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Resumo:
Quando Dominique chegou a San Sabina, linda cidade do sul da Itália, sabia que
tinha pela frente uma penosa missão: fazer a própria irmã que ficara paralítica, tomar gosto
pela vida e lutar para vencer a doença que a maltratava. Mas Dominique jamais poderia
supor que iria sofrer tanto nas mãos de um homem frio, calculista que não hesitava em
machucá-la sem motivo. Vittorio.... belo, rico e impiedoso, zombava dela, de sua falta de
charme e de sua determinação de se tornar feira, para servir aos pobres e a Deus. Um
homem cruel que teimava em seduzi-la, um italiano sensual que, com um só beijo,
provocou em Dominique uma emoção até então desconhecida, emoção doce e perigosa que
se chama amor...
Capítulo I
Dominique Davis estava parada junto à murada do navio, o olhar fixo nas águas de
um azul límpido e profundo. Alguns fios do cabelo loiro soltavam-se do coque severo e
caíam sobre o rosto tenso e preocupado. Ah, se estivesse indo para San Sabina em férias,
para aproveitar o sol gostoso da Itália!
Candy partira para a Itália, cheia de planos e animação, há dois anos, e agora
Dominique ia ao encontro dela, sabendo que ia encontrar uma mulher amarga e doente.
Não, Deus às vezes não era justo em seus desígnios... E Dominique sabia disso melhor do
que ninguém. Passara boa parte da vida amenizando o sofrimento alheio, entregando-se de
corpo e alma à enfermagem. E agora? Seria obrigada a sufocar a própria angústia, para
tentar aliviar as dores da irmã?
Pensava em Vittorio, o irmão mais velho de Tony. Como seria ele? Candice havia
contado, numa de suas cartas, que era um homem meio distante e que, desde a morte
prematura da noiva, havia se afastado do convívio com outras pessoas, preferindo, dedicar
todo o seu tempo aos negócios. Dominique receava encontrar-se com aquele homem que
não aprovara totalmente o casamento de Tony e Candy. Mesmo sem conhecê-lo, sabia que
teria que enfrentar nele uma certa hostilidade. Segundo a irmã, Vittorio parecia não ser um
cavalheiro.
Dominique respirou fundo. De uma forma ou de outra, teria que enfrentar todos os
problemas que a aguardavam ali, na bela costa italiana, onde o navio atracava sob um sol
forte e magnífico.
Dominique desembarcou. Estava tão preocupada com a saúde da irmã que nem
notou a atmosfera radiante de San Sabina. Não notou o céu sem nuvens, nem o aroma
agradável do ar. Passou pela alfândega italiana automaticamente, mas parou quando um
funcionário atencioso perguntou, enquanto revistava a bagagem:
– Sim, é a primeira vez que venho aqui – respondeu, num italiano razoável. – Mas
estou sendo esperada por alguém da casa de don Vittorio Romano.
– Ah, a senhorita vem visitar don Vittorio? – E o funcionário correu os olhos pelo
conjunto cinzento que a moça usava, as iniciais em ouro na lapela.
– Obrigada – respondeu ela, com certa amargura. Sabia que aquela viagem podia:
ser tudo, menos agradável.
Foi se afastando do balcão da alfândega com o coração pesado, mais pesado do que
a maleta que carregava e resolveu aguardar, sob o sol quente, que alguém da casa dos
Romano aparecesse.
Enquanto esperava, pensava que, se fosse Candy quem estivesse ali, e não ela, logo
algum rapaz se aproximaria para ajudá-la e provavelmente ofereceria uma carona. Sorriu
para si mesma. Toda vida fora assim. Candice sempre recebera todas as atenções, enquanto
que ela tivera que se acostumar à solidão.
Dominique lutou para fugir daquele olhar insistente. Virou as costas com decisão,
mas sentiu que ele atravessava a rua e se postava bem atrás dela. Sua costumeira
tranqüilidade desapareceu.
– Você, imagino...
– Será que pareço do tipo que morre de medo de motoristas? – respondeu, sorrindo
levemente. – Não recebo ordens de mulheres, ainda mais de uma como você.
Dominique ficou mais vermelha ainda. Sabia do que ele estava falando. Ela era feia
e sem graça, e qualquer que fosse o motivo pelo qual ele se aproximara, certamente não era
para conquistá-la.
– Você não sabe nada sobre os homens... Pensando bem, não sabe nada sobre a
vida.
– Quer fazer o favor de parar com isto? – pediu Dominique, aflita. Não tinha quase
nenhuma experiência no trato com os homens, e aquela a confundia cada vez mais. – Quem
pensa que é, hein?
– Você mesma não disse que eu era um lobo caçando mulheres sozinhas?
– Disse – afirmou ela, em desafio, desconcertada pelo jeito dele, que parecia estar se
divertindo muito.
– Sou don Vittorio Romano – disse ele, com certa arrogância –, e você é a irmã de
Candice... embora eu não veja semelhança alguma entre vocês.
– Vamos indo para o carro. No caminho para Vila Dolorita eu lhe contarei tudo.
– Venha – disse ele, pegando a mala com uma das mãos e o braço de Dominique
com a outra. – Meu automóvel está parado logo depois da esquina.
Dominique não teve outra escolha, senão concordar em ser levada para um carro
esporte cinza-metálico. Os bancos eram baixos, confortáveis, e no interior mostrava classe
e bom, gosto. Ela acabou sentindo-se constrangida por ter chamado de lobo a um homem
que parecia tão elegante.
Entraram no veículo e, logo depois, a cidade não era nada mais que um ponto
distante. Seguiam por uma estrada estreita, que serpenteava um monte. Candice nunca
descrevera San Sabina, apenas dizia que era pitoresca, e agora Dominique tinha a
impressão de estar num lugar meio selvagem. Principalmente ali, naquele caminho de onde
saía um despenhadeiro que acabava nas ondas bravias; lá embaixo. Era uma paisagem ao
mesmo tempo bonita e dramática, e em qualquer outra ocasião Dominique teria ficado feliz
em admirá-la. Agora, porém, seu pensamento estava preso à irmã. Estava impaciente por
chegar depressa e queria que don Vittorio lhe explicasse logo o que havia acontecido.
– Imagino que deva ter sentido um choque, Srta. Davis, ao saber do estado de sua
irmã, não? – indagou ele, com certa reserva.
– É verdade.
– Bem, achei que o melhor método seria avisá-la de repente... O remédio forte faz
mais efeito, é o que dizem.
– Acidente? Deve ter sido mais que isso, para tê-la deixado paralítica!
– Não. Candice estava ótima na última vez em que a vi. Minha irmã é a única
parenta que tenho e gosto muito dela. Estou realmente preocupada.
– Compreendo. Mas não posso deixar de reparar que as duas parecem ter
personalidades muito diferentes.
– E temos mesmo! – concordou ela. – Mas gostamos muito uma da outra, isso eu
lhe garanto.
– Fico muito satisfeito que tenha vindo logo para San Sabina, Srta. Davis. Até
agora, sua irmã já esgotou a paciência de cinco enfermeiras! Espero que, com a senhorita
por perto, as coisas melhorem.
– Se for possível.
– Sim; possível é, sim... Mas o senhor disse que Candy já passou pelas mãos de
cinco enfermeiras?
– Aconteceu, porque sua irmã resolveu acreditar que meu irmão Antônio a havia
traído. Tiveram uma violenta discussão no terraço atrás da casa... Ele havia dado a ela um
colar de pérolas, e Candice o acusou de estar querendo comprá-la, para salvar sua honra.
Jogou-lhe o colar no rosto e o fecho cortou-lhe o lábio. Tony revidou e, ao se afastar, ela
perdeu o equilíbrio e caiu por uma pequena escada de pedra. Ficou inconsciente e foi
levada ao hospital.
– Mas por que ninguém me informou sobre isso? – disse Dominique, sentindo uma
onda de raiva invadi-la. – Eu tinha o direito de saber.
– Os ferimentos não foram graves. Apenas arranhões. Vinte e quatro horas depois
ela estava fora do hospital, e eu resolvi...
– O senhor resolveu? Mas acho que era Tony quem devia resolver o caso, não
concorda?
– Meu irmão ficou preocupado demais para agir. Conversei com ele sobre se
devíamos ou não informá-la, senhorita, mas Candice recuperou-se tão depressa que
achamos melhor não assustá-la sem necessidade. Estou lhe afirmando que sua irmã parecia
completamente fora de perigo, até que um dia, ao sair da cama, desmaiou. Um grande
especialista foi chamado, examinou-a com cuidado e chegou à conclusão de que o mal não
estava no corpo, e sim na mente.
– Não estou querendo dizer nada. Estou afirmando. Ela está paralítica porque quer
se fazer de mártir.
– Oh, não é justo dizer uma coisa dessas! – Dominique não podia associar a pessoa
sobre quem don Vittorio falava com a irmã que ela conhecia e amava. – Está dizendo que
ela quer fazer Tony sentir-se culpado?
– Isso mesmo. Candice quer puni-lo, e quer tanto que conseguiu um meio para isso.
Foi a habilidade dela em dançar que os uniu, não foi? E agora ela o agride justamente
perdendo essa habilidade, essa capacidade. Sempre que estão juntos, Candice o acusa de ser
o causador de sua deficiência. E ele, naturalmente, acredita.
– Tem certeza?
– Mas Candice não confia nele! Se não, não teriam brigado e ela não teria caído da
escada! Pobre Candy!
– Sua preocupação se justifica, Srta. Davis, mas, e o coitado do meu irmão? Tony já
não sabe mais o que fazer.
– E se ele for realmente culpado? Claro que, como irmão, o senhor tem obrigação de
defendê-lo, mas nunca chegou a aprovar o casamento dos dois, não é verdade? Talvez
esperasse escolher uma noiva para ele! Se não me engano, esse costume ainda existe em
alguns lugares da Itália, não é mesmo?
– É, mas eu nunca fui contra esse casamento. Apenas achava que Tony era muito
imaturo.
Dominique corou.
– Achei que ele tinha charme e era muito bem-educado. Infelizmente, não posso
dizer o mesmo do senhor!
– Apesar disso sofreu um duro golpe ao saber do caso de sua irmã, não foi?
– É, ela é bem diferente da senhorita. – disse ele, num tom de quem conhecia
perfeitamente as mulheres e seus truques.
– Fala como se não acreditasse que as paixões possam existir realmente, Srta. Davis.
– Será que imagina que uma carreira possa impedir uma mulher de se apaixonar?
Será que para a senhorita a profissão é tudo?
– Não foi por essa razão que resolvi me dedicar apenas à enfermagem...
– Senti que tinha que encontrar um propósito para a minha vida – disse Dominique
percebendo que falava com certa pretensão. Mas tinha orgulho de pensar daquele modo. –
Minha irmã sempre foi muito atraente e se satisfazia com as coisas boas da vida. Nunca a
condenei por isso, mas tenho pontos de vista diferentes.
– O... o que quer dizer com isso? – Dominique apertava as mãos enquanto falava.
– Que seus olhos, cinzentos como as asas de uma pomba, fogem do olhar de um
homem... Será que tem medo de que eles mostrem o que vai em sua alma?
– Tudo isso através destas lentes grossas? – indagou ela, desconcertada com o rumo
da conversa. – Quer mesmo que eu cuide de Candice?
– Se Candice continuar a se comportar desse modo infantil, então terei que interná-
la num hospital apropriado para pessoas nervosas... E sou um homem de palavra.
– Estou vendo, don Vittorio, mas Candice é sua cunhada, e nem eu, nem seu irmão,
iríamos permitir uma barbaridade dessas!
– Existem limites para tudo. Se sua irmã continuar ofendendo Tony cada vez que o
vê, ou então continuar com as costumeiras crises de choro, ele ficará satisfeito em jogá-la
no rio Tibre! Será que falei claro?
– Com extrema clareza – assegurou Dominique. – Mas parece que não lhe ocorreu
que Candice deve estar apavorada. Se ela acreditou estar perdendo Tony antes do acidente,
imagine agora! O senhor fala sobre paralisia psicológica como se uma boa sova resolvesse
o assunto, mas sabe que a solução não é essa.
– Não há dúvida de que sei – admitiu ele –, mas sua irmã tem estado insuportável.
Ela tem crises semelhantes às dos maníacos depressivos.
– Sua irmã já foi avisada por diversas vezes de que não sofre de paralisia. Já
mostramos a ela as radiografias, com todas as explicações, mas não adiantou. Candice se
fixou na idéia de que o tombo a deixou aleijada!
– Pobre Candice...
O tipo de amor que devorava Candy era um mistério para Dominique. Nunca
experimentara essa emoção, que fazia uma mulher se devotar de corpo e alma a um
homem. Para ela, isso parecia inacreditável. Deus do Céu, como esse amor, que podia
transformar uma mulher alegre e vibrante numa neurótica inválida, devia ser perigoso e
egoísta!
O que poderia ter dado errado, meu Deus? Será que Tony tinha mesmo encontrado
outra mulher? Ou será que alguém detestava tanto Candice a ponto de lhe contar uma
mentira infame?
– Recebeu cartas anônimas. Rasgou e não deu muita importância à primeira, mas a
segunda a abalou. Eu mesmo a li e disse a ela que aquilo não passava de uma calúnia, mas
não adiantou.
– Mas por que ela não quis acreditar no senhor? Tinha que haver uma razão!
– E tinha mesmo. Uma cicatriz que Tony adquiriu logo após o casamento. Como
sabe, eles passaram a lua-de-mel nas Bahamas, e, numa noite, foram convidados a assistir a
um espetáculo de dança nativa, o limbo. Como você conhece Tony, deve compreender que
ele não resistiu ao desejo de competir com um dos dançarinos locais. E havia uma parte em
que a pessoa tinha que passar por baixo de uma barra horizontal em chamas. Bem, meu
irmão acabou queimando uma certa parte do corpo... está entendendo?
– Deve ter sido doloroso demais! – Um leve sorriso apareceu nos lábios de
Dominique. – Mas a cicatriz deve ficar visível quando ele vai à praia, não?
– Tony evita o mar, não sabia? Quase morreu afogado quando era pequeno. O navio
Conte Toro afundou no Adriático e meu irmão, pouco mais que um bebê, foi salvo pela
pajem, Malvina, que você vai conhecer. Meus pais morreram no acidente. Isso o deixou
traumatizado.
– Oh, sinto muito, eu não sabia disso. – Fez uma pausa e continuou, apreensiva: –
Diga-me, don Vittorio, serei tratada em sua casa como a nova enfermeira ou como um
membro da família?
– Como prefere, senhorita? – Havia certa ironia na voz dele, ao fazer a pergunta. –
Não hesite em ser franca comigo.
– Acho que seria melhor se eu fosse tratada apenas como uma enfermeira. Desse
modo, espero não ter que participar das refeições da família nem das atividades sociais.
Ele não insistiu e, logo depois, saíam da estrada, atravessavam um portão de ferro e
chegavam a uma casa grande, sombreada por árvores enormes.
Dominique saiu do carro antes que don Vittorio pudesse estender a mão para ajudá-
la.
– Sou, sim, senhor – replicou. – Sempre fui independente, e espero ser sempre.
– Imagino que sim, mas há algo de tristonho nessa idéia, não acha?
Os olhos dela se perdiam no horizonte. Será que ele pensa no amor perdido?,
perguntou-se Dominique.
– Venha – disse ele por fim. – Venha ver sua irmã, mas não fique assustada com a
mudança que se operou nela.
Dominique sentiu-se perturbada e o acompanhou, meio trêmula, para dentro da
casa.
Capítulo II
Encantada, subiu alguns degraus em mosaico que davam para um terraço, de onde
se viam o mar e as montanhas.
– A baía de Prata... – murmurou ela, admirando a luz do sol refletindo nas águas
azuis. – A pessoa que escolheu este local para construir a casa deve ter sido um poeta ou
um pintor!
Dominique o observou de alto a baixo. Não, ele não parecia um poeta, apesar de ser
irmão de Tony, um homem sensível, dedicado à arte. Don Vittorio lembrava mesmo um
lobo, prestes a atacar sua presa.
Dominique sentiu uma certa inveja. Afinal, nunca tivera uma família. A mãe
morrera quando Candice tinha poucas semanas de vida c o pai, um comerciante que lidava
com mercadorias importadas do Oriente, havia levado as duas filhas para viver com ele, em
Cingapura. Mas Candy não suportara o clima quente e úmido e o pai acabara por interná-las
no Convento das Irmãs de Santa Anselma. As freiras tinham sido bondosas, mas nada
substituía o calor de uma família.
Dominique suspirou, lembrando-se de que as visitas que o pai lhes fazia tinham
diminuído com o passar dos anos, até que um dia a madre superiora as chamara para dizer
que ele havia se casado com uma asiática e viveria para sempre no Oriente. Por isso,
Dominique e Candice tinham visto o pai apenas uma vez, depois do casamento.
Na época, não passavam de duas adolescentes amarguradas pelo fato de terem que
aceitar a dura realidade de estarem sozinhas no mundo. Foi nessa ocasião que Dominique
começou a pensar em tornar-se freira, em entrar para a Ordem das Irmãs de Santa Anselma.
Candice não tinha a mesma intenção, por isso arranjou emprego fora do convento. Tentou
persuadir Dominique a acompanhá-la, dizendo que a vida tinha que ser vivida e tudo que
ela oferecia devia ser aproveitado.
Dominique apenas sorria, ajeitando os óculos, que fora obrigada a usar desde
criança. Tinha resolvido ser enfermeira e muitas vezes ajudava as irmãs, preparando-se para
quando chegasse a ocasião de entrar para a ordem e receber o hábito.
Não tentou impor seu ponto de vista a Candice, que com sua beleza e seu brilho,
procurava satisfação nas coisas do mundo, e não nas da alma. Dominique a compreendia,
mas, ao mesmo tempo, temia que a irmã acabasse se magoando. Então Candice conheceu
Tony Romano e apaixonou-se perdidamente por ele. Não falava em outra coisa e sua vida
passou a girar somente em torno do rapaz e dos passos de dança que davam juntos. Aquela
atitude preocupava Dominique, mas o que fazer?
Pois agora aquela paixão desenfreada prendera Candy nas malhas da depressão e
numa cama. Triste fim para um ardente caso de amor...
Dominique, que havia crescido em meio à austeridade, agora não sabia o que fazer
ali, naquele quarto grande e confortável. Seu primeiro impulso foi fugir, mas controlou-se.
– Não há necessidade de desmanchar minha mala – disse para a criada que tentava
abrir o fecho.
– Pode deixar. Cuido disso em alguns minutos, e não se esqueça de que sou só a
nova enfermeira. Não espero ser tratada como hóspede – afirmou, resolvida a deixar claro
que queria manter certa distância de dono Vittorio. O homem tinha um jeito perturbador,e
ela não gostara do modo como ele se referia a Candice, como se a irmã fosse um peso para
os ombros de Tony.
O céu se cobria de vermelho e dourado e ela pensava no homem que trouxera Candy
para morar naquela casa fabulosa, longe do movimento das cidades. Como ele havia
deixado de trabalhar há tempos, Dominique presumia que devesse viver de renda, fornecida
pelo irmão mais velho, ou deixada como legado pelos pais, mortos tão tragicamente.
Começou a pensar se a tal babá que salvara a vida de Tony gostava de Candice.
Talvez, a exemplo de don Vittorio, também, a encarasse como uma intrusa. Talvez até
mesmo fosse um pouco responsável pelo sofrimento de Candy.
– O pôr-do-sol visto daqui é sempre espetacular – disse uma voz calma, bem junto
dela. Dominique virou-se, assustada, e deu de cara com don Vittorio. – Eu bati diversas
vezes – explicou ele –, e por fim resolvi entrar. E encontrei-a aí, presa ao encantamento da
paisagem, do sol morrendo no mar. É a mesma cena que vejo da minha janela e que, nunca
me canso de admirar. Muitas vezes desejei poder transferir toda essa beleza para uma tela.
– Luzes fracas, camas brancas e cheiro de remédios. Talvez uma tosse fraca e um
relógio tiquetaqueando numa parede...
– Sei, sei... – O olhar dele era atento. – Será que posso dizer-lhe, senhorita, que não
parece ter vinte e cinco anos?
– Talvez o fato de ter crescido num convento tenha algo a ver com isso.
– Ou talvez a senhorita já fosse assim desde o começo. Parece ser muito diferente de
sua irmã, sob diversos aspectos.
– E não se importa?
– Não, não me importo – disse Dominique, com sinceridade. – Somos o que somos,
e temos que fazer o melhor possível.
– Uma bela filosofia, Srta. Davis, mas a maioria das mulheres daria tudo para nascer
linda.
– Acredito que uma margarida gostaria de ser uma rosa, mas assim mesmo,
continuará sendo margarida até murchar e morrer.
– Obrigada. É que meus planos incluem apenas dar conforto aos que sofrem.
– Eu... eu posso ser curioso? Quero dizer, saber o que mais pretende fazer?
