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Violet Winspear – Um Amor Italiano

Título original: No Man For Her Own (1981)

Digitalizado por: Afrodite

Resumo:

Quando Dominique chegou a San Sabina, linda cidade do sul da Itália, sabia que
tinha pela frente uma penosa missão: fazer a própria irmã que ficara paralítica, tomar gosto
pela vida e lutar para vencer a doença que a maltratava. Mas Dominique jamais poderia
supor que iria sofrer tanto nas mãos de um homem frio, calculista que não hesitava em
machucá-la sem motivo. Vittorio.... belo, rico e impiedoso, zombava dela, de sua falta de
charme e de sua determinação de se tornar feira, para servir aos pobres e a Deus. Um
homem cruel que teimava em seduzi-la, um italiano sensual que, com um só beijo,
provocou em Dominique uma emoção até então desconhecida, emoção doce e perigosa que
se chama amor...

Capítulo I

Dominique Davis estava parada junto à murada do navio, o olhar fixo nas águas de
um azul límpido e profundo. Alguns fios do cabelo loiro soltavam-se do coque severo e
caíam sobre o rosto tenso e preocupado. Ah, se estivesse indo para San Sabina em férias,
para aproveitar o sol gostoso da Itália!

Mas não. O motivo que a levava para lá era outro...

Suspirou, invejando a conversa descontraída dos outros passageiros, interessados


apenas em admirar o clima maravilhoso e a beleza das areias brancas entrecortadas por
penhascos escuros da costa italiana. Se pudesse ser como eles! Não podia, essa era a cruel
realidade. Estava indo para San Sabina porque Candice, a irmã tão alegre, tão cheia de vida,
estava agora presa a uma cama, paralítica. E o que mais lhe doía era saber que Candy talvez
nunca mais pudesse voltar a dançar, logo ela, que abandonara tudo pela profissão e pelo
casamento com o bailarino italiano Tony Romano!

Candy partira para a Itália, cheia de planos e animação, há dois anos, e agora
Dominique ia ao encontro dela, sabendo que ia encontrar uma mulher amarga e doente.
Não, Deus às vezes não era justo em seus desígnios... E Dominique sabia disso melhor do
que ninguém. Passara boa parte da vida amenizando o sofrimento alheio, entregando-se de
corpo e alma à enfermagem. E agora? Seria obrigada a sufocar a própria angústia, para
tentar aliviar as dores da irmã?

Aquilo tudo parecia impossível, um pesadelo, e Dominique desejava


desesperadamente que uma coisa tão triste não fosse verdadeira.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que don Vittorio não mandaria chamá-la com tanta
pressa se a situação não fosse muito grave.

As palavras do telegrama pareciam escritas em sua mente: “Venha imediatamente.


Sua irmã está paralítica e precisa da senhora. Explicarei melhor quando chegar a San
Sabina”.

E agora ali estava ela, apreensiva, prestes a desembarcar na Itália.

Pensava em Vittorio, o irmão mais velho de Tony. Como seria ele? Candice havia
contado, numa de suas cartas, que era um homem meio distante e que, desde a morte
prematura da noiva, havia se afastado do convívio com outras pessoas, preferindo, dedicar
todo o seu tempo aos negócios. Dominique receava encontrar-se com aquele homem que
não aprovara totalmente o casamento de Tony e Candy. Mesmo sem conhecê-lo, sabia que
teria que enfrentar nele uma certa hostilidade. Segundo a irmã, Vittorio parecia não ser um
cavalheiro.

Dominique respirou fundo. De uma forma ou de outra, teria que enfrentar todos os
problemas que a aguardavam ali, na bela costa italiana, onde o navio atracava sob um sol
forte e magnífico.

Dominique desembarcou. Estava tão preocupada com a saúde da irmã que nem
notou a atmosfera radiante de San Sabina. Não notou o céu sem nuvens, nem o aroma
agradável do ar. Passou pela alfândega italiana automaticamente, mas parou quando um
funcionário atencioso perguntou, enquanto revistava a bagagem:

– A senhorita vem a San Sabina pela primeira vez?

– Sim, é a primeira vez que venho aqui – respondeu, num italiano razoável. – Mas
estou sendo esperada por alguém da casa de don Vittorio Romano.

– Ah, a senhorita vem visitar don Vittorio? – E o funcionário correu os olhos pelo
conjunto cinzento que a moça usava, as iniciais em ouro na lapela.

– Ele mora longe daqui?

– Alguns quilômetros adiante.


O modo de ele se comportar havia se modificado, como se a menção do nome da
família, Romano colocasse Dominique numa categoria especial, digna de respeito.

– O senhor conhece os Romano? – indagou ela, curiosa.

– Aqui em San Sabina todo mundo conhece – respondeu ele, entregando-lhe o


passaporte. – Espero que sua estada seja muito agradável, senhorita.

– Obrigada – respondeu ela, com certa amargura. Sabia que aquela viagem podia:
ser tudo, menos agradável.

Foi se afastando do balcão da alfândega com o coração pesado, mais pesado do que
a maleta que carregava e resolveu aguardar, sob o sol quente, que alguém da casa dos
Romano aparecesse.

Enquanto esperava, pensava que, se fosse Candy quem estivesse ali, e não ela, logo
algum rapaz se aproximaria para ajudá-la e provavelmente ofereceria uma carona. Sorriu
para si mesma. Toda vida fora assim. Candice sempre recebera todas as atenções, enquanto
que ela tivera que se acostumar à solidão.

A mesma solidão que sentia agora, quando os outros passageiros se afastavam, em


grupos alegres, animados. Dominique acompanhou-os com, o olhar e deparou com um
homem moreno, que a encarava do outro lado da rua. Um homem alto, de profundos olhos
negros, que criavam estranhas sensações dentro dela.

Dominique lutou para fugir daquele olhar insistente. Virou as costas com decisão,
mas sentiu que ele atravessava a rua e se postava bem atrás dela. Sua costumeira
tranqüilidade desapareceu.

Tensa, virou-se para enfrentá-lo.

– O que o senhor quer? – indagou, em inglês.

– Você, imagino...

– Como se atreve? É melhor me deixar em paz! – Encarou o rosto moreno e recuou,


um tanto amedrontada. – Eu... eu estou esperando alguém da casa dos Romano e tenho
certeza de que don Vittorio não aprova pessoas do seu tipo! – estourou.
– Então me explique: de que tipo eu sou? – indagou ele, examinando o rosto da
moça e se detendo nos óculos.

– Um lobo! – respondeu ela, vermelha. – Um lobo que avança sobre mulheres


desacompanhadas! Se está querendo minha bolsa, não vai conseguir nada! Vá embora,
antes que o motorista da família Romano apareça. Pode haver encrenca.

– Será que pareço do tipo que morre de medo de motoristas? – respondeu, sorrindo
levemente. – Não recebo ordens de mulheres, ainda mais de uma como você.

– Como... como eu?

Dominique ficou mais vermelha ainda. Sabia do que ele estava falando. Ela era feia
e sem graça, e qualquer que fosse o motivo pelo qual ele se aproximara, certamente não era
para conquistá-la.

– Você não sabe nada sobre os homens... Pensando bem, não sabe nada sobre a
vida.

– Que é que isso lhe interessa? Deixe-me em paz!

– Ora, ora senhorita... – Levantou uma sobrancelha negra e continuou: – Vocês


inglesas são estranhas, não? Ou ficam semi-nuas nas praias, ou então agem como se a
austera rainha Vitória ainda ditasse ordens conservadoras e moralistas.

– Quer fazer o favor de parar com isto? – pediu Dominique, aflita. Não tinha quase
nenhuma experiência no trato com os homens, e aquela a confundia cada vez mais. – Quem
pensa que é, hein?

– Você mesma não disse que eu era um lobo caçando mulheres sozinhas?

– Disse – afirmou ela, em desafio, desconcertada pelo jeito dele, que parecia estar se
divertindo muito.

– As mulheres às vezes chegam a extremos, não acha?

– Eu... eu acho que sim. – Dominique agarrou a alça da maleta e começou a se


afastar, desejando ardentemente que o motorista, aparecesse logo e a levasse para longe
daquele sujeito estranho.
– Srta. Davis, acredito que a brincadeira já foi longe demais.

Dominique quase tropeçou de susto. Depois, respirando fundo, virou-se


vagarosamente e encarou-o, notando o nariz e a boca bem desenhados, o queixo altivo onde
se sobressaía uma covinha, o terno cinza bem talhado que ele vestia, a gravata vinho e a
camisa de corte perfeito. Foi então que se deu conta de que ele vinha conversando num
inglês correto, apenas com um leve sotaque.

– Quem é você? – perguntou, apesar de já ter começado a adivinhar.

– Sou don Vittorio Romano – disse ele, com certa arrogância –, e você é a irmã de
Candice... embora eu não veja semelhança alguma entre vocês.

– Nunca fomos parecidas – explicou Dominique, com uma pontinha de amargura.


Sabia que todos se surpreendiam ao comparar Candy, tão bonita, a ela, tão sem graça.
Suspirou e acrescentou: – E minha irmã? Como é que ela está? Estou muito preocupada e
gostaria de saber exatamente o que aconteceu.

– Vamos indo para o carro. No caminho para Vila Dolorita eu lhe contarei tudo.

– Por que Candice está em casa, e não num hospital?

– Venha – disse ele, pegando a mala com uma das mãos e o braço de Dominique
com a outra. – Meu automóvel está parado logo depois da esquina.

Dominique não teve outra escolha, senão concordar em ser levada para um carro
esporte cinza-metálico. Os bancos eram baixos, confortáveis, e no interior mostrava classe
e bom, gosto. Ela acabou sentindo-se constrangida por ter chamado de lobo a um homem
que parecia tão elegante.

Entraram no veículo e, logo depois, a cidade não era nada mais que um ponto
distante. Seguiam por uma estrada estreita, que serpenteava um monte. Candice nunca
descrevera San Sabina, apenas dizia que era pitoresca, e agora Dominique tinha a
impressão de estar num lugar meio selvagem. Principalmente ali, naquele caminho de onde
saía um despenhadeiro que acabava nas ondas bravias; lá embaixo. Era uma paisagem ao
mesmo tempo bonita e dramática, e em qualquer outra ocasião Dominique teria ficado feliz
em admirá-la. Agora, porém, seu pensamento estava preso à irmã. Estava impaciente por
chegar depressa e queria que don Vittorio lhe explicasse logo o que havia acontecido.
– Imagino que deva ter sentido um choque, Srta. Davis, ao saber do estado de sua
irmã, não? – indagou ele, com certa reserva.

– É verdade.

– Bem, achei que o melhor método seria avisá-la de repente... O remédio forte faz
mais efeito, é o que dizem.

– Mas é muito ruim de engolir, especialmente porque eu imaginava que tudo


estivesse bem com Candice.

– Ela não havia escrito, contando do acidente que sofrera?

– Acidente? Deve ter sido mais que isso, para tê-la deixado paralítica!

– Então não sabia de nada, até receber meu telegrama?

– Não. Candice estava ótima na última vez em que a vi. Minha irmã é a única
parenta que tenho e gosto muito dela. Estou realmente preocupada.

– Compreendo. Mas não posso deixar de reparar que as duas parecem ter
personalidades muito diferentes.

– E temos mesmo! – concordou ela. – Mas gostamos muito uma da outra, isso eu
lhe garanto.

– Fico muito satisfeito que tenha vindo logo para San Sabina, Srta. Davis. Até
agora, sua irmã já esgotou a paciência de cinco enfermeiras! Espero que, com a senhorita
por perto, as coisas melhorem.

– Então quer que eu fique aqui e cuide dela?

– Se for possível.

– Sim; possível é, sim... Mas o senhor disse que Candy já passou pelas mãos de
cinco enfermeiras?

– Cinco – confirmou Vittorio.

– Não entendo... Minha irmã nunca foi uma pessoa geniosa.

– Mas agora tornou-se extremamente desagradável – disse ele, manejando o carro


numa curva apertada. – Xinga o marido e o culpa pelo fato de estar paralítica.
– Mas como foi que aconteceu, afinal?

– Aconteceu, porque sua irmã resolveu acreditar que meu irmão Antônio a havia
traído. Tiveram uma violenta discussão no terraço atrás da casa... Ele havia dado a ela um
colar de pérolas, e Candice o acusou de estar querendo comprá-la, para salvar sua honra.
Jogou-lhe o colar no rosto e o fecho cortou-lhe o lábio. Tony revidou e, ao se afastar, ela
perdeu o equilíbrio e caiu por uma pequena escada de pedra. Ficou inconsciente e foi
levada ao hospital.

– Mas por que ninguém me informou sobre isso? – disse Dominique, sentindo uma
onda de raiva invadi-la. – Eu tinha o direito de saber.

– Os ferimentos não foram graves. Apenas arranhões. Vinte e quatro horas depois
ela estava fora do hospital, e eu resolvi...

– O senhor resolveu? Mas acho que era Tony quem devia resolver o caso, não
concorda?

– Meu irmão ficou preocupado demais para agir. Conversei com ele sobre se
devíamos ou não informá-la, senhorita, mas Candice recuperou-se tão depressa que
achamos melhor não assustá-la sem necessidade. Estou lhe afirmando que sua irmã parecia
completamente fora de perigo, até que um dia, ao sair da cama, desmaiou. Um grande
especialista foi chamado, examinou-a com cuidado e chegou à conclusão de que o mal não
estava no corpo, e sim na mente.

Dominique olhou para ele, incrédula.

– Está querendo dizer que Candice está sofrendo de paralisia psicológica?

– Não estou querendo dizer nada. Estou afirmando. Ela está paralítica porque quer
se fazer de mártir.

– Oh, não é justo dizer uma coisa dessas! – Dominique não podia associar a pessoa
sobre quem don Vittorio falava com a irmã que ela conhecia e amava. – Está dizendo que
ela quer fazer Tony sentir-se culpado?

– Isso mesmo. Candice quer puni-lo, e quer tanto que conseguiu um meio para isso.
Foi a habilidade dela em dançar que os uniu, não foi? E agora ela o agride justamente
perdendo essa habilidade, essa capacidade. Sempre que estão juntos, Candice o acusa de ser
o causador de sua deficiência. E ele, naturalmente, acredita.

– E essas suspeitas de que Tony tenha traído Candice... são verdadeiras?

– Acredito que não.

– Tem certeza?

– Antes, Tony era mesmo um conquistador. Mas, depois do casamento se manteve


fiel à sua irmã.

– Mas Candice não confia nele! Se não, não teriam brigado e ela não teria caído da
escada! Pobre Candy!

– Sua preocupação se justifica, Srta. Davis, mas, e o coitado do meu irmão? Tony já
não sabe mais o que fazer.

– E se ele for realmente culpado? Claro que, como irmão, o senhor tem obrigação de
defendê-lo, mas nunca chegou a aprovar o casamento dos dois, não é verdade? Talvez
esperasse escolher uma noiva para ele! Se não me engano, esse costume ainda existe em
alguns lugares da Itália, não é mesmo?

– É, mas eu nunca fui contra esse casamento. Apenas achava que Tony era muito
imaturo.

– Posso dizer-lhe que não tive essa opinião sobre ele.

– E o que pode saber uma garota como você sobre isso?

Dominique corou.

– Achei que ele tinha charme e era muito bem-educado. Infelizmente, não posso
dizer o mesmo do senhor!

– Só posso dizer que sinto muito.

– O senhor é arrogante demais! – Dominique mordeu os lábios. Não gostava de


fazer julgamentos precipitados, porém aquele homem era muito irritante. Mas de que
adiantava discutir com ele, quando Candice jazia na cama? Dominique controlou-se e
perguntou: – O médico está absolutamente certo de que a doença de Candice não tem
relação com o tombo que ela levou?

– Ele fez um exame detalhado. As radiografias não mostraram nenhuma alteração


que pudesse causar paralisia. Ela está assim porque quer. Sei que isso é triste, mas a
verdade é essa e a senhorita terá que aceitá-la.

– Entendo... Bem, como enfermeira, aprendi a enfrentar toda sorte de problemas...


creio que não será muito difícil encarar mais um.

– Apesar disso sofreu um duro golpe ao saber do caso de sua irmã, não foi?

– Claro! – respondeu a moça, suspirando. – Nunca imaginei que Candice fosse


capaz de agir de maneira tão neurótica. Ela sempre foi expansiva e desinibida. Muitas vezes
caçoou de mim, por eu ser séria demais.

– É, ela é bem diferente da senhorita. – disse ele, num tom de quem conhecia
perfeitamente as mulheres e seus truques.

Dominique permaneceu em silêncio, lembrando-se de como Candice ficara


maravilhada com Tony, quando o conhecera. Falava apenas dele, de como estavam
apaixonados.

– A verdade é que minha irmã adora Tony – murmurou, os olhos cinzentos


pensativos. – Acho que se apaixonou quando dançou com ele pela primeira vez...

– Fala como se não acreditasse que as paixões possam existir realmente, Srta. Davis.

Dominique sentiu que ele a encarava.

– Acontece que tenho outras coisas em que pensar.

– Coisas mais importantes do que o amor?

– Mais importantes para mim.

– É assim que encara a vida? Como algo sem emoções?

– Minha carreira me dá as emoções de que preciso. E para mim basta.

– Será que imagina que uma carreira possa impedir uma mulher de se apaixonar?
Será que para a senhorita a profissão é tudo?
– Não foi por essa razão que resolvi me dedicar apenas à enfermagem...

– Então, qual foi a razão?

– Senti que tinha que encontrar um propósito para a minha vida – disse Dominique
percebendo que falava com certa pretensão. Mas tinha orgulho de pensar daquele modo. –
Minha irmã sempre foi muito atraente e se satisfazia com as coisas boas da vida. Nunca a
condenei por isso, mas tenho pontos de vista diferentes.

– Candice considerava o amor como um propósito de vida, não é?

– Acho que sim.

– Mas o seu objetivo é servir aos doentes, certo?

– Meu trabalho é tudo para mim.

– Admirável... Então deixou de lado os prazeres da vida?

– Jurei ajudar quem precisasse de mim, senhor.

– E deixou de lado os sonhos românticos que toda moça tem?

– Nunca fui sonhadora.

– Não? Mas tem olhos sonhadores, senhorita.

– O... o que quer dizer com isso? – Dominique apertava as mãos enquanto falava.

– Que seus olhos, cinzentos como as asas de uma pomba, fogem do olhar de um
homem... Será que tem medo de que eles mostrem o que vai em sua alma?

– Tudo isso através destas lentes grossas? – indagou ela, desconcertada com o rumo
da conversa. – Quer mesmo que eu cuide de Candice?

– A senhorita é enfermeira formada. E, enquanto sua irmã ficar na cama, vai


precisar de alguém que cuide dela. Candice não é uma paciente razoável, como eu já disse,
mas deve permitir que a própria irmã se encarregue dos cuidados. Assim espero!

– Isso parece uma ameaça, senhor.

– Se Candice continuar a se comportar desse modo infantil, então terei que interná-
la num hospital apropriado para pessoas nervosas... E sou um homem de palavra.
– Estou vendo, don Vittorio, mas Candice é sua cunhada, e nem eu, nem seu irmão,
iríamos permitir uma barbaridade dessas!

– Existem limites para tudo. Se sua irmã continuar ofendendo Tony cada vez que o
vê, ou então continuar com as costumeiras crises de choro, ele ficará satisfeito em jogá-la
no rio Tibre! Será que falei claro?

– Com extrema clareza – assegurou Dominique. – Mas parece que não lhe ocorreu
que Candice deve estar apavorada. Se ela acreditou estar perdendo Tony antes do acidente,
imagine agora! O senhor fala sobre paralisia psicológica como se uma boa sova resolvesse
o assunto, mas sabe que a solução não é essa.

– Não há dúvida de que sei – admitiu ele –, mas sua irmã tem estado insuportável.
Ela tem crises semelhantes às dos maníacos depressivos.

– E será que o senhor não se sentiria igualmente desesperado se acreditasse estar


paralítico, don Vittorio?

– Sua irmã já foi avisada por diversas vezes de que não sofre de paralisia. Já
mostramos a ela as radiografias, com todas as explicações, mas não adiantou. Candice se
fixou na idéia de que o tombo a deixou aleijada!

– Pobre Candice...

O coração de Dominique se encheu de apreensão. Uma catástrofe como aquela


tinha.que acontecer logo com Candy, que parecia a mulher mais feliz do mundo? E, afinal,
o que a fizera suspeitar de traição?

O tipo de amor que devorava Candy era um mistério para Dominique. Nunca
experimentara essa emoção, que fazia uma mulher se devotar de corpo e alma a um
homem. Para ela, isso parecia inacreditável. Deus do Céu, como esse amor, que podia
transformar uma mulher alegre e vibrante numa neurótica inválida, devia ser perigoso e
egoísta!

O amor, pensou Dominique, é cheio de riscos inesperados. E eu não gostaria de


enfrentá-los.

– Ainda falta muito para chegarmos?


– Estamos quase lá.

Dominique estava ao mesmo tempo alegre e nervosa, pensando no encontro com a


irmã. Não se viam há tanto tempo... Escreviam-se de vez em quando e, no último Natal,
Candice e Tony tinham ido até a Inglaterra. Candice parecera perfeitamente normal. Ria e
brincava, agarrada ao marido como se ainda estivessem em lua-de-mel.

O que poderia ter dado errado, meu Deus? Será que Tony tinha mesmo encontrado
outra mulher? Ou será que alguém detestava tanto Candice a ponto de lhe contar uma
mentira infame?

– Como é que Candy soube dessas histórias sobre Tony?

– Recebeu cartas anônimas. Rasgou e não deu muita importância à primeira, mas a
segunda a abalou. Eu mesmo a li e disse a ela que aquilo não passava de uma calúnia, mas
não adiantou.

– Mas por que ela não quis acreditar no senhor? Tinha que haver uma razão!

– E tinha mesmo. Uma cicatriz que Tony adquiriu logo após o casamento. Como
sabe, eles passaram a lua-de-mel nas Bahamas, e, numa noite, foram convidados a assistir a
um espetáculo de dança nativa, o limbo. Como você conhece Tony, deve compreender que
ele não resistiu ao desejo de competir com um dos dançarinos locais. E havia uma parte em
que a pessoa tinha que passar por baixo de uma barra horizontal em chamas. Bem, meu
irmão acabou queimando uma certa parte do corpo... está entendendo?

– Deve ter sido doloroso demais! – Um leve sorriso apareceu nos lábios de
Dominique. – Mas a cicatriz deve ficar visível quando ele vai à praia, não?

– Tony evita o mar, não sabia? Quase morreu afogado quando era pequeno. O navio
Conte Toro afundou no Adriático e meu irmão, pouco mais que um bebê, foi salvo pela
pajem, Malvina, que você vai conhecer. Meus pais morreram no acidente. Isso o deixou
traumatizado.

– Oh, sinto muito, eu não sabia disso. – Fez uma pausa e continuou, apreensiva: –
Diga-me, don Vittorio, serei tratada em sua casa como a nova enfermeira ou como um
membro da família?
– Como prefere, senhorita? – Havia certa ironia na voz dele, ao fazer a pergunta. –
Não hesite em ser franca comigo.

– Acho que seria melhor se eu fosse tratada apenas como uma enfermeira. Desse
modo, espero não ter que participar das refeições da família nem das atividades sociais.

– Muito bem, se é assim que prefere.

Ele não insistiu e, logo depois, saíam da estrada, atravessavam um portão de ferro e
chegavam a uma casa grande, sombreada por árvores enormes.

– Chegamos à Vila Dolorita! – Na voz de don Vittorio havia um tom de orgulho.

A luz do entardecer, a casa parecia de ouro, dominando o topo de uma colina,


espalhada como um remanescente nobre dos tempos dos Medici. A vila da família Romano
era fabulosa. Emergia como um sonho, um sonho que Dominique não pensava encontrar,
mas um sonho triste porque Candice estava atrás daquelas paredes douradas, sem poder
andar... sem poder mais dançar nos braços de um homem a quem talvez tivesse amado
demais...

Dominique saiu do carro antes que don Vittorio pudesse estender a mão para ajudá-
la.

– Como a senhorita é independente! – comentou ele, um ar irônico no rosto.

Para Dominique, aquele rosto se assemelhava ao dos antigos conquistadores


romanos, os traços fortes e firmes marcados por uma certa melancolia no olhar.

– Sou, sim, senhor – replicou. – Sempre fui independente, e espero ser sempre.

– E nunca se sente solitária?

– E não o somos, todos nós?

– Imagino que sim, mas há algo de tristonho nessa idéia, não acha?

Os olhos dela se perdiam no horizonte. Será que ele pensa no amor perdido?,
perguntou-se Dominique.

– Venha – disse ele por fim. – Venha ver sua irmã, mas não fique assustada com a
mudança que se operou nela.
Dominique sentiu-se perturbada e o acompanhou, meio trêmula, para dentro da
casa.

Capítulo II

A Vila Dolorita tinha sido construída em três níveis. De qualquer ponto se


avistavam belas paisagens. A casa era antiga e bonita e Dominique sentiu-se imediatamente
atraída por aquele lugar.

Encantada, subiu alguns degraus em mosaico que davam para um terraço, de onde
se viam o mar e as montanhas.

– Lá embaixo – explicou don Vittorio – fica a baía D'Argento.

– A baía de Prata... – murmurou ela, admirando a luz do sol refletindo nas águas
azuis. – A pessoa que escolheu este local para construir a casa deve ter sido um poeta ou
um pintor!

– Foi um soldado, senhorita. – E, quando ela o encarou, Vittorio acrescentou,


sorrindo: – Sim, um soldado da fortuna. Tudo isto nasceu do fogo e da espada, e não da
pena de um poeta ou do pincel de um pintor. Está desapontada?

– Não me surpreendo... – disse ela, sacudindo a cabeça.

– Será que é porque me vê como um aventureiro e não como um poeta?

Dominique o observou de alto a baixo. Não, ele não parecia um poeta, apesar de ser
irmão de Tony, um homem sensível, dedicado à arte. Don Vittorio lembrava mesmo um
lobo, prestes a atacar sua presa.

Suspirando, Dominique olhou os vasos floridos que enfeitavam o terraço e a entrada


em arco que dava para um grande salão. Don Vittorio avisou-a de que iria mandar uma
empregada levá-la até o quarto, para que descansasse um pouco e se preparasse para o
encontro com Candy.

Dominique concordou. A viagem tinha sido longa e cansativa. Entrou no salão,


observando tudo. Os móveis pareciam antigos e usados, mas conservados com carinho. Ali
não havia luxo. Havia calor, aconchego. Dominique imaginou quantos Romano já tinham
trazido suas noivas por aquela porta adentro, quantas crianças já deviam ter corrido por
aqueles belos tapetes... Muitas mulheres deviam ter se sentado naquelas poltronas de couro
e muitos homens deviam ler andado de um lado para outro do imenso salão, preocupados
com os problemas de suas fazendas e de seus vinhedos. Naqueles aposentos, as pessoas
deviam ter sussurrado e gritado, amado e odiado, nascido e morrido...

Dominique sentiu uma certa inveja. Afinal, nunca tivera uma família. A mãe
morrera quando Candice tinha poucas semanas de vida c o pai, um comerciante que lidava
com mercadorias importadas do Oriente, havia levado as duas filhas para viver com ele, em
Cingapura. Mas Candy não suportara o clima quente e úmido e o pai acabara por interná-las
no Convento das Irmãs de Santa Anselma. As freiras tinham sido bondosas, mas nada
substituía o calor de uma família.

Dominique suspirou, lembrando-se de que as visitas que o pai lhes fazia tinham
diminuído com o passar dos anos, até que um dia a madre superiora as chamara para dizer
que ele havia se casado com uma asiática e viveria para sempre no Oriente. Por isso,
Dominique e Candice tinham visto o pai apenas uma vez, depois do casamento.

Na época, não passavam de duas adolescentes amarguradas pelo fato de terem que
aceitar a dura realidade de estarem sozinhas no mundo. Foi nessa ocasião que Dominique
começou a pensar em tornar-se freira, em entrar para a Ordem das Irmãs de Santa Anselma.
Candice não tinha a mesma intenção, por isso arranjou emprego fora do convento. Tentou
persuadir Dominique a acompanhá-la, dizendo que a vida tinha que ser vivida e tudo que
ela oferecia devia ser aproveitado.

Dominique apenas sorria, ajeitando os óculos, que fora obrigada a usar desde
criança. Tinha resolvido ser enfermeira e muitas vezes ajudava as irmãs, preparando-se para
quando chegasse a ocasião de entrar para a ordem e receber o hábito.
Não tentou impor seu ponto de vista a Candice, que com sua beleza e seu brilho,
procurava satisfação nas coisas do mundo, e não nas da alma. Dominique a compreendia,
mas, ao mesmo tempo, temia que a irmã acabasse se magoando. Então Candice conheceu
Tony Romano e apaixonou-se perdidamente por ele. Não falava em outra coisa e sua vida
passou a girar somente em torno do rapaz e dos passos de dança que davam juntos. Aquela
atitude preocupava Dominique, mas o que fazer?

Pois agora aquela paixão desenfreada prendera Candy nas malhas da depressão e
numa cama. Triste fim para um ardente caso de amor...

Dominique sentiu o coração apertado e notou que a empregada a esperava na porta


de um dos quartos. Entrou no aposento e prendeu a respiração, admirada. Seria capaz de se
perder numa cama daquele tamanho! E o teto, tão alto e todo entalhado! Sentiu-se
deslocada. Seu pequeno quartinho no convento era apenas funcional: uma cama estreita,
uma mesa, uma cadeira e um espaço fechado com cortina onde ela dependurava as roupas.

Dominique, que havia crescido em meio à austeridade, agora não sabia o que fazer
ali, naquele quarto grande e confortável. Seu primeiro impulso foi fugir, mas controlou-se.

– Não há necessidade de desmanchar minha mala – disse para a criada que tentava
abrir o fecho.

– Terei prazer em arrumar tudo para a senhorita. – E a moça olhou surpreendida


para Dominique, pois aquele era um serviço que estava acostumada a fazer.

– Pode deixar. Cuido disso em alguns minutos, e não se esqueça de que sou só a
nova enfermeira. Não espero ser tratada como hóspede – afirmou, resolvida a deixar claro
que queria manter certa distância de dono Vittorio. O homem tinha um jeito perturbador,e
ela não gostara do modo como ele se referia a Candice, como se a irmã fosse um peso para
os ombros de Tony.

– Gostaria que lhe trouxesse um bule de café? – perguntou a criada.

– Obrigada, gostaria muito.

A moça sorriu e saiu, fechando a porta devagar. Dominique sabia que os


empregados não conseguiriam vê-la apenas como enfermeira.
Para eles, ela seria sempre a irmã de Candy, um membro da família Romano.

Enquanto pensava em como manter a distância que pretendia, Dominique guardou


seus poucos pertences e aproximou-se de uma das altas janelas, olhando o sol, que se punha
sobre o mar. Nunca pensara que o lar de Tony fosse assim, uma espécie de castelo à beira-
mar, isolado do ruído e da correria da vida da cidade. Muito diferente dos subúrbios pobres
de Londres, onde ela trabalhava como enfermeira.

