto contra a tragédia, e eu
concordo, como se pode viver e faz er planos num mundo onde
tudo acaba tanto.
D EZ
Q ual é melh or, essa ou essa? A voz dela toda juvenil antes das
décadas de cigarro roufenh ando as cordas, se eu pudesse sair
deste lugar diretamente de volta para uma tarde talvez fosse uma
dessas em q ue tính amos dez essete anos e a Camila comparava
duas fantasias para um baile ridículo de carnaval no sindicato
dos papeleiros, minh a mãe viajando com um colega da fábrica
porq ue era feriado e ela resolveu q ue podia ser uma pessoa q ue
aluga um carro de praça e viaja em feriados, ainda q ue apenas
para a colô nia de férias do sindicato, então Camila e eu tính amos
a casa vaz ia para brincar de adultas, eu servi dois copinh os de
cach aça q ue sorvemos em bebericadas imperceptíveis, naq uele
calor o corpo dela bronz eado suava nas lantejoulas e ela
levantava os braços e assoprava as ax ilas delicadamente, eu
amava aq uele gesto.
A festa do sindicato era num galpão de péssima acú stica e
iluminação de futebol, as march inh as estourando em caix as
insuficientes, de vez em q uando entrava por cinco minutos uma
idosa bandinh a de sopros, os confetes grudando no ch ão no
açú car embarreado de refrigerantes e solas de sapato. Era nossa
festa mais incrível, eu tentava usar um salto alto.
Rosa me pergunta se o sindicato era perto de casa, mas não
adianta, Rosa, não é a mesma casa, essa era a da minh a mãe
q ue talvez não seja nem na mesma cidade, mas sim, Rosa, o
galpão, q ue nem deve mais ex istir, talvez seja um sh opping, ou
galpão de armaz enamento de grãos, era perto de casa, íamos
andando, mesmo de salto, as duas de fantasia ach ando legal o
alvoroço dos h omens tão velh os nas ruas aplaudindo nossas
cores, algumas avenidas fech adas só para pedestres porq ue
esses eram dias especiais para os pâ ndegos.
A Rosa não gosta de carnaval, aq ui no abrigo eles devem
colocar colares h avaianos nos idosos e pronto está instalada a
folia, ninguém verdadeiramente gosta de carnaval, eu suponh o, é
uma celebração com inú meras falh as, mas vale como filosofia de
vida, desde q ue saibamos não morrer e nem correr perigos na
avenida, é uma proposta interessante, vestir-se de colorido, ouvir
mú sica o tempo todo, encontros carnais, álcool de manh ã, o
desafio realmente está em não correr perigos.
Entramos no galpão e a luz desagradável já me deu vontade
de ficar bê bada para conceder formosura ao evento. Eu tinh a um
outro pavor, para além de morrer, q ue era casar virgem – isso
antes de me dar conta de q ue eu teria amantes, pelo menos um
–, e o carnaval continh a a proposta adeq uada pra evitar esse tipo
de problema. A Camila ria e ach ava divertido o meu propósito,
disfarçando a sua elevadíssima conduta, ela no máx imo ch egaria
ao seu casamento com uns estraguinh os, isso era uma h ipótese
q ue me apavorava, à s vez es imaginava deix á-la de lado e
procurar uns amigos artistas, não sei, tinh a a impressão de q ue
artistas jamais foram virgens.
A Camila era um arraso naq uele baile miserável, poderia
escolh er o menino q ue q uisesse, mas levava a festa inteira a
decidir, um beijo escondido, uma besteira à toa, depois falava
disso por semanas, era q uase um fetich e a mera h ipótese de a
mãe descobrir a ousadia, depois virava uma paranoia, a boca
q ue foi beijada ardia e ela cismava q ue a mãe percebia, uma
coloração de pecado, um tô nus alterado, e então eu me cansava
totalmente do assunto.
Eu q ueria descobrir a fórmula q uímica dessa inata noção de
autoridade, q ue não se ex plicava a partir de nenh um gesto ou ato
daq uela mãe, senão pelo empenh o obstinado da Camila em
obedecer. Q ueria saber se eu fosse mãe dela, se daí ela faria
tudo do jeito q ue eu ach asse certo.