– Tenho certeza de que está – disse ele, com um sorriso meio irônico. – Aposto que
muitas moças como você já sentiram o chamado da fé.
Dominique se sentiu zangada, pois ele parecia rir dela. Como é que aquele homem
se atrevia a questionar-lhe a decisão? Muito mais alto do que ela, forte e moreno, ele
parecia um conquistador da Idade Média!
– Acho apenas que existe compaixão demais nesse coraçãozinho – explicou ele,
com calma.
– Como é que alguém pode ter compaixão demais, don Vittorio, num mundo onde
os valores estão apodrecendo? Alguns de nós temos que tentar...
– Mas está lutando contra uma parede de pedra, senhorita, e pode ferir seu coração.
– É o meu coração, minha escolha, e o senhor, afinal, não tem nada a ver com isso.
– Acho que o senhor imagina que o dinheiro e a posição social lhe dão o direito de
dirigir a vida dos outros. Tony se opôs à sua vontade, escolhendo minha irmã como esposa,
e, por causa disso, o senhor é rude com ela!
– Don Vittorio, eu o conheci há algumas horas somente, mas foi essa a impressão
que o senhor me deu. De ser um homem rude, duro.
– Estou aqui em sua casa, senhor, como enfermeira de minha irmã. Gostaria que me
levasse até ela.
– Não.
– Ela sempre fica muito nervosa por qualquer coisa. Por isso, achamos melhor não
contar nada sobre sua chegada. A senhorita poderia demorar, para vir e ela então ficaria
decepcionada. Está vendo? Não sou assim tão cruel...
– Eu ainda acho que deveria ter sido chamada quando Candy caiu da escada e foi
para o hospital.
– Como eu já lhe disse, na ocasião não havia nada que indicasse alguma coisa mais
séria. Havia só alguns arranhões e uma pancada leve...
– É o que parece.
– Seu irmão já me conhecia, sabe? Podia ao menos ter perguntado a ele, se é que
chega a perguntar a opinião de alguém...
– Acontece que acho que meu irmão não sabe julgar as mulheres.
– Essa é uma resposta maldosa. Suponho que significa que não aprovará nunca a
escolha que ele fez ao casar-se com Candy. Peço-lhe desculpas pelo fato de nem eu nem
minha irmã sermos italianas. Sem dúvida o senhor acha que só elas possuem virtudes, como
sua noiva!
– Desculpe-me...
– Esqueça – disse ele, virando-lhe as costas. – Sua irmã deve estar acordada,
esperando o chá. Sabe, uma tarde ela jogou o bule pela janela...
– Parece estar convencida de que Candice é vítima de minha tirania. – E o olhar que
ele lhe lançou era frio como gelo. – Talvez a raiva não a deixe raciocinar direito, senhorita.
Dominique engoliu em seco. Aquele tom frio e sarcástico pareciam querer dizer:
“Fique longe de minha vida particular”.
Ele estendeu a mão para abrir a porta, mas, antes que pudesse fazê-lo, a maçaneta
girou e a porta foi escancarada por uma mulher que saía correndo, o rosto vermelho.
– Ah, senhor! – E fez um gesto em direção ao quarto. – Aquela fulana fica com a
cara virada para a parede e se recusa a tomar banho. Ficou sem comer o dia inteiro e acabou
de me dizer que, se conseguir se arrastar até o balcão, vai se jogar lá embaixo. Eu ia chamar
Antônio...
– Está me parecendo que cheguei bem na hora. Minha irmã certamente está
precisando de mim, não só como enfermeira, mas também como alguém que cuide dela
com carinho. Posso entrar? – Don Vittorio inclinou a cabeça, concordando, e ela continuou:
– Posso entrar sozinha?
Dominique se esforçava para não demonstrar no olhar a aversão que sentia por
Malvina. De agora em diante, aquela mulher teria que ficar longe do quarto de Candy. Ela
iria insistir nisso.
Vittorio deu-lhe passagem. Dominique agradeceu, num murmúrio, passou por ele e
por Malvina e fechou a porta atrás de si, com firmeza. Ficou parada por alguns instantes,
sentindo o coração bater mais forte. Depois, chegou perto da cama e viu Candy, toda
enrolada nos lençóis de seda, virada para a parede, os cabelos dourados completamente
emaranhados.
Dominique segurou a irmã pelos ombros e instantaneamente sentiu que ela resistia.
– Candy, vire-se para que eu possa lhe dar um abraço e um beijo – murmurou.
Durante alguns segundos não recebeu resposta. Depois, escutou um soluço abafado.
– Nicky, é você?
Dominique beijou-a com carinho, mas os olhos azuis da irmã permaneceram sérios
e hostis.
– Por que teve que se preocupar comigo? Provavelmente tinha diversos outros
pacientes para cuidar, não é verdade?
– Se eu soubesse do que aconteceu, teria vindo mais cedo, isso sim – assegurou-lhe
Dominique. – Tenho certeza de que Tony queria que eu soubesse, mas parece que quem,
manda é aquele irmão dele. Recebi um telegrama ontem e pedi imediatamente lima licença.
Vim cuidar de você. Don Vittorio me disse que está nas mãos de um ótimo médico e que...
– Que eu continuo deitada aqui, como um pedaço de pau, porque gosto disso? –
Interrompeu-a Candice, zangada. – Nicky, eu não posso andar! Tomo Deus por, testemunha
de como tentei... E como tentei! Mas toda vez caio ao chão, como uma trouxa; começo a
chorar e deixo Tony desesperado.Oh, o que vou fazer? – Candice se agarrava a Dominique
com tanta força que suas unhas chegavam a arranhá-la. – Você tem que me ajudar, antes
que eu acabe louca... e perca Tony! Eu o amo tanto e... e existe mais alguém...
– Psiu! – Dominique, quase tão triste quanto a irmã, passava as mãos pelos cabelos
desgrenhados dela. – Você precisa parar de acreditar nessas mentiras, querida.
– Não são mentiras – afirmou Candice, desanimada. – Enxerguei a culpa nos olhos
dele, quando o acusei. Acho que eu poderia até tê-lo perdoado, se ele tivesse me contado a
verdade, mas Tony mentiu... mentiu e comprou aquele horroroso colar de pérolas para me
acalmar! Vittorio contou a você sobre as pérolas?
– Sim, ele me contou. – Dominique sentou-se na beirada da cama e segurou a
cabeça da irmã contra seu ombro. – Ele disse que você as atirou em Tony, que ele tentou
dar-lhe um tapa e que você, assustada, caiu escada abaixo. Disse também que você só teve
ferimentos leves e uma pequena batida na cabeça e que essa impossibilidade de andar só
apareceu mais tarde. Candy, isso pode ser psicológico, e, se for isso mesmo, a melhora só
vai depender de você...
Como enfermeira, já vira muitas vezes o que um esgotamento nervoso podia fazer a
um ser humano. Ninguém era imune a ele e, quando acontecia, a pessoa normalmente caía
em depressão. Dominique compreendeu que sua tarefa não ia ser fácil: dependia dela fazer
com que a irmã tomasse novamente gosto pela vida e voltasse a rir. Era chocante vê-la tão
desanimada, sem o orgulho que sempre tivera com sua própria aparência!
– Seus cabelos estão uma bagunça! – comentou, esforçando-se por falar em tom de
brincadeira. – Amanhã vou lavá-los com um bom xampu. Que tal?
– E para quê? – Havia grande amargura na voz da moça. Tony não se interessa mais
por mim. Tudo o que dissemos e o que fizemos foi uma mentira. Ele esteve todo o tempo
pensando em outra mulher...
– Isso é bobagem – afirmou Dominique, severa. – Ele não ia casar-se com você se
gostasse de outra, não é?
– Candice!
– Mentira puxa mentira, não é isso que dizem, Nicky? As coisas sempre acabam
aparecendo! – Uma lágrima escorria pelo rosto abatido. – Eu fui tão... tão tola! Apenas não
imaginei que Tony pudesse ter alguém aqui... uma garota italiana, que não fosse com ele
para Paris e não o enganasse com uma mentira! Eu mereço o que está acontecendo comigo
agora! Comprei encrenca e agora estou pagando o preço.
– Candy, você não deve falar desse jeito! – disse Dominique, abraçando a irmã e
consolando-a como se fosse uma criança. – Tony pode ter pensado qualquer coisa, quando
se casou com você, mas eu vi amor entre vocês, quando foram passar o Natal comigo. Ele a
ama, querida, precisa acreditar nisso, acreditar de verdade, para que as coisas comecem a
melhorar. Você sabia, quando se casou com ele, que Tony não é um homem simples,
comum. Ele e o irmão são gente bem diferente do resto, não acha?
– O que você achou de Vittorio? Algumas pessoas dizem que é arrogante, outras
falam que desde a morte da noiva ele mudou, tornou-se fechado, sem sentimentos.
– Ela devia ser muito jovem quando morreu, não? – comentou Dominique,
reparando que a aliança estava folgada no dedo da irmã e que suas unhas precisavam de
manicura. Era tão estranho Candy ficar assim relaxada com sua aparência....
– Sim, ela era muito moça – confirmou Candice, com voz resignada. – Parece ser
costume na família...
– Estou com vinte e três anos. Ainda sou moça, não acha?
– Não quero mais saber dessa conversa! Você não está à morte!
– Minhas pernas estão mortas!
– E não é a mesma coisa? Não posso usá-las para andar, e certamente nunca mais
vou poder dançar. Tony adora a dança. Chegamos a planejar abrir uma escola de danças,
mas ele achou que o irmão não ia aprovar.
– Não. Nós apenas sonhamos com isso. Talvez fizéssemos uma tentativa se Vittorio
adiantasse o dinheiro para a abertura da escola. Tony tem algumas economias e o irmão lhe
dá uma mesada baseada nos lucros da fazenda, mas precisaríamos de capital para... De
qualquer modo, quando aquelas cartas terríveis chegaram, foi como se o mundo tivesse
desabado. Nicky, eu não queria acreditar nelas, mas as palavras eram tão cínicas e os
detalhes tão verdadeiros! Queimei a primeira, fiquei com vergonha de mostrá-la! Depois
chegou a segunda, e por acaso eu a estava abrindo quando Vittorio ia saindo do escritório.
Viu como fiquei perturbada e quis ler. Disse que eu era uma tola por acreditar naquele
monte de mentiras, mas havia uma referência a uma cicatriz que Tony tem no alto da coxa,
um comentário tão safado. – Um rubor cobriu a palidez do rosto da moça, que continuou: –
Nicky, você pode me culpar por desconfiar? Eu enfrentei Tony e ele negou, mas havia algo
suspeito no modo como falava, e depois veio com aquelas pérolas... Eu quase o odiei,
parecia querer me comprar... Os homens às vezes são terríveis!
– Eu... eu costumava julgá-la uma boba por querer ser freira – murmurou Candy –,
mas agora começo a achar que você é que está certa. Leva sua vida sem depender de
homem nenhum.
– Pode ser – disse Dominique, tirando uma mecha de cabelos dos olhos da irmã. – E
que tal se eu a deixasse bem bonitinha, para o jantar? Olhe só essa camisola, está uma
sujeira! E seus cabelos estão parecendo crina de cavalo! Ouvi falar que andou assustando as
outras enfermeiras, mas comigo isso não vai acontecer. Eu vim para ficar.
– Quanta bondade! Imagino que ele tenha falado muito mal de mim, para que a
imagem de Tony parecesse a de um cavalheiro! Ele nem me queria aqui! Todo mundo sabe
que Vittorio não pretende se casar, e caberá a Tony dar um herdeiro para a família Romano.
O todo-poderoso don Vittorio gostaria que o herdeiro tivesse apenas sangue italiano, mas
agora parece que não vai haver nem meio herdeiro...
– Você não deve pensar ou falar assim! – reprovou Dominique. – Daqui para a
frente você vai aprender a lutar, nem que tenhamos que lutar juntas.
– Nicky, você é impossível e sempre vai ser, mas eu não tenho a sua fé.
– Mas tem que ter fé em si mesma, Candy! Vamos lutar juntas e vou insistir em
exercícios para suas pernas, depois vamos nadar...
– Ali.
Candice indicou uma porta e Dominique foi até lá. Como esperava, a banheira era
em estilo romano, funda e com degraus.
– Mas estou agindo certo, não é? Você quer voltar a andar, não quer?
– Às vezes, quando não tem nada melhor a fazer... Ai! Está doendo!
– Você não devia ter deixado seus cabelos ficarem desse jeito. Parece que não trata
deles há dias! Eu me lembro bem de como você gastava um tempão em frente ao espelho...
– Mas nunca sai deste quarto? Tony não a leva para passear?
– Que bobagem! Não pode permanecer fechada num quarto abafado. Precisa de sol
e ar fresco.
– Foi por isso que veio para cá, Nicky? Para ficar me aborrecendo? Vittorio já me
enche bastante; até mandou vir uma cadeira de rodas, mas eu me recusei a usá-la. Ele
tentou me forçar, o bruto!
– O que de gostaria mesmo era de me colocar num asilo. Malvina me disse. Você a
conheceu?
– Não muito.
– Que mentirosa!
Dominique não sabia o que pensar. Escutou a porta se abrindo e viu don Vittorio
entrando no quarto. Ele se aproximou dos pés da cama, encarando as duas irmãs.
– Essa sua falta de educação faz com que eu tenha vontade de dar-lhe uma boa
sova! – Os olhos dele brilhavam, perigosos. – Será que vai tratar sua irmã do mesmo modo
como tratou as outras enfermeiras? Ela já sabe dos seus ataques de raiva.
– Sua irmã tem a vida dela, e você tinha excelentes enfermeiras, a quem preferiu
insultar. Espero que agora melhore seu gênio. Já reparei que sua irmã conseguiu dar um
jeito em seus cabelos. – Olhou para Dominique. – Meus parabéns, senhorita.
Ela encarou-o também, vendo-o como um homem atraente, que não combinava com
a imagem de alguém que odiava as mulheres.
– Posso dizer-lhe algo, senhor?
– Gostaria de cuidar sozinha de minha irmã, e quero ,que entenda que não vou,
admitir ninguém mais dando ordens aqui, dentro do quarto dela.
– Malvina?
– Sim. – Dominique olhou para ele, séria. – Não gostei do modo como ela se referiu
à minha irmã, como se Candice fosse uma criança mimada com uma doença imaginária. Eu
sou a enfermeira, não ela, e conheço minha irmã melhor do que todos vocês. Tenho certeza
de que a doença de Candy é verdadeira. Além disso, ela é sua cunhada, e, por isso, digna de
respeito. Coisa que aquela mulher parece não ter por minha irmã.
– Pode deixar que vou pensar em alguns. Por exemplo: dentro de alguns dias
gostaria de levar Candy até a praia. Será que alguém poderia carregá-la?
– Obrigada. O mar vai fazer um bem enorme à minha irmã. Comigo ela vai fazer
exercícios, não ficará deitada na cama o dia inteiro, tendo que tomar drogas para dormir.
– É verdade, senhorita?
O olhar dele era desconcertante, mas Dominique não baixou o seu. Provavelmente
ele estava acostumado a dominar todo mundo, mas não seria ela que iria baixar os olhos
para um homem!
– O céu é que é o lugar dos anjos, e eu sei que sou apenas humana – respondeu,
sorrindo. – Bem, e o que há para o jantar? Eu não tive vontade de almoçar no navio e estou
faminta!
– Irmã Páprica! – Candice caiu na risada. – Esse vai ser seu nome quando ficar
freira, Nicky. Sabia, Vittorio, que minha irmã vai tomar os votos sagrados e nunca homem
algum tocará nela?
– É, já fui informado do futuro evento – disse, dando uma olhada para Dominique
antes que ela baixasse os olhos. – Comentei até como duas irmãs podiam ser tão diferentes!
– É verdade, querida. – Ele ficou sério. – Bem, Srta. Davis, pode se considerar como
a sexta enfermeira a entrar nesta casa. Posso perguntar se se sente confiante para vencer a
batalha?
– Sim – disse ela baixinho. – Se me assegurar que tenho controle de tudo em relação
à doente, além do método, é claro.
– Claro – repetiu ele. – Ponha juízo na cabeça oca dessa sua irmã e eu lhe darei um
relógio de ouro. Está feito o negócio?
Dominique corou.
– É proibido?
– Para mim, é.
Capítulo III
Em sua vida, tivera poucos momentos em que pudesse aproveitar a paz e a beleza,
como nessa noite, no terraço.
Passava a maior parte do dia com a irmã, que andava muito instável ainda. Mas, por
entre as crises de mau humor, Candice suportava os exercícios para as pernas. Já comia
melhor, porém, como estava largando, aos poucos as drogas para dormir, seu sono era
agitado e ela acordava muito à noite. Dominique então lia ou conversava com a irmã sobre
os tempos do convento.
Dominique tentava esconder a preocupação que sentia. Candice não estava nada boa
e às vezes demonstrava um desespero tão grande no olhar que ela ficava sem saber o que
fazer. Sentia que a irmã lhe escondia alguma coisa que não podia ou não queria contar,
coisa que lhe parecia devorar o coração.
Dominique soltou um suspiro. Não podia obrigar Candy a lhe dizer nada, mas sabia
que só quando ela desabafasse é que começaria a melhorar, como se tivesse tirado um
veneno do corpo.
Passeando pelo jardim perfumado, não podia deixar de pensar que provavelmente o
autor ou a autora das cartas anônimas morava ali mesmo naquela casa. Um nome aparecia
em sua mente, mas, sem provas, ela nunca poderia enfrentar o suspeito. Talvez até causasse
problemas maiores, como sua expulsão de Vila Dolorita.
Tony estava lá. As visitas dele não eram freqüentes, provavelmente porque não
conseguia suportar tudo que ocorrera com a esposa, que agora ficava muito retraída, ou
começava a discutir com ele por coisas sem importância.
Tony levantou-se quando Dominique entrou e deixou claro, pelo olhar, como estava
satisfeito com a mudança da esposa. Ele era tão alto quanto o irmão, mas faltava-lhe a aura
de energia que caracterizava don Vittorio. Dominique podia entender por que Candy se
apaixonara por ele: era o próprio cavalheiro latino, cheio de charme e cortesia, mas não
podia também deixar de pensar que segredos se esconderiam por trás daqueles atraentes
olhos escuros.
– Pode ter certeza de que não sou santa – respondeu ela, sorrindo. – Candice está
encarando a vida mais positivamente e quer ficar boa, não é verdade, querida?
Candice não respondeu. Continuou apenas a olhar o vazio a sua frente, mas
Dominique suspeitava que ela via o marido nos braços de outra mulher que o conhecia tão
bem quanto ela...
– O que você vai querer para o jantar hoje, Candy?
– Não estou com fome – disse Candice, suspirando. – Só vou tomar uma taça de
champanhe.
– Realmente, querida, acho que você não devia ofender um champanhe tão bom
com simples torradas!
– Ora, ora... – Dominique estava resolvida a não deixar os dois discutirem. – Aquela
vitela está com um cheiro delicioso, e você pode comer junto com aspargos. Não se
aborreça, querida. Pense em quantas moças gostariam de morar numa casa como esta, com
um marido tão atraente. Veja quantas coisas boas!
– Que pena que você não pegou fogo! – foi a resposta venenosa. Tony empalideceu
e Dominique sentiu uma pena enorme daquele casal, separado exatamente como o autor das
cartas anônimas pretendia. Será que existia mesmo outra mulher na vida de Tony, e que
fora ela que usara a caneta como um punhal?
– Tony... espere!
Ele parou, a mão no trinco da porta. Alguma coisa naquele grito desesperado fez
com que se voltasse e viesse novamente para perto do divã. Encarou sério a figura
recostada e então Candy estendeu-lhe as mãos.
– Eu não queria...
– Eu... é porque tenho tanto medo! Abrace-me, Tony! Abrace-me e não me deixe
pensar mais!
Ele levantou uma sobrancelha para Dominique, como se quisesse saber o que fazer
com Candy, às vezes tão amorosa, mas às vezes tão terrível.
– Nós vamos jantar juntos – disse ele. – Diga ao pessoal da cozinha para mandar o
jantar aqui. Vou tentar fazer Candy comer. Vamos tomar champanhe, mas não torradas.
Dominique sorriu. Será que Tony amava mesmo a esposa, ou apenas se sentia
culpado por ela estar naquela situação? Será que vira uma sombra de tristeza nos olhos
dele? Ah! Se um dos dois confiasse nela... Sem aquele tipo de cooperação, Dominique
sentia como se remasse contra a corrente.
Dominique estava saindo da cozinha quando don Vittorio apareceu, vindo da adega.
Trazia uma garrafa de vinho nas mãos e Dominique preparou-se para passar por ele com
um leve aceno de cabeça, quando ouviu a pergunta:
– Foi o que pensei. Então vai jantar comigo esta noite. Não faz objeções, não é?
– Sabe como penso, don Vittorio. É melhor que eu mantenha distância e continue
apenas como enfermeira em sua casa. O senhor prometeu...
