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Guillermo Alfredo Johnson

Ilse Gomes Silva


Berenice Gomes da Silva
(Organizadores)

DEMOCRACIAS, LUTAS E MOVIMENTOS SOCIAIS


LATINO-AMÉRICA ENTRE TEORIAS E PRÁTICAS

São Luis
Copyright © 2019 by EDUFMA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Profa. Dra. Nair Portela Silva Coutinho


Reitora
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Vice-Reitor

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

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a
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Profa. Dra. Michele Goulart Massuchin
Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi

Revisão
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Capa
Ataualpa dos Santos Pereira 3

Projeto Gráfico
Marise Massen Freiner

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elaborada pela Biblioteca Central da UFMA

Democracias, lutas e movimentos sociais Latino-América entre teorias e práticas


/ Guillermo Alfredo Johnson, Ilse Gomes Silva, Berenice Gomes da Silva
(Organizadores). — São Luís: EDUFMA, 2019.

331p.

ISBN 978-85-7862-897-0

1. Democracia – América Latina. 2. Movimentos Sociais – América Latina. 3.


Política. I. Johnson, Guillermo Alfredo. II. Silva, Ilse Gomes. III. Silva, Berenice
Gomes da.

CDD 321.898 0

CDU 321.7 (8=6)


Elaborada pela bibliotecária Eliziene Barbosa Costa - CRB 13 / 528
Falam muito de colonização. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O
que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos
a nós, acamparam no meio de nossas cabeças. Somos madeira que apanhou
chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um
sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.
Mia Couto, O último voo do Flamingo
LISTA DE SIGLAS

ALN Ação Libertadora Nacional


ANATEL Agência Nacional de Telecomunicações
ARES Associação para o Resgate Social
CBT Código Brasileiro de Telecomunicações
CEBs Comunidades Eclesiais de Base do Brasil
CETA Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados,
Acampados e Quilombolas
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CNA Confederação Nacional da Agricultura
CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
CNI Congresso Nacional Indígena
COCOPA Comissão de Concordia e Pacificação
CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri-
cultura
CPT Comissão Pastoral da Terra
5
CRB Curso de Realidade Brasileira
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EZLN Ejército Zapatista de Liberación Nacional
FONEC Fórum Nacional de Educação do Campo
FURG Universidade Federal do Rio Grande
GEHLAL Grupo de Estudos de Hegemonia e Lutas na Améri-
ca Latina
GEOGRAFAR Geografia dos Assentamentos na Área Rural
GEPOLIS Grupo de Estudos de Políticas, Lutas Sociais e Ide-
ologias
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-
ria 
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MAM Museu De Arte Moderna
MAM Movimento pela Soberania Popular na Mineração
MAREZ Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas
MBL Movimento Brasil Livre
MCTIC Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Co-
municações
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEC Ministério da Educação e Cultura
MESP Movimento” Escola Sem Partido
MINICOM Ministério das Comunicações
MST Movimento dos Sem Terra
MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
OCB Organização das Cooperativas do Brasil
OJC Organização Jaime Câmara
ONGs Organizações Não Governamentais
ONU Organização das Nações Unidas
PAISM Programa de Ação Integral à Saúde da Mulher
PAN Partido Acción Nacional 
PCUS Partido Comunista da União Soviética
PESP Projeto Escola Sem Partido
PGR Procuradoría Geral da República
PIB Produto Interno Bruto
PNRA Programa Nacional de Reforma Agrária
PNUD Programa nas Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento
PRD Partido de La Revolución Democrática
PRD Partido da Revolução Democrática 
PRI  Partido Revolucionário Institucional
PRONACAMPO Programa Nacional de Educação do Campo
PRONATEC Programa Nacional De Acesso Ao Ensino Técnico
E Emprego
PRONERA Programa Nacional de Educação para Áreas de Re-
forma Agrária
PSP e L Partido Socialista do Reino de Polônia e Lituânia
PT Partido dos Trabalhadores
RBS Rede Brasil Sul de Comunicação
SBT Sistema Brasileiro de Televisão
SECADI/MEC Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Inclusão do Ministério da Educação
SRB Sociedade Rural Brasileira
STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais
TCU Tribunal de Contas da União
UDR União Democrática Ruralista
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande Do Sul
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura
UNESCO Organização Das Nações Unidas Para Educação,
Ciência E Cultura
UNICAMP Universidade de Campinas 7
UNICEF Fundo das Nações Unidas Para a Infância
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Prefácio

Se o desafio por compreender a contemporaneidade tem sido uma


constante dos pensadores humanistas na História, a presente conjuntura
enfatiza essa inquietação com renovada ênfase. A atualidade do mito da
Esfinge de Tebas parece contundente: “decifra-me ou te devoro”. Tal é a
força com que os processos políticos têm se sucedido na América Latina,
nestes últimos tempos. Com o intuito de contribuir com o debate contem-
porâneo é que congregamos um amplo leque de pesquisadores de diversas
cidades e regiões brasileiras para analisar aspectos não somente nacionais,
senão refletir em torno das dinâmicas das políticas em um contexto mais
8 abrangente e, a partir de diversos pontos de vista das Ciências Humanas.
A presente obra é resultado de uma conjunção de pesquisas recen-
tes, surgida por iniciativa de membros do Grupo de Estudos de Políticas,
Lutas Sociais e Ideologias (GEPOLIS) da Universidade Federal do Mara-
nhão (UFMA). A esta iniciativa somaram-se membros do recentemente
formado Grupo de Estudos de Hegemonia e Lutas na América Latina
(GEHLAL), também vinculado à UFMA, assim como vários pesquisado-
res de diversas Instituições de Ensino Superior Público do Brasil.
Em tempos desafiadores para a defesa das diversidades, nós temos
realizado um esforço por considerar as universalidades e singularidades
que têm caracterizado a situação social no presente século. A presente
obra, “Democracia, lutas e movimentos sociais – Latino-América entre
teorias e práticas” representa a materialização das elaborações intelectuais
de colegas que vêm construindo uma leitura crítica dos rumos que temos
percorrido e a percorrer. Nesse intuito, organizamos os trabalhos em duas
grandes partes que não representam uma divisão taxativa, ao mesmo tem-
po em que se complementam. Pois veremos que as lutas e movimentos
sociais possuem intensa imbricação com os debates por democracia e lutas
sociais.
Assim, a primeira parte inicia com um ensaio teórico em torno das
relações entre as dinâmicas apresentadas pelos Estados, pelas lutas e pelos
movimentos sociais na América Latina em uma abordagem abrangente
e contemporânea. Os vínculos indissociáveis da cultura como dimensão
constitutiva do Movimento dos Trabalhadores sem Teto são apresentados
a partir de um frutífero trabalho de campo. Continuando a debater os mo-
vimentos sociais, o próximo texto é um resultado de pesquisa que analisa
a política e a ideologia do MST no Maranhão. Na esteira dessa temática,
o necessário debate em torno da elaboração das políticas públicas de edu-
cação no campo perfaz a trajetória da sua formação como conquista de
lutas históricas dos camponeses. Ampliando o escopo analítico, as lutas
dos povos indígenas mexicanos são apresentadas como trajetória e teleo-
logia alternativa de uma transformação social profunda, referenciando-se
9
na persistente construção de uma singular episteme. Como forma de acei-
tar o desafio apresentado pelo texto anterior, o seguinte busca reavaliar as
estratégias e possibilidades organizativas de uma experiência nascida das
lutas do campo no sul baiano. A emergência, após longa historia de luta,
da organização das mulheres negras em uma articulação da raça, classe e
gênero completa, magistralmente, essa primeira parte, enfatizando o sin-
gular e universal que caracteriza a coletânea.
O presente século tem renovado os desafios para as questões de-
mocráticas, sendo que no seu início diversas experiências de ampliação da
democracia ocuparam os debates, mas na atualidade temos timidamente
relembrado as diatribes de décadas atrás. Para contribuir nesse debate no
âmbito das lutas sociais, o primeiro texto organiza o debate democrático,
tomando como referência as teses de Rosa Luxemburgo. Em consonân-
cia com essa abordagem, o seguinte artigo vincula o feminismo com a
necessidade de uma radical soberania coletiva e crescente participação po-
lítica. Uma aproximação com essas elaborações visa compreender como
os ataques à democracia e às conquistas das lutas sociais repercutem nega-
tivamente nas lutas das mulheres brasileiras. Os embates pela concepção
dos rumos que as lutas apresentam no período recente, principalmente
dos perigos da fragmentação, decorrentes da emergência de questões das
identidades dos movimentos sociais.
Os dois capítulos seguintes destacam a importância de avançar na
de(s)colonização do pensamento ante a ortodoxia imposta, senão que co-
locam na ordem do dia, o seu funcionamento ao questionar a adequação
da categoria de movimentos sociais para as organizações sociais que pug-
nam pela manutenção da desigualdade. Nesta senda, a dimensão da con-
centração dos meios de comunicação de massas ergue-se em um aspecto
apropriado para compreender aquela subalternização da qual os capítulos
anteriores referiram. As lutas sociais pela democracia, que se relacionam
com a expressão cultural dos diversos segmentos da sociedade, nessa im-
bricação dialética entre o singular e o universal, afloram novamente no
último capítulo ao analisar as relações do neoliberalismo e o bumba-meu-
-boi no Maranhão.
O pensamento crítico não é somente indispensável como inelutável
em tempos de intensificação das desigualdades sociais. A demanda por
neutralidade, nesses contextos fortalecem a opressão e a exploração.
Esses escritos pretendem contribuir com a busca por uma transfor-
mação social tão profunda, quanto possamos construir.

Guillermo Alfredo Johnson, Ilse Gomes Silva e Berenice Gomes da Silva


Organizadores
SUMÁRIO

PARTE I - LUTAS E MOVIMENTOS SOCIAIS


13
1 Dinâmicas Estatais, Lutas e Movimentos Sociais na
14
América Latina
Guillermo Alfredo Johnson
2 Política e Cultura uma Interpretação da Experiên-
33
cia do MTST
Jair Pinheiro
3 Pratica Política e Ideologia na Experiência do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no 74
Maranhão
Ilse Gomes Silva
4 Participação, Movimentos Sociais e Sindicais e Poli-
ticas Públicas de Educação do Campo no Brasil 93
11
Marinalva Sousa Macedo
5 A Proposta Zapatista: Autonomia Indígena e Sabe- 112
res Emergentes
Victoria Darling
6 Repensando o Micro Fórum de Luta por Terra, Tra- 133
balho e Cidadania no Sul da Bahia
Augusto Marcos Fagundes Oliveira
7 Mulheres Negras em Movimento e a Articulação
152
de Classe, Gênero e Raça
Renata Gonçalves
PARTE II - DEMOCRACIAS E LUTAS SOCIAIS
170
8 A Democracia e a Rosa Vermelha
171
Davide Giacobbo Scavo
9 Movimentos Feministas e suas Contribuições para 193
Pensar uma Democracia Plural e Inclusi
Maria Mary Ferreira
Hildete Pereira de Melo
10 A Marcha das Margaridas: das Lutas pela Demo- 216
cracia ao Desmonte das
Políticas Públicas com o Golpe de 2016 no Brasil
Berenice Gomes da Silva
11 Movimentos Sociais e a Questão da Identidade: 249
uma Pequena Introdução a um Debate Teórico
Joana A. Coutinho
12 Decolonizar a “Linguagem”: Novas Possibilidades
262
para Formulação de uma Teoria Crítica Sobre as
Ortodoxias do Contemporâneo
Esmael Alves de Oliveira
13 O Direito à Comunicação e o Poder 278
12 da Mídia Tradicional
Priscilla Pereira da Costa
14 Cultura Popular em São Luís do Maranhão nos Anos
300
90: bumba-meu-boi no contexto do neoliberalismo
Luana Tereza de Barros Vieira Rocha
Sobre as autoras e autores 326
PARTE I 13

LUTAS E MOVIMENTOS SOCIAIS


Capítulo 1

Dinâmicas Estatais, Lutas


e Movimentos Sociais na América Latina
Guillermo Alfredo Johnson

INTRODUÇÃO

Os debates em torno da caracterização das dinâmicas das lutas de


classes nas diversas conjunturas e, em suas diversas escalas analíticas têm
sido um incessante campo de contenda política. Ainda que seja consenso
que essas leituras estejam vinculadas com o cabedal teórico adotado e com
as possibilidades de acesso a informações para tal, frequentemente nós
14
observamos a dificuldade em conferir dinamicidade a essas perspectivas
explicativas. Para além de que o otimismo da vontade, às vezes obnubila as
análises conjunturais, por vezes, abordagens estruturais, contraditoriamen-
te, parecem conferir escassas tendências de transformação.
Na medida em que as desigualdades sociais – decorrentes da explo-
ração advinda da apropriação privada da riqueza – persistam haverá lutas
sociais, entre e intraclasses, independentemente das institucionalidades e
das dimensões da coerção estatal. Para se ter uma dimensão dessa asser-
tiva, na América Latina, nestas últimas duas décadas, temos verificado a
emergência de diversos setores das classes trabalhadoras – com destaque
para os movimentos indígenas das Regiões Andinas e Centro-Americanas
– que desafiaram poderes que, tradicionalmente, gerem o Estado em bus-
ca de arranjos sociais e institucionais que mitiguem a contumaz espoliação.
Explicitar esses aspectos históricos vislumbra questionar a impossibilida-
de das transformações sociais, tão em voga, a partir do inicio da presente
década na periferia do sistema mundial; ao mesmo tempo em que aponta
a necessidade de compreender a conjuntura como intervalos inseridos em
uma diversidade escalar que, incluso, questiona a sua eficácia.
Nesse sentido, faz-se indispensável corroborar, que o ideário con-
servador e o liberal, ainda que com nuances, esforçam-se por desconsi-
derar as lutas sociais – e as de classes em particular – como principais
dinamizadoras das transformações sociais. Nesse campo discursivo preva-
lece a desqualificação do interlocutor, assim como de qualquer premissa
epistemológica que desafie as suas convicções, quando não instiga pela
omissão ao debate. A síntese compósita destas ideologias é o leito onde
se erguem as ideias dominantes da sociedade contemporânea, apresentan-
do a história, quando muito, como uma sucessão mágica de eventos sem
conexão, sem causalidades nem dinâmica e construindo heróis como seus
feitores. Nesse veio, as concepções de Estado apresentam-se a-históricas
e defensoras de uma neutralidade que pretende afastá-las das turbulências
da sociedade.
A cada ocasião em que a eficácia do feixe de instituições, dedicadas
à manutenção do status quo parece estar ameaçada, a força do polo coer- 15
citivo de Estado é convocado pelos setores dominantes para restabelecer
a ordem vigente. A eclosão do viés negativo desse controle social estatal,
voltado para as “classes perigosas”, legitima a discricionariedade da ação
do aparelho jurídico-policial-militar, assim como é diuturnamente incenti-
vada e apoiada pelos meios corporativos de comunicação, que contribuem
com a criminalização da pobreza e com quem a ela reage.
Se no auge da Guerra Fria a propalada justificativa pela repressão
aos ativistas era levada adiante pela imputação de comunismo, a partir do
inicio deste século - com a consagração da Doutrina Bush – a preponde-
rância da neutralização do protesto social paulatinamente vem sendo as-
sumida pelo combate ao terrorismo – sem necessariamente desmerecer o
mote anteriormente tão eficaz. Nas conjunturas em que o recrudescimen-
to da exploração do capital é colocado na ordem do dia para cada um dos
países da região, as possibilidades de robustecimento do núcleo coercitivo
aparecem com força para os trabalhadores do campo e da cidade.
Neste sucinto ensaio debateremos a dinâmica das lutas sociais,
como sinônimo de lutas de classes em sua acepção abrangente, a partir do
que se considera a formação e a dinâmica dos Estados modernos Latino-
-Americanos, sem pretensões exegéticas. A adoção desse marco temporal
contempla a herança colonial como fio histórico, no âmbito do Imperia-
lismo com os embates dos movimentos sociais, as suas lutas e uma análise
das perspectivas.

O ESTADO E AS LUTAS SOCIAIS:


APONTAMENTOS ATÉ O SÉCULO XX

Mesmo que a heterogeneidade estrutural e dinâmica da América


Latina e o Caribe sejam significativos e pertinazes, historicamente a sua
inserção no sistema mundial permite, desde a ótica da heteronomia, anali-
sar a região como um conjunto. Nos alvores da configuração do moderno
sistema-mundo colonial, a inserção Latino-Americana, por uma diversida-
de de mecanismos de exploração e espoliação, inaugura sua subalternida-
16 de (DUSSEL, 2005, tradução nossa; QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992,
tradução nossa). Nestes mais de cinco séculos – para além de discursos
populistas, miragens conjunturais e dimensões do Produto Interno Bruto
(PIB) – não houve mobilidade vertical na hierarquia geopolítica global
para os países ao sul do Rio Bravo, ao ponto de tornar impraticável a ne-
gação da atualidade dinâmica da sua inserção imperialista.
Assim, deve-se notar que, no decorrer da formação dos Estados
consolidam-se setores dominantes nacionais com diversas consistências
nos países Latino-Americanos, frequentemente herdeiros das relações
coloniais – aproximadamente do inicio do Século XIX até as primeiras
três décadas do Século XX – o qual permitiu a constituição de blocos
econômico-políticos de caráter marcadamente oligárquico, associados aos
interesses dos países hegemônicos mundialmente e frequentemente vin-
culados à apropriação de grandes extensões de terra1. Os mais relevantes
nesses aspectos, considerando suas dimensões territoriais e geopolíticas,
são: Argentina, Brasil e México; mas, praticamente em todos os países
da região, as classes possuidoras e/ou associadas ao capital transnacional
concentram parte considerável das riquezas, assim como desempenham
importantes papéis nos processos decisórios nacionais. Ao mesmo tempo,
uma imensa massa de trabalhadores tem lutado incessantemente por me-
lhorias nas suas condições de vida – experimentando espasmos de relativa
bonança – que, ante a recomposição das forças hegemônicas, essa dinâ-
mica é refreada, se necessário, fazendo uso da coerção estatal, ao mesmo
tempo em que provoca recrudescimento nas condições de pobreza da
população.
Escolher o Estado como arena inicial para análise da luta de classes
enfatiza que os conflitos sociais contemporâneos acontecem em torno das
estratégias de sua apropriação ou ocupação pelos diversos setores sociais.
Não se deve desprezar que o mesmo é decorrente da cristalização da he-
gemonia burguesa, fundamentado na sacralização da propriedade privada,
17
portanto, território adverso para alcançar a emancipação dos subalternos
(THWAITES REY, 2012, tradução nossa). Assim, ao debatermos as dinâ-
micas das lutas sociais, far-se-á referência à diversidade de manifestações
pelas quais, a luta de classes se apresenta. Nesta sucinta abordagem, es-
boça-se a formação dos modernos Estados Latino-Americanos, sem pre-
tensões exegéticas, no âmbito da incessante luta social, que remonta ao
Período Colonial e consolida-se no âmbito do Imperialismo.
As lutas sociais, no decurso do Século XIX, iniciam-se no seu pri-
meiro quartil com as lutas de independência das suas metrópoles. Esses

1 A diversidade de relações de inserção dos países Latino-Americanos com-


preende, desde a persistência de relações coloniais (Guiana Francesa ou Ilhas Virgens
Britânicas, por citar algumas) até países formalmente independentes, como Argentina
ou México, nas quais a formação dos seus blocos dominantes de poder apresenta
peculiaridades, que de diversas maneiras reproduzem as hierarquias das sociedades
desiguais contemporâneas.
eventos interferiram escassamente na renitente subordinação econômica
dos países Latino-Americanos aos europeus. A Revolução Haitiana, de-
corrente de uma longa luta dos escravos com os países hegemônicos é,
sistematicamente, esquecida nesses processos, pois não houve setores
criollos2 que assumissem o poder político em forma de República, como
em boa parte dos Latino-Americanos, poucos anos depois. As relações de
escravidão e vassalagem percorrem o referido século rumo à conformação
de sistemas políticos censitários, visando a legitimação da dominação oli-
gárquica3. Ao mesmo tempo são inúmeras as rebeliões, insurreições e lutas
contra o poder instituído nesse período, tanto no centro dos países Lati-
no-Americanos, como nas suas periferias; que embora não conduzissem
as experiências exitosas de longo prazo foram sinalizando, a possibilidade
e necessidade de construir uma sociedade diferente daquela que oprimia
e explorava a maioria da população. No percurso desse século, gradual-
mente, verifica-se o fim da escravidão, sendo que o Brasil destaca-se na
retaguarda desse processo, assim como da sua tardia proclamação da Re-
pública.
18
De maneira geral, os confrontos armados nos países Latino-Ame-
ricanos, nesse período, foram conduzidos, preponderantemente, por seto-
res oligárquicos em pugna pela delimitação das fronteiras e/ou na busca
pela dominação nacional. Nesse contexto, também se intensificam devas-
tadoras invasões aos territórios dos povos indígenas, decorrentes dessas
tentativas de consolidação de um padrão de Estado-Nação Ocidental e da
contínua expansão da fronteira agrícola.

2 Esse termo em espanhol refere-se aos mestiços, decorrente da miscigena-


ção europeia com os nativos e/ou com negros escravizados – neste caso, também
eram denominados por mulatos, com elevada carga preconceituosa. A diferenciação
para o caso da Revolução Haitiana, emana do fato de que as independências das me-
trópoles na América Latina, nas primeiras décadas do Século XX, foram encabeçadas
precisamente por criollos, descendentes de europeus.
3 Para abordagens abrangentes em torno da escravidão no continente podem
ser consultados, entre outros, as obras de Blackburn (2002) e Marquese e Salles (2016).
Durante esse século as políticas colonialistas dos europeus – a pre-
ponderância inglesa em Sul América, significativa presença francesa no
Caribe e a persistência ibérica do México ao sul – se expressa diuturna-
mente e em cada formação política, interferindo nos diversos assuntos
nacionais e provocando guerras, se necessário. A denominada Guerra
da Tríplice Aliança destaca-se pelo envolvimento de vários países e pelas
consequências do seu desfecho. Ao mesmo tempo, a sanha expansionis-
ta estadunidense inicia-se com a invasão de quase a metade do território
mexicano e, no decurso daquele século, os países caribenhos e os centro-
-americanos foram o cenário da sua expansão, com significativa ingerência
político-econômica (DONGHI, 1975; SCHOULTZ, 1999).
As lutas de classes foram adquirindo consistência organizativa e ga-
nhando espaços na cena política, apresentando a partir do século passado,
uma intensa dinâmica que repercutirá em significativas transformações no
sistema mundial. A hegemonia liberal do bloco no poder, tanto européia
como estadunidense, vai sentindo seu poder sendo desafiado pela capa-
cidade crescente dos partidos e sindicatos de trabalhadores. Os setores
subalternos realizaram em território Latino-Americano, intensas lutas so- 19
ciais, que na medida em que a sua consistência organizacional foi permi-
tindo conseguiram conquistas sociais. No inicio do Século XX, a Revolu-
ção Mexicana passou a ser apontada como ápice das lutas dos subalternos
por transformações profundas nas relações sociais, sendo que a partir da
Revolução Russa, em 1917, inaugura-se uma conjuntura favorável às rei-
vindicações das classes trabalhadoras em nível mundial (LÖWY, 2012).
Decorrente desse cenário – seja de forma preventiva, reativa ou adaptativa
–, os Estados na América Latina incorporam diversas reivindicações so-
ciais e econômicas, resguardando as heterogeneidades relacionadas com a
hierarquia do sistema mundial, ao mesmo tempo em que corresponde às
suas respectivas correlações de forças em âmbitos nacionais. A hegemonia
do sistema-mundo colonial exercida pela Inglaterra experimenta a transi-
ção para os Estados Unidos da América, realizando sua consolidação nos
estertores da Segunda Guerra Mundial e, ampliando seu escopo geopolí-
tico, militar e econômico.
Nesse contexto, a existência de um modelo alternativo de socieda-
de – no âmbito da Guerra Fria – permitirá aos países Latino-Americanos
vivenciar uma ascensão sem precedentes do atendimento das necessidades
sociais do seu espoliado povo, decorrentes das suas mobilizações e da
crescente consistência da sua organização partidária e sindical. O caráter
desigual e combinado com que a hegemonia mundial se territorializa na
América Latina, vincula-se com a correlação de forças internas aos seus
países e sua articulação heterônoma no âmbito da sua inserção regional. A
Revolução Cubana, de diversas maneiras, representa um dos pontos altos
dessa conjuntura favorável aos trabalhadores, sendo que a abrangência e
intensidade da ação contra insurgente do poder hegemônico propenderá a
reverter essa tendência com a instalação de governos civis-militares, apoia-
dos pelos meios de comunicação e pelos setores dominantes nacionais.
Já a partir de meados da Década de 1960, a ofensiva imperialista
pela retomada de um controle mais estrito da América Latina pode ser
observada na proliferação das autocracias cívico-militares, submissas aos
20
interesses estadunidenses. A consequente batalha pela inversão da conjun-
tura em nível macro em desmedro dos trabalhadores manifestar-se-á no
ataque às suas organizações políticas – principalmente, dos seus partidos e
sindicatos – empurrados, frequentemente, para a ilegalidade, no âmbito de
uma abrangente investida pela criminalização do protesto social.
As lutas sociais com destaque para as que aconteceram por fora
das instituições estatais – pois as ditaduras obstruíram eventuais diálogos
com a população – conseguiram avançar na consolidação de direitos so-
ciais, apesar da intensa acometida dos setores dominantes, nessa dinâmica
amálgama dos desígnios hegemônicos com seus sócios nacionais. Essas
ofensivas das classes dominantes na esfera mundial têm buscado reverter
as conquistas sociais do período anterior, desmantelando o Estado como
fornecedor de serviços e retirando-o da regulação das relações capital-
-trabalho4 para garantir a reprodução do capital. Nesse contexto, torna-se
indispensável lembrar, que a experiência que marca a implantação do Neo-
liberalismo na América Latina acontece após o golpe civil-militar no Chile,
perpetrado pelo General Pinochet ao Governo eleito de Salvador Allende,
inscrito, posteriormente, no âmbito do Plano Condor.
O fortalecimento das diretrizes neoliberais do Estado caminha pari
passu à fragmentação das lutas sociais, sendo que a derrubada do Muro de
Berlim como metáfora do fim da Guerra Fria, traduziu-se na ressurreição
do mito do “Fim da História” e, no circunstancial ocaso do horizonte do
ideal igualitário substantivo. Contudo, as incessantes lutas dos subalter-
nos por condições dignas de vida traduzem-se na instalação de governos
democráticos no final do século passado, ainda que a seguir os setores
dominantes continuem a legitimar as diretrizes neoliberais. A implantação
de forma heterogênea dessas políticas na América Latina, de forma mais
sistemática, a partir da última década do século anterior, significou uma
intensa polarização na apropriação da riqueza em níveis nacionais. A rea-
ção organizada das classes trabalhadoras Latino-Americanas a essa intensa
21
ofensiva do capital, traduziu-se na ascensão de setores progressistas e de
esquerda aos Governos em diversos países no início deste século5.