Horas mais tarde, eu com os sapatos nas mãos e os pés
empastados de confete molh ado, um rapaz mais novo e mais
baix o q ue eu pouco vestido numa improvisada fantasia de bebê
me tirou para uma dança desajeitada enq uanto me seduz ia com
sua imensa ch upeta colorida pendurada no pescoço. Fingia q ue
ia roçar o brinq uedo na minh a boca e eu ria deslavada, a cabeça
pendendo para trás, a Camila se afastando um pouco num
risinh o cú mplice, e eu sabendo q ue aq uele peq ueno garoto tinh a
me escolh ido em vez da Camila porq ue eu era o cálculo possível,
ele ciente das suas próprias limitaçõ es, éramos esteticamente
compatíveis e aq uilo era a minh a juventude.
Não lembro a minh a roupa, pode ser q ue fosse um inseto fofo,
uma joaninh a. Na verdade eu estava vestida de noiva, um
vestido branco barato q ue rodava bonito q uando eu girava no
baile, a noiva q ue tinh a alguns minutos para perder a virgindade
antes do altar.
Depois de ouvir pouq uíssimo o meu próprio corpo naq uela
barulh eira, levei o bebê pela mão até o vestiário dos fundos,
mamãe eu q uero mamar continuou tocando abafado depois da
porta, tivemos dificuldade em tirar a fralda, nem ele contava com
tudo isso, não tinh a saído de casa pensando em tirar a fantasia,
q uanto mais tudo parecia desagradável e sujo mais eu ia em
frente animadíssima com o q ue é decadente, o galpão era o
cenário perfeito e o jovem afobado era o contrário da libido, tudo
naq uela esfregação de az ulejo suado escapava do campo dos
impulsos e sentidos, entrava para algo mais conceitual.
Não conseguimos faz er com q ue a lógica teórica fosse
aplicável na prática, nenh uma das murch idõ es q ue perscrutei
naq uelas umidades se materializ ou em algo perto do q ue eu
esperava, e com isso a moça q ue eu era não contava, tinh a
aprendido apenas q ue os rapaz es estariam sempre ávidos por
nós. Saí dali galopante cuspindo lantejoulas, a boca porca de
lambidas desesperadas, eu não valia nem isso, não era essa a
decadê ncia q ue eu tinh a buscado.
Reencontrei fácil a Camila rodopiando soz inh a na pista
esvaz iada, a visão me lembrava a destrez a dela criança numa
q uadra, tantos recreios. Lamentei q ue eu não conseguisse mentir
pra ela, q ue se eu mentisse seria um caminh o sem fim,
estaríamos em mundos cindidos até q ue eu conseguisse
desfaz er a mentira e macular para sempre o nosso vínculo, então
não pude ch egar e diz er olh a só Camila não caso mais virgem,
na mesma animação q ue ela um dia disse a sua ousadia, não
acredito em Deus, mas ainda assim pude contar sem floreios,
gritando por causa das march inh as estouradas na caix a, pude
contar toda a minh a lassidão, não senti nada, o corpo parecia
morto, mas encostei em tudo, estive em todos os lugares daq uele
menino ignóbil q ue eu não sabia o nome, frisei q ue não sabia o
nome porq ue tudo o q ue eu q ueria era h orroriz á-la, q ueria q ue
ela me condenasse, abominasse a mulh er q ue eu começava a
ser, e ao mesmo tempo procurasse em si uma fagulh a desses
caminh os, mas a Camila sempre foi tão boa e me abraçou,
embriagadas, jovens. Ela articulou um consolo folião, as
mãoz inh as pra cima, no próx imo carnaval ia dar certo, q ue eu
fosse paciente.
Caminh amos para a minh a casa desprovida de adultos, a
intenção era nos sentirmos tão grandes, autô nomas, mas arrastei
pela calçada um cabedal de fragilidades, Camila solitária dentro
da melancolia dela q ue nunca foi a mesma q ue a minh a, e tudo
bem, entramos no banh o e a água preta q ue escorria dos nossos
pés e o ch eiro festivo de cigarro alh eio q ue escorria dos cabelos
sob o ch uveiro, nada disso era a decadê ncia q ue eu buscava,
depois do banh o ela disparou a falar muitíssimo, era o q ue ela
faz ia q uando q ueria adiar o fim da noite, e eu morrendo de medo
de me casar antes de conh ecer o sex o, e de morrer antes de
tudo isso.