– Não, senhorita, não prometi nada. Eu apenas concordei com sua vontade, mas não
vejo razão para que jante sozinha, logo hoje, quando estou prestes a abrir uma garrafa do
meu vinho predileto. – Passou a mão pela garrafa, quase com sensualidade. – “Lágrimas de
Tibério”... já ouviu falar dele?
– Foi um tirano romano – disse ela, a voz meio trêmula. Não tinha certeza se estava
zangada com don Vittorio por ele não acatar sua decisão ou com medo de ficar a sós com
uma pessoa tão perturbadora.
– Toma vinho, não toma? O vinho não está entre os prazeres terrenos que aboliu,
não é?
– Não, não ache nada... – disse ele, seco. – Julgo que pensa demais, e isso não é
muito bom para a senhorita. De vez em quando devia parar de pensar, como qualquer outra
mulher.
Dominique sentiu que corava sob o olhar daquele homem e ficou indecisa entre
subir correndo a escada ou continuar ali e tentar a discussão... Don Vittorio parecia adorar
suas próprias opiniões!
– Srta. Davis – disse ele –, não seja tão puritana. Tenho certeza de que as boas irmãs
de Santa Anselma às vezes chegam a tomar um copo de vinho às refeições. Deus não nos
teria dado as uvas se não quisesse que tomássemos vinho. Será que isso não parece lógico
nem mesmo a você, que, por alguma estranha razão, acha que sua companhia não daria
prazer a um homem?
– É verdade. Eu não tenho mesmo muito tempo para a maioria das mulheres, mas a
senhorita é bem diferente, não? Faz jejuns?
– Não entendi...
– Até quando vai ter que levantar pacientes com o dobro de seu peso?
– Quer dizer que poderia até levantar a mim, se eu chegasse a ser seu paciente?
Dominique examinou-o de alto a baixo. Ele dava a ilusão de ser magro, mas ela já
notara como era musculoso quando usava camiseta de malha.
– Eu não poderia...
– Está bem, senhor. – E foi saindo, de costas em direção à escada. – Estarei na sala
de jantar dentro de meia hora.
– Você me encontrará no pátio – avisou ele – Está uma bela noite e mandei colocar,
uma mesa lá. Não tem objeções quanto a isso, não é?
– Não...
– Seus olhos dizem outra coisa, enfermeira – afirmou com um brilho irônico no
olhar. – Não pense que esses óculos a escondem do mundo... Por falar nisso, precisa usá-los
o tempo todo?
– Prefiro não falar sobre minha vida particular, senhor, se não se incomoda.
– Que pena...
– Não? – E uma sobrancelha negra se levantou junto com o canto dos lábios, num
sorriso leve. – Engraçado, eu tinha a impressão de que se sentia curiosa sobre minha vida
particular...
– E por quê?
– Por que diz que sou um mistério? Não deixou de lado a idéia de casamento, assim
como eu?
– Deixei. – Uma estranha chama brilhou nos olhos dele. – Vá colocar outra roupa.
Eu ficarei aguardando.
Dominique subiu correndo a escada, perseguida pela chama que havia visto nos
olhos dele. Sabia que tocara num ponto importante da vida de don Vittorio. Deus que a
ajudasse! Ela havia querido manter distância daquele homem, mas os dois tinham acabado
por dizer coisas íntimas demais, coisas que dois estranhos nunca diriam um ao outro.
Agora, Dominique só queria descobrir uma desculpa para não precisar jantar com ele.
Deu uma olhada em Candice, encontrou tudo em ordem e entrou em seu próprio
quarto, preocupada, procurando no armário alguma roupa adequada para um jantar. Não
possuía nada assim. Resolveu usar uma saia cinza e uma blusinha branca com enfeites de
renda. Vestida e arrumada, o cabelo preso no mesmo coque de sempre, foi seguindo,
relutante, em direção ao pátio.
A mesa estava posta para dois, debaixo de uma espécie de caramanchão florido.
Havia o brilho dos talheres de prata, a alvura da toalha e o som da água que escorria de uma
fonte. Cigarras ainda cantavam nos ciprestes e o aroma das árvores se misturava com o das
flores do jardim. Toda essa cena era iluminada por lanternas de ferro presas nas paredes do
pátio.
Tudo parecia tão romântico que Dominique quase deu meia-volta, em pânico... O
que é que estava fazendo ali, entre as flores de um jardim italiano, na companhia de um
homem?
– Ah! Já está aí, senhorita? – disse Vittorio, saindo da sombra das árvores e se
aproximando.
Moreno e alto... Esses homens são sempre perigosos, pensou Dominique. Sentiu que
a examinava dos pés à cabeça. Por fim, ele disse:
– Mas é isso que sou, senhor. Se queria uma companhia glamourosa, não devia ter
me convidado para jantar...
– Permita-me dizer-lhe que, sob alguns aspectos, é bem criança sim. Afinal, o que
lhe interessa de verdade, se existe tanta gente ingrata no mundo?
– Existe uma satisfação enorme em se ver uma pessoa ficar boa, em ver a palidez da
doença ser substituída pelas cores da saúde, em notar que uma pessoa se interessa
novamente pela vida. E a satisfação ainda é dupla quando há uma criança envolvida.
– Já trabalhou com crianças? – Havia um novo interesse na voz dele.
– Sim, senhor, numa unidade especial, logo depois que me formei. Era um lugar
muito triste, pois tratava de crianças sem grandes chances de viver. Foi por isso que acabei
saindo de lá... A gente começava a gostar das coitadinhas e elas acabavam morrendo... Eu
não podia suportar aquilo. Muitas vezes era o melhor que lhes podia acontecer, mas era
duro vê-las nascer para depois irem morrendo...
– Sim... E o senhor achou que eu não teria capacidade de cuidar da minha própria
irmã, não foi?
– É, “vivendo e aprendendo”.
– Como esta parte do jardim é linda, especialmente à noite! O senhor janta sempre
aqui?
– Quando sinto vontade – respondeu ele, puxando-lhe uma cadeira de cana da índia.
– Por favor, sente-se.
– Posso recusar?
– Na verdade, não. – Vittorio segurou a garrafa com as mãos finas, tirou a rolha e
verteu o líquido vermelho em dois copos de cristal.
– Um brinde a quê?
– Que seja! – disse ele, levantando a mão. – Que a enfermeira Davis possa vencer e
que sua irmã logo volte a dançar!
As palavras foram tão comoventes que Dominique não encontrou nada para dizer.
Apenas ficou fitando o homem à sua frente e tomou com ele um gole de vinho. O que
pensaria don Vittorio da moça vestida com tamanha simplicidade, o rosto sério por causa
dos óculos e usando como enfeite apenas o relógio de pulso?
– Que olhar sério você acabou de me dar! – caçoou ele. – O vinho deve fazer as
mulheres brilharem, sabia?
– Só porque nunca procurou por ele. Será que sempre se manteve à sombra de sua
irmã?
– Não mesmo'?
– Não.
– Candice sempre foi muito bonita e seria bobagem querer competir com ela. De
qualquer modo, essas coisas nunca me interessaram.
– Só lhe interessa cuidar de doentes, não é? Oh, minha querida garota, nunca teve
vontade de se divertir?
– Venha sentar-se aqui – disse don Vittorio, indicando uma espreguiçadeira perto de
um laguinho de peixes dourados. Dominique sentiu o coração disparar e quis pedir licença
para ir ver Candice, mas, antes que o fizesse, ele acrescentou: – Não se preocupe com nada;
tenho certeza de que sua irmã está muito bem ao lado de Tony. Venha, sente-se!
– Está bem...
– Santo Deus! – bradou ele, e, com um movimento rápido, pegou as pernas dela e as
colocou sobre a cadeira, fazendo com que Dominique se reclinasse sobre as almofadas. –
Quanta teimosia! Agora fique aí mesmo enquanto pego mais café e alguns bolinhos!
Era ridículo, mas ela não se atrevia a sair dali. Esperou, cabisbaixa, que ele voltasse.
Vittorio franziu a testa, olhando para a moça.
– Pelo amor de Deus, relaxe! Você vive tensa, como uma raposinha branca que eu
tinha quando criança. Os olhos dela eram vivos e o pêlo tão claro quanto sua pele...
Aquele era o tipo de comentário que deixava Dominique sem resposta, toda
atrapalhada. Não estava habituada a ficar sozinha com um homem.
Vittorio ajeitou-se na outra espreguiçadeira, esticando as pernas, e Dominique
escutou quando ele soltou um suspiro.
– Aquela raposa tinha o pêlo macio como seda – murmurou – e me seguia como um
cachorrinho. Um dia, não veio quando assobiei, e meu pai me disse que ela provavelmente
tinha ido procurar um companheiro, e que, se fosse isso mesmo, não iria voltar mais, seria
selvagem novamente. Os dias se passaram, ela não voltou e eu nunca contei a ninguém o
quanto chorei todas as noites de saudades da minha amiga raposa de olhos vivos, olhos que,
eu imaginava, seriam devotados a mim para sempre...
Ela sentiu medo, medo de alguma coisa na qual nem Se atrevia a pensar.
– Dominique – disse don Vittorio, pensativo –, você parece evocar num homem a
necessidade de falar de coisas que geralmente se guarda para si mesmo...
– Mas não chorou por... – Interrompeu-se, fugindo do nome da noiva dele, como se
de repente se sentisse junto a um precipício.
– Não está se intrometendo – respondeu ele, sério. – Já lhe falaram sobre ela, não é?
Sem dúvida Candice lhe contou que eu ia me casar, não?
– Sim, senhor.
– Minha noiva vinha de Vicovaro, o lugar das belas moças, dizem. E ela era
realmente linda. Uma vez você comentou comigo sobre a tradição italiana dos casamentos
arranjados e eu não neguei a existência deles. É verdade. Normalmente os casais são
escolhidos quando ainda estão na escola, e foi assim comigo. Era desejo de meu pai que um
dia eu me casasse com Amatrice di Cenzo, uma menina que na ocasião tinha apenas seis
anos. Meus pais já haviam morrido quando cheguei à idade de me casar, mas aceitei a
vontade deles e pedi a mão de Amatrice. – Interrompeu-se, ao notar o ar pensativo de
Dominique, e indagou: – o que está imaginando? Que minha história se parece com a de
Dante e Beatriz?
– O senhor deve ter ficado muito abatido quando... quando ela morreu!
– Destino! – Ele deu uma risada áspera. – Como é inocente! Garota tolinha, nós é
que fazemos nosso próprio destino. Como fará o seu, quando for freira. E, daquele
momento em diante, você vai trocar o caminho que leva ao romance, à paixão, pelo fogo
sagrado do amor casto. Fico pensando se esse fogo chega a aquecer...
– Ah! Ouviu falar que eu odeio as mulheres? É assim que você e Candice passam os
dias? Discutindo sobre minha pessoa?
– Sim... de passagem.
– Será que nem de passagem você pensou no tipo de amor que liga sua irmã a
Tony?
– Não...
– Claro que não! – E, ao levantar os olhos, viu uma estrela cadente criando um fio
prateado no céu escuro. – Oh! Olhe para aquilo!
– Não tente fugir de minha pergunta, Dominique. Não acho que você seja uma
religiosa fanática, nem penso que seja tão piedosa assim. Será que não se acha digna de ser
amada?
Dominique estremeceu.
A pergunta mexia num ponto profundo do seu ser. Sacudiu uma convicção que ela
nunca revelara a ninguém. Como foi que ele desconfiou? A resposta era simples, mas
constrangedora. Ele sabia porque a via como ela era na verdade, uma moça simples, de
óculos, sem qualquer parcela do charme que servia para atrair o desejo dos homens. Uma
moça comum, feia e sem graça.
– Eu me considero mais útil que ornamental, senhor – disse ela, seca. – Quando
Candice e eu éramos crianças, as outras meninas achavam que minha cara era engraçada
porque minha irmã era linda. Nós duas éramos a Coruja e a Gatinha...
– Sinto muito!
– Eu não ligava, don Vittorio – replicou ela, com um sorriso triste. – Usava óculos
com aros de metal e estava sempre com este nariz arrebitado metido nos livros. Eu era
muito diferente de Candy, e sabia disso. Ela era a fita de seda e eu o barbante, ela era o
biscoitinho e eu uma fatia de pão, ela era a amêndoa açucarada e eu um simples
amendoim...
– Fala com humor, mas, assim mesmo, acho que todas as garotinhas gostariam de
ser bonitas.
– Falo sério. Não me importava mesmo o fato de ser parecida com uma corujinha.
As corujas são engraçadas, elas também são sábias... não são?
– É verdade, eu até sabia de cor um versinho sobre a sabedoria das corujas! Sempre
gostei dos pequenos animais da noite.
– O senhor já disse que gostaria de esculpir esses animais. Já tentou alguma vez?
– Devia tentar. Muitas vezes, quando sentimos uma grande vontade de fazer algo, é
porque temos um talento natural para isso.
– Sim, e eu percebi que era uma boa enfermeira. Fiquei satisfeita ao descobrir que
podia ser uma pessoa útil.
– Então, por que não continuar só assim? Para que chegar ao extremo de ser freira,
se não acredita que o amor entre um homem e uma mulher seja uma coisa pecaminosa? Ou
o amor é algo de que você foge?
– Eu...
– Não.
– Mas tem, sim. Cresceu com a idéia de que, para conseguir o amor de uma pessoa,
tem que ser como Candice. Viu professores mais benevolentes para com ela e crianças
disputando a amizade dela. E mais tarde via também garotos e homens a rodearem como
mariposas rodeiam a luz. Você era a observadora silenciosa, solitária, vendo tudo do seu
cantinho.
– Eu... eu nunca tive inveja de Candice! – protestou Dominique. – Ela sempre foi
mais expansiva e eu nunca conseguiria ser assim, nem que tentasse. Com que cara acha que
eu ficaria, se pintasse os olhos e os lábios e saísse por aí com roupa de festa? Candice tem
charme. Eu não.
– Mas você tem bondade, Dominique! Existe muito pouco disso hoje em dia, isto é,
bondade verdadeira, que nada pede em troca. Não deixe que isso a leve por um caminho
errado.
– Não estou entendendo.
– Ser boa e ser piedosa são duas coisas bem diferentes. Sabe, minha primeira escola
foi um colégio jesuíta e posso lhe dizer que apanhávamos muito, lá. A vida monástica pode
ser tão severa que chega a modificar a personalidade das pessoas.
– E você acredita?
– Don Vittorio, eu não o conheço suficientemente bem para dar uma opinião.
– Não odeio as mulheres. Simplesmente decidi não me casar, só isso. Assim somos
dois, não é?
– Está parecendo.
– E é, minha querida jovem. Você tem um coração imenso, mas decidiu que não
quer ser esposa e mãe.
– Senhor, uma mulher só pode ser esposa e mãe se alguém a pede em casamento.
– Eu tenho vinte e cinco anos – disse ela, divertida – e nunca fui beijada!
– Para algumas mulheres poderia ser. Para certas pessoas só existe a delícia do
amor, o resto é uma espécie de morte.
– Certamente que não – Dominique sentiu que corava e ficou satisfeita por estar
meio escuro.
– Mas será que não tem curiosidade sobre as técnicas... do beijo? – indagou ele
vagarosamente.
– Não tenho mais. – Ela se interrompeu, meio confusa, e deu uma olhada no relógio.
– Acho melhor entrar agora, senhor.
– Você só irá quando eu disser que pode ir – disse ele, sem tentar esconder a
arrogância na voz. – Vai responder à minha pergunta... Já houve época em que desejou ser
abraçada e beijada por um homem até ficar à mercê apenas dos sentidos?
– Por favor – disse ela, começando a se levantar –, não quero discutir esse tipo de
coisa.
– Se tentar se levantar dessa cadeira, vai descobrir que, quando quero uma coisa,
consigo. Neste instante, quero conhecer a pessoa escondida dentro desse corpo severo.
Estou curioso e quero as respostas.
– Mas eu me importo com isso, sim. Quero saber mais sobre você!
– Don Vittorio, pode me fazer qualquer pergunta, desde que não seja pessoal. O fato
de eu ser cunhada do seu irmão não lhe dá o direito de me torturar!
– O senhor não me deixa à vontade... Será que, segundo sua teoria, toda mulher tem
que ficar suspirando por um homem?
– Será que isso nunca aconteceu com você?
– Não.
– Mas há pouco quase admitiu. Será que, quando sua irmã se punha toda bonita para
ir dançar com algum admirador, você não ansiava por fazer isso também? Será que chegou
a se indagar por que todos se importavam com Candice, e sequer notavam sua presença?
Dominique encarou-o, naquela quase escuridão, o rosto dele parecia mais moreno e
cruel ainda.
– E isso tem alguma importância? – perguntou ela, engolindo em seco. – Será que
preciso contar-lhe o que senti?
– Conte.
E agora, que parecia não haver mais importância no fato de ela sempre ter
permanecido à sombra da irmã, aquele homem tinha que vir e enfiar uma faca em
sentimentos há muito cicatrizados.
– Don Vittorio, eu sou uma mulher muito simples e já me habituei a ser assim. É
claro que, quando mais moça, as coisas eram mais difíceis de aceitar. Não pense que eu
sentia ciúmes terríveis de Candy.
– Então, por que fica me espicaçando? Parece querer provar que sou uma solteirona
azeda e amargurada...
– Não sei.
– Minha cara jovem, pare de falar sobre si mesma como se não tivesse nada que
interessasse aos homens. Algumas das mulheres mais simples e feias do mundo tiveram
amantes que as mais lindas não conseguiram atrair. Picos de neve às vezes escondem
vulcões, essa é a verdade!
– Não está insinuando que eu seja assim, está? – Dominique sentia o rosto pegando
fogo. – Eu nem olho para os homens...
– Já havia percebido.
– Desculpe – falou.
Olhos negros a analisaram de alto a baixo. Malvina nada disse, apenas transferiu o
olhar para o homem que ficara no pátio.
Dominique sentia-se queimar por dentro, ao subir a escadaria. Foi depressa até seu
quarto. Queria se recompor antes de encontrar a irmã, pois sabia que, do jeito que estava,
Candice notaria algo.
Pôs as mãos no rosto e sentiu que ele pegava fogo. Por que acabara contando a don
Vittorio que nunca fora beijada? Olhou-se no espelho e virou o rosto, pois percebera em seu
próprio olhar uma tênue resposta. Ficou apavorada.
Não, não queria que nenhum homem a beijasse, muito menos aquele. E até parecia
que alguém fosse ter vontade de beijá-la! Os homens gostavam de mulheres açucaradas,
doces, sensuais como Candy. Ela sempre soubera disso, e não era mais a adolescente que
um dia chegara a ficar triste porque ninguém a amava...
Capítulo IV
– O que foi? O que aconteceu? – Procurou acender a luz, enquanto a figura alta se
aproximava, envolta num robe escuro.
Que teria acontecido? Candice parecia tão bem quando Dominique a deixara, há
poucas horas! Agora, no entanto, o corpo frágil e magro se retorcia em espasmos de dor, o
cabelo estava encharcado de suor e a face, cadavérica.
Ela sabia que uma enfermeira nunca devia entrar em pânico, mas não pôde evitar.
Sua própria irmã estava correndo perigo, sentia cólicas fortes e dolorosas.
– Não posso... eu não sei qual é a causa disso tudo e... – Interrompeu-se, pois não
enxergava direito o rapaz. Na pressa, esquecera os óculos. De repente lembrou-se de um
caso que tratara um ano antes... um homem envenenado por comer peixe estragado!
– Sim... sim, acho que comeu, mas não pode ter sido isso. Eu também comi uma
porção e estou me sentindo bem...
– Sim, senhor. – disse ela, saindo do quarto, enquanto don Vittorio encarava
Dominique.
– Talvez... Não posso ter certeza até que o médico chegue, mas ela parece estar com
todos os sintomas...
– Tony, o que aconteceu? – disse ela, entrando no quarto. – Por que ninguém me
acordou, para que eu pudesse ajudar?
As palavras ecoaram pelo quarto, enquanto Candice gemia e chorava nos braços do
cunhado. A empregada chegou Com o leite e Dominique lhe pediu para colocar uma
pequena quantidade no bule. Depois sentou-se na beirada da cama e colocou o bico do bule
entre os lábios da doente.
– Não está, não! Eu não vou permitir! – disse Dominique, zangada. – Deixe apenas
o leite escorrer pela garganta.... assim...
– Faça o que ela está mandando – disse Vittorio, com firmeza. – É para seu próprio
bem, menina. Vai diminuir a dor.
– Dói... dói demais... – Candy soluçava. – Nicky, eu estou com tanto medo...
– Eu sei, querida, mas tente tomar este leite... isso, vire a cabeça para trás... assim! –
Dominique manobrava o pequeno bule, conseguindo que um pouco do leite descesse pela
garganta da doente.
