Você está na página 1de 4

preto no branco

uma história da cambalache

1. saindo do filme, entrando no sonho


Quando posto preto no branco, o contraste revela, é o que pensa o homem envolto
por faixas e que, por cima desta, veste terno, chapéu e sobretudo diante de um
corredor escuro com um poste no final.
Final de quê?, ele se pergunta, pois a rua ainda continua e há outro beco do
outro lado da rua? O que há do outro lado dessa rua? Por que a rua é importante
ao ponto de ser repetida uma infinidade de vezes e por qual motivo quando dá
um passo, o sente leve como se pisasse em nuvens? A resposta, é claro, há de
estar do outro lado da rua, e se olhasse para trás viria de onde vinha, mas onde
vinha não era para onde ia e não tinha como saber se os passos dados para
frente acabariam ou não numa cambalache de consequências catastróficas, mas
tinha de andar e tinha de continuar.
A luz do poste se revela irrelevante e o fim do beco não é o fim da rua.
O detetive envolto por faixas, de chapéu e sobretudo, murmura como se
fosse um ator de teatro. Exagerado e espalhafatoso, ele olha para os lados e nota
que o mundo é todo branco, como se vazio em sua essência e precisando ser, de
alguma maneira, preenchido. A única cor que lhe vem à mente é o preto, assim
como seu terno e suas faixas são pretas, mas o preto não é cor.
Quando posto preto no branco, o contraste revela, ele repete.
O mantra, ele logo percebe, o protege.
Qual seria essa proteção? Tiraria de seu sobretudo um cigarro se o tivesse,
mas não fuma e nunca fumou. Mesmo se fumasse, Anya não deixaria e…
… Anya. O nome o puxa de volta para realidade. A luz fica mais forte.
A cidade, também, se expande. Ele não quer a cidade, porém, mas saber
onde está o fim daquela rua. O fim daquela rua lhe é importante porque, andar
apenas mais um pouco vai levá-lo para o que busca e o que busca é uma
completa revelação de todas as coisas que não foram reveladas, uma completa
alteração de alterações que não foram feitas, uma completa…
– Matheus! – chama ela, e o itálico é a demarcação de que aqui jaz uma verdade
bastante incerta. – Você sabe o que vai acontecer, né?
– Não – ele responde, e realmente não sabe. Sua voz é infantil e não há nada que
o envelheça ou o amadureça. Diante dela, ele é sempre uma criança. Ela é a mãe que ele
nunca teve e que sempre desejou, pois ela o vê como um filho.
– Eles vão querer te assustar – ela disse. – Eles não vão conseguir.
– Não. Eles não vão.
– Por que?
– Porque eu sou corajoso.
– Você é corajoso.
– Eu sou corajoso!
– Eu sou corajoso!
Ele grita, e escuta risos.
Risos por toda cidade.
Não está mais vestindo terno, chapéu e sobretudo, mas roupas de palhaço
que cobrem suas faixas. Agora tudo é colorido até demais, um nariz vermelho
foi colocado em sua fase encoberta e as próprias faixas foram maquiadas de
branco, com linhas vermelhas as quais formam um sorriso e marcas de
expressão. É inútil, pois com faixas ele não guarda expressões, e mesmo diante
das luzes do palco não há uma plateia para rir dele.
Ela, porém, bate palmas.
Seu nome é Cecília. Ele a chamaria de mãe. Ou amiga, diante dela, pois
nunca teve a coragem de dizer em voz alta as coisas como elas eram.
Seu nome, para outros, era Ave Maria da Rua.
Ela e ele amavam teatro e incentivavam essa prática em espaços como
aquele… espaços sem platéia alguma que não fosse eles dois, pois os quartos nos
quais eram colocados eram escuros e apertados e dias se passavam sem que
muito tivesse como ser feito. Tamanho mistério! Como resolvê-lo?
De maneira lúdica, ela o fazia rir.
– Imagine que você é um detetive! – ela dizia, e ele imaginava.
– Imagine que você é um palhaço! – ela dizia, e ele imaginava.
– Imagine…
Imagine que você é um SUPER-HERÓI.
Você tem toda uma cidade como um enorme playground apenas para
você, e com as faixas envolvendo todo seu corpo você sabe que elas irão te
proteger. Elas anestesiam a sua alma e lhe dão a chance de ter a coragem
devida para fazer o que precisa. Bandidos? Eles vão levar porrada e serão
machucados. Monstros? Eles não podem lhe atingir e você vai mostrar que