Camila ench eu copos de água para nós e deitou-se na minh a
cama, eu ao lado no colch ão no ch ão, virou-se na minh a direção
e fez um carinh o descompromissado na minh a testa, nas
pálpebras fech adas grudadinh as de rímel, nossas melancolias
ficaram sintoniz adas por um instante e ela lamentou a morte
recente de uma professora nossa, professores não podem de
forma alguma morrer, a morte de um professor escancara aos
alunos a farsa q ue é a escola, todos um bando de mortais, não
h á nada de ex traordinário naq uele sábio conduz indo a massa,
pode morrer a q ualq uer momento deix ando dez enas de órfãos
apavorados com a inutilidade de tanto conh ecimento apagado de
repente, e ela continuou o carinh o no meu rosto e cabelo e eu
senti q ue estava mesmo tudo bem, q ue eu podia suportar não
saber o q ue ia acontecer na minh a vida, o q ue ia ser de mim,
desde q ue ela continuasse ali, q ue fô ssemos sempre juntas.
T R IN T A
A Rosa h oje ch egou para falar comigo e com mais trê s idosos,
comigo ela passa muito mais tempo porq ue os outros trê s só
precisam resolver burocracias do benefício assistencial, eu
segundo ela sou uma novela, ainda não concluí se ela usa
novela no bom ou no mau sentido. Ela ch ega com uma saia
longuíssima q ue tem tantas cores q ue ficamos todos iluminados,
a saia é uma cauda q ue arrasta atrás dela tudo q ue ela faz de
impressionante e ex austivo e eu q ueria duas coisas, q ue ela
pudesse descansar, e q ue ela fosse a minh a filh a.
Seríamos muito amigas, h ein Rosa, se você fosse minh a filh a
de q uarenta anos, toda filh a deveria ter sempre desde o começo
até o fim q uarenta anos. Não vou nem mostrar pra ela as notícias
q ue andei lendo, se não ela fala q ue fico atrás de fatalidades,
como se não fossem as fatalidades todas q ue ficam atrás de nós,
estatisticamente muito mais atrás dela, não sei dos bairros q ue
ela freq uenta com a saia colorida majestosa, a saia cabedal dos
superpoderes todos q ue se ela pudesse largava no ch ão e saía
vivendo sem superpoder nenh um, mas ela não pode, a Rosa,
não h á vida para a Rosa sem os superpoderes, mas eu já disse
q ue para as fatalidades as estatísticas não importam, não
vivemos dentro da armadura das nossas probabilidades.
Semana passada mesmo, deu no jornal, um bebez inh o caiu
dentro de um balde ch eio de água, ninguém viu. Morreu afogado
onde ninguém esperava um afogamento, nossa própria dose de
tragédia pode ser um litro de água.
Hoje está um alvoroço porq ue o congelador do abrigo
amanh eceu q uebrado e os funcionários estão passando as
coisas para a geladeira, em q ue já não cabe nada, então
resolveram faz er algumas comidas aleatórias e servir
combinaçõ es descabidas, eu até ajudei, fui buscar gelo para os
isopores imundos, mas não gostam q ue eu vá muito longe,
ach am q ue vou ter outro apagão e de novo vou parar na estrada
em andrajos diz endo cadê a minh a Camila.
Q uando a minh a amiga Camila já morava comigo, coisa de uns
dez anos atrás, nossa geladeira também amanh eceu q uente, é
uma espécie de vô mito de uma residê ncia q ue já não suporta
armaz enamentos, nosso iogurte caseirinh o todo revestido de
uma penugem branca era o sinal de q ue tinh am passado h oras
demais sem q ue notássemos as nossas comidas perdendo o
gelo, o pior foram os congelados q ue depois de vinte h oras
boiando no gelo dos baldes estavam amolecidos e aguados
necessitando de rápida intervenção.