O céu se cobria de vermelho e dourado e ela pensava no homem que trouxera Candy
para morar naquela casa fabulosa, longe do movimento das cidades. Como ele havia
deixado de trabalhar há tempos, Dominique presumia que devesse viver de renda, fornecida
pelo irmão mais velho, ou deixada como legado pelos pais, mortos tão tragicamente.

Começou a pensar se a tal babá que salvara a vida de Tony gostava de Candice.
Talvez, a exemplo de don Vittorio, também, a encarasse como uma intrusa. Talvez até
mesmo fosse um pouco responsável pelo sofrimento de Candy.

Imersa em seus pensamentos, não escutou quando a porta se abriu.

– O pôr-do-sol visto daqui é sempre espetacular – disse uma voz calma, bem junto
dela. Dominique virou-se, assustada, e deu de cara com don Vittorio. – Eu bati diversas
vezes – explicou ele –, e por fim resolvi entrar. E encontrei-a aí, presa ao encantamento da
paisagem, do sol morrendo no mar. É a mesma cena que vejo da minha janela e que, nunca
me canso de admirar. Muitas vezes desejei poder transferir toda essa beleza para uma tela.

O sol já havia desaparecido e a escuridão começava a penetrar no quarto.

– Gostaria então de ser um artista? – perguntou Dominique, um tanto surpresa.

– Talvez um escultor. – E os dentes brancos brilharam, num rápido sorriso. –


Gostaria de trabalhar com bronze, e teria preferido esculpir a vida selvagem, as criaturas
que saem de suas tocas à noite, para caçar alimentos. O que a noite significa para a
senhorita?

– Luzes fracas, camas brancas e cheiro de remédios. Talvez uma tosse fraca e um
relógio tiquetaqueando numa parede...

– Ah, a noite de vigília de uma enfermeira!


– Sim, senhor.

– E já passou por muitas delas?

– Muitas. Comecei meu treinamento quando tinha dezessete anos.

– Sei, sei... – O olhar dele era atento. – Será que posso dizer-lhe, senhorita, que não
parece ter vinte e cinco anos?

– As mulheres que usam óculos sempre parecem mais velhas, creio.

– Não é esse o seu caso. É que tem um ar meio angelical...

– Talvez o fato de ter crescido num convento tenha algo a ver com isso.

– Ou talvez a senhorita já fosse assim desde o começo. Parece ser muito diferente de
sua irmã, sob diversos aspectos.

– Candice é a mais bonita, é isso que quer dizer?

– E não se importa?

– Não, não me importo – disse Dominique, com sinceridade. – Somos o que somos,
e temos que fazer o melhor possível.

– Uma bela filosofia, Srta. Davis, mas a maioria das mulheres daria tudo para nascer
linda.

– Acredito que uma margarida gostaria de ser uma rosa, mas assim mesmo,
continuará sendo margarida até murchar e morrer.

– E é isso que espera da vida? Murchar e morrer?

– Espero ajudar as pessoas até que a morte me leve, apenas isso.

– Tem mesmo o espírito de uma abnegada, senhorita.

– Obrigada. É que meus planos incluem apenas dar conforto aos que sofrem.

– Eu... eu posso ser curioso? Quero dizer, saber o que mais pretende fazer?

– Espero, na época própria, entrar para a Ordem de Santa Anselma.

– Santo Deus! Vai ser freira?!


– Já estou resolvida, senhor.

– Tenho certeza de que está – disse ele, com um sorriso meio irônico. – Aposto que
muitas moças como você já sentiram o chamado da fé.

– Moças como eu? O que quer dizer?

Dominique se sentiu zangada, pois ele parecia rir dela. Como é que aquele homem
se atrevia a questionar-lhe a decisão? Muito mais alto do que ela, forte e moreno, ele
parecia um conquistador da Idade Média!

– Acho apenas que existe compaixão demais nesse coraçãozinho – explicou ele,
com calma.

– Como é que alguém pode ter compaixão demais, don Vittorio, num mundo onde
os valores estão apodrecendo? Alguns de nós temos que tentar...

– Mas está lutando contra uma parede de pedra, senhorita, e pode ferir seu coração.

– É o meu coração, minha escolha, e o senhor, afinal, não tem nada a ver com isso.

– Acha que sou indiscreto, senhorita?

Dominique hesitou um instante, mas acabou estourando.

– Acho que o senhor imagina que o dinheiro e a posição social lhe dão o direito de
dirigir a vida dos outros. Tony se opôs à sua vontade, escolhendo minha irmã como esposa,
e, por causa disso, o senhor é rude com ela!

– Talvez eu seja um homem rude por natureza.

– Don Vittorio, eu o conheci há algumas horas somente, mas foi essa a impressão
que o senhor me deu. De ser um homem rude, duro.

Ele fez uma mesura e indagou, sorrindo:

– Acha que as diferenças de opinião impedirão que sejamos amigos?

– Estou aqui em sua casa, senhor, como enfermeira de minha irmã. Gostaria que me
levasse até ela.

– Está preparada para isso?


– Sim, estou.

– Melhor assim. Tive medo de que minha presença a incomodasse.

– De jeito nenhum. Candice está me esperando?

– Não.

– Como? Não entendi!

– Ela sempre fica muito nervosa por qualquer coisa. Por isso, achamos melhor não
contar nada sobre sua chegada. A senhorita poderia demorar, para vir e ela então ficaria
decepcionada. Está vendo? Não sou assim tão cruel...

– Eu ainda acho que deveria ter sido chamada quando Candy caiu da escada e foi
para o hospital.

– Como eu já lhe disse, na ocasião não havia nada que indicasse alguma coisa mais
séria. Havia só alguns arranhões e uma pancada leve...

– Qualquer pancada pode ser imprevisível! – interrompeu-o a moça. – Eu tinha todo


o direito de ver minha irmã, mas parece que é o senhor quem toma todas as decisões nesta
família e, então decidiu que eu não deveria vir! Francamente!

– Fiz isso por causa da personalidade de sua irmã.

– O que quer dizer?

– Ela sempre foi uma pessoa de altos e baixos, não foi?

– E presumiu que eu também seria? Que eu perderia o controle, se tivesse que


enfrentar uma crise? Parece ter uma opinião estranha sobre as mulheres, senhor, mas, como
pode ver, sou capaz de enfrentar qualquer coisa.

– É o que parece.

– Seu irmão já me conhecia, sabe? Podia ao menos ter perguntado a ele, se é que
chega a perguntar a opinião de alguém...

– Acontece que acho que meu irmão não sabe julgar as mulheres.

– Essa é uma resposta maldosa. Suponho que significa que não aprovará nunca a
escolha que ele fez ao casar-se com Candy. Peço-lhe desculpas pelo fato de nem eu nem
minha irmã sermos italianas. Sem dúvida o senhor acha que só elas possuem virtudes, como
sua noiva!

Dominique se arrependeu assim que pronunciou as últimas palavras, mas já era


tarde. Havia sido não apenas insolente, mas cruel. Afinal, se ele não se interessara por
nenhuma mulher desde a morte da noiva, Amatrice, era porque devia tê-la amado muito. E
Dominique, geralmente cuidadosa até demais com os sentimentos das outras pessoas, sentiu
que uma onda de vergonha a invadia.

– Desculpe-me...

– Esqueça – disse ele, virando-lhe as costas. – Sua irmã deve estar acordada,
esperando o chá. Sabe, uma tarde ela jogou o bule pela janela...

– Não consigo imaginar Candice se comportando desse modo – afirmou ela,


seguindo-o pelo corredor.

– Parece estar convencida de que Candice é vítima de minha tirania. – E o olhar que
ele lhe lançou era frio como gelo. – Talvez a raiva não a deixe raciocinar direito, senhorita.

Dominique engoliu em seco. Aquele tom frio e sarcástico pareciam querer dizer:
“Fique longe de minha vida particular”.

Ele estendeu a mão para abrir a porta, mas, antes que pudesse fazê-lo, a maçaneta
girou e a porta foi escancarada por uma mulher que saía correndo, o rosto vermelho.

– Ah, senhor! – E fez um gesto em direção ao quarto. – Aquela fulana fica com a
cara virada para a parede e se recusa a tomar banho. Ficou sem comer o dia inteiro e acabou
de me dizer que, se conseguir se arrastar até o balcão, vai se jogar lá embaixo. Eu ia chamar
Antônio...

– Não é necessário, Malvina – disse Vittorio, indicando Dominique com um


movimento de cabeça. – Esta moça é irmã da, Sra. Romano e talvez possa dar um jeito na
situação. Posso saber o que foi que aconteceu?

A mulher olhou rapidamente para Dominique.


– Ela ficou com uma alergia, senhor, provavelmente por causa dos tranqüilizantes.
Ela precisa deles para dormir, mas essas coisas não fazem bem a ninguém! Drogas!
Veneno!

Dominique não conseguia desviar os olhos da mulher a quem Vittorio chamara de


Malvina. Estava esperando uma austera e velha senhora, mas a italiana, a babá que salvara
a vida de Tony, não devia ter mais do que quarenta anos e era espetacular. Não havia um só
fio branco em seus cabelos negros, presos num coque baixo, que emolduravam o rosto
moreno de olhos escuros marcado por uma pinta bem abaixo do olho esquerdo.

Dominique ficou surpreendida e ressentida com o modo malcriado como Malvina se


referia a Candy. Sua preocupação com a irmã aumentou, ao mesmo tempo em que sua
opinião sobre don Vittorio caía mais alguns pontos. Sentiu um aperto no coração, ao pensar
que o dono da casa confiara Candy aos cuidados daquela mulher de olhar estranho.
Estremeceu, ao constatar que Candice, sempre tão alegre e tão viva, agora falava em
suicídio. Tentou controlar a raiva e falar, com calma:

– Está me parecendo que cheguei bem na hora. Minha irmã certamente está
precisando de mim, não só como enfermeira, mas também como alguém que cuide dela
com carinho. Posso entrar? – Don Vittorio inclinou a cabeça, concordando, e ela continuou:
– Posso entrar sozinha?

Dominique se esforçava para não demonstrar no olhar a aversão que sentia por
Malvina. De agora em diante, aquela mulher teria que ficar longe do quarto de Candy. Ela
iria insistir nisso.

Vittorio deu-lhe passagem. Dominique agradeceu, num murmúrio, passou por ele e
por Malvina e fechou a porta atrás de si, com firmeza. Ficou parada por alguns instantes,
sentindo o coração bater mais forte. Depois, chegou perto da cama e viu Candy, toda
enrolada nos lençóis de seda, virada para a parede, os cabelos dourados completamente
emaranhados.

Dominique segurou a irmã pelos ombros e instantaneamente sentiu que ela resistia.

– Candy, vire-se para que eu possa lhe dar um abraço e um beijo – murmurou.

Durante alguns segundos não recebeu resposta. Depois, escutou um soluço abafado.
– Nicky, é você?

– Sim, minha querida.

Com ternura e delicadeza, Dominique virou Candice de frente. Sentiu um choque,


ao ver como estava magro e pálido o rosto que, antes, fora tão cheio de vida e alegria. Os
cabelos loiros estavam sem brilho e os lábios pareciam secos. Uma das faces estava toda
marcada pela alergia que Malvina atribuía às drogas que Candy tomava para dormir.

Dominique beijou-a com carinho, mas os olhos azuis da irmã permaneceram sérios
e hostis.

– Não está contente em me ver, Candy?

– Por que teve que se preocupar comigo? Provavelmente tinha diversos outros
pacientes para cuidar, não é verdade?

– Se eu soubesse do que aconteceu, teria vindo mais cedo, isso sim – assegurou-lhe
Dominique. – Tenho certeza de que Tony queria que eu soubesse, mas parece que quem,
manda é aquele irmão dele. Recebi um telegrama ontem e pedi imediatamente lima licença.
Vim cuidar de você. Don Vittorio me disse que está nas mãos de um ótimo médico e que...

– Que eu continuo deitada aqui, como um pedaço de pau, porque gosto disso? –
Interrompeu-a Candice, zangada. – Nicky, eu não posso andar! Tomo Deus por, testemunha
de como tentei... E como tentei! Mas toda vez caio ao chão, como uma trouxa; começo a
chorar e deixo Tony desesperado.Oh, o que vou fazer? – Candice se agarrava a Dominique
com tanta força que suas unhas chegavam a arranhá-la. – Você tem que me ajudar, antes
que eu acabe louca... e perca Tony! Eu o amo tanto e... e existe mais alguém...

– Psiu! – Dominique, quase tão triste quanto a irmã, passava as mãos pelos cabelos
desgrenhados dela. – Você precisa parar de acreditar nessas mentiras, querida.

– Não são mentiras – afirmou Candice, desanimada. – Enxerguei a culpa nos olhos
dele, quando o acusei. Acho que eu poderia até tê-lo perdoado, se ele tivesse me contado a
verdade, mas Tony mentiu... mentiu e comprou aquele horroroso colar de pérolas para me
acalmar! Vittorio contou a você sobre as pérolas?
– Sim, ele me contou. – Dominique sentou-se na beirada da cama e segurou a
cabeça da irmã contra seu ombro. – Ele disse que você as atirou em Tony, que ele tentou
dar-lhe um tapa e que você, assustada, caiu escada abaixo. Disse também que você só teve
ferimentos leves e uma pequena batida na cabeça e que essa impossibilidade de andar só
apareceu mais tarde. Candy, isso pode ser psicológico, e, se for isso mesmo, a melhora só
vai depender de você...

– Você fala como se eu estivesse ficando lunática! – Candice soluçava. – Já vi como


é que Tony olha para mim... Estou louca? É isso que está errado comigo?

– Claro que não está louca, querida!

Dominique conseguiu sorrir, mas continuava muito perturbada com a aparência


alterada da irmã, com a perda de vitalidade dela. Apesar de don Vittorio ter afirmado que
Tony não traíra a esposa, Dominique estava convencida de que ele devia ter feito qualquer
coisa para deixar Candice daquele jeito. Algo acontecera e a deixara tão magoada que até
seu sistema nervoso fora abalado.

Como enfermeira, já vira muitas vezes o que um esgotamento nervoso podia fazer a
um ser humano. Ninguém era imune a ele e, quando acontecia, a pessoa normalmente caía
em depressão. Dominique compreendeu que sua tarefa não ia ser fácil: dependia dela fazer
com que a irmã tomasse novamente gosto pela vida e voltasse a rir. Era chocante vê-la tão
desanimada, sem o orgulho que sempre tivera com sua própria aparência!

– Seus cabelos estão uma bagunça! – comentou, esforçando-se por falar em tom de
brincadeira. – Amanhã vou lavá-los com um bom xampu. Que tal?

– E para quê? – Havia grande amargura na voz da moça. Tony não se interessa mais
por mim. Tudo o que dissemos e o que fizemos foi uma mentira. Ele esteve todo o tempo
pensando em outra mulher...

– Isso é bobagem – afirmou Dominique, severa. – Ele não ia casar-se com você se
gostasse de outra, não é?

– Ele se casou comigo porque... porque eu disse uma mentira.

– O que quer dizer com isso, Candy?


– Não me diga que você é tão inocente assim! Bem... Tony e eu passamos um fim
de semana em Paris. Foi tudo maravilhoso, mas eu sabia que ele não pretendia se casar
comigo. Por isso, algum tempo depois, disse a ele que estava grávida. Tony se preocupa
muito com essas coisas e eu o queria a todo custo... Foi muito fácil, depois do casamento,
dizer que eu havia me enganado... e acho que é por isso que ele me odeia.

– Candice!

– Mentira puxa mentira, não é isso que dizem, Nicky? As coisas sempre acabam
aparecendo! – Uma lágrima escorria pelo rosto abatido. – Eu fui tão... tão tola! Apenas não
imaginei que Tony pudesse ter alguém aqui... uma garota italiana, que não fosse com ele
para Paris e não o enganasse com uma mentira! Eu mereço o que está acontecendo comigo
agora! Comprei encrenca e agora estou pagando o preço.

– Candy, você não deve falar desse jeito! – disse Dominique, abraçando a irmã e
consolando-a como se fosse uma criança. – Tony pode ter pensado qualquer coisa, quando
se casou com você, mas eu vi amor entre vocês, quando foram passar o Natal comigo. Ele a
ama, querida, precisa acreditar nisso, acreditar de verdade, para que as coisas comecem a
melhorar. Você sabia, quando se casou com ele, que Tony não é um homem simples,
comum. Ele e o irmão são gente bem diferente do resto, não acha?

Candice suspirou fundo, olhando para a irmã com olhos tristes.

– O que você achou de Vittorio? Algumas pessoas dizem que é arrogante, outras
falam que desde a morte da noiva ele mudou, tornou-se fechado, sem sentimentos.

– Ela devia ser muito jovem quando morreu, não? – comentou Dominique,
reparando que a aliança estava folgada no dedo da irmã e que suas unhas precisavam de
manicura. Era tão estranho Candy ficar assim relaxada com sua aparência....

– Sim, ela era muito moça – confirmou Candice, com voz resignada. – Parece ser
costume na família...

– Não estou entendendo... – disse Dominique, apertando a mão da irmã.

– Estou com vinte e três anos. Ainda sou moça, não acha?

– Não quero mais saber dessa conversa! Você não está à morte!
– Minhas pernas estão mortas!

– Você quer dizer que elas parecem mortas.

– E não é a mesma coisa? Não posso usá-las para andar, e certamente nunca mais
vou poder dançar. Tony adora a dança. Chegamos a planejar abrir uma escola de danças,
mas ele achou que o irmão não ia aprovar.

– Tony chegou a mencionar a idéia a don Vittorio?

– Não. Nós apenas sonhamos com isso. Talvez fizéssemos uma tentativa se Vittorio
adiantasse o dinheiro para a abertura da escola. Tony tem algumas economias e o irmão lhe
dá uma mesada baseada nos lucros da fazenda, mas precisaríamos de capital para... De
qualquer modo, quando aquelas cartas terríveis chegaram, foi como se o mundo tivesse
desabado. Nicky, eu não queria acreditar nelas, mas as palavras eram tão cínicas e os
detalhes tão verdadeiros! Queimei a primeira, fiquei com vergonha de mostrá-la! Depois
chegou a segunda, e por acaso eu a estava abrindo quando Vittorio ia saindo do escritório.
Viu como fiquei perturbada e quis ler. Disse que eu era uma tola por acreditar naquele
monte de mentiras, mas havia uma referência a uma cicatriz que Tony tem no alto da coxa,
um comentário tão safado. – Um rubor cobriu a palidez do rosto da moça, que continuou: –
Nicky, você pode me culpar por desconfiar? Eu enfrentei Tony e ele negou, mas havia algo
suspeito no modo como falava, e depois veio com aquelas pérolas... Eu quase o odiei,
parecia querer me comprar... Os homens às vezes são terríveis!

– Será que são mesmo? – comentou Dominique, perguntando-se como levantar o


ânimo, o orgulho, a força de vontade da irmã.

– Eu... eu costumava julgá-la uma boba por querer ser freira – murmurou Candy –,
mas agora começo a achar que você é que está certa. Leva sua vida sem depender de
homem nenhum.

– Pode ser – disse Dominique, tirando uma mecha de cabelos dos olhos da irmã. – E
que tal se eu a deixasse bem bonitinha, para o jantar? Olhe só essa camisola, está uma
sujeira! E seus cabelos estão parecendo crina de cavalo! Ouvi falar que andou assustando as
outras enfermeiras, mas comigo isso não vai acontecer. Eu vim para ficar.

– Vittorio foi buscar você no navio?


– Foi, sim.

– Quanta bondade! Imagino que ele tenha falado muito mal de mim, para que a
imagem de Tony parecesse a de um cavalheiro! Ele nem me queria aqui! Todo mundo sabe
que Vittorio não pretende se casar, e caberá a Tony dar um herdeiro para a família Romano.
O todo-poderoso don Vittorio gostaria que o herdeiro tivesse apenas sangue italiano, mas
agora parece que não vai haver nem meio herdeiro...

– Você não deve pensar ou falar assim! – reprovou Dominique. – Daqui para a
frente você vai aprender a lutar, nem que tenhamos que lutar juntas.

– Nicky, você é impossível e sempre vai ser, mas eu não tenho a sua fé.

– Mas tem que ter fé em si mesma, Candy! Vamos lutar juntas e vou insistir em
exercícios para suas pernas, depois vamos nadar...

– Tony odeia o mar!

– Estamos falando de você! – afirmou Dominique, agarrando com força as mãos


magras. – Estou preocupada apenas em fazê-la ficar boa, e, quando isso acontecer, o mundo
vai parecer um lugar bem melhor, você vai ver. Tem seu próprio banheiro?

– Ali.

Candice indicou uma porta e Dominique foi até lá. Como esperava, a banheira era
em estilo romano, funda e com degraus.

– Ótimo. Vou ensinar-lhe exercícios para as pernas enquanto estiver no banho.


Quando se sentir mais confiante, vamos experimentar suas pernas no mar... e não faça
caretas!

– Você, está parecendo uma super mãe! – resmungou Candy.

– Mas estou agindo certo, não é? Você quer voltar a andar, não quer?

– Será que quero? – E o olhar de Candice se perdeu em direção à janela, fazendo


com que Dominique se lembrasse das palavras de Malvina, de que ela havia ameaçado se
jogar dali.
– A que horas você janta? – perguntou Dominique, indo até a penteadeira e
encontrando uma escova de cabelos.

– Janto geralmente às sete e meia. – disse Candy, submetendo-se à escova e


gemendo enquanto Dominique desembaraçava os muitos nós de seus cabelos.

– E Tony janta com você?

– Às vezes, quando não tem nada melhor a fazer... Ai! Está doendo!

– Você não devia ter deixado seus cabelos ficarem desse jeito. Parece que não trata
deles há dias! Eu me lembro bem de como você gastava um tempão em frente ao espelho...

– E por que haveria de me incomodar agora? – respondeu a outra, aborrecida. – Não


vou a lugar nenhum!

– Mas nunca sai deste quarto? Tony não a leva para passear?

– Prefiro ficar aqui.

– Que bobagem! Não pode permanecer fechada num quarto abafado. Precisa de sol
e ar fresco.

– Foi por isso que veio para cá, Nicky? Para ficar me aborrecendo? Vittorio já me
enche bastante; até mandou vir uma cadeira de rodas, mas eu me recusei a usá-la. Ele
tentou me forçar, o bruto!

– Uma cadeira de rodas me parece uma boa idéia.

– O que de gostaria mesmo era de me colocar num asilo. Malvina me disse. Você a
conheceu?

– Sim. – Dominique passou vagarosamente a escova pelos cabelos agora


desembaraçados. – Pelo que sei, ela é muito ligada a Tony, foi babá dele. Mas uma babá
geralmente vai embora quando não há mais crianças em casa.

– Não Malvina – disse Candy, nervosa. – Ela se imiscuiu na vida da família e


acabou ficando, talvez pelo fato de ter salvado a vida de Tony. Tanto ele quanto Vittorio
acham que têm uma enorme dívida de gratidão com ela. Você deve ter reparado que
Malvina não se comporta como uma empregada da casa.
– É, eu notei.

– Não gostou dela, não é, Nicky?

– Não muito.

– Ela falou alguma coisa de mim?

– Disse que você havia feito uma ameaça... de se jogar lá embaixo.

– Que mentirosa!

– Você não falou nada disso?

– Imagine se eu ia dizer uma coisa dessas!

Dominique não sabia o que pensar. Escutou a porta se abrindo e viu don Vittorio
entrando no quarto. Ele se aproximou dos pés da cama, encarando as duas irmãs.

– O que quer? – perguntou Candice, quase com rudeza.

– Perguntar se você gostou da surpresa.

– De Nicky ter vindo?

– Está contente por tê-la aqui?

– Felicíssima! – resmungou a moça.

– Essa sua falta de educação faz com que eu tenha vontade de dar-lhe uma boa
sova! – Os olhos dele brilhavam, perigosos. – Será que vai tratar sua irmã do mesmo modo
como tratou as outras enfermeiras? Ela já sabe dos seus ataques de raiva.

– E como você se comportaria se ficasse paralítico? – perguntou Candice, olhando,


emburrada, para o cunhado. – De qualquer modo, você deixou Nicky longe de mim durante
semanas... você e Tony!

– Sua irmã tem a vida dela, e você tinha excelentes enfermeiras, a quem preferiu
insultar. Espero que agora melhore seu gênio. Já reparei que sua irmã conseguiu dar um
jeito em seus cabelos. – Olhou para Dominique. – Meus parabéns, senhorita.

Ela encarou-o também, vendo-o como um homem atraente, que não combinava com
a imagem de alguém que odiava as mulheres.
– Posso dizer-lhe algo, senhor?

– Claro que sim.

– Gostaria de cuidar sozinha de minha irmã, e quero ,que entenda que não vou,
admitir ninguém mais dando ordens aqui, dentro do quarto dela.

– Sei. Está se referindo a alguém em particular?

– À mulher que o senhor me apresentou agora há pouco.

– Malvina?

– Sim. – Dominique olhou para ele, séria. – Não gostei do modo como ela se referiu
à minha irmã, como se Candice fosse uma criança mimada com uma doença imaginária. Eu
sou a enfermeira, não ela, e conheço minha irmã melhor do que todos vocês. Tenho certeza
de que a doença de Candy é verdadeira. Além disso, ela é sua cunhada, e, por isso, digna de
respeito. Coisa que aquela mulher parece não ter por minha irmã.

– Eu a avisei de que Malvina às vezes é franca demais.

– Existe certa diferença, senhor, entre ser franca e ser grosseira.

– Concordo. E agora a senhorita está sendo franca, não é?

– Sou franca quando acho que estou certa.

– Certo. Tem mais algum pedido a fazer?

– Pode deixar que vou pensar em alguns. Por exemplo: dentro de alguns dias
gostaria de levar Candy até a praia. Será que alguém poderia carregá-la?

– Sim – disse ele, fazendo uma pequena mesura. – Eu mesmo.

Dominique reparou na largura dos ombros dele.

– Obrigada. O mar vai fazer um bem enorme à minha irmã. Comigo ela vai fazer
exercícios, não ficará deitada na cama o dia inteiro, tendo que tomar drogas para dormir.

– Está me parecendo severa, senhorita, mas muito sensata...

– Espero que eu seja mesmo.


– Vittorio, você não imaginava que Nicky fosse uma moça tímida, de olhos sempre
baixos, não é? – perguntou Candy, com um sorriso meio sem graça. – Ela pode parecer
muito inibida, mas tem o gênio dos Davis, e não é nenhum anjinho!

– É verdade, senhorita?

O olhar dele era desconcertante, mas Dominique não baixou o seu. Provavelmente
ele estava acostumado a dominar todo mundo, mas não seria ela que iria baixar os olhos
para um homem!

– O céu é que é o lugar dos anjos, e eu sei que sou apenas humana – respondeu,
sorrindo. – Bem, e o que há para o jantar? Eu não tive vontade de almoçar no navio e estou
faminta!

– Escutei falarem em cannelloni... – disse ele, um brilho divertido no olhar. – É um


delicioso prato italiano, que não serve para quem faz sacrifícios...

– Aposto que vou adorar, senhor.

– Ah! Então não vive só de pão e água?

– Só nas sextas-feiras, e com uma pitada de sal... – murmurou ela, rindo.

– Ou uma pitada de pimenta – ele deixou escapar.

– Irmã Páprica! – Candice caiu na risada. – Esse vai ser seu nome quando ficar
freira, Nicky. Sabia, Vittorio, que minha irmã vai tomar os votos sagrados e nunca homem
algum tocará nela?

– É, já fui informado do futuro evento – disse, dando uma olhada para Dominique
antes que ela baixasse os olhos. – Comentei até como duas irmãs podiam ser tão diferentes!

– Isso também serve para dois irmãos – murmurou Candice.

– É verdade, querida. – Ele ficou sério. – Bem, Srta. Davis, pode se considerar como
a sexta enfermeira a entrar nesta casa. Posso perguntar se se sente confiante para vencer a
batalha?

– Sim – disse ela baixinho. – Se me assegurar que tenho controle de tudo em relação
à doente, além do método, é claro.
– Claro – repetiu ele. – Ponha juízo na cabeça oca dessa sua irmã e eu lhe darei um
relógio de ouro. Está feito o negócio?

Dominique corou.

– Já tenho um relógio, senhor – disse, mostrando no pulso o relógio simples que


possuía. – Meu prêmio vai ser ver minha irmã ficar boa. Não aceito presentes.

– É proibido?

– Para mim, é.

Capítulo III

As estrelas brilhavam e o ar estava quente, perfumado. Se Dominique prestasse


atenção, poderia escutar as ondas batendo nos penhascos, lá embaixo, na praia.

Em sua vida, tivera poucos momentos em que pudesse aproveitar a paz e a beleza,
como nessa noite, no terraço.

Passava a maior parte do dia com a irmã, que andava muito instável ainda. Mas, por
entre as crises de mau humor, Candice suportava os exercícios para as pernas. Já comia
melhor, porém, como estava largando, aos poucos as drogas para dormir, seu sono era
agitado e ela acordava muito à noite. Dominique então lia ou conversava com a irmã sobre
os tempos do convento.

Dominique tentava esconder a preocupação que sentia. Candice não estava nada boa
e às vezes demonstrava um desespero tão grande no olhar que ela ficava sem saber o que
fazer. Sentia que a irmã lhe escondia alguma coisa que não podia ou não queria contar,
coisa que lhe parecia devorar o coração.
Dominique soltou um suspiro. Não podia obrigar Candy a lhe dizer nada, mas sabia
que só quando ela desabafasse é que começaria a melhorar, como se tivesse tirado um
veneno do corpo.

Passeando pelo jardim perfumado, não podia deixar de pensar que provavelmente o
autor ou a autora das cartas anônimas morava ali mesmo naquela casa. Um nome aparecia
em sua mente, mas, sem provas, ela nunca poderia enfrentar o suspeito. Talvez até causasse
problemas maiores, como sua expulsão de Vila Dolorita.

E Candice precisava dela... demais.

Voltou para o quarto de Candy e ficou agradavelmente surpresa.

Tony estava lá. As visitas dele não eram freqüentes, provavelmente porque não
conseguia suportar tudo que ocorrera com a esposa, que agora ficava muito retraída, ou
começava a discutir com ele por coisas sem importância.

Com apenas um olhar, Dominique percebeu que Candice estava ensimesmada.


Deitada num divã, com um xale de renda antiga a lhe cobrir as pernas e, com os cabelos
dourados arrumados, lembrava um pouco a antiga Candice.

Tony levantou-se quando Dominique entrou e deixou claro, pelo olhar, como estava
satisfeito com a mudança da esposa. Ele era tão alto quanto o irmão, mas faltava-lhe a aura
de energia que caracterizava don Vittorio. Dominique podia entender por que Candy se
apaixonara por ele: era o próprio cavalheiro latino, cheio de charme e cortesia, mas não
podia também deixar de pensar que segredos se esconderiam por trás daqueles atraentes
olhos escuros.