4 Ainda que essa relação, que se materializa na concepção de Welfare State, na


periferia Latino-Americana não tenha atingido a abrangência e intensidade de direitos
sociais que caracterizaram as políticas sociais em países europeus.
5 Estamos nos referindo ao complexo período do início do século que inclui
os Governos de: Lula e Dilma (Brasil); Chávez e Maduro (Venezuela); Evo Morales
(Bolívia); Néstor e Cristina Kirchner (Argentina); Concertação (Chile); Tabaré Vás-
quez e Pepe Mujica (Uruguai); Rafael Correa (Equador), Lugo (Paraguai); Daniel Or-
tega (Nicarágua) e Mauricio Funes e Salvador Sánchez Cherén (El Salvador); além de
Raul Castro (Cuba), que pode ser somando nessa conjuntura.
APONTAMENTOS CONTEMPORÂNEOS
DAS LUTAS SOCIAIS LATINO-AMERICANAS

Este século inicia-se com intensas disputas na hegemonia do siste-


ma-mundo, no âmbito da qual se destaca a ascensão da China com emer-
gente poder econômico e militar, ao mesmo tempo em que persistem os
antagonismos do final do século passado. Ao contrario das promessas da
globalização, novas guerras e contenciosos pululam no cenário mundial,
com destaque para a primeira década deste século para Oriente Médio
e Norte da África. A presente fase de reprodução do capital exacerba a
financeirização, que através do endividamento progressivo dos Estados e
pessoas intensifica a concentração das riquezas em uma pequena parcela
da população.
Nos países Latino-Americanos, a aplicação intensa dos ajustes fis-
cais regressivos – conjunto de políticas pelas quais se justificam a dimi-
nuição dos investimentos sociais a partir dos Estados – se desdobra em
mecanismos de transferência de rendas para os setores empresariais e fi-
22 nanceiros, em detrimento do atendimento das necessidades sociais, o qual
vem resultando no aumento da pobreza e do desemprego.
Uma conjunção de elementos econômicos e políticos, externos e
internos aos países Latino-Americanos permitiu a formação de governos
com significativo viés redistributivo e amplo apoio dos setores subalter-
nos. A ascensão da China como exportadora de produtos primários dos
países Latino-Americanos, associado com a valorização destes na primeira
década deste século, disponibilizou recursos extraordinários que permiti-
ram o fortalecimento de políticas de distribuição de rendas e a proliferação
de políticas sociais compensatórias6 (PUELLO-SOCARRÁS; GUNTU-
RIZ, 2013, tradução nossa).

6 Esse aspecto pode ser observado de forma mais acentuada, sempre pre-
servando a sua heterogeneidade, em Brasil, Venezuela, Argentina e Bolívia; e com
Paraguai, Chile, Peru, Equador, Colômbia e México em menor medida.
A partir da primeira década deste século, as mobilizações e organi-
zações sociais, principalmente as que se materializaram em partidos polí-
ticos e movimentos sociais, colocaram em pauta reivindicações por longo
tempo proteladas.
Diversos governos, que podem ser denominados como de centro-
-esquerda, esquerda ou progressistas, delinearam-se na perspectiva de mi-
tigar a intensa onda neoliberal da última década do século passado, criando
uma diversidade de políticas sociais compensatórias, que potencializaram
o consumo, diminuíram significativamente o desemprego e recuperaram o
poder aquisitivo de uma expressiva parcela da população. Nessa conjuntu-
ra, destaca-se a intensa mobilização realizada pelas comunidades indígenas
bolivianas e equatorianas, que desafiaram os seus Estados e seus mecanis-
mos de dominação, interferindo na sua modelagem institucional, que por
séculos consagrara a discriminação racial (ESCÁRZAGA, 2016, tradução
nossa; PORTO-GONÇALVES, 2015; REGALSKY, 2010, tradução nos-
sa). Em outros países da região, com diversa intensidade, partidos e/ou
lideranças progressistas, com estreita vinculação com movimentos sociais
23
e sindicais, alcançaram o poder governamental – como em Paraguai, Hon-
duras, El Salvador, Uruguai, Brasil, Argentina e Chile – experimentando
maior interferência estatal nas políticas sociais.
O caso mexicano é particular nessa conjuntura, pois em uma eleição
questionada, o candidato López Obrador foi declarado derrotado, sendo
que o mesmo foi Prefeito da Cidade do México no mandato anterior, com
políticas do mesmo matiz de centro-esquerda7.
A partir da crise financeira de 2007-2008 nos Estados Unidos e suas
repercussões na economia mundial de queda no crescimento econômico,
assim como as mudanças que as relações dos países Latino-Americanos
vivenciam na política externa desse país – que se traduz, dentre tantos

7 Esse candidato AMLO (pelas iniciais do seu nome) foi eleito Presidente do
México, em julho de 2018, permitindo continuar a refletir em torno da continuidade
da onda progressista do início deste século.
aspectos, no final do ciclo de valorização das commodities -, verificam-se
mudanças nos Governos Progressistas Latino-Americanos, denotando
seu enfraquecimento, ou mesmo, um provável fim de um ciclo. Para além
das hipóteses desse fechamento, verifica-se o ocaso da sincronia dos mes-
mos, que suspende ou extingue projetos de integração regional que, entre
diversos objetivos, visava criar mecanismos para mitigar os efeitos devas-
tadores da política de “livre comércio” levada adiante pelo país hegemôni-
co (GANDÁSEGUI HIJO; PRECIADO CORONADO, 2017, tradução
nossa).
Para além desse debate, observa-se que os governos que se man-
tiveram por mais tempo foram aqueles que interferiram na materialidade
do Estado, aqui nos referimos a reformas nas instituições – entre as quais
destacamos o Judiciário – e interferiram nos meios corporativos de co-
municação de massas. Referimo-nos, especificamente, aos casos de Bolí-
via, Equador e Venezuela com diversas nuances nas dinâmicas que cada
um desses países levou adiante, nestas duas últimas décadas (CARRILLO
NIETO; ESCÁRZAGA; GÜNTHER, 2016, tradução nossa).
24
Outro aspecto a ser destacado e que requer análises pormenoriza-
das, relaciona-se com os diversos graus de institucionalização, que setores
dos movimentos sociais e partidos políticos experimentaram durante os
governos progressistas. A ascensão desses governos aproximou e, fre-
quentemente, incorporou numerosos dirigentes e, formalmente, setores
dos movimentos sociais e partidos anteriormente opositores ao regime e/
ou ao Estado. Essa significativa mudança de posição tende a incentivar a
perspectiva de atendimento das suas reivindicações de forma institucio-
nalizada, sem frequentemente ponderar os limites desse processo. Essa
integração aos governos, na possibilidade de atender suas demandas con-
duziu esses setores subalternos a fragilizar os seus métodos autônomos de
organização, ocasionando dificuldades na reorganização ante as mudanças
da conjuntura. Não devem ser generalizados esses apontamentos, pois a
diversidade e intensidade com que esse processo aconteceu apresentam
nuances e contradições consideráveis na América Latina.
Uma das características economicamente importantes, desse perí-
odo de governos progressistas é a preponderância do extrativismo, que
parece retomar seu longínquo predomínio. Não é objetivo de este ensaio
abordar a complexa polêmica do que se denomina por reprimarização,
mas considerando que parte expressiva das exportações – senão a maior
parte – consiste em petróleo, soja, milho, carne, dentre os mais importan-
tes, o que deve ser frisado é a persistência da colonialidade desse padrão
de inserção no sistema mundo, tendo em vista que, a inserção dessa pro-
dução no mercado internacional – iniciando pela decisão daquilo que será
produzido até os preços e volumes de sua comercialização –, é decidida
pelas forças hegemônicas do sistema-mundo, tornando evidente a obstru-
ção das possibilidades de decisões econômicas soberanas (JOHNSON;
SILVA, 2014). Esse traço histórico não parece ter sido enfrentado por
esses governos; ao contrário, o fortalecimento – econômico e político –
dos mesmos esteve ancorado nos recursos advindos da alta da valorização
conjuntural das commodities, que permitiu redistribuição de rendas sem in-
terferir na histórica estrutura de apropriação de riquezas. Ao mesmo tem-
25
po, ainda é necessário compreender as relações que o extrativismo – como
no caso da mineração, do petróleo, do agronegócio e da agropecuária –,
tendencialmente vincula-se com o retorno de forças políticas conservado-
ras e das políticas neoliberais.
Essa sincronia de governos progressistas em vários países latino-
-americanos relaciona-se com uma conjuntura favorável à implantação de
políticas, que buscam mitigar as desigualdades sociais, ainda que a conjun-
tura internacional continue a ser adversa a essa tendência. A agudização
da crise estrutural do capital, que apresentou fortes sinais em 2008, com a
crise financeira dos subprimes nos Estados Unidos, tende a pressionar cada
vez mais os Estados latino-americanos a levar adiante os ajustes fiscais
regressivos para realizar a sua reprodução sistêmica (MÉSZÁROS, 2007,
2011).
Ao mesmo tempo, diversas manifestações sociais de descontenta-
mento afloram como mecanismos de resistência e luta por democracia e
bens comuns, mobilizações sociais afloram em demanda por tratamento
igualitário e respeito pela diversidade. No outro polo, o fortalecimento dos
setores conservadores, enquistados nos aparelhos estatais e protegidos
por setores significativos dos meios de comunicação corporativos, tem
incentivado o crescimento do polo repressivo dos Estados, fazendo uso
do monitoramento digital, na tentativa de aferrar-se a sua ideologia de uma
ordem social desigual.

ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS


LATINO-AMERICANOS: excertos analíticos

El que nada tiene que perder


es el único absolutamente libre ante el futuro.
La voluntad de los sujetos singulares en los movimientos, en el
pueblo, vuelven a adquirir el ethos de la valentía,
del arrojo, dela creatividad.
Enrique Dussel, 2008.

26 No percurso da luta que se trava na América Latina por acesso aos


bens sociais por parte da maioria da população, durante o Século XX,
em particular após sua segunda metade, a bipolarização da luta contra-
hegemônica no âmbito da Guerra Fria encasulara as lutas no estrito
entorno do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Essa situação
intensifica-se no contexto da consolidação da Revolução Cubana e sua in-
serção no bloco liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), pois ao mesmo tempo fortalece a influência partidária nos pro-
cessos políticos construídos na senda alternativa ao Capitalismo periféri-
co. Essa dinâmica tem canalizado boa parte da protesta aos regimes e/ou
sistemas políticos econômicos para a égide partidária, levando que incluso
os movimentos sociais façam parte de colaterais ou extensões de organiza-
ções partidárias. Por sua vez, essa situação tem contribuído para que ante
a dissolução do esquema bipolar que ruiu no final da penúltima década do
século passado, os movimentos sociais tenham perdido, por conta dessa
vinculação, o horizonte emancipador para além do capital.
O debate anteriormente esboçado remete também à relação dos
movimentos sociais, em uma concepção abrangente com o Estado. Pois,
de maneira geral, concebe-se que os movimentos sociais se constroem e
persistem externamente à institucionalidade estatal; por exemplo, no caso
de Iglesias (2012, tradução nossa) caracteriza que o Estado coloniza, co-
opta ou burocratiza, através de uma diversidade de mecanismos e estra-
tégias, os movimentos sociais. Retomando as afirmações anteriores a res-
peito da centralidade do Estado na contemporaneidade latino-americana,
ao analisar os governos progressistas e a ascendência dos setores sociais
subalternos, não seria de se estranhar uma considerável incorporação às
instituições estatais, incluso para elaborar e executar políticas públicas que
atendam algumas das suas demandas8.
Também é possível se pensar os movimentos sociais desde uma
perspectiva ampla, como a expressada por Dussel (2008, tradução nossa),
ao relacionar os grandes movimentos como decorrentes da interferência
incisiva do povo na cena política, erguendo-se em importante ator político
coletivo, configurando inclusive um potencial “Estado de rebelião” como
27
eventual suspensão ou ruptura do “Estado de exceção”, configurado pelo
poder hegemônico vigente. Isso implica de alguma maneira, em observar
os movimentos sociais como sujeitos infatigáveis de demanda por igualda-
de social para além das formas organizativas, que eventualmente assumam.
Ainda nesse amplo escopo reflexivo dos movimentos sociais e lutas
sociais, frequentemente surge o debate em torno das questões da repre-
sentatividade, o qual não parece ter se construído um consenso; assim
como a sua vinculação com as classes sociais, pois a sua labilidade vincu-
la-se à correlação de forças nas diversas escalas geopolíticas, o qual po-
tencializa a complexidade analítica (KOOPMAN, 2015, tradução nossa;
MACHADO, 2015, 2018). No caso da Bolívia e, de acordo com Regalsky

8 As contradições que essa modalidade de relação com o Estado desdobra


para os movimentos sociais, pela sua complexidade, não poderão ser sequer, traceja-
das neste ensaio (RIOFRANCOS, 2017; SASSEN, 2016).
(2010, tradução nossa), a vinculação dos movimentos indígenas com a ar-
quitetura partidária não parece estar resolvida, pois a resiliência da questão
estatal tradicional desafia, sistematicamente, as transformações recente-
mente conquistadas.
De maneira geral, os movimentos sociais no período em análise
ocuparam um papel protagônico na cena política latino-americana, o qual
pode estar relacionado com a gradual erosão que o sistema representativo,
como no caso dos partidos, a partir da última década do século passado.
No âmbito do amplo debate contemporâneo em torno dos movi-
mentos sociais, interessa retomar a sua relação com uma ação política que
conduza a transformações significativas de distribuição das riquezas e, da
tendencial mitigação dos atributos de diferenciação social que justificam a
desigualdade (raça, gênero, geração, etc.); nesse sentido, deve ser analisada
a diversificação e intensidade dos movimentos sociais na primeira década
deste século – considerando o deslocamento dos mesmos com relação à
representatividade de classes (MACHADO, 2015, 2018) –, pois é inegável
28 a importância que desempenharam nas transformações nos governos e,
em casos como o da Bolívia, na materialidade estatal. Tal a intensidade da
sua interferência na cena política que parecem ter adquirido um “poder
destituinte”, de acordo com Darling (2013, tradução nossa), sendo que
os mesmos demonstraram elevado grau organizacional, ampla capacida-
de de mobilização social e propostas societárias claras e abrangentes em
Equador em 2000 e 2005, Argentina em 2001 e Bolívia em 2003 e 2005;
para além da significativa interferência nas políticas nacionais na primeira
década deste século com as multitudinárias mobilizações em Venezuela,
Paraguai, Chile, Brasil e Guatemala – para destacar alguns casos. Evi-
dencia-se na contemporaneidade, o papel dos movimentos sociais como
contrapoder, como forma mais eficaz de construir mecanismos coletivos
ante a investida hegemônica por anular direitos e condenar uma numero-
sa parcela da população global à pobreza (BRINGEL; PLEYERS, 2017,
tradução nossa).
Independentemente de precisões conceituais, a incidência signifi-
cativa de uma diversidade de movimentos sociais no cenário político la-
tino-americano nas últimas duas décadas é inegável. Isso tudo para con-
ferir dinâmica à luta social na AL, conferindo um papel importante aos
denominados movimentos sociais, como manifestação deslocada da luta
de classes.

CONCLUSÃO

A leitura sintética das dinâmicas das lutas sociais coloca o Estado


no centro da disputa pelas forças sociais, que devem prevalecer nas socie-
dades latino-americanas. A dupla determinação a que o Estado periférico
se encontra submetido, sua heteronomia colonial e as lutas dos subalter-
nizados em níveis nacionais pela sobrevivência e por condições dignas de
vida. Ao mesmo tempo, em virtude da crescente importância que a luta
institucional adquire neste século, a institucionalidade estatal pode ser con-
siderado como balizador da luta de classes nessas sociedades.
Apesar da correlação de forças negativas para os subalternos, a par- 29
tir da última década do século passado, as lutas sociais tendem a intensifi-
car-se, tornando premente a necessidade de construir um programa políti-
co e socioeconômico mínimo para aglutinar as forças contra hegemônicas,
debilitadas pela propalada falência de sociedades igualitárias. Enquanto
isso, ideologias conservadoras mancomunadas com o ideário neoliberal
visam naturalizar as desigualdades sociais em uma tentativa estéril por de-
ter a história, o que tem conduzido a uma oligarquização crescente dos
governos latino-americanos, potencializando a polarização político-social
(OSORIO, 2014).
Essa tendência indica que não há possibilidades de melhorias nas
condições de vida da maioria da população sem lutas sociais, o qual pode
conduzir ao aumento da função repressiva do Estado. Não obstante, a le-
gitimação do poder não pode ser realizada somente com a coerção, o que
indica um período intenso de acomodação ideológica dos subalternos ou
a intensificação das lutas de classes.
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32
Capítulo 2

Política e Cultura: uma interpretação


da experiência do Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Jair Pinheiro

INTRODUÇÃO

A cultura é parte do conjunto de preocupações do MTST, mas não


como algo que falta à periferia, como habitação, saúde, educação, entre
outras coisas que podem ser objeto de reivindicação, porém como dimen-
são constitutiva da vida social; portanto, essencial à formação de sujeitos
33
autônomos e conscientes do seu lugar no mundo. Para oferecer ao leitor
uma experiência de leitura a mais próxima possível do trabalho de campo,
optei pela exposição da pesquisa empírica com o mínimo de interven-
ção interpretativa, quando necessário para congruência textual, todavia na
maioria das vezes, apenas estilística.
Entretanto, se essa forma de exposição atende à preocupação
de oferecer certa experiência de leitura; não dá conta de oferecer uma
interpretação teórica do dado empírico, que não fala por si mesmo. Ou
seja, o discurso do movimento sobre ele mesmo fala por si, porque é uma
prática discursiva que tem por objetivo se autorreferenciar, de modo que
encontramos nele mesmo, os elementos dessa autorreferência identitária,
sem necessidade de um discurso externo sobre o movimento; mas seria
equivocado, por causa dessa autorreferência identitária, aderir a três inge-
nuidades correntes nas ciências sociais: 1) supor que tal discurso já não
seja informado por referências exteriores, dentre as quais, as teorias que
circulam na sociedade e chegam aos movimentos por canais diversos; 2)
em consequência dessa suposição, tomar o discurso do movimento como
um universo fechado sobre si mesmo, no qual as Ciências Sociais encon-
trariam identidades originais, autênticas, livres de influências exteriores e;
3) por fim, que tais identidades sejam apenas a representação simbólica
dos sujeitos em um sistema de interação, sem conexão com a produção
econômica, como se fosse possível a existência de um sistema de interação
desconectado das necessidades de reprodução material da comunidade.
Assim sendo, além da primeira parte que consiste na exposição em-
pírica do trabalho de campo que realizei, acompanhando a produção cul-
tural do MTST, este artigo contém uma segunda parte teórica, que embora
possa ser lida independentemente como um ensaio sobre o conceito de
ideologia, ela tem por objetivo, expor os referenciais interpretativos e, ao
mesmo tempo, operacionalizá-los na análise sociológica do material. Por
fim, assinale-se que o material empírico exposto e analisado vai até 2010,
o que não invalida a análise sociológica, uma vez que seus parâmetros não
estão vinculados a datas.
34

PRODUÇÃO E CRÍTICA DA CULTURA PELO MTST

Por considerar a cultura uma dimensão constitutiva da vida social,


uma esfera simbólica (ideológica) na qual os indivíduos-agentes inter-
pelam-se uns aos outros, mas a partir de lugares distintos e desiguais, o
MTST afirma que

O capitalismo se arma de todas as maneiras possíveis para que


prevaleçam os interesses das classes dominantes nacionais e sobre-
tudo da especulação financeira do oligopólio de megacorporações
internacionais. Com a indústria cultural se armam para, através do
espetáculo, despolitizar e alienar a classe trabalhadora das contra-
dições, econômicas, políticas e sociais de sua vida cotidiana, para
“entretê-la” com apelos brutais e selvagens ao consumo e à su-
bordinação, para anestesiar, isolar, descaracterizar, marginalizar e
excluir qualquer faísca de consciência de classe que se apresente.
O imaginário social televisivo ressoa como uma verdade inques-
tionável. A isso temos de opor uma contraofensiva ideológica evi-
denciando as contradições desse sistema vil e degenerado, eviden-
ciando a barbárie. A isso vociferamos: a humanidade não é uma
mercadoria! Será necessário organizar um amplo conjunto de lutas
para descolonização cultural permitindo o direito ao povo a dispor
da história de sua própria cultura e a construir o seu próprio ima-
ginário social e sua identidade crítica, combativa e autônoma. Or-
ganizar uma rede de contrainformação para denunciar as injustiças
cometidas pelos opressores e para permitir a interlocução entre
Movimento Social e Sociedade9.