Tinha poucas dúvidas sobre o mal que afligia a irmã. O suor, a dor, a cor esverdeada
da pele eram sintomas que ela conhecia. Tinha que ser algum tipo de envenenamento, e
Candy comera camarões no jantar. – Por favor, encha novamente – pediu à empregada,
notando que Malvina havia saído do quarto e que Tony estava largado numa cadeira,
olhando, desesperado, o sofrimento da esposa. – Vai dar tudo certo – disse ela, tentando
animá-lo. – As coisas estão sob controle e o médico deve chegar logo.
– Por que isso não aconteceu comigo? Por que aconteceu só com ela? Foi a falta de
sorte de Candy que a fez comer uma coisa estragada... Acha que é isso que está causando as
dores?
– Tenho quase certeza. Gostaria que você fosse lá embaixo e me trouxesse gelo.
Dominique voltou sua atenção novamente a doente, pensando que Tony e o irmão
eram tão diferentes quanto ela e Candy. Tony tinha o charme e Vittorio a capacidade. Ele
parecia não ser uma pessoa muito compassiva, e havia bondade sob aquela aparência dura,
pois a mão morena acariciava o cabelo de Candy com ternura.
O médico chegou dez minutos depois e, após examinar Candice, confirmou que ela
devia ter comido algo contaminado.
– Vou dar-lhe um laxante para que elimine tudo rapidamente. Só que ela vai ficar
mais fraca, claro...
– Espero poder ser bondoso sempre que alguém precisar – disse, olhando
diretamente nos olhos cinzentos de Dominique. – Vou providenciar café bem quente para
todos.
– Chá? É claro! – disse ele, levantando uma sobrancelha negra – Eu devia ter me
lembrado; é o remédio inglês que serve par qualquer doença, não é?
Dominique sorriu e concordou. Don Vittorio saiu andando pelo corredor, uma figura
firme e controlada, que sabia solucionar o problema e não perdia a calma à toa.
– Acho que ela vai melhorar de agora em diante, mas se houver recaída me chame
imediatamente. Preciso dizer que, se não fosse pela senhorita, ela poderia estar muito pior.
É muito dedicada ao seu trabalho, não é mesmo?
– E também dedicada à minha irmã, doutor. Ela já foi uma pessoa tão cheia de vida!
Não é justo... Oh, não posso deixar de culpar Tony pejo que aconteceu! Ele parece ser...
meio fraco!
– Ele não é tão forte quanto o irmão – murmurou o médico –, mas assim mesmo é
uma pessoa bondosa, simpática... Talvez um pouco bonito demais, não acha?
Dominique concordou com a cabeça, entendendo o que o médico queria dizer: que
Tony Romano seria sempre admirado pelas mulheres e era uma pena que Candice gostasse
tanto dele, pois ela provavelmente nunca iria se conformar com qualquer pequena
infidelidade.
Candy precisava de alguém forte e seguro para compensar sua natureza frágil, mas
se apaixonara por um rapaz muito semelhante a ela mesma e agora sofria por isso.
– Bem, vou procurá-lo e dizer a ele que venha ficar com a esposa, para que você
possa descansar um pouco. Se ficar esgotada demais, não cuidará tão bem da doente, não é
mesmo?
A enfermeira assentiu.
– Dr. Pasquale?
– Sim?
– Candice sempre teve um ótimo apetite, e nunca algo lhe fez mal. Quando
estávamos juntas, ela raramente adoecia. Saía diversas noites e nunca se queixava de
cansaço. Ela sempre foi extremamente saudável, e é por isso que estou tão preocupada...
Candy estava fazendo progressos, e agora isso...
– Não se desespere, enfermeira. Sei que não é o tipo de pessoa que se deixa
influenciar pelas circunstâncias. Sua irmã está em ótimas mãos: as suas e as de don
Vittorio. E ele, embora não pareça, é uma ótima pessoa, pode crer.
– Sim. Nas profundezas é que as águas são mais puras, e é nos veios mais profundos
que se encontra o melhor ouro. Don Vittorio parece ser um homem severo e distante, mas
não existe um sitiante eu fazendeiro em San Sabina que não lhe seja grato, por um motivo
ou por outro. Ele manteve esta região funcionando na base de cooperativas, enquanto que
em outros lugares, já houve muita revolta entre trabalhadores e proprietários. Don Vittorio
acha que todo homem tem direito à dignidade?
– Sei, sei... – disse ele, meio espantado. – de algum modo isso me surpreende.
– Por quê?
– Porque tratou de sua irmã com a naturalidade própria das mães. – explicou ele,
com simplicidade. – Então está decidida?
– Sim...
– Não entendo...
– Acho que me entende muito bem. Don Vittorio é um homem e tanto... Chama a
atenção, não acha? Não é atraente como o irmão, mas tem muita força, e é essa força que
algumas mulheres parecem preferir. Força e autoridade, combinadas com uma grande
gentileza. Esse lado dele a deixou bem surpresa, não foi?
– Uma moça como eu, sem atrativos, se resguarda contra essas coisas, doutor.
Disse isso e o Dr. Pasquale deu um passo em sua direção.
– Você tem belos olhos e provavelmente uma personalidade que combina com eles,
enfermeira. Sem atrativos? O que é isso, quando a mulher tem um coração e o mostra pelos
olhos? Vai me dizer... Não, está tonta de cansaço e vai descansar. Não se preocupe com sua
irmã. Vou falar com Tony para que fique com ela.
– Intoxicação?
– É.
– Eu nunca vou ter filhos, Dominique. Nesse ponto vou ser igual a você.
– Não vai ser como eu não. Você e Tony vão ter crianças lindas!
– Não – repetiu Candy, sacudindo a cabeça. – Não é por causa da minha doença. É...
é o Tony... ele não quer filhos. Ele sempre tomou cuidado, sabe? Só se descuidou naquela
vez, em paris, quando inventei sobre o bebê. Eu me lembro... ele ficou tão pálido quando
lhe contei que estava grávida... e depois pareceu tão aliviado quando disse que havia me
enganado! Ele não quer ser pai!
– Candy!
– É verdade. Tony é bom demais, ontem à noite foi um amor, mas não é como os
outros italianos, louco por uma família grande. Oh! Se não fosse por Tony e por você, eu
não agüentaria a noite passada! Lembro-me dos braços dele à minha volta e lembro-me de
achar que estava morrendo!
Don Vittorio não se incomodaria, pois ele, melhor do que ninguém, entendia que o
irmão não se sentia à vontade junto de alguém muito doente. E Candy, coitada, estivera tão
mal que nem notara a diferença. E era melhor nem saber, pois, do jeito como estava fraca a
recuperação seria mais rápida se ela se sentisse feliz.
Nesse instante, Tony entrou no quarto. Estava com a barba por fazer e os cabelos
despenteados.
– Querida! – disse ele, aproximando-se da cama. – O médico me disse que você está
bem melhor! É verdade? – Analisou o rosto abatido da esposa e continuou: – Ah, ainda tem
dores... mas está se sentindo um pouco melhor, meu amor?
– Bem melhor, Tony. – E Candy sorriu de leve, notando que o marido parecia um
menino meio perdido.
– Você ficou comigo durante o pior, Tony... – Os olhos de Candy não deixavam o
rosto cansado e atraente do marido. – Eu sentia seus braços me segurando e... e me senti
protegida...
– Candy precisava do seu apoio e você não lhe faltou, não foi, Tony? Ficou aqui
para confortá-la... Mas agora ela precisa dormir. Você fica aqui e toma conta dela, está
bem?
– Claro, Nicky! Pode deixar, cuido dela enquanto você descansa um pouco, está
bem? Muito obrigado por tudo.
– Ora, ora! Fico até grata por ter estado aqui... Feche os olhos agora, Candy querida,
durma e sare depressa.
Saiu, deixando os dois sozinhos, desejando ardentemente que tudo corresse bem
enquanto descansava. Sentia-se esgotada, mas ainda assim hesitava em ir deitar-se. No fim
do corredor havia uma janela por onde começava a penetrar a primeira luz da manhã.
Sentou-se numa poltrona, recostou a cabeça e fechou os olhos por alguns instantes.
Isso aliviou um pouco o cansaço, mas a mente permanecia alerta.
Dominique repassava os fatos ocorridos durante a noite e tinha certeza de que, num
determinado momento, uma estranha atmosfera de perigo envolvera o quarto de Candice.
Agora, ali sozinha, ouvindo os primeiros cantos dos pássaros, tentava determinar com
exatidão que momento fora aquele em que desconfiara que o envenenamento da irmã nada
tinha a ver com os camarões que comera.
Malvina!
Dominique abriu os olhos. Oh, não! Não era possível que a antiga babá chegasse a
tanto por causa do ciúme... e ainda assim não se passava um dia sem que os jornais
noticiassem crimes maiores cometidos por esse mesmo motivo.
Mas não, não podia ser... Era muito cruel. Além disso, o médico havia confirmado
que Candice devia ter comido algo estragado. E ele decerto, sabia o que falava; sabia a
diferença entre intoxicação alimentar e envenenamento.
Mas... aquele diagnóstico não incluía nenhuma outra suspeita! Como o Dr. Pasquale
poderia desconfiar que Candy pudesse ter sido envenenada de propósito? Ele pensara no
óbvio, pusera a culpa nos camarões, assim como Dominique o fizera até o instante em que
Malvina entrara no quarto. Havia algo tão frio no rosto da mulher que ela parecia estar
esperando que aquilo acontecesse!
Dominique sentiu que estremecia e apertou o robe contra o corpo. A quem poderia
contar sobre suas suspeitas? Afinal, para todos os membros da família, Malvina era a
empregada devotada e de inteira confiança. Tinha seu próprio apartamento na casa e
recebia uma boa mesada. Era quase como se fosse uma parenta!
A única saída seria dar a entender à própria Malvina que desconfiava dela, que iria
vigiá-la dali para a frente e que informaria à policia se Candy sentisse novamente qualquer
coisa estranha.
Oh, Deus! Era terrível ter tamanha desconfiança de alguém, mas, bem no fundo,
Dominique sentia que Malvina nutria um enorme ciúme por Candice e que a queria fora
daquela casa... e fora da vida de Tony, de um jeito ou de outro.
O instinto lhe dizia que devia avisar Tony imediatamente, para que expulsasse a
mulher de casa, mas ele na certa pensaria que ela estava louca e provavelmente pediria a
don Vittorio que a mandasse embora dali, ela que era a única que podia proteger Candy. O
que fazer, então?
Soltou um suspiro e já ia voltar para seu quarto quando uma figura alta apareceu na
outra porta do corredor, vindo em direção a ela.
Ficou onde estava, sentindo a tensão crescer dentro de si. Don Vittorio chegou
perto, trazendo uma xícara de chá bem quente, que estendeu a ela.
– É verdade – afirmou ele, com voz grave. – Sua irmã está dormindo?
– Sim, graças a Deus! Tony está com ela. O pior do... do ataque.... já passou..
– Foi uma pena que ela tivesse tido essa recaída. Está tão mais calma e disposta a
ajudar...
Dominique tomou mais um gole do chá, sentindo-se compelida a confiar-lhe suas
suspeitas. Mas... será que ele acreditaria numa coisa daquelas sobre uma empregada
supostamente fiel?
– Falei com o Dr. Pasquale – disse Vittorio naquele instante, fazendo com que
Dominique estremecesse. – Ele parece ter certeza de que Candy ficou assim por causa do
camarão.
Dominique percebeu que não podia se arriscar a levantar uma suspeita daquelas
contra Malvina. Pelo menos enquanto não tivesse provas. O melhor a fazer era ficar junto
de Candy e tratar de protegê-la pura que nada de grave voltasse a acontecer.
– Essa noite foi quase tão má para você quanto para sua irmã, não? – Dominique
assentiu e ele continuou, os olhos atentos fixos nela: – Você se envolve demais, não acha?
– Se eu não me envolvesse, não seria uma boa enfermeira. E, além disso, Candice é
minha irmã.
– Não, mas posso tentar salvar a vida dela. Don Vittorio, por que o senhor tenta
aparentar uma dureza meio cínica, quando, na verdade, sente ternura pelos outros? Percebi
sua preocupação com minha irmã.
– Bem, para mim Candice é pouco mais que uma criança. Foi terrível vê-la sofrer
tanto!
Dominique olhou para fora da janela, para o jardim iluminado pelo sol que já havia
raiado, trazendo luz e calor. A noite se fora e ela não podia esquecer da angústia que vira
nos olhos de Candy. Estremeceu, e don Vittorio colocou a mão em seu ombro. O calor,
daquela mão forte chegou-lhe até os ossos.
– São duas belas pessoas, com emoções parecidas. Tenho a impressão de que você
ficou preocupada, ao ver Tony fugir da situação... Sua irmã achou que era ele quem a
segurava, não foi?
Ela concordou, sentindo a mão dele ainda em seu ombro, sentindo uma coisa
estranha, quase parecida com dor, não exatamente uma dor física, mas algo semelhante a
uma chama que a tocava. Dominique não conseguia definir a sensação e achou que devia
ser causada pelo receio que a presença alta e morena de don Vittorio sempre lhe causava.
– Não há nada para agradecer – respondeu ele, escorregando a mão até o pulso da
moça. – Venha, deixe-me acompanhá-la até seu quarto. Vai me prometer se enfiar
imediatamente na cama e tratar de dormir. Vai fazer isso?
– Vou tentar...
Dominique sentia mesmo as pernas bambas e não resistiu quando ele lhe passou o
braço pela cintura. Ele havia confortado Candice e agora era agradável deixar que também
a ajudasse.
– Talvez eu devesse entrar e ter certeza de que vai mesmo para a cama – disse ele,
um brilho maroto nos olhos negros como o pecado.
– Não pode fazer uma coisa dessas – afirmou, abrindo a porta rapidamente. –
Também precisa ir descansar... precisa mesmo!
Don Vittorio fez-lhe a pequena reverência habitual, murmurando: – Então, até logo.
Dominique fechou a porta e ficou encostada a ela, as mãos apertadas contra o rosto,
revivendo a imagem do homem que se afastava.
Sentia as pálpebras pesadas e era como se estivesse boiando nos limites do sono.
Dominique puxou as cobertas até o queixo. Aquela mulher lhe lembrava a figura de
uma moça afogada, que vira no começo do curso de enfermagem. Na ocasião, era ainda
muito jovem e ficara bastante impressionada. Malvina havia salvado Tony de tal morte, e
ele crescera alto e belo...
Capítulo V
A praia pequena e particular ficava escondida abaixo dos rochedos sobre os quais se
erguia Vila Dolorita. A areia era rosada e o mar azul brilhava sob a luz do sol.
Duas semanas haviam se passado desde a intoxicação de Candy, e agora ela estava
ali, deitada numa esteira, o rosto corado e os olhos quase tão azuis quanto o mar. As crises
de mau humor haviam diminuído e seu estado geral melhorara muito. Ela ficava animada
em ir à praia, mas ainda não tomara coragem para entrar na água.
– Não, não me obrigue! – dizia quando Dominique insistia para que boiasse e
experimentasse mover as pernas. – Para você é fácil, mas para mim é penoso. Deixe-me
ficar aqui mesmo, olhando para o mar, e vá nadar um pouco.
Dominique nadava bem, mas havia se recusado a usar um dos sumários biquínis que
Candy lhe oferecera. Tinha ido até o vilarejo mais próximo e acabara encontrando, numa
lojinha, um maiô inteiro meio antigo, que faria qualquer moça, menos ela, cair na risada.
Comprara também um chapelão enfeitado de conchas e um par de sandálias.
Candy não podia parar de rir, ao ver a irmã vestida daquele jeito.
E assim, durante várias horas, todos os dias, Candy tomava banho de sol, enquanto
Dominique nadava e depois lia um pouco. Já estava com a pele dourada e sentia-se
incrivelmente bem, apesar de continuar preocupada com a irmã.
Tinham acabado de ler uma bela novela e Candy indagou se o amor era sempre
assim tão belo, depois das desavenças e dificuldades. Dominique não soube responder, mas
disse que qualquer coisa bem feita dava grande prazer e devia ser aceita naqueles termos,
como o mar, a areia e a brisa suave.
O amor? Ela não se atrevia a defini-lo, mas desconfiava que fosse tão imprevisível
quanto o mar e o vento, podendo ser calmo ou tempestuoso como a própria natureza.
– Você gosta da Itália, não gosta? – perguntou Candy, deixando a areia fina escorrer
pelos dedos.
Logo deveriam votar para casa. Don Vittorio sempre sabia quando era chegada a
hora de descer os degraus esculpidos no rochedo, tomar Candy nos braços, e levá-la para
cima. Tony nunca vinha buscá-la. Sua aversão ao mar era tamanha que ele não ousava nem
chegar perto. Mas sempre estava esperando no alto, para pegar a esposa dos braços do
irmão.
Dominique achava estranho que nenhum dos dois nunca tivesse pedido a um dos
empregados que fizesse aquilo. E sempre ficava observando, emocionada, Vittorio colocar
Candy nos braços do marido, enquanto a brisa batia em seus cabelos loiros.
Era essa a imagem que Dominique queria levar quando voltasse para a Inglaterra: a
de Candy ternamente agarrada ao marido. Um dia teria que ir embora, retomar sua própria
vida. Candy estava ficando mais forte e mais confiante a cada dia e sempre havia a
esperança de que acabasse sarando de vez.
– A maré está subindo – disse Dominique. – Logo seus cavalheiros virão resgatá-la
e a levarão para o castelo!
– Nicky... – disse Candy, encarando a irmã. – Sabe, às vezes acho que você é tão
romântica quanto eu... Por que não confessa seu terrível segredo?
Dominique sorriu.
– Como?
– É que, para você, minha querida Candy, o romance está centralizado num homem.
– E não é aí que deveria estar? Não é essa a ordem natural das coisas?
– Está querendo dizer que, sou um caso à parte? – E Dominique sorriu de leve, pois
já sabia a resposta. Candy rejeitava com cada fibra de seu ser a castidade que a irmã
pretendia manter.
– Não é isso, Nicky. É que não dá para entender muito bem o que você pretende
fazer! Nicky, fique aqui na Itália! Fique aqui na vila, com a gente. Vittorio não iria se
importar. Veja como ele conseguiu que Malvina continuasse vivendo aqui.
– Eu não sou Malvina. – Uma sombra passou pelo rosto da moça. – Ambas sabemos
que não posso ficar para sempre... Você logo vai estar andando e então precisará convencer
Tony a abrir a tal escola de dança. Acho que é uma ótima idéia.
– Há sim, Nicky! – Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Candy. – Sei que
ele vai visitar alguém quando todos pensam que estou dormindo, à tarde. Escuto o barulho
do carro dele, saindo e fico contando os minutos, as horas... Você não imagina como isso
me faz sofrer, Nicky! Você nunca amou um homem! Não sabe o que é um sofrimento
desses!
– Eu... eu não posso deixá-lo – disse a, moça, mordendo o lábio. – Já pensei nisso,
mas, quando Tony me agrada, quando é tão bondoso comigo, eu me derreto toda e quero
ficar com ele... nem que isso acabe me matando!
– É isso que o amor faz com a gente, sabe? É assim mesmo! Uma vez apaixonada,
você tem que pertencer ao homem que judia de você! Nós, mulheres, somos umas tontas! A
gente ama um homem e ao mesmo tempo o odeia, pois sabe que ele anda aprontando. Tenta
romper com tudo, mas ao mesmo tempo fica desejando que as coisas acabem dando certo.
Se eu abandonasse Tony, me sentiria mais miserável ainda. Eu preciso ficar perto dele...
Preciso vê-la, tocar nele... Nicky, você simplesmente não pode compreender uma coisa
dessas!
Dominique observava o mar sem dizer nada, apenas pensando em como seria um
amor desses, no que ele podia fazer a uma mulher que se deixasse dominar desse modo.
Estremeceu e, para distrair o pensamento, comentou:
– Don Vittorio está meio atrasado, hoje. Espero que ele não tenha se esquecido de
nós!
– Eu... eu teria que arrastar você degraus acima, até onde não houvesse mais perigo
– disse. – Estávamos falando sobre romances, não? Dizem que a realidade não é tão
dramática quanto a ficção, mas veja só nossa situação! Não posso deixar você aqui e ir
buscar um homem para carregá-la e tampouco posso eu mesma fazer isso.
– Candy!
– Por que não? – indagou a moça, apavorada. – Eu só sirvo para atrapalhar a vida de
Tony e houve falatório sobre a morte de Amatrice. Disseram que ela ficou doente, mas já
escutei conversas de que foi outra coisa...
– Não fale uma coisa dessas! Nem pense nisso! – Dominique ajoelhou-se e agarrou
a irmã pelos ombros. – Não fique nervosa. Don Vittorio vai aparecer a qualquer momento,
– Não, não vai! – E Candy sacudia a cabeça, os olhos cheios de pânico. – Não vê
como seria fácil para ele, deixar-nos aqui? Pareceria um acidente: uma irmã paralítica e
outra devotada demais para abandoná-la... Todo mundo iria dizer que era uma pena... uma
tragédia...