– Nicky, você está conseguindo milagres! – disse Tony, entusiasmado. – Candy


parece muito melhor, e tudo graças a você, que tem a paciência de uma santa!

– Pode ter certeza de que não sou santa – respondeu ela, sorrindo. – Candice está
encarando a vida mais positivamente e quer ficar boa, não é verdade, querida?

Candice não respondeu. Continuou apenas a olhar o vazio a sua frente, mas
Dominique suspeitava que ela via o marido nos braços de outra mulher que o conhecia tão
bem quanto ela...
– O que você vai querer para o jantar hoje, Candy?

– Não estou com fome – disse Candice, suspirando. – Só vou tomar uma taça de
champanhe.

– Andei conversando com a cozinheira, e ela está fazendo vitela. E também um


prato com camarões enormes. Não fica com água na boca?

– Não muito – respondeu Candice, bocejando. – Vou comer só algumas torradas. E


tomar champanhe.

– Realmente, querida, acho que você não devia ofender um champanhe tão bom
com simples torradas!

– Então ponha caviar nelas!

– Ora, ora... – Dominique estava resolvida a não deixar os dois discutirem. – Aquela
vitela está com um cheiro delicioso, e você pode comer junto com aspargos. Não se
aborreça, querida. Pense em quantas moças gostariam de morar numa casa como esta, com
um marido tão atraente. Veja quantas coisas boas!

– É verdade, Nicky. – Havia uma nota de desespero na voz de Candy. – Eu


realmente acho que é maravilhoso ficar deitada aqui o dia inteiro quando o que mais
gostaria era poder ir dançar. Isto deveria ter acontecido com você, que então poderia se
considerar uma verdadeira mártir!

– Candice! – A palavra saíra dos lábios de Tony, absolutamente chocado. – Que


modo de falar com sua irmã! Sua língua devia pegar fogo!

– Que pena que você não pegou fogo! – foi a resposta venenosa. Tony empalideceu
e Dominique sentiu uma pena enorme daquele casal, separado exatamente como o autor das
cartas anônimas pretendia. Será que existia mesmo outra mulher na vida de Tony, e que
fora ela que usara a caneta como um punhal?

– Vou sair daqui! – gritou ele.

– Tony... espere!
Ele parou, a mão no trinco da porta. Alguma coisa naquele grito desesperado fez
com que se voltasse e viesse novamente para perto do divã. Encarou sério a figura
recostada e então Candy estendeu-lhe as mãos.

– Você diz coisas terríveis para mim, Candy.

– Eu não queria...

– Mas falou de propósito.

– Eu... é porque tenho tanto medo! Abrace-me, Tony! Abrace-me e não me deixe
pensar mais!

Ele se ajoelhou no tapete e abraçou carinhosamente o corpo frágil da esposa.


Dominique observava, rezando para que o arrependimento de Candy não fosse passageiro.
Os braços magros apertaram o pescoço de Tony, que beijou de leve os lábios da esposa.

Ele levantou uma sobrancelha para Dominique, como se quisesse saber o que fazer
com Candy, às vezes tão amorosa, mas às vezes tão terrível.

– Nós vamos jantar juntos – disse ele. – Diga ao pessoal da cozinha para mandar o
jantar aqui. Vou tentar fazer Candy comer. Vamos tomar champanhe, mas não torradas.

Dominique sorriu. Será que Tony amava mesmo a esposa, ou apenas se sentia
culpado por ela estar naquela situação? Será que vira uma sombra de tristeza nos olhos
dele? Ah! Se um dos dois confiasse nela... Sem aquele tipo de cooperação, Dominique
sentia como se remasse contra a corrente.

Contem tudo para mim, queria dizer, mas apenas murmurou:

– Vou saber do jantar. – E os deixou sozinhos, ainda abraçados.

Dominique estava saindo da cozinha quando don Vittorio apareceu, vindo da adega.
Trazia uma garrafa de vinho nas mãos e Dominique preparou-se para passar por ele com
um leve aceno de cabeça, quando ouviu a pergunta:

– Enfermeira, pretende jantar sozinha?

As luzes do candelabro se refletiam nos óculos dela, que respondeu, surpresa:


– Sim, senhor. Seu irmão ficou com Candice.

– Foi o que pensei. Então vai jantar comigo esta noite. Não faz objeções, não é?

– Sabe como penso, don Vittorio. É melhor que eu mantenha distância e continue
apenas como enfermeira em sua casa. O senhor prometeu...

– Não, senhorita, não prometi nada. Eu apenas concordei com sua vontade, mas não
vejo razão para que jante sozinha, logo hoje, quando estou prestes a abrir uma garrafa do
meu vinho predileto. – Passou a mão pela garrafa, quase com sensualidade. – “Lágrimas de
Tibério”... já ouviu falar dele?

– Foi um tirano romano – disse ela, a voz meio trêmula. Não tinha certeza se estava
zangada com don Vittorio por ele não acatar sua decisão ou com medo de ficar a sós com
uma pessoa tão perturbadora.

Don Vittorio sorriu de leve.

– Toma vinho, não toma? O vinho não está entre os prazeres terrenos que aboliu,
não é?

– Eu... eu acho melhor jantar no meu quarto mesmo...

E já ia se dirigindo para a escada, quando ele ordenou; severo:

– Na minha casa, quando dou uma ordem, espero ser obedecido!

– Está me ordenando jantar com o senhor?

– Sim, senhorita, estou.

– Mas eu ainda estou de uniforme!

– Já reparei. – Os olhos dele a analisaram, como se quisessem vê-la num elegante


vestido de noite. – Posso dar-lhe meia hora para se arrumar. É suficiente?

– Sim, mas eu acho que...

– Não, não ache nada... – disse ele, seco. – Julgo que pensa demais, e isso não é
muito bom para a senhorita. De vez em quando devia parar de pensar, como qualquer outra
mulher.

– Não sou como qualquer outra mulher...


– Bobagens!

– Sabe o que quis dizer, senhor.

Dominique sentiu que corava sob o olhar daquele homem e ficou indecisa entre
subir correndo a escada ou continuar ali e tentar a discussão... Don Vittorio parecia adorar
suas próprias opiniões!

– Srta. Davis – disse ele –, não seja tão puritana. Tenho certeza de que as boas irmãs
de Santa Anselma às vezes chegam a tomar um copo de vinho às refeições. Deus não nos
teria dado as uvas se não quisesse que tomássemos vinho. Será que isso não parece lógico
nem mesmo a você, que, por alguma estranha razão, acha que sua companhia não daria
prazer a um homem?

– O senhor quer apenas se divertir – disse ela, na defensiva. – Já me disseram que


não perde tempo com mulheres.

– É verdade. Eu não tenho mesmo muito tempo para a maioria das mulheres, mas a
senhorita é bem diferente, não? Faz jejuns?

– Não entendi...

– Ou é assim porque vive correndo pela escada?

– Oh! – Dominique olhou para si mesma. – Já compreendi. Eu sempre fui assim


magrinha. Mas isso ajuda quando se é enfermeira.

– Até quando vai ter que levantar pacientes com o dobro de seu peso?

– Existe um jeito certo, senhor.

– Quer dizer que poderia até levantar a mim, se eu chegasse a ser seu paciente?

Dominique examinou-o de alto a baixo. Ele dava a ilusão de ser magro, mas ela já
notara como era musculoso quando usava camiseta de malha.

– O senhor parece saudável demais para chegar a ser meu paciente.

Ele apenas sorriu e fez um gesto na direção da escadaria.

– Então vá se aprontar. As “Lágrimas de Tibério” ficarão esperando.

– Não' tenho roupa apropriada...


– Então peça emprestado um vestido à sua irmã. Tenho certeza de, que ela tem
dúzias deles – disse Vittorio, perdendo a paciência.

– Eu não poderia...

– Enfermeira, está começando a me deixar nervoso! – disse, com os olhos,


brilhando. – Está querendo fugir do meu convite, mas não vai conseguir... Pelo amor de
Deus, vista uma saia e uma blusa, mas tire esse uniforme e esteja aqui em meia hora. Isso é
uma ordem!

– Está bem, senhor. – E foi saindo, de costas em direção à escada. – Estarei na sala
de jantar dentro de meia hora.

– Você me encontrará no pátio – avisou ele – Está uma bela noite e mandei colocar,
uma mesa lá. Não tem objeções quanto a isso, não é?

– Não...

– Seus olhos dizem outra coisa, enfermeira – afirmou com um brilho irônico no
olhar. – Não pense que esses óculos a escondem do mundo... Por falar nisso, precisa usá-los
o tempo todo?

– Preciso. Sem eles não enxergo quase nada.

– Nunca pensou em usar lentes de contato?

– Não... por quê?

– Por vaidade, uma boa razão para a maioria das mulheres.

– Eu... acontece que não sou vaidosa...

– Não mesmo? É um dos requisitos para uma vida santificada?

– Prefiro não falar sobre minha vida particular, senhor, se não se incomoda.

– Que pena...

– O senhor também não gosta de falar sobre o que é pessoal – defendeu-se


Dominique, desejando ardentemente ter esperado mais alguns minutos na cozinha, evitando
assim o encontro com ele e o convite que não desejava. Estava alarmada só em pensar no
tal jantar no pátio cheio de flores, um dos lugares mais bonitos da casa.
– Gostaria de ser minha confidente? – perguntou ele.

– Eu? De jeito nenhum!

– Não? – E uma sobrancelha negra se levantou junto com o canto dos lábios, num
sorriso leve. – Engraçado, eu tinha a impressão de que se sentia curiosa sobre minha vida
particular...

– E por quê?

– Porque, se não sentisse curiosidade pelas outras pessoas, especialmente as do sexo


masculino, eu acharia muito estranho. Ora, Srta. Davis, ainda não fez seus votos de
castidade!

– O senhor me acha muito engraçada, não é verdade, don Vittorio?

– Não. Eu a acho muito misteriosa.

Dominique.continuava ali, parada, sentindo o coração bater disparado. Perguntou:

– Por que diz que sou um mistério? Não deixou de lado a idéia de casamento, assim
como eu?

– Deixei. – Uma estranha chama brilhou nos olhos dele. – Vá colocar outra roupa.
Eu ficarei aguardando.

Dominique subiu correndo a escada, perseguida pela chama que havia visto nos
olhos dele. Sabia que tocara num ponto importante da vida de don Vittorio. Deus que a
ajudasse! Ela havia querido manter distância daquele homem, mas os dois tinham acabado
por dizer coisas íntimas demais, coisas que dois estranhos nunca diriam um ao outro.
Agora, Dominique só queria descobrir uma desculpa para não precisar jantar com ele.

Deu uma olhada em Candice, encontrou tudo em ordem e entrou em seu próprio
quarto, preocupada, procurando no armário alguma roupa adequada para um jantar. Não
possuía nada assim. Resolveu usar uma saia cinza e uma blusinha branca com enfeites de
renda. Vestida e arrumada, o cabelo preso no mesmo coque de sempre, foi seguindo,
relutante, em direção ao pátio.

A mesa estava posta para dois, debaixo de uma espécie de caramanchão florido.
Havia o brilho dos talheres de prata, a alvura da toalha e o som da água que escorria de uma
fonte. Cigarras ainda cantavam nos ciprestes e o aroma das árvores se misturava com o das
flores do jardim. Toda essa cena era iluminada por lanternas de ferro presas nas paredes do
pátio.

Tudo parecia tão romântico que Dominique quase deu meia-volta, em pânico... O
que é que estava fazendo ali, entre as flores de um jardim italiano, na companhia de um
homem?

– Ah! Já está aí, senhorita? – disse Vittorio, saindo da sombra das árvores e se
aproximando.

Moreno e alto... Esses homens são sempre perigosos, pensou Dominique. Sentiu que
a examinava dos pés à cabeça. Por fim, ele disse:

– Deus meu! Ainda está com jeito de enfermeira!

– Mas é isso que sou, senhor. Se queria uma companhia glamourosa, não devia ter
me convidado para jantar...

– Convidei-a porque senti vontade – disse, dando de ombros. – E você não é


glamourosa apenas porque não quer...

– É porque me falta algo... charme, por exemplo. – Um sorriso tremeu em seus


lábios. – E também porque, para se ser glamourosa, é necessário tempo e dinheiro, e eu
tenho coisas mais importantes para fazer.

– Sua profissão não é bem paga?

– Não são os lucros que me interessam.

– Então, o que lhe interessa, minha pequena?

– Não sou criança para ser tratada de “pequena”! – reclamou Dominique.

– Permita-me dizer-lhe que, sob alguns aspectos, é bem criança sim. Afinal, o que
lhe interessa de verdade, se existe tanta gente ingrata no mundo?

– Existe uma satisfação enorme em se ver uma pessoa ficar boa, em ver a palidez da
doença ser substituída pelas cores da saúde, em notar que uma pessoa se interessa
novamente pela vida. E a satisfação ainda é dupla quando há uma criança envolvida.
– Já trabalhou com crianças? – Havia um novo interesse na voz dele.

– Sim, senhor, numa unidade especial, logo depois que me formei. Era um lugar
muito triste, pois tratava de crianças sem grandes chances de viver. Foi por isso que acabei
saindo de lá... A gente começava a gostar das coitadinhas e elas acabavam morrendo... Eu
não podia suportar aquilo. Muitas vezes era o melhor que lhes podia acontecer, mas era
duro vê-las nascer para depois irem morrendo...

– Então, senhorita, suas experiências como enfermeira foram várias?

– Sim... E o senhor achou que eu não teria capacidade de cuidar da minha própria
irmã, não foi?

– É, “vivendo e aprendendo”.

Dominique olhou à volta, já que os olhos dele a perturbavam demais.

– Como esta parte do jardim é linda, especialmente à noite! O senhor janta sempre
aqui?

– Quando sinto vontade – respondeu ele, puxando-lhe uma cadeira de cana da índia.
– Por favor, sente-se.

Dominique aproximou-se, sem conseguir ignorar aquela presença tão masculina,


Sentou-se depressa, tentando se convencer de que suas pernas não haviam ficado moles só
porque um homem se debruçara sobre ela.

– Vai tomar vinho?

– Posso recusar?

– Na verdade, não. – Vittorio segurou a garrafa com as mãos finas, tirou a rolha e
verteu o líquido vermelho em dois copos de cristal.

Aquele homem aparentemente duro apreciava as coisas belas, e Dominique se pôs a


pensar se Amatrice teria sido linda. Será que ela também jantara com ele ali, naquele pátio
cheio de flores e perfumes? Será que havia tomado “Lágrimas de Tibério” nos belos copos
esculpidos?

– Pronto – disse ele, estendendo-lhe um dos copos.


– Obrigada.

– Um brinde a quê?

– À saúde de minha irmã!

– Que seja! – disse ele, levantando a mão. – Que a enfermeira Davis possa vencer e
que sua irmã logo volte a dançar!

As palavras foram tão comoventes que Dominique não encontrou nada para dizer.
Apenas ficou fitando o homem à sua frente e tomou com ele um gole de vinho. O que
pensaria don Vittorio da moça vestida com tamanha simplicidade, o rosto sério por causa
dos óculos e usando como enfeite apenas o relógio de pulso?

– Que olhar sério você acabou de me dar! – caçoou ele. – O vinho deve fazer as
mulheres brilharem, sabia?

– Acho que não tenho muito brilho, senhor.

– Só porque nunca procurou por ele. Será que sempre se manteve à sombra de sua
irmã?

– Não. Eu não faço isso!

– Não mesmo'?

– Não.

– Talvez nem perceba.

– Candice sempre foi muito bonita e seria bobagem querer competir com ela. De
qualquer modo, essas coisas nunca me interessaram.

– Só lhe interessa cuidar de doentes, não é? Oh, minha querida garota, nunca teve
vontade de se divertir?

– Claro que sim...

– Com algum rapaz?

Dominique corou e sacudiu a cabeça.


– O senhor sabe que não foi isso que eu quis dizer. Sempre me diverti a meu modo...
Vendo um musical, lendo um livro, saindo a passeio... Uma moça não precisa
necessariamente da companhia de um rapaz.

– Só um tipo muito raro de mulher é capaz de dizer uma coisa dessas.

– E o senhor, precisa da companhia de uma mulher para aproveitar a vida?

– Já tive esse tipo de companhia.

– Claro, claro – disse Dominique, baixando a cabeça.

Nesse instante, um empregado apareceu com um carrinho, trazendo os pratos do


jantar.

Durante a refeição, ambos conversaram sobre coisas superficiais, mas Dominique


tinha a impressão de que a conversa ficaria séria novamente assim que terminassem o café,
que por sinal estava ótimo, forte e quente.

– Venha sentar-se aqui – disse don Vittorio, indicando uma espreguiçadeira perto de
um laguinho de peixes dourados. Dominique sentiu o coração disparar e quis pedir licença
para ir ver Candice, mas, antes que o fizesse, ele acrescentou: – Não se preocupe com nada;
tenho certeza de que sua irmã está muito bem ao lado de Tony. Venha, sente-se!

– Está bem...

Dominique obedeceu, sentando-se na pontinha de uma das espreguiçadeiras.

– Santo Deus! – bradou ele, e, com um movimento rápido, pegou as pernas dela e as
colocou sobre a cadeira, fazendo com que Dominique se reclinasse sobre as almofadas. –
Quanta teimosia! Agora fique aí mesmo enquanto pego mais café e alguns bolinhos!

Era ridículo, mas ela não se atrevia a sair dali. Esperou, cabisbaixa, que ele voltasse.
Vittorio franziu a testa, olhando para a moça.

– Pelo amor de Deus, relaxe! Você vive tensa, como uma raposinha branca que eu
tinha quando criança. Os olhos dela eram vivos e o pêlo tão claro quanto sua pele...

Aquele era o tipo de comentário que deixava Dominique sem resposta, toda
atrapalhada. Não estava habituada a ficar sozinha com um homem.
Vittorio ajeitou-se na outra espreguiçadeira, esticando as pernas, e Dominique
escutou quando ele soltou um suspiro.

– Aquela raposa tinha o pêlo macio como seda – murmurou – e me seguia como um
cachorrinho. Um dia, não veio quando assobiei, e meu pai me disse que ela provavelmente
tinha ido procurar um companheiro, e que, se fosse isso mesmo, não iria voltar mais, seria
selvagem novamente. Os dias se passaram, ela não voltou e eu nunca contei a ninguém o
quanto chorei todas as noites de saudades da minha amiga raposa de olhos vivos, olhos que,
eu imaginava, seriam devotados a mim para sempre...

As palavras se perderam no ar perfumado. Uma brisa tomou de leve os cabelos de


Dominique e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

Ela sentiu medo, medo de alguma coisa na qual nem Se atrevia a pensar.

– Dominique – disse don Vittorio, pensativo –, você parece evocar num homem a
necessidade de falar de coisas que geralmente se guarda para si mesmo...

– Por que um garoto não deveria chorar ao perder um animalzinho de estimação?

– Foi a última vez que chorei em minha vida...

– Mas não chorou por... – Interrompeu-se, fugindo do nome da noiva dele, como se
de repente se sentisse junto a um precipício.

– Amatrice? – completou a voz profunda, mais baixa.

– Por favor... eu não pretendia me intrometer... – Dominique sentia o coração


batendo com força.

– Não está se intrometendo – respondeu ele, sério. – Já lhe falaram sobre ela, não é?
Sem dúvida Candice lhe contou que eu ia me casar, não?

– Sim, senhor.

– Minha noiva vinha de Vicovaro, o lugar das belas moças, dizem. E ela era
realmente linda. Uma vez você comentou comigo sobre a tradição italiana dos casamentos
arranjados e eu não neguei a existência deles. É verdade. Normalmente os casais são
escolhidos quando ainda estão na escola, e foi assim comigo. Era desejo de meu pai que um
dia eu me casasse com Amatrice di Cenzo, uma menina que na ocasião tinha apenas seis
anos. Meus pais já haviam morrido quando cheguei à idade de me casar, mas aceitei a
vontade deles e pedi a mão de Amatrice. – Interrompeu-se, ao notar o ar pensativo de
Dominique, e indagou: – o que está imaginando? Que minha história se parece com a de
Dante e Beatriz?

– Oh, não! Eu apenas estava achando tudo muito triste...

– Você é uma criatura sentimental, pensa com o coração.

– O senhor deve ter ficado muito abatido quando... quando ela morreu!

– Enlouquecido! É a palavra que melhor me descreveria na época.

– Sim... estou entendendo. Louco com o destino...

– Destino! – Ele deu uma risada áspera. – Como é inocente! Garota tolinha, nós é
que fazemos nosso próprio destino. Como fará o seu, quando for freira. E, daquele
momento em diante, você vai trocar o caminho que leva ao romance, à paixão, pelo fogo
sagrado do amor casto. Fico pensando se esse fogo chega a aquecer...

– Provavelmente tanto quanto o ódio que o senhor nutre pelas mulheres.

– Ah! Ouviu falar que eu odeio as mulheres? É assim que você e Candice passam os
dias? Discutindo sobre minha pessoa?

– Como se pudéssemos... – Dominique sentiu que corava até as orelhas. – O senhor


deve se considerar importante demais para achar que iríamos gastar horas conversando
sobre sua vida!

– Mas assim mesmo tocaram em meu nome, não?

– Sim... de passagem.

Ele acabou rindo baixinho e perguntou:

– Será que nem de passagem você pensou no tipo de amor que liga sua irmã a
Tony?

– Não...

– É um sério pecado mentir – caçoou ele. – Se é bastante normal para chegar a


escutar comentários sobre um homem, deve ser normal também para ficar curiosa por saber
o que é ser abraçada por um homem. Fico pensando no motivo que a fez pensar que pode
viver sem amor... Acha que amor é pecado, é fogo do inferno?

– Claro que não! – E, ao levantar os olhos, viu uma estrela cadente criando um fio
prateado no céu escuro. – Oh! Olhe para aquilo!

– Não tente fugir de minha pergunta, Dominique. Não acho que você seja uma
religiosa fanática, nem penso que seja tão piedosa assim. Será que não se acha digna de ser
amada?

Dominique estremeceu.

A pergunta mexia num ponto profundo do seu ser. Sacudiu uma convicção que ela
nunca revelara a ninguém. Como foi que ele desconfiou? A resposta era simples, mas
constrangedora. Ele sabia porque a via como ela era na verdade, uma moça simples, de
óculos, sem qualquer parcela do charme que servia para atrair o desejo dos homens. Uma
moça comum, feia e sem graça.

– Eu me considero mais útil que ornamental, senhor – disse ela, seca. – Quando
Candice e eu éramos crianças, as outras meninas achavam que minha cara era engraçada
porque minha irmã era linda. Nós duas éramos a Coruja e a Gatinha...

– Sinto muito!

– Eu não ligava, don Vittorio – replicou ela, com um sorriso triste. – Usava óculos
com aros de metal e estava sempre com este nariz arrebitado metido nos livros. Eu era
muito diferente de Candy, e sabia disso. Ela era a fita de seda e eu o barbante, ela era o
biscoitinho e eu uma fatia de pão, ela era a amêndoa açucarada e eu um simples
amendoim...

– Fala com humor, mas, assim mesmo, acho que todas as garotinhas gostariam de
ser bonitas.

– Falo sério. Não me importava mesmo o fato de ser parecida com uma corujinha.
As corujas são engraçadas, elas também são sábias... não são?

– É verdade, eu até sabia de cor um versinho sobre a sabedoria das corujas! Sempre
gostei dos pequenos animais da noite.
– O senhor já disse que gostaria de esculpir esses animais. Já tentou alguma vez?

– Não, mas já pensei muito nisso.

– Devia tentar. Muitas vezes, quando sentimos uma grande vontade de fazer algo, é
porque temos um talento natural para isso.

– No seu caso foi a enfermagem?

– Sim, e eu percebi que era uma boa enfermeira. Fiquei satisfeita ao descobrir que
podia ser uma pessoa útil.

– Então, por que não continuar só assim? Para que chegar ao extremo de ser freira,
se não acredita que o amor entre um homem e uma mulher seja uma coisa pecaminosa? Ou
o amor é algo de que você foge?

– É uma coisa sobre a qual eu nem penso.

– Por que não?

– Eu...

– Será que tem receio de pensar nisso?

– Não.

– Mas tem, sim. Cresceu com a idéia de que, para conseguir o amor de uma pessoa,
tem que ser como Candice. Viu professores mais benevolentes para com ela e crianças
disputando a amizade dela. E mais tarde via também garotos e homens a rodearem como
mariposas rodeiam a luz. Você era a observadora silenciosa, solitária, vendo tudo do seu
cantinho.

– Eu... eu nunca tive inveja de Candice! – protestou Dominique. – Ela sempre foi
mais expansiva e eu nunca conseguiria ser assim, nem que tentasse. Com que cara acha que
eu ficaria, se pintasse os olhos e os lábios e saísse por aí com roupa de festa? Candice tem
charme. Eu não.

– Mas você tem bondade, Dominique! Existe muito pouco disso hoje em dia, isto é,
bondade verdadeira, que nada pede em troca. Não deixe que isso a leve por um caminho
errado.
– Não estou entendendo.

– Ser boa e ser piedosa são duas coisas bem diferentes. Sabe, minha primeira escola
foi um colégio jesuíta e posso lhe dizer que apanhávamos muito, lá. A vida monástica pode
ser tão severa que chega a modificar a personalidade das pessoas.

– Está falando sobre sacrifícios, não é?

– Claro que sim!

– Mas o ódio às mulheres também não é, de certa forma, um sacrifício?

– Você acha mesmo que sou assim?

– É o que todo mundo parece pensar.

– E você acredita?

– Don Vittorio, eu não o conheço suficientemente bem para dar uma opinião.

– Não odeio as mulheres. Simplesmente decidi não me casar, só isso. Assim somos
dois, não é?

– Está parecendo.

– E é, minha querida jovem. Você tem um coração imenso, mas decidiu que não
quer ser esposa e mãe.

– Senhor, uma mulher só pode ser esposa e mãe se alguém a pede em casamento.

– Então acha que isso nunca acontecerá com você?

– Eu tenho vinte e cinco anos – disse ela, divertida – e nunca fui beijada!

Houve um minuto de silêncio depois disso, onde só se escutavam as cigarras e o


farfalhar das folhas das árvores.

– Você diz isso com humor...

– Bem, não é exatamente uma tragédia.

– Para algumas mulheres poderia ser. Para certas pessoas só existe a delícia do
amor, o resto é uma espécie de morte.

– É assim com Candy.


– Mas não é para você...

– Certamente que não – Dominique sentiu que corava e ficou satisfeita por estar
meio escuro.

– Mas será que não tem curiosidade sobre as técnicas... do beijo? – indagou ele
vagarosamente.

– Não tenho mais. – Ela se interrompeu, meio confusa, e deu uma olhada no relógio.
– Acho melhor entrar agora, senhor.

– Você só irá quando eu disser que pode ir – disse ele, sem tentar esconder a
arrogância na voz. – Vai responder à minha pergunta... Já houve época em que desejou ser
abraçada e beijada por um homem até ficar à mercê apenas dos sentidos?

– Por favor – disse ela, começando a se levantar –, não quero discutir esse tipo de
coisa.

– Se tentar se levantar dessa cadeira, vai descobrir que, quando quero uma coisa,
consigo. Neste instante, quero conhecer a pessoa escondida dentro desse corpo severo.
Estou curioso e quero as respostas.

– Como o todo-poderoso chefe da família e dono da casa? – Dominique afundou-se


novamente na cadeira, cada vez mais tensa. – Não sei que importância isso possa ter, desde
que eu seja uma enfermeira competente.

– Mas eu me importo com isso, sim. Quero saber mais sobre você!

– Don Vittorio, pode me fazer qualquer pergunta, desde que não seja pessoal. O fato
de eu ser cunhada do seu irmão não lhe dá o direito de me torturar!

– E é isso que estou fazendo?

– Sabe que sim! Chegou a ameaçar-me, para me manter aqui.

– Ameaçá-la?! – As palavras soavam meio roucas. – Estou apenas tentando fazer


com que relaxe e fique mais à vontade.

– O senhor não me deixa à vontade... Será que, segundo sua teoria, toda mulher tem
que ficar suspirando por um homem?
– Será que isso nunca aconteceu com você?

– Não.

– Mas há pouco quase admitiu. Será que, quando sua irmã se punha toda bonita para
ir dançar com algum admirador, você não ansiava por fazer isso também? Será que chegou
a se indagar por que todos se importavam com Candice, e sequer notavam sua presença?

Dominique encarou-o, naquela quase escuridão, o rosto dele parecia mais moreno e
cruel ainda.

– E isso tem alguma importância? – perguntou ela, engolindo em seco. – Será que
preciso contar-lhe o que senti?

– Conte.

– Eu me senti... meio desanimada.

Era verdade. Ela agora se lembrava de ficar parada na porta do apartamento,


enquanto Candice saía correndo, rindo, feliz, e entrava no carro de algum rapaz ou num
táxi, para passar uma noite de alegria e divertimento. Dominique não chegara a sentir
inveja. Era mais uma sensação de vazio, e fora com determinação que ela preenchera
aquele vazio com trabalho e estudo, que lhe davam alguma satisfação.

E agora, que parecia não haver mais importância no fato de ela sempre ter
permanecido à sombra da irmã, aquele homem tinha que vir e enfiar uma faca em
sentimentos há muito cicatrizados.

– Don Vittorio, eu sou uma mulher muito simples e já me habituei a ser assim. É
claro que, quando mais moça, as coisas eram mais difíceis de aceitar. Não pense que eu
sentia ciúmes terríveis de Candy.

– Não pensei uma coisa dessas.

– Então, por que fica me espicaçando? Parece querer provar que sou uma solteirona
azeda e amargurada...

– Não é nada disso.


– Então, por quê? – indagou, olhando para ele sem entender. – Eu sou o que pareço
ser, não tenho nenhum segredo escondido.

– Claro, sei disso mas...

– Mas parece desapontado... Por quê?

– Não sei.

– Esperava que eu tivesse um passado escabroso?

– Minha cara jovem, pare de falar sobre si mesma como se não tivesse nada que
interessasse aos homens. Algumas das mulheres mais simples e feias do mundo tiveram
amantes que as mais lindas não conseguiram atrair. Picos de neve às vezes escondem
vulcões, essa é a verdade!

– Não está insinuando que eu seja assim, está? – Dominique sentia o rosto pegando
fogo. – Eu nem olho para os homens...

– Já havia percebido.

– Mas como? Como é que...

– Santo Deus! Como pode ser tão inocente?'

– Oh! Eu já vou entrar... E não se atreva a me impedir! – afirmou ela, ficando em


pé, mas a única coisa que a seguiu foi a risada divertida de don Vittorio.

Dominique experimentou uma estranha sensação, ao entrar. Seria pesar? E então


deu um encontrão numa pessoa que observava o pátio.