Desse modo, o Movimento estabelece uma identidade entre po-


lítica e cultura; não como uma visão corrente nas Ciências Sociais que
dissolve os conflitos políticos em diferenças culturais, portanto, em direito
de identidade (ou de reconhecimento), ou como a vulgata que reduz a cul-
tura a uma caricatura para servir de instrumento político. Trata-se de uma
identidade mediada pela ação prática. As práticas institucionalizadas no
cotidiano da sociedade burguesa pressupõem, de um lado, indivíduos que
se relacionam como possuidores de mercadorias e; de outro, uma visão 35
de mundo baseada nos valores do individualismo meritocrático10, que dá
sustentação ao imaginário consumista que legitima o consumo (sobretudo,
o de bens culturais, na atual conjuntura) pelos indivíduos, como compen-
sação por seus méritos próprios.
Se assim é, quando o MTST vocifera: “a humanidade não é uma
mercadoria!” e denuncia o imaginário televisivo da cultura do entreteni-
mento, que tem seu suporte nas variantes do individualismo mencionadas
na nota de rodapé acima, está denunciando também, os efeitos sociais des-
sa cultura que reduzo indivíduo à condição de mercadoria para consumo
do capital – e consumidor, para a acumulação do capital.

10 Proponho a expressão “individualismo meritocrático” como uma varian-


te de “individualismo possessivo”, definida por Mcpherson. A primeira recobre as
relações entre os indivíduos no mercado; a segunda, nas estruturas sociocultural e
jurídico-político.
Os agentes violentados pelo sistema passam a violentar-se a si
mesmos; os problemas comuns são individualizados, e cada um
deve buscar sua solução particular, seja nas tentativas (muitas vezes
impossíveis) de reintegração às relações de trabalho regulares do
capitalismo, seja nas formas de sub-trabalho ou na criminalidade.
O resultado é uma forte experiência de descoletivização da vida,
de passividade associada a um sentimento geral de impotência, que
encontra refúgio no aprofundamento da consciência dominante e
dos valores antissociais do capital. É este quadro caótico de frag-
mentação, violência e alienação, regra nas periferias urbanas, que
está dado à intervenção dos movimentos sociais11.

Por isso, o MTST não é um movimento habitacional que visa con-


quistar a casa própria, mas um movimento social urbano, que se coloca
como desafio à superação da “barbárie capitalista” por outra forma social.
Este desafio geral implica desafios particulares no âmbito da luta.

Um primeiro desafio está em repensar o trabalho de formação


política, adequando-o à realidade do ser social urbano. Por mais
36 esforços que tenham sido feitos para aproximar a formação e seus
temas da realidade das massas não se conseguiu ainda uma forma
apropriada para que o indivíduo reconheça a si e às relações so-
ciais que o envolvem na formação. O estudo teórico, por si só, é
incapaz de superar a relação de estranhamento do indivíduo com
a realidade social. A construção do reconhecimento requer um
conjunto simbólico próprio, que produza uma identificação com
o Movimento, principalmente no âmbito afetivo; só então entra o
estudo com o esforço de racionalizar a relação criada. As expres-
sões artísticas, com sua característica de despertar a sensibilidade,
devem exercer um papel de destaque na construção desse conjunto
simbólico: as ricas manifestações críticas do teatro, do cinema, da
música têm um enorme potencial de construir identidades coleti-
vas. Assim, um redimensionamento do trabalho de formação deve
estar profundamente ligado ao trabalho artístico-cultural.

11 Não é ocioso assinalar que toda redução do indivíduo é uma violência, o


que encontrou na pena de Marx uma veemente denúncia. Seminários de Guerrilha
Cultural do MTST – 2004. p. 1.
Assim, a identidade entre política e cultura resulta das práticas cole-
tivas que medeiam as relações entre os acampados, no interior do acampa-
mento. Neste contexto, adquire grande importância os saraus como pro-
dução coletiva que envolve pesquisa, recolha de elementos tradicionais e
das formas simbólicas urbanas, preparação e apresentação.
Com essas práticas, nos acampamentos não se consome bens cul-
turais, mas se participa da produção cultural coletivamente, produzindo
e fruindo, sobretudo, apropriando-se simbolicamente da própria história
e da elaboração discursiva sobre a condição de pobreza na periferia que,
como nas palavras de denúncia do próprio Movimento,

Vivemos uma situação em que o povo pobre não é somente massa-


crado e alienado de seus direitos fundamentais, mas também sofre
preconceito de classe por parte dos proprietários de terras, que na
maioria das vezes não cumprem as leis, tampouco se dispõem a
negociar. Os latifundiários estão dispostos a vender suas terras a
qualquer um, exceto aos movimentos sociais. Não aceitam propos-
tas de um povo honesto e trabalhador. Quando ocupamos, dizem
que somos baderneiros; quando tentamos negociar áreas pelas 37
poucas vias que temos, como programas de habitação popular, as
portas são fechadas em nossas caras12.

Inclui-se no discurso do preconceito de classe: a) toda uma elabo-


ração discursiva sobre a condição de ilegalidade das favelas13 (do sem-teto,
portanto) que, de saída, desqualifica toda reivindicação e justifica a in-
tervenção policial para restabelecer a legalidade; b) a desqualificação das
formas diretas de luta como baderna; c) a exclusão do debate jurídico-po-

12 Convocatória para a ocupação simbólica, em 07/01/07, de uma ZEIS, no


Parque Laguna, no Município do Taboão da Serra, como protesto contra o precon-
ceito sofrido pelos movimentos sociais. Seminários de Guerrilha Cultural do MTST
– 2004. p. 5.
13 Para evitar o preconceito embutido no termo favela, que tem origem pejo-
rativa, há quem prefira falar em ocupação subnormal. Essa substituição, a meu ver,
mascara o preconceito, não o elimina.
lítico dos dispositivos constitucionais (CF/88, Art. 5, XII e XXIII; 182 e
183) da função social da propriedade; e d) a associação da periferia, assim
como tudo que a ela esteja ligado, às ideias de perigo, sujo, mal-acabado,
esteticamente feio etc.
A esse preconceito, o Movimento responde:

Na Brigada de Guerrilha Cultural do MTST é assim: a gente faz


uma marcha na sexta (30/03/07) e já assiste ao vídeo dessa mar-
cha14 no sarau de sábado (31/03/07). A gente se vê, se escuta e se
reconhece. Além da projeção do vídeo, o segundo sarau do acam-
pamento contou com a participação de grupos de rap e samba,
poetas e capoeiristas da comunidade. Entre as manifestações ar-
tísticas, houve discussões sobre cultura de resistência na periferia.
No próximo sábado (07/04), às 20h, tem mais. A gente se vê por
aqui15.

Na verdade, tornou-se uma prática regular do Movimento produzir


seu próprio material audiovisual das ações que realiza e, em seguida, exibi-
38 -los nos acampamentos e reuniões de militantes.
Com isso, o discurso da mídia sobre o movimento é confrontado
com o próprio discurso. No primeiro, desaparece a função social da pro-
priedade16, entra o direito de propriedade; desaparecem homens e mulhe-
res marcados pela labuta por uma vida digna na grande cidade, entram
criaturas em estágio de minoridade manipuladas por militantes caricatos,
geralmente tidos como oriundos da classe média e portadores de ideolo-

14 Marcha do acampamento João Cândido até o Palácio dos Bandeirantes.


15 Painel da Ocupação João Cândido, Disponível em: www.mtst.info/
16 “Entendemos que o direito de propriedade é garantido, desde que atenda a
sua função social (Constituição, art. 5.°, incisos XII; XXIII). Como se verifica o cum-
primento da função social? Pelo atendimento das exigências fundamentais de orde-
nação da cidade expressas no Plano Diretor (Constituição, art. 182, parágrafo 2.°). O
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado deve ter seu aproveitamento
real, sob pena de parcelamento ou edificação compulsórios, aumento progressivo de
IPTU ou desapropriação (Constituição, art. 182, parágrafo 4.°).” (BRASIL, 1988, p.2).
gias supostamente ultrapassadas; desaparecem os latifundiários urbanos,
entra a valorização urbana como expressão do interesse social; desaparece
(ou é atenuada) a truculência policial17, entra a manutenção da ordem; etc.
No segundo18, o discurso do próprio movimento vem todo invertido e pa-
rece crível, e não é incrível que assim seja, pela simples razão de que nesse
discurso o sem-teto vê, primeiro, sua elaboração; depois, sua experiência
retratada e exposta à sua reflexão; momento em que ele descobre a mag-
nitude da manipulação ideológica a que estava sujeito, antes de se engajar
no Movimento.
Assim, a experiência dos saraus na comunidade Chico Mendes
(conforme as fotos abaixo) foi extremamente positiva, tanto para conso-
lidar uma prática de atividades culturais nos acampamentos, como para
elevar a autoestima dos acampados, criar laços entre eles e; entre eles e o
movimento, o que permitiu inclusive, manter certo grau de mobilização,
mesmo após o despejo, lidar com o grave problema da violência urbana,
que atingiu também o acampamento com o assassinato de uma jovem
acampada por causa de briga de traficantes. Outra experiência de sucesso
39
no Chico Mendes foi a ciranda, sobre a qual tratarei mais adiante.

17 “O acampamento Santo Dias durou 21 dias, depois disso muitas pessoas


dispersaram, porque o despejo foi muito violento. Tiveram 8 caminhões que foram
desviados pela Polícia Militar e que levaram as pessoas para a Anchieta, enfim, todo
tipo de arbitrariedade abusiva. A gente teve 36 feridos, alguns gravemente feridos,
entramos com um inquérito na corregedoria, mas enfim, já sabíamos que não daria
em muita coisa.”. Depoimento de Helena, integrante da Coordenação Estadual.
18 Esse contraste de imagens e significados aparece nos vídeos produzidos
pelo movimento.
Fotografia 1 - Festa do Maracatu no acampamento Chico Mendes

Fonte: Comunidade Chico Mendes (2005)

Fotografia 2 - Festa do Maracatu no acampamento Chico Mendes

40

Fonte: Comunidade Chico Mendes (2005)

O importante é que essa experiência permitiu ao Movimento avan-


çar naquilo que suas lideranças identificavam como um desafio, a criação
de laços afetivos e de solidariedade com a base social que ele visa mobili-
zar. Mais: a experiência mostrou que o sarau é uma espécie de linguagem
que permite reunir a heterogeneidade das manifestações culturais urbanas
(conforme foto da página seguinte) em um propósito comum, a resistên-
cia.
Evidentemente, essa heterogeneidade inclui grupos que não rela-
cionam suas preocupações estéticas com a questão social como um pro-
blema, contudo há muitos outros que consideram ambas as questões, in-
dissociáveis. Por isso, nas palavras de um dos seus mais representativos
integrantes:

visitar e manter uma relação de parceria, respeito e solidariedade


com o MST e com o MTST são para mim sinais claros que a luta
continua, de que não estou só, tenho parceiros e que a realidade
pode ser transformada com postura, atitude, organização e deter-
minação. Ouvir os acampados do João Cândido gritando o verso
“Revolucionários do Brasil: fogo no pavio, fogo no pavio!” ento-
ado como grito de ordem, de guerra, de melhoria por milhares de
pessoas que realmente acreditam na transformação foi algo que
me deixou muito pensativo, feliz e cada vez mais concentrado na
minha caminhada que sempre trabalhei para correr pelo certo19 .

Outro exemplo dessa relação entre manifestação cultural e luta so- 41


cial urbana é a ação conjunta entre o MTST e a Cooperifa.

É com grande honra e orgulho que a Comunidade João Cândido


recebe a notícia de que foi premiada com o Prêmio Cooperifa,
em sua 3a.edição. Durante todo o período em que o enorme ter-
reno do Valo Velho, em Itapecerica da Serra, esteve ocupado por
milhares de famílias, ocorreram diversos saraus, apresentações de
teatro e shows (muitos deles de grupos formados dentro da pró-
pria ocupação!). Esse prêmio é um reconhecimento da importân-
cia cultural e política do trabalho ali realizado: com a perspectiva
de mudança social.

19 Entrevista do rapper GOG, iniciais e pseudônimo de Genival de Oliveira


Gonçalves, a Danilo Siqueira Dara, historiador e membro do coletivo de cultura do
MTST.
A entrega será na próxima quarta feira, dia 12 de dezembro, às 20h
no bar do Zé Batidão (Bartolomeu Silva, 797, Capelinha - Z/S), no
famoso sarau da Cooperifa.

Pelo terceiro ano consecutivo a Cooperifa promove a entrega do seu prêmio


para todos aqueles que direta ou indiretamente ajudam transformar a periferia num
lugar melhor para viver. São eles poetas, artistas, projetos, jornalistas, sites, amigos,
pessoas da comunidade, líderes comunitários, etc. Gente simples, que passou este ano,
lado a lado colado com a gente, gerando energia e levando luz para clarear nossos
caminhos. Uma simples homenagem a este povo lindo e inteligente que ainda acredita
no: “Só quem vê o invisível realiza o impossível”, e procura fazer a diferença. Lógico
que a maioria dos premiados são os poetas e escritores, pois esta é a filosofia da Coo-
perifa: incentivo à leitura e a criação poética20. (Fonte: Colecionador de Pedras,
29/11/2007, grifo do autor).

Fotografia 3 - II Festival de Hip Hop em 14/12/05

42

Fonte: Comunidade Chico Mendes (2005)

20 Comunidade João Cândido ganha o 3.º Prêmio Cooperifa.


Fotografia 4 - II Festival de Hip Hop em 14/12/05

Fonte: Comunidade Chico Mendes (2005)

Essa cooperativa reúne artistas populares, sendo sua atividade mais


famosa os saraus, que acontecem às quartas-feiras no Bar Zé do Batidão,
na Zona Sul, além de ter realizado a Semana de Arte Moderna da Periferia,
em novembro de 2007. A instituição do prêmio Cooperifa para homena-
gear os que contribuem para melhorar a periferia e, a escolha de um acam-
43
pamento do MTST para recebê-lo, apesar de a lista heterogênea incluir
até a Fundação Cultural Itaú, é indicativa dessa associação entre cultura e
política feita pelo movimento.
Desse modo, o que surgiu como uma experiência do núcleo de
resistência cultural do Chico Mendes; naturalmente, não por acaso, uma
vez que o savoir-faire do MST é um dos legados do MTST, tornou-se uma
prática do Movimento e, em certa medida, uma ação cultural que tem ca-
racterísticas próprias paralelas à luta direta, de modo que o sarau passou
a ser a “entrada” do Movimento em algumas comunidades que, inclusive,
fazem contato para que o Movimento vá organizar o bairro.
Assim, um dos resultados dessa experiência de associação entre
política e cultura é que o MTST passa a utilizar, esta associação, como
ferramenta para a convocação de outras comunidades à luta: “O núcleo de
resistência cultural constituído na comunidade Chico Mendes deu origem
à Brigada de Guerrilha Cultural do MTST, que está pensando, discutindo
e desenvolvendo arte e cultura da (e na) periferia. Em parceria com a As-
sociação Periferia Ativa, a brigada vai levar sua experiência em organização
de saraus para outras comunidades, começando com o Jardim Maria Rosa,
em Taboão da Serra21”.

A CIRANDA

Outra experiência de caráter cultural e educativo nascida no acam-


pamento Chico Mendes foi a Ciranda. A existência, no acampamento, de
um grande número de crianças cujos pais não tinham onde deixá-las ao
sair para o trabalho, a demanda das próprias crianças por atividades –
como é natural na idade – e a necessidade de oferecer às crianças, uma
forma discursiva que as auxiliasse na elaboração simbólica da experiên-
cia do acampamento encontraram apoio nas preocupações do coletivo de
educação e cultura e, na sua disposição para enfrentar o desafio.
O enfrentamento desse desafio inclui a formação da biblioteca do
acampamento e, para melhor acomodar o leitor, na falta de móveis, o chão
foi coberto com carpetes.
44
Na verdade, era o maior barraco e o único redondo no acam-
pamento e servia para vários usos, como sala de aula para o curso de
alfabetização de adultos e atividades com as crianças, além da biblioteca.
Para melhor atender a todos, adotou-se um sistema de empréstimo de
obras literárias, que se revelou muito útil aos acampados, mesmo porque
nos feriados aumentava a procura por livros, o que poderia dificultar o uso
do espaço para outro fim.
Após esse breve relato da Mari, perguntei-lhe como ela entrara para
o grupo de apoio ao MTST; ao que ela respondeu, que mora na região e é
amiga da Bruna (Coordenadora da Ciranda?) há muito tempo, sendo que
ambas já participavam de um grupo de teatro popular e, através do grupo,
fez contato com o movimento, passando a integrar o coletivo de educação
e, também de comunicação, já que é Jornalista.

21 Convocatória para o sarau do Jardim Alto do Maria Rosa, em 15/07/06.


Dessa apresentação inicial, a conversa avançou sobre a natureza
do trabalho com as crianças, em geral e, especificamente, como elas en-
cararam a visita ao Ibirapuera, que fora realizada no dia 03/02/06. Ela
explicou que não podia falar muito sobre o trabalho, porque não era pe-
dagoga e sua participação no coletivo de educação ainda é recente; o que
é parcialmente negado por seu relato das experiências com as crianças do
acampamento.
Quanto à visita ao Ibirapuera, contou que ignorava ser uma visita
dirigida ao Museu Afro-Brasileiro, o que explica a abordagem, a seu ver,
superficial de aspectos que eles gostariam de ver aprofundados com as
crianças. Além disso, soubera na quinta-feira à tarde, que a visita seria na
sexta-feira à tarde, prazo muito curto para preparar a visita e para os pre-
parativos práticos do passeio, já que tinha que providenciar deslocamento
e lanches para as crianças.
Tentei ser mais específico quanto ao meu interesse de observador
da área de Ciência Política, já que não é pedagógico meu interesse. Pergun-
tei sobre como era o trabalho com crianças em um acampamento. Mari
respondeu, que elas manifestam as características do mundo em que estão 45
inseridos: individualismo, agressividade etc. e, que isso, às vezes (expressão
que, para mim, soou como eufemismo para rotina) tem que ser tratado na
relação com as crianças, por exemplo, conversar com as crianças sobre o
porquê de não resolver “na porrada”, mas na conversa; sobre a impor-
tância de manter o espaço da Ciranda organizado (brinquedos e outros
objetos nos lugares destinados a eles e ao alcance de todos garantem a au-
tonomia para todos), por que razão não levar o brinquedo para casa (pois
ali, todos podem brincar).
Ela falou de um garoto que quando entrou na Ciranda só a trata-
va a socos; hoje, ele a beija quando a encontra. Contou isto como quem
diz, “não é possível apontar avanços na participação na Ciranda, porque
também têm recuos, não obstante quem trabalha com as crianças, nota
diferença no comportamento”.
Tentando ser mais específico, citei a tipologia de Paulo Freire (apro-
veitando que uma das várias fotos que decoravam o ambiente era dele) dos
três tipos de educadores: ingênuo, cínico e crítico; e, complementei com
uma pergunta retórica da minha experiência de educador na PMSP: educar
para quê? Pois a resposta para essa pergunta tem o condão de evidenciar
os pressupostos da educação que, em uma sociedade cindida em classes, é
necessariamente educar para o ethos da classe dominante.
Mari concordou que a educação não tem como ser neutra, con-
tudo, mais uma vez, esquivou-se de responder diretamente à pergunta.
Como resposta, apontou o reflexo dessa condição de educar para o ethos
da classe dominante, naquele contexto, a atividade de construção de uma
maquete do acampamento, a partir da conversa com as crianças sobre a
iminência do despejo. Aliás, essa ameaça é permanente, sendo o último
prazo conseguido pelo movimento em 08/03/06, fato referido por Mari
com visível embaraço emocional, pois, uma vez confirmado, representaria
a descontinuidade e a incerteza quanto ao futuro do trabalho.
Seja como for, na maquete das crianças, a ideia abstrata de ordem,
que embasa a ordem de despejo cede espaço à experiência que, na ver-
dade, expressa um conflito entre diferentes ideias de ordem. Por isso, a
46
composição da maquete apresenta, tanto a ameaça do despejo - na figura
do boneco fardado e armado à entrada do acampamento - como a espe-
rança de permanência naquele lugar, na figura das casinhas e ruas cheias
de crianças brincando.
Quando já me preparava para sair, Mari lembrou-se de um acon-
tecimento do dia anterior. “Ontem a Ciranda estava um caos – disse ela
– as crianças não obedeciam à orientação de arrumar as coisas nos seus
lugares”, quando Sérgio (outro educador, que não se encontrava no dia
dessa visita), espontaneamente chamou as crianças do mesmo modo que
os coordenadores chamam para a assembleia do acampamento: “vamos
sair da lona preta ... vamos nos reunir ali.” “Ali”, no caso, era um canto
da Ciranda. Então, começou uma assembleia sobre a importância da ar-
rumação do espaço da Ciranda, com participação espontânea das crianças
que levantavam a mão e intervinham no debate, opinando e comprome-
tendo-se com as tarefas. Enfim, o que era apatia ou indiferença, tornou-se
comprometimento ativo por efeito de uma iniciativa não planejada, mas
segundo um código que as crianças conhecem e faz sentido no seu univer-
so de autodefesa contra a ameaça externa; embora, no caso da arrumação,
a ameaça de desagregação do espaço de convivência seja interna.
Ao final da visita, Mari me apresentou a biblioteca, assinalando que
a autonomia é valorizada, razão pela qual as obras infantis são dispostas
ao alcance das crianças, que são orientadas a devolvê-las ao lugar de onde
tiraram, após usá-las. Nesse ínterim, duas crianças entraram comendo pão
e foram “convidadas” a se retirarem, pois não é permitido entrar com
alimentos na biblioteca.
Em seguida, ela mostrou as demais obras: de História, Teoria Social,
Literatura Brasileira e Estrangeira, Religiosa etc., além de muitas outras
obras, inclusive didáticas, que não estavam ali, porque ainda não haviam
sido catalogadas. Para o aproveitamento desse material pelos acampados,
Mari me informou que estava sendo organizado um curso de alfabetização
de adultos, que teria início no dia seguinte.
Em uma visita seguinte, eu soube da receptividade que o curso de
47
alfabetização estava tendo entre os acampados, pois a demanda por alfa-
betizar-se não é devida apenas à necessidade do mercado de trabalho, mas
também, subjetiva, de recuperar a autoestima, de ver-se integrado em um
universo simbólico que, por não dominarem, sentem que é uma das razões
da situação em que vivem.
O sucesso da experiência serviu para consolidá-la. A partir de en-
tão, a organização da Ciranda passou a integrar o planejamento das ocupa-
ções, como no caso da reunião (em 14/03/07), que preparou a ocupação
(em 16/03/07) que veio a ser o acampamento João Cândido, nas palavras
de um militante. Tornou-se necessário incluir na logística um “kit Ciranda
para montar alguma atividade com as crianças já no domingo (as ocupa-
ções são sempre feitas na sexta-feira à noite). A ideia é que os pais acom-
panhem as crianças até o local da Ciranda.”.
Essa preocupação se materializou, na urgência e receptividade que
a construção do barraco da Ciranda teve para o acampamento.
Fotografia 5 - Construção da Ciranda João Cândido

48 Fonte: Comunidade Chico Mendes (2005)

Como a foto acima demonstra, essa construção mobiliza o esforço


coletivo e se insere no contexto das preocupações do Movimento de fa-
zer dos acampamentos, uma nova experiência de sociabilidade, por isso a
razão da pressa em realizar o trabalho com as crianças e que seus pais as
acompanhem, pois é um olhar do Movimento sobre si mesmo. Em vista
disso, o orgulho quando anunciam que:

A Ciranda do acampamento João Cândido está realizando ativida-


des com as crianças (a partir de 2 anos) diariamente. Nos primei-
ros encontros, o coletivo de Educação do MTST têm auxiliado
os meninos e meninas a elaborar essa experiência tão intensa que
é a ocupação, por meio de rodas de conversa, histórias, ativida-
des artísticas e lúdicas. Como parte desse trabalho, crianças e pais
assistiram a uma encenação dos “palhaços sem-teto”, na semana
passada. A molecada também deixou o acampamento mais bonito:
o barracão coletivo ficou alegre e colorido com desenhos colados
na lona preta22.

Com essa experiência, a percepção das crianças se altera em relação


à sua realidade. Deixa de ser algo do que se envergonhar e, tendo em vista
que é tomado como material das atividades educacionais, torna-se objeto
da reflexão e motivo de orgulho de uma nova identidade, a dos que cons-
troem seu destino com as próprias mãos.