– Pare com isso! – disse Dominique, sacudindo a irmã com violência. – Nós não
vamos morrer nesta praia dos diabos! Não se eu puder evitar!
– De vez em quando é preciso. Olhe, Candy, dê uma olhada nesse mar. Você vai
ficar parada aí e deixar que ele a afogue, ou vai me ajudar e tentar se levantar?
– E como é que posso? – gemia a moça. – Estamos presas aqui, e nós duas sabemos
disso!
– Eu... eu não consigo! – Candice resistia. – Ele vai vir... eu sei que don Vittorio
virá, ele sempre vem!
– Dê outra olhada para essa escadaria e veja como está vazia! Dê outra olhada para a
maré e vai ver que ela vem vindo rápido. Minha querida, tem que acreditar em mim e ficar
em pé! Venha, faça força!
– Minhas... minhas pernas não vão se mexer... Sei que não vão, Nicky!
– Escute uma coisa: naquela noite em que ficou doente, eu vi suas pernas se
mexerem! Eu vi e don Vittorio também viu! Pare de deixar sua mente decidir por você!
Faça seu corpo funcionar!
Candice deu um grito quando Dominique, num impulso forçou-a para cima. Tremia
tanto que as duas quase foram novamente para o chão.
Como sempre fora a mais magra, precisou de toda a sua tenacidade para conseguir
que a irmã chegasse perto da escadaria.
E, uma vez ali, teve que insistir e implorar para que Candice levantasse os pés da
areia.
– Você pode fazer isso! – Ofegava. – A gente já chegou aqui, por isso faça força que
eu a ajudo a ir um pouco mais adiante!
– Eu... eu... – E Candy lutava, as lágrimas correndo por seu rosto, enquanto ela se
agarrava aos degraus. – Eu queria que você me largasse... Oh, largue-me e não me
obrigue...
– Eu tenho que obrigar você! – disse Dominique, furiosa, pensando em por que don
Vittorio teria se atrasado tanto, se sabia que a maré subia depressa naquele lugar e chegava
e uns dois metros acima da areia, nos rochedos... Virgem Maria, como é que ela ia
conseguir fazer com que Candice subisse pelo menos alguns degraus? As duas iam acabar
afogadas! – Por favor, pelo seu próprio bem – implorou, enquanto Candy continuava
tentando, ferindo os joelhos nas pedras ásperas.
Dominique não sabia se era ou não um milagre, mas de repente haviam subido um
degrau e depois dois, e ela não tinha mais certeza se carregava e puxava Candice ou se a
irmã, na verdade, estava ajudando.
Dominique quase morreu de alívio. Alívio seguido por uma onda quente de raiva.
– Onde foi que você esteve? Pensamos que não vinha mais! E a pobre da Candy...
– Eu não ia deixar que nenhuma das duas se afogasse! Mas eu precisava descobrir
se sua irmã tinha força de vontade suficiente para chegar até aqui... e parece que as irmãs
Davis são decididas, não acha?
– Quer dizer que... – Dominique olhava para ele, incrédula. – Então esteve
escondido ali o tempo todo, olhando nossa luta?
– Eu... eu o odeio! – desabafou, quase sem fôlego. – Será que não imaginava o
perigo que corríamos?
– Acho que não! Gostaria que levasse minha irmã para casa enquanto procuro meus
óculos.
– Minha pequena, sinto muito, mas não pode fazer isso. Seus óculos devem estar
debaixo d'água.
– Como aconteceria com a gente! – Dominique deu uma olhada por sobre os
ombros e viu com dificuldade que a água já cobrira a este.ira de Candy e levara embora o
livro, a lata de biscoitos e seus óculos. Lembrava-se vagamente de que eles haviam caído
quando levantara Candy. E agora começava a sentir as dores das batidas e arranhões que
arranjara naquela aventura maluca de querer escapar da maré. – Acho que eu o odeio
mesmo, don Vittorio! Acho que é o homem mais impiedoso que já conheci!
– Provavelmente está certa – concordou ele –, mas esta não é nem a hora nem este o
lugar para discutirmos isso. Vamos deixar para outra ocasião, está bem?
Dominique olhava, furiosa, para as costas largas de don Vittorio, enquanto ele subia
o resto da escadaria, carregando Candy. Naquele instante, ela o julgava apenas um monstro.
Um monstro que as deixara completamente desesperadas... e desamparadas.
– Onde está Tony? – Olhou à volta, mas ele não estava por ali. – Oh, não, ele
também está querendo brincar conosco?
– Tony foi fazer um serviço para mim – explicou don Vittorio, com calma.
Candice estava quieta no colo dele, a cabeça apoiada em seu ombro. Assustada,
Dominique foi ver se a irmã não estava desmaiada.
Candy abriu um pouco os olhos e um leve sorriso apareceu nos lábios pálidos.
– Mas eu não gosto de truques, don Vittorio – disse Dominique, com severidade.
Mas, de qualquer modo, os métodos dele haviam dado resultado. Talvez agora
Candy se conscientizasse de que precisava mexer mais vezes as pernas, fazendo exercícios
e massagens.
– Existem ocasiões em que se deve tentar tudo. Gostaria que acreditasse que minha
intenção foi a melhor possível – disse ele, começando a andar mais depressa.
Continuou descansando ali, mesmo depois de ter melhorado. Candy estaria bem, a
empregada decerto lhe levaria uma boa xícara de chá. Ah, uma xícara de chá... Dominique
sabia que precisava de uma, mas não sentia coragem de levantar-se. Ficou ali, admirando o
jardim e descansando mais um pouco. Acabou levando um susto, ao ver um dos
empregados da casa se aproximando com o remédio que mais desejava: uma xícara de chá
bem quente e forte.
– Don Vittorio disse que a senhorita estava precisando disso – disse ela, entregando-
lhe uma pequena bandeja de prata.
– Oh, obrigada!
Dominique sentiu um leve aroma de conhaque no chá e admirou-se com a
complexidade do caráter do homem que tivera a coragem de torturá-la e a gentileza de
mandar servir-lhe algo que a acalmaria e lhe faria bem.
– Estou bem, obrigada – respondeu, forçando um sorriso. – Vou entrar assim que
acabar de tomar meu chá.
O empregado se afastou, e sem dúvida iria dizer aos outros que a enfermeira Davis
estava meio esquisita.
Mas, na verdade; tinha que dar a mão à palmatória: o truque dera certo. Candice
revelara vontade de andar novamente e de voltar a ser a mesma moça de antes.
Então Dominique retornaria à Inglaterra e tudo teria sido um sonho. Ela nunca mais
voltaria a ver don Vittorio...
Continuava sentada ali, os olhos cinzentos fixos no vácuo. Nunca mais ver aquele
homem...
A descoberta estava doendo e ela não podia sentir-se assim. Precisava ir embora
logo. Quanto mais depressa Candy estivesse andando, melhor. Dominique retomaria seu
caminho, um caminho onde não havia lugar para os homens. Principalmente para um como
don Vittorio!
– Já teve tempo para refletir? – perguntou ele, a voz grave e sonora. – Já percebeu
que, às vezes, para se fazer um bem, tem-se que ser cruel?
– Quais foram as bobagens que andou pensando aqui, enquanto bebia o chá?
– Não mesmo? – Procurou os olhos dele. – Não enxerga nada sem seus óculos?
– Vejo tudo enevoado. Mas graças a Deus os que perdi eram os óculos de sol. Os
outros estão no meu quarto.
– Não era isso que pensava quando disse que me odiava e que eu era a pessoa mais
impiedosa que já conhecera. Sentimentos fortes demais, não servem para uma mulher que
pretende ser freira.
– Está querendo descobrir como sou por dentro? – perguntou ele, com calma.
– Não acho. O que consegue ver, enfermeira, quando olha para mim com seus olhos
cinzentos?
– Vejo um homem...
– Existe alguém assim em cada família, não? Na família Davis é você. Sua irmã é
mais moderna, mas deixe-me localizá-la no tempo. – continuou, chegando mais perto e
observando-a com atenção.
– Eu não estou num balcão. E como é que uma enfermeira pode ser romântica, se só
lida com o lado realista da vida?
– Será que está certa nessa afirmação? Eu, na verdade, esperava que sua irmã se
esforçasse para andar, se percebesse que corria perigo. – E apertou os olhos. – Ou será que
imaginou que eu as abandonaria mesmo?
– Foi.
– Os homens às vezes são assim.
– E não vou ser perdoado? Todo mundo merece perdão, diz a Bíblia.
– Não se esqueça de que fui educado num colégio jesuíta. Fui para lá muito moço e
me ensinaram que os pecados da carne levam ao inferno, quer dizer, que o diabo é uma
mulher...
– Mas... – E ela piscou, pois o olhar dele a perturbava tanto quanto um raio de sol –
mas não me parece ser alguém que acredite em superstição, e ainda assim...
– Não ofende, mas é irônica. – Um forte rubor cobriu o rosto de Dominique. – Sabe
muito bem o que estou dizendo, por isso não finja...
– Talvez seja você quem esteja fingindo – afirmou ele, baixando os olhos.
– Como nunca atraiu os jovens tolos como sua bela irmã, talvez tenha chegado à
conclusão de que nunca seria atraente para nenhum homem. Os moços muitas vezes
enxergam apenas a superfície, e não as profundezas, e, porque sua irmã tinha o jeito mais
charmoso, nunca ocorreu a você que poderiam existir homens que desejassem algo mais
profundo do que a beleza...
Don Vittorio falava e sorria. Dominique se retraía cada vez mais. Aquele homem
lhe lembrava um tigre à espreita da presa.
– Ora, diga com franqueza: gostaria mesmo de atrair uma porção de jovens
bobocas?
– Não! – disse ela, com honestidade. – Mas veja... nenhum deles sequer me beijou...
Dominique nunca saberia por que repetira aquilo, e ainda mais para don Vittorio!
– Ah! – disse ele com voz macia, e, quando ela achava que o momento de perigo
havia passado, ele a segurou e a levantou do banco. – A gente pode dar um jeito nisso...
– Isto! – E ele baixou a cabeça sobre ela, cobrindo-lhe os lábios, com ternura.
Dominique sentiu o coração disparar. Quando quis lutar, seus pés perderam o apoio e ficou
presa apenas pelos braços de don Vittorio. – Fique quieta...
Os lábios desceram-lhe pelo pescoço até a abertura de sua blusa e quando ela
protestou, voltaram à sua boca, num beijo persistente que parecia querer sufocá-la.
– Eu... eu não preciso desse tipo de terapia... – conseguiu falar, com esforço.
– Terapia? – caçoou ele. – Que palavra mais clínica para uma coisa que deve ser
considerada apenas como prazer!
– Eu não senti prazer...
– Sensações desagradáveis...
– Já fez isso com muitas mulheres'? – perguntou ela, com desprezo, sentindo que
aos poucos, as forças lhe voltavam e, com elas, a dignidade ofendida.
– E por que não, quando você teve a audácia de dizer que meus carinhos eram
desagradáveis?
– É que me obrigou. Eu não queria ser beijada! – Dominique sentia o rosto quente e
os lábios queimando.
– Quando uma mulher repete a um homem que nunca foi beijada, está pedindo o
óbvio.
– Sabia que eu não estava pedindo... é que escapou... – Ela sentia-se perturbada e
percebeu o quanto estava desarrumada. Tentou, sem conseguir, abotoar a blusa.
– Será que posso ajudá-la? Não estou tremendo tanto quanto você.
– A maioria dos comentários como esse escapam sem querer... Esses botões estão
errados.
– Permita-me dizer que todos nós gostamos de acreditar que controlamos nossos
atos e nossas palavras, mas isso não é verdade. Há uma parte de nós que fica oculta nos
recônditos de nossa mente e que, nos momentos mais inesperados, pula para fora e nos
pega de surpresa. É o chamado subconsciente, e você, como enfermeira, não pode negar-lhe
a existência. Olhe o que ele fez com Candice.
– Eu quero tanto que Candy fique boa novamente... Ela precisa, pelo bem dela e de
Tony.
– Sim, também.
– Mas você tem sua vida para viver, não acha? – Havia tanta ironia naquela voz que
Dominique mordeu o lábio.
– E você chama viver o fato de cobrir os cabelos com um véu e trancar seus desejos
naturais? É tudo muito bom para a alma, mas você também tem um corpo, não se esqueça.
Será que pretende ignorá-lo?
– Que pena! – E ali estava ele, as mãos nos bolsos, o sol nos cabelos. – Então, se sua
irmã estiver mesmo a caminho da cura, pretende ir logo embora de minha casa?
– Sim. Estou aqui apenas por causa dela. – Dominique olhava o relógio com
dificuldade. – Já está na hora de ir vê-la.
– Eu detesto esse seu relógio de pulso – disse ele. – Gostaria que me permitisse dar-
lhe um outro. Pode ser o último presente que recebe de um homem...
– Já está começando outra vez, enfermeira! – Um leve sorriso apareceu nos lábios
dele. – Está correndo o risco de arranjar um complexo de inferioridade.
– E o senhor não corre esse risco, não é? – Dominique dizia ferozmente para si
mesma que não queria nada dele... não queria lembranças do modo como ele olhava e
falava e como podia mexer com sua sensibilidade. – Eu teria receio de estragar um bom
relógio, senhor. Prefiro este mesmo....
– Não toque em mim! – avisou, afastando-se num impulso. – Não toque mais em
mim... nunca mais!
– Está com medo de quê? – perguntou ele, com um riso seco. – De você ou de mim?
– Não gosto de ser usada como diversão... Faz com que eu me sinta vulgar!
Havia uma ameaça tão real naquela voz que Dominique não esperou para ver se ele
cumpria a palavra. Virou-se e correu, tropeçando pelo caminho que levava à casa. Não
enxergava direito e ao chegar nos degraus que davam na porta, tropeçou, tentou se
endireitar e caiu de quatro no chão.
Gemia de dor quando duas mãos fortes a puseram em pé... mãos que antes a haviam
tocado e transmitido, como agora, a mesma corrente que parecia percorrer todo o seu corpo,
da cabeça aos pés.
Capítulo VI
– Eu estou bem! – Dominique afastou a mão dele e tentou escapar. – Não faça isso!
É que ele lhe batia de leve na saia, para tirar a poeira, e olhava, admirado, o joelho
que começava a sangrar.
– Venha, vou levá-la para dentro enquanto ainda está inteira. – Don Vittorio
segurou-a pelo cotovelo e a conduziu até o hall. – Vá tratar desse joelho ferido antes de
começar a tratar de qualquer outra pessoa! Será que consegue subir a escada sozinha, sem
acabar caindo, morceguinha?
– Eu... eu teria os meus óculos, se não fosse por você! – Dominique lutava para
livrar-se das mãos dele, encarando-o zangada. – Espero que Candice não fique com
nenhum trauma, depois do que fez com ela hoje!
– E você... ficou com, medo? – perguntou ele, parecendo mais divertido que
arrependido.
– Aposto como pensou que eu ia deixar que vocês se afogassem como gatinhos
rejeitados... Sua opinião sobre mim não é, das melhores, não? Bem, acho que não aconteceu
nada de mal com sua irmã, muito pelo contrário. Cuide um pouco mais de si mesma,
enfermeira, e não se esqueça de pôr mercúrio cromo nesse joelho.
Percorreu-a de alto a baixo com os olhos e depois virou-se, indo para o escritório.
Passou o dedo pela boca e sentiu crescerem novamente as estranhas sensações que o
contato com aquele corpo viril despertara em algum recôndito escondido do seu ser.
– Não!
Deu um salto, pegou a toalha, um uniforme limpo e foi para o banheiro. Uma vez no
chuveiro, esfregou-se inteira, dos pés à cabeça, numa limpeza que não chegava à sua mente.
Ali, as memórias ainda estavam vivas demais e, mesmo depois de estar pronta, vestida, com
os cabelos presos no coque habitual e os óculos sobre o nariz, ainda se via nos braços de
don Vittorio.
– Foi você quem conseguiu isso, Nicky... Oh, eu nunca mais vou me esquecer do
que senti quando vi minhas pernas se mexendo. Elas se moveram mesmo, não foi, Nicky?
Eu não estava sonhando?
– Você não estava sonhando, mas eu não mereço todas as glórias. A idéia de nos
deixar na praia, com a maré subindo, foi de don Vittorio... Uma espécie de tratamento de
choque.
– Está querendo dizer que... que ele fez de propósito? – Dominique inclinou a
cabeça.
– Ele não apareceu de repente para carregá-la nos braços másculos, querida. Estava
escondido, esperando para ver se eu conseguia que você se mexesse. Funcionou, é claro,
mas foi maquiavélico. Se... se ele tivesse me contado sobre esse plano, eu talvez não tivesse
insistido tanto para que você andasse... Ele é mesmo impiedoso!
– Certo! – respondeu Dominique, enfática. – Vou ficar feliz em vê-lo pelas costas...
– Verdade? – Candy fixava seus belos olhos azuis no rosto da irmã. – Você não
sente nada mesmo pelos homens? Quero dizer, não sente vontade de ser abraçada, de ser
tocada por um homem?
– Não adiantaria nada eu querer uma coisa dessas – respondeu Dominique, indo
pegar o termômetro do outro lado da cama. Deu uma sacudida nele e pediu: – Ande, Candy,
levante o braço.
– Talvez fosse melhor você tirar a “sua” temperatura, Nicky – avisou Candice.
– Por quê?
– Está muito vermelha. Você parece... Bem, parece meio diferente, sabe?
– E porque estou muito contente com você – disse a moça, colocando o termômetro
sob o braço da irmã. – Vou insistir para que descanse o resto do dia, mas amanhã. E
amanhã, Candy, a gente vai tentar mexer essas pernas novamente.
– Acho bom você fazer força, ou então seu cunhado vai aprontar mais uma. Ele
deveria ter vivido no tempo dos Bórgia, quando as famílias estavam sempre fazendo
intrigas e complôs. De qualquer modo, apesar da aventura de hoje cedo, você está com uma
ótima aparência. Seu pulso está bom e não tem febre – disse, conferindo o termômetro.–
Está satisfeita consigo mesma, irmãzinha?
– Se você ama Tony, querida, está na hora de lutar para tê-lo de volta. Não sei como
é que ele pode querer outra mulher quando tem você. Agarre-se a esse pensamento que ele
fará muito mais por você do que qualquer remédio. Sabe, está parecida com uma antiga
artista de cinema, uma loira belíssima chamada Jean Harlow.
Candice pegou o espelho que Dominique lhe trouxera e analisou sua imagem.
– Jean Harlow era uma deusa do sexo, não era? E morreu com vinte e seis anos...
– Eu apenas disse que você se parecia com ela; não comece a querer encontrar
outras semelhanças. E agora diga-me: o que quer para o almoço? Que tal uma omelete de
queijo, salada, melão e um copo de vinho?
Candice riu.
– Nunca! Você nasceu para ser enfermeira, sabia? Oh, Nicky, não volte para a
Inglaterra quando eu ficar boa! Não se torne freira. Daí eu nunca mais vou ver você...
– Sabe mesmo? – Candy a encarava, séria. – Já ouvi dizer que as mulheres que
viram freiras estão se escondendo de si mesmas.
– Que bobagem!
– Eu até concordaria se fosse outra pessoa, mas... Nicky, você nunca foi uma beata
metida a santa! As outras acham que só o trabalho duro leva ao céu. Não se lembra da velha
irmã Clare? A coitada da velha nem podia usar as mãos no fim da vida, tão cheias de artrite
estavam, causadas por tanto esfregar o chão do convento... Oh, Nicky, não fique como ela!
– Você só se lembra das mãos da irmã Clare – disse Dominique, sorrindo. – Quando
me lembro dela, recordo a tranqüilidade daquele olhar. Ela era uma mulher feliz; querida,
mas você era criança demais para perceber...
– Bem, essa não é a minha idéia de felicidade... E o que é a felicidade, afinal? Não é
tão fácil assim de encontrar, não é verdade? Quando conheci Tony, achei que a havia
encontrado, mas, em vez disso, descobri a tristeza de dividi-lo com mais alguém. Eu tenho
que ficar aqui deitada e me conformar. Mas depois, quando ficar boa, vai ser diferente.
Prefiro abandoná-lo a continuar com essa vida! Não acha que estou certa, Nicky?
– Eu perguntei a Malvina – confessou Candice. – Eu... eu tinha que ter certeza, e ela
o conhece melhor que ninguém. Além disso, não gosta de mim e, por isso, me contou a
verdade. Tony visita uma pessoa do outro lado de San Sabina.
– Ela gostou de me contar isso... ficou deliciada. Debruçou-se sobre a cama e disse
que havia um lado da vida de Tony que eu desconhecia e nunca compreenderia, porque sou
a mulher errada para ele. Disse que ele precisava de força e energia e tinha se casado com
uma pessoa fraca... E é verdade, não é mesmo, Nicky? Malvina contou que não foi Tony
quem me segurou no dia em que fiquei tão doente; disse que foi don Vittorio, mas que eu
não precisava me incomodar, porque às vezes ele cuidava, do mesmo modo, de alguma
vaca doente a noite inteira...