– Desculpe – falou.

Olhos negros a analisaram de alto a baixo. Malvina nada disse, apenas transferiu o
olhar para o homem que ficara no pátio.

Dominique sentia-se queimar por dentro, ao subir a escadaria. Foi depressa até seu
quarto. Queria se recompor antes de encontrar a irmã, pois sabia que, do jeito que estava,
Candice notaria algo.
Pôs as mãos no rosto e sentiu que ele pegava fogo. Por que acabara contando a don
Vittorio que nunca fora beijada? Olhou-se no espelho e virou o rosto, pois percebera em seu
próprio olhar uma tênue resposta. Ficou apavorada.

Não, não queria que nenhum homem a beijasse, muito menos aquele. E até parecia
que alguém fosse ter vontade de beijá-la! Os homens gostavam de mulheres açucaradas,
doces, sensuais como Candy. Ela sempre soubera disso, e não era mais a adolescente que
um dia chegara a ficar triste porque ninguém a amava...

Capítulo IV

Dominique acordou no meio da noite, assustada, ouvindo batidas à porta do quarto.


Levantou-se depressa, abriu-a e viu uma silhueta escura, delineada pela luz do corredor.

– O que foi? O que aconteceu? – Procurou acender a luz, enquanto a figura alta se
aproximava, envolta num robe escuro.

– Precisa vir ver Candice imediatamente. Ela parece muito mal!

O coração de Dominique deu um salto. Ela vestiu o robe, enfiou os chinelos e


seguiu Vittorio até o quarto da irmã.

Que teria acontecido? Candice parecia tão bem quando Dominique a deixara, há
poucas horas! Agora, no entanto, o corpo frágil e magro se retorcia em espasmos de dor, o
cabelo estava encharcado de suor e a face, cadavérica.

– Já chamaram o médico? – foi a primeira coisa que Dominique perguntou, tentando


controlar o medo.

Ela sabia que uma enfermeira nunca devia entrar em pânico, mas não pôde evitar.
Sua própria irmã estava correndo perigo, sentia cólicas fortes e dolorosas.

Candy teve uma ânsia forte e Tony implorou:


– Dominique, faça alguma coisa! Será que não pode dar-lhe uma injeção para
melhorar essas dores?

– Não posso... eu não sei qual é a causa disso tudo e... – Interrompeu-se, pois não
enxergava direito o rapaz. Na pressa, esquecera os óculos. De repente lembrou-se de um
caso que tratara um ano antes... um homem envenenado por comer peixe estragado!

– Tony, Candy comeu daqueles camarões grandes no jantar? – perguntou ansiosa.

– Sim... sim, acho que comeu, mas não pode ter sido isso. Eu também comi uma
porção e estou me sentindo bem...

– Talvez só um estivesse estragado! – Dominique virou-se depressa para a irmã e,


sem hesitação, enfiou os dedos na garganta dela para que vomitasse. – Corra lá embaixo e
me traga uma jarra de leite. – disse a uma empregada que chegava. E um bule bem
pequeno, se puder encontrar.

A moça a olhou, espantada, enquanto don Vittorio dizia, seco:

– Faça o que a enfermeira disse, e o mais depressa possível.

– Sim, senhor. – disse ela, saindo do quarto, enquanto don Vittorio encarava
Dominique.

– Acha que pode ser intoxicação por peixe?

– Talvez... Não posso ter certeza até que o médico chegue, mas ela parece estar com
todos os sintomas...

Dominique se interrompeu, percebendo alguém na porta do quarto. Virou-se;


tirando os cabelos dos olhos, e viu que Malvina acabava de chegar.

– Tony, o que aconteceu? – disse ela, entrando no quarto. – Por que ninguém me
acordou, para que eu pudesse ajudar?

– Porque eu estou aqui e sou a enfermeira! – explodiu Dominique, que naquele


momento estava tão tensa que nem pensara em controlar a língua. – Não sou apenas uma
babá de criança!
– Nós estamos dando um jeito – disse don Vittorio, que agora segurava o corpo
largado de Candice e a acariciava. – Malvina, leve meu irmão lá para baixo e dê a ele um
café... e diga à criada que ande logo com o leite!

– Leite? – Malvina deu uma olhada para Dominique. – Para·quê?

– Não queira ensinar-me meu trabalho! – A voz de Dominique tremia de ansiedade


e desejo de fazer alguma coisa, qualquer coisa para aliviar a irmã. – O leite pode servir de
contraveneno e eu acho que Candice foi envenenada... por alguma coisa.

As palavras ecoaram pelo quarto, enquanto Candice gemia e chorava nos braços do
cunhado. A empregada chegou Com o leite e Dominique lhe pediu para colocar uma
pequena quantidade no bule. Depois sentou-se na beirada da cama e colocou o bico do bule
entre os lábios da doente.

– Você precisa beber isso. Vai ajudá-la a se sentir melhor.

– Estou me sentindo muito mal... estou morrendo...

– Não está, não! Eu não vou permitir! – disse Dominique, zangada. – Deixe apenas
o leite escorrer pela garganta.... assim...

– Não posso... – E parte do leite escorria pelo canto da boca.

– Faça o que ela está mandando – disse Vittorio, com firmeza. – É para seu próprio
bem, menina. Vai diminuir a dor.

– Dói... dói demais... – Candy soluçava. – Nicky, eu estou com tanto medo...

– Eu sei, querida, mas tente tomar este leite... isso, vire a cabeça para trás... assim! –
Dominique manobrava o pequeno bule, conseguindo que um pouco do leite descesse pela
garganta da doente.

Tinha poucas dúvidas sobre o mal que afligia a irmã. O suor, a dor, a cor esverdeada
da pele eram sintomas que ela conhecia. Tinha que ser algum tipo de envenenamento, e
Candy comera camarões no jantar. – Por favor, encha novamente – pediu à empregada,
notando que Malvina havia saído do quarto e que Tony estava largado numa cadeira,
olhando, desesperado, o sofrimento da esposa. – Vai dar tudo certo – disse ela, tentando
animá-lo. – As coisas estão sob controle e o médico deve chegar logo.
– Por que isso não aconteceu comigo? Por que aconteceu só com ela? Foi a falta de
sorte de Candy que a fez comer uma coisa estragada... Acha que é isso que está causando as
dores?

– Tenho quase certeza. Gostaria que você fosse lá embaixo e me trouxesse gelo.

– Gelo? Sim, claro. – Tony levantou-se e saiu, desanuviando um pouco o ambiente


do quarto.

Dominique voltou sua atenção novamente a doente, pensando que Tony e o irmão
eram tão diferentes quanto ela e Candy. Tony tinha o charme e Vittorio a capacidade. Ele
parecia não ser uma pessoa muito compassiva, e havia bondade sob aquela aparência dura,
pois a mão morena acariciava o cabelo de Candy com ternura.

O médico chegou dez minutos depois e, após examinar Candice, confirmou que ela
devia ter comido algo contaminado.

– Vou dar-lhe um laxante para que elimine tudo rapidamente. Só que ela vai ficar
mais fraca, claro...

Dominique assentiu e virou-se para don Vittorio, que estava na porta.

– O senhor foi muito bondoso com Candice. Muito obrigada.

– Espero poder ser bondoso sempre que alguém precisar – disse, olhando
diretamente nos olhos cinzentos de Dominique. – Vou providenciar café bem quente para
todos.

– Será que poderia mandar fazer chá em vez de café?

– Chá? É claro! – disse ele, levantando uma sobrancelha negra – Eu devia ter me
lembrado; é o remédio inglês que serve par qualquer doença, não é?

Dominique sorriu e concordou. Don Vittorio saiu andando pelo corredor, uma figura
firme e controlada, que sabia solucionar o problema e não perdia a calma à toa.

Já estava quase clareando quando Candice melhorou. As toxinas haviam sido


eliminadas e, agora, ela dormia entre lençóis limpos, depois de ter sido banhada por
Dominique e pela empregada.
O Dr. Pasquale fechou a maleta e fez sinal para que Dominique se aproximasse.

– Acho que ela vai melhorar de agora em diante, mas se houver recaída me chame
imediatamente. Preciso dizer que, se não fosse pela senhorita, ela poderia estar muito pior.
É muito dedicada ao seu trabalho, não é mesmo?

– E também dedicada à minha irmã, doutor. Ela já foi uma pessoa tão cheia de vida!
Não é justo... Oh, não posso deixar de culpar Tony pejo que aconteceu! Ele parece ser...
meio fraco!

– Ele não é tão forte quanto o irmão – murmurou o médico –, mas assim mesmo é
uma pessoa bondosa, simpática... Talvez um pouco bonito demais, não acha?

Dominique concordou com a cabeça, entendendo o que o médico queria dizer: que
Tony Romano seria sempre admirado pelas mulheres e era uma pena que Candice gostasse
tanto dele, pois ela provavelmente nunca iria se conformar com qualquer pequena
infidelidade.

Candy precisava de alguém forte e seguro para compensar sua natureza frágil, mas
se apaixonara por um rapaz muito semelhante a ela mesma e agora sofria por isso.

Enfim, já havia acontecido mesmo, e Dominique sentia-se cansada demais para se


preocupar com isso agora. Seus ombros e costas doíam e ela estava com olheiras.

– Onde está Tony? – perguntou o médico.

– Eu mandei que ele fosse fumar um cigarro, enquanto lavávamos Candice e


trocávamos a roupa de cama. Ele estava muito nervoso.

– Bem, vou procurá-lo e dizer a ele que venha ficar com a esposa, para que você
possa descansar um pouco. Se ficar esgotada demais, não cuidará tão bem da doente, não é
mesmo?

A enfermeira assentiu.

– Dr. Pasquale?

– Sim?

– Foi intoxicação por camarão?


– Pode ser... Como ela já anda muito fraca e muito mais suscetível do que uma
pessoa saudável. Sabe se sua irmã já teve intoxicação por esse tipo de alimento?

Dominique sacudiu a cabeça.

– Candice sempre teve um ótimo apetite, e nunca algo lhe fez mal. Quando
estávamos juntas, ela raramente adoecia. Saía diversas noites e nunca se queixava de
cansaço. Ela sempre foi extremamente saudável, e é por isso que estou tão preocupada...
Candy estava fazendo progressos, e agora isso...

Os olhos de Dominique se encheram de lágrimas, que em circunstâncias normais


teriam sido controladas. Mas agora o desânimo e a tensão eram grandes demais. O médico
aproximou-se e segurou-a pelo ombro.

– Não se desespere, enfermeira. Sei que não é o tipo de pessoa que se deixa
influenciar pelas circunstâncias. Sua irmã está em ótimas mãos: as suas e as de don
Vittorio. E ele, embora não pareça, é uma ótima pessoa, pode crer.

O Dr. Pasquale falava com conhecimento de causa. Clinicava em San Sabina há


muitos anos e sabia de tudo sobre o caso da morte de Amatrice e do sofrimento de don
Vittorio.

– Ele é muito mais gentil do que eu imaginava – murmurou Dominique


emocionada.

– Sim. Nas profundezas é que as águas são mais puras, e é nos veios mais profundos
que se encontra o melhor ouro. Don Vittorio parece ser um homem severo e distante, mas
não existe um sitiante eu fazendeiro em San Sabina que não lhe seja grato, por um motivo
ou por outro. Ele manteve esta região funcionando na base de cooperativas, enquanto que
em outros lugares, já houve muita revolta entre trabalhadores e proprietários. Don Vittorio
acha que todo homem tem direito à dignidade?

– Todas as mulheres também? – Dominique não pôde evitar a pergunta.

O médico encarou-a, os olhos apertados.

– Então, como mulher, você não consegue compreendê-lo?


– Eu sou apenas a enfermeira da minha irmã – retrucou ela –, mas outras mulheres
podem achar estranho que ele, tenha permanecido solteiro. A maioria dos homens gosta de
partilhar sua vida, não é?

– A maioria das mulheres também, enfermeira.

– Não me coloco nessa categoria, doutor. Pretendo ser freira.

– Sei, sei... – disse ele, meio espantado. – de algum modo isso me surpreende.

– Por quê?

– Porque tratou de sua irmã com a naturalidade própria das mães. – explicou ele,
com simplicidade. – Então está decidida?

– E já faz algum tempo, doutor.

– Ah! Pensava em ser freira antes de vir para Vila Dolorita?

– Sim...

– E antes de conhecer um homem como don Vittorio?

– Não entendo...

– Não mesmo? – perguntou ele, pensativo, um sorriso no olhar.

– Acho que me entende muito bem. Don Vittorio é um homem e tanto... Chama a
atenção, não acha? Não é atraente como o irmão, mas tem muita força, e é essa força que
algumas mulheres parecem preferir. Força e autoridade, combinadas com uma grande
gentileza. Esse lado dele a deixou bem surpresa, não foi?

– Eu estou sempre me surpreendendo com as pessoas – disse Dominique, fugindo


da pergunta.

– Pode acabar se surpreendendo consigo mesma, enfermeira. O sol da Itália às vezes


transforma as pessoas.

– Eu... eu não gostaria que isso acontecesse, doutor.

– E por que não?

– Uma moça como eu, sem atrativos, se resguarda contra essas coisas, doutor.
Disse isso e o Dr. Pasquale deu um passo em sua direção.

– Você tem belos olhos e provavelmente uma personalidade que combina com eles,
enfermeira. Sem atrativos? O que é isso, quando a mulher tem um coração e o mostra pelos
olhos? Vai me dizer... Não, está tonta de cansaço e vai descansar. Não se preocupe com sua
irmã. Vou falar com Tony para que fique com ela.

O médico saiu e Dominique continuou onde estava, pensando nas coisas


surpreendentes que ele dissera. Não que o fato de ter dito que ela possuía belos olhos
pudesse fazer qualquer diferença e alterar seus planos, mas, no íntimo, uma sensação
agradável se apossara dela, ao ouvir que não era tão feia como imaginava. Sorriu e chegou
perto da cama, para ver como estava a irmã. Candy abriu os olhos vagarosamente.

– Você já está melhor, Candy – sussurrou Dominique. – Agora durma, e quando


acordar...

– Nicky, por que fiquei assim tão mal?

– Você comeu alguma coisa estragada. Provavelmente o camarão.

– Intoxicação?

– É.

Candice passou a língua nos lábios ressecados.

– Posso beber um pouco de água?

– Claro! – disse Dominique, ajudando a irmã a se erguer um pouco e dando-lhe um


copo com água fresca.

– Ah! Que delícia! – murmurou Candy, afundando-se no travesseiro novamente. –


Eu... eu tenho a impressão de ter tomado litros e litros de leite!

– É verdade – afirmou Dominique, alisando os cabelos da irmã. – Fui fazendo com


que você bebesse devagarinho, pelo bico do bule.

– Oh! Você sabe que eu detesto leite!

Dominique riu, divertida.


– É um ótimo remédio. Você não pode se esquecer disso quando tiver filhos e eles
ficarem com dor de barriga.

– Eu nunca vou ter filhos, Dominique. Nesse ponto vou ser igual a você.

– Não vai ser como eu não. Você e Tony vão ter crianças lindas!

– Não – repetiu Candy, sacudindo a cabeça. – Não é por causa da minha doença. É...
é o Tony... ele não quer filhos. Ele sempre tomou cuidado, sabe? Só se descuidou naquela
vez, em paris, quando inventei sobre o bebê. Eu me lembro... ele ficou tão pálido quando
lhe contei que estava grávida... e depois pareceu tão aliviado quando disse que havia me
enganado! Ele não quer ser pai!

– Candy!

– É verdade. Tony é bom demais, ontem à noite foi um amor, mas não é como os
outros italianos, louco por uma família grande. Oh! Se não fosse por Tony e por você, eu
não agüentaria a noite passada! Lembro-me dos braços dele à minha volta e lembro-me de
achar que estava morrendo!

– Mas... – Dominique se interrompeu. Se a irmã achava que havia sido o marido, e


não o cunhado, quem a amparara, era melhor deixar assim...

Don Vittorio não se incomodaria, pois ele, melhor do que ninguém, entendia que o
irmão não se sentia à vontade junto de alguém muito doente. E Candy, coitada, estivera tão
mal que nem notara a diferença. E era melhor nem saber, pois, do jeito como estava fraca a
recuperação seria mais rápida se ela se sentisse feliz.

Dominique havia reparado que, em meio aos espasmos desesperados e ânsias de


vômito, Candy mexera as pernas por diversas vezes, embora de leve. Don Vittorio também
notara, e trocara olhares com Dominique. Com tempo e paciência ela se recuperaria, não
havia mais dúvidas.

Nesse instante, Tony entrou no quarto. Estava com a barba por fazer e os cabelos
despenteados.
– Querida! – disse ele, aproximando-se da cama. – O médico me disse que você está
bem melhor! É verdade? – Analisou o rosto abatido da esposa e continuou: – Ah, ainda tem
dores... mas está se sentindo um pouco melhor, meu amor?

– Bem melhor, Tony. – E Candy sorriu de leve, notando que o marido parecia um
menino meio perdido.

– Você ficou preocupado comigo, querido?

– Deus meu! Se fiquei preocupado! – Segurou a mão de Candy, beijou-lhe os dedos


um por um. – Houve momentos em que não suportei ficar no quarto, vendo você sofrer
tanto... E sua irmã foi um anjo, sabe? É preciso ter coragem para ser enfermeira, hein
Nicky?

– Você ficou comigo durante o pior, Tony... – Os olhos de Candy não deixavam o
rosto cansado e atraente do marido. – Eu sentia seus braços me segurando e... e me senti
protegida...

– Meus braços, querida? Mas...

Dominique deu-lhe um puxão disfarçado na manga da camisa e, quando ele a


encarou, surpreso, ela disse:

– Candy precisava do seu apoio e você não lhe faltou, não foi, Tony? Ficou aqui
para confortá-la... Mas agora ela precisa dormir. Você fica aqui e toma conta dela, está
bem?

Uma luz de compreensão apareceu nos olhos do rapaz.

– Claro, Nicky! Pode deixar, cuido dela enquanto você descansa um pouco, está
bem? Muito obrigado por tudo.

– Ora, ora! Fico até grata por ter estado aqui... Feche os olhos agora, Candy querida,
durma e sare depressa.

Saiu, deixando os dois sozinhos, desejando ardentemente que tudo corresse bem
enquanto descansava. Sentia-se esgotada, mas ainda assim hesitava em ir deitar-se. No fim
do corredor havia uma janela por onde começava a penetrar a primeira luz da manhã.
Sentou-se numa poltrona, recostou a cabeça e fechou os olhos por alguns instantes.
Isso aliviou um pouco o cansaço, mas a mente permanecia alerta.

Dominique repassava os fatos ocorridos durante a noite e tinha certeza de que, num
determinado momento, uma estranha atmosfera de perigo envolvera o quarto de Candice.
Agora, ali sozinha, ouvindo os primeiros cantos dos pássaros, tentava determinar com
exatidão que momento fora aquele em que desconfiara que o envenenamento da irmã nada
tinha a ver com os camarões que comera.

Pensou em todos os momentos de angústia de Candy, no desespero de Tony, em


Vittorio embalando-a nos braços. Então, das sombras, surgiu uma figura que ficou parada
perto da porta, observando tudo sem o menor traço de emoção no rosto.

Malvina!

Dominique abriu os olhos. Oh, não! Não era possível que a antiga babá chegasse a
tanto por causa do ciúme... e ainda assim não se passava um dia sem que os jornais
noticiassem crimes maiores cometidos por esse mesmo motivo.

Mas não, não podia ser... Era muito cruel. Além disso, o médico havia confirmado
que Candice devia ter comido algo estragado. E ele decerto, sabia o que falava; sabia a
diferença entre intoxicação alimentar e envenenamento.

Mas... aquele diagnóstico não incluía nenhuma outra suspeita! Como o Dr. Pasquale
poderia desconfiar que Candy pudesse ter sido envenenada de propósito? Ele pensara no
óbvio, pusera a culpa nos camarões, assim como Dominique o fizera até o instante em que
Malvina entrara no quarto. Havia algo tão frio no rosto da mulher que ela parecia estar
esperando que aquilo acontecesse!

Dominique sentiu que estremecia e apertou o robe contra o corpo. A quem poderia
contar sobre suas suspeitas? Afinal, para todos os membros da família, Malvina era a
empregada devotada e de inteira confiança. Tinha seu próprio apartamento na casa e
recebia uma boa mesada. Era quase como se fosse uma parenta!

A única saída seria dar a entender à própria Malvina que desconfiava dela, que iria
vigiá-la dali para a frente e que informaria à policia se Candy sentisse novamente qualquer
coisa estranha.
Oh, Deus! Era terrível ter tamanha desconfiança de alguém, mas, bem no fundo,
Dominique sentia que Malvina nutria um enorme ciúme por Candice e que a queria fora
daquela casa... e fora da vida de Tony, de um jeito ou de outro.

O instinto lhe dizia que devia avisar Tony imediatamente, para que expulsasse a
mulher de casa, mas ele na certa pensaria que ela estava louca e provavelmente pediria a
don Vittorio que a mandasse embora dali, ela que era a única que podia proteger Candy. O
que fazer, então?

Soltou um suspiro e já ia voltar para seu quarto quando uma figura alta apareceu na
outra porta do corredor, vindo em direção a ela.

Apesar de estar sem óculos, Dominique percebeu quem era...

Ficou onde estava, sentindo a tensão crescer dentro de si. Don Vittorio chegou
perto, trazendo uma xícara de chá bem quente, que estendeu a ela.

– Obrigada – disse, agradecida. – Era disso mesmo que eu precisava.

– Cuidado, não deixe cair!

As mãos de Dominique tremiam. Todo o seu corpo tremia. O cansaço e a terrível


descoberta sobre Malvina estavam tomando conta dela.

– Eu... eu fiquei tão preocupada com Candy... – murmurou, tomando um gole do


chá, um bálsamo para quem acabava de enfrentar uma crise. – Ah, que delícia!

Um sorriso apareceu nos lábios dele.

– Você não me parece muito bem... Está tão pálida, tremendo...

– É que foi uma noite muito difícil.

– É verdade – afirmou ele, com voz grave. – Sua irmã está dormindo?

– Sim, graças a Deus! Tony está com ela. O pior do... do ataque.... já passou..

– Foi uma pena que ela tivesse tido essa recaída. Está tão mais calma e disposta a
ajudar...
Dominique tomou mais um gole do chá, sentindo-se compelida a confiar-lhe suas
suspeitas. Mas... será que ele acreditaria numa coisa daquelas sobre uma empregada
supostamente fiel?

– Falei com o Dr. Pasquale – disse Vittorio naquele instante, fazendo com que
Dominique estremecesse. – Ele parece ter certeza de que Candy ficou assim por causa do
camarão.

– Eu... – Hesitou um pouco. – Eu acho que foi isso mesmo.

E o que mais poderia ser?

– Sim. O que mais?

Dominique percebeu que não podia se arriscar a levantar uma suspeita daquelas
contra Malvina. Pelo menos enquanto não tivesse provas. O melhor a fazer era ficar junto
de Candy e tratar de protegê-la pura que nada de grave voltasse a acontecer.

– Essa noite foi quase tão má para você quanto para sua irmã, não? – Dominique
assentiu e ele continuou, os olhos atentos fixos nela: – Você se envolve demais, não acha?

– Se eu não me envolvesse, não seria uma boa enfermeira. E, além disso, Candice é
minha irmã.

– Mas sabe que não pode viver a vida dela...

– Não, mas posso tentar salvar a vida dela. Don Vittorio, por que o senhor tenta
aparentar uma dureza meio cínica, quando, na verdade, sente ternura pelos outros? Percebi
sua preocupação com minha irmã.

– Bem, para mim Candice é pouco mais que uma criança. Foi terrível vê-la sofrer
tanto!

Dominique olhou para fora da janela, para o jardim iluminado pelo sol que já havia
raiado, trazendo luz e calor. A noite se fora e ela não podia esquecer da angústia que vira
nos olhos de Candy. Estremeceu, e don Vittorio colocou a mão em seu ombro. O calor,
daquela mão forte chegou-lhe até os ossos.

– Enfermeira, vá para a cama. Merece um bom descanso.


Ela ainda o encarou, com o olhar preocupado.

– Antes preciso ver Candy.

– Tony está cuidando dela, não precisa se preocupar.

– O senhor acha que Tony e Candy podem se dar bem?

– São duas belas pessoas, com emoções parecidas. Tenho a impressão de que você
ficou preocupada, ao ver Tony fugir da situação... Sua irmã achou que era ele quem a
segurava, não foi?

Ela concordou, sentindo a mão dele ainda em seu ombro, sentindo uma coisa
estranha, quase parecida com dor, não exatamente uma dor física, mas algo semelhante a
uma chama que a tocava. Dominique não conseguia definir a sensação e achou que devia
ser causada pelo receio que a presença alta e morena de don Vittorio sempre lhe causava.

– O senhor foi muito gentil. Eu lhe agradeço muito.

– Não há nada para agradecer – respondeu ele, escorregando a mão até o pulso da
moça. – Venha, deixe-me acompanhá-la até seu quarto. Vai me prometer se enfiar
imediatamente na cama e tratar de dormir. Vai fazer isso?

– Vou tentar...

– Eu insisto. Estou percebendo como está tremendo.

Dominique sentia mesmo as pernas bambas e não resistiu quando ele lhe passou o
braço pela cintura. Ele havia confortado Candice e agora era agradável deixar que também
a ajudasse.

Na porta do quarto, afastou-se dele.

– Agora já estou melhor, obrigada.

– Talvez eu devesse entrar e ter certeza de que vai mesmo para a cama – disse ele,
um brilho maroto nos olhos negros como o pecado.

O coração de Dominique deu um salto e ela segurou depressa a maçaneta.

– Não pode fazer uma coisa dessas – afirmou, abrindo a porta rapidamente. –
Também precisa ir descansar... precisa mesmo!
Don Vittorio fez-lhe a pequena reverência habitual, murmurando: – Então, até logo.

Dominique fechou a porta e ficou encostada a ela, as mãos apertadas contra o rosto,
revivendo a imagem do homem que se afastava.

A imagem persistiu enquanto ela tirava o robe, chutava os chinelos e se afundava


entre as cobertas, dentre as quais parecia ter saído há anos...

Sentia as pálpebras pesadas e era como se estivesse boiando nos limites do sono.

Um susto repentino despertou-a novamente. Tinha a impressão de que alguém


abrira a porta do quarto e olhara para ela. Sentiu o coração disparar à idéia de que Malvina
pudesse ter ficado ali por um instante, uma figura silenciosa, de olhos de ébano e pele
branca.

Dominique puxou as cobertas até o queixo. Aquela mulher lhe lembrava a figura de
uma moça afogada, que vira no começo do curso de enfermagem. Na ocasião, era ainda
muito jovem e ficara bastante impressionada. Malvina havia salvado Tony de tal morte, e
ele crescera alto e belo...

Apertou o rosto contra o travesseiro, sentindo-se fraca e sozinha. Tinha quase


certeza de que Malvina odiava a todos que amassem Antônio Romano!

Capítulo V

A praia pequena e particular ficava escondida abaixo dos rochedos sobre os quais se
erguia Vila Dolorita. A areia era rosada e o mar azul brilhava sob a luz do sol.

Duas semanas haviam se passado desde a intoxicação de Candy, e agora ela estava
ali, deitada numa esteira, o rosto corado e os olhos quase tão azuis quanto o mar. As crises
de mau humor haviam diminuído e seu estado geral melhorara muito. Ela ficava animada
em ir à praia, mas ainda não tomara coragem para entrar na água.
– Não, não me obrigue! – dizia quando Dominique insistia para que boiasse e
experimentasse mover as pernas. – Para você é fácil, mas para mim é penoso. Deixe-me
ficar aqui mesmo, olhando para o mar, e vá nadar um pouco.

Dominique nadava bem, mas havia se recusado a usar um dos sumários biquínis que
Candy lhe oferecera. Tinha ido até o vilarejo mais próximo e acabara encontrando, numa
lojinha, um maiô inteiro meio antigo, que faria qualquer moça, menos ela, cair na risada.
Comprara também um chapelão enfeitado de conchas e um par de sandálias.

Candy não podia parar de rir, ao ver a irmã vestida daquele jeito.

– Você está parecendo a Ester, Williams, a atriz daqueles musicais antigos!

– Minha roupa não é tão velha! – protestou Dominique.

E assim, durante várias horas, todos os dias, Candy tomava banho de sol, enquanto
Dominique nadava e depois lia um pouco. Já estava com a pele dourada e sentia-se
incrivelmente bem, apesar de continuar preocupada com a irmã.

Tinham acabado de ler uma bela novela e Candy indagou se o amor era sempre
assim tão belo, depois das desavenças e dificuldades. Dominique não soube responder, mas
disse que qualquer coisa bem feita dava grande prazer e devia ser aceita naqueles termos,
como o mar, a areia e a brisa suave.

O amor? Ela não se atrevia a defini-lo, mas desconfiava que fosse tão imprevisível
quanto o mar e o vento, podendo ser calmo ou tempestuoso como a própria natureza.

– Você gosta da Itália, não gosta? – perguntou Candy, deixando a areia fina escorrer
pelos dedos.

– É um lugar lindo. – concordou Dominique, olhando a linha da maré que escurecia


a areia branca.

Logo deveriam votar para casa. Don Vittorio sempre sabia quando era chegada a
hora de descer os degraus esculpidos no rochedo, tomar Candy nos braços, e levá-la para
cima. Tony nunca vinha buscá-la. Sua aversão ao mar era tamanha que ele não ousava nem
chegar perto. Mas sempre estava esperando no alto, para pegar a esposa dos braços do
irmão.
Dominique achava estranho que nenhum dos dois nunca tivesse pedido a um dos
empregados que fizesse aquilo. E sempre ficava observando, emocionada, Vittorio colocar
Candy nos braços do marido, enquanto a brisa batia em seus cabelos loiros.

Era essa a imagem que Dominique queria levar quando voltasse para a Inglaterra: a
de Candy ternamente agarrada ao marido. Um dia teria que ir embora, retomar sua própria
vida. Candy estava ficando mais forte e mais confiante a cada dia e sempre havia a
esperança de que acabasse sarando de vez.

– A maré está subindo – disse Dominique. – Logo seus cavalheiros virão resgatá-la
e a levarão para o castelo!

– Nicky... – disse Candy, encarando a irmã. – Sabe, às vezes acho que você é tão
romântica quanto eu... Por que não confessa seu terrível segredo?

Dominique sorriu.

– Acho que sou romântica de modo diferente.

– Como?

– É que, para você, minha querida Candy, o romance está centralizado num homem.

– E não é aí que deveria estar? Não é essa a ordem natural das coisas?

– Está querendo dizer que, sou um caso à parte? – E Dominique sorriu de leve, pois
já sabia a resposta. Candy rejeitava com cada fibra de seu ser a castidade que a irmã
pretendia manter.