O SARAU DO JOÃO CÂNDIDO EM 22-06-07



O sarau, que havia sido marcado para comemorar um mês na V.
Calu começou logo ao cair da noite. Todas as brigadas haviam preparado
um bolo para a mesma finalidade e, em todas, realizou-se a mesma come-
moração, o começo do sarau. Na brigada Dandara todos se reuniram em
volta da mesa e, após gritos de palavras de ordem, cantaram:
Fazenda velha, cumeeira arriou
Fazenda velha, cumeeira arriou 49
Levanta povo, cativeiro acabou
Levanta povo, cativeiro acabou
Se o povo soubesse o talento que ele tem,
Não aturava desaforo de ninguém
Se o povo soubesse o talento que ele tem,
Não aturava desaforo de ninguém.
Depois dessa comemoração começaram os preparativos para a
continuação do sarau, no barraco da ciranda, espaço que também é utili-
zado para as assembleias gerais e eventos como este:
– Exibição do vídeo produzido pelo próprio movimento da marcha
ao Palácio dos Bandeirantes.
– Fala do Daniel sobre a programação da noite.

22 Painel da Ocupação, em 27/03/07.


Em seguida, o grupo que veio animar o sarau passa a tocar seus
instrumentos de percussão e todos cantam e, na medida em que o grupo
passa em um movimento em círculo, as pessoas o acompanham e, em
pouco tempo, tem-se um carnaval com todo mundo cantando e dançando.
Daniel retoma a palavra e anuncia a assembleia, passando o micro-
fone a Gabriel que, na verdade, não dirige uma assembleia, mas apenas
informa que a luz ainda não chegou a todos os barracos, porque os fios
doados com os quais eles contavam, não chegaram por falta de transporte.
Ele se desculpa por isso, ao mesmo tempo em que justifica que a luz insta-
lada, prioritariamente, no barraco dos militantes e no da Ciranda não é um
privilégio, mas uma necessidade da manutenção do próprio movimento. O
ambiente está um pouco agitado pela euforia, o que dificulta ouvir; então
Gabriel se dirige às crianças em um tom misto de censura e gracejo: “vo-
cês sabem que está faltando mistura, não? Pegar um menino desses para
assar não custa”.
O recado foi entendido, pelo menos assim pareceu, pois, embora
50 sem perder o sorriso estampado no rosto, as crianças se aquietaram; então,
retomando sua exposição Gabriel termina os informes sobre as condições
da infraestrutura do acampamento e do andamento das negociações que
envolvem as três esferas de Governo, em seguida fala da beleza da festa e
encerra a assembleia, passando o controle da cena ao pessoal da Ciranda,
coordenado pela Fran.
– As crianças fizeram um círculo e se puseram a cantar cantigas de
roda regionais. Na continuação, todas as crianças foram chamadas a passar
tinta na mão para deixar sua marca na parede do barraco da Ciranda, como
um testemunho para o futuro daqueles que continuarão a luta.
Enquanto as crianças iam marcando o espaço da parede destinado
ao testemunho da luta, um artista plástico pintava, ao lado, a figura de
uma menina de vestido vermelho, uma luva na mão direita (com o braço
estendido), simbolizando a luta (porque é direito lutar) e o braço esquerdo
levantado, simbolizando a esperança (porque a esperança está à esquerda).
– Em seguida, um momento de descontração, quando o grupo de
teatro Lona Preta, assim chamado porque é constituído pelos irmãos Sér-
gio (que é formado em Artes Cênicas) e Joel, militantes do movimento,
encenaram um número de palhaço que divertiu muito os presentes, prin-
cipalmente as crianças.
Após essas atividades, teve início a mística que, nesse sarau, foi
especialmente concebida para comemorar o aniversário de três meses
do acampamento, sendo um deles já na Vila Calu. Daniel, novamente no
microfone, informou que cada uma das brigadas fizera um bolo para essa
comemoração e, para homenagear uma das personalidades que dão nome
a elas e ao acampamento.
– Então começou o desfile de personalidades históricas: primeiro,
veio João Cândido um jovem (branco pintado de preto) descalço e ves-
tindo roupa branca, apresentou-se na primeira pessoa: Sou João Cândido,
nascido em 1881, me alistei na Marinha aos 13 anos e, em 1910, eu e ou-
tros companheiros nos revoltamos contra a chibata, forma de castigo por
açoite aos marinheiros.
51
Assim seguia o discurso do João Cândido do acampamento, con-
tando sua história para os companheiros de luta do MTST e, fazendo ana-
logia entre as lutas de sua época daquele outro João Cândido e as de hoje.
Nesse instante, ocorre um episódio engraçado, provocando uma gargalha-
da geral, que ilustra o ânimo no interior do acampamento: um acampado
alcoolizado, que até então estivera o tempo todo dançando, indiferente
à programação, cambaleou e pisou no pé de João Cândido, que reagiu:
“companheiro, sou um fantasma, mas meu pé ainda dói”.
Em seguida, encerrou sua fala com a observação de que a opres-
são continua, mas os oprimidos de hoje são submetidos a outras formas
de castigo, conclamando todos a continuar a luta até que não haja mais
opressão.
– Daniel retoma a apresentação chamando Carlos Marighela, que
também fala na primeira pessoa. Diz ter nascido na Bahia, de mãe negra e
pai descendente de italianos, aderiu ao PCB ainda jovem, com o qual rom-
pera nos anos de 1960. Fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN),
uma das organizações guerrilheiras que combateram a Ditadura Militar,
assassinado pelo regime em 04/11/69 no seu fusquinha (na verdade, na
rua e depois colocado no carro); também ressalta que a luta da qual parti-
cipara não acabou.
– Daniel puxa a palavra de ordem: Marighela ontem, hoje e sem-
pre; no que é acompanhado com entusiasmo pelos presentes. Em seguida,
chama a terceira personalidade, Dandara, que também fala na primeira
pessoa: diz ser uma mulher negra, casada com Zumbi e guerreira, nascida
no século XVIII, corrigindo-se, no século XVII (gracejo em volta: coitada,
faz tanto tempo, não se lembra), não sabe a data certa... fica nervosa, se
embaraça; então as pessoas dão-lhe apoio: “vamos lá, Dandara, estamos
com você!”.
A mística, nesse caso, foi um desfile de personalidades populares
históricas que, assim são vistas, porque lutadoras como os sem-teto e, ao
narrar na primeira pessoa, o militante que representa a personalidade não
apenas se identifica com ela, como também, a oferece aos presentes como
52
uma referência identitária. Desde a preparação, que inclui pesquisa até a
encenação, é o povo pobre da periferia se apropriando da sua história,
por isso é que têm a palavra aqueles a quem ela foi negada na história ofi-
cial: Dandara e Zumbi, e não o bandeirante André Furtado de Mendonça,
quem comanda o cerco, vence, prende e degola Zumbi; João Cândido, e
não o comandante; Marighella, e não Sérgio Paranhos Fleury, delegado do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), chefe da emboscada
que o assassina em 1969;
No discurso do MTST há uma clara descendência histórico-social,
mas sabemos também que é genética, entre os lutadores de ontem e os
de hoje. Apesar das diferenças históricas (modo de produção, instituições
políticas, costumes etc.), que conferem à opressão formas particulares, há
um fio de continuidade entre as situações dos lutadores do passado e do
presente, que consiste na exploração econômica, na desqualificação políti-
ca e cultural e, na criminalização das suas lutas.
A LUTA IDEOLÓGICA PELA INTERPRETAÇÃO DO MUNDO

Como a palavra ideologia é polissêmica, um conceito operacional


para a análise empírica que contemple ao mesmo tempo essa polissemia,
a complexidade do fenômeno e a exigência de rigor do trabalho teórico,
deve ser concebido como multidimensional, ou melhor, tridimensional em
duas escalas distintas e cruzadas e, por isso, necessariamente inter-rela-
cionadas, para que, além de responder à pergunta “o que é?”, da resposta
se possa deduzir o modo como opera e através de quais instrumentos
(formas simbólicas) e, por fim, seus efeitos ((re)conhecimento/desconhe-
cimento).
Por isso, defino-o em três acepções estreitamente vinculadas: 1)
concepção de mundo, frequentemente referida por visão social de mundo
(GRAMSCI, 2001; LÖWY, 1998, 1999); 2) sistema de normas, crenças e
valores; e, 3) processo social de interpelação discursiva (ALTHUSSER,
1996, tradução nossa; THERBORN, 1980, tradução nossa). Como argu-
mentei em outro trabalho (PINHEIRO, 2011), a concepção de mundo
53
não é um ponto de vista que se adota, dentre outros possíveis, segundo
um critério qualquer de racionalidade, crença ou valor, à semelhança de
um quadro interpretativo específico ou dominante (SNOW et al., 1986,
tradução nossa).
Longe disso, a concepção de mundo se refere à própria organiza-
ção psico-física (para tomar de empréstimo, não por acaso, a expressão
23

de Gramsci) das potencialidades naturais dos indivíduos pelo processo


de transmissão/aquisição da cultura de uma época, conforme uma dada
direção, isto é, um determinado modo de produção/reprodução material

23 Não é mero acaso que o discurso hegemônico sobre a educação defende,


como se fosse um dado da Natureza, a estruturação da vida mental e o adestramento
das capacidades físicas e intelectuais dos jovens para a competição, pois essa ideia é a
perspectiva (na acepção de aparência/configuração do mundo externo), que dá senti-
do à visão de mundo burguesa.
e espiritual da vida social. Pelo mesmo motivo, 24 a concepção de mundo é
a esfera mais geral da representação social do mundo e, porque opera de
modo subjacente como meio de apropriação simbólica da realidade exte-
rior, através do repertório legado por toda a história, como uma espécie
de segunda natureza ao lado da natureza biológica, não é percebida como
construção social.
Todavia, essa definição ainda está incompleta, pois ela responde
apenas à pergunta: o que é ideologia? É comum, nas análises sobre o
fenômeno ideológico, subsumir nesta pergunta, as questões de como a
ideologia opera e quais os seus efeitos, de modo que muitas definições
de ideologia (EAGLETON, 1997) na verdade, refere-se a algum aspecto
particular do seu efeito de desconhecimento; por isso, para uma definição
completa de ideologia é preciso combinar essas três questões, como no
quadro 1 abaixo.

Quadro 1 - Síntese tridimensional da ideologia combinada com


a operacionalização e os efeitos
O que é Processo de interpelação Como opera? (contém os instrumentos)
54 ideologia?
Visão de Mundo Que efeito produz? ((re)conhecimento/
desconhecimento)
Sistema
Fonte: Elaboração própria

Como a ideologia concebida como prática material é operacionali-


zada através da interpelação dos sujeitos, como sujeitos de uma ideologia
(inclusivo-existencial, inclusivo-histórica, posicional-existencial e posicio-
nal-histórica, segundo a tipologia de Therborn, (1980 apud ALTHUS-

24 “É preciso desde logo, estabelecer que não se possa falar de “natureza”


como algo fixo, imutável e objetivo. Percebe-se que quase sempre “natural” significa
“justo e normal”, segundo nossa consciência histórica atual; mas a maioria não tem
consciência dessa atualidade determinada historicamente e considera seu modo de
pensar eterno e imutável.” (GRAMSCI, 2001, p. 51).
SER25, 2006, p. 130-131, tradução nossa), “a categoria sujeito é constitu-
tiva de toda ideologia, mas ao mesmo tempo, acrescentamos, a categoria
sujeito só é constitutiva de toda ideologia enquanto toda ideologia tem por
função (que a define) ‘constituir’ indivíduos concretos como sujeitos.”, o
que ocorre em práticas rituais materiais.
Althusser ilustra, o que ele entende por práticas rituais materiais
com vários exemplos. Destacamos um desses exemplos para ilustrar a ar-
ticulação, entre o que é a ideologia, como ela opera e, que efeito produz
com vistas à operacionalização dos conceitos na análise do exposto na
seção anterior. Diz Althusser (2006, p. 132, tradução nossa): “[...] quando
reconhecemos alguém na rua do nosso (re)conhecimento, lhe acenamos
que o reconhecemos (e que reconhecemos que ele nos reconheceu) dizen-
do-lhe “bom dia, caro amigo!”, apertando-lhe a mão (prática ritual mate-
rial do reconhecimento ideológico na França, pelo menos, além de outros
rituais).”
Nesse exemplo, a ideologia em geral é uma prática material, portan-
to, ainda não enquadrada na tipologia de Therborn. Isto significa, que as
55
práticas rituais materiais operam como suporte das ideias, que são objetos
e instrumentos do pensamento sem estarmos imersos ou em presença de
tais práticas rituais, justamente porque elas são pressupostos das ideias
com as quais o pensamento opera.

25 Não é ocioso advertir que este texto tem sido objeto de erros de interpreta-
ção devido a um insistente viés equivocado de leitura como uma teoria sistemática da
ideologia, apesar do seu subtítulo “notas para uma pesquisa”. Há outra versão, mais
extensa desse texto, distribuída em vários capítulos da obra Sobre a reprodução, que tam-
bém não pode ser considerada definitiva, pois embora incorpore aspectos históricos
e sociológicos à análise, não apresenta contribuição nova em relação às formulações
teóricas presentes na versão publicada em La Pensée, além disso, essa obra é uma pu-
blicação póstuma editada por Jacques Bidet de manuscrito encontrado no escritório
de Althusser. A reflexão aqui desenvolvida, muito longe de pretender esgotar as vias
abertas por Althusser, busca contribuir para a pesquisa de um aspecto particular que,
a meu ver, é o núcleo do tema, integrando-o às contribuições de outros autores no
campo do marxismo.
A interpelação é o modo geral de operar da ideologia. No exemplo
dado, tal interpelação tem os gestos (aceno e aperto de mão) como seus
instrumentos que, postos em operação (isto é, executada a prática ritu-
al) tem como efeito o (re)conhecimento mútuo entre os amigos: um eu,
amigo de fulano; este, também um outro eu, amigo de sicrano; o primeiro
eu. Assim, fulano e sicrano se reconhecem mutuamente como amigos no
ritual que realizam. Há nesta prática ritual, um movimento simultâneo de
inversão dialética: o eu de cada um encontra sua confirmação no reconhe-
cimento do outro.
Por fim, esse (re)conhecimento tem um triplo significado: 1) a afir-
mação do eu de cada um, uma vez confirmada em sua identidade (reco-
nhecimento) pelo outro; 2) interpreta (conhecimento como representação
do objeto ≠ esclarecimento) os dados do mundo exterior relativo a esta
prática ritual segundo essa categoria de amigo e, por conseguinte, 3) ignora
(desconhecimento) o que não é contemplado por esta prática ritual, por
exemplo, outros rituais de reconhecimento e as implicações neles contidas
ou que deles possam ser derivadas. Portanto, este movimento de inversão
56
dialética veicula as ideias de amizade e reciprocidade e abre espaço para
conexão com outras ideias, veiculadas por outras práticas rituais materiais.
Não é por acaso, que encontramos em operação, em estado prático,
este conceito de dialética do (re)conhecimento na análise da mercadoria.
“Por meio da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se a
forma de valor da mercadoria A ou o corpo da mercadoria B o espelho do
valor da mercadoria A.” (MARX, 1988, p. 57). Neste ponto, Marx acres-
centa uma nota de rodapé que reforça essa dialética do (re)conhecimento:
26
O esquema subjacente a essas considerações de Marx sobre Paulo e

26 De certa forma, sucede ao homem como à mercadoria. Pois ele não vem ao
mundo nem com um espelho, nem como um filósofo fichtiano: eu sou eu, o homem
se espelha primeiro em outro homem. Só por meio da relação com o homem Paulo,
como seu semelhante, reconhece-se o homem Pedro a si mesmo como homem. Com
isso vale para ele também o Paulo, com pele e cabelos, em sua corporalidade paulínica,
como forma de manifestação do gênero humano.
Pedro pode ser descrito assim: ambos pertencem ao mesmo gênero, mas
não se reconhecem a priori, como tal nem como Paulo e Pedro, só quando
se defrontam como Paulo e Pedro se reconhecem na sua particularidade e
generalidade. Afinal, a identidade não é uma herança biológica nem uma
doação do conceito, mas construção de relações determinadas que exis-
tem objetiva e, independentemente, do indivíduo e nas quais ele é inserido
do nascimento à morte. Portanto, a dialética do (re)conhecimento consiste
em ser a identidade determinação de práticas rituais e construção sobre
elas com o material que elas oferecem.

Com efeito, na acepção corrente do termo, sujeito significa: 1) uma


subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor e responsável
por seus atos; 2) um ser assujeitado, submetido a uma autoridade
superior, portanto, destituído de toda liberdade, salvo a de aceitar
livremente sua submissão. Esta última notação nos dá o sentido
desta ambiguidade, a qual apenas reflete o efeito que a produz: o
indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta
livremente às ordens do Sujeito, portanto, que ele aceite livremen-
te seu assujeitamento, logo, que ele “realize tudo só”, os gestos e 57
atos do seu assujeitamento. (ALTHUSSER, 2006, p. 140, tradução
nossa).

A dialética do (re)conhecimento definida aqui, incorpora como sín-


tese, a dialética do sujeito presente em Althusser e desenvolvida por Ther-
born (1980, p. 17, tradução nossa) como sujeição-qualificação, segundo a
qual “A ambiguidade das palavras “qualificar” e “qualificação” também
deve ser observada”, pois, continua o autor, “Embora qualificados pela
interpelação ideológica, os sujeitos também se tornam qualificados para
“qualificar”, por sua vez, a interpelação, especificando-a e modificando
sua área de aplicação.”27

27 O primeiro capítulo dessa obra, onde se encontram as contribuições aqui


incorporadas foi traduzido por Lutas Sociais, disponível em: https://revistas.pucsp.br/
index.php/ls/article/view/18805/13987
É por isso, que o pensamento sempre elabora imagens (imagina),
quando opera com ideias cujas práticas rituais que lhes servem de suporte
estão ausentes, pois trata-se de um eu que representa algo para si (pensa-
mento) ou para outro (fala) (LACAN, 1998), a partir de um lugar em uma
prática ritual material dada ou pressuposta, isto é, em uma relação dialética
de (re)conhecimento. Por conseguinte, a prática ritual ausente desempe-
nha como imagem para o pensamento, o mesmo papel da prática material
na qual o eu está imerso.
Certamente, esse esquema é muito abstrato, contudo cremos que
este problema será remediado, na medida em que avançar a aplicação dele
à análise do material empírico, como passamos a fazer. As diversas ati-
vidades do movimento são práticas rituais materiais da mesma natureza
do exemplo acima, como as ocupações, as assembleias, a organização do
acampamento, as reuniões de formação, as marchas etc., durante as quais,
os participantes interpelam-se e se reconhecem uns aos outros no gestual
próprio de cada atividade, como o movimento coordenado para ocupar
o terreno, as tarefas coordenadas para levantar os barracos de lona, ins-
58 crever-se para falar na assembleia, levantar o braço para deliberar sobre
uma proposta, levantar o braço com os punhos cerrados para indicar dis-
posição de luta, caminhar em formação ao lado dos companheiros para
garantir o sucesso da marcha.
Todo esse gestual característico das atividades (as práticas rituais
materiais) dos movimentos constitui acenos de (re)conhecimento mútuo,
aí implicado o conhecimento e o desconhecimento: eu, lutador sem-teto,
companheiro de luta de vários fulanos, também eles, outros eus, lutadores
sem-teto; este conjunto de “eus” constitui o “nós” que luta contra “eles”
(o Capitalismo e o Estado) contra a situação que vivem: “Os patrões, pro-
prietários de terra e banqueiros têm o poder por terem dinheiro. E têm
dinheiro por explorarem nosso trabalho. No capitalismo é assim: muitos
trabalham e poucos tem dinheiro. Por isso lutamos contra ele28”.

28 Extraído de As linhas políticas do MTST, Disponível em: http://www.mtst.


org/quem-somos/as-linhas-politicas-do-mtst/. Acesso em: 4 fev. 2018.
Todavia, o funcionamento dessa dialética do reconhecimento não é
transparente, não dá à percepção imediata o seu conhecimento. “Ora, é a
este conhecimento que é preciso se voltar, se se quer, ao falar na ideologia
e do interior da ideologia, esboçar um discurso que tenta romper com a
ideologia para propor ser o começo de um discurso científico (sem sujeito)
sobre a ideologia” (ALTHUSSER, 2006, p. 133, tradução nossa).
Com isso, Althusser adverte que a Ciência nunca se separa comple-
tamente da ideologia, por isso, a diferença entre ambas aqui é que, enquan-
to o discurso científico busca apresentar as relações necessárias implicadas
nas práticas rituais materiais (religiosas, políticas etc.); o ideológico recruta
os indivíduos através da dialética do (re)conhecimento como sujeitos de
tais práticas, ocultando-lhes os fundamentos delas, não por malícia, mas
por visar ao recrutamento, não à demonstração, ou seja, a dialética do (re)
conhecimento opera interpelando a percepção dos indivíduos de “ser-no-
-mundo”, engendrando representações relativas a esta condição; o discur-
so científico, por usa vez, enquanto pensamento toma a si como objeto,
interpelando essas representações.
59
Está subjacente a essa diferença entre Ciência e ideologia, uma dis-
tinção que Althusser não chega a formular entre o discurso científico e o
discurso sobre a Ciência, que também opera como ideologia, recrutando
indivíduos para atuar como sujeitos nas práticas rituais materiais das insti-
tuições produtoras de conhecimento; diferença que não será desenvolvida
aqui, mas que deve ser assinalada para evitar o equívoco de supor que tais
instituições seriam isentas de ideologias.
Por outro lado, o ocultamento dos fundamentos das práticas rituais
materiais é um efeito próprio da interpelação, que se dirige à demanda psi-
cológica do indivíduo de identificação na dialética do (re)conhecimento,
que se passa todo no nível ideológico, das representações, sem necessidade
de recorrer a conteúdos objetivos exteriores, ainda que assentados sobre
eles, conteúdos que adquirem a aparência de um dado da natureza; nada
a ver, portanto, com a astúcia de um gênio maligno que poderia ser elimi-
nada por um contradiscurso, pois este é apenas outro discurso ideológico
que recruta os indivíduos como sujeitos de outra ideologia. Evidentemen-
te, a dialética do (re)conhecimento é objeto de ação consciente, tanto para
fins políticos e ideológicos de recrutamento; como para fins científicos de
conhecimento, fins que não se excluem mutuamente; ao contrário, com-
plementam-se.
É essa complementaridade que está no horizonte do documento
“Seminários de Guerrilha Cultural”, citado no início da seção anterior,
no qual o MTST se coloca ao duplo desafio de construir outra identidade
coletiva dos sem-teto, oposta a de consumidores da cultura do entreteni-
mento e a de jurisdicionados de um Estado, que só os incorpora positi-
vamente em um nível abstrato no qual suas necessidades não cabem e, ao
mesmo tempo, expor ao conhecimento o porquê de essas necessidades
não caberem na cidade do capital e no quadro institucional do Estado que
a administra.
Para que essa complementaridade não redunde em redução da Ci-
ência à ideologia, ou vice-versa, é preciso considerar, ainda segundo Al-
thusser (2006, p. 134, tradução nossa), que
60

O que se passa na realidade na ideologia parece, portanto, se passar


fora dela. Isto porque aqueles que estão na ideologia se creem por
definição fora da ideologia: é um dos efeitos da ideologia assim
como a denegação prática do caráter ideológico da ideologia, pela
ideologia: a ideologia jamais diz “eu sou ideológica”. É preciso es-
tar fora da ideologia, ou seja, no conhecimento científico, para po-
der dizer: eu estou na ideologia (caso absolutamente excepcional)
ou (caso geral): eu estava na ideologia. Sabe-se muito bem que a
acusação de estar na ideologia vale apenas para os outros, jamais
para si (a menos que seja verdadeiramente spinozista ou marxista,
o que, neste ponto, é exatamente a mesma coisa). O que significa
que a ideologia não tem exterior (para ela), mas ao mesmo tempo
que ela apenas é exterior (para a ciência e a realidade).