A Camila sempre gostou dessas ocasiõ es em q ue o caos é
tamanh o q ue fica autoriz ada toda forma de criatividade, eu
estava com vontade de ch orar vendo os nossos sacos de peix es
descongelados inflando de água, os bifes, polpas de frutas,
feijão, canja, um frango inteiro, pensei em pegar na mão dela e
partirmos dali, começar uma nova vida em q ualq uer lugar em q ue
h ouvesse um congelador em ordem e nenh um animal cru
descongelando em bacias e isopores com os pelos do Perdoai e
do Ofendido boiando ou grudados nas laterais, era importante
faz er as malas e reiniciarmos nossa h istória, os cach orros nos
seguiriam pela rua, e q uem sabe caminh ássemos tanto q ue tudo
fosse perdendo o sentido, eu na beira da estrada segurando a
coleira vaz ia, devolvam a minh a Camila.
Enq uanto eu derretia na minh a coz inh a junto aos restos da
nossa família, a Camila animada investigava simulacros de
receitas mentais q ue envolvessem todo aq uele amálgama de
estoq ues, ria do absurdo q ue seriam nossas próx imas refeiçõ es,
antes q ue me desse conta eu já estava seguindo ordens, picando
temperos, cebolas, abrindo embalagens ench arcadas e tentando
amar o conteú do triste q ue despencava delas, espirrando limõ es
sobre peix es murch os craq ueladinh os de gelo, e como nos
negamos a complementar tudo aq uilo com q ualq uer detalh e q ue
faltasse, a moq ueca ficou sem coentro, o frango assado sem
alecrim, também não tinh a mostarda ou páprica para a marinada,
demos um banh o de cerveja no bich o, aplaudíamos ali o
espetáculo do desperdício, q uando vi já estava jogando pimenta
sobre nacos de bife q ue ela grelh ava na ú ltima boca do fogão
ainda livre, cada vez mais estabanada na tentativa de agilidade
porq ue claramente q ueria sentar e fumar um cigarro e q uanto
mais tempo passava sem fumar um cigarro mais coisinh as ia
derrubando e pingando pelo ch ão, Perdoai tentava lamber, mas
à s vez es estava muito q uente, então minutos depois vinh a o
Ofendido e tirava a sorte grande. Camila levou umas q uentinh as
pros viz inh os.
Pode ser q ue isso tenh a acontecido na verdade muitos anos
antes, ela ainda não tinh a o filh o, distraía-se na minh a casa numa
noite q ualq uer, e de repente estávamos envoltas no banq uete
improvisado, de toda forma éramos duas meninas rindo na
coz inh a o regoz ijo da nossa fartura num país sempre em ruínas.
Há essa q uestão deste país, especialista em culpas. De
repente somos muito cú mplices, ainda q ue não se trabalh e no
Instituto Médico Legal na década de setenta recebendo os
corpos escamoteados, q ueimados de eletrodos, h á sempre um
momento em q ue este país borbulh a desagradável no estô mago
e indispostos olh amos a janela irremediavelmente cú mplices de
tudo isso e só h á dois tipos de pessoas nessas circunstâ ncias, os
q ue lutam e os q ue de alguma forma fogem, sou dos q ue fogem
brutalmente, só luto até o fim pelo meu direito de fugir, à s vez es
só q ueremos tocar o nariz na cabeça do cach orro pra sentir o
ch eiro aconch egante de almofada e não lutar e muito menos
morrer, nem mesmo se dedicar, e você q uer gritar q ue tudo bem,
você tem todo o direito de estocar o seu congelador e afagar os
seus cach orros até aplacar a gastrite q ue é o seu país, mas é
uma falácia, tudo isso cobra o seu preço, passam q uarenta,
cinq uenta anos e fica a culpa.