– Não é isso, Nicky. É que não dá para entender muito bem o que você pretende
fazer! Nicky, fique aqui na Itália! Fique aqui na vila, com a gente. Vittorio não iria se
importar. Veja como ele conseguiu que Malvina continuasse vivendo aqui.

– Eu não sou Malvina. – Uma sombra passou pelo rosto da moça. – Ambas sabemos
que não posso ficar para sempre... Você logo vai estar andando e então precisará convencer
Tony a abrir a tal escola de dança. Acho que é uma ótima idéia.

– Se eu conseguir andar outra vez – interrompeu-a Candy, fechando a cara. – Acho


que vou ficar assim para sempre e por causa disso eu... eu vou perder Tony! Ele vai acabar
perdendo a paciência comigo e irá viver com a outra mulher!
– Candy, não há nenhuma outra mulher.

– Há sim, Nicky! – Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Candy. – Sei que
ele vai visitar alguém quando todos pensam que estou dormindo, à tarde. Escuto o barulho
do carro dele, saindo e fico contando os minutos, as horas... Você não imagina como isso
me faz sofrer, Nicky! Você nunca amou um homem! Não sabe o que é um sofrimento
desses!

– Não fique nervosa, querida... – Dominique enxugava as lágrimas da irmã. – Olhe,


se o que me diz é mesmo verdade, então é melhor você ir embora comigo para a Inglaterra.
Sabe que pode ir.

– Eu... eu não posso deixá-lo – disse a, moça, mordendo o lábio. – Já pensei nisso,
mas, quando Tony me agrada, quando é tão bondoso comigo, eu me derreto toda e quero
ficar com ele... nem que isso acabe me matando!

– Oh, Candy, eu...

– É isso que o amor faz com a gente, sabe? É assim mesmo! Uma vez apaixonada,
você tem que pertencer ao homem que judia de você! Nós, mulheres, somos umas tontas! A
gente ama um homem e ao mesmo tempo o odeia, pois sabe que ele anda aprontando. Tenta
romper com tudo, mas ao mesmo tempo fica desejando que as coisas acabem dando certo.
Se eu abandonasse Tony, me sentiria mais miserável ainda. Eu preciso ficar perto dele...
Preciso vê-la, tocar nele... Nicky, você simplesmente não pode compreender uma coisa
dessas!

Dominique observava o mar sem dizer nada, apenas pensando em como seria um
amor desses, no que ele podia fazer a uma mulher que se deixasse dominar desse modo.
Estremeceu e, para distrair o pensamento, comentou:

– Don Vittorio está meio atrasado, hoje. Espero que ele não tenha se esquecido de
nós!

Candice lançou um olhar assustado à escadaria de pedra nos rochedos e depois


olhou para o mar, que subia, parecendo mais turbulento com a cheia da maré.

– O que faremos? E se ele não vier?


Dominique olhou para cima, calculando a distância. Em menos de dez minutos a
maré as alcançaria e Candy não poderia andar.

– Eu... eu teria que arrastar você degraus acima, até onde não houvesse mais perigo
– disse. – Estávamos falando sobre romances, não? Dizem que a realidade não é tão
dramática quanto a ficção, mas veja só nossa situação! Não posso deixar você aqui e ir
buscar um homem para carregá-la e tampouco posso eu mesma fazer isso.

– Nicky... – sussurrava Candy, em desespero. – Será que ele se esqueceu de


propósito?

– Candy!

– Por que não? – indagou a moça, apavorada. – Eu só sirvo para atrapalhar a vida de
Tony e houve falatório sobre a morte de Amatrice. Disseram que ela ficou doente, mas já
escutei conversas de que foi outra coisa...

– Não fale uma coisa dessas! Nem pense nisso! – Dominique ajoelhou-se e agarrou
a irmã pelos ombros. – Não fique nervosa. Don Vittorio vai aparecer a qualquer momento,

– Não, não vai! – E Candy sacudia a cabeça, os olhos cheios de pânico. – Não vê
como seria fácil para ele, deixar-nos aqui? Pareceria um acidente: uma irmã paralítica e
outra devotada demais para abandoná-la... Todo mundo iria dizer que era uma pena... uma
tragédia...

– Pare com isso! – disse Dominique, sacudindo a irmã com violência. – Nós não
vamos morrer nesta praia dos diabos! Não se eu puder evitar!

– Nicky, você xingou...

– De vez em quando é preciso. Olhe, Candy, dê uma olhada nesse mar. Você vai
ficar parada aí e deixar que ele a afogue, ou vai me ajudar e tentar se levantar?

– E como é que posso? – gemia a moça. – Estamos presas aqui, e nós duas sabemos
disso!

– Eu não sei de nada disso! – De repente uma labareda de determinação queimava


dentro de Dominique. Era o momento da verdade e Candy tinha que ser posta à prova. –
Não quer se afogar, não é? Você sempre amou a vida e, se é verdade que Tony anda vendo
outra mulher, então por que deixá-lo para ela de presente? Tudo que tem a fazer é ficar em
pé! Venha, Candy, experimente! Dê os primeiros passos para uma nova vida e pare de se
agarrar ao passado!

– Eu... eu não consigo! – Candice resistia. – Ele vai vir... eu sei que don Vittorio
virá, ele sempre vem!

– Dê outra olhada para essa escadaria e veja como está vazia! Dê outra olhada para a
maré e vai ver que ela vem vindo rápido. Minha querida, tem que acreditar em mim e ficar
em pé! Venha, faça força!

– Minhas... minhas pernas não vão se mexer... Sei que não vão, Nicky!

– Escute uma coisa: naquela noite em que ficou doente, eu vi suas pernas se
mexerem! Eu vi e don Vittorio também viu! Pare de deixar sua mente decidir por você!
Faça seu corpo funcionar!

– Não! – Candice sacudia a cabeça, desanimada. – Vá você, Nicky, e me deixe


aqui... Eu não me incomodo. De que adianta viver?

– Adianta e muito! E todas as coisas que adorava fazer, especialmente dançar? –


Dominique falava, aflita, pois escutava atrás de si o ruído da água que se aproximava pela
areia. – Eu não posso deixar você, por isso vai ter que vir comigo. Agora ande, mostre o
ânimo forte que sempre teve! Vamos, levante!

Candice deu um grito quando Dominique, num impulso forçou-a para cima. Tremia
tanto que as duas quase foram novamente para o chão.

– Isso, querida! – animava Dominique, ofegante, enquanto, com determinação,


arrastava a irmã em direção aos degraus de pedra.

Como sempre fora a mais magra, precisou de toda a sua tenacidade para conseguir
que a irmã chegasse perto da escadaria.

E, uma vez ali, teve que insistir e implorar para que Candice levantasse os pés da
areia.

– Você pode fazer isso! – Ofegava. – A gente já chegou aqui, por isso faça força que
eu a ajudo a ir um pouco mais adiante!
– Eu... eu... – E Candy lutava, as lágrimas correndo por seu rosto, enquanto ela se
agarrava aos degraus. – Eu queria que você me largasse... Oh, largue-me e não me
obrigue...

– Eu tenho que obrigar você! – disse Dominique, furiosa, pensando em por que don
Vittorio teria se atrasado tanto, se sabia que a maré subia depressa naquele lugar e chegava
e uns dois metros acima da areia, nos rochedos... Virgem Maria, como é que ela ia
conseguir fazer com que Candice subisse pelo menos alguns degraus? As duas iam acabar
afogadas! – Por favor, pelo seu próprio bem – implorou, enquanto Candy continuava
tentando, ferindo os joelhos nas pedras ásperas.

Dominique não sabia se era ou não um milagre, mas de repente haviam subido um
degrau e depois dois, e ela não tinha mais certeza se carregava e puxava Candice ou se a
irmã, na verdade, estava ajudando.

– Já chega! – De repente, detrás de uma das curvas da escadaria, apareceu a figura


de don Vittorio, os olhos brilhando no rosto moreno. Desceu até onde as duas estavam e
pegou Candice no colo.

Dominique quase morreu de alívio. Alívio seguido por uma onda quente de raiva.

– Onde foi que você esteve? Pensamos que não vinha mais! E a pobre da Candy...

Candice soluçava, agarrada a ele.

– Eu não ia deixar que nenhuma das duas se afogasse! Mas eu precisava descobrir
se sua irmã tinha força de vontade suficiente para chegar até aqui... e parece que as irmãs
Davis são decididas, não acha?

– Quer dizer que... – Dominique olhava para ele, incrédula. – Então esteve
escondido ali o tempo todo, olhando nossa luta?

Ele inclinou a cabeça, concordando.

– Eu tinha um palpite de que, se fosse necessário, vocês achariam um jeito de


chegar aos degraus. E estava certo, não?

Olhos cinzentos o fuzilavam, pois, na luta violenta para subir os degraus,


Dominique havia perdido os óculos e por isso não vira don Vittorio antes. Principalmente
porque ele usava short e camisa pretas. Dominique pensou que ele se parecia com um
demônio.

– Eu... eu o odeio! – desabafou, quase sem fôlego. – Será que não imaginava o
perigo que corríamos?

– Eu imaginava: claro que imaginava!

– Acho que não! Gostaria que levasse minha irmã para casa enquanto procuro meus
óculos.

– Minha pequena, sinto muito, mas não pode fazer isso. Seus óculos devem estar
debaixo d'água.

– Como aconteceria com a gente! – Dominique deu uma olhada por sobre os
ombros e viu com dificuldade que a água já cobrira a este.ira de Candy e levara embora o
livro, a lata de biscoitos e seus óculos. Lembrava-se vagamente de que eles haviam caído
quando levantara Candy. E agora começava a sentir as dores das batidas e arranhões que
arranjara naquela aventura maluca de querer escapar da maré. – Acho que eu o odeio
mesmo, don Vittorio! Acho que é o homem mais impiedoso que já conheci!

– Provavelmente está certa – concordou ele –, mas esta não é nem a hora nem este o
lugar para discutirmos isso. Vamos deixar para outra ocasião, está bem?

Dominique olhava, furiosa, para as costas largas de don Vittorio, enquanto ele subia
o resto da escadaria, carregando Candy. Naquele instante, ela o julgava apenas um monstro.
Um monstro que as deixara completamente desesperadas... e desamparadas.

Sentia-se esgotada tanto física quanto emocionalmente. Subiu os degraus com


dificuldade e ao chegar no alto, sentiu que suas pernas cansadas estavam quase
fraquejando.

– Onde está Tony? – Olhou à volta, mas ele não estava por ali. – Oh, não, ele
também está querendo brincar conosco?

– Tony foi fazer um serviço para mim – explicou don Vittorio, com calma.

Candice estava quieta no colo dele, a cabeça apoiada em seu ombro. Assustada,
Dominique foi ver se a irmã não estava desmaiada.
Candy abriu um pouco os olhos e um leve sorriso apareceu nos lábios pálidos.

– Eu mexi minhas pernas, não foi? Eu senti que mexi...

– Está se sentindo bem? – indagou Dominique, ansiosa.

– Só estou com sono...

– E deve estar mesmo, depois daquela maratona! – disse Dominique, sorrindo,


aliviada, ao notar que a irmã tinha um ar levemente maroto.

– Não se preocupe – avisou don Vittorio, enquanto atravessava o pátio em direção à


casa. – Esta garota está melhor, bem melhor mesmo... A mente acabou acordando o corpo,
e era disso que ele precisava.

– Mas eu não gosto de truques, don Vittorio – disse Dominique, com severidade.

Mas, de qualquer modo, os métodos dele haviam dado resultado. Talvez agora
Candy se conscientizasse de que precisava mexer mais vezes as pernas, fazendo exercícios
e massagens.

– Existem ocasiões em que se deve tentar tudo. Gostaria que acreditasse que minha
intenção foi a melhor possível – disse ele, começando a andar mais depressa.

Dominique estava exausta demais para, tentar acompanhá-lo. Sentia, dificuldade em


respirar e resolveu sentar-se um pouco num dos bancos do jardim. Passou a mão pela testa
molhada de suor e achou que estava prestes a desmaiar. Então baixou a cabeça por entre os
joelhos, respirou profundamente e esperou que a tontura passasse.

Continuou descansando ali, mesmo depois de ter melhorado. Candy estaria bem, a
empregada decerto lhe levaria uma boa xícara de chá. Ah, uma xícara de chá... Dominique
sabia que precisava de uma, mas não sentia coragem de levantar-se. Ficou ali, admirando o
jardim e descansando mais um pouco. Acabou levando um susto, ao ver um dos
empregados da casa se aproximando com o remédio que mais desejava: uma xícara de chá
bem quente e forte.

– Don Vittorio disse que a senhorita estava precisando disso – disse ela, entregando-
lhe uma pequena bandeja de prata.

– Oh, obrigada!
Dominique sentiu um leve aroma de conhaque no chá e admirou-se com a
complexidade do caráter do homem que tivera a coragem de torturá-la e a gentileza de
mandar servir-lhe algo que a acalmaria e lhe faria bem.

– A senhorita está se sentindo melhor? – O empregado parecia preocupado.

– Estou bem, obrigada – respondeu, forçando um sorriso. – Vou entrar assim que
acabar de tomar meu chá.

O empregado se afastou, e sem dúvida iria dizer aos outros que a enfermeira Davis
estava meio esquisita.

Dominique continuou ali sentada, a brisa suave soprando-lhe os cabelos. Poucas


vezes em sua vida tivera tempo e oportunidade para sonhar acordada, e nunca pensara que
iria ter uma experiência tão maluca, um pesadelo feito de propósito... e por um homem!

Mas, na verdade; tinha que dar a mão à palmatória: o truque dera certo. Candice
revelara vontade de andar novamente e de voltar a ser a mesma moça de antes.

Então Dominique retornaria à Inglaterra e tudo teria sido um sonho. Ela nunca mais
voltaria a ver don Vittorio...

Continuava sentada ali, os olhos cinzentos fixos no vácuo. Nunca mais ver aquele
homem...

A descoberta estava doendo e ela não podia sentir-se assim. Precisava ir embora
logo. Quanto mais depressa Candy estivesse andando, melhor. Dominique retomaria seu
caminho, um caminho onde não havia lugar para os homens. Principalmente para um como
don Vittorio!

Então, como se aquele pensamento o tivesse chamado, lá vinha ele, aproximando-se


tão depressa que ela mal teve tempo de se levantar. Um momento mais e ele, com sua
experiência maquiavélica, se punha ao lado dela, delineado pelo sol da manhã, o olhar tão
profundo que parecia penetrar sua pele.

– Já teve tempo para refletir? – perguntou ele, a voz grave e sonora. – Já percebeu
que, às vezes, para se fazer um bem, tem-se que ser cruel?

– Mas Candice está...


– Pare de se preocupar com ela! Será que alguma vez preocupou consigo mesma?
Ou será que acha que isso seria perda de tempo?

– É que não tenho mesmo tempo para isso.

– Quais foram as bobagens que andou pensando aqui, enquanto bebia o chá?

– Não andei pensando bobagem!

– Não mesmo? – Procurou os olhos dele. – Não enxerga nada sem seus óculos?

– Vejo tudo enevoado. Mas graças a Deus os que perdi eram os óculos de sol. Os
outros estão no meu quarto.

– Preciso pagar-lhe um novo, então. Afinal, perdeu-os por minha causa.

– Não tem importância.

– Não era isso que pensava quando disse que me odiava e que eu era a pessoa mais
impiedosa que já conhecera. Sentimentos fortes demais, não servem para uma mulher que
pretende ser freira.

– Bem, eu não sou santa. Sou normal como qualquer pessoa.

– Fico aliviado em ouvir isso. – Um sorriso cruzou-lhe o semblante. – Não gosto


muito de mulheres beatas.

Parecia um antigo conquistador romano, um homem poderoso e atrevido, que podia


ser como um demônio, mas que, no caso, agia por uma boa causa. Um homem complexo,
com muitos lugares secretos e selvagens dentro de si.

– Está querendo descobrir como sou por dentro? – perguntou ele, com calma.

– Isso seria pedir demais – respondeu ela, sentindo que estremecia.

– Não acho. O que consegue ver, enfermeira, quando olha para mim com seus olhos
cinzentos?

– Vejo um homem...

– Está ficando interessante! – caçoou ele. – Por isso, continue.


– Um homem de força e grande determinação. No senhor eu vejo o passado, alguém
meio à antiga...

– Existe alguém assim em cada família, não? Na família Davis é você. Sua irmã é
mais moderna, mas deixe-me localizá-la no tempo. – continuou, chegando mais perto e
observando-a com atenção.

– Que tal a enfermeira em Romeu e Julieta? – murmurou Dominique. – Não estaria


de acordo?

– Que tal a própria Julieta?

– Isso seria além da imaginação... Julieta era linda.

– Julieta tinha olhos lindos, românticos, e se apaixonou do alto de um balcão. Será


que isso descreveria você, Dominique?

– Eu não estou num balcão. E como é que uma enfermeira pode ser romântica, se só
lida com o lado realista da vida?

– De qualquer modo, o fato de acreditar na fé, na esperança e na caridade já mostra


que é romântica. Quantas pessoas, nos dias de hoje, acreditam nessas coisas?

– O senhor me pergunta isso provavelmente porque é um cínico!

– Será que está certa nessa afirmação? Eu, na verdade, esperava que sua irmã se
esforçasse para andar, se percebesse que corria perigo. – E apertou os olhos. – Ou será que
imaginou que eu as abandonaria mesmo?

– Essa idéia me passou pela cabeça.

– E posso perguntar por quê?

– Porque o senhor parecia encarar Candy como um peso na vida de Tony.

– E imaginou que eu chegaria ao cúmulo de deixar que se afogassem?

– Foram momentos terríveis. Foram como um pesadelo e eu... eu nunca iria


imaginar que o senhor estivesse fazendo aquilo de propósito.

– Fui muito impiedoso, não?

– Foi.
– Os homens às vezes são assim.

– Foi o que pensei.

– E não vou ser perdoado? Todo mundo merece perdão, diz a Bíblia.

Dominique encarou-o, surpreendido, e viu que ele sorria.

– Não se esqueça de que fui educado num colégio jesuíta. Fui para lá muito moço e
me ensinaram que os pecados da carne levam ao inferno, quer dizer, que o diabo é uma
mulher...

– Mas... – E ela piscou, pois o olhar dele a perturbava tanto quanto um raio de sol –
mas não me parece ser alguém que acredite em superstição, e ainda assim...

– Ainda assim o quê?

– Talvez haja no senhor alguma coisa de pagão.

– Existe em todos nós, em certas ocasiões. Até em você, freirinha.

– Não... não me chame assim!

– Por quê? Tem alguma importância?

– Não nesse tom de voz!

– Eu não sabia que minha voz podia ofender alguém.

– Não ofende, mas é irônica. – Um forte rubor cobriu o rosto de Dominique. – Sabe
muito bem o que estou dizendo, por isso não finja...

– Talvez seja você quem esteja fingindo – afirmou ele, baixando os olhos.

Ela continuava a sentir-se tensa.

– E por que eu iria fingir?

– Talvez por causa de um simples mal-entendido.

– Como assim, um mal-entendido?

– Como nunca atraiu os jovens tolos como sua bela irmã, talvez tenha chegado à
conclusão de que nunca seria atraente para nenhum homem. Os moços muitas vezes
enxergam apenas a superfície, e não as profundezas, e, porque sua irmã tinha o jeito mais
charmoso, nunca ocorreu a você que poderiam existir homens que desejassem algo mais
profundo do que a beleza...

Don Vittorio falava e sorria. Dominique se retraía cada vez mais. Aquele homem
lhe lembrava um tigre à espreita da presa.

– Por favor, Senhor...

– Ora, diga com franqueza: gostaria mesmo de atrair uma porção de jovens
bobocas?

– Não! – disse ela, com honestidade. – Mas veja... nenhum deles sequer me beijou...

Dominique nunca saberia por que repetira aquilo, e ainda mais para don Vittorio!

– Ah! – disse ele com voz macia, e, quando ela achava que o momento de perigo
havia passado, ele a segurou e a levantou do banco. – A gente pode dar um jeito nisso...

Dominique sentiu o corpo dele junto ao seu e não conseguiu reagir.

Estava surpresa e dividida entre a realidade do que estava acontecendo e a certeza


de que isso não podia acontecer.

– O... o que está fazendo?

– Isto! – E ele baixou a cabeça sobre ela, cobrindo-lhe os lábios, com ternura.
Dominique sentiu o coração disparar. Quando quis lutar, seus pés perderam o apoio e ficou
presa apenas pelos braços de don Vittorio. – Fique quieta...

Os lábios desceram-lhe pelo pescoço até a abertura de sua blusa e quando ela
protestou, voltaram à sua boca, num beijo persistente que parecia querer sufocá-la.

Quando don Vittorio colocou-a no chão novamente, Dominique cambaleou e


precisou agarrar-se nele, estonteada. Nenhum dos dois dizia nada. Ela percebeu que ainda
segurava o braço dele e se afastou depressa, sem perceber que, na confusão, sua blusa havia
se desabotoado.

– Eu... eu não preciso desse tipo de terapia... – conseguiu falar, com esforço.

– Terapia? – caçoou ele. – Que palavra mais clínica para uma coisa que deve ser
considerada apenas como prazer!
– Eu não senti prazer...

– Então, que sensações teve?

– Sensações desagradáveis...

– Hum... então acho que devo estar perdendo o jeito...

– Já fez isso com muitas mulheres'? – perguntou ela, com desprezo, sentindo que
aos poucos, as forças lhe voltavam e, com elas, a dignidade ofendida.

– Com a maior parte das que moram em San Sabina.

– Não precisa ser sarcástico!

– E por que não, quando você teve a audácia de dizer que meus carinhos eram
desagradáveis?

– É que me obrigou. Eu não queria ser beijada! – Dominique sentia o rosto quente e
os lábios queimando.

– Quando uma mulher repete a um homem que nunca foi beijada, está pedindo o
óbvio.

– Eu não estava, não era isso...

– Quer dizer que não estava me convidando a beijá-la? Que desapontamento!

– Sabia que eu não estava pedindo... é que escapou... – Ela sentia-se perturbada e
percebeu o quanto estava desarrumada. Tentou, sem conseguir, abotoar a blusa.

– Será que posso ajudá-la? Não estou tremendo tanto quanto você.

– Largue-me! – disse ela, empurrando-lhe a mão, os olhos soltando chispas. – O que


eu disse agora há pouco foi sem querer e não há nada demais nisso!

– A maioria dos comentários como esse escapam sem querer... Esses botões estão
errados.

– Que fiquem assim! E deixe-me em paz!

– Permita-me dizer que todos nós gostamos de acreditar que controlamos nossos
atos e nossas palavras, mas isso não é verdade. Há uma parte de nós que fica oculta nos
recônditos de nossa mente e que, nos momentos mais inesperados, pula para fora e nos
pega de surpresa. É o chamado subconsciente, e você, como enfermeira, não pode negar-lhe
a existência. Olhe o que ele fez com Candice.

Dominique passou a ponta da língua pelos lábios, que pareciam inchados e


sensíveis, e resolveu dizer:

– Eu quero tanto que Candy fique boa novamente... Ela precisa, pelo bem dela e de
Tony.

– E também por sua causa, claro.

– Sim, também.

– Mas você tem sua vida para viver, não acha? – Havia tanta ironia naquela voz que
Dominique mordeu o lábio.

– Como todos nós...

– E você chama viver o fato de cobrir os cabelos com um véu e trancar seus desejos
naturais? É tudo muito bom para a alma, mas você também tem um corpo, não se esqueça.
Será que pretende ignorá-lo?

– Não pretendo discutir meu... não com o senhor!

– Que pena! – E ali estava ele, as mãos nos bolsos, o sol nos cabelos. – Então, se sua
irmã estiver mesmo a caminho da cura, pretende ir logo embora de minha casa?

– Sim. Estou aqui apenas por causa dela. – Dominique olhava o relógio com
dificuldade. – Já está na hora de ir vê-la.

– Eu detesto esse seu relógio de pulso – disse ele. – Gostaria que me permitisse dar-
lhe um outro. Pode ser o último presente que recebe de um homem...

– O primeiro e o último – corrigiu ela.

– Já está começando outra vez, enfermeira! – Um leve sorriso apareceu nos lábios
dele. – Está correndo o risco de arranjar um complexo de inferioridade.

– E o senhor não corre esse risco, não é? – Dominique dizia ferozmente para si
mesma que não queria nada dele... não queria lembranças do modo como ele olhava e
falava e como podia mexer com sua sensibilidade. – Eu teria receio de estragar um bom
relógio, senhor. Prefiro este mesmo....

Don Vittorio franziu a testa, juntando as sobrancelhas negras.

– Com todos os diabos, não seja tão teimosa!

– Não toque em mim! – avisou, afastando-se num impulso. – Não toque mais em
mim... nunca mais!

– Está com medo de quê? – perguntou ele, com um riso seco. – De você ou de mim?

– Não gosto de ser usada como diversão... Faz com que eu me sinta vulgar!

– Para combinar com o relógio que prefere?

– Você muda o sentido de tudo que falo!

– Ao contrário! Estou tentando endireitá-la, acertá-la, mas você fica fugindo e se


emaranhando na teia feita pelo véu de freira. Você me faz ficar furioso... Tenho vontade de
lhe dar umas boas palmadas!

Havia uma ameaça tão real naquela voz que Dominique não esperou para ver se ele
cumpria a palavra. Virou-se e correu, tropeçando pelo caminho que levava à casa. Não
enxergava direito e ao chegar nos degraus que davam na porta, tropeçou, tentou se
endireitar e caiu de quatro no chão.

Gemia de dor quando duas mãos fortes a puseram em pé... mãos que antes a haviam
tocado e transmitido, como agora, a mesma corrente que parecia percorrer todo o seu corpo,
da cabeça aos pés.

Capítulo VI

– Eu estou bem! – Dominique afastou a mão dele e tentou escapar. – Não faça isso!
É que ele lhe batia de leve na saia, para tirar a poeira, e olhava, admirado, o joelho
que começava a sangrar.

– Venha, vou levá-la para dentro enquanto ainda está inteira. – Don Vittorio
segurou-a pelo cotovelo e a conduziu até o hall. – Vá tratar desse joelho ferido antes de
começar a tratar de qualquer outra pessoa! Será que consegue subir a escada sozinha, sem
acabar caindo, morceguinha?

– Eu... eu teria os meus óculos, se não fosse por você! – Dominique lutava para
livrar-se das mãos dele, encarando-o zangada. – Espero que Candice não fique com
nenhum trauma, depois do que fez com ela hoje!

– E você... ficou com, medo? – perguntou ele, parecendo mais divertido que
arrependido.

– Claro que sim! Fiquei apavorada!

– Aposto como pensou que eu ia deixar que vocês se afogassem como gatinhos
rejeitados... Sua opinião sobre mim não é, das melhores, não? Bem, acho que não aconteceu
nada de mal com sua irmã, muito pelo contrário. Cuide um pouco mais de si mesma,
enfermeira, e não se esqueça de pôr mercúrio cromo nesse joelho.

Percorreu-a de alto a baixo com os olhos e depois virou-se, indo para o escritório.

Dominique foi subindo devagar, segurando-se no corrimão. Seus joelhos doíam, os


músculos estavam tensos e ela se sentia miserável. A vida ao lado de don. Vittorio era tão
calma quanto morar com um tigre enjaulado. Entrou no quarto e fechou a porta, aliviada
por deixar o resto do mundo lá fora, pelo menos por algum tempo. Sentou-se, tirou as
sandálias e pegou um lenço de papel para limpar o sangue dos joelhos.

Os acontecimentos da manhã persistiam em seus pensamentos. Ela não conseguia se


esquecer da luta que travara com Candy, na praia, nem das sensações que tivera ao ser
abraçada por don Vittorio. Sua mente conservava viva a imagem daqueles momentos, e ela
parecia sentir ainda o contato do nariz aquilino em seu rosto e dos lábios quentes sobre os
seus...

Passou o dedo pela boca e sentiu crescerem novamente as estranhas sensações que o
contato com aquele corpo viril despertara em algum recôndito escondido do seu ser.
– Não!

Deu um salto, pegou a toalha, um uniforme limpo e foi para o banheiro. Uma vez no
chuveiro, esfregou-se inteira, dos pés à cabeça, numa limpeza que não chegava à sua mente.
Ali, as memórias ainda estavam vivas demais e, mesmo depois de estar pronta, vestida, com
os cabelos presos no coque habitual e os óculos sobre o nariz, ainda se via nos braços de
don Vittorio.

– Maldição! – disse baixinho, fazendo um esforço enorme para se controlar e voltar


a aparentar a calma e a eficiente de sempre, antes de entrar no quarto da irmã.

Candice estava recostada nos travesseiros e sorria, feliz.

– Eu vou andar outra vez, não é mesmo, Nicky?

– Claro que vai! Devia sentir-se muito satisfeita!

– Foi você quem conseguiu isso, Nicky... Oh, eu nunca mais vou me esquecer do
que senti quando vi minhas pernas se mexendo. Elas se moveram mesmo, não foi, Nicky?
Eu não estava sonhando?

– Você não estava sonhando, mas eu não mereço todas as glórias. A idéia de nos
deixar na praia, com a maré subindo, foi de don Vittorio... Uma espécie de tratamento de
choque.

Candice olhava para a irmã, de olhos arregalados.

– Está querendo dizer que... que ele fez de propósito? – Dominique inclinou a
cabeça.

– Ele não apareceu de repente para carregá-la nos braços másculos, querida. Estava
escondido, esperando para ver se eu conseguia que você se mexesse. Funcionou, é claro,
mas foi maquiavélico. Se... se ele tivesse me contado sobre esse plano, eu talvez não tivesse
insistido tanto para que você andasse... Ele é mesmo impiedoso!

– Ele irrita você, não é mesmo, mana?

– Certo! – respondeu Dominique, enfática. – Vou ficar feliz em vê-lo pelas costas...
– Verdade? – Candy fixava seus belos olhos azuis no rosto da irmã. – Você não
sente nada mesmo pelos homens? Quero dizer, não sente vontade de ser abraçada, de ser
tocada por um homem?

– Não adiantaria nada eu querer uma coisa dessas – respondeu Dominique, indo
pegar o termômetro do outro lado da cama. Deu uma sacudida nele e pediu: – Ande, Candy,
levante o braço.

– Talvez fosse melhor você tirar a “sua” temperatura, Nicky – avisou Candice.

– Por quê?

– Está muito vermelha. Você parece... Bem, parece meio diferente, sabe?

– E porque estou muito contente com você – disse a moça, colocando o termômetro
sob o braço da irmã. – Vou insistir para que descanse o resto do dia, mas amanhã. E
amanhã, Candy, a gente vai tentar mexer essas pernas novamente.

Candice pareceu ao mesmo tempo ansiosa e apreensiva.

– E se... se eu não puder andar?

– Acho bom você fazer força, ou então seu cunhado vai aprontar mais uma. Ele
deveria ter vivido no tempo dos Bórgia, quando as famílias estavam sempre fazendo
intrigas e complôs. De qualquer modo, apesar da aventura de hoje cedo, você está com uma
ótima aparência. Seu pulso está bom e não tem febre – disse, conferindo o termômetro.–
Está satisfeita consigo mesma, irmãzinha?