O que significa, então, estar fora da ideologia para poder estar na


ideologia, ciente do seu efeito de desconhecimento, que é estar na ideolo-
gia crendo-se fora dela? Significa adotar o postulado filosófico29 de que a
ideologia representa uma relação que lhe é exterior; e que, no entanto, só
pode ser acessada pela via ideológica, assim sendo, significa não assumir
sem crítica, a posição na dialética do (re)conhecimento por se saber que
através dela se realiza uma determinada prática, neste caso, de classe. Pela
mesma razão, se se muda os termos da dialética do (re)conhecimento,
muda-se a prática de classe.
Este esquema teórico, aplicado à experiência do MTST exposta na
seção anterior demonstra que a troca da identidade de cidadão, membro
de uma comunidade de cidadãos jurisdicionados pelo Estado, pela de sem-
-teto, membro de um coletivo de companheiros de luta, implica: 1) trocar
a visão de mundo burguesa como referência geral de qualificação de sua
queixa e de sua reivindicação, visão estruturada pela perspectiva da com-
petitividade; pela dos trabalhadores; pela perspectiva da cooperação ou,
pelo menos, pôr em debate a possibilidade dessa troca; e 2) vincular o
direito à moradia, reivindicado à crítica da produção capitalista da cidade e,
por extensão, à crítica da sociedade capitalista, mudando; por conseguinte, 61
a prática de classe.
Evidentemente, a identidade de cidadão não desaparece das práticas
discursivas (SPINK; FREZZA, 2013) do movimento, pois ela se impõe na
relação com o Estado, que só reconhece cidadãos (nunca sem-teto, tra-
balhadores etc.), mas justamente por isso a ação dos movimentos sociais
apresenta contradições entre diferentes práticas de classe. Ou seja, o real
externo à ideologia é posto em movimento (operacionalizado), conforme
o conhecimento que dele fazemos segundo a identidade assumida na in-
terpelação da dialética do (re)conhecimento; conhecimento e identidade

29 A este respeito, veja-se Du “Capital” à la philosophie de Marx, em Lire Le


Capital, Paris, PUF, 1996.; Justesse en philosophie, Est-il simple d’être marxiste en
philosophie e Sur le travail théorique, em Penser Louis Althusser, Pantin, Les Temps
de Cerises, 2006.
sempre afetados pela posição de classe assumida pelos indivíduos-agentes
da ação política30.
No contexto dessas contradições, as práticas discursivas na expe-
riência do MTST mobilizam quadros interpretativos (ligação, extensão,
amplificação e de transformação), que transitam incessantemente de uma
visão de mundo à outra, uma vê que o movimento atua no contexto de
uma formação social capitalista como crítico da mesma, buscando dar
respostas práticas às questões envolvidas nos processos de mobilização:
“como o senso dos indivíduos do que eles são se vinculam com definições
partilhadas pelos coparticipantes num esforço de mudança social, isto é,
com o que ‘nós’ somos.” e “como o significado que os indivíduos dão a
uma situação social se tornam uma definição compartilhada, implicando
ação coletiva” (GAMSON, 1992, p. 55, tradução nossa),
Essas questões já foram parcialmente respondidas, pois este
“como” das duas questões está embutido nas categorias (amigo, cidadão,
sem-teto, trabalhador etc.) e nas práticas rituais materiais (aperto de mão,
meneio da cabeça, ação coordenada, pronúncia ritualística de termos con-
62
vencionais, cumprimentos em geral etc.) da dialética do (re)conhecimento.
Agora, trata-se de respondê-las quanto ao aspecto operacional e à estru-
turação de uma visão social de mundo alternativa à burguesa, isto é, dos
trabalhadores.
Para melhor esclarecer os aspectos operacionais e os estruturantes
das duas questões postas pela análise de Psicologia Social de Gamson,
faz-se necessário tecer uma breve crítica a este autor com vistas ao es-
clarecimento de como suas contribuições, situadas no interior de outro
paradigma estão sendo incorporadas aqui. Como Gamson usa o termo
“indivíduo”, descolado de qualquer categoria social e fora de qualquer
contexto, intencionalmente ou não, ele acaba por conferir a esta categoria
de análise, certo ar de naturalidade e, consequentemente, a conceber as

30 Estender esta formulação para movimentos cuja queixa e reivindicação nada


têm a ver com a esfera da produção é uma tarefa que deixarei para outra oportunidade.
respostas para as questões que ele coloca apenas como operações da lin-
guagem, no que todo indivíduo é competente, como se essas operações
ocorressem fora de qualquer prática ritual material e, por extensão, da
dialética do (re)conhecimento.
Na verdade, Gamson (1992, p. 77, tradução nossa) inclui o contex-
to em sua reflexão, quando afirma que “Os estudantes de movimentos so-
ciais precisam de uma psicologia social que trate a consciência como uma
interação entre dois níveis – entre indivíduos que operam ativamente na
construção de sentido e processos sociais que oferecem sentidos, frequen-
temente contestados.”, complementando a ideia de interação entre dois
níveis com “O conceito de enquadramento” [que] oferece a maneira mais
útil de ligação destes dois níveis de análise. Como Goffman (1974) usa o
termo, ele contém o que Crook e Taylor (1980, p. 246 apud GAMSON,
1992, p. 67, tradução nossa) chamam de ambiguidade fundamental: “entre
o passivo e estruturado, por um lado, e o ativo e estruturante, por outro.
As experiências são estruturadas, mas eu estruturo minha experiência.”
A referida concepção de interação entre dois níveis difere da dialé-
63
tica do (re)conhecimento, porque: 1) a própria noção de interação entre
esses dois níveis (indivíduos e processos sociais), ainda que apenas analiti-
camente, já implica que são concebidos como exteriores entre si; enquanto
na dialética do (re)conhecimento os processos sociais são, simultaneamen-
te, o ambiente onde ocorre a ação, o objeto da ação e instituintes dos indi-
víduos-agentes da ação; todavia, por tratar indivíduos e processos sociais
como exteriores entre si, 2) nos estudos filiados à tradição da Psicologia
Social, os indivíduos nunca aparecem investidos nas categorias do proces-
so social, abstração que interdita a compreensão da luta de classes, porque
os indivíduos são sempre apenas indivíduos, nunca sem-teto, trabalhador,
desempregado, capitalista etc.
Aqui, trata-se de incorporar na dialética do (re)conhecimento, as
questões da construção da identidade coletiva e as operações de lingua-
gem, os denominados quadros interpretativos, pois a premissa de Althus-
ser, adotada neste artigo, é que os indivíduos estão sempre-já imersos em
práticas rituais materiais e, pela razão de as terem como pressupostos das
práticas discursivas podem operar com as ideias nelas operantes, mesmo
quando não imersos ou em presença delas31, como já assinalado.
O quadro interpretativo (frame, no original inglês) é o instrumento
operacional de que os indivíduos-agentes se valem nas práticas discursivas
para tomar como objeto do debate, no interior das práticas rituais mate-
riais (portanto, na dialética do (re)conhecimento) em que estão imersos, as
ideias operantes em outras práticas rituais materiais (por exemplo, em uma
assembleia se discute a abordagem policial). Snow e Benford (1992, p. 137,
tradução nossa) definem quadro interpretativo como “[...] um esquema
interpretativo que simplifica e condensa o ‘mundo lá fora’ pontuando e
codificando seletivamente objetos, situações, eventos, experiências e sequ-
ências de ações no interior de ambientes passados ou presentes.” Em ou-
tro lugar32, Snow et al. (1986, p. 467, tradução nossa) definem quatro tipos
de quadros interpretativos: de ligação (frame bridging), entendido como “o
vínculo entre dois ou mais quadros interpretativos ideologicamente con-
gruentes, mas estruturalmente desconectados, relativamente a uma ques-
64
tão ou problema particular.” de amplificação (frame amplification), entendi-
do como “clarificação e avivamento de um quadro interpretativo ligado
a uma questão, problema ou conjunto de eventos particulares.” (SNOW
et al., 1986, p. 469, tradução nossa); de extensão (frame extension) é relativo
aos casos em que valores e crenças dos movimentos não estão enraiza-
dos em sentimentos existentes ou não parecem relevantes aos potenciais
apoiadores, situação na qual os movimentos “têm de estender as fronteiras
do seu quadro interpretativo primário, assim como abarcar interesses ou

31 Desnecessário dizer, que o sujeito psicológico pode conceber qualquer ideia


sem referência a práticas rituais materiais; mas neste caso, trata-se de fenômenos da
vida mental com pouca ou nenhuma incidência sobre os fenômenos sociais.
32 As definições a seguir, dos quatro tipos de quadros interpretativos é a re-
produção da que aparece em Visões de mundo em luta, onde abordei aspectos da luta
ideológica semelhantes aos que examino aqui. Disponível em: http://revistas.marilia.
unesp.br/index.php/aurora/article/view/1278
pontos de vista que são secundários para seus objetivos primários, mas de
considerável relevância para seus potenciais adeptos.” (SNOW et al., 1986,
p. 472, tradução nossa).
Por fim, o quadro interpretativo de transformação (frame transforma-
tion) merece um parágrafo próprio, por ser de dois tipos e mais extenso e
complexo. Quando a participação exige mudanças em termos de desen-
volver e adotar um quadro interpretativo de injustiça e a correspondente
orientação atribuicional33 torna-se necessário a transformação interpreta-
tiva global ou de um domínio específico.

Por quadro interpretativo de transformação de um domínio espe-


cífico, nos referimos costumeiramente a mudanças internas, mas
substanciais, na maneira como um domínio particular da vida é
estruturado, de modo que um domínio anteriormente dado por
seguro é reestruturado porque problemático e necessitando de re-
paros, ou um domínio visto como normativo e aceitável é reestru-
turado como uma injustiça que justifica mudança. (SNOW et al.,
1986, p. 474, tradução nossa).
65
No que se refere ao quadro interpretativo de transformação global,
o escopo da mudança é ampliado, consideravelmente, na medida em que
um novo quadro primário, ganha ascendência sobre outros e chega a fun-
cionar como uma espécie de quadro dominante que interpreta eventos e
experiências sob uma nova chave.” (SNOW et al., 1986, p. 475, tradução
nossa).
Como os próprios autores informam, esses quadros interpretati-
vos foram definidos de acordo com a pesquisa empírica que realizaram,
de modo que outras pesquisas podem suscitar a necessidade de outros
quadros. Este é o caso do MTST que, frequentemente, apresenta em seus

33 Este termo (attributional) é utilizado para designar “a característica central


do processo de estruturação relativo à ação coletiva é a geração de diagnósticos de
atribuições, que envolve a identificação de um problema e a atribuição de culpa ou
causalidade” (SNOW; BENFORD, 1992, p. 138, tradução nossa).
pronunciamentos um quadro interpretativo de crítica, que consiste em as-
sinalar a incompatibilidade entre a concepção do movimento sobre sua
demanda habitacional e a organização econômica e institucional do mer-
cado imobiliário, assim como entre a identidade coletiva que projetam e a
de cidadãos jurisdicionados pelo Estado burguês.
As próprias definições são indicativas de que os quadros interpre-
tativos estão relacionados a objetivos práticos e políticos do trabalho de
mobilização, tais como: 1) ampliar o número de adeptos entre aqueles
que compõem sua base social, no caso do MTST, os que são atingidos
pela falta ou pela insegurança habitacional; 2) conquistar apoio às suas
reivindicações, além da sua base social; 3) formular a identidade coletiva
do “nós” atingido pela questão habitacional e, do “eles”, responsáveis por
tal questão e; 4) para um movimento que se apresenta como crítico do
Capitalismo formular uma visão de mundo alternativa, identificada com
os trabalhadores.
Embora os indivíduos-agentes “pontuem e codifiquem seletiva-
mente”, conforme o argumento que elaboram, “objetos, situações, even-
66
tos, experiências e sequências de ações”, estes, é de se notar, já estão
previamente pontuados e codificados pelos e para os lugares que os indi-
víduos-agentes ocupam nas práticas rituais materiais, em maior ou menor
medida, segundo o grau alcançado pela institucionalização e a formaliza-
ção de tais práticas. Para aferir a plausibilidade dessa afirmação, basta aten-
tar para o incômodo que causaria em seus companheiros de luta se, em
uma mesa de negociação, um ativista do movimento adotasse o mesmo
quadro interpretativo dos negociadores, sem nenhum elemento variante.
Com essa observação, meu objetivo é destacar que a dialética do (re)co-
nhecimento consiste em uma dialética objetivo/subjetivo, uma ação (por-
tanto, subjetiva) de indivíduos-agentes sobre estruturas pressupostas (por-
tanto, objetivas), legadas pela história, recente ou remota, não importa.
O material empírico exposto na primeira seção, analisado sob esse
prisma, consiste em uma fonte rica para o exame de como os quadros in-
terpretativos são operados pelos MTST, como instrumentos do trabalho
de mobilização nesta dialética de ação com vistas a fins políticos determi-
nados, sobre estruturas pressupostas. De qualquer modo, sem prejuízo de
uma análise detalhada, limito-me aqui a apresentar um quadro de corres-
pondência entre as fontes citadas na seção anterior, os quadros interpreta-
tivos identificados pelas iniciais (L – ligação, A – amplificação, C – crítica,
E – extensão, T.E – transformação de domínio específico e T.G – trans-
formação global) e os objetivos políticos visados, segundo a numeração
exposta dois parágrafos acima.

Quadro 2 - Fontes empíricas, quadros interpretativos e objetivos visados


Fontes Quadros Objetivos
interpreta- visados
tivo
Seminários de guerrilha cultural C, T.E e 2, 3 e 4
T.G
Desafios do MTST CeL
Convocatória para a ocupação simbólica do Par- AeL 1, 2 e 3
que Laguna
Painel da Ocupação João Cândido C 1e3
67
Manifesto Chico Mendes - O direito à vida está aci- AeL 1e2
ma do direito à propriedade!
Depoimento de Helena34 C, T.E e 1, 3 e 4
T.G
Vídeos produzidos pelo MTST35 Todos Todos
Fotos da festa com espírito de Zumbi, ciranda, mara- A, T.E e 3e4
catu e coco, no Chico Mendes T.G

34 Responsável pelo setor de formação à época da entrevista, atualmente inte-


gra outro movimento.
35 O MTST tem uma rica produção audiovisual que registra sua história
e, ao mesmo tempo, serve como material de formação. Aqui, cito apenas os
que assisti para escrever este artigo: Na luta pela reforma urbana, Associação
de comunidades, Trancaço, Dois meses e 23 minutos, Cidade reinventada, Di-
reitos esquecidos: moradia na periferia e Quem manda na cidade?
Entrevista do rapper GOG, iniciais e pseudônimo EeA 2
de Genival de Oliveira Gonçalves, a Danilo Siqueira
Dara, historiador e membro do coletivo de cultura
do MTST.
Comunidade João Cândido ganha o 3.º Prêmio EeA 2
Cooperifa
Fotos de 14/12/05, do II Festival de Hip Hop do Chico
Mendes
Convocatória para o sarau do Jardim Alto do Maria EeA 2
Rosa, em 15/07/06.
A, T.E e 3e4
Foto: Construção da ciranda João Cândido T.G
Relato da mística no acampamento João Cândido Todos Todos
Fonte: Elaboração própria

Para completar esse quadro analítico é preciso acrescentar o concei-


to de quadro interpretativo dominante.

O que chamamos de quadro interpretativo dominante executa as


mesmas funções que os quadros de ação coletiva de movimentos
68 específicos, mas em escala bem maior. Em outras palavras, eles
também são modos de pontuação, atribuição e articulação, mas
suas pontuações, atribuições e articulações podem matizar e res-
tringir as de qualquer uma das organizações de movimentos. Os
quadros dominantes estão para os quadros de ação coletiva de
movimentos específicos como os paradigmas estão para as teo-
rias ajustadas. Os quadros dominantes são genéricos, os de ação
coletiva específica são derivados. Assim concebidos, os quadros
dominantes podem ser construídos como funcionando de maneira
análoga ao código linguístico, que fornece uma gramática que pon-
tua e conecta sintaticamente padrões e acontecimentos no mundo.
(SNOW; BENFORD, 1992, p. 137, tradução nossa).

Portanto, esse quadro interpretativo dominante oferece uma pers-


pectiva geral da qual os quadros específicos podem derivar seus sentidos;
e esta perspectiva geral, por sua vez, é o efeito do recurso à visão social
de mundo pelas práticas discursivas, de maneira que movimentos que cri-
ticam a sociedade capitalista, como o MTST têm de prefigurar uma visão
de mundo alternativa para servir-lhes de quadro interpretativo dominante.
Os movimentos que não se posicionam criticamente em relação à socie-
dade capitalista; ao contrário, limitam-se a explorar as variações possíveis
da visão social de mundo baseada na perspectiva da competitividade: eis a
razão do alarde em torno da ideia de igualdade de oportunidade, que nada
mais é que oportunidade para competir, como se a vida social fosse uma
grande prova de atletismo transmitida pela televisão.
Neste ponto, e como conclusão, já é possível propor uma síntese do
conceito multidimensional de ideologia, formulado no início desta seção.
Como se combina “o que é” com o “como opera” e “que efeito produz”?
Resposta: a ideologia (1) opera como processo de interpelação em práticas
rituais materiais em todos os espaços da vida social; (2) nele, os indivíduos-
-agentes (em lugares distintos da dialética do “(re)conhecimento) adotam
quadros interpretativos como instrumento de intervenção, mobilizando
em seu socorro elementos das diferentes ideologias do Universo das In-
terpelações Ideológicas36 (THERBORN, 1980 apud ALTHUSSER, 2006,
tradução nossa) e de sistemas ideológicos, como o Direito, a Teologia ou
69
a Filosofia; (3) formando uma unidade complexa e problemática (porque
não há coerência interna nem é preciso haver) conferida a este conjunto
por uma perspectiva geral, que fornece uma visão social de mundo do-
minante em uma sociedade; (4) com vistas à obtenção do efeito de (re)
conhecimento que, como desenvolvida acima, inclui conhecimento como
representação do objeto e, desconhecimento, como ignorância dos funda-
mentos dessa representação.
Essa combinação merece dois complementos. O primeiro para
conferir-lhe unidade, é útil assinalar que os sistemas e as visões sociais

36 Segundo Therborn (1980 apud ALTHUSSER, 2006, tradução nossa), por


mais variáveis que sejam os discursos ideológicos, eles se enquadram em um dos tipos
do Universo das Interpelações Ideológicas: ideologias inclusivo-existenciais (por ex.:
religião e discurso moral secular), inclusivo-históricas (por ex.: nação, dinastia, classe),
posicional-históricas (por ex.: ética profissional, estilo de vida) e posicional-existen-
ciais (por ex.: gênero, posição no ciclo da vida: juventude, adulto, idoso).
de mundo recobertos pelo Universo das Interpelações Ideológicas, que
funciona para os indivíduos-agentes como um repertório de recursos
simbólicos na formulação dos quadros interpretativos como ideolo-
gias, são produtos de práticas rituais materiais recolhidos e elaborados
por aparelhos ideológicos (escolas, igrejas, universidades, mídia etc.)
encarregados dessa tarefa e postos em circulação, pois não há um céu
das ideias. O segundo, para evitar interpretações aleatórias, a perspectiva
que confere unidade ao conjunto não é uma ideia qualquer, à escolha dos
profissionais dos aparelhos ideológicos (ainda que estes façam escolhas),
mas a expressão ideal do etos de classe, do lugar que as classes ocupam nas
relações sociais de produção. É por isso, que o discurso da competitivida-
de da concorrência como expressão ideal das condições de existência da
burguesia, não serve aos trabalhadores; estes, pela mesma razão, quando
têm oportunidade de esboçar uma visão social alternativa de mundo, ten-
dem a substituir competitividade por cooperação, porque esta é sua con-
dição objetiva de existência, uma vez que a produção nunca foi individual,
mesmo nos primórdios da civilização.
70
A produção discursiva dos movimentos sociais no esforço de mo-
bilização reproduz o circuito (de 1 a 4) do processo de interpelação ide-
ológica pela simples razão de que, como anota Althusser, “o homem é
por natureza um animal ideológico” e, pode-se acrescentar, não é dado
ao indivíduo viver em sociedade sem personificar suas categorias estru-
turantes (trabalhadores e capitalistas) e as que delas derivam, segundo a
divisão social do trabalho, o sistema de estratificação social e os sistemas
de classificação herdados da tradição. Entretanto, não reproduz sempre
da mesma maneira. Entre os fatores de variação pode-se citar: o contexto
histórico-social, as questões que desafiam os movimentos e, a orientação
político-ideológica adotada por cada movimento.
Esse circuito do processo de interpelação pode ser aplicado à ex-
periência do MTST do seguinte modo: a organização das práticas rituais
materiais do movimento (a mística, a ciranda, os saraus, as assembleias, as
reuniões de formação, as marchas etc.) resultam da orientação político-i-
deológica de crítica da sociedade capitalista, por conseguinte, de prefigurar
outra forma social (1). Deriva desse posicionamento, na dialética do (re)
conhecimento desenvolvida pelo movimento, uma identidade coletiva de
trabalhadores precarizados, solidários com as lutas de todos os trabalha-
dores a partir da sua condição particular de atingidos por falta ou inse-
gurança habitacional, identidade que pode ser referida por sem-teto ou
trabalhadores precários, sem alterar seus referenciais identitários; assim
como, também derivam as ideias de luta, compromisso, solidariedade e
bem comum.
Essa identidade e as ideias a ela vinculadas são veiculadas por qua-
dros interpretativos de ligação da precariedade habitacional às característi-
cas do mercado imobiliário; de extensão da luta por um direito específico
à luta por direitos, em geral; de amplificação de valores característicos das
comunidades onde atua; de transformação do domínio específico, que é a cidade
capitalista, e de transformação global do modo de vida, todos modulados pelo
da crítica (2); quadros específicos que são derivativos do quadro interpreta-
tivo dominante que projeta o novo modo de vida prefigurado, baseado na
71
perspectiva da cooperação, do “fazer juntos” para todos viverem melhor,
portanto, uma visão social de mundo alternativa (3). Com isso, consolida-
-se o efeito de (re)conhecimento de cada um com todos, como sujeitos
que se interpelam mutuamente, segundo a interpelação do Sujeito central,
o MTST (4).
Nunca escapou ao MTST, talvez herança do MST, no qual teve ori-
gem, que o reconhecimento produzido pelas suas práticas rituais materiais,
também produz desconhecimento, por isso, nas reuniões de formação
sempre se incorporou, como material de reflexão, o conhecimento produ-
zido na universidade (não exclusivamente), sobre a cidade especificamen-
te, e sobre a sociedade capitalista, em geral; além de o próprio movimento
editar uma revista de crítica social, intitulada: Territórios Transversais.
Talvez não seja excesso de cuidado assinalar que o MTST, represen-
tado na sua Coordenação Nacional, desempenha o papel de Sujeito central
apenas para aqueles que se identificam com o movimento no âmbito da
sua luta, de modo que a ampliação de alianças implica ampliar, a dialética
do (re)conhecimento para que mais trabalhadores se sintam solidários na
mesma luta.
Por fim, no que se refere à experiência do MTST, uma definição
simples e geral que concorde, tanto com a teoria quanto com o sentido
a ela atribuído pelo próprio Movimento, implica tomar as práticas rituais
materiais do movimento (a mística, a ciranda, os saraus, as assembleias,
as reuniões de formação, as marchas etc.) como rituais de auto-reconhe-
cimento e/ou de reconhecimento nele. Sem dúvida, essa é uma definição
circular, mas não se perde na circularidade, porque é uma forma simbólica
criada pelo e para o Movimento; assim, estes rituais são a própria porta
de entrada neste círculo, ou melhor, a sua consciência de que a identidade
também é arma e objeto da luta política.

REFERÊNCIAS

72 ALTHUSSER, L. Idéologie et appareils idéologique de l’Etat (notes pour une recher-


che). Pantin: Les Temps des Cerises, 2006.

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Press, 1992.

THERBORN, G. The ideology of power and the power of ideology. London: Verso,
1980.