O silêncio penetrou no quarto depois que Candy parou de falar. Dominique sentiu
revolta e nojo, mas controlou a raiva e disse:
– A coisa mais importante é você recomeçar a andar. A gente vai resolver todos os
problemas depois que isso acontecer. Mas agora vou tratar do seu almoço. O que vai
querer?
– Omelete de queijo está ótimo! – Uma pequena chama azul iluminou os olhos da
moça doente. – Não se esqueça do meu copo de vinho, hein?
– Não me esquecerei.
Então, ao atravessar o hall, encontrou Tony, que trazia um maço de belíssimas rosas
amarelas. Ao ver as flores, Dominique sentiu um ímpeto de jogá-las ao chão. Entendia
agora o que Candy sentira, ao ganhar o colar de pérolas e dar com ele no rosto do marido.
– Eu vi estas flores na cidade e não pude resistir – disse o rapaz, sorrindo, alegre,
deixando à mostra os belos dentes brancos. – Vittorio me mandou até lá, para ver se
resolvia uma questão entre dois fazendeiros... Ei, o que aconteceu, Nicky? Candice não está
bem?
– O que está querendo dizer? – Uma sombra de dor apareceu nos olhos dele. – Você
sabe que eu me importo, e muito, com o que acontece com ela... Está mal novamente?
– Fisicamente está ótima, melhor do que nestas últimas semanas, mas é o coração
dela que está ferido, Tony, e você sabe a razão. Você causou essa tristeza.
Tony baixou os olhos para as flores e tocou uma delas com um dedo.
– Nicky, eu gostaria de, falar com você. Será que poderia conversar um pouco
comigo? Digamos, depois do almoço?
Dominique ficou sem saber o que dizer. O que ele poderia querer dizer a ela que não
devia ser discutido com a esposa? Seria a possibilidade de um divórcio'? Agora isso já era
possível na Itália, mas os Romano seguiam as regras da Igreja Católica.
Além do mais, estava certa de que don Vittorio obrigaria o irmão a cumprir o que
prometera na cerimônia do casamento. Candy não era católica, mas ela se convertera há
muitos anos e também não aceitava o divórcio.
– Por acaso minha irmã tem a ver com o que você quer falar comigo, Tony?
– Tem. – Ele inclinou a cabeça, olhando sério para a cunhada. – Será que poderia
encontrar-se comigo às duas e meia, no mirante do jardim? Candy vai estar descansando.
– E o que você vai me dizer magoaria Candy?
Dominique não conseguia evitar que a voz tremesse. Achava que devia estar
zangada com Tony pelo modo como fazia sua irmã sofrer, mas havia uma certa tristeza nos
olhos do rapaz que a deixava meio confusa. Candice o havia enganado na ocasião do
casamento, era certo, mas se, na ocasião, ele já tinha alguém que o esperava na Itália, então
não deveria nem tê-ta levado para o fim de semana em Paris, Candice era alegre e
desinibida, mas não uma leviana, e, se fora com ele, é porque já estava perdidamente
apaixonada.
– Eu nem sei bem o que dizer... Sabe que gosto demais de minha irmã, não sabe?
– Sei, e ninguém cuidaria dela com maior desvelo, Nicky. Você é uma pessoa
compreensiva, e é por isso que preciso lhe falar. Por favor, diga que me escutará!
– Não fale nada a Candy – pediu o rapaz. – Obrigado, Nicky! Que bom que você
concordou! Será que ela vai gostar das rosas? São quase da mesma cor que os cabelos dela,
não acha?
Dominique não pôde deixar de sorrir. Não conseguia compreendê-lo. Tony parecia
ter um afeto sincero por Candice, mas, se Malvina tivesse falado a verdade, ele andava
vendo outra pessoa. Será que iria lhe contar quem era essa outra pessoa?
– Verdade? Precisamos dar um jeito nisso. Ele guarda lá algumas das esculturas que
faz em madeira e você ficaria interessada...
– Por favor, Tony – interrompeu-o ela –, não vá dizer a ele que eu gostaria de ver o
escritório. Não se esqueça de que aqui sou apenas a enfermeira.
– Está achando que Candy viveu poucos momentos de felicidade a meu lado, não?
Acha que, se eu já tinha um compromisso em San Sabina, devia ter ficado longe de sua
irmã, não é?
– Mas, Nicky, você tem que compreender! Candice era tão viva, tão alegre, e
quando dançávamos ou estávamos juntos nada mais importava! A gente se envolveu...
essas coisas acontecem.
– Eu sei – respondeu Dominique, numa voz mais suave. – Não sou tão tola a ponto
de não perceber que os sentimentos às vezes passam por cima das decisões que a gente
toma. E, para ser justa com você, Tony, deve dizer que sei que Candy mentiu para forçar o
casamento. E isso porque o amava demais, tem que acreditar.
– Todos nós gostamos de ser amados – disse ele, meio triste. – Gostamos, mas isso
pode nos levar a complicações sérias. Eu não sou forte como Vittorio e até hoje ignoro por
que ele não acabou comigo...
Tony se interrompeu e Dominique o encarou, surpresa.
– E por que ele iria querer fazer uma coisa dessas? Lógico que não seria por você ter
se casado com Candy, não?
– Oh, não! Você não está entendendo! Isso tem a ver com o que quero contar-lhe
mais tarde. Vai ao mirante, não vai?
– O que é, Nicky?
– Deus do céu! – Um brilho rápido apareceu nos olhos dele, mas logo se apagou. O
que o perturbava não devia ser coisa pequena, e Dominique sentia um cheiro de tempestade
no ar. – Você a viu andando? Estava perto quando aconteceu?
– Sim, eu estava bem perto. Candy vai contar para você, e fique alegre como ela...
– Claro que estou alegre! O que pensa que sou? Acha que gostei de ver o jeito como
ela fitou?
– Alguns homens podem até achar conveniente ter uma esposa paralítica, que fique
deitada o dia inteiro. Assim é mais fácil manter um caso com outra mulher. É isso que você
anda fazendo, não é mesmo? É por isso que precisa conversar comigo... para aliviar sua
consciência?
– Então quer dizer que ama Candy e essa outra pessoa ao mesmo tempo? É isso,
Tony? Você ainda gosta da minha irmã?
– Claro que eu gosto, Nicky! Não quero magoá-la e preciso que você me diga o que
fazer.
– Tony, não pode me pedir isso! – Dominique sentia o coração disparar. – Você
mantém um relacionamento amoroso com outra, é lógico que Candy vai sofrer! Não pode
ser evitado, mas eu gostaria que você esperasse até que ela ficasse mais forte e pudesse
decidir o que fazer.
– Eu sei. Mas eu lhe imploro que me deixe falar desse caso com você...Preciso falar
com alguém, e você, Nicky, é bondosa. Tem pena dos que estão com problemas, e eu... eu
estou com um grande problema.
Tony se parecia tanto com um garoto em dificuldades que Nicky ficou mesmo com
pena. Percebeu que, se ele não desabafasse com ela, seria capaz de falar do caso com a
própria Candy, o que iria complicar seu restabelecimento.
– Eu vou me encontrar com você, Tony – prometeu. – Escutarei o que tem a dizer.
Apenas lhe peço que não diga nada a Candy. Ela está começando a melhorar e, se acontecer
alguma coisa... você entende, não ê?
– Não dependa de mim para resolver seus problemas, Tony. Eu estou inteiramente
do lado de Candice.
– Eu já esperava, mas você é uma pessoa justa e sei que vai ser bom conversarmos.
– Então, até as duas e meia – prometeu a moça. – Candy vai adorar as rosas! Ela
agora precisa de muito estímulo, Tony.
Dominique ficou observando enquanto ele subia a escada. Depois continuou seu
caminho, rumo à cozinha, para pedir o almoço da irmã.
Dominique continuava a pensar no que Tony queria dizer quando comentara que
não sabia por que o irmão não havia acabado com ele. O que poderia ter acontecido de tão
sério? Será que ele iria lhe contar? Que coisa era essa, que abalara tanto os dois irmãos e
que agora ameaçava o casamento de Tony?
Dominique sorriu de leve, sabendo que Dino era o preguiçoso marido da cozinheira,
que passava o dia todo jogando cartas com os amigos, na cidade. É... parecia que os
italianos não se importavam muito com suas esposas...
Dominique estremeceu, assustada. Não, não era em Tony que estava pensando. A
imagem que lhe vinha à cabeça era a de don Vittorio... nos braços de outra mulher!
– Casar com um italiano? – indagou uma voz irônica. – Ela não iria saber o que
fazer com ele! Se a Srta. Davis tivesse o sal e a pimenta que atraem um homem, não teria
essas idéias de virar freira!
Dominique levantou-se.
– Eu sugeriria que as duas entrassem para o convento – disse. – Antônio não quer
mais a esposa, ele tem coisas mais interessantes. Eu já disse a ela... Bem, ela perguntou;
não é?
Dominique pegou a bandeja e foi indo em direção à porta. Talvez estivesse sendo
dramática demais, mas Malvina usava um daqueles anéis antigos, parecidos com os que os
Bórgia enchiam de veneno. A pedra grande brilhava naquela mão morena como se fosse o
olho do mal.
– É você quem vai ver. – Dominique parou, a bandeja nas mãos, os olhos firmes
enfrentando Malvina sem medo. – Don Vittorio é meu cunhado e exercerei meus direitos
nesta casa, se você se atrever a entrar mais uma vez no quarto de minha irmã com suas
insinuações maldosas. Tony agora é um homem, não tem mais necessidade de uma babá
para segurar-lhe a mão. Eu até acho que ele é uma pessoa instável e fraca por sua causa;
você o fez assim, para se tornar indispensável. Todos nós podemos ser substituídas, cama
você tão bem explicou para Candice. Bem, se por acaso Tony preferir outra pessoa, então
que fique com ela! Minha irmã certamente tem o sal que atrai dúzias de homens e eu... eu
ficarei feliz em levá-la daqui. Uma casa só é agradável e gostosa, se nela existe amor, mas
não vi nada disso, desde que cheguei a Vila Dolorita!
Dominique acabou seu discurso. Virou-se para sair da cozinha, a bandeja ainda nas
mãos, e quase colidiu com alguém no corredor.
– Você é que tem que tomar cuidado! – Era don Vittorio, que olhava para ela de
cara feia. – Escutei tudo o que disse. Qual é o significado disso?
– Se me escutou – disse ela, ainda na ímpeto da luta –, não preciso explicar nada,
não é mesmo?
– Não se atreva a falar comigo desse jeito, e não saio do caminho em minha própria
casa!
– Sei muita bem que esta é a sua casa, mas fui convidada a vir aqui para tratar da
esposa de seu irmão, e gostaria que ela pudesse almoçar enquanto a comida ainda está
quente. Você tem que admitir que os pratos italianos perdem muito o sabor, se chegam a
esfriar.
– Par favor...
Dominique sentia que a raiva passava. Já começava a se arrepender. Ela mesma não
aprovava o que dissera da casa, mas nunca detestara tanto uma pessoa como detestava
Malvina. Nunca sentira vontade de agarrar alguém pelos cabelos e bater até cair, e esse
impulso de violência a deixara envergonhada e abatida... Não seguira os conselhos da irmã
superiora, de que devia sempre enfrentar as adversidades com dignidade.
– Estou percebendo que ficou muita agitada com alguma coisa – disse don Vittorio,
dando-lhe passagem e fazenda um gesto com a mão. – Falaremos sobre isso depois.
– Não vou poder – disse ela, sem querer. – Vou me encontrar com... com outra
pessoa.
– Outra pessoa'? Um homem? – Disse isso como se tivesse algum direito sobre ela,
e Dominique sentiu que uma centelha reacendia o fogo que dormia em seu íntimo.,
– Sim, um homem –, respondeu, desafiante. – Será que tem alguma objeção, don
Vittorio, de que eu passe meu tempo livre do modo como entender?
Dominique simplesmente não sabia por que não dissera de uma vez que iria se
encontrar com Tony para ajudá-lo. Talvez estivesse agindo assim porque a odiosa Malvina
mexera numa ferida que ela já imaginava cicatrizada.
– É isso mesmo! Alguém para se bater e limpar os pés. Tenho certeza de que a
definição serve exatamente para uma pessoa tão sem sal quanto eu!
Candy, pedia ela mentalmente, fique boa logo para que a gente possa ir embora
desta casa e voltar à Inglaterra. Eu vou continuar com a minha enfermagem e você com a
sua dança, mas pelo amor de Deus, nunca mais se envolva com um belo italiano! Arranje
um inglês da próxima vez, tenha filhos com ele e seja razoavelmente feliz!
– Ah, seu almoço, querida! Você tem que comer tudo, para me agradar.
– Tony, fique comigo... por favor! – Os olhos azuis imploravam, mas ele pegou a
mão da esposa, beijou-a e foi indo para a porta.
– Preciso fazer a barba, querida – disse, passando a mão pelo rosto áspero. –
Vittorio me pediu para sair tão cedo que não tive tempo, para nada. E nós, italianos, temos
uma barba que cresce muito depressa. Você não quer que eu fique barbudo, não é?
– E alguma vez dei a entender que não a queria, amor? – perguntou ele, já na porta,
sorrindo, mas Dominique notou novamente a tristeza naqueles olhos escuros. – Vá
almoçando como uma boa menina. Eu volto depois; está bem? Antes de você tirar a soneca
da tarde.
– Candy, você precisa de comida e descanso, se é que quer ficar boa depressa.
Tenha juízo e não queira apressar as coisas.
– Você! – disse Candice, olhando para ela com ressentimento. – Como pode saber o
que estou sentindo? Nunca quis dormir com um homem!
– Oh, ele foi embora! – choramingou Candy. – Por que você tinha que nos
interromper? Eu não quero almoçar! – E fez um movimento para empurrar a bandeja para o
chão.
– Se você fizer isso, como uma criança mimada, vou embora hoje mesmo! Estou
falando sério, Candy. Estou começando a achar que já cansei de todos vocês! Por que você
não cresce e começa a se comportar como uma pessoa adulta, em vez de agir como uma
adolescente?
– Então experimente! Jogue essa bandeja no chão que eu faço minhas malas, chamo
um táxi e me mando daqui! Vou levar a minha vida e deixar que leve a sua! Somos adultas,
apesar de você preferir agir como uma garota de quinze anos, sabia? E até já provou que
pode andar, se fizer força. De resto, precisa de mim apenas como um capacho, alguém que
vá buscar às coisas que você quer e que cale quando você resolve insultar!
– Você está zangada por causa do que falei? – perguntou Candice com sua voz de
criança. – Eu só falei aquilo, Nicky, porque é verdade... Você não se interessa mesmo por
homens.
– Nicky, essa foi a coisa mais malcriada que já ouvi você dizer!
– E provavelmente foi a coisa mais certa que já falei. Por que todos pensam que
meus sentimentos não são iguais aos de todo mundo?
– Porque você vai entrar para o convento – afirmou Candy, começando a comer. –
As mulheres que fazem isso não estão interessadas em homens, não é? Quero dizer,
sexualmente. Elas são frias, não são?
– Como eu? – perguntou Dominique, seca. – Com a minha feiúra toda, nem
adiantaria eu me interessar pelos homens, não acha?
– Você não é mesmo bonita – afirmou Candy; meio convencida. – Mas seus cabelos
são lindos e seus olhos têm uma cor muito especial. E, com essas pestanas compridas, você
nem precisaria usar pintura... Se eu fosse você, Nicky, usaria lentes de contato. Óculos
deixam você...
– Hum! Que delícia de pizza! – disse Candy, ocupada com a fatia que a cozinheira
havia cortado para Dominique. – Só Vittorio mesmo, para ter uma cozinheira tão boa! Para
ele, tudo tem que ser do bom e do melhor! – Encarou a irmã. – Bem, Dominique, você tem
cérebro, passou em todos os exames Com a maior facilidade e sabe tanta coisa que faz com
que eu pareça uma burra. Alguns dos rapazes que eu levava para casa tinham medo de abrir
a boca na sua frente, achavam-na intelectual demais. Não acreditavam que fôssemos
irmãs... Oh, Nicky, não me deixe aqui sozinha! Você não vai embora, não é mesmo? Você
não falou sério, falou?
– Naquela hora eu falava sério – disse Dominique, rindo. – Normalmente não perco
a cabeça, mas hoje parece que todo mundo anda querendo me provocar.
– Quem? – Candy pegou uma costeleta e começou a comê-la com gosto. – Conte
para mim!
– Por enquanto você vai terminar de almoçar – disse Dominique, com firmeza. –
Deixe o futuro para depois, não antecipe as coisas.
– É muito fácil falar, mas não é fácil se afastar de alguém que se ama, Nicky.
– Imagino que não seja mesmo. Mas quero que você recupere suas forças, por isso
coma a outra costeleta e o resto dessas batatinhas. Hoje quero levar de volta para a cozinha
uma bandeja cheia de pratos vazios.
– Nicky, será que nunca se cansa de cuidar de doentes e de animá-los? Nunca sente
vontade de... de amar?
– E é essa toda a satisfação que você vai querer na vida? – Candy estudava a irmã
com certa preocupação. – Detesto imaginá-la como freira. Quer dizer que nunca vai ter um
homem para abraçá-la e deixá-la louca... Nicky, é emocionante! E diferente de tudo na
vida, e eu sei que não poderia viver sem essa alegria maravilhosa de ter alguém tão junto...
– Claro que não! Você é feita desse jeito, tem uma natureza vibrante.
– E você também! – declarou Candice. – Nós somos irmãs e não podemos ser assim
tão diferentes... temo é que pode achar que vai conseguir trancar todos os seus sentimentos?
Como é que você vai fazer, Nicky?
– Não acredito!
– Oh, Nicky, você nunca sentiu nada, nada mesmo, por homem algum? Nunca se
apaixonou por um médico?
– Então quer dizer que seu coração nunca disparou por ninguém? Que suas pernas
nunca ficaram bambas quando um homem chegou perto e olhou dentro dos seus olhos,
como se quisesse dizer: “Eu poderia possuir você, aqui e agora, e seus gritos não iriam me
impedir”... Isso nunca aconteceu com você, Nicky?
– Não.
Mas sabia que estava mentindo, que enganava a garota adolescente que ela mesma
já fora, a garota que sonhava com um homem romântico que a adorasse.
– Sensata? – Candy fez uma careta. – Deus me livre, que palavra! Quem é que quer
passar a vida toda sendo sensata?
– Bem, para mim, ser sensata é uma coisa normal. Agora acabe essa salada de frutas
para que eu possa levar a bandeja.
– Nicky, pare de falar como uma velhota antiquada! – pediu Candy, enquanto catava
o restinho da salada de frutas.
– Você só tem dois anos a mais do que eu – retrucou Candy, exasperada. – Estou
começando a imaginar que tem é medo dos homens, um medo tremendo... é isso?
– Oh, mas eles eram garotos. Estou falando de homens... Homens como Vittorio,
por exemplo. O que acha dele, Nicky? Falando sério, não vejo como você possa ter deixado
de reparar em Vittorio... Tem medo dele?
– Céus, não! – Mas, mesmo para ela, a negativa parecia forçada. – Por que eu
deveria ter? Afinal, ele é um simples homem!
Dominique falava com calma, mas curvava os dedos dos pés dentro dos sapatos,
como quando tinha que enfrentar a madre superiora. Aquilo era um truque ensinado por
uma artista: se você fizesse isso, as tensões do resto do corpo não apareceriam. Bem, e
agora, para seu próprio espanto, tinha que fingir para a irmã que não sentia nada por don
Vittorio.
– Você está calma demais com tudo isso... – disse Candy, desconfiada. – Ele é
extremamente atraente, você sabe...
– Mas que coisa! E naquele jardim florido? – Candice parecia perplexa. – Então, só
comeram, falaram de coisas triviais e foram dormir?
– “Eu” fui, dormir – disse Dominique, severa. – Ele deve ter ficado até a meia-noite
fazendo a contabilidade da fazenda, mas acontece que depois me acordou para dizer que
você estava doente. Decerto foi por isso que acabei me esquecendo de mencionar um
evento tão importante... para você, claro.
– Deve ser... – Candice mordia o lábio inferior. – Eu... eu pensei que fosse morrer,
naquela noite... Nunca mais vou comer camarão, sabe? Sinto náuseas só em lembrar...
– Não pense nisso, já acabou e pronto – afirmou Dominique, tirando a bandeja do
colo da irmã e colocando-a num canto. – E agora, que tal experimentar dar mais uns passos
até o banheiro?
– Candy, vou segurar você, e desta vez não precisamos ficar com medo da maré.
Tente!
– Será que posso? – Candice parecia meio ansiosa e... meio relutante...