Mesmo q uando não se trabalh a no Instituto Médico Legal ou
q uando são outros os corpos q ue aportam nos frigoríficos, outras
as farsas, h á sempre uma engrenagem barulh enta, mas é um
ruído tão contínuo q ue ninguém escuta mais, um imenso motor
do refrigerador do país, o refrigerador de um enorme necrotério
q ue é esta nação e então você fech a a sua porta e abraça os
seus cach orros e decide q ue você definitivamente não é o tipo de
lutar, é o tipo de abraçar cach orros e escolh er alimentos de baix o
colesterol, ex ames anuais, e deveria estar tudo bem mas não, o
país não deix a, e de repente os seus amigos já não sabem como
amar você já q ue o seu marido trabalh a no Instituto Médico Legal
de um país como aq uele da década de setenta, ou porq ue você
se ocupa de preservar a própria vida como se a própria vida
fosse grande coisa q uando lá fora h á tudo isso, ou pode ser q ue
os seus amigos precisaram fugir ou morrer enq uanto você fingia
q ue era possível não saber de coisa nenh uma porq ue essa era a
ú nica saída, caramba, é uma maldita de uma vida só, como se
pode doá-la assim por um país e seu congelador q uebrado de
corpos boiando nos baldes, eu não saberia faz er uma coisa
dessas e eu apaguei, eu esq ueci a minh a vida inteira mas não
esq ueço isso, essa culpa, isso sou eu.
Se a Rosa pudesse, talvez se fech asse numa casa fresca com
cach orros ch eirando a almofadas e não ajudava mais país
nenh um, nem guerreava sua luta pessoal por esse bando de
velh os lascados, q ue inferno pertencer a tudo isso, você q uer
falar da sua vida e dos desafios naturais para mantê -la mas em
volta h á o incê ndio q ue é sempre a sua nação, e até agora não
arrumaram vaga para o idoso do grau III de dependê ncia.
Então pode ser q ue fô ssemos jovens q uando minh a geladeira
se desfez e o Antô nio no plantão do Instituto Médico Legal
colh endo digitais ch amuscadas enq uanto ríamos do banq uete e
era para termos todo o direito de rirmos, os cach orros
aconch egantes, a ú nica vida q ue tính amos e precisava ser
maravilh osa. Ou pode ser q ue já fô ssemos velh as e ainda assim
a culpa por este país, como era possível um freez er tão repleto
num país como aq uele, ou este, e agora esse abrigo devastado
de infiltraçõ es e os idosos ú midos vendo o almoço degelar feioso
nos baldes enq uanto a Rosa investiga se a minh a vida foi ou não
foi maravilh osa e eu q uero ex plicar q uantos problemas eu tive
q uando na verdade a Rosa deve ter tido muitos mais e era
melh or q ue eu simplesmente enterrasse a minh a cabeça numa
bandeira de culpas e deix asse de q uerer desesperadamente
viver uma vida q ue é apenas a minh a vidinh a inú til, eu q ue tenh o
uma aposentadoria pingando fielmente em algum banco q ue não
sei e estou aq ui ocupando a cama de um velh o miserável q ue
talvez espere vaga deitado num lugar pior ou em lugar nenh um.
A Rosa termina as burocracias dos trê s idosos e vira-se
majestosa na minh a direção, vem caminh ando no meio de toda a
confusão de alimentos degelando e coz inh eiros tentando ser
criativos como a Camila gostaria de ser, mas ela sem o peso de
licitaçõ es e orçamentos, um país em q ue ou se morre, ou se é
infeliz , ou se é totalmente cú mplice e culpado, Rosa me abraça
de olh os fech ados e me funga feito eu fosse um cach orro
aconch egante ch eirando à almofada, e me ocorre q ue talvez eu
tenh a um ch eiro fofo de velh a.
A acumuladora olh a os baldes com o olh o brilh ando de água,
não sei q uais coisas diante de toda essa perda ela precisa salvar,
talvez isto seja uma cura.
Rosa diz q ue conseguiu finalmente a lista de funcionários do
Instituto Médico Legal na década de setenta, aq ui e nas cidades
mais próx imas h á q uatro Antô nios, ela está animada, amanh ã
mesmo vai visitar o mais próx imo dos Antô nios com a minh a foto,
ela vai me tirar deste lugar, diz , e sorri tão encantada q ue me dói
todo esse esforço, a comoção para me remover deste q ue na
verdade é um lugar q ue eu não mereço, obrigada, Rosa.
T R IN T A ET R Ê S
C313s
Carrara, Mariana Salomão
É sempre a hora da nossa morte amém:
Mariana Salomão Carrara
São Paulo: Editora Nós, 2021
272 pp.
ISBN 978-65-86135-37-4
2021-2963
CDD 869.89923
CDU 821.134.3(81)-31