73
Capítulo 3

Pratica política e ideologia na experiência


do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra no Maranhão
Ilse Gomes Silva

INTRODUÇÃO

O MST é considerado um dos maiores e mais combativos movi-


mentos sociais do Brasil e da América Latina. Originário da luta dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra pela reforma agrária em vários estados do
Brasil atingiu uma dimensão nacional, em 20 a 22 de janeiro de 1984, em
74
Cascavel, Paraná, por ocasião do 10º Encontro Nacional dos Sem Terra.
Participaram desse 10º Encontro, representantes de 12 estados brasileiros
e diversas entidades de apoio à luta pela reforma agrária (MORISSAWA,
2001).
Ao longo desses 34 anos, o Movimento dos Sem Terra (MST) se
tornou um importante objeto de estudo na academia, pela riqueza que sua
prática política oferece aos pesquisadores instigados em refletir sobre os
processos de transformação social e emancipatórias da classe trabalha-
dora. Dentre as várias possibilidades de estudo que o MST oferece, dedi-
quei-me à investigação dos aspectos ideológicos presentes em sua prática
política, que indicam a contribuição do Movimento para a construção dos
elementos ideológicos de um projeto emancipatório. Este artigo condensa
as reflexões resultantes do projeto de pesquisa Ideologia e resistência na prática
política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: a experiência no Ma-
ranhão, desenvolvido na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), nos
últimos dois anos. Muito embora, parte das reflexões aqui apresentadas
possa ser encontrada em outros artigos publicados, a particularidade desse
trabalho é seu caráter conclusivo em relação aos resultados da pesquisa.
Nos embates políticos, a questão da ideologia sempre esteve pre-
sente, seja para os conservadores e liberais negarem a sua existência ou
para acusar o campo da esquerda de ideológico, ou seja, “de modo geral,
conservadores [...] temem o conceito, já que classificar as próprias crenças
como ideológicas implicaria o risco de convertê-las em objetos de contes-
tação” (EAGLETON, 1997, p. 19). No campo teórico, no final do Século
XX, o conceito de ideologia foi esvaziado pelas correntes pós-modernistas,
que vislumbravam um mundo pós-capitalista, nesse ponto se encontrando
com o discurso neoliberal do fim da história. Entretanto, o movimento
social da classe trabalhadora em relação às políticas neoliberais, cada vez
mais excludentes, recoloca a questão da ideologia como fundamental para
a disputa das narrativas sobre a conjuntura atual.
Os dados mais recentes da OXFAM BRASIL (2017), referentes à
desigualdade mundial e no Brasil expõem a barbárie que a concentração
75
de renda em pouquíssimas mãos submete a grande maioria da população.
No mundo, apenas 8 pessoas detêm o mesmo patrimônio que a metade da
população mais pobre. Com grande parte da população mundial, sobre-
vivendo em situação de extrema pobreza, 700 milhões de pessoas vivem
com menos de US$ 1,90 por dia, assim, o discurso de prosperidade dos
ideólogos neoliberais encontra dificuldade de se legitimar nas camadas e
povos empobrecidos. Este confronto de realidades, somado aos processos
de ataque à soberania nacional dos países do Terceiro Mundo e do Oriente
Médio leva ao questionamento da ideologia dominante, principalmente,
no que se refere à defesa da ordem e da prosperidade.
No caso específico do Brasil, os dados indicam que a concentração
de renda aumentou: “apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao
patrimônio de 100 milhões de brasileiros mais pobres” (OXFAM BRA-
SIL, 2017, p. 6). Embora não seja uma novidade para o Brasil, a situação
de polarização política ao qual a sociedade brasileira está submetida, desde
2013, quando a direita tomou as ruas para contestar as tímidas políticas
de combate à pobreza, cria possibilidades que o oprimido questione suas
condições diante da concentração de renda em poucas mãos. Na impossi-
bilidade de impedir fissuras na ideologia nacional, de que todos são cida-
dãos, a opção da classe dominante presente nos aparelhos de Estado é a
repressão37. Os massacres são muitos e a impunidade se tornou uma regra.
A vida de trabalhadores rurais, quilombolas e indígenas são insignificantes
para os donos do capital; e, o aparelho do Estado, o instrumento para
viabilizar a dominação e a exploração no campo.
O MST se confronta no dia a dia com a ideologia dominante da
defesa da propriedade e da ordem.

No processo de produção agrícola, a cadeia de produção capitalis-


ta, as necessidades de sobrevivência e o arcabouço jurídico-políti-
co pressionam os trabalhadores a se sujeitarem ao agronegócio, à
destruição do meio ambiente, à cultura massificada dos meios de
comunicação, à discriminação de gênero, à hierarquização e eliti-
zação da direção política e à naturalização da corrupção. (SILVA;
76 COUTINHO, 2013, p. 210).

A sua luta contra o latifúndio e a violência a que está exposto pelo


braço armado do Estado e dos latifundiários propiciam o questionamento
da ideologia dominante e, na condição de oprimidos os força a rebelar-se
contra a exploração e a dominação e a elaborar um projeto emancipatório.

Alguém que fosse totalmente vítima da ilusão ideológica sequer


seria capaz de reconhecer uma reivindicação emancipatória sobre
si; e é porque as pessoas não param de desejar, lutar e imaginar,

37 Os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) são claros, quando demons-


tram que o número de assassinatos de lideranças de trabalhadores é alto e, desde
2014, que esse número tem crescido a cada ano de modo que, em 2017, os assassina-
tos atingiram o patamar de 2003. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/
publicacoes-2/destaque/4319-assassinatos-no-campo-batem-novo-recorde-e-a-
tingem-maior-numero-desde-2003. Acesso em: 13 ago. 2018.
mesmo nas condições aparentemente mais desfavoráveis, que a
prática da emancipação política é uma possibilidade genuína. (EA-
GLETON, 1997, p. 13).

A prática política do MST é um rico laboratório, que nos oferece


uma série de elementos inovadores, dentre os quais se destacam: as formas
de organização da luta e a valorização do trabalho de base e da gestão de-
mocrática, os chamados rituais de reconhecimento, como por exemplo, a
mística, as músicas, as datas comemorativas da luta do movimento, o culto
à memória dos companheiros que morrem na luta ou foram importantes
para as conquistas políticas e sociais da classe trabalhadora.
A exposição está organizada, de modo a identificar os aspectos ide-
ológicos presentes na prática política do MST, que indicam processos de
tensão e questionamento com a ideologia dominante, expressos, principal-
mente, nos rituais de reconhecimento e renovação do compromisso com
a luta emancipatória.

IDEOLOGIA: concepções e expressões 77


na prática política do MST

Quando se mergulha no universo polissêmico da categoria ideo-


logia, um dos poucos pontos de acordo entre os autores é considerar,
que a vida de todos os indivíduos está afetada pela ideologia e que a luta
ideológica é importante ferramenta para os processos de disputa de poder
e legitimação entre as classes sociais em seus projetos conservadores ou
emancipatórios.
Do ponto de vista histórico, o termo ideologia foi desenvolvido
por Antoine Desfutt de Tracy38, em seus estudos sobre a ciência das ideias

38 Antoine Desfutt de Tracy foi filósofo e político republicano francês que


se destacou por ser líder da escola filosófica dos ideólogos, na ocasião da Revolução
Francesa. Publicou ElémentsD’Ideologie, em 4 volumes (1801/1815) (EAGLETON,
1997).
e tomou um conteúdo de disputa política nos enfrentamentos contra o
autoritarismo de Napoleão Bonaparte, que conferiu ao termo, uma cono-
tação negativa para desqualificar seus opositores.
Com Marx e Engels, o conceito de ideologia, elaborado no livro A
Ideologia Alemã, a partir dos seus estudos do materialismo histórico, tem na
divisão do trabalho a base real da ideologia. Consideravam que “o primeiro
ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessi-
dades, a produção da vida material em si” (MARX; ENGELS, 2007, p. 50).
No processo de produção da vida material o Ser Social vai se constituindo
e forjando os significados de sua experiência, que são compartilhados com
outros indivíduos, transformando-os em sujeitos de sua própria história.

Esta concepção revela que a história não termina se dissolvendo


na ‘autoconsciência’, na condição de ‘espírito do espírito’, mas que
em cada uma de suas fases se encontra um resultado material, uma
soma de forças de produção, capitais e circunstâncias que, mesmo
que de um lado sejam modificados pela nova geração acabam por
ditar a esta, por outro, suas próprias condições de vida e lhe impri-
78 mem um determinado desenvolvimento, um caráter especial – de
que, portanto, as circunstâncias fazem o homem na mesma medida
em que este faz as circunstâncias. (MARX; ENGELS, 2007, p. 62).

Essas circunstâncias, embora tenham na base a divisão do traba-


lho, as relações de propriedade e a apropriação não se encerram nelas. As
classes sociais constituídas pelas relações de propriedade e apropriação
aspiram implantar sua dominação, de modo a garantir que seus interesses
particulares sejam universalizados. Na sociedade capitalista, a defesa da
propriedade e a manutenção da ordem são um dos principais pontos cons-
titutivos da ordem burguesa, tendo no Estado a instância com os meios
materiais para produzir e reproduzir a dominação política e ideológica da
classe proprietária. Nas palavras de Marx e Engels (1996, p. 87), o poder
político “é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”,
de modo que a classe que detém o poder político exerce a hegemonia so-
bre as outras classes, utilizando-se da força e do consentimento ativo das
classes dominadas.
Para Gramsci (1991, p. 33), a hegemonia é ético-política e também,
econômica; significando a capacidade de direção dos processos políticos,
ideológicos e econômicos de determinada classe social. O exercício da he-
gemonia “pressupõe indubitavelmente que se deve levar em consideração
os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais hegemonia será
exercida; que se forme um certo equilíbrio de compromisso.”

Por isso, a coerção deve ser sabiamente combinada com a persua-


são e o consentimento, e isto pode ser obtido, nas formas adequa-
das de uma determinada sociedade, por uma maior retribuição que
permita um determinado nível de vida, capaz de manter e reinte-
grar as forças desgastadas pelo novo tipo de trabalho. (GRAMSCI,
1991, p. 405).

Conforme escreveu Althusser (1996), o Capitalismo cria as condi-


ções de reprodução da força de trabalho e de sua submissão às regras da
ordem burguesa. Em outras palavras: “as ideias da classe dominante são as
ideias dominantes de cada época, quer dizer, a classe que exerce o poder
79
objetal dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 71). O exercício desse poder localiza-se na
superestrutura jurídico-política e ideológica, através dos aparelhos repres-
sivos e dos aparelhos ideológicos do Estado. Coerção e consentimento
andam juntos, sendo que os aparelhos repressivos têm na força a carac-
terística principal de atuação; enquanto os aparelhos ideológicos utilizam
majoritariamente, a ideologia.
O MST, em sua luta pela reforma agrária, contra o latifúndio e pelo
Socialismo sofre diariamente a violência dos aparelhos de repressão e dos
aparelhos ideológicos do Estado. Os assassinatos, a agressão às famílias
acampadas, a ação do judiciário, da polícia e da milícia privada dos latifun-
diários - que agem com extrema violência nas ações de reintegração de
posse - são justificados perante a sociedade, através do discurso da defesa
da propriedade privada e pela construção da imagem dos trabalhadores
rurais sem-terra, como indivíduos perigosos e baderneiros; em contrapon-
to à projeção do agronegócio, como moderno, lucrativo e responsável pela
proteção do meio ambiente e pelo desenvolvimento.
Os sujeitos legitimados dessas ações jurídico-políticas e ideológicas
são representantes do Executivo, do Judiciário e da polícia cujos discur-
sos são reproduzidos, reelaborados e amplificados pela grande mídia, de
modo a legitimar e obter o consentimento da população para a necessi-
dade da violência como único meio capaz de manter a ordem e a pro-
priedade. Enquanto isso, os assassinatos não são investigados, tão pouco
divulgados pela grande mídia.
No campo dos estudos sobre a ideologia, considero muito impor-
tante as contribuições de Althusser (1996), principalmente, em sua inten-
ção de propor uma teoria sobre a ideologia em geral, identificando sua
estrutura e forma de funcionamento. O referido autor considera que a
ideologia em geral tem uma estrutura e um funcionamento ancorado na
dinâmica da luta de classes, que torna possível afirmar, por um lado, que
“as ideias da classe dominante são as ideias dominantes de cada época,
quer dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é,
80
ao mesmo tempo, seu poder espiritual” (MARX, ENGELS, 2007, p. 71).
Por outro lado, a ideologia em geral não tem história, porque sua base é a
história da luta de classes, conforme Marx e Engels defenderam no Ma-
nifesto do Partido Comunista. Enquanto isso, as ideologias em particular
têm história, de acordo com cada formação social.
Em sua tese central, Althusser defende que “a ideologia é uma ‘re-
presentação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições
materiais de existência” e “a ideologia tem uma existência material” (AL-
THUSSER, 1996, p. 126 e 128). Essa compreensão de ideologia orientou
a análise da prática política do MST em sua tensão, entre a reprodução e a
superação dos valores que balizam a ideologia dominante e suas múltiplas
expressões, nomeadamente, no processo decisório, na formação dos nú-
cleos de base, na organização das instâncias de deliberação, nos projetos
de formação política, no projeto pedagógico de educação e exercício da
militância, na cultura e na celebração dos processos de luta e de conquistas.
Por um lado, a grande concentração de renda, a presença do lati-
fúndio como padrão de propriedade rural e sua correspondente violência
contra os trabalhadores rurais sem-terra, quilombolas, indígenas e; por
outro lado, os projetos societários e a forma de organização da luta pra
conquistar a emancipação econômica e política são a realidade material,
que nos permite identificar a representação “imaginária” que os Traba-
lhadores Rurais sem-terra têm de sua existência material. Nas palavras de
Althusser (1996, p. 128):

Toda ideologia representa, em sua deformação necessariamente


imaginária, não as relações de produção existentes (e as outras re-
lações que delas decorrem), mas, acima de tudo, a relação (imaginá-
ria) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações
que delas decorrem. O que é representado na ideologia, portanto,
não é o sistema das relações reais que regem a existência dos indi-
víduos, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações
reais em que vivem.

A segunda tese de Althusser de que, “a ideologia tem uma existên- 81


cia material” e que está presente nos aparelhos ideológicos do Estado e em
sua prática ou práticas é muito importante, também, para analisar a prática
política do MST cujos rituais de reconhecimento, a vivência da mística, da
cultura e de sua forma de organização, de luta contra o Capitalismo são
a representação material de seu cotidiano, através do qual elaboram uma
crítica radical à sociedade e às ideologias que legitimam e reproduzem as
condições de vida da sociedade capitalista. Ao realizar essa crítica cons-
troem novas concepções de mundo que podem basilar a constituição de
uma sociedade emancipatória, afinal “suas ideias são seus atos materiais,
inseridos em práticas materiais regidas por rituais materiais, os quais, por
seu turno, são definidos pelo aparelho ideológico material de que derivam
as ideias desse sujeito” (ALTHUSSER, 1996, p. 130).
Nessa elaboração, a ideologia tem na noção de sujeito, o elemento
constitutivo, uma vez que “não existe prática, a não ser através de uma ide-
ologia, e dentro dela”; e “não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para o
sujeito” de modo que “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”.
A partir desses dois enunciados, o autor elabora sua tese central segundo
a qual “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” (ALTHUSSER,
1996, p. 131), em uma “dupla constituição” em que a categoria do sujeito
“só é constitutiva de qualquer ideologia na medida em que toda ideolo-
gia tem a função (que a define) de ‘constituir’ indivíduos concretos como
sujeitos” (ALTHUSSER, 1996, p. 132). A ideologia atua, a partir de uma
estrutura que assegura:

a interpelação dos ‘indivíduos’ como sujeitos; a sua sujeição ao


Sujeito; o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, o
reconhecimento dos sujeitos entre si e, por último o reconheci-
mento de si mesmo pelo sujeito; a garantia absoluta de que tudo
realmente é assim e de que, desde que os sujeitos se reconheçam o
que são e se comportem consoantemente, tudo ficará bem: ‘Amém
– Assim seja’. (ALTHUSSER, 1996, p. 137).

Therborn (1996, p. 51) propõe que a dualidade interpelação/sujei-


82 ção elaborada por Althusser, seja substituída por um sistema que inclui um
processo de interpelação/sujeição/qualificação ao afirmar que, “embora
qualificados pela interpelação ideológica, os sujeitos também se tornam
qualificados para ‘qualificar’, por sua vez, a interpelação, especificando-a e
modificando sua área de aplicação.”

MST: rituais de reconhecimento, mística e cultura

O MST atua em um contexto de extrema exploração, opressão e


humilhação geradas pelas condições sócio-históricas da formação social
do Brasil, que forjaram uma estrutura fundiária e agrária ancorada no la-
tifúndio e na concentração de renda e de terras. Somado às condições
objetivas, o movimento se depara com a violência provocada pelo braço
armado das milícias particulares dos latifundiários e do aparelho repressor
do Estado, que faz com que o índice de assassinatos39 de suas lideranças
esteja sempre em ascensão a cada ano; em contraste com o número de
julgamentos e prisões dos mandatários dos crimes.
Entre a cerca e o asfalto e, sob a mira das armas, seus militantes se
constituem, enquanto sujeitos em luta, “fazem sua própria história, mas
não a fazem segundo sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por
eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas e trans-
mitidas pelo passado.” (MARX; ENGELS, 2008, p. 207). Na luta de resis-
tência vivenciam o triplo processo de serem interpelados pelos aparelhos
de repressão e, pelos aparelhos ideológicos como foras da lei, usurpadores
da propriedade privada, promotores da desordem; de serem sujeitados à
ideologia dominante e, simultaneamente, qualificarem-se para serem por-
tadores de um projeto de emancipação.
O MST, em seu Primeiro Congresso Nacional, assumiu a bandei-
ra do Socialismo40 como projeto a ser conquistado ao lado da reforma
agrária e inovou sua prática política41, reconstruindo e ultrapassando mui-
tos aspectos da experiência de organização dos movimentos agrários e
83
da esquerda brasileira, dentre eles, destacamos o incentivo à participação
dos jovens e mulheres nas instâncias de direção e de formação política, a

39 Segundo o relatório da violência no campo, organizado pela Comissão Pas-


toral da Terra, o número de assassinatos de lideranças do MST tem crescido, desde
que iniciou o governo golpista de Michael Temer, em 2016, com o apoio da bancada
ruralista. Em 2012, foram registrados 36 assassinatos, enquanto em 2016, subiu para
61 e, em 2017, foram 65 trabalhadores mortos em massacres com requintes de cruel-
dade. Disponível em: https://cptnacional.org.br.
40 No 1º. Encontro Nacional dos Sem-Terra, em 1984, a palavra de ordem era
“lutar pela terra, pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país”. Somente
no 1º. Congresso, realizado em 29 a 31 de janeiro de 1985, que a palavra Socialis-
mo é acrescida aos princípios do MST. MOVIMENTO DOS TRABAHADORES
RURAIS SEM TERRA. Nossa História. Disponível em: http://www.mst.org.br/
nossa-historia/84-86. Acesso, em 09/03/2017.
41 O MST afirma, que se considera herdeiro da longa tradição de luta e orga-
nização de movimentos da classe trabalhadora no campo e na cidade, no Brasil e no
mundo, e da experiência da Teologia da Libertação.
vivência da mística, a valorização da cultura popular e dos companheiros
que morreram no processo de luta ou foram importantes para a história
do movimento dos trabalhadores e ao alimentar diariamente a memória
dos processos, que resultaram na conquista de cada assentamento. No
registro de sua história afirmam: “Queremos ser produtores de alimentos,
de cultura e conhecimentos. E mais do que isso: queremos ser constru-
tores de um país socialmente justo, democrático, com igualdade e com
harmonia com a natureza.” (MOVIMENTO DOS TRABAHADORES
RURAIS SEM TERRA, 2017).
No processo dinâmico e contraditório de constituição, enquanto
sujeitos/trabalhadores rurais historicamente determinados pelas con-
dições estruturais de produção e subjetivas da luta de classe, é possível
identificar, através dos rituais de reconhecimento e da mística, “a relação
imaginária” que os trabalhadores rurais têm “com as relações reais em que
vivem”.
O ritual da mística é uma representação da realidade concreta dos
militantes, dotado de um caráter extremamente crítico e com uma pro-
84
posta de superação das condições de opressão. Todos que participam ou
assistem ao ritual da mística são tomados pela emoção, são envolvidos por
uma forte força de compartilhamento e pertencimento ao projeto utópico
de construção de uma sociedade sem exploração.

Ela é um recurso valioso na formação dos sujeitos históricos, ten-


do a capacidade de criar uma nova sociabilidade, que entra em cho-
que com os mandos do capital. Junto a outros recursos formativos,
ela tem o poder de ampliar a consciência dos militantes, ao mesmo
tempo em que pode elaborar uma ideologia emancipatória capaz
de se opor à ideologia dominante e reafirmar o sujeito como apto
a lutar por uma sociedade coordenada pelos produtores livremente
associados. (SOUSA, 2012, p. 12-13).

Sousa (2012) demonstra, que o ritual da mística é parte da herança


que o MST adquiriu das experiências das Comunidades Eclesiais de Base
e das Pastorais da Igreja Católica e, ao adotá-lo como prática do seu co-
tidiano, transformou-o em importante recurso político-formativo de lei-
tura crítica da realidade e em força motriz capaz de motivar o militante a
permanecer na luta e, a renovar seus compromissos com a transformação
social, conforme indica o hino do Movimento: “Nossa força, resgatada
pela chama da esperança no triunfo que virá, forjaremos desta luta, com
certeza, pátria livre operária camponesa, nossa estrela enfim triunfará!”.
A mística nas atividades do MST, seja em ação de mobilização,
formativa ou de enfrentamento assume um papel de destaque, porque
representa o ponto de encontro/unidade em que o sujeito (trabalhador
rural) nomeia o opressor, denuncia a sujeição e se qualifica para interpe-
lar o Sujeito. No auto da mística, o Sujeito pode ser a classe dominante,
o latifundiário, o Estado, o indivíduo racista ou machista e é interpelado
como agente da exploração, da opressão e da humilhação. Ao interpelar o
Sujeito, os militantes do MST se reconhecem como sujeitos de sua própria
história, capazes de construírem novas relações de sociabilidade e forja-
rem novos valores em oposição aos valores burgueses.
85
“A ‘mística’ é o momento em que a gente tem clareza do que é esse projeto.
Você quer entender qual o projeto político do Movimento? Assiste a “mística”
que ela vai te dar conta do que é essa prática cotidiana, do que quer dizer esse
projeto; ou quer dizer que a gente não está entendendo o que tá fazendo, tam-
bém é possível. Então, o que é a “mística”? É um momento de síntese de estudo
sobre a realidade de uma conjuntura, sobre um projeto por uma inspiração42 .

O ritual da mística envolve todos os participantes do evento e


lança mão de variados recursos, como: músicas, poesias, danças, teatro,
performances, além de utilizar o material que seja expressão da luta e da
produção, como: cartazes, produtos agrícolas, bandeiras, camisetas e fer-
ramentas de trabalho, tudo isso em uma tentativa de formar um coletivo
orgânico, uma vontade coletiva, uma noção de nação e de valorizar a arte

42 Entrevista concedida durante o Encontro da Coordenação Estadual do


MST, em 15 de dezembro de 2016.
das camadas populares, conforme se pode observar nesse trecho da músi-
ca “o gosto de ser povo” de Reginaldo Melo:

O povo não estando unido, pelos mesmos ideais, nem tão pouco
envolvido pelos valores culturais, é povo mas não é nação: é apenas
população, habitantes e nada mais. [...] Nós somos um povo rico,
em ritmo e musicalidade, a nossa cultura é forte temos criatividade,
nunca irão nos deter, juntos iremos vencer todas as dificuldades.
(MST, [2012?], p. 19).

Há uma prática política que direciona todas as ações para uma


intervenção estratégica, vinculada a uma totalidade (produção/política/
ideologia). Todas as atividades possuem um caráter político, a partir de
uma concepção totalizante da sociedade e de construção de um projeto
emancipatório em oposição às práticas da classe dominante. Esse pro-
cesso possui suas contradições, provocadas pelo modelo de desenvolvi-
mento e consequente presença do agronegócio como modo hegemônico
de produção no campo e, pela exposição à ideologia burguesa veiculada
86
pelos aparelhos ideológicos de Estado, principalmente a grande mídia que
criminaliza o movimento em todas as suas matérias.
Para os militantes43, a mística tem uma história, um papel a cumprir
na formação e construção da identidade de classe.