pode ser o que sempre existiu para ser.
Alguém.
Como é bom ser alguém. Ser alguém que corre por telhados e não
cansa. Salta por espaços que outros seriam incapazes de sequer alcançar,
interage com a cidade em que nasceu e da qual foi tirado como ninguém mais
conseguiria, e tudo é a perfeita dança a qual você não entende porque ela quis
manter apenas para si.
Porque todos amavam ela.
Amavam ela por atuar… atuar da forma como você quer atuar.
Amavam ela porque era uma santa e queria dançar.
Você está dançando, você está pulando, você está
Imaginando. Imaginando que ainda é um palhaço, ele começa a rir de
alegria porque Ave Maria da Rua está batendo palmas, batendo palmas alegres e
batendo palmas constantes e…
… e as portas do teatro se escancaram. Das coxias daquele palco, homens
de terno, chapéu e sobretudo aparecem e te seguram. Eles batem na sua cabeça
e socam sua barriga e te fazem vomitar. Você vomita enquanto ainda amarrado
e apertado por aquelas faixas e sente todo aquele resto de comida e líquidos
sujarem seu rosto mais e mais. Aí, que nojeira, você pensa, e que indelicadeza
vir assim interromper o meu show e…
… e eles puxam Ave Maria da Rua de seu lugar na plateia, te deixando
uma outra vez sozinho. Eles a arrastam para longe, porque podem tirar tudo de
você.
E você
arranca aquelas merdas de palhaço que sobram em seu corpo, sobrando
apenas seu uniforme de SUPER-HERÓI e você enquanto um SUPER-HERÓI
dá socos naqueles homens malvados e eles voam para longe do palco. Você
salta com agilidade, fazendo uma longa cambalhota no ar, e puxa suas espadas
de madeira quando pousa bem diante daqueles que seguram e prendem Ave
Maria da Rua. Com sua espada de madeira, você quebra seus braços, pernas e
cabeça e ela sorri para você, porque você a salvou e você
imaginou fazer alguma coisa. Alguma coisa que não consegue. Alguma
coisa que nunca faria, porque você é assim. É uma criança. Os adultos estão ali
na outra sala e você a escuta gritar e gritar por dias e dias. Por que eles querem
que você a escute? Por que eles fazem tanta questão de saber que ela está sendo…
… você… você está chorando?
… não chore, criança, por favor…
… mamãe está aqui e…
… mamãe está…
… não chore…
2. não chore. mamãe está aqui
Ela está chorando. É mais um resmungo, na verdade, mas ainda assim o acorda.
– Bellie…? – ele chama, ainda acordando.
Na televisão, está passando aquele filme, ainda. Os detetives vão pra lá e
pra cá, com seus ternos, chapéus e sobretudo. A audiodescrição continua e, ao
seu lado, Anya já está dormindo.
– Fome! – a criança anuncia, e seus olhos úmidos começam a dar lugar
para um sorriso sapeca. Eu acordei meu pai e eu me diverti com isso, ele lê naqueles
novos olhinhos.
E ele ri.
– Fome, né? É… eu podia comer alguma coisa.
Ele tenta pegá-la no colo, mas ela já está grandinha pra isso. Afinal, está
agora com três aninhos.
Ela mesma se levanta e ela mesma corre pra cozinha.
Não precisa mais do super-herói que é seu papai para tirá-la do chão e
fazê-la voar… suas pernas são mais rápidas e, quem sabe, ela até poderia pular
prédios inteiros e percorrer uma cidade simplesmente ao correr.
Ele ri. Quanta imaginação ele tem, hein?
Ao seu lado, Anya ainda dorme. Quer acordá-la e perguntar se ela quer
comer algo, mas ela está dormindo com tanta paz…
… e, no fundo da sua mente, ele escuta os gritos de um passado distante.
Vê uma pessoa que amou voltar desses gritos com um sorriso triste nos olhos e
vê uma pessoa que amou sofrer com as consequências desse sorriso.
Diziam que ela corria pela cidade atuando como uma protetora.
Diziam que alguém tentou imitá-la, mas não deu muito certo.
Diziam que esse alguém tentou ser um super-herói.
O que não sabem, porém, é que ele é um super-herói.
Ele dá um beijo na testa de Anya e vai salvar a vida de sua mais nova, pois
ela ainda está com fome e está voltando a berrar. Não acorde Anya!, ele diz. Ela
está ainda bem cansada por causa da escola.
Os olhos de sapeca de Bellie continuam iguais. Ele, por sua vez, ainda ri.

Você também pode gostar