– Então está bem. – Candice empurrou as cobertas e ficou em pé, com a ajuda de
Dominique, mas logo caiu. – Não consigo... Deus! É como andar numa gelatina!
– Você pode fazer isso – insistia a irmã. – Uma pessoa pode fazer novamente, o que
já fez antes. E, se eu não conseguir segurá-la, você vai cair sobre o tapete macio, e não
sobre degraus de pedra. Faça um esforço, Candy. Essas suas pernas são lindas e fortes
demais para não serem usadas.
– Nicky, como você pode ser tão insistente? – E Candice tropeçava. – É assim com
todos os seus pacientes?
– Sou. Sou o terror sagrado! Assim... você está conseguindo, menina! Estamos
quase no banheiro... Isso, só mais alguns passos... Viva! Que maravilha!
– Eu posso andar! – dizia Candy, meio sem fôlego. – Oh, não é maravilhoso, Nicky?
Agora Tony vai me querer novamente... não vai?
– Claro que vai! – afirmou Dominique, mesmo que, na verdade, não estivesse assim
tão certa disso.
Capítulo VII
De certo modo, ela achava que o tempo estava apropriado. Um dia de sol não
combinaria com as más notícias que, tinha certeza, iria escutar. Na certa, Tony diria coisas
que afetariam a vida de Candy e Dominique já se sentia meio aborrecida ao chegar ao lugar
de encontro.
Entrou, fechou o guarda-chuva e o sacudiu do lado de fora. Tony ainda não havia
chegado, e isso era bom, pois assim ela teria tempo de pôr as emoções em ordem para
enfrentar com serenidade o que quer que ele fosse dizer.
Sozinha ali no mirante, Dominique começou a pensar que o amor podia ser
maravilhoso se correspondido. Mas era amargo como fel se a pessoa amada sentisse apenas
piedade, em vez de paixão. E ela notara piedade nos olhos de Tony. Se fosse apenas isso o
que restava da antiga paixão que ele tinha por Candy, então seria melhor que os dois se
separassem.
Dominique temia que Tony lhe pedisse para falar com a irmã, que explicasse a ela
que ele amava outra pessoa.
Oh, Deus! E como é que ia fazer isso? Havia se esforçado tanto para que Candice
voltasse a usar as pernas e agora as suas próprias pernas estavam tremendo!
– Isso logo seca. Sabe, eu nem fui olhar Candice, pois temia me atrasar. Ela
almoçou bem?
– Ótimo. Olhe, não sei como começar. Eu já havia ensaiado o que ia dizer a você e
agora... me atrapalhei.
– Só há um lugar por onde começar, Tony: pelo começo. Vamos lá, diga!
– Espero que você não fique chocada com o que vou dizer começou, parando em
frente a ela. – Acho que não é uma história muito bonita.
– Eu não esperava que fosse, Tony – afirmou ela, séria. Ele parecia desesperado e
infeliz, mas Dominique não sentia pena. Apenas conte tudo do modo mais simples. Vou
escutar, mas não prometo uma solução, pois, como já lhe disse, estou do lado de minha
irmã e tenho que considerar o bem-estar dela, não o seu.
– Sim, claro, eu entendo, mas, por favor, não fique contra mim, Nicky. Tente
compreender que homens e mulheres às vezes não controlam seus sentimentos. Nem todos
nós temos a sua disciplina. Eu a admiro por isso.
– Não me considere tão perfeita assim, Tony. Eu só queria que soubesse que, se
defendo Candy, é porque ela é minha irmã, a única família que tenho. E, se estou aqui
agora, é porque desejo acertar as coisas; não quero que ela sofra demais... Candy já sofreu
bastante.
Ele inclinou a cabeça e por seu rosto passou uma sombra de dor.
– Eu não deveria ter me casado com ela, não é isso que está querendo dizer?
– Sei que foi difícil para você, Tony. Ela sentiu, mas já falamos sobre isso... Agora,
seria melhor se me contasse sua história.
– Sim, claro. Não quer se sentar? Acho que este banco está seco.... Venha,
acomode-se aqui. – Passou um lenço sobre o assento e Dominique sentou-se. – Tudo
começou anos atrás – disse ele, apoiando as costas numa pilastra. – Eu ainda não tinha
dezoito anos, e, quando botei os olhos naquela garota... bem, foi como Romeu e Julieta...
Na Itália não é muito comum as mulheres terem cabelos loiros, mas aquela moça tinha, e
eles eram compridos e trançados à volta da cabeça. Os olhos eram cor de mel, os lábios,
cheios e rubros. Era a coisa mais linda que eu já havia visto, e, quando ela olhou para mim,
percebi que também tinha se sentindo atraída. Parecia a mulher da minha vida, mas era
noiva de outro homem... e esse homem era o meu irmão Vittorio.
– Posso?
A voz de Dominique era calma, mas ela fervia por dentro. Então era isso que ia
escutar? A história da sedução da noiva de don Vittorio por Tony? Talvez os outros
tivessem razão quando diziam que ela não compreendia a profundidade das emoções
humanas. E, pelo olhar de Tony, percebeu que aqueles fatos haviam acontecido ali mesmo,
na Vila Dolorita, e que a tragédia ainda marcava o local e as vidas dos irmãos Romano.
– A gente não conseguia se controlar – dizia Tony, com tristeza. – No começo nos
encontrávamos em segredo e só conversávamos. Amatrice estava na casa de uma tia, em
San Sabina apesar de morar em outra parte da Itália...
– Quer dizer que ele falou Com você sobre Amatrice? Ele contou que...
– Não. – Ela sacudiu a cabeça. – Ele apenas disse que ela era extremamente bonita e
que vinha de Vicovaro...
– Não, Tony. Duvido que don Vittorio pudesse ser desleal com alguém da família...
– Ah! – gemeu o rapaz, ficando rubro. – Eu não sabia que você dava golpes baixos,
Nicky.
– Talvez não me conheça muito bem. Não foi uma coisa bonita seduzir a noiva de
seu irmão, não é mesmo?
Ele ficou mais vermelho ainda e baixou os olhos como uma criança envergonhada.
Dominique pensou, então, que ele teria sempre aquele ar desprotegido e infantil, e
talvez fosse por isso que as mulheres se apaixonassem tanto. Só que com ela as coisas eram
diferentes, podia ver a fraqueza de caráter por baixo da bela aparência. Ele não era feito do
mesmo material que o irmão.
– Éramos os dois muito jovens, Amatrice e eu. Sei que não é desculpa para o que
fizemos, mas ela precisava de afeto e atenção e Vittorio parecia estar sempre ocupado com
os negócios. Então eu precisei partir para a universidade. Nós dois nos despedimos e
prometemos nos corresponder.
Tony fez uma pausa, olhando com tristeza para a chuva que caía. Dominique
percebeu que devia ser ali, naquele local, que os dois jovens se encontravam.
– Ela teve uma filha minha – disse ele devagar. – Vittorio não me avisou, e acho que
não deixou que ela me avisasse. Ele julgou que, se eu tivesse que assumir a
responsabilidade de uma esposa e uma filha com a idade de dezoito anos, estragaria minha
vida. Providenciou, então, para que Amatrice recebesse todos os cuidados, apesar de ter se
recusado a casar-me com ela, que teve um parto prematuro e, coitadinha, morreu dando à
luz a minha filha. Sim, Nicky, eu tenho uma filha. Tem oito anos e vou visitá-la
freqüentemente. Sei que tanto você quanto Candy pensavam que eu fosse ver uma mulher,
não é?
– Sim... – Dominique estava atônita. – E por que a criança não mora aqui, na sua
casa?
– Ela mora num lar para crianças retardadas – disse ele, com dificuldade. Virou-se
para encarar Dominique, os olhos cheios de dor. – Como se não bastasse a morte de
Amatrice, houve problemas também com a criança. Parece que o parto foi demorado
demais e aconteceu na casa de uma tia, que achou que podia dar conta de tudo sozinha...
Quando, por fim, chamaram um médico, e o parto foi induzido, a criança havia sofrido
traumatismo craniano. Ah, mas ela é tão linda, Nicky! É parecida com a mãe, mas será
sempre criança e talvez também não viva muito. Eu... eu a amo tanto...
– Não fique assim – murmurava –, essas coisas acontecem. É triste e é terrível, mas
as crianças merecem nosso amor e gostam de receber carinho. Você já deve saber disso,
não é?
– Não, Nicky, ela vai se virar contra mim. É muito parecida com Amatrice; precisa
de afeto e atenção. Por diversas vezes disse que queria um filho, e eu neguei. Quando
pensei que ela estivesse grávida, vivia morrendo de medo de que a criança pudesse ser
como Rosália...
– Sua filha é assim por acidente de parto. Se não fosse isso, ela seria perfeitamente
normal.
– Como posso ter certeza disso? – perguntou, uma lágrima ainda escorrendo pelo
rosto.
– Tenho certeza de que o médico lhe disse e o pessoal do lar onde mora Rosália
deve ter confirmado, não é verdade?
– É. – concordou Tony. – Você me diz para contar a Candy... Acha mesmo que ela
compreenderia? Ela é tão moça e esteve tão doente...
– Uma doença causada pelas malditas cartas anônimas que alguém lhe escreveu –
lembrou Dominique. – Você não entende? Ela imagina que você está apaixonado por outra
mulher, esse é o problema. Ela o adora e não sabe que você sai de casa para visitar sua
própria filha! Você precisa lhe contar sobre Rosália, Tony! Pelo bem das duas.
– Não, não posso – disse ela, com firmeza. – Você não deve ficar a vida toda se
escondendo atrás das pessoas, Tony. Tenho certeza de que Candice vai querer cuidar de
Rosália. Sei que minha irmã parece frágil e dependente, mas é porque todo mundo sempre a
mimou demais. Ela está precisando ter alguma responsabilidade séria na vida.
– É a verdade, Tony. Você mesmo disse que ela se parecia com Amatrice, e
Amatrice não era assim como uma borboleta, voando sob a luz do sol, sem se importar em
namorar você, mesmo estando noiva de don Vittorio? Você sem dúvida assumiu a culpa de
tudo que aconteceu, mas uma criança não nasce se a mulher não acompanha o homem. Seu
irmão sabia disso... e por essa razão não se casou com ela. Você não pode se esquecer,
Tony, de que seu irmão foi educado num colégio de padres, criado dentro de normas rígidas
sobre o que é certo e errado, e por isso às vezes pode parecer severo demais. Imagino que
ele também tenha sofrido, ao ver que a menina tinha problemas... Não duvido nada disso.
– Você acha? – disse ele, pensativo. – Ele nunca sugeriu que eu trouxesse Rosália
para morar aqui...
– Talvez... Mas Rosália se parece tanto com Amatrice, o mesmo cabelo e a mesma
cor de olhos, que eu achei que ele fosse se sentir constrangido com a presença da filha da
mulher com quem ia se casar. Vittorio é muito orgulhoso.
– Você acha mesmo que ela vai entender... e perdoar? – perguntou ele, enquanto
segurava Dominique pelos ombros e olhava fundo nos olhos dela. – Acha que ela não vai
ficar ainda mais aborrecida comigo?
– Candy pode ficar meio desapontada ao descobrir que você não é o anjo que ela
imagina, mas tenho certeza de que o ama demais e quer o seu amor acima de tudo.
– Eu teria me casado com Amatrice se tivesse sabido de tudo, mas Vittorio a proibiu
de me escrever. Ele pretendia entregar a criança para ser adotada e depois devolver a moça
aos pais, como se apenas tivesse brigado com ela e desfeito o casamento. Mas as coisas
saíram erradas...
– Como foi que você ficou sabendo da criança? – quis saber Dominique. – Vittorio
lhe contou que Amatrice morrera no parto?
– Não. Foi Malvina quem me contou. Eu fiquei horrorizado, furioso por Vittorio
não ter me contado. Nós tivemos uma briga terrível, mas acabamos fazendo as pazes.
Vittorio entendeu que eu precisava me manter em contato com Rosália; ela estava naquele
lar por minha causa, e eu não podia simplesmente me esquecer dela. Às vezes a levo ao
circo, pois ela adora os palhaços e os elefantes, e depois tomamos sorvetes. Sabe, a
aparência de Rosália é a de uma criança normal, mas ela é muda e surda. Por isso gosta
tanto dos palhaços, porque entende as brincadeiras deles. Ah, se Candice quisesse ficar com
ela, cuidar dela como mãe... Mas como é que posso ter certeza? Candy quer ter filhos e
pode não aceitar minha filha com outra mulher.
– É verdade, Tony, isso pode acontecer. Mas você precisa falar com ela, contar-lhe
tudo.
– Você já quebrou muitas? – perguntou ele, sorrindo, como se não pudesse acreditar
que ela já tivesse feito isso.
– Só algumas, muito pequenas, mas não me considere uma santa, Tony. É que uma
pessoa como eu quase não sofre tentações, sabe? Por isso não posso julgar você, Amatrice
ou mesmo seu irmão, que condenou o comportamento de vocês. – Dominique parou,
pensativa, e depois continuou: – Talvez ele não a amasse o bastante... ou então a amava
demais...
– Quem pode saber? Eu nunca pude compreendê-lo muito bem. Somos irmãos, mas
temos temperamentos diferentes... como você e Candy. Se o pai de uma criança surda-
muda fosse casado com você, nunca iria ficar preocupado... Seus olhos brilham de caridade,
Nicky.
– Sem dúvida – disse ela, meio seca. – Sou uma pessoa muito chata e muito severa,
e nem sempre achei bom ver Candy ganhando todas as atenções... A Coruja e a Gatinha, era
como as crianças nos chamavam no convento. Eu tinha sempre a cara metida num livro,
enquanto Candy vivia agradando todo mundo. Só tem uma coisa, Tony: será que seu amor
vai ser bastante grande para envolver Candy e Rosália? E se for preciso escolher, com
quem você vai ficar?
– Eu não quero que as coisas cheguem a esse ponto! – gemeu ele. – Eu quero as
duas, mas... mas não sei o que farei se Candy não aceitar minha filha. Nicky, não seria
melhor se você falasse com ela e explicasse como gosto dela, mas como também gosto da
minha filhinha? Por favor, faça isso... Explique as coisas com seu modo calmo e ela não vai
ficar nervosa... como aconteceu com as pérolas! Nós nos descontrolamos, Candy caiu e...
e...
Tony estava tão aflito que apertava Dominique com mãos de aço.
– Por favor! Não sei mais o que fazer! Candy não é como você, calma e serena, e sei
que, se eu começar a falar, vai ficar tudo errado. Quando se ama alguém, as emoções fazem
a gente perder o controle e no fim acabar falando coisas erradas. Esse é um caso muito
delicado, não concorda?
– Sim – disse a moça, suspirando. Pelo jeito, as pessoas apaixonadas não confiavam
em suas próprias emoções, pareciam viver sempre no meio de seu fogo interno, sempre
correndo o risco de se queimarem... O amor podia ser êxtase ou tormento, mas nunca uma
coisa simples e fácil. – Então eu vou ter que defender sua causa... – disse ela, encarando o
rosto atormentado do rapaz. – Mas creio que isso não vai adiantar muito. Vocês dois terão
que se enfrentar e resolver o caso. Eu não vou estar sempre aqui...
Em sua ansiedade por mantê-la como aliada, Tony puxou-a para si e, naquele exato
momento, uma voz disse, áspera:
– Será que você está aprontando outra vez, meu irmão? Está usando novamente o
mirante para encontros furtivos?
Assustado, Tony apertou-a ainda mais. Dominique não sabia o que dizer.
– Largue Dominique! – A voz era baixa e ferina. – A não ser que queira que eu
quebre seus ossos um a um!
Lutavam enquanto Dominique ficava ali, parada e horrorizada. O barulho dos socos
era terrível e ela só queria gritar.
Tentou novamente segurar Vittorio, e desta vez acabou ganhando um soco violento
no queixo. Saiu cambaleando e se estatelou no chão, sentindo a dor explodir pelo corpo
inteiro. E, apesar de saber que estava no chão, sentia como se ainda estivesse caindo...
caindo num buraco escuro.
– Santo Deus! – escutou alguém dizer ao longe, e sentiu que mãos fortes a
levantavam... Depois mais nada.
Sua cabeça pendeu e ela ficou largada, como uma boneca de pano, nos braços de
Vittorio Romano.
Abrindo os olhos, assustou-se ao ver que quem a ajudava, apoiando seu corpo e
segurando o copo, era o mesmo homem que a havia atingido com um murro.
Olharam-se. Ele parecia meio perdido, sem saber o que dizer. Dominique sentia o
maxilar dolorido e, com cuidado, explorou o interior da boca com a ponta da língua,
soltando um gemido de dor. Escutou quando don Vittorio soltou um palavrão em italiano.
Aliás, um belo palavrão.
– A empregada já foi buscar gelo, e você vai sentir menos dor... Está doendo, não? –
Ela fez que sim e ele a deitou nos travesseiros, um ar preocupado no rosto. – Acha que vai
precisar de um médico? Meu Deus, quando você caiu, pensei que estivesse morta... Por que
teve que se meter daquele jeito na briga?
– Talvez – disse ele, sério, e Dominique reparou num ferimento em seu rosto. – Foi
porque vi você com ele, ali... Já sabe sobre Amatrice, não é?
– Ah, sim, a criança... – O rosto moreno ficou sombrio, enquanto ele banhava as
faces de Dominique com água gelada. – Está se sentindo melhor? – perguntou, tirando uma
mecha de cabelo dos olhos da moça. – Você fez uma bobagem muito grande, Dominique;
meu punho poderia ter atingido seus óculos e machucado seus olhos.
– Eu é que não estava enxergando direito... Mas Tony a segurava e eu apenas pensei
que a história estava se repetindo.
– Amatrice era linda... Eu dificilmente atrairia seu irmão. Ele estava apenas me
pedindo conselhos sobre a criança. Gostaria que Candice a aceitasse. E quer que você faça
o mesmo, apesar de saber que é difícil. Por ser parecida com a mãe, ela estaria sempre lhe
recordando Amatrice...
– Acredita que foi por isso que nunca sugeri a Tony que trouxesse a menina para
cá?
– E não foi? – Ela se sentia indefesa perto daquele homem de ombros largos e das
lembranças que via queimando nos olhos dele. – Seria muito natural que se sentisse assim...
– Natural? – E ele levantou as sobrancelhas negras. – Acha que meu pobre coração
se partiria novamente?
– É... é que ia se casar com Amatrice, e ela...
As palavras atingiram Dominique como se fossem ferro em brasa, mas ela não
conseguiu afastar os olhos dos dele. Parecia hipnotizada por aquele cinismo cruel.
– Sente? Não teria sido muito pior se eu tivesse me casado com Amatrice e depois
ela se revelasse infiel?
– Pelo jeito, já recebeu também o suficiente de todos nós. Quando assumiu a tarefa
de cuidar de sua irmã, não imaginava ficar envolvida num problema familiar, não? Eu me
lembro de que chegou a pedir para ser tratada como uma enfermeira, e não como uma
parenta, mas nossas decisões e vontades muitas vezes fogem do nosso controle, como se
alguma força superior mexesse os pauzinhos... A vida é assim, nem sempre é bem
arrumadinha, entende?
– Sim, entendo.
– E no fim você acabou envolvida nesse drama familiar! E agora vem me dizer que
Tony quer assumir realmente o papel de pai. É verdade?
– Sim. Acho que ele está sendo sincero e que gosta da filha, mas não quer perturbar
nem Candy nem... você.
– Foi pena que ele não pensasse assim, antes de causar o nascimento da menina –
retrucou don Vittorio, os lábios numa linha dura e cínica. – Ele bancou o aventureiro,
Amatrice acabou morrendo e a coitadinha da Rosália nasceu... Tony lhe contou que ela é
muda e vai ser sempre infantil?
– É muita bondade sua, Dominique. Eu pensei que, com suas idéias, você
condenaria todo mundo.
– Acredito não ser assim tão cheia de preconceitos – protestou Dominique, sentida.
– Os dois eram muito jovens e deixaram que as emoções tomassem conta. Poderia
acontecer com qualquer um...
– Porque é mesmo – disse ela, indignada. – Você odeia as mulheres só porque uma
o abandonou. Eu não tenho culpa por Amatrice tê-lo traído... De acordo com o que Tony
me disse, você estava sempre muito ocupado com os negócios e não ligava muito para ela,
que, por ser tão mocinha, pode muito bem pensar que não era amada e por isso procurar
esse amor em outra pessoa.
– Uma bela filosofia, não acha? Foi isso que aprendeu no convento?
– Oh... – Dominique fechou os olhos, aborrecida. – Estou cansada demais para ficar
discutindo. Você sempre acha que sabe tudo. Foi por isso que Tony veio me pedir
conselhos. Eu não pretendo saber todas as respostas e o avisei de que talvez Candy não
queira ser mãe da filha de outra mulher.
– Por que Candice não é como você, não? Você não se incomodaria de criar uma
criança assim, não é verdade?