Candice concordou e reclinou a cabeça loira sobre os travesseiros.

Estava extremamente bonita e Dominique lembrou-se do comentário de don


Vittorio sobre a beleza.

– Se você ama Tony, querida, está na hora de lutar para tê-lo de volta. Não sei como
é que ele pode querer outra mulher quando tem você. Agarre-se a esse pensamento que ele
fará muito mais por você do que qualquer remédio. Sabe, está parecida com uma antiga
artista de cinema, uma loira belíssima chamada Jean Harlow.

Candice pegou o espelho que Dominique lhe trouxera e analisou sua imagem.
– Jean Harlow era uma deusa do sexo, não era? E morreu com vinte e seis anos...

– Eu apenas disse que você se parecia com ela; não comece a querer encontrar
outras semelhanças. E agora diga-me: o que quer para o almoço? Que tal uma omelete de
queijo, salada, melão e um copo de vinho?

Candice riu.

– Você está parecendo uma garçonete!

– Acho que seria uma ocupação bem mais tranqüila!

– Nunca! Você nasceu para ser enfermeira, sabia? Oh, Nicky, não volte para a
Inglaterra quando eu ficar boa! Não se torne freira. Daí eu nunca mais vou ver você...

– Não deve falar assim –, reprovou Dominique. – Eu sei o que quero...

– Sabe mesmo? – Candy a encarava, séria. – Já ouvi dizer que as mulheres que
viram freiras estão se escondendo de si mesmas.

– Que bobagem!

– Eu até concordaria se fosse outra pessoa, mas... Nicky, você nunca foi uma beata
metida a santa! As outras acham que só o trabalho duro leva ao céu. Não se lembra da velha
irmã Clare? A coitada da velha nem podia usar as mãos no fim da vida, tão cheias de artrite
estavam, causadas por tanto esfregar o chão do convento... Oh, Nicky, não fique como ela!

– Você só se lembra das mãos da irmã Clare – disse Dominique, sorrindo. – Quando
me lembro dela, recordo a tranqüilidade daquele olhar. Ela era uma mulher feliz; querida,
mas você era criança demais para perceber...

– Bem, essa não é a minha idéia de felicidade... E o que é a felicidade, afinal? Não é
tão fácil assim de encontrar, não é verdade? Quando conheci Tony, achei que a havia
encontrado, mas, em vez disso, descobri a tristeza de dividi-lo com mais alguém. Eu tenho
que ficar aqui deitada e me conformar. Mas depois, quando ficar boa, vai ser diferente.
Prefiro abandoná-lo a continuar com essa vida! Não acha que estou certa, Nicky?

Dominique sacudiu a cabeça.


– Não sei. Não pretendo saber nada sobre o amor, mas imagino que deva ser uma
emoção partilhada integralmente por duas pessoas. Você tem mesmo certeza de que existe
outra mulher na vida de Tony?

– Eu perguntei a Malvina – confessou Candice. – Eu... eu tinha que ter certeza, e ela
o conhece melhor que ninguém. Além disso, não gosta de mim e, por isso, me contou a
verdade. Tony visita uma pessoa do outro lado de San Sabina.

– E você acredita que Malvina tenha falado a verdade? – perguntou Dominique,


franzindo a testa.

– Ela gostou de me contar isso... ficou deliciada. Debruçou-se sobre a cama e disse
que havia um lado da vida de Tony que eu desconhecia e nunca compreenderia, porque sou
a mulher errada para ele. Disse que ele precisava de força e energia e tinha se casado com
uma pessoa fraca... E é verdade, não é mesmo, Nicky? Malvina contou que não foi Tony
quem me segurou no dia em que fiquei tão doente; disse que foi don Vittorio, mas que eu
não precisava me incomodar, porque às vezes ele cuidava, do mesmo modo, de alguma
vaca doente a noite inteira...

O silêncio penetrou no quarto depois que Candy parou de falar. Dominique sentiu
revolta e nojo, mas controlou a raiva e disse:

– A coisa mais importante é você recomeçar a andar. A gente vai resolver todos os
problemas depois que isso acontecer. Mas agora vou tratar do seu almoço. O que vai
querer?

– Omelete de queijo está ótimo! – Uma pequena chama azul iluminou os olhos da
moça doente. – Não se esqueça do meu copo de vinho, hein?

– Não me esquecerei.

As duas irmãs se encararam durante algum tempo. Um bom observador notaria


naquele instante uma estranha semelhança entre elas: ambas tinham um ar de gente
obstinada.

Enquanto descia a escada, Dominique ia se sentindo mais aliviada. Candice havia


recomeçado a lutar, mas a salvação do casamento com Tony ainda era problemática.
Dominique não se conformava com a maldade de Malvina, contando para Candy
que o marido tinha outra. Mas isso, afinal, ajudara a doente a se animar. Nenhum homem
valia uma vida destruída. A luta tinha que continuar e o amor só valia mesmo a pena se
fosse partilhado igualmente por duas pessoas.

Então, ao atravessar o hall, encontrou Tony, que trazia um maço de belíssimas rosas
amarelas. Ao ver as flores, Dominique sentiu um ímpeto de jogá-las ao chão. Entendia
agora o que Candy sentira, ao ganhar o colar de pérolas e dar com ele no rosto do marido.

– Eu vi estas flores na cidade e não pude resistir – disse o rapaz, sorrindo, alegre,
deixando à mostra os belos dentes brancos. – Vittorio me mandou até lá, para ver se
resolvia uma questão entre dois fazendeiros... Ei, o que aconteceu, Nicky? Candice não está
bem?

– E isso importaria muito a você? – perguntou ela, com frieza.

– O que está querendo dizer? – Uma sombra de dor apareceu nos olhos dele. – Você
sabe que eu me importo, e muito, com o que acontece com ela... Está mal novamente?

– Fisicamente está ótima, melhor do que nestas últimas semanas, mas é o coração
dela que está ferido, Tony, e você sabe a razão. Você causou essa tristeza.

Tony baixou os olhos para as flores e tocou uma delas com um dedo.

– Nicky, eu gostaria de, falar com você. Será que poderia conversar um pouco
comigo? Digamos, depois do almoço?

Dominique ficou sem saber o que dizer. O que ele poderia querer dizer a ela que não
devia ser discutido com a esposa? Seria a possibilidade de um divórcio'? Agora isso já era
possível na Itália, mas os Romano seguiam as regras da Igreja Católica.

Além do mais, estava certa de que don Vittorio obrigaria o irmão a cumprir o que
prometera na cerimônia do casamento. Candy não era católica, mas ela se convertera há
muitos anos e também não aceitava o divórcio.

– Por acaso minha irmã tem a ver com o que você quer falar comigo, Tony?

– Tem. – Ele inclinou a cabeça, olhando sério para a cunhada. – Será que poderia
encontrar-se comigo às duas e meia, no mirante do jardim? Candy vai estar descansando.
– E o que você vai me dizer magoaria Candy?

Dominique não conseguia evitar que a voz tremesse. Achava que devia estar
zangada com Tony pelo modo como fazia sua irmã sofrer, mas havia uma certa tristeza nos
olhos do rapaz que a deixava meio confusa. Candice o havia enganado na ocasião do
casamento, era certo, mas se, na ocasião, ele já tinha alguém que o esperava na Itália, então
não deveria nem tê-ta levado para o fim de semana em Paris, Candice era alegre e
desinibida, mas não uma leviana, e, se fora com ele, é porque já estava perdidamente
apaixonada.

– Deixe que eu conte tudo a você... – estava dizendo Tony.

– Eu nem sei bem o que dizer... Sabe que gosto demais de minha irmã, não sabe?

– Sei, e ninguém cuidaria dela com maior desvelo, Nicky. Você é uma pessoa
compreensiva, e é por isso que preciso lhe falar. Por favor, diga que me escutará!

Tony parecia um garoto indefeso, completamente diferente do irmão.

– Está bem – concordou. – No mirante, às duas e meia.

– Não fale nada a Candy – pediu o rapaz. – Obrigado, Nicky! Que bom que você
concordou! Será que ela vai gostar das rosas? São quase da mesma cor que os cabelos dela,
não acha?

Dominique não pôde deixar de sorrir. Não conseguia compreendê-lo. Tony parecia
ter um afeto sincero por Candice, mas, se Malvina tivesse falado a verdade, ele andava
vendo outra pessoa. Será que iria lhe contar quem era essa outra pessoa?

– Candy sempre preferiu rosas – disse Dominique. – Eu me lembro de que o buquê


de casamento foi de botões de rosas. Ela me mandou fotografias...

– É, o nosso casamento... – murmurou ele, a cabeça baixada sobre as rosas


amarelas. – Naquele dia ela estava tão linda, tão cheia de vida! O sol brilhava quando
saímos da igreja e foi Vittorio quem tirou aquelas fotos. Meu irmão tem talento, sabia? Eu
sempre achei que, se ele não fosse o mais velho e, não tivesse que arcar com as
responsabilidades da fazenda, teria se dedicado a uma ocupação artística. Mas os negócios
precisavam ser tocados. Ele tomou as rédeas de tudo e transformou o que temos num dos
negócios de maior sucesso do sul da Itália. Por causa da cooperativa, sabe? Se a terra
tivesse sido dividida no tempo de meu pai, o velho teria ficado desesperado. Ele era mais
ou menos como um coronel, dono de grandes extensões de terra. Eu não me lembro muito
bem dele, mas Vittorio às vezes conta como eram as coisas naquele tempo. No escritório de
meu irmão há uma fotografia de meus pais, você já viu?

Dominique sacudiu a cabeça, negando.

– Ele nunca me convidou a entrar lá.

– Verdade? Precisamos dar um jeito nisso. Ele guarda lá algumas das esculturas que
faz em madeira e você ficaria interessada...

– Por favor, Tony – interrompeu-o ela –, não vá dizer a ele que eu gostaria de ver o
escritório. Não se esqueça de que aqui sou apenas a enfermeira.

– Você é irmã de minha esposa....

– A mulher que você anda negligenciando – lembrou Dominique.

Tony olhou para ela com um ar de tristeza.

– Está achando que Candy viveu poucos momentos de felicidade a meu lado, não?
Acha que, se eu já tinha um compromisso em San Sabina, devia ter ficado longe de sua
irmã, não é?

– É verdade, é exatamente isso que estou pensando.

– Mas, Nicky, você tem que compreender! Candice era tão viva, tão alegre, e
quando dançávamos ou estávamos juntos nada mais importava! A gente se envolveu...
essas coisas acontecem.

– Eu sei – respondeu Dominique, numa voz mais suave. – Não sou tão tola a ponto
de não perceber que os sentimentos às vezes passam por cima das decisões que a gente
toma. E, para ser justa com você, Tony, deve dizer que sei que Candy mentiu para forçar o
casamento. E isso porque o amava demais, tem que acreditar.

– Todos nós gostamos de ser amados – disse ele, meio triste. – Gostamos, mas isso
pode nos levar a complicações sérias. Eu não sou forte como Vittorio e até hoje ignoro por
que ele não acabou comigo...
Tony se interrompeu e Dominique o encarou, surpresa.

– E por que ele iria querer fazer uma coisa dessas? Lógico que não seria por você ter
se casado com Candy, não?

– Oh, não! Você não está entendendo! Isso tem a ver com o que quero contar-lhe
mais tarde. Vai ao mirante, não vai?

– Vou. – Dominique sentia-se bastante curiosa, mas também apreensiva.


Desconfiava que iria escutar alguma coisa que atrapalharia muito a vida de Candy. – Tony,
quando você encontrar sua esposa, vai notar que está mudada. Ela mesma irá contar-lhe o
que é, mas é muito importante que a mantenha animada, certo?

– O que é, Nicky?

– Ela recomeçou a andar!

– Deus do céu! – Um brilho rápido apareceu nos olhos dele, mas logo se apagou. O
que o perturbava não devia ser coisa pequena, e Dominique sentia um cheiro de tempestade
no ar. – Você a viu andando? Estava perto quando aconteceu?

– Sim, eu estava bem perto. Candy vai contar para você, e fique alegre como ela...

– Claro que estou alegre! O que pensa que sou? Acha que gostei de ver o jeito como
ela fitou?

– Alguns homens podem até achar conveniente ter uma esposa paralítica, que fique
deitada o dia inteiro. Assim é mais fácil manter um caso com outra mulher. É isso que você
anda fazendo, não é mesmo? É por isso que precisa conversar comigo... para aliviar sua
consciência?

– Não! – exclamou ele. – Não é isso...

– Então quer dizer que ama Candy e essa outra pessoa ao mesmo tempo? É isso,
Tony? Você ainda gosta da minha irmã?

– Claro que eu gosto, Nicky! Não quero magoá-la e preciso que você me diga o que
fazer.
– Tony, não pode me pedir isso! – Dominique sentia o coração disparar. – Você
mantém um relacionamento amoroso com outra, é lógico que Candy vai sofrer! Não pode
ser evitado, mas eu gostaria que você esperasse até que ela ficasse mais forte e pudesse
decidir o que fazer.

– Eu sei. Mas eu lhe imploro que me deixe falar desse caso com você...Preciso falar
com alguém, e você, Nicky, é bondosa. Tem pena dos que estão com problemas, e eu... eu
estou com um grande problema.

Tony se parecia tanto com um garoto em dificuldades que Nicky ficou mesmo com
pena. Percebeu que, se ele não desabafasse com ela, seria capaz de falar do caso com a
própria Candy, o que iria complicar seu restabelecimento.

– Eu vou me encontrar com você, Tony – prometeu. – Escutarei o que tem a dizer.
Apenas lhe peço que não diga nada a Candy. Ela está começando a melhorar e, se acontecer
alguma coisa... você entende, não ê?

– Sim. – Um olhar de gratidão se estampou em seu rosto. – Gostaria que você me


ajudasse, Nicky.

– Não dependa de mim para resolver seus problemas, Tony. Eu estou inteiramente
do lado de Candice.

– Eu já esperava, mas você é uma pessoa justa e sei que vai ser bom conversarmos.

– Então, até as duas e meia – prometeu a moça. – Candy vai adorar as rosas! Ela
agora precisa de muito estímulo, Tony.

– Sim, eu sei... – O rosto do rapaz mostrava preocupação. – Até logo, Nicky.

Dominique ficou observando enquanto ele subia a escada. Depois continuou seu
caminho, rumo à cozinha, para pedir o almoço da irmã.

Tomou um café com a cozinheira e relaxou um pouco, enquanto a velha italiana


sovava a massa e falava sobre sua família. Dois de seus filhos trabalhavam como garçons
em Londres, e Dominique escutava as histórias, tentando parar de se preocupar com. Tony
e Candy.
Será que acabaria tendo que levar a irmã de volta para Londres? Seria uma pena. A
Itália era um país animado, pitoresco e cheio de costumes diferentes, especialmente ali, na
zona rural. Um país onde as pessoas ainda davam um valor muito grande aos laços de
família; os mesmos laços fortes que uniam Tony e don Vittorio.

Dominique continuava a pensar no que Tony queria dizer quando comentara que
não sabia por que o irmão não havia acabado com ele. O que poderia ter acontecido de tão
sério? Será que ele iria lhe contar? Que coisa era essa, que abalara tanto os dois irmãos e
que agora ameaçava o casamento de Tony?

– A senhorita parece preocupada – comentou a cozinheira. – Está assim por causa


de sua irmã?

– É... – disse Dominique, suspirando.

– Mas a saúde dela melhorou bastante, desde que a senhorita chegou! – A


cozinheira colocava a massa de pizza numa fôrma. – Está comendo bem e experimenta tudo
que eu faço, em vez de ficar brincando com a comida, como antes. Eu costumava dizer que,
já que ela não queria comer, que pelo menos deixasse as coisas direito, para que eu pudesse
levar para casa, para o Dino.

Dominique sorriu de leve, sabendo que Dino era o preguiçoso marido da cozinheira,
que passava o dia todo jogando cartas com os amigos, na cidade. É... parecia que os
italianos não se importavam muito com suas esposas...

Suspirando, pensou no caso de Tony. Se fosse mesmo verdadeira a história da outra


mulher, então Candy tinha que se esforçar para aceitá-lo tal como ele era. E, amando-o
como o amava, com todas as fibras de seu ser, viveria num inferno por ter que dividi-lo
com outra.

Dominique estremeceu, assustada. Não, não era em Tony que estava pensando. A
imagem que lhe vinha à cabeça era a de don Vittorio... nos braços de outra mulher!

Meio estonteada, observou a cozinheira cobrir a pizza com tomates, anchovas,


cebolas, e depois colocar por cima de tudo uma grossa camada de queijo.

Logo depois, uma fatia de pizza era colocada à sua frente.


– Olhe – disse-lhe a cozinheira –, coma e fique gordinha como uma italiana. Assim
um dos nossos belos rapazes vai querer se casar com a senhorita!

– Casar com um italiano? – indagou uma voz irônica. – Ela não iria saber o que
fazer com ele! Se a Srta. Davis tivesse o sal e a pimenta que atraem um homem, não teria
essas idéias de virar freira!

Chocada, Dominique virou-se e encarou Malvina, que entrava na cozinha.

– Coma sua pizza – insistiu a cozinheira.

Dominique levantou-se.

– Vou levá-la para cima, junto com o almoço de minha irmã.

Malvina se aproximou e ficou olhando enquanto a bandeja era preparada. Encarou


Dominique, com os olhos cheios de animosidade.

– Eu sugeriria que as duas entrassem para o convento – disse. – Antônio não quer
mais a esposa, ele tem coisas mais interessantes. Eu já disse a ela... Bem, ela perguntou;
não é?

Dominique pegou a bandeja e foi indo em direção à porta. Talvez estivesse sendo
dramática demais, mas Malvina usava um daqueles anéis antigos, parecidos com os que os
Bórgia enchiam de veneno. A pedra grande brilhava naquela mão morena como se fosse o
olho do mal.

– Malvina, eu já lhe avisei: se você incomodar novamente minha irmã, vou me


comunicar com a polícia. Desde que Tony a trouxe para esta casa; ela tem sido infeliz,
doente, e eu sei que você tem culpa nisso. Os irmãos Romano podem considerá-la leal e
devotada, mas eu a vejo como realmente é: uma criatura ciumenta e desonesta, que, no
fundo gostaria de ter Tony. Mas ele ainda é jovem e a encara apenas como a babá.

As palavras de Dominique encheram Malvina de ódio. Vermelha e exaltada, ela


sibilou:

– Como se atreve. Vou contar a don Vittorio como você é insolente!


– Faça isso – replicou Dominique. – Eu não sou uma empregada desta casa, por isso
não posso ser mandada embora por chamá-la de babá. E é isso que você é, não é verdade?
Mesma que tenha resolvido se comportar como um membro da família!

– Você vai ver...

– É você quem vai ver. – Dominique parou, a bandeja nas mãos, os olhos firmes
enfrentando Malvina sem medo. – Don Vittorio é meu cunhado e exercerei meus direitos
nesta casa, se você se atrever a entrar mais uma vez no quarto de minha irmã com suas
insinuações maldosas. Tony agora é um homem, não tem mais necessidade de uma babá
para segurar-lhe a mão. Eu até acho que ele é uma pessoa instável e fraca por sua causa;
você o fez assim, para se tornar indispensável. Todos nós podemos ser substituídas, cama
você tão bem explicou para Candice. Bem, se por acaso Tony preferir outra pessoa, então
que fique com ela! Minha irmã certamente tem o sal que atrai dúzias de homens e eu... eu
ficarei feliz em levá-la daqui. Uma casa só é agradável e gostosa, se nela existe amor, mas
não vi nada disso, desde que cheguei a Vila Dolorita!

Dominique acabou seu discurso. Virou-se para sair da cozinha, a bandeja ainda nas
mãos, e quase colidiu com alguém no corredor.

– Oh, cuidado... – disse.

– Você é que tem que tomar cuidado! – Era don Vittorio, que olhava para ela de
cara feia. – Escutei tudo o que disse. Qual é o significado disso?

– Se me escutou – disse ela, ainda na ímpeto da luta –, não preciso explicar nada,
não é mesmo?

– Então quer dizer que não gosta de minha casa?

– A arquitetura é impecável, mas, fora isso...

– Mas que garota atrevida!

– Será que posso passar? O almoço de Candy está esfriando.

Ele a encarou, as sobrancelhas franzidas.

– Está branca coma cera. O que foi que aconteceu?


– Quase tudo... – retrucou ela, tensa. – Se seu irmão acha que Candice vai partilhá-
lo com outra, é melhor que mude de idéia. Candy é como eu: não admitimos o amor como
cooperativa! Par favor, quer me dar licença?

– Não se atreva a falar comigo desse jeito, e não saio do caminho em minha própria
casa!

– Sei muita bem que esta é a sua casa, mas fui convidada a vir aqui para tratar da
esposa de seu irmão, e gostaria que ela pudesse almoçar enquanto a comida ainda está
quente. Você tem que admitir que os pratos italianos perdem muito o sabor, se chegam a
esfriar.

– E com os pratos ingleses isso não acontece?

– Par favor...

Dominique sentia que a raiva passava. Já começava a se arrepender. Ela mesma não
aprovava o que dissera da casa, mas nunca detestara tanto uma pessoa como detestava
Malvina. Nunca sentira vontade de agarrar alguém pelos cabelos e bater até cair, e esse
impulso de violência a deixara envergonhada e abatida... Não seguira os conselhos da irmã
superiora, de que devia sempre enfrentar as adversidades com dignidade.

– Estou percebendo que ficou muita agitada com alguma coisa – disse don Vittorio,
dando-lhe passagem e fazenda um gesto com a mão. – Falaremos sobre isso depois.

– Não vou poder – disse ela, sem querer. – Vou me encontrar com... com outra
pessoa.

– Outra pessoa'? Um homem? – Disse isso como se tivesse algum direito sobre ela,
e Dominique sentiu que uma centelha reacendia o fogo que dormia em seu íntimo.,

– Sim, um homem –, respondeu, desafiante. – Será que tem alguma objeção, don
Vittorio, de que eu passe meu tempo livre do modo como entender?

Dominique simplesmente não sabia por que não dissera de uma vez que iria se
encontrar com Tony para ajudá-lo. Talvez estivesse agindo assim porque a odiosa Malvina
mexera numa ferida que ela já imaginava cicatrizada.

– Eu não sabia que você conhecia algum rapaz por aqui.


– Nem podia saber, se, como todos os outros, você me considera uma bruxa! Ou
melhor, um capacho de óculos!

– Como? O que está dizendo?

– É isso mesmo! Alguém para se bater e limpar os pés. Tenho certeza de que a
definição serve exatamente para uma pessoa tão sem sal quanto eu!

E, com isso, Dominique saiu marchando, levando a bandeja, a cabeça erguida ao


atravessar o hall e subir as escadas.

Candy, pedia ela mentalmente, fique boa logo para que a gente possa ir embora
desta casa e voltar à Inglaterra. Eu vou continuar com a minha enfermagem e você com a
sua dança, mas pelo amor de Deus, nunca mais se envolva com um belo italiano! Arranje
um inglês da próxima vez, tenha filhos com ele e seja razoavelmente feliz!

Ao entrar no quarto da irmã, Dominique reparou que as rosas haviam sido


arrumadas num vaso, perto da janela. Candice segurava a mão do marido, olhando para ele,
pensativa. Tony pareceu aliviado, ao ver a cunhada.

– Ah, seu almoço, querida! Você tem que comer tudo, para me agradar.

– Tony, fique comigo... por favor! – Os olhos azuis imploravam, mas ele pegou a
mão da esposa, beijou-a e foi indo para a porta.

– Preciso fazer a barba, querida – disse, passando a mão pelo rosto áspero. –
Vittorio me pediu para sair tão cedo que não tive tempo, para nada. E nós, italianos, temos
uma barba que cresce muito depressa. Você não quer que eu fique barbudo, não é?

– Eu quero apenas você... – disse Candy, baixinho. – Se me quiser.

– E alguma vez dei a entender que não a queria, amor? – perguntou ele, já na porta,
sorrindo, mas Dominique notou novamente a tristeza naqueles olhos escuros. – Vá
almoçando como uma boa menina. Eu volto depois; está bem? Antes de você tirar a soneca
da tarde.

– Durma comigo, Tony. Eu estou me sentindo tão melhor...


– Eu ficaria, amorzinho, mas preciso me encontrar com uma pessoa... – E uma
chama de desespero apareceu nos olhos do rapaz, fazendo com que Dominique viesse em
seu auxílio.

Ela colocou a bandeja sobre os joelhos da irmã, dizendo:

– Candy, você precisa de comida e descanso, se é que quer ficar boa depressa.
Tenha juízo e não queira apressar as coisas.

– Você! – disse Candice, olhando para ela com ressentimento. – Como pode saber o
que estou sentindo? Nunca quis dormir com um homem!

O silêncio tomou conta do quarto, e, então, como se estivesse embaraçado. Tony


saiu depressa, fechando a porta.

– Oh, ele foi embora! – choramingou Candy. – Por que você tinha que nos
interromper? Eu não quero almoçar! – E fez um movimento para empurrar a bandeja para o
chão.

– Se você fizer isso, como uma criança mimada, vou embora hoje mesmo! Estou
falando sério, Candy. Estou começando a achar que já cansei de todos vocês! Por que você
não cresce e começa a se comportar como uma pessoa adulta, em vez de agir como uma
adolescente?

Candice encarava a irmã de boca aberta, de tão espantada.

– Você não pode ir embora! Não teria coragem...

– Então experimente! Jogue essa bandeja no chão que eu faço minhas malas, chamo
um táxi e me mando daqui! Vou levar a minha vida e deixar que leve a sua! Somos adultas,
apesar de você preferir agir como uma garota de quinze anos, sabia? E até já provou que
pode andar, se fizer força. De resto, precisa de mim apenas como um capacho, alguém que
vá buscar às coisas que você quer e que cale quando você resolve insultar!

– Nicky! – Candice olhava, espantada, para a irmã habitualmente calma e


controlada. – Eu nunca... nunca escutei você falando desse jeito!

– Bem, então escutou agora! – replicou a outra, e não se arrependia de nenhuma


palavra que dissera. A coisa já vinha fervendo dentro dela há tempo, aquela raiva de ser
tratada como uma espécie de robô, que servia apenas para acalmar e apaziguar os outros,
como se só os outros pudessem ter traumas, manias e desabafos. Ela já estava farta disso.
Soltou um longo suspiro e perguntou: – Como é, Candy, vai comer ou não?

– Você está zangada por causa do que falei? – perguntou Candice com sua voz de
criança. – Eu só falei aquilo, Nicky, porque é verdade... Você não se interessa mesmo por
homens.

– E se eu me interessasse, era coisa minha – retrucou Dominique. – Como todo o


mundo, você imagina que eu pertenço a uma espécie diferente... provavelmente recheada de
paina da cintura para baixo!

Candy se engasgou e caiu na risada.

– Nicky, essa foi a coisa mais malcriada que já ouvi você dizer!

Dominique ficou envergonhada com seu próprio comentário.

– E provavelmente foi a coisa mais certa que já falei. Por que todos pensam que
meus sentimentos não são iguais aos de todo mundo?

– Porque você vai entrar para o convento – afirmou Candy, começando a comer. –
As mulheres que fazem isso não estão interessadas em homens, não é? Quero dizer,
sexualmente. Elas são frias, não são?

– Como eu? – perguntou Dominique, seca. – Com a minha feiúra toda, nem
adiantaria eu me interessar pelos homens, não acha?

– Você não é mesmo bonita – afirmou Candy; meio convencida. – Mas seus cabelos
são lindos e seus olhos têm uma cor muito especial. E, com essas pestanas compridas, você
nem precisaria usar pintura... Se eu fosse você, Nicky, usaria lentes de contato. Óculos
deixam você...

– Mais feia ainda... é isso que quer dizer?

– Hum! Que delícia de pizza! – disse Candy, ocupada com a fatia que a cozinheira
havia cortado para Dominique. – Só Vittorio mesmo, para ter uma cozinheira tão boa! Para
ele, tudo tem que ser do bom e do melhor! – Encarou a irmã. – Bem, Dominique, você tem
cérebro, passou em todos os exames Com a maior facilidade e sabe tanta coisa que faz com
que eu pareça uma burra. Alguns dos rapazes que eu levava para casa tinham medo de abrir
a boca na sua frente, achavam-na intelectual demais. Não acreditavam que fôssemos
irmãs... Oh, Nicky, não me deixe aqui sozinha! Você não vai embora, não é mesmo? Você
não falou sério, falou?

– Naquela hora eu falava sério – disse Dominique, rindo. – Normalmente não perco
a cabeça, mas hoje parece que todo mundo anda querendo me provocar.

– Quem? – Candy pegou uma costeleta e começou a comê-la com gosto. – Conte
para mim!

– Tive um pequeno desentendimento com Malvina. – Dominique pegou uma batata


frita e ficou mastigando, pensativa. – Acho que ela tem uma influência negativa sobre
Tony. Desconfio que fez de tudo para que ele ficasse dependente dela, e deve ter ficado
chocadíssima quando você chegou para se casar com ele. Só não entendo como é que don
Vittorio não percebe... É muito mais esperto do que Tony, mas acho que, por ser italiano,
está acostumado a respeitar as mulheres mais velhas. Sabia que os italianos não permitem
que as pessoas idosas fiquem jogadas por aí?

– Eles são muito conscientes de suas obrigações – concordou Candice. Por um


momento parou de comer e ficou pensativa. Nicky, acho que foi isso que aconteceu comigo
e com Tony. Ele passou a me encarar mais como uma responsabilidade do que como uma
mulher com quem... com quem fazer amor. Quando eu o olho, ainda me derreto toda, mas
ele apenas me beija com delicadeza. Os homens não fazem isso quando sentem desejo!
Fico dizendo a mim mesma que ele faz isso porque eu estou assim, mas, e se depois que eu
começar a andar ele continuar a me tratar só com educação, o que vou fazer, Nicky?

– Por enquanto você vai terminar de almoçar – disse Dominique, com firmeza. –
Deixe o futuro para depois, não antecipe as coisas.

– É muito fácil falar, mas não é fácil se afastar de alguém que se ama, Nicky.

– Imagino que não seja mesmo. Mas quero que você recupere suas forças, por isso
coma a outra costeleta e o resto dessas batatinhas. Hoje quero levar de volta para a cozinha
uma bandeja cheia de pratos vazios.
– Nicky, será que nunca se cansa de cuidar de doentes e de animá-los? Nunca sente
vontade de... de amar?

– Gosto de ser enfermeira – afirmou Dominique. – Sinto uma satisfação muito


grande quando vejo uma pessoa doente melhorar e começar a se interessar novamente pela
vida.

– E é essa toda a satisfação que você vai querer na vida? – Candy estudava a irmã
com certa preocupação. – Detesto imaginá-la como freira. Quer dizer que nunca vai ter um
homem para abraçá-la e deixá-la louca... Nicky, é emocionante! E diferente de tudo na
vida, e eu sei que não poderia viver sem essa alegria maravilhosa de ter alguém tão junto...

– Claro que não! Você é feita desse jeito, tem uma natureza vibrante.

– E você também! – declarou Candice. – Nós somos irmãs e não podemos ser assim
tão diferentes... temo é que pode achar que vai conseguir trancar todos os seus sentimentos?
Como é que você vai fazer, Nicky?

– Foi o que decidi fazer.

– Mas ainda não se comprometeu definitivamente! Ainda pode mudar de idéia.

– Não quero mudar de idéia.

– Não acredito!

– Vai ter que acreditar, Candy.

– Oh, Nicky, você nunca sentiu nada, nada mesmo, por homem algum? Nunca se
apaixonou por um médico?

– De jeito nenhum – disse Dominique, sorrindo. – Ao contrário do que as revistas e


romances vivem dizendo, médicos e cirurgiões são homens muito ocupados, que preferem
se preocupar com suas carreiras a viver correndo atrás das enfermeiras pelos corredores dos
hospitais. Eu nunca vi esse tipo de coisa. Nem poderia ser de outro modo, com gente doente
ali, esperando para ser atendida.

– Então quer dizer que seu coração nunca disparou por ninguém? Que suas pernas
nunca ficaram bambas quando um homem chegou perto e olhou dentro dos seus olhos,
como se quisesse dizer: “Eu poderia possuir você, aqui e agora, e seus gritos não iriam me
impedir”... Isso nunca aconteceu com você, Nicky?

Dominique hesitou um pouco e depois disse:

– Não.

Mas sabia que estava mentindo, que enganava a garota adolescente que ela mesma
já fora, a garota que sonhava com um homem romântico que a adorasse.

– Nunca quis que isso acontecesse? – insistia Candice.

– Não, desde que cresci e virei uma pessoa sensata.

– Sensata? – Candy fez uma careta. – Deus me livre, que palavra! Quem é que quer
passar a vida toda sendo sensata?

– Bem, para mim, ser sensata é uma coisa normal. Agora acabe essa salada de frutas
para que eu possa levar a bandeja.

– Nicky, pare de falar como uma velhota antiquada! – pediu Candy, enquanto catava
o restinho da salada de frutas.

– Mas eu sou uma solteirona, querida irmã – lembrou Dominique.

– Você só tem dois anos a mais do que eu – retrucou Candy, exasperada. – Estou
começando a imaginar que tem é medo dos homens, um medo tremendo... é isso?

– Acho que não – respondeu a outra, começando a rir. – Provavelmente é o


contrário! Você mesma disse que seus namorados temiam chegar perto de mim, não foi?

– Oh, mas eles eram garotos. Estou falando de homens... Homens como Vittorio,
por exemplo. O que acha dele, Nicky? Falando sério, não vejo como você possa ter deixado
de reparar em Vittorio... Tem medo dele?

– Céus, não! – Mas, mesmo para ela, a negativa parecia forçada. – Por que eu
deveria ter? Afinal, ele é um simples homem!

– Ora, Nicky, deixe disso! Não há nada de simples em Vittorio. Um passarinho me


contou, que vocês jantaram a sós uma dessas noites, no pátio. Ele sabe ser gentil e
cavalheiro quando quer; por acaso estava assim naquela noite?
– Não especialmente.

Dominique falava com calma, mas curvava os dedos dos pés dentro dos sapatos,
como quando tinha que enfrentar a madre superiora. Aquilo era um truque ensinado por
uma artista: se você fizesse isso, as tensões do resto do corpo não apareceriam. Bem, e
agora, para seu próprio espanto, tinha que fingir para a irmã que não sentia nada por don
Vittorio.

– Sobre o que vocês conversaram? – Candice queria saber, os olhos azuis


inquiridores. – E por que não me contou que tinha jantado com ele?

– Provavelmente me esqueci – retrucou Dominique, com toda a calma, mas com os


dedos dos pés encolhidos. – Ele estava apenas sendo educado, ao me convidar. Na certa
sentiu pena da solteirona e achou que tinha obrigação de me fazer companhia por uma ou
duas horas. A comida estava excelente, mas juro que me esqueci sobre o que conversamos.

– Você está calma demais com tudo isso... – disse Candy, desconfiada. – Ele é
extremamente atraente, você sabe...

– E extremamente italiano. Mesmo que ele estivesse interessado em casamento e eu


fosse do tipo namorador, como você, isso não iria adiantar nada. Eu não tenho nada que
inspire paixão numa pessoa como don Vittorio, e tampouco quero ter. Ele já traçou o rumo
da vida dele, e eu tracei o da minha. Por isso, não me venha com idéias casamenteiras. Isso
iria me deixar muito envergonhada. Não comece a imaginar coisas só porque jantei com
ele. Posso lhe garantir que foi um alívio quando nos separamos.

– Mas que coisa! E naquele jardim florido? – Candice parecia perplexa. – Então, só
comeram, falaram de coisas triviais e foram dormir?

– “Eu” fui, dormir – disse Dominique, severa. – Ele deve ter ficado até a meia-noite
fazendo a contabilidade da fazenda, mas acontece que depois me acordou para dizer que
você estava doente. Decerto foi por isso que acabei me esquecendo de mencionar um
evento tão importante... para você, claro.

– Deve ser... – Candice mordia o lábio inferior. – Eu... eu pensei que fosse morrer,
naquela noite... Nunca mais vou comer camarão, sabe? Sinto náuseas só em lembrar...
– Não pense nisso, já acabou e pronto – afirmou Dominique, tirando a bandeja do
colo da irmã e colocando-a num canto. – E agora, que tal experimentar dar mais uns passos
até o banheiro?

– Não! Vou cair...

– Candy, vou segurar você, e desta vez não precisamos ficar com medo da maré.
Tente!

– Será que posso? – Candice parecia meio ansiosa e... meio relutante...

– Você costumava ser muito corajosa! Nada a amedrontava, Candy.

– Então está bem. – Candice empurrou as cobertas e ficou em pé, com a ajuda de
Dominique, mas logo caiu. – Não consigo... Deus! É como andar numa gelatina!

– Você pode fazer isso – insistia a irmã. – Uma pessoa pode fazer novamente, o que
já fez antes. E, se eu não conseguir segurá-la, você vai cair sobre o tapete macio, e não
sobre degraus de pedra. Faça um esforço, Candy. Essas suas pernas são lindas e fortes
demais para não serem usadas.

– Nicky, como você pode ser tão insistente? – E Candice tropeçava. – É assim com
todos os seus pacientes?

– Sou. Sou o terror sagrado! Assim... você está conseguindo, menina! Estamos
quase no banheiro... Isso, só mais alguns passos... Viva! Que maravilha!

Dominique abraçou a irmã e ambas se beijaram, entre lágrimas de emoção. Rindo e


chorando, continuaram agarradas... E, naquele instante, Dominique nem se lembrava do
encontro como Tony, quando ele iria lhe contar sobre seu caso com outra mulher.

Por enquanto ela só queria saber da alegria da descoberta de Candy. O corpo da


irmã se mexia novamente!

– Eu posso andar! – dizia Candy, meio sem fôlego. – Oh, não é maravilhoso, Nicky?
Agora Tony vai me querer novamente... não vai?

– Claro que vai! – afirmou Dominique, mesmo que, na verdade, não estivesse assim
tão certa disso.
Capítulo VII

Chovia muito quando Dominique foi ao encontro de Tony, no mirante, debaixo de


um guarda-chuva que havia encontrado no armário da cozinha. Uma pesada capa cobria o
uniforme azul.

De certo modo, ela achava que o tempo estava apropriado. Um dia de sol não
combinaria com as más notícias que, tinha certeza, iria escutar. Na certa, Tony diria coisas
que afetariam a vida de Candy e Dominique já se sentia meio aborrecida ao chegar ao lugar
de encontro.

Entrou, fechou o guarda-chuva e o sacudiu do lado de fora. Tony ainda não havia
chegado, e isso era bom, pois assim ela teria tempo de pôr as emoções em ordem para
enfrentar com serenidade o que quer que ele fosse dizer.

Sozinha ali no mirante, Dominique começou a pensar que o amor podia ser
maravilhoso se correspondido. Mas era amargo como fel se a pessoa amada sentisse apenas
piedade, em vez de paixão. E ela notara piedade nos olhos de Tony. Se fosse apenas isso o
que restava da antiga paixão que ele tinha por Candy, então seria melhor que os dois se
separassem.

Dominique temia que Tony lhe pedisse para falar com a irmã, que explicasse a ela
que ele amava outra pessoa.

Oh, Deus! E como é que ia fazer isso? Havia se esforçado tanto para que Candice
voltasse a usar as pernas e agora as suas próprias pernas estavam tremendo!

Então viu Tony se aproximando; um ar grave no rosto bem-feito, os cabelos


ensopados de chuva.

– Você veio! – disse ele, entrando depressa no mirante. – Obrigado, Nicky.


– Tony, você está encharcado!

– Isso logo seca. Sabe, eu nem fui olhar Candice, pois temia me atrasar. Ela
almoçou bem?

– Muito bem. – Dominique o observava, enquanto ele tirava a capa e começava a


andar de um lado para o outro.

– Ótimo. Olhe, não sei como começar. Eu já havia ensaiado o que ia dizer a você e
agora... me atrapalhei.

– Só há um lugar por onde começar, Tony: pelo começo. Vamos lá, diga!

– Espero que você não fique chocada com o que vou dizer começou, parando em
frente a ela. – Acho que não é uma história muito bonita.

– Eu não esperava que fosse, Tony – afirmou ela, séria. Ele parecia desesperado e
infeliz, mas Dominique não sentia pena. Apenas conte tudo do modo mais simples. Vou
escutar, mas não prometo uma solução, pois, como já lhe disse, estou do lado de minha
irmã e tenho que considerar o bem-estar dela, não o seu.

– Sim, claro, eu entendo, mas, por favor, não fique contra mim, Nicky. Tente
compreender que homens e mulheres às vezes não controlam seus sentimentos. Nem todos
nós temos a sua disciplina. Eu a admiro por isso.

– Não me considere tão perfeita assim, Tony. Eu só queria que soubesse que, se
defendo Candy, é porque ela é minha irmã, a única família que tenho. E, se estou aqui
agora, é porque desejo acertar as coisas; não quero que ela sofra demais... Candy já sofreu
bastante.

Ele inclinou a cabeça e por seu rosto passou uma sombra de dor.

– Eu não deveria ter me casado com ela, não é isso que está querendo dizer?

– Sei que foi difícil para você, Tony. Ela sentiu, mas já falamos sobre isso... Agora,
seria melhor se me contasse sua história.

– Sim, claro. Não quer se sentar? Acho que este banco está seco.... Venha,
acomode-se aqui. – Passou um lenço sobre o assento e Dominique sentou-se. – Tudo
começou anos atrás – disse ele, apoiando as costas numa pilastra. – Eu ainda não tinha
dezoito anos, e, quando botei os olhos naquela garota... bem, foi como Romeu e Julieta...
Na Itália não é muito comum as mulheres terem cabelos loiros, mas aquela moça tinha, e
eles eram compridos e trançados à volta da cabeça. Os olhos eram cor de mel, os lábios,
cheios e rubros. Era a coisa mais linda que eu já havia visto, e, quando ela olhou para mim,
percebi que também tinha se sentindo atraída. Parecia a mulher da minha vida, mas era
noiva de outro homem... e esse homem era o meu irmão Vittorio.

– Oh, não! – As palavras escaparam antes que ela pudesse segurar.

– Oh, sim! – replicou Tony. – Você já imaginou o tamanho do problema, não? A


linda garota deveria se casar com meu irmão, mas gostava de mim. E não podia ser de outro
modo. Tinha a minha idade e combinava muito mais com o meu temperamento do que com
o de Vittorio, que, além disso, vivia para o trabalho. Mas o casamento dos dois havia sido
combinado muitos anos antes, por nossos pais, e Vittorio ia honrar o compromisso.
Entretanto, ninguém contava com os nossos sentimentos, e eu e Amatrice... Bem, você
pode imaginar o que aconteceu.

– Posso?

A voz de Dominique era calma, mas ela fervia por dentro. Então era isso que ia
escutar? A história da sedução da noiva de don Vittorio por Tony? Talvez os outros
tivessem razão quando diziam que ela não compreendia a profundidade das emoções
humanas. E, pelo olhar de Tony, percebeu que aqueles fatos haviam acontecido ali mesmo,
na Vila Dolorita, e que a tragédia ainda marcava o local e as vidas dos irmãos Romano.

– A gente não conseguia se controlar – dizia Tony, com tristeza. – No começo nos
encontrávamos em segredo e só conversávamos. Amatrice estava na casa de uma tia, em
San Sabina apesar de morar em outra parte da Itália...

– Vicovaro, o lugar das belas mulheres... – interrompeu Dominique.

– Oh, como foi que soube disso?

– Seu irmão mencionou.

– Quer dizer que ele falou Com você sobre Amatrice? Ele contou que...
– Não. – Ela sacudiu a cabeça. – Ele apenas disse que ela era extremamente bonita e
que vinha de Vicovaro...

– Não falou mais nada? Não falou de mim?

– Não, Tony. Duvido que don Vittorio pudesse ser desleal com alguém da família...

– Ah! – gemeu o rapaz, ficando rubro. – Eu não sabia que você dava golpes baixos,
Nicky.

– Talvez não me conheça muito bem. Não foi uma coisa bonita seduzir a noiva de
seu irmão, não é mesmo?

Ele ficou mais vermelho ainda e baixou os olhos como uma criança envergonhada.

Dominique pensou, então, que ele teria sempre aquele ar desprotegido e infantil, e
talvez fosse por isso que as mulheres se apaixonassem tanto. Só que com ela as coisas eram
diferentes, podia ver a fraqueza de caráter por baixo da bela aparência. Ele não era feito do
mesmo material que o irmão.

– Éramos os dois muito jovens, Amatrice e eu. Sei que não é desculpa para o que
fizemos, mas ela precisava de afeto e atenção e Vittorio parecia estar sempre ocupado com
os negócios. Então eu precisei partir para a universidade. Nós dois nos despedimos e
prometemos nos corresponder.

Tony fez uma pausa, olhando com tristeza para a chuva que caía. Dominique
percebeu que devia ser ali, naquele local, que os dois jovens se encontravam.

– E o que aconteceu com ela, Tony?

– Ela teve uma filha minha – disse ele devagar. – Vittorio não me avisou, e acho que
não deixou que ela me avisasse. Ele julgou que, se eu tivesse que assumir a
responsabilidade de uma esposa e uma filha com a idade de dezoito anos, estragaria minha
vida. Providenciou, então, para que Amatrice recebesse todos os cuidados, apesar de ter se
recusado a casar-me com ela, que teve um parto prematuro e, coitadinha, morreu dando à
luz a minha filha. Sim, Nicky, eu tenho uma filha. Tem oito anos e vou visitá-la
freqüentemente. Sei que tanto você quanto Candy pensavam que eu fosse ver uma mulher,
não é?
– Sim... – Dominique estava atônita. – E por que a criança não mora aqui, na sua
casa?

– Ela mora num lar para crianças retardadas – disse ele, com dificuldade. Virou-se
para encarar Dominique, os olhos cheios de dor. – Como se não bastasse a morte de
Amatrice, houve problemas também com a criança. Parece que o parto foi demorado
demais e aconteceu na casa de uma tia, que achou que podia dar conta de tudo sozinha...
Quando, por fim, chamaram um médico, e o parto foi induzido, a criança havia sofrido
traumatismo craniano. Ah, mas ela é tão linda, Nicky! É parecida com a mãe, mas será
sempre criança e talvez também não viva muito. Eu... eu a amo tanto...

De repente, deixando Dominique completamente constrangida, ele começou a


chorar. Num instante, Dominique chegava perto e o confortava.

– Não fique assim – murmurava –, essas coisas acontecem. É triste e é terrível, mas
as crianças merecem nosso amor e gostam de receber carinho. Você já deve saber disso,
não é?

– É verdade – disse ele, respirando com dificuldade. – Ela sempre me reconhece e


voa para os meus braços toda vez que vou vê-la. Mas, quando não estou lá, fica
choramingando o tempo todo... Eu... queria tanto trazê-la para casa, mas como é que posso?
Existe Candy e existe Vittorio... Por favor; diga, o que devo fazer?

Dominique, que já havia trabalhado com crianças retardadas, conhecia bem o


problema e ficou com pena do rapaz. Se, pelo menos, as coisas tivessem sido diferentes...
Bem, mas não adiantava pensar nisso agora. Tony precisava de conforto e carinho.

Ela se aproximou e tocou no ombro dele.

– Tony – disse, baixinho –, você deve contar a Candy.

– Não, Nicky, ela vai se virar contra mim. É muito parecida com Amatrice; precisa
de afeto e atenção. Por diversas vezes disse que queria um filho, e eu neguei. Quando
pensei que ela estivesse grávida, vivia morrendo de medo de que a criança pudesse ser
como Rosália...

– Sua filha é assim por acidente de parto. Se não fosse isso, ela seria perfeitamente
normal.
– Como posso ter certeza disso? – perguntou, uma lágrima ainda escorrendo pelo
rosto.

– Tenho certeza de que o médico lhe disse e o pessoal do lar onde mora Rosália
deve ter confirmado, não é verdade?

– É. – concordou Tony. – Você me diz para contar a Candy... Acha mesmo que ela
compreenderia? Ela é tão moça e esteve tão doente...

– Uma doença causada pelas malditas cartas anônimas que alguém lhe escreveu –
lembrou Dominique. – Você não entende? Ela imagina que você está apaixonado por outra
mulher, esse é o problema. Ela o adora e não sabe que você sai de casa para visitar sua
própria filha! Você precisa lhe contar sobre Rosália, Tony! Pelo bem das duas.

– Será que você não podia fazer isso?

– Não, não posso – disse ela, com firmeza. – Você não deve ficar a vida toda se
escondendo atrás das pessoas, Tony. Tenho certeza de que Candice vai querer cuidar de
Rosália. Sei que minha irmã parece frágil e dependente, mas é porque todo mundo sempre a
mimou demais. Ela está precisando ter alguma responsabilidade séria na vida.

– Como é que pode dizer isso de sua própria irmã?

– É a verdade, Tony. Você mesmo disse que ela se parecia com Amatrice, e
Amatrice não era assim como uma borboleta, voando sob a luz do sol, sem se importar em
namorar você, mesmo estando noiva de don Vittorio? Você sem dúvida assumiu a culpa de
tudo que aconteceu, mas uma criança não nasce se a mulher não acompanha o homem. Seu
irmão sabia disso... e por essa razão não se casou com ela. Você não pode se esquecer,
Tony, de que seu irmão foi educado num colégio de padres, criado dentro de normas rígidas
sobre o que é certo e errado, e por isso às vezes pode parecer severo demais. Imagino que
ele também tenha sofrido, ao ver que a menina tinha problemas... Não duvido nada disso.

– Você acha? – disse ele, pensativo. – Ele nunca sugeriu que eu trouxesse Rosália
para morar aqui...

– Você já perguntou a ele?

– E como é que eu podia?


– Se tivesse perguntado, provavelmente veria que ele ficaria feliz em receber a
criança. Mas, como nunca falou nada, seu irmão deve ter pensado que você preferia assim.

– Talvez... Mas Rosália se parece tanto com Amatrice, o mesmo cabelo e a mesma
cor de olhos, que eu achei que ele fosse se sentir constrangido com a presença da filha da
mulher com quem ia se casar. Vittorio é muito orgulhoso.

– Mas acho que também é muito bondoso – murmurou Dominique. – De qualquer


forma, o importante, agora, é você ser franco com Candice. Ela precisa saber que não existe
outra mulher, e sim uma criança que precisa do amor do pai.

– Você acha mesmo que ela vai entender... e perdoar? – perguntou ele, enquanto
segurava Dominique pelos ombros e olhava fundo nos olhos dela. – Acha que ela não vai
ficar ainda mais aborrecida comigo?

– Candy pode ficar meio desapontada ao descobrir que você não é o anjo que ela
imagina, mas tenho certeza de que o ama demais e quer o seu amor acima de tudo.

– Eu teria me casado com Amatrice se tivesse sabido de tudo, mas Vittorio a proibiu
de me escrever. Ele pretendia entregar a criança para ser adotada e depois devolver a moça
aos pais, como se apenas tivesse brigado com ela e desfeito o casamento. Mas as coisas
saíram erradas...

– Como foi que você ficou sabendo da criança? – quis saber Dominique. – Vittorio
lhe contou que Amatrice morrera no parto?

– Não. Foi Malvina quem me contou. Eu fiquei horrorizado, furioso por Vittorio
não ter me contado. Nós tivemos uma briga terrível, mas acabamos fazendo as pazes.
Vittorio entendeu que eu precisava me manter em contato com Rosália; ela estava naquele
lar por minha causa, e eu não podia simplesmente me esquecer dela. Às vezes a levo ao
circo, pois ela adora os palhaços e os elefantes, e depois tomamos sorvetes. Sabe, a
aparência de Rosália é a de uma criança normal, mas ela é muda e surda. Por isso gosta
tanto dos palhaços, porque entende as brincadeiras deles. Ah, se Candice quisesse ficar com
ela, cuidar dela como mãe... Mas como é que posso ter certeza? Candy quer ter filhos e
pode não aceitar minha filha com outra mulher.
– É verdade, Tony, isso pode acontecer. Mas você precisa falar com ela, contar-lhe
tudo.

– Nicky, você ficou chocada?

– Fiquei surpresa, só isso. Minha profissão me ensinou a enfrentar a realidade, por


mais dura que pareça. A vida parece cheia de regras, mas sempre existe gente para quebrá-
las, não acha?

– Você já quebrou muitas? – perguntou ele, sorrindo, como se não pudesse acreditar
que ela já tivesse feito isso.

– Só algumas, muito pequenas, mas não me considere uma santa, Tony. É que uma
pessoa como eu quase não sofre tentações, sabe? Por isso não posso julgar você, Amatrice
ou mesmo seu irmão, que condenou o comportamento de vocês. – Dominique parou,
pensativa, e depois continuou: – Talvez ele não a amasse o bastante... ou então a amava
demais...

– Quem pode saber? Eu nunca pude compreendê-lo muito bem. Somos irmãos, mas
temos temperamentos diferentes... como você e Candy. Se o pai de uma criança surda-
muda fosse casado com você, nunca iria ficar preocupado... Seus olhos brilham de caridade,
Nicky.

– Sem dúvida – disse ela, meio seca. – Sou uma pessoa muito chata e muito severa,
e nem sempre achei bom ver Candy ganhando todas as atenções... A Coruja e a Gatinha, era
como as crianças nos chamavam no convento. Eu tinha sempre a cara metida num livro,
enquanto Candy vivia agradando todo mundo. Só tem uma coisa, Tony: será que seu amor
vai ser bastante grande para envolver Candy e Rosália? E se for preciso escolher, com
quem você vai ficar?

– Eu não quero que as coisas cheguem a esse ponto! – gemeu ele. – Eu quero as
duas, mas... mas não sei o que farei se Candy não aceitar minha filha. Nicky, não seria
melhor se você falasse com ela e explicasse como gosto dela, mas como também gosto da
minha filhinha? Por favor, faça isso... Explique as coisas com seu modo calmo e ela não vai
ficar nervosa... como aconteceu com as pérolas! Nós nos descontrolamos, Candy caiu e...
e...
Tony estava tão aflito que apertava Dominique com mãos de aço.

– Tony... cuidado! Está me machucando!

– Por favor! Não sei mais o que fazer! Candy não é como você, calma e serena, e sei
que, se eu começar a falar, vai ficar tudo errado. Quando se ama alguém, as emoções fazem
a gente perder o controle e no fim acabar falando coisas erradas. Esse é um caso muito
delicado, não concorda?

– Sim – disse a moça, suspirando. Pelo jeito, as pessoas apaixonadas não confiavam
em suas próprias emoções, pareciam viver sempre no meio de seu fogo interno, sempre
correndo o risco de se queimarem... O amor podia ser êxtase ou tormento, mas nunca uma
coisa simples e fácil. – Então eu vou ter que defender sua causa... – disse ela, encarando o
rosto atormentado do rapaz. – Mas creio que isso não vai adiantar muito. Vocês dois terão
que se enfrentar e resolver o caso. Eu não vou estar sempre aqui...

– Mas não vá embora logo!

Em sua ansiedade por mantê-la como aliada, Tony puxou-a para si e, naquele exato
momento, uma voz disse, áspera:

– Será que você está aprontando outra vez, meu irmão? Está usando novamente o
mirante para encontros furtivos?

Assustado, Tony apertou-a ainda mais. Dominique não sabia o que dizer.

– Largue Dominique! – A voz era baixa e ferina. – A não ser que queira que eu
quebre seus ossos um a um!

De repente, com violência, Tony virou-se para enfrentar o irmão, e a atmosfera no


mirante pareceu carregada de um perigo iminente. Dominique nunca havia presenciado
uma coisa daquelas... Era como se os dois estivessem prestes a se engalfinhar, numa luta de
vida ou morte, e, para tentar impedir, ela se meteu no meio dos dois, colocando a mão no
peito de don Vittorio.

– Não faça isso! – gritou.

– Saia daqui! – disse ele, furioso, e a empurrou para o lado.


Dominique tropeçou e isso enfureceu Tony, que largou um murro na direção do
irmão. Don Vittorio evitou o golpe e atingiu Tony com um soco que o mandou longe, o
sangue escorrendo de um corte no lábio. Instantaneamente ele estava em pé, cuspindo
sangue e xingando.

Lutavam enquanto Dominique ficava ali, parada e horrorizada. O barulho dos socos
era terrível e ela só queria gritar.

– Parem com isso! Será que ficaram loucos?

Tentou novamente segurar Vittorio, e desta vez acabou ganhando um soco violento
no queixo. Saiu cambaleando e se estatelou no chão, sentindo a dor explodir pelo corpo
inteiro. E, apesar de saber que estava no chão, sentia como se ainda estivesse caindo...
caindo num buraco escuro.

– Santo Deus! – escutou alguém dizer ao longe, e sentiu que mãos fortes a
levantavam... Depois mais nada.

Sua cabeça pendeu e ela ficou largada, como uma boneca de pano, nos braços de
Vittorio Romano.

Dominique voltou a si com uma tremenda dor de cabeça, o rosto doendo e a


garganta seca. Soltou um gemido ao sentir um copo junto aos lábios e o gosto de suco de
laranja. Bebeu avidamente o suco, que lhe refrescava a garganta.

Abrindo os olhos, assustou-se ao ver que quem a ajudava, apoiando seu corpo e
segurando o copo, era o mesmo homem que a havia atingido com um murro.

Olharam-se. Ele parecia meio perdido, sem saber o que dizer. Dominique sentia o
maxilar dolorido e, com cuidado, explorou o interior da boca com a ponta da língua,
soltando um gemido de dor. Escutou quando don Vittorio soltou um palavrão em italiano.
Aliás, um belo palavrão.

– A empregada já foi buscar gelo, e você vai sentir menos dor... Está doendo, não? –
Ela fez que sim e ele a deitou nos travesseiros, um ar preocupado no rosto. – Acha que vai
precisar de um médico? Meu Deus, quando você caiu, pensei que estivesse morta... Por que
teve que se meter daquele jeito na briga?

– Vocês dois... – ela murmurou, apesar da dor – tinham a intenção de acabar um


com o outro!

– Talvez – disse ele, sério, e Dominique reparou num ferimento em seu rosto. – Foi
porque vi você com ele, ali... Já sabe sobre Amatrice, não é?

– Sim, e também sobre a menina.

– Ah, sim, a criança... – O rosto moreno ficou sombrio, enquanto ele banhava as
faces de Dominique com água gelada. – Está se sentindo melhor? – perguntou, tirando uma
mecha de cabelo dos olhos da moça. – Você fez uma bobagem muito grande, Dominique;
meu punho poderia ter atingido seus óculos e machucado seus olhos.

– Onde estão meus óculos?

– Você não está precisando deles agora.

– Mas eu nunca enxergo direito sem eles.

– Eu é que não estava enxergando direito... Mas Tony a segurava e eu apenas pensei
que a história estava se repetindo.

– Amatrice era linda... Eu dificilmente atrairia seu irmão. Ele estava apenas me
pedindo conselhos sobre a criança. Gostaria que Candice a aceitasse. E quer que você faça
o mesmo, apesar de saber que é difícil. Por ser parecida com a mãe, ela estaria sempre lhe
recordando Amatrice...

Don Vittorio encarava Dominique em silêncio.

– Acredita que foi por isso que nunca sugeri a Tony que trouxesse a menina para
cá?

– E não foi? – Ela se sentia indefesa perto daquele homem de ombros largos e das
lembranças que via queimando nos olhos dele. – Seria muito natural que se sentisse assim...

– Natural? – E ele levantou as sobrancelhas negras. – Acha que meu pobre coração
se partiria novamente?
– É... é que ia se casar com Amatrice, e ela...

– Ela fez amor com meu irmão, não é?

– Deve ter sido um golpe para seu orgulho.

– Só para o meu orgulho?

– E para seus outros sentimentos...

– E quais eram esses sentimentos, Dominique? – E aproximou-se mais, apoiando os


dois braços ao lado do corpo dela, deixando-a mais inibida ainda.

– Ia se casar com ela, então... então devia estar apaixonado...

– Que suposição romântica! Eu tinha a impressão de que você achava os casamentos


arranjados uma coisa muito pouco romântica, sabe? Posso saber de onde surgiu essa idéia
de que eu devia estar apaixonado pela minha noiva?

– É que... é que nunca mais se preocupou em arranjar alguém que a substituísse... –


Dominique passou a língua pelos lábios inchados e pediu: – Será que posso tomar mais um
pouco de suco? Minha boca está doendo demais...

– Demônios! – resmungou ele, levantando-se e pegando o copo. – Venha! –


Levantou a moça, o braço firme apoiando-lhe as costas. – Meu Deus, você parece que pode
se partir ao meio! Substituir você perguntou? Substituir aquela prostituta?

As palavras atingiram Dominique como se fossem ferro em brasa, mas ela não
conseguiu afastar os olhos dos dele. Parecia hipnotizada por aquele cinismo cruel.

– Sinto muito – murmurou...

– Sente? Não teria sido muito pior se eu tivesse me casado com Amatrice e depois
ela se revelasse infiel?

– Imagino que sim. Obrigada, já bebi o suficiente.

Ao colocar o copo de lado, Vittorio deu um leve sorriso.

– Pelo jeito, já recebeu também o suficiente de todos nós. Quando assumiu a tarefa
de cuidar de sua irmã, não imaginava ficar envolvida num problema familiar, não? Eu me
lembro de que chegou a pedir para ser tratada como uma enfermeira, e não como uma
parenta, mas nossas decisões e vontades muitas vezes fogem do nosso controle, como se
alguma força superior mexesse os pauzinhos... A vida é assim, nem sempre é bem
arrumadinha, entende?