– É isso que acha? Mesmo? – De repente, as mãos de don Vittorio estavam nos
ombros dela, e ele a levantava dos travesseiros, encarando o rosto pálido. – Responda!
– Santo Deus! Existe muito mais beleza dentro de você do que daquela sua irmã tão
linda, mas tão superficial! Por isso, pare de se achar uma espécie de patinho feio! Candice é
apenas mais uma loira bonita, que acha que todos os homens devem admirá-la. Quando viu
que Tony precisava dividir seu afeto, ela se jogou naquela cama e tomou-se uma paralítica
histérica! Você sabe disso! Admita!
– Oh, deixe-me sozinha... – disse ela, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Não estava
habituada a chorar na frente de ninguém, ainda mais perto de um homem arrogante como
aquele. Mas não se conformava com o fato de que todos abusavam dela quando queriam
desabafar. – Eu também sou gente! Tenho sentimentos, mas parece que ninguém liga para
eles!
– Bem, esse desabafo provou uma coisa, Dominique. Provou que você é uma pessoa
de carne e osso – disse ele, olhando para a moça, como se lhe desse satisfação vê-la chorar,
ver aquela eficiência toda se dissolver em lágrimas. Deixou que ela se aliviasse, que
soluçasse bastante até se acalmar e largou-a novamente sobre os travesseiros, limpou-lhe o
rosto e a cobriu. Dominique já estava quase dormindo.
– Durma bem – disse ele, e estava se afastando quando ouviu uma vozinha fraca.
Era Dominique que, no meio do sono, pedia:
– Está tão frio e escuro, papai... Papai, não vá embora, por favor!
Don Vittorio ficou ali, pensativo, escutando o relógio bater as horas, uma gaivota
grifar e as ondas lá embaixo baterem nas rochas.
Dominique não acordou quando ele a tomou nos braços fortes e a protegeu do sonho
mau, do tempo em que o pai a abandonara com as freiras e fora embora. O sonho e a
realidade se mesclaram e, com um suspiro de alívio, ela se ajeitou nos braços dele.
Capítulo VIII
Dominique levou a carta para a praia e leu mais uma vez o trecho que pedia que ela
negasse ou admitisse que estava levando uma vida imoral com o homem que a empregava
como enfermeira.
A carta tinha vindo do Convento de Santa Anselma.
Estava cheia de dúvidas, mas, de repente, como num clarão, tudo se esclareceu. Não
duvidava mais de que havia escutado don Vittorio saindo de seu quarto na manhã seguinte
ao acidente. Lembrava-se vagamente de algumas coisas, como dos comentários
desagradáveis que ele fizera e do pranto que havia tomado conta dela. Depois caíra no sono
e tudo o mais foi uma mistura de sonho e realidade. Tudo, menos a figura de don Vittorio
saindo do quarto ao amanhecer.
Mas, como ele não comentara coisa alguma, Dominique tirara aquilo da cabeça.
Afinal, não era possível que tivesse ficado tão preocupado com ela que chegasse a arriscar
sua reputação! Mas ele se arriscara, e isso aborreceu Dominique. A carta vinda da
Inglaterra confirmava que alguém o havia visto e passara a informação para as irmãs, em
forma de uma venenosa carta anônima.
Não era a primeira vez que alguém de Vila Dolorita mandava uma cinta assim.
Dominique só podia pensar numa pessoa que tivesse coragem de fazer uma coisa daquelas.
Teria uma conversa com don Vittorio sobre o modo de esclarecer tudo e limpar seu nome.
Ficou sentada na areia, sozinha, pois Tony havia levado Candice para dar uma volta.
Candy melhorara muito nas últimas semanas, mas Dominique ainda não se atrevera
a falar sobre a filha de Tony. Era um assunto muito delicado e ela queria que a irmã
estivesse em ótima forma, antes de falar sobre Rosália. Esperava que Candice aceitasse
cuidar da criança, mas sabia que isso era difícil. Agora, que já estava bem melhor, ela
estava falando seriamente em abrir a tal escola de dança.
Dominique não sabia como uma criança deficiente iria se encaixar naquele tipo de
vida. Rosália iria precisar de muita atenção e de muito amor, e ela não achava que Candice
pudesse se dedicar tanto a uma filha adotiva. Aliás, achava que a irmã não se daria daquela
forma a filho nenhum, mesmo que fosse legítimo..
O problema de Tony era realmente sério. Além de tudo, o esgotamento nervoso que
Candy tivera demonstrava que ela não possuía muito autocontrole.
Nadou até ficar cansada e resolveu voltar. Quando saía da água, reparou que alguém
a esperava na areia, e só não tornou a mergulhar porque foi segura pelo pulso. Levantou o
olhar e perguntou, amargurada:
– Por que ficou no meu quarto naquela noite? Por que teve que fazer uma coisa tão
louca?
– Eu não imaginei que você fosse desconfiar. Dormiu tão profundamente, que nem
se mexeu a noite inteira.
– A noite toda? – repetiu ela. – Como se atreveu? O que estava pensando? Será que
não sabe que foi visto?
– A palavra é amante – disse ele, seco. – E quem é essa pessoa? Como você sabe
disso?
– Como é que eu sei? – indagou, apontando para a areia. – Recebi uma carta da
madre superiora. Está ali, no bolso da minha saída de praia. É melhor que leia.
– Então venha também – retrucou ele, levando-a consigo. E depois, em silêncio, leu
a carta. – Bem, existe um remédio para tudo isso. Se você fica tão preocupada em ser
descoberta com um homem em seu próprio quarto, é melhor que eu faça de você uma
mulher honesta.
– Acho que você tem razão – concordou ele, os olhos fixos nas curvas que o maiô
molhado deixava à mostra e que habitualmente estavam escondidas sob a roupa sóbria. –
Mas pense no assunto, Dominique. Se gosta de se sacrificar e se com um homem a quem
diz odiar, então faríamos um ótimo par. Pense no que seria sua vida comigo....
– Não! – disse da, afastando-se, apavorada. – Acha que isso é uma brincadeira?
Ouça, alguém mandou uma carta anônima para o convento, mentindo e falando mal de
mim!
– Mas o que a deixa mais preocupada é o fato de as pessoas poderem pensar que
você é uma pessoa normal, com necessidades normais. Estou certo?
– Você está sendo extremamente desagradável. Devia estar tão furioso quanto eu,
pelo fato de alguém ter escrito uma carta mentirosa sobre nós dois. Você é um homem
respeitado em San Sabina, o que as pessoas dirão, se souberem que foi visto saindo do meu
quarto? Elas sempre pensam o pior, não é? É da natureza humana.
– Sabe de uma coisa – disse ele, ignorando-a. – Acho que nunca vi olhos tão
grandes quanto os seus. Tenho a impressão de que, se chegar mais perto, cairei dentro
deles. É como se fossem poços profundos, que levam para dentro de você.
– Oh, por favor... Não, fale assim... desse jeito estranho. Temos que ser práticos;
tenho que pedir-lhe que escreva pessoalmente para a madre superiora, dizendo a ela que só
ficou em meu quarto porque eu sofrera... bem, sofrera um pequeno acidente, e porque
estava preocupado comigo. Ela tem que acreditar.
– Bem, foi por isso que ficou em meu quarto, não foi?
– Foi?
– Sua proposta?
– Não fale bobagens! Eu não iria querer que me propusesse casamento só porque
passou uma noite a meu lado. Não é preciso, nós não vivemos na Idade Média e... e ambos
sabemos que não aconteceu nada naquela noite.
– Não naquela noite, Dominique, mas está para acontecer a qualquer momento. Não
vou deixar essa sua bem guardada virgindade durar mais tempo!
Rápido e ágil como um tigre, ele a tomou nos braços com violência, o rosto moreno
bem perto do dela.
– Se não sabe, Dominique, então sua educação não foi tão completa assim. O que
acha que estou fazendo?
– Mas não gosta do que estou fazendo? – murmurou ele. – Você tem uma pele tão
macia... Já era tempo de um homem poder tocá-la assim.
Ao sentir os lábios, quentes e macios sobre sua pele e as mãos dele apertando-a
contra o vigoroso corpo masculino, Dominique teve novamente aquela sensação parecida
com dor, só que extremamente agradável, nas profundezas do seu ser, e queria gritar: “Oh,
Vittorio, beije-me... beije-me e não pare nunca mais! Toque em meu corpo todo e me ame...
me ame!”
Mas as palavras não saíram. No entanto, isso não impediu que ela sentisse um
delicioso torpor afetando sua mente, seus ossos e todos os seus nervos, que Vittorio acendia
cada vez mais com beijos.
– Por favor, não! – implorava ela. Sabia que ele fazia tudo isso não porque sentisse
desejo, mas apenas para acordar-lhe os instintos adormecidos. Já se conformara em não ser
desejada e, naquele momento, queria odiá-lo, mas seu corpo se rebelava contra isso. Sentia,
cada vez mais fortes, seus impulsos sexuais. – É crueldade o que está fazendo comigo –
protestava. – Pare, por favor...
– Seus lábios me pedem para parar, mas seus olhos contam uma história diferente.
Seus olhos me chamam, e eu quero penetrá-los, bem lá no fundo, onde nenhum homem
ainda se atreveu a entrar. Acredito que encontrei uma região de calor e amor inflamado...
– Não... não fale assim! – Dominique lutava por se afastar dele, mas não conseguia.
– Eu não suporto escutar suas palavras! – disse, e virou rapidamente a cabeça, mas
ele começou a beijá-la no pescoço. Ah, tinha que descobrir um meio de parar com aquilo!
Tentou fechar os olhos, mas isso intensificou as sensações estranhas que a faziam derreter-
se por dentro. – Sabe que não está se portando como um cavalheiro?
– Vai me beijar sim, e vai gostar! – Os olhos dele; a dominavam e seus braços a
mantinham presa. – Se agora não vai mais poder ser freira, então terá que aprender a viver
num mundo real. Terá que deixar de ser tão reprimida!
– Minha jovem, você é reprimida dos pés até a ponta dos cabelos. – E percorreu-a
com os olhos, como se a deixasse nua. Acha que eu não percebo?
– Oh, tenho certeza de que sabe de tudo em relação às mulheres – disse ela,
inflamada –, mas foi uma pena que não tenha aplicado esse conhecimento em sua noiva. Se
o tivesse feito, ela não precisaria apelar para seu irmão... – As palavras terríveis escaparam
num impulso e Dominique foi invadida por uma enorme onda de vergonha.
– Isso não foi uma, coisa bonita, Dominique. Eu pensei que você fosse quase um
anjo, mas é tão diabólica quanto qualquer outra mulher.
– Sinto, muito...
– Sente pelo que disse, ou pelo fato de descobrir que é gente de carne e osso, não
uma santa de gesso?
– Muitas vezes.
– Imagino que fosse uma espécie de defesa – disse, conseguindo engolir um começo
de choro. – É que não adiantava uma moça como eu querer me comportar como Candice,
não é? De qualquer modo, esta enfermeira puritana gostaria que o senhor a largasse.
– Santo Deus, vai começar novamente? – E desta vez ele estava com raiva, os olhos
brilhando ao abraçá-la com força e recomeçar a beijá-la, até que ela estivesse outra vez
dominada pela chama do desejo escondido no fundo de seu ser.
– Eu... eu nunca vou perdoá-lo! – dizia, tentando se afastar das mãos de aço que
ainda a seguravam. – Não tinha o direito de me obrigar a agir daquele jeito!
– Maldito! – Lágrimas brilhavam nos olhos da moça. – Eu não queria sentir esse
tipo de coisa... O que adianta, para uma pessoa como eu?
– Como você me deixa zangado, criança, quando se refere a si mesma desse modo!
Que diabos, você está obcecada pela idéia de que só uma mulher como sua irmã pode ser
amada? O que será que ela tem de tão precioso?
– Ela... – As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. – Ela é linda e desejável... e eu não
sou nada disso. Oh, por favor, pare com o que está fazendo comigo! Dói... dói demais ser
ridicularizada.
– E acha que é isso que estou fazendo? Eu podia quebrar-lhe o pescoço por dizer
uma bobagem tão grande!
– Então vá, adiante e faça isso! – Ela encarou-o nos olhos, as pestanas ainda
molhadas. – Termine o que começou, vamos! Aposto que deixou que o vissem sair de meu
quarto de propósito, para eu não poder mais ir embora e ficar aqui, como o capacho de todo
mundo... Oh!
– Como se atreve a dizer uma coisa dessas? – Os olhos negros brilhavam, furiosos,
enquanto a água já lhes batia nos joelhos. – Eu não ia querer uma solteirona azeda como
você na minha casa! Parece que está afogada no ciúme que sente por sua irmã... E quer
saber por quê? Porque também inveja a beleza de Tony e o deseja!
– Pode ser – respondeu ela, louca da vida. – Pelo menos ele não é arrogante como
você! Não me admira que sua noiva o tenha trocado por Tony! Eu posso entender por que
ela preferia estar com ele, sabe? Com certeza ele lhe dava o carinho de que precisava...
Coisa que algumas mulheres gostam de ter!
– Não! – Ela continuava negando, e sentia que uma faca a cortava por dentro. –
Você abusou de mim... é mais forte do que eu e não consegui escapar.
– Essa, minha querida, é uma mentira. – Havia uma enorme ironia nos olhos dele. –
Não sou um santo e sei quando uma mulher está prestes a se atirar nos, braços de um
homem. Ora, você não estava tão tímida assim, deitada comigo ali na areia, deixando que
eu fizesse tudo que queria...
– Por favor – os lábios de Dominique tremiam –, não jogue isso no meu rosto... Se
quis provar que posso ser uma pessoa vulgar, já conseguiu o que queria. Talvez agora tenha
provado a si mesmo que todas as mulheres podem ser como Amatrice, que nenhuma é um
anjo! Tenho certeza de que nunca pretendi ser isso, mas aprendi muito cedo a não me
interessar por homem nenhum e me conformei. Agora, será que não é melhor irmos
embora, antes de nos afogarmos?
– Dominique! – A ironia havia abandonado o rosto dele, que agora parecia meio
estranho, até triste. – O que posso dizer?
– Acho que já dissemos tudo o que tinha que ser dito. Vou arrumar minha bagagem
e vou embora. Minha irmã já está quase boa. Não sei o que fará em relação à filha de Tony,
mas os dois têm que resolver isso sozinhos. Eu preciso trabalhar; pelo menos tenho isso
para fazer.
As mãos de Vittorio não a apertavam mais e ela se afastou, pegou suas coisas e
dirigiu-se para os degraus de pedra, sentindo um conflito de emoções como nunca
imaginara fosse possível acontecer.
Não que não quisesse amar... Mas o amor machucava demais, se as pessoas não se
aceitassem exatamente como eram. Chorando, ela acabou correndo em direção à casa.
Aprenda outra lição, disse para si mesma. Ninguém ama você, por isso pare de
pensar em don Vittorio. Você sabe que o que aconteceu na praia não significou nada para
ele. Aceite isso e volte para a Inglaterra. Lá é que é seu lugar, Dominique Davis!
Pensando nisso, tomou banho e se vestiu, voltando a sentir-se melhor com o vestido
azul, simples, e com os cabelos presos novamente. Candice e Tony já deveriam estar de
volta e ela poderia dizer a eles que seu trabalho ali já havia terminado e que iria embora.
Foi procurá-los e os encontrou tomando chá no salão. Com eles estava uma
garotinha loira, de vestido branco e fita vermelha nos cabelos. Dominique parou na porta,
olhando para a irmã, sentada no sofá, ao lado da criança. Não conseguia acreditar no que
estava vendo.
– Nicky, você não pode ir! – protestou Candy. – Nós, Tony e eu, queremos que
fique aqui.
– Tony! – Candy apelava para o marido. – Diga a ela que não pode ir,
principalmente se for para vestir aquelas roupas horríveis e passar o resto dos dias sendo
uma santa...
– Mas se é isso que ela quer... Não podemos dirigir a vida dela, querida.
Dominique assustou-se com as próprias palavras. Não sabia, até aquele momento,
que havia resolvido não contestar as acusações da madre superiora. Achava que parte dessa
decisão tinha sido tomada na praia, onde aprendera coisas novas sobre si mesma, coisas que
sempre preferira ignorar.
Sempre havia reprimido seus desejos porque nunca encontrara um parceiro, mas
naquele dia tinha desejado, com todas as fibras de seu ser, ser amante de Vittorio Romano.
Ele não a queria, mas havia mostrado a ela que não podia ser freira. Dominique
agora amava o italiano alto e moreno, e não podia renunciar àquele amor para entrar num
convento.
– E quem iria me querer? – Dominique levantou-se, sem notar que o sol da tarde
iluminava seus cabelos e realçava suas formas suaves. – Vou subir e começar a arrumar
minhas coisas. E estou muito feliz com a solução do problema de Rosália. Acho que ela vai
ser como uma bênção para vocês dois.
Saiu do salão e fechou a porta, deixando atrás de si três pessoas que haviam se
encontrado e que iriam viver, dali para a frente, com amor e tolerância.
Mas sabia que a imagem dele estaria para sempre em seu coração, como acontecia
com as solteironas que haviam amado um único homem e o perdido. Ela já pertencia
mesmo a essa classe de pessoas, e pertenceria para sempre.
Dominique foi atingida outra vez, agora no rosto, e seus óculos voaram longe.
Sentiu que mãos fortes a agarravam pelos cabelos, ao mesmo tempo em que alguém lhe
chutava as canelas.
Percebeu que lutava contra uma mulher: Malvina. Sentia o coração disparado e não
conseguia gritar, por mais que tentasse. A mulher estava louca, os olhos brilhando na meia
escuridão, e tentava, com todas as forças, empurrar Dominique escada abaixo.
Xingava com os piores palavrões e enfiava-lhe as unhas na pele macia. Sua força de
louca estava conseguindo levar Dominique até a beira da escada, aos degraus polidos que
iam até lá embaixo.
Dominique tentava se agarrar aos balaustres, fazendo um esforço enorme para fugir
dos golpes de Malvina, mas estava ficando fraca.
Dominique não via nada. Os óculos estavam em algum lugar do corredor e a única
coisa que conseguia fazer era ficar agarrada ao corrimão, sem fôlego, toda machucada e
tremendo.
– Querida! Minha queridinha! Diga que você está bem! – Os braços a embalavam e
lábios cobriam seu rosto ferido de beijos, enquanto um par de olhos negros analisava as
marcas que começavam a aparecer e algumas arranhaduras que desciam até seu pescoço.
Meu Deus, olhe só para isso!
– O que aconteceu aqui? – perguntou Vittorio, apertando o corpo dela contra o seu.
– Ah, se eu tivesse visto! Eu devia ter adivinhado que era ela quem escrevia as
cartas anônimas. Achei que andava meio estranha, mas pensei que era porque não tinha
muita coisa para fazer. Ela salvou a vida de Tony, mas, de certo modo, agora o libertou da
dívida... Melhor assim! – Dominique entendeu o que ele queria dizer e estremeceu. – A
polícia virá e fará certas perguntas. Será que você suportaria isso?
– Acho que um gole de bebida iria ajudar – disse ele, enquanto a pegava no colo e ia
para seu apartamento, antes gritando e pedindo que alguém cobrisse o corpo e chamasse a
polícia.
Colocou Dominique numa poltrona, com toda a delicadeza, e ficou olhando para
ela. Depois tirou-lhe os cabelos dos olhos.
– Coitado do seu rosto – murmurou. – Primeiro recebe um soco meu e agora isto!
– Oh, bem... – e ela conseguiu sorrir –, ainda bem que minha beleza não se
estragou...
– E quem quer olhar para alguém encantador o tempo todo? – disse ele, segurando o
rosto dela com as duas mãos. – Lá na praia, você achou que eu estava brincando, mas não
era brincadeira, não! Eu desejo você, tem que acreditar nisso! Preciso desesperadamente de
você... Nunca disse isso a nenhuma outra mulher.
– Mas houve Amatrice – disse ela, triste. – Você me deseja porque eu nunca me
comportei como ela, não é verdade?
– Com todos os diabos, não! – Ele baixou a cabeça e beijou Dominique nos lábios. –
Eu deveria ter aceitado aquele tipo de contrato, e só concordei com ele porque meus pais
haviam morrido. E acho que a coitada sabia que eu a achava tola e cansativa. Quanto a
você, nunca a acho cansativa, a não ser quando começa a falar em ser freira. – Sorriu, com
suavidade. – Creio que o destino não queria que isso acontecesse, senão não deixaria que
você viesse à minha casa. Dominique, não prefira os claustros frios quando eu preciso de
você em meus braços, meu amor... minha vida!
– Vittorio – e ela pronunciou o nome baixinho –, eu sempre achei que nunca algum
homem chegaria a me amar.
– Não garotos e rapazes tolos, que só vêem a superfície, não se esqueça. Pretendo
ficar com você, e por isso é melhor se conformar.
– Eu quero acreditar...
– Talvez precise de uma prova mais concreta, não?
Fim