– Sim, entendo.

– E no fim você acabou envolvida nesse drama familiar! E agora vem me dizer que
Tony quer assumir realmente o papel de pai. É verdade?

– Sim. Acho que ele está sendo sincero e que gosta da filha, mas não quer perturbar
nem Candy nem... você.

– Foi pena que ele não pensasse assim, antes de causar o nascimento da menina –
retrucou don Vittorio, os lábios numa linha dura e cínica. – Ele bancou o aventureiro,
Amatrice acabou morrendo e a coitadinha da Rosália nasceu... Tony lhe contou que ela é
muda e vai ser sempre infantil?

– Sim, ele me contou tudo.

– E você não ficou chocada?

– Senti muita pena de todos...

– É muita bondade sua, Dominique. Eu pensei que, com suas idéias, você
condenaria todo mundo.

– Acredito não ser assim tão cheia de preconceitos – protestou Dominique, sentida.
– Os dois eram muito jovens e deixaram que as emoções tomassem conta. Poderia
acontecer com qualquer um...

– Até com você?

Ela ficou vermelha.

– Não precisa ser sarcástico! Já recebi o suficiente de sua parte, sem...

– Você está sempre me acusando de ser sarcástico.

– Porque é mesmo – disse ela, indignada. – Você odeia as mulheres só porque uma
o abandonou. Eu não tenho culpa por Amatrice tê-lo traído... De acordo com o que Tony
me disse, você estava sempre muito ocupado com os negócios e não ligava muito para ela,
que, por ser tão mocinha, pode muito bem pensar que não era amada e por isso procurar
esse amor em outra pessoa.

– Uma bela filosofia, não acha? Foi isso que aprendeu no convento?

– Oh... – Dominique fechou os olhos, aborrecida. – Estou cansada demais para ficar
discutindo. Você sempre acha que sabe tudo. Foi por isso que Tony veio me pedir
conselhos. Eu não pretendo saber todas as respostas e o avisei de que talvez Candy não
queira ser mãe da filha de outra mulher.

– Por que Candice não é como você, não? Você não se incomodaria de criar uma
criança assim, não é verdade?

– Não, eu não me incomodaria – respondeu ela, cansada. – Ninguém me ama, por


isso acho que sei como o amor faz falta. Candice não precisa de mais nada, além de sua
beleza, para conseguir quem goste dela. Se ela brigasse com seu irmão, logo apareceria
outro homem para cortejá-la.

– É isso que acha? Mesmo? – De repente, as mãos de don Vittorio estavam nos
ombros dela, e ele a levantava dos travesseiros, encarando o rosto pálido. – Responda!

– Eu... eu geralmente digo o que penso.

– Santo Deus! Existe muito mais beleza dentro de você do que daquela sua irmã tão
linda, mas tão superficial! Por isso, pare de se achar uma espécie de patinho feio! Candice é
apenas mais uma loira bonita, que acha que todos os homens devem admirá-la. Quando viu
que Tony precisava dividir seu afeto, ela se jogou naquela cama e tomou-se uma paralítica
histérica! Você sabe disso! Admita!

– Está me machucando! – protestou Dominique, sem conseguir conter as lágrimas. –


Parece que tem prazer em me machucar...

– Vou ter prazer em estrangulá-la, se não admitir que estou certo!

– Oh, deixe-me sozinha... – disse ela, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Não estava
habituada a chorar na frente de ninguém, ainda mais perto de um homem arrogante como
aquele. Mas não se conformava com o fato de que todos abusavam dela quando queriam
desabafar. – Eu também sou gente! Tenho sentimentos, mas parece que ninguém liga para
eles!

– Bem, esse desabafo provou uma coisa, Dominique. Provou que você é uma pessoa
de carne e osso – disse ele, olhando para a moça, como se lhe desse satisfação vê-la chorar,
ver aquela eficiência toda se dissolver em lágrimas. Deixou que ela se aliviasse, que
soluçasse bastante até se acalmar e largou-a novamente sobre os travesseiros, limpou-lhe o
rosto e a cobriu. Dominique já estava quase dormindo.

– Durma bem – disse ele, e estava se afastando quando ouviu uma vozinha fraca.
Era Dominique que, no meio do sono, pedia:

– Está tão frio e escuro, papai... Papai, não vá embora, por favor!

Don Vittorio ficou ali, pensativo, escutando o relógio bater as horas, uma gaivota
grifar e as ondas lá embaixo baterem nas rochas.

Dominique não acordou quando ele a tomou nos braços fortes e a protegeu do sonho
mau, do tempo em que o pai a abandonara com as freiras e fora embora. O sonho e a
realidade se mesclaram e, com um suspiro de alívio, ela se ajeitou nos braços dele.

– Papai, você não foi embora?

– Não, minha querida.

– Estou tão contente...

E ela dormiu calma e profundamente, nos braços de Vittorio Romano.

Capítulo VIII

Dominique levou a carta para a praia e leu mais uma vez o trecho que pedia que ela
negasse ou admitisse que estava levando uma vida imoral com o homem que a empregava
como enfermeira.
A carta tinha vindo do Convento de Santa Anselma.

Deixou o papel cair na areia e apertou o rosto com as mãos.

Estava cheia de dúvidas, mas, de repente, como num clarão, tudo se esclareceu. Não
duvidava mais de que havia escutado don Vittorio saindo de seu quarto na manhã seguinte
ao acidente. Lembrava-se vagamente de algumas coisas, como dos comentários
desagradáveis que ele fizera e do pranto que havia tomado conta dela. Depois caíra no sono
e tudo o mais foi uma mistura de sonho e realidade. Tudo, menos a figura de don Vittorio
saindo do quarto ao amanhecer.

Mas, como ele não comentara coisa alguma, Dominique tirara aquilo da cabeça.
Afinal, não era possível que tivesse ficado tão preocupado com ela que chegasse a arriscar
sua reputação! Mas ele se arriscara, e isso aborreceu Dominique. A carta vinda da
Inglaterra confirmava que alguém o havia visto e passara a informação para as irmãs, em
forma de uma venenosa carta anônima.

Não era a primeira vez que alguém de Vila Dolorita mandava uma cinta assim.
Dominique só podia pensar numa pessoa que tivesse coragem de fazer uma coisa daquelas.
Teria uma conversa com don Vittorio sobre o modo de esclarecer tudo e limpar seu nome.

Ficou sentada na areia, sozinha, pois Tony havia levado Candice para dar uma volta.

Candy melhorara muito nas últimas semanas, mas Dominique ainda não se atrevera
a falar sobre a filha de Tony. Era um assunto muito delicado e ela queria que a irmã
estivesse em ótima forma, antes de falar sobre Rosália. Esperava que Candice aceitasse
cuidar da criança, mas sabia que isso era difícil. Agora, que já estava bem melhor, ela
estava falando seriamente em abrir a tal escola de dança.

Dominique não sabia como uma criança deficiente iria se encaixar naquele tipo de
vida. Rosália iria precisar de muita atenção e de muito amor, e ela não achava que Candice
pudesse se dedicar tanto a uma filha adotiva. Aliás, achava que a irmã não se daria daquela
forma a filho nenhum, mesmo que fosse legítimo..

O problema de Tony era realmente sério. Além de tudo, o esgotamento nervoso que
Candy tivera demonstrava que ela não possuía muito autocontrole.

Dominique suspirou fundo. Tinha vontade de fugir de tudo aquilo.


Levantou-se da areia e correu para a água, começando imediatamente a nadar, para
se esquecer dos problemas. Só que, apesar de ter largado a carta na areia, as palavras nela
contidas ainda lhe queimavam o coração.

Nadou até ficar cansada e resolveu voltar. Quando saía da água, reparou que alguém
a esperava na areia, e só não tornou a mergulhar porque foi segura pelo pulso. Levantou o
olhar e perguntou, amargurada:

– Por que ficou no meu quarto naquela noite? Por que teve que fazer uma coisa tão
louca?

Vittorio a encarou, sério.

– Eu não imaginei que você fosse desconfiar. Dormiu tão profundamente, que nem
se mexeu a noite inteira.

– A noite toda? – repetiu ela. – Como se atreveu? O que estava pensando? Será que
não sabe que foi visto?

– Ah, então é isso? Alguém lhe disse alguma coisa?

– Alguém escreveu ao Convento de Santa Anselma e me acusou de ser sua... –


Mordeu o lábio e terminou: – Você sabe o quê.

– A palavra é amante – disse ele, seco. – E quem é essa pessoa? Como você sabe
disso?

– Como é que eu sei? – indagou, apontando para a areia. – Recebi uma carta da
madre superiora. Está ali, no bolso da minha saída de praia. É melhor que leia.

– Então venha também – retrucou ele, levando-a consigo. E depois, em silêncio, leu
a carta. – Bem, existe um remédio para tudo isso. Se você fica tão preocupada em ser
descoberta com um homem em seu próprio quarto, é melhor que eu faça de você uma
mulher honesta.

– Eu... eu simplesmente acho que você ficou maluco! – exclamou ela.

– Acho que você tem razão – concordou ele, os olhos fixos nas curvas que o maiô
molhado deixava à mostra e que habitualmente estavam escondidas sob a roupa sóbria. –
Mas pense no assunto, Dominique. Se gosta de se sacrificar e se com um homem a quem
diz odiar, então faríamos um ótimo par. Pense no que seria sua vida comigo....

– Não! – disse da, afastando-se, apavorada. – Acha que isso é uma brincadeira?
Ouça, alguém mandou uma carta anônima para o convento, mentindo e falando mal de
mim!

– Mas o que a deixa mais preocupada é o fato de as pessoas poderem pensar que
você é uma pessoa normal, com necessidades normais. Estou certo?

– Você está sendo extremamente desagradável. Devia estar tão furioso quanto eu,
pelo fato de alguém ter escrito uma carta mentirosa sobre nós dois. Você é um homem
respeitado em San Sabina, o que as pessoas dirão, se souberem que foi visto saindo do meu
quarto? Elas sempre pensam o pior, não é? É da natureza humana.

– É verdade, Dominique. É humano e natural que as pessoas pensem que um


homem e uma mulher façam amor quando estão sozinhos num quarto, especialmente se
nele há uma cama. Diga-me uma coisa: será que se sentiria melhor se na verdade eu tivesse
feito amor com você?

– O que é isso? Como ousa?

– Sabe de uma coisa – disse ele, ignorando-a. – Acho que nunca vi olhos tão
grandes quanto os seus. Tenho a impressão de que, se chegar mais perto, cairei dentro
deles. É como se fossem poços profundos, que levam para dentro de você.

– Oh, por favor... Não, fale assim... desse jeito estranho. Temos que ser práticos;
tenho que pedir-lhe que escreva pessoalmente para a madre superiora, dizendo a ela que só
ficou em meu quarto porque eu sofrera... bem, sofrera um pequeno acidente, e porque
estava preocupado comigo. Ela tem que acreditar.

– Ela “tem” que acreditar, Dominique?

– Bem, foi por isso que ficou em meu quarto, não foi?

– Foi?

– Claro! Por que mais iria se incomodar?

– Na verdade, por quê?


– Então, vai escrever a carta?

– Quer mesmo que eu escreva?

– Sabe que sim.

– Prefere isso a aceitar minha proposta?

– Sua proposta?

– Você me ouviu fazê-la.

– Oh, mas estava caçoando,de mim...

– Estava coisa nenhuma!

Dominique encarou-o, com firmeza.

– Não fale bobagens! Eu não iria querer que me propusesse casamento só porque
passou uma noite a meu lado. Não é preciso, nós não vivemos na Idade Média e... e ambos
sabemos que não aconteceu nada naquela noite.

– Não naquela noite, Dominique, mas está para acontecer a qualquer momento. Não
vou deixar essa sua bem guardada virgindade durar mais tempo!

Rápido e ágil como um tigre, ele a tomou nos braços com violência, o rosto moreno
bem perto do dela.

– O que... o que está fazendo?

– Se não sabe, Dominique, então sua educação não foi tão completa assim. O que
acha que estou fazendo?

– Está agindo errado... Não faça isso!

Ele a beijava no ombro, empurrando o maiô com o lábios.

– Mas não gosta do que estou fazendo? – murmurou ele. – Você tem uma pele tão
macia... Já era tempo de um homem poder tocá-la assim.

Ao sentir os lábios, quentes e macios sobre sua pele e as mãos dele apertando-a
contra o vigoroso corpo masculino, Dominique teve novamente aquela sensação parecida
com dor, só que extremamente agradável, nas profundezas do seu ser, e queria gritar: “Oh,
Vittorio, beije-me... beije-me e não pare nunca mais! Toque em meu corpo todo e me ame...
me ame!”

Mas as palavras não saíram. No entanto, isso não impediu que ela sentisse um
delicioso torpor afetando sua mente, seus ossos e todos os seus nervos, que Vittorio acendia
cada vez mais com beijos.

– Por favor, não! – implorava ela. Sabia que ele fazia tudo isso não porque sentisse
desejo, mas apenas para acordar-lhe os instintos adormecidos. Já se conformara em não ser
desejada e, naquele momento, queria odiá-lo, mas seu corpo se rebelava contra isso. Sentia,
cada vez mais fortes, seus impulsos sexuais. – É crueldade o que está fazendo comigo –
protestava. – Pare, por favor...

– Seus lábios me pedem para parar, mas seus olhos contam uma história diferente.
Seus olhos me chamam, e eu quero penetrá-los, bem lá no fundo, onde nenhum homem
ainda se atreveu a entrar. Acredito que encontrei uma região de calor e amor inflamado...

– Não... não fale assim! – Dominique lutava por se afastar dele, mas não conseguia.

– Não gosta de ouvir? – sussurrava ele em seus ouvidos, enquanto mordiscava-lhe


as orelhas.

– Eu não suporto escutar suas palavras! – disse, e virou rapidamente a cabeça, mas
ele começou a beijá-la no pescoço. Ah, tinha que descobrir um meio de parar com aquilo!
Tentou fechar os olhos, mas isso intensificou as sensações estranhas que a faziam derreter-
se por dentro. – Sabe que não está se portando como um cavalheiro?

– Nesse instante, sei que não... Não vire o rosto, beije-me!

– Não... não vou fazer isso...

– Vai me beijar sim, e vai gostar! – Os olhos dele; a dominavam e seus braços a
mantinham presa. – Se agora não vai mais poder ser freira, então terá que aprender a viver
num mundo real. Terá que deixar de ser tão reprimida!

– Não sou nada disso!

– Minha jovem, você é reprimida dos pés até a ponta dos cabelos. – E percorreu-a
com os olhos, como se a deixasse nua. Acha que eu não percebo?
– Oh, tenho certeza de que sabe de tudo em relação às mulheres – disse ela,
inflamada –, mas foi uma pena que não tenha aplicado esse conhecimento em sua noiva. Se
o tivesse feito, ela não precisaria apelar para seu irmão... – As palavras terríveis escaparam
num impulso e Dominique foi invadida por uma enorme onda de vergonha.

Vittorio ficou imóvel e em silêncio. Por fim, disse:

– Isso não foi uma, coisa bonita, Dominique. Eu pensei que você fosse quase um
anjo, mas é tão diabólica quanto qualquer outra mulher.

– Sinto, muito...

– Sente pelo que disse, ou pelo fato de descobrir que é gente de carne e osso, não
uma santa de gesso?

– Nunca pretendi ser uma santa...

– Mas podia ter me enganado, garota...

– Quer dizer que eu parecia puritana?

– Muitas vezes.

– Imagino que fosse uma espécie de defesa – disse, conseguindo engolir um começo
de choro. – É que não adiantava uma moça como eu querer me comportar como Candice,
não é? De qualquer modo, esta enfermeira puritana gostaria que o senhor a largasse.

– Santo Deus, vai começar novamente? – E desta vez ele estava com raiva, os olhos
brilhando ao abraçá-la com força e recomeçar a beijá-la, até que ela estivesse outra vez
dominada pela chama do desejo escondido no fundo de seu ser.

De repente viu-se deitada na areia, ao lado daquele homem que a acariciava, a


beijava, e não queria mais que ele parasse. Dominique cobriu-o de beijos e queria que ele a
possuísse ali mesmo.

Um ruído forte sobressaltou-os. Em segundos, os dois estavam completamente


encharcados.

– Demônios! – disse, Vittorio, e de repente começou a rir. Uma onda havia


desabado sobre eles, afogando a intenção ardente e deixando-os ali, completamente
molhados. – Os anjos acharam melhor apagar nosso fogo por enquanto, meu amor! – disse
ele, com um brilho maroto no olhar

A maré subia depressa; e ele ajudou-a a levantar-se. Dominique recuou, assustada.


A onda gelada havia lavado seu desejo intenso.

– Eu... eu nunca vou perdoá-lo! – dizia, tentando se afastar das mãos de aço que
ainda a seguravam. – Não tinha o direito de me obrigar a agir daquele jeito!

– Eu a obriguei a me beijar, Dominique? Eu a forcei a me abraçar, a passar as mãos


em meus cabelos, a me acariciar?

– Maldito! – Lágrimas brilhavam nos olhos da moça. – Eu não queria sentir esse
tipo de coisa... O que adianta, para uma pessoa como eu?

– Como você me deixa zangado, criança, quando se refere a si mesma desse modo!
Que diabos, você está obcecada pela idéia de que só uma mulher como sua irmã pode ser
amada? O que será que ela tem de tão precioso?

– Ela... – As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. – Ela é linda e desejável... e eu não
sou nada disso. Oh, por favor, pare com o que está fazendo comigo! Dói... dói demais ser
ridicularizada.

– E acha que é isso que estou fazendo? Eu podia quebrar-lhe o pescoço por dizer
uma bobagem tão grande!

– Então vá, adiante e faça isso! – Ela encarou-o nos olhos, as pestanas ainda
molhadas. – Termine o que começou, vamos! Aposto que deixou que o vissem sair de meu
quarto de propósito, para eu não poder mais ir embora e ficar aqui, como o capacho de todo
mundo... Oh!

Dominique se interrompeu com um grito de dor, pois os dedos dele a apertavam


com muita força.

– Como se atreve a dizer uma coisa dessas? – Os olhos negros brilhavam, furiosos,
enquanto a água já lhes batia nos joelhos. – Eu não ia querer uma solteirona azeda como
você na minha casa! Parece que está afogada no ciúme que sente por sua irmã... E quer
saber por quê? Porque também inveja a beleza de Tony e o deseja!
– Pode ser – respondeu ela, louca da vida. – Pelo menos ele não é arrogante como
você! Não me admira que sua noiva o tenha trocado por Tony! Eu posso entender por que
ela preferia estar com ele, sabe? Com certeza ele lhe dava o carinho de que precisava...
Coisa que algumas mulheres gostam de ter!

– Você fala como uma personagem de fotonovela. As mulheres gostam de paixão,


de serem possuídas, se são honestas com elas mesmas. Seja honesta, Dominique Davis, e
admita que sentiu a maior emoção de sua vida quando esteve deitada comigo na areia!
Admita que nem pensou no convento, enquanto murmurava palavras doces em meus
ouvidos! Ande – continuava ele, sacudindo-a com certa violência – confesse que pecou ao
sentir os desejos normais de uma mulher que quer se entregar a um homem! Era isso que
queria, se entregar a mim...

– Não! – Ela continuava negando, e sentia que uma faca a cortava por dentro. –
Você abusou de mim... é mais forte do que eu e não consegui escapar.

– Essa, minha querida, é uma mentira. – Havia uma enorme ironia nos olhos dele. –
Não sou um santo e sei quando uma mulher está prestes a se atirar nos, braços de um
homem. Ora, você não estava tão tímida assim, deitada comigo ali na areia, deixando que
eu fizesse tudo que queria...

– Por favor – os lábios de Dominique tremiam –, não jogue isso no meu rosto... Se
quis provar que posso ser uma pessoa vulgar, já conseguiu o que queria. Talvez agora tenha
provado a si mesmo que todas as mulheres podem ser como Amatrice, que nenhuma é um
anjo! Tenho certeza de que nunca pretendi ser isso, mas aprendi muito cedo a não me
interessar por homem nenhum e me conformei. Agora, será que não é melhor irmos
embora, antes de nos afogarmos?

– Dominique! – A ironia havia abandonado o rosto dele, que agora parecia meio
estranho, até triste. – O que posso dizer?

– Acho que já dissemos tudo o que tinha que ser dito. Vou arrumar minha bagagem
e vou embora. Minha irmã já está quase boa. Não sei o que fará em relação à filha de Tony,
mas os dois têm que resolver isso sozinhos. Eu preciso trabalhar; pelo menos tenho isso
para fazer.
As mãos de Vittorio não a apertavam mais e ela se afastou, pegou suas coisas e
dirigiu-se para os degraus de pedra, sentindo um conflito de emoções como nunca
imaginara fosse possível acontecer.

Não que não quisesse amar... Mas o amor machucava demais, se as pessoas não se
aceitassem exatamente como eram. Chorando, ela acabou correndo em direção à casa.

Ao entrar no quarto, olhou longamente seu reflexo no espelho do guarda-roupa.


Tirou os óculos da bolsa e os colocou.

Aprenda outra lição, disse para si mesma. Ninguém ama você, por isso pare de
pensar em don Vittorio. Você sabe que o que aconteceu na praia não significou nada para
ele. Aceite isso e volte para a Inglaterra. Lá é que é seu lugar, Dominique Davis!

Pensando nisso, tomou banho e se vestiu, voltando a sentir-se melhor com o vestido
azul, simples, e com os cabelos presos novamente. Candice e Tony já deveriam estar de
volta e ela poderia dizer a eles que seu trabalho ali já havia terminado e que iria embora.

Foi procurá-los e os encontrou tomando chá no salão. Com eles estava uma
garotinha loira, de vestido branco e fita vermelha nos cabelos. Dominique parou na porta,
olhando para a irmã, sentada no sofá, ao lado da criança. Não conseguia acreditar no que
estava vendo.

– Nicky, venha aqui! – Tony levantou-se e veio em direção a ela, sorrindo. –


Aceitamos o conselho de Vittorio e fomos buscar Rosália esta tarde. Meu irmão achou que
eu devia dizer tudo a Candy, e não jogar a responsabilidade sobre você. No fim, ele tinha
mesmo razão. Candy concordou que Rosália more conosco. Não é formidável?

– Sim! – Dominique desejava de coração que Candy tivesse sucesso cuidando da


garotinha. – Oh, estou tão contente! – disse, aproximando-se e beijando a irmã no rosto. –
Parabéns, Candy! Será que posso beijar Rosália também?

Olhinhos escuros a encararam, sérios. Depois, a menina levantou os braços e a


abraçou com força. Por um segundo, uma pequenina chama de ciúme brilhou nos olhos de
Candy, mas Dominique ficou satisfeita. Aquilo queria dizer que ela já se sentia possessiva
em relação à filha de Tony, o que era um ótimo sinal.
Aceitou uma xícara de chá e deixou escapar, no meio da conversa, que ia embora.
provavelmente no dia seguinte.

– Nicky, você não pode ir! – protestou Candy. – Nós, Tony e eu, queremos que
fique aqui.

– Minha tarefa já terminou – disse Dominique, com simplicidade. – Vim para cá


como sua enfermeira e, agora que já está melhor, preciso retomar minha própria vida.

– Tony! – Candy apelava para o marido. – Diga a ela que não pode ir,
principalmente se for para vestir aquelas roupas horríveis e passar o resto dos dias sendo
uma santa...

– Mas se é isso que ela quer... Não podemos dirigir a vida dela, querida.

– Acontece que não vou mais entrar para o convento.

Dominique assustou-se com as próprias palavras. Não sabia, até aquele momento,
que havia resolvido não contestar as acusações da madre superiora. Achava que parte dessa
decisão tinha sido tomada na praia, onde aprendera coisas novas sobre si mesma, coisas que
sempre preferira ignorar.

Sempre havia reprimido seus desejos porque nunca encontrara um parceiro, mas
naquele dia tinha desejado, com todas as fibras de seu ser, ser amante de Vittorio Romano.

Ele não a queria, mas havia mostrado a ela que não podia ser freira. Dominique
agora amava o italiano alto e moreno, e não podia renunciar àquele amor para entrar num
convento.

– Que bom! – estava dizendo Tony. – Se não se importa que eu diga,


Dominique..você não merece a vida do claustro. É uma pessoa doce demais. Precisa
encontrar um homem e se casar com ele. Eu recomendo o casamento.

– E quem iria me querer? – Dominique levantou-se, sem notar que o sol da tarde
iluminava seus cabelos e realçava suas formas suaves. – Vou subir e começar a arrumar
minhas coisas. E estou muito feliz com a solução do problema de Rosália. Acho que ela vai
ser como uma bênção para vocês dois.
Saiu do salão e fechou a porta, deixando atrás de si três pessoas que haviam se
encontrado e que iriam viver, dali para a frente, com amor e tolerância.

De repente, sentiu que as lágrimas embaçavam seus óculos. Tirou-os e enxugou os


olhos com um lenço de papel, desejando que o dia seguinte chegasse depressa. Quanto mais
cedo partisse da casa de Vittorio Romano, mais depressa começaria a trabalhar. Iria se
candidatar a um lugar no hospital e trabalharia duro até conseguir esquecê-lo, até conseguir
esquecer o toque das mãos dele.

Mas sabia que a imagem dele estaria para sempre em seu coração, como acontecia
com as solteironas que haviam amado um único homem e o perdido. Ela já pertencia
mesmo a essa classe de pessoas, e pertenceria para sempre.

Começou a subir as escadas devagar, sorrindo tristemente, e foi só quando chegou


ao patamar que a figura silenciosa se lançou sobre ela, empurrando-a contra a grade.

– Sua sem-vergonha! – sibilava uma voz. – Vou quebrar seu pescoço!

Dominique foi atingida outra vez, agora no rosto, e seus óculos voaram longe.
Sentiu que mãos fortes a agarravam pelos cabelos, ao mesmo tempo em que alguém lhe
chutava as canelas.

Percebeu que lutava contra uma mulher: Malvina. Sentia o coração disparado e não
conseguia gritar, por mais que tentasse. A mulher estava louca, os olhos brilhando na meia
escuridão, e tentava, com todas as forças, empurrar Dominique escada abaixo.

Xingava com os piores palavrões e enfiava-lhe as unhas na pele macia. Sua força de
louca estava conseguindo levar Dominique até a beira da escada, aos degraus polidos que
iam até lá embaixo.

Dominique tentava se agarrar aos balaustres, fazendo um esforço enorme para fugir
dos golpes de Malvina, mas estava ficando fraca.

Mãe de Deus!, rezou consigo mesma, me ajude! Vittorio, Vittorio, me salve!

– Enfermeira maldita! – E Malvina tentou dar-lhe um último soco, que, se a


atingisse, a empurraria para baixo num instante.
No último minuto, Dominique desviou o corpo, desequilibrando a outra, que, com
um grito surdo, se precipitou escada abaixo, acabando como uma trouxa no chão, o pescoço
virado para um lado.

Dominique não via nada. Os óculos estavam em algum lugar do corredor e a única
coisa que conseguia fazer era ficar agarrada ao corrimão, sem fôlego, toda machucada e
tremendo.

Ouviu vozes lá embaixo, luzes se acenderam e, de repente, alguém subiu a, escada


de três em três degraus. No instante seguinte, uma pessoa amparava Dominique com braços
fortes, braços que a apertavam tanto que quase a deixaram sem fôlego novamente.

– Querida! Minha queridinha! Diga que você está bem! – Os braços a embalavam e
lábios cobriam seu rosto ferido de beijos, enquanto um par de olhos negros analisava as
marcas que começavam a aparecer e algumas arranhaduras que desciam até seu pescoço.
Meu Deus, olhe só para isso!

Dominique o olhava e só pensava que ele a chamara de querida... queridinha!

– O que aconteceu aqui? – perguntou Vittorio, apertando o corpo dela contra o seu.

– Malvina... ela tentou me matar...

– Ah, se eu tivesse visto! Eu devia ter adivinhado que era ela quem escrevia as
cartas anônimas. Achei que andava meio estranha, mas pensei que era porque não tinha
muita coisa para fazer. Ela salvou a vida de Tony, mas, de certo modo, agora o libertou da
dívida... Melhor assim! – Dominique entendeu o que ele queria dizer e estremeceu. – A
polícia virá e fará certas perguntas. Será que você suportaria isso?

– Eu... eu acho que sim.

– Acho que um gole de bebida iria ajudar – disse ele, enquanto a pegava no colo e ia
para seu apartamento, antes gritando e pedindo que alguém cobrisse o corpo e chamasse a
polícia.

Colocou Dominique numa poltrona, com toda a delicadeza, e ficou olhando para
ela. Depois tirou-lhe os cabelos dos olhos.

– Coitado do seu rosto – murmurou. – Primeiro recebe um soco meu e agora isto!
– Oh, bem... – e ela conseguiu sorrir –, ainda bem que minha beleza não se
estragou...

– E quem quer olhar para alguém encantador o tempo todo? – disse ele, segurando o
rosto dela com as duas mãos. – Lá na praia, você achou que eu estava brincando, mas não
era brincadeira, não! Eu desejo você, tem que acreditar nisso! Preciso desesperadamente de
você... Nunca disse isso a nenhuma outra mulher.

– Mas houve Amatrice – disse ela, triste. – Você me deseja porque eu nunca me
comportei como ela, não é verdade?

– Com todos os diabos, não! – Ele baixou a cabeça e beijou Dominique nos lábios. –
Eu deveria ter aceitado aquele tipo de contrato, e só concordei com ele porque meus pais
haviam morrido. E acho que a coitada sabia que eu a achava tola e cansativa. Quanto a
você, nunca a acho cansativa, a não ser quando começa a falar em ser freira. – Sorriu, com
suavidade. – Creio que o destino não queria que isso acontecesse, senão não deixaria que
você viesse à minha casa. Dominique, não prefira os claustros frios quando eu preciso de
você em meus braços, meu amor... minha vida!

– Está falando a verdade? – sussurrou ela. – Verdade mesmo?

– Eu só falo a verdade, querida.

– Vittorio – e ela pronunciou o nome baixinho –, eu sempre achei que nunca algum
homem chegaria a me amar.

– Não garotos e rapazes tolos, que só vêem a superfície, não se esqueça. Pretendo
ficar com você, e por isso é melhor se conformar.

Dominique sorriu. Esse era o Vittorio que ela conhecia... e amava.

– Eu ia arrumar minhas coisas para ir embora amanhã...

– Eu vou trancá-la no meu quarto, se se atrever a querer sair daqui! – Encarando-a,


sentou-se ao lado dela e abraçou-a carinhosamente. – Deixe-me dizer que a amo tanto,
querida... Amo seus olhos, seu coração bondoso, você inteirinha. Quero que me diga que.
acredita.

– Eu quero acreditar...
– Talvez precise de uma prova mais concreta, não?

– Prove, Vittorio... Prove bastante...

– Assim? – E ele a beijou com ternura e paixão. – E assim?

Fim

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