Então, imaginem a década de 80, o que era um acampamento na


beira da estrada, dentro do mato, sem luz, sem rádio, sem telefone,
sem nada, as pessoas precisavam cantar, precisavam fazer poesia,
precisavam falar do que acontecia, precisavam escrever, então, a
“mística”, esteticamente falando é uma junção de linguagens que
humaniza, que possibilita que pessoas que não tiveram acesso as
linguagens, [...] se construam nesse processo de falar sobre a sua
vida, de contar sua vida, de contar suas tradições, de falar sobre
seus percalços da luta, de expropriação; pela arte, pela espiritualiza-

43 Entrevistas com participantes do Encontro da Coordenação Estadual do


MST concedidas no período, de 15 a 17 de dezembro de 2016.
ção do momento. E diz muito sobre a produção da identidade Sem
Terra, sem ela não teria sido possível os 30 anos de Movimento e
essa identidade dessa bandeira de ser Sem Terra e o que significa
isso é “mística”. Ela se tornou um espaço totalizante, ela não é só
mais um momento de abertura da manhã, que a gente pega um
tema da conjuntura e através das linguagens artísticas passa uma
mensagem, ela perpassa a nossa construção simbólica de ser e estar
na militância, de ser e estar em acampamento, o que significa esses
30 anos.

A visão totalizante presente na prática política do MST resgata e


valoriza a cultura popular como resistência à cultura homogeneizante da
indústria cultural burguesa. O que se percebe, pelas falas dos seus mili-
tantes é o interesse de marcar que há uma disputa político-ideológica na
sociedade de classes e, que cabe ao MST reforçar e politizar as construções
da cultura popular e de uma identidade de classe. No Encontro da Coor-
denação Estadual em São Luís/MA44, as delegações foram nomeadas com
as seguintes palavras de ordem, que são expressivas da concepção de luta
permanente e do pertencimento a uma classe: 87
“Ousar Lutar! Ousar Vencer!”
“Reforma Agrária quando? Já!”
“Quando o campo não planta? A cidade não janta!”
“MST! A luta é pra valer!”
“Cansados? Não. Na luta ninguém descansa!”
“Mulheres e homens conscientes, a luta é permanente!”
“Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!”
“Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede!”

Como podemos observar, o MST confere à sua prática política,


uma dimensão emancipatória que se encontra presente em todas as suas

44 O Encontro da Coordenação Estadual do MST ocorreu em São Luís, de 15


a 17 de dezembro de 2016.
atividades cotidianas, seja nas mobilizações, nas ações de ocupação, no
projeto pedagógico, nas atividades culturais, na mística, no material gráfico
de divulgação, nas poesias ou nas músicas. Zacchi (2013, p. 149) nos diz,
que

a proposta cultural do MST, assim como de outros movimentos


sociais, sugere que nem toda cultura está subsumida à economia e
ao capitalismo neoliberal, desafiando a tendência à uniformidade, e
que é possível haver resistência de dentro do próprio sistema sem
uma completa integração.

Todos os espaços e a diversidade de linguagens são utilizados para


formação política do trabalhador rural, que por sua vez sofre as influên-
cias culturais de cada região, entende-se que superar o sistema capitalista,
implica também, em superar seus valores que legitimam a sociedade bur-
guesa. Conforme depoimento sobre a mística de uma militante do MST/
MA, as especificidades de cada região conferem também, uma particulari-
dade às atividades do movimento.
88
Quem vai ao Pará não volta o mesmo! E eles conseguiram fazer de
todos os espaços, de todos os momentos, desde a cozinha, a hora
de almoçar; um espaço de reconstrução, desconstrução e recons-
trução! Aí você vivencia valores revolucionários, outros valores,
outras perspectivas de sociabilidade, a partir de uma construção
totalmente coletiva.

A construção de projetos políticos alternativos e emancipatórios


não afastam as contradições constitutivas desse processo. Marx e Gramsci
nos ajudam na compreensão dessas contradições. No XVIII Brumário,
Marx (2008, p. 207-208) destaca, o quanto as gerações do passado pesam
sobre as gerações futuras quando escreve, que:

a tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos


vivos como um pesadelo E mesmo quando estes parecem ocupa-
dos a revolucionar-se, a si e as coisas, mesmo a criar algo de ainda
não existente, é precisamente nessas épocas de crise revolucioná-
ria que esconjuram temerosamente em seus auxílio os espíritos do
passado.

Na prática política do MST, observa-se a preocupação com a histó-


ria de luta do movimento da classe trabalhadora e do papel de intelectuais
orgânicos nesse processo. Nas diversas atividades, seja de intervenção po-
lítica ou de formação, os militantes do passado são lembrados através dos
pôsteres, das letras de música, nas poesias e nos estudos dos textos.

Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função


essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mes-
mo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais
que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não
apenas no campo econômico, mas também no social e político.
(GRAMSCI, 2001, p. 15).

Compreender os processos de luta de classe nos diversos contextos,


através dos militantes e intelectuais de esquerda de hoje e de ontem é uma 89
importante prática que contribui com o nascimento do “novo”, mesmo
sabendo que nesse novo se encontra a presença do “velho”. Nessa prática
política, os novos intelectuais são forjados na luta diária engendrada pelos
momentos de formação e intervenção política, como constitutivo de uma
totalidade de construção de uma nova sociedade e de um novo homem.

INCONCLUSÕES

O MST ao longo de sua trajetória provocou a reação de variados


setores da sociedade. No espaço acadêmico é um campo fértil para pes-
quisas cujos estudos exigem atualizações teóricas sobre o papel desses tra-
balhadores nos processos de transformação social. Na disputa política no
interior do campo da esquerda, o MST colocou os trabalhadores no cam-
po no centro da cena política como um dos principais protagonistas das
lutas sociais, que através de sua prática política intimou as organizações de
esquerda a rever suas práticas, principalmente, no campo da estratégia de
intervenção e na construção da democracia.
A reação das classes dominantes, precipuamente os ruralistas, ao
surgimento do MST foi de unificar a violência contra suas lideranças, con-
tratando pistoleiros e organizando milícias privadas e empreender uma
forte campanha midiática de criminalização do Movimento. Em 1985, sur-
giu a União Democrática Ruralista (UDR) em resposta à organização do
MST e, para aglutinar e unificar o combate de qualquer tentativa de imple-
mentação de políticas públicas voltadas para a população de trabalhadores
rurais e pequenos produtores. A UDR foi alvo de muitas denúncias de
assassinatos, massacres e violência no campo que, no entanto, ficaram sem
ser investigadas. Outras entidades de defesa dos interesses dos ruralistas
se juntaram com a UDR, como a Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) e, a Sociedade
Rural Brasileira (SRB) para unificar a ação contra os trabalhadores rurais.
Hoje, a força das diversas entidades dos ruralistas pode ser sentida
pela quantidade de parlamentares eleitos em todos os Estados brasileiros
90
e, pelo rastro de sangue deixado pelos pistoleiros que efetuam os massa-
cres e os assassinatos. A bancada ruralista detém 109 parlamentares no
Congresso Nacional que, em ação conjunta, com as bancadas da Bíblia e
da Bala constitui a base conservadora que garante a aprovação da agenda
de reformas do governo ilegítimo de Temer.
Na esfera do aparelho de Estado, a ação é de criminalizar o MST,
garantir a impunidade dos ruralistas e a aprovação das emendas que
reforçam os interesses do agronegócio. Os militantes dos movimentos
sociais do campo estão completamente sem proteção e à mercê da violên-
cia institucional e paramilitar dos ruralistas.
Entretanto, em meio a esse cenário de violência, criminalização e
exploração, o MST também é um grande germinador de esperanças de um
mundo melhor. Sua prática política, em que pese as contradições, possui
muitos elementos inovadores que no cotidiano se contrapõem aos valores
burgueses e constroem uma identidade classista. Na luta de classes diária,
o MST é portador de um projeto societário em que denunciam a sociedade
capitalista com constitutiva da exploração e destruição do meio ambiente,
apresentando o Socialismo como horizonte possível e emancipatório.

REFERÊNCIAS

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lização Brasileira. 1991.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2007.
91
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Disponível em: http://www.mst.org.br/nossa-historia/84-86. Acesso em: 9 mar.
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SOUSA, R. B. R. A mística no MST: mediação da práxis formadora de sujeitos histó-


ricos. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Univer-
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THERBORN, G. A formação ideológica dos sujeitos humanos. Lutas Sociais, São


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ZACCHI, V. J. Cultura e arte no MST em tempos de globalização neoliberal. Art Cul-


tura, Uberlândia, v. 15, n. 26, p. 137-151, jan./jun. 2013.

92
Capítulo 4

Participação, Movimentos Sociais e Sindicais


e Politicas Públicas de Educação do Campo
no Brasil
Marinalva Sousa Macedo

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, analisamos o processo de mobilização e participa-


ção de movimentos sociais e sindicais do campo na luta por política de
educação pública para a população camponesa, desencadeado de forma
mais intensa, a partir da realização da II Conferência Nacional de Edu-
cação do Campo, em 2004, quando a educação do campo é posicionada 93
no campo dos direitos, consequentemente, no âmbito do Estado. Essa
compreensão é visível no próprio slogan da Conferência: educação do campo,
direito nosso, dever do Estado!
Assim, falar de políticas públicas de educação do campo requer
a compreensão do papel dos movimentos sociais ligados ao campo, no
embate com o Estado para assegurar à população camponesa o direito à
educação pública em seu próprio território.
Considerando que as lutas que os sujeitos engendram na sociedade
representam as formas de resistências na luta por seus direitos, na esfera
da política pública da educação do campo, são os movimentos sociais e
sindicais que têm tido maior representatividade, pois, tradicionalmente,
eles têm encarnado as vontades coletivas. E as políticas públicas advindas
desse embate, sobretudo no e com o Estado apresentam-se como respos-
tas às demandas dos sujeitos. Desta feita, na esfera da educação do campo,
as poucas conquistas existentes vieram da pressão dos movimentos sociais
e sindicais por meio de política pública. Contudo, na proporção em que
os movimentos sociais e sindicais do campo pressionam o Estado para
assegurar as reivindicações da população camponesa, dependendo da cor-
relação de forças, têm-se alcançado avanços, mas também, recuos.
Isso fica evidenciado, quando uma política pública formulada pela
força de movimentos sociais e sindicais sofre alterações significativas, de-
pendendo da correlação de forças, desvirtuando-se de sua concepção de
origem. Geralmente, isto ocorre quando os movimentos sociais e sindicais
perdem força, diminuindo sua capacidade de mobilização e participação.
Na educação do campo, configura-se como exemplo desse processo, o
Programa Nacional de Educação para Áreas de Reforma Agrária (PRO-
NERA), o qual vem sofrendo, ao longo de sua trajetória, modificações de
diversas naturezas.
No âmbito da educação do campo, mesmo quando uma política
pública surge da pressão exercida por movimentos sociais e sindicais, ao
entrar no aparelho do Estado ela passa a fazer parte do jogo de interesses
dentro do próprio Estado, podendo ou não perder muito de conteúdo
originário, em razão das divergências de interesses. Nesse sentido, acredi-
tamos que o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAM-
94
PO) pode ser considerado como exemplo, pois, diferente do PRONERA,
apesar de se constituir em uma reivindicação dos trabalhadores, no que
tange à qualificação profissional, atende mais aos interesses do agronegó-
cio.
Para a concretização do proposto, o trabalho encontra-se dividi-
do em duas partes: na primeira, analisamos o processo de mobilização e
participação de movimentos sociais e sindicais na luta para inserção da
educação do campo na esfera dos direitos, consequentemente, no âmbito
das políticas públicas, destacando o papel desses sujeitos coletivos, desde
a realização da Primeira e da Segunda Conferência Nacional de Educação
do Campo, haja vista que foi a partir da realização desses eventos que
as discussões coletivas, em termos de políticas públicas para a população
camponesa, deram um salto significativo.
Na segunda parte, analisamos o que representa para a população
camponesa, a conquista do PRONERA, criado em 1998; e do PRONA-
CAMPO, lançado em 2012, as duas principais políticas públicas de Educa-
ção do Campo, hoje em curso no Brasil.
PARTICIPAÇÃO DE MOVIMENTOS SOCIAIS E SINDICAIS
NA LUTA POR POLÍTICAS PÚBLICAS
DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

Para uma melhor compreensão da política de educação para o cam-


po, faz-se necessária uma breve incursão nos anos de 1990, que têm como
marco, no âmbito da educação, a Conferência de Educação para Todos,
realizada em Jomtien, na Tailândia, no período de 5 a 9 de março de 1990,
com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciên-
cia e a Cultura (UNESCO), do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), do Programa nas Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e do Banco Mundial, com objetivo de definir uma série de me-
didas que vão nortear os rumos das políticas educacionais para os países
da América Latina, dentre eles, o Brasil, sob a orientação neoliberal. No
Brasil, segundo Coutinho (2009, p. 46):

Os anos 90 trouxeram à cena política a oferta da educação “para


todos” e a questão da pobreza. É nesse contexto, que os movimen-
tos sociais do campo, em especial, o Movimento dos Trabalhado- 95
res Rurais Sem Terra (MST), lideram um movimento nacional de
luta por uma educação do campo.

Esse processo de mobilização que caracteriza a década de 1990,


com a configuração da luta promovida pelos movimentos sociais ligados
à questão do campo, dentre eles, o MST45, vai desencadear o movimento
pela universalização da educação básica e das suas diversas modalidades de
ensino. Entretanto, o movimento de educação para todos, chega ao final

45 Esse Movimento nasceu da articulação das lutas pela terra, inicialmente na


região Centro-Sul, e em seguida expandiu-se pelo país inteiro. Esse movimento teve
sua criação formal no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, em
1984, com o objetivo de lutar não apenas pela terra, pela reforma agrária; mas, sobre-
tudo, por uma sociedade mais justa. No âmbito da educação do campo, o Movimento
é considerado como referência na luta por políticas públicas para a população campo-
nesa.
dessa década sem incluir a educação básica para a população camponesa
em sua pauta.
O descaso com a educação da população camponesa impôs aos
movimentos sociais e sindicatos ligados às questões do campo, a neces-
sidade de lutar pela Educação do Campo, envolvendo outras entidades
e instituições governamentais (ministérios, universidades, secretarias de
educação) e organizações não governamentais (ONGs, organizações in-
ternacionais, associações, igreja etc.). Assim, começa a ser construído um
movimento de luta coletiva em torno da educação básica do campo, cujo
pontapé inicial deu-se na I Conferência Nacional de Educação do Campo,
realizada em 1998.
A I Conferência Nacional de Educação do Campo adota como
lema: por uma educação básica do campo. Na apresentação do texto base
da Conferência, é mencionado que: em defesa de políticas públicas de educação do
campo, os movimentos sociais carregam a bandeira de luta popular pela escola pública
como direito social e humano e como dever do Estado (ARROYO; CALDART;
MOLINA, 2009, grifo do autor), sinalizando para a necessidade da organi-
96
zação da luta por uma educação do campo, em contraposição a educação
rural46.
Portanto, a realização dessa Conferência se constitui como um ele-
mento importante para a construção de uma concepção de Educação do

46 Segundo Mendonça (2007), a Educação rural emerge de uma perspectiva


instrumental, revelando que muitas vezes, a própria historiografia acaba por respaldar
a concepção de ensino agrícola, enquanto meio para atingir objetivos sócio-políticos, e
ratifica toda uma concepção do trabalhador rural como “carente” e a percepção da es-
cola rural, enquanto instituição “especial” naturalizada [...]. No Brasil, essa concepção
vai desde a implantação da República até inicio da década de 1960. Portanto, a educa-
ção rural foi sendo forjada, ora para dar sustentação ao desenvolvimento econômico
no campo, ora para conter êxodo rural, baseado em uma ideologia que considera o
campo como sinônimo de atraso.
Campo47; em contraposição à educação rural vigente na história da edu-
cação brasileira,

Trata-se de uma educação dos e não para os sujeitos do campo.


Feita sim através de políticas públicas, mas construídas com os
próprios sujeitos dos diretos que as exigem. A afirmação deste
traço que vem desenhando nossa identidade é especialmente im-
portante se levarmos em conta que, na história do Brasil, toda vez
que houve alguma sinalização de política educacional ou de projeto
pedagógico especifico, isto foi feito para o meio rural e muito pou-
cas vezes com os sujeitos do campo. (CALDART, 2009, p. 151).

Essa Conferência teve como mérito colocar a educação do campo


em discussão de forma coletiva, marca o inicio de uma longa caminha-
da em direção à construção de uma educação básica para o campo, que
contemplasse os interesses da população camponesa com conteúdo e me-
todologia especifica, considerando a realidade do campo. Corroborando
com essa afirmação, Vendramini (2007, p. 123) explicita que:
97
Conferência inaugurou uma nova referência para o debate e a mo-
bilização popular: Educação do Campo e não mais educação rural
ou educação para o meio rural, ao reafirmar a legitimidade da luta
por políticas públicas específicas e por um projeto educativo pró-
prio para os sujeitos que vivem e trabalham no campo.

47 No texto base de discussão da I Conferência Nacional por uma Educação


do Campo, encontra-se explicito, o conceito de educação do campo e não mais educa-
ção rural, como justificado: a expressão campo, e não a mais o usual meio rural, com o
objetivo de incluir no processo da conferência, uma reflexão sobre o sentido atual do
trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a
sobrevivência desse trabalho. Mas quando se discutir a educação do campo, tratar-se-á
da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo,
sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e
ao trabalho no meio rural (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999, p. 26).
A resposta do Estado à reivindicação por uma organização pedagó-
gica especifica para as escolas do campo veio com a aprovação das Diretri-
zes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do Campo, em 2002.
Como uma das primeiras conquistas, a referida Diretrizes Operacionais
para a Educação Básica nas Escolas do Campo reconheceu a identidade
da escola do campo, ao salientar que:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às


questões inerentes á sua realidade, ancorando-se na temporalidade
e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza
futuros, na rede de ciências e tecnologia disponível na sociedade
e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as
soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida co-
letiva no país. (BRASIL, 2002, p. 37).

Pelo enunciado, percebemos que as Diretrizes Operacionais repre-


sentam um importante avanço na luta por políticas públicas para o campo,
considerando sua especificidade e necessidade, o que sinaliza um novo
98 passo na caminhada de quem acredita que o campo e a cidade se comple-
mentam e, por isso mesmo, precisam ser compreendidos como espaços
geográfico, singulares e plurais.
Podemos dizer, que o conteúdo da Resolução representa o reco-
nhecimento inicial por parte do Estado, de um novo conceito para a edu-
cação do campo, salientando o que é específico para as escolas do campo,
por meio de um de seus eixos norteadores, ou princípio, a saber:

Art. 1º A Educação do Campo compreende a Educação Básica


em suas etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino
Médio e Educação Profissional Técnica de nível médio integrada
com o Ensino Médio e destina-se ao atendimento às populações
rurais em suas mais variadas formas de produção da vida – agricul-
tores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, as-
sentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras,
indígenas e outros. (BRASIL, 2008, p. 25).
Ainda no âmbito da política educacional, outra iniciativa para a edu-
cação do campo refere-se à Portaria de Nº. 1.374/2003, aprovada pelo
Ministério da Educação, que instituiu um Grupo Permanente de Trabalho,
com a função de articular as ações do Ministério pertinentes à Educação
do campo. Essa iniciativa colabora para a intensificação do debate e da
defesa, em torno das políticas públicas educacionais para a população
camponesa.
Assim, a pressão de movimentos sociais repercute nas ações do Es-
tado brasileiro com a inserção, na agenda governamental, de formulação
e implementação de políticas de educação básica para a população cam-
ponesa brasileira. Pois, para os movimentos sociais, as políticas públicas
são decisões que expressam valores éticos, princípios de justiça social e
mediação de conflito, a exemplo da própria reforma agrária, tão neces-
sária, porém, jamais efetivada, ora pautada pelos movimentos sociais, ora
retirada da pauta pelos governantes.
Nesse sentido, segundo Behring e Boschetti (2006), as políticas
sociais não são apenas espaços de confrontação de tomadas de decisão, 99
contudo constituem elementos de um processo complexo e contraditório
de regulação política e econômica das relações sociais.
No Brasil, a formulação e implementação de políticas públicas ad-
vêm quase sempre da pressão popular sobre o Estado, evidenciando que a
importância da mobilização e da participação da sociedade é fundamental
para a conquista de políticas públicas, como garantia de direitos sociais.
Dessa forma, podemos compreender que lutar por políticas públi-
cas de educação significa lutar para que o Estado cumpra sua função de
garantir escola a todas as pessoas, independentemente do lugar onde se
encontram, quer na cidade, ou no campo. Assim, concordarmos com Mo-
lina (2012), ao ressaltar que o debate sobre políticas públicas para o campo
torna-se relevante, porque a educação do campo, desde o seu surgimento,
relaciona-se com a garantia do direito à educação para os trabalhadores e
trabalhadoras rurais, que historicamente, tiveram esse direito negado.
Visando o fortalecimento das discussões coletivas sobre políticas
educacionais do campo, foi realizada, em 2004, a II Conferencia Nacional
Por Uma Educação do Campo. Esta Conferência teve como mérito reco-
nhecer a necessidade de ampliação e definição de novos espaços de atua-
ção na luta por uma educação no campo e de sinalização para a construção
de outro projeto histórico de educação.
Realizada em 2004, a II Conferência reafirma que a dimensão da
política pública está na própria constituição originária da Educação do
Campo, isso fica evidenciado, através do lema aprovado pelos seus partici-
pantes: Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado. A aprovação
desse lema mostra a força do Movimento da luta por política pública de
Educação do Campo, colocando as discussões na esfera dos direitos.
Para Telles (1999), a reivindicação por direitos faz referência aos
princípios universais da igualdade e da justiça, todavia, esses princípios
não existem como referências de consenso e convergência de opiniões.
Para a autora, a destituição dos direitos – ou, no caso brasileiro, a recusa
de direitos que nem mesmo chegaram a se efetivar – significa também, a
100 erosão das mediações políticas, de tal modo que tais mediações se desca-
racterizam como esferas de explicitação de conflitos e do dissenso.
Para Munarim (2011), a II Conferência Nacional de Educação do
Campo marca uma espécie de rito de passagem na relação entre o Estado
brasileiro e as organizações e movimentos sociais do campo, no que con-
cerne à temática da educação escolar dos povos que vivem no campo e
marca uma determinada qualidade dessa relação.
Essa qualidade é constituída em função da diversidade dos sujei-
tos envolvidos, o que pode ser conferido pelo conjunto de promotores
e apoiadores da II Conferência Nacional por uma Educação do Campo,
ocorrida em Luziânia (GO), em 2004, conforme é destacado por Vendra-
mini (2007). Participaram desta iniciativa, representantes de movimentos
sociais, sindicais e outras organizações sociais do campo e da educação,
de universidades, de ONGs e de Centros Familiares de Formação por
Alternância, de secretarias estaduais e municipais de educação e de outros
órgãos de gestão pública.
Um fator que merece destaque para a construção da Articulação
Nacional foi a entrada da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG), que participou da II Conferência, trazendo o
cunho do movimento sindical do campo para a discussão da Educação,
contribuindo com as estratégias de luta da Educação do Campo.
Em termos das legislações oficiais, podemos afirmar que elas repre-
sentam a concretização das disputas entre projetos educacionais, expres-
sivos da correlação de forças no âmbito da sociedade civil e da sociedade
política.
É a partir dessa compreensão, que pretendemos analisar algumas
conquistas em âmbito legal para a educação do campo, fruto da pressão da
classe trabalhadora. Todavia, observa-se que a lei, para se efetivar, depende
da correlação de forças, ou seja, da luta de classes existente.
Essa observação nos ajuda a compreender, que o produto da políti-
ca educacional corresponde a uma necessidade criada em um determinado
momento histórico. Nesse sentido, os sujeitos que lutam por educação do
campo ao entrarem na disputa de forma e conteúdo de Políticas Públicas,
101
entram em confronto direto e concreto com o Estado.
Nesse sentido, concordamos com Caldart (2009) ao afirmar que a
Educação do Campo nasce de um processo de mobilização e pressão de
movimentos sociais articulados à luta pela terra e às lutas de resistência de
inúmeras organizações e, de comunidades camponesas reivindicando uma
educação do campo; e não, uma educação no campo.

POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO: Programa Nacional de


Educação nas Áreas de Reforma Agrária (PRONERA) e do Programa
Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO)

A relação contraditória com o Estado se expressa também, por


meio da luta por políticas públicas, pois, de um lado está o Estado que
historicamente vem se negando a cumprir seu papel no tocante à oferta
da educação pública como direito de todos, independentemente do lugar
onde se mora; e, de outro, os movimentos sociais e sindicais ligados às
questões do campo, os quais entendem que a luta pela universalização da
educação básica passa, necessariamente, pela luta por políticas públicas.
A partir desse entendimento, o movimento da educação do campo
por meio da disputa travada com o Estado, lutará por políticas públicas
para a população camponesa. Essas lutas, em alguns períodos, dar-se-ão
de forma mais intensa, dependendo da correlação de forças advindas da
luta de classes. Essa compreensão nos ajuda a entender as condições ob-
jetivas da criação do PRONERA e do PRONACAMPO e, do que eles
representam em termos de projetos educativos para a classe trabalhadora
camponesa no Brasil.
Do ponto de vista histórico, o PRONERA foi criado em 1998,
período marcado por conflitos no campo, e também, pela reorganização
do papel do Estado, redimensionando suas relações com a sociedade civil.
Para Santos (2011), o período de 1998 a 2002, a população do campo esta-
va calejada de fazer enfrentamentos com os latifundiários, alguns de forma
bastante violenta, como o massacre de Corumbiara, em 1995, no Estado
do Rondônia e o massacre de Eldorado do Carajás, em 1996. Esses dois
102 conflitos resultaram na morte de vários trabalhadores rurais, corroboran-
do para a intensificação da luta de trabalhadores rurais, movimentos so-
ciais e sindicais com o Estado, o que evidencia que o Programa nasceu
ancorado na luta de classes.
Assim, articulado com a luta pela reforma agrária, o PRONERA se
diferencia de todos os outros projetos educacionais, elaborados e imple-
mentados na área da educação do campo. Essa articulação fez com que
o programa fosse vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA); e não, ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), deixando
clara a sua vinculação com a luta pela terra. Portanto, já nasce tomando
posição no confronto de projetos de campo contra a lógica de projetos
que consideram o campo como lugar de negócio, pois, o território de exe-
cução de seus projetos educacionais é também o território do agronegócio
em expansão.
Desse modo, o objetivo é desenvolver projetos educacionais de
caráter formal, a serem executados por instituições de ensino, para be-
neficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), do Cré-
dito Fundiário e dos projetos formulados por órgãos estaduais devida-
mente reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária  (INCRA). O Programa atua em áreas que, historicamente foram
esquecidas pelo poder público.
Para Santos (2012), mesmo no contexto de acirramento da luta de
classes, os movimentos sociais do campo souberam aproveitar bem esse
ambiente favorável às discussões relativas à reforma agrária para trazer a
público, outras pautas normalmente esquecidas pelas autoridades, dentre
as quais, as condições da educação no campo. Assim, conseguem colocar
o debate sobre educação para o campo na agenda política, chamando a
atenção de professores e pesquisadores de diferentes universidades públi-
cas para as condições em que se encontrava a educação do campo.
Esse programa torna-se política pública por meio do Decreto N°
7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a Política Nacional
de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária sobre a importância dessa conquista, Molina e Sá (2012, p. 327)
103
destacam:

Mantém-se nesse instrumento legal que eleva a Educação do Cam-


po à política de Estado, não só a demarcação das escolas do campo
neste território, mas também a importante definição de que sua
identidade não se dá somente por sua localização geográfica, se
dá também pela identidade dos espaços de sua reprodução social,
portanto, de vida e trabalho, dos sujeitos que acolhe em seus pro-
cessos educativos, nos diferentes níveis de escolarização ofertados.

Destacamos ainda, que um dos aspectos relevantes do Decreto N°


7.352/2010, diz respeito ao reconhecimento jurídico, tanto da universa-
lidade do direito à educação quanto da obrigatoriedade do Estado pro-
mover intervenções, que atentem para as especificidades necessárias ao
cumprimento da garantia dessa universalidade.
Por conseguinte, essa legitimação transformou-se em importante
instrumento de pressão e negociação com os poderes públicos, especial-
mente nas instâncias municipais, geralmente mais resistentes à presença e
ao protagonismo dos movimentos sociais do campo nas ações de escola-
rização formal.
Criado dentro dessas condições, o Programa fez com que a popula-
ção camponesa assumisse o papel de protagonista, promovendo um mar-
co político, institucional e cultural para os povos do Campo e, rompendo
com uma tradição vertical e centralizadora na esfera das políticas públicas
de educação.
Entretanto, ao longo de seus vinte anos de existência, o PRONERA
já perdeu algumas de suas características políticas e sociais sobre as quais
foi criado e gestado. Primeiramente, em sua forma de gestão colegiada e
coletiva, uma vez que envolvia diretamente a participação de movimentos
sociais e sindicais do campo. A partir de 2008, observa-se um crescimento
de setores mais conservadores e receosos em relação à participação social
de movimentos sociais e sindicais, tanto na sociedade em geral quanto no
ambiente acadêmico. Nesse contexto, os movimentos sociais e sindicais
defensores da educação do campo começam a perder força, diminuindo
104
sua capacidade de mobilização e de participação.
Como exemplo, temos o cerceamento da participação dos movi-
mentos socais e sindicais dos projetos educativos, sendo firmado o que
ficou conhecido como Acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU)
Nº 2.653/2008 (BRASIL, 2008), por meio do qual os movimentos sociais
e sindicais não poderiam mais participar de qualquer fase de escolha da
entidade prestadora de ensino, exigindo-se das universidades desenvolve-
doras de cursos pelo PRONERA, que retirassem de seus projetos de curso
a expressão “movimentos sociais”. É notável que essa exigência contrarie
uma das premissas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei
de N° 9.394 de 1996, a qual preconiza a participação popular. No entanto,
o acórdão do TCU considerou os movimentos sociais, como “entes estra-
nhos à Administração Pública” (SANTOS, 2011, p. 328).
Essas determinações jurídicas restringem o campo de atuação e
participação dos movimentos sociais e sindicais, aos aspectos pedagógicos
dos projetos que foram oficializadas no Manual de Operação do Programa
elaborado em 2012. Na nova atualização do Manual de Operação do Pro-
grama em 2016, mantém-se a participação de movimentos sociais e sindi-
cais, entretanto, permanecem as restrições à participação desses sujeitos.
Por outro lado, no bojo dessas articulações surge um novo marco
de institucionalização da política de educação do campo com o lançamen-
to, em 2012, do PRONACAMPO, vinculado ao MEC. Nele, a Educação
do Campo é ampliada das áreas de assentamentos e/ou acampamentos
da reforma agrária para todo o campo. Cabe lembrar, que esta ampliação
sempre foi uma das bandeiras de luta de movimentos sociais e sindicais
do campo.
Lançado oficialmente, no dia 20 de março de 2012, o PRONA-
CAMPO é vinculado à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetiza-
ção e Inclusão do Ministério da Educação (SECADI/MEC). É mostrado
como um programa inovador e histórico, já que foi a primeira vez na
história que se apresenta uma política estruturada de educação voltada
para todos os grupos sociais, que constroem suas condições materiais de
105
existência do/no campo no âmbito do Estado brasileiro.
Saliente-se que o PRONACAMPO advoga para todos os grupos
sociais do campo, o direito a uma política pública de educação específi-
ca que os atenda em suas necessidades. A partir desse reconhecimento,
pretende contribuir com a universalização de programas de melhoria da
Educação do Campo do brasileiro, uma vez que o PRONERA se destina
somente aos assentados da Reforma Agrária. Entretanto, essas reivindi-
cações históricas da Educação do Campo são demandas advindas da I
Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, de 1998, e
registrada no documento final da Conferência.
Em vista disso, o PRONACAMPO apresenta como objetivo geral:

Disponibilizar apoio técnico e financeiro aos Estados, Municípios


e Distrito Federal para a implementação da Política de Educação
do Campo, visando à ampliação do acesso e a qualificação da ofer-
ta da Educação Básica e Superior, por meio de ações para a me-
lhoria da infraestrutura das redes públicas de ensino, a formação
inicial e continuada de professores, a produção e a disponibilização
de material específico aos estudantes do campo e quilombolas, em
todas as etapas e modalidades de ensino (BRASIL, 2013, p. 6).

Para Kuhn (2015), o PRONACAMPO possui uma composição tão


diversa, que se permite considerá-lo, como “vários” Programas dentro
de “um” só. Para a autora, esse fato evidencia dois pontos: a) que a sua
construção visa atender à demanda dos movimentos sociais, mas também,
atende às demandas do capital em torno da educação do campo; b) que há
uma disputa de projetos no âmbito da educação do campo. Desse modo,
percebe-se que o PRONACAMPO configura-se com uma das estratégias
de investimento das classes dominantes no campo, no âmbito da educação
da população camponesa.
Ainda no tocante a esse objetivo geral, chama atenção, o fato de
ele não fazer nenhuma referência à questão agrária e seus sujeitos deman-
dantes, tal como preconizados em documentos e discussões ao longo da
106 trajetória de construção da educação do campo. Em avaliação sobre o
PRONACAMPO, lideranças do MST atentam, que o Programa ignora
as experiências inovadoras no âmbito das políticas públicas em educação
ao não reconhecer o protagonismo dos trabalhadores e trabalhadoras do
campo, como sujeitos de direitos.
Nessa mesma linha de análise, o Fórum Nacional de Educação do
Campo (FONEC), em seminário realizado em Brasília - DF, em agosto de
2012, após a apresentação oficial do PRONACAMPO, aponta que:

[...] a lógica de sua formulação, suas ausências e ênfases nos permi-


tem situar o PRONACAMPO muito mais próximo a uma política
de “educação rural”, no que esse nome encarna historicamente na
forma de pensar a política educacional para os trabalhadores do
campo em nosso país, do que das ações e dos sujeitos que histori-
camente constituíram a prática social identificada como Educação
do Campo. (FONEC, 2013, p. 1).
Fica bastante evidente que a forma como o Programa emerge no
corpo do Estado, configura-se mais como uma tentativa de atender ao
setor produtivo do Capitalismo agrário ou agronegócio, do que atender às
reais demandas dos grupos sociais que constroem suas condições mate-
riais de existência no campo. O FONEC (2013) argumenta, que o esvazia-
mento do conteúdo transformador da educação do campo é provocado
em função da rearticulação das elites agrárias, sob a via do agronegó-
cio, que entraram em cena, visando se apropriar da educação da classe
trabalhadora para usá-la em benefícios de seus próprios interesses.
Essa forma de apropriação da demanda da classe trabalhadora pelo
capital não é nova, assim como, não são novas as invertidas do capital na
educação da classe trabalhadora. Contudo, segundo Caldart (2010), ação
do capital na Educação do Campo, hoje, dá-se não no sentido de contê-la,
como outrora, mas no sentido de usá-la esvaziada do seu significado polí-
tico e revolucionário.
No caso do PRONACAMPO, a apropriação das reivindicações dos
trabalhadores e trabalhadoras, deu-se de forma esvaziada do debate social 107
e do próprio enfrentamento das situações em que se encontra o campo
brasileiro e, em especial, do modelo de desenvolvimento que tem agrava-
do as desigualdades sociais e expulsado milhares de famílias do campo.
Portanto, o PRONACAMPO pode ser considerado a expressão mais clara
dessa disputa, no contexto em que, na esfera da política pública da educa-
ção do campo torna as contradições existentes mais evidentes.
Como parte do PRONACAMPO, o Programa Nacional de Acesso
ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC)/ PRONATEC – CAMPO,
configura-se como o lugar onde melhor se visualiza a disputa em torno
da Educação do Campo, uma vez que toma para si, a qualificação dos
trabalhadores com um dos maiores direcionamentos de recursos financei-
ros no âmbito do Governo Federal. Visto que, grande aporte de recursos
públicos foi canalizado, tanto para instituições públicas como privadas,
gerando disputas e expondo contradições, reforçando a tese de que há em
curso um esvaziamento do conteúdo da educação do campo, enquanto
política pública.
O FONEC (2013) em análise sobre o PRONATEC ressalta, que
talvez a maior armadilha do Programa esteja na ilusão dos trabalhadores
em pensarem que estão sendo atendidos pela política pública e, sendo
formados para avançar no trabalho como agricultores. No entanto, trata-
-se de uma inclusão às avessas, que acaba sendo mais uma ferramenta da
construção hegemônica de sua destruição como camponeses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões sobre políticas públicas de educação do campo ini-


ciam-se, desde a I Conferência, em 1998, e, de forma mais intensa, a partir
da II Conferência realizada em 2004, quando entram na agenda de Gover-
no, universidades, movimentos sociais, implicando um envolvimento mais
direto com o Estado, na disputa pela formulação de políticas públicas de
educação pública do campo, necessária para compensar a histórica discri-
108 minação e exclusão dessa população do acesso a políticas de educação,
como tantas outras.
As realizações desses eventos colocam a discussão sobre política
pública de educação, como questão central. Essa centralidade ocorre em
função das políticas públicas constituírem-se em formas de materialização
dos direitos sociais. Dessa forma, ao longo da trajetória da Educação do
Campo, nas Conferências, Encontros e Lutas, os Movimentos sociais e
sindicais reivindicaram políticas públicas de educação para a população
camponesa, por compreendem que a Educação do Campo, consolidar-se-
-á a partir dessas políticas.
Nesse percurso, compreende-se que as políticas públicas, mesmo
aquelas que surgem das pressões exercidas pelos movimentos sociais e sin-
dicais, ao se incorporarem nos aparelhos estatais passam a compor o jogo
de interesses e da correlação desigual de forças, que se estabelecem dentro
do Estado. Portanto, dependendo da correlação de forças existentes, elas
podem perder muito do seu conteúdo originário, ora projetando avanços,
ora apresentando recuos.
No âmbito do PRONERA e do PRONACAMPO, análises mais
recentes desses programas dão conta do esvaziamento de conteúdo dos
mesmos, e apontam para os desafios que estão direcionados para aqueles
que se dispuserem a construir a educação do campo no Brasil e, para aque-
les que seguem na luta por essa construção. Entre os desafios está a luta
em não permite que a educação do campo retroceda para a educação rural,
pois aquela foi e ainda é, muito cara aos trabalhadores e trabalhadoras do
campo.

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Capítulo 5

A Proposta Zapatista:
autonomia indígena
e saberes emergentes
Victoria Darling

INTRODUÇÃO

A presença de comunidades indígenas, organizadas politicamente


em sociedades de condição multisocietal tem sido tema de crescente inte-
resse, ao longo dos últimos anos, na América Latina. O caso do Ejército
Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), em particular, tem desenca-
112
deado inumeráveis contribuições analíticas das Ciências Sociais. Recen-
temente, o anúncio do seu envolvimento, fazendo parte do Congresso
Nacional Indígena, na definição de uma candidata mulher indígena para
concorrer às eleições presidenciais, desse ano, surpreendeu a opinião pú-
blica, especialistas e estudiosos dos movimentos sociais. Nesse clima de
debate sobre as estratégias políticas indígenas, apresentamos o seguinte
artigo, que compreende um entremeado argumental composto por três
linhas de análise.
Em primeiro lugar, realizamos uma leitura dos principais elementos
que compõem os objetivos de luta dos zapatistas em clave sincrônica, de
maneira a explicitar, as instâncias nas quais o EZLN propôs um diálogo
com o Governo Mexicano. Acreditamos que um racconto sintético pode
colaborar em criar um cenário conceitual compartilhado de referência, a
partir do qual seja possível entender a deflagração da autonomia. O racconto
focaliza-se nos momentos constitutivos do movimento. Segundo o soci-
ólogo boliviano, Zavaleta (1986, tradução nossa), trata-se dos momentos
cruciais na história, nos quais se forja uma sociedade na sua especificidade.

Um momento constitutivo é um momento de edificação social na


conjuntura do fluxo do social; é um momento de produção de
uma ordem social, no que também, todavia que nem sempre, or-
ganiza-se uma forma de dominação e governo. Na produção de
uma ordem tem um processo de institucionalização; um processo
de articulação ou configuração de um horizonte de sentido que
bosqueja os limites da experiência social. (TAPIA, 2008, p.112, tra-
dução nossa).

Trata-se então, de momentos de intensidade política que ficam na


memória dos povos; no caso, das comunidades. A recuperação dessas
instâncias permitirá avanços na compreensão da estratégia atual, aparen-
temente antagônica com o discurso sustenido, desde o ano de 2006, na
outra Campanha. Entender as instâncias de proposta de negociação ha-
bilita interpretações coerentes, acerca do intuito de participação política
do EZLN, apoiando uma candidatura à Presidência da República para 113
2018. Vinculado a esse percurso, planteamos uma hipótese que remete
à seguinte afirmação: em diversos processos sociais de confrontação da
ordem, na América Latina, o opressor termina gerando como consequ-
ência não desejada das suas próprias ações, aquilo que mais teme, aquilo
que se encontra nas antípodas da sua proposta de construção de ordem.
Com suas ações logra que o oprimido realize justamente aquilo que estava
proibido ou que, até o momento, não tinha pensado como possibilidade.
No caso, a autonomia zapatista seria consequência não desejada, em parte
do bloqueio de negociação com o Estado. Uma ordem antagônica ao
monopólio estatal. Aqui é possível ler o movimento dialético entre o Es-
tado e o movimento.
Numa segunda línea de análise, propomos discutir algumas das te-
ses que a esquerda tradicional sinaliza como limites da ação revolucionaria
zapatista. Apontamos as dissonâncias na procura de acercarmos ao enten-
dimento das razoes da ruptura que mantem alguns movimentos e partidos
de esquerda com os zapatistas em termos de táticas e estratégias.
Essas críticas permitem compreender em parte, a fragmentação da
esquerda na construção de um horizonte pós-capitalista e, ao mesmo tem-
po, a importância que o aspecto teórico tem na elaboração de estratégias
cristalizáveis na prática. Algumas luzes dessa recuperação analítica ques-
tionam, aliás, o modo de ver a realidade social, desvelando a dificuldade
de construir um projeto alternativo aglutinador, consensual, alternativo.
Em terceiro lugar, integrando os pontos anteriores, propomos ex-
plorar uma introdução à dimensão epistêmica da práxis zapatista. Enten-
demos que a partir de um diagnóstico forjado pelo Subcomandante Galea-
no, em 2007, relativo à distância entre realidade social e construção de conhecimento,
é possível achar uma contribuição valiosa para as Ciências Sociais atuais.
A metodologia utilizada para essa pesquisa remete à análise de fon-
tes primárias e secundárias. Para a recuperação das propostas de diálogo
levadas adiante, entre o governo e o EZLN, foi realizado um levanta-
mento hemerográfico, de artigos jornalísticos publicados entre os anos de
114
1994 e 2015, em particular, recuperando exemplares do jornal Reforma e
La Jornada. Para dar conta da perspectiva epistêmica do zapatismo foram
analisadas as sete conferências compartilhadas pelo Subcomandante Gale-
ano, nomeadas “Ni el centro ni la periferia”, no marco do Primeiro Colóquio
Internacional Andrés Aubry in memoriam, realizado em San Cristóbal de las
Casas, em dezembro de 2007. Também, foram relevados outras matérias,
como os cadernos de primeiro grado do curso La libertad segundo l@s zapa-
tistas, ou la Escuelita, de 2014. Finalmente, foram realizadas entrevistas a
intelectuais que trabalham o tema no México, em meados de 2017.

DESENVOLVIMENTO

O pêndulo: confrontação e diálogo com o Estado

Os zapatistas não constituem uma guerrilha tradicional e para cons-


tatá-lo, tem se expressado a partir de uma forte crítica às guerrilhas con-
temporâneas. A partir de entrevistas informais e testemunhas soube-se
que os zapatistas iniciam suas ações se separando de um grupo guerrilhei-
ro mexicano que, com influências marxista-leninistas, desenvolvia-se de
maneira clandestina, nos anos oitenta. O EZLN começa o seu trabalho
de comunicação e exposição pública, formalmente em 1994, a partir da
primeira Declaração da Selva Lacandona, que consiste de maneira sintética
em uma declaração de guerra ao Estado.
No documento declara-se a guerra ao Governo Mexicano e ao Pre-
sidente Carlos Salinas de Gortari, manifestando-se um pedido de apoio à
sociedade civil, apelando às forças políticas que se sentiram agraciadas. As
demandas exigidas são trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação,
independência, liberdade, democracia, justiça e paz (EZLN, 1994, tradu-
ção nossa). Não só se realiza uma análise da situação dos indígenas do Mé-
xico, apelando à Constituição; mas também, consistem em um chamado
a somar forças. Sem ser uma guerrilha, porém constituindo um exército
popular-indígena armado, o EZLN conseguiu ocupar sete cabeceiras mu-
nicipais no Estado de Chiapas e lançar a chamada internacional.
115
Depois da deflagração da revolução, a partir de quais circunstân-
cias o EZLN dispõe-se a negociar com o Governo? O EZLN, em pouco
tempo, recebeu múltiplas declarações de apoio, e também, a visita de inte-
lectuais e estudantes, analistas, jornalistas e políticos, que foram na região
de conflito manifestar o seu comprometimento com a causa. Essas cara-
vanas constituem um nítido apoio a uma das primeiras manifestações de
mediação e apertura ao ‘diálogo’ entre à Comandância–formada por Marcos
e vinte indígenas representantes do Comité Clandestino Revolucionário
Indígena –, Manuel Camacho Solís, Comissário para à Paz enviado pelo
Governo Federal, encabeçado por Salinas de Gortari e a Igreja de San
Cristóbal, representada por Mons. Samuel Ruiz. Essa instância de diálogo
foi denominada “conversações da Catedral” e se estenderam de fevereiro
a março de 1994.
O primeiro sinal de diálogo de fato foi a deposição das armas e o
início das negociações formais com o Governo, mediado por acadêmicos,
sacerdotes e jornalistas. Daqui, os acordos formalizados em 1995, recebe-
ram o nome de Acuerdos de San Andrés ou Sacamch’en dos pobres. Os diálogos
que culminaram nos acordos foram construídos e negociados por meses,
em nove grupos de trabalho, que debateram temas em torno aos direitos e
à cultura indígena. As negociações culminaram em fevereiro de 1996, to-
mando a forma de um pacto público, denominado por Comissão de Con-
cordia e Pacificação (COCOPA) e representantes do EZLN. Os acordos
comprometeram o Presidente, a enviar ao Congresso uma iniciativa de re-
forma constitucional para reconhecer os direitos indígenas consensuados,
dentre os quais: as suas autoridades, direitos coletivos ou comunitários, as
suas formas de representação, autonomia na extração dos recursos vincu-
lados aos seus territórios e o reconhecimento dos seus modos de impartir
de justiça. Tratava-se de um novo marco jurídico.
O certo é que aconteceu uma mudança de rumo, o que foi consi-
derado uma traição do Presidente Ernesto Zedillo que, apoiado por todos
os partidos políticos, manifestou-se pela rejeição da proposta de reforma
constitucional.
116 Essa instância foi a primeira ação manifesta do Governo em tan-
to resposta aos indígenas de Chiapas. Passo a passo, aliás, o Estado foi
redobrando as suas ações repressivas. Não só se mantiveram os assédios
às comunidades na mão do Governador Albores, se não que na escalada
de violência assumiram protagonismo forças paramilitares multiplicadas
nos territórios zapatistas. O massacre de Acteal, em 1997, foi mais uma
resposta do Estado às demandas das comunidades indígenas48. Frente aos
intentos de alguns Senadores de limitar os acordos em outro tipo de pro-
postas supostamente ‘menos radicais’, o Exército Zapatista retirou-se do
espaço de diálogo público estabelecido.

48 O massacre de 45 indígenas em Acteal, acontecido no dia 22 de dezembro


de 1997, foi consequência da política oficial para desarticular aos indígenas de San
Pedro Chenalhó, que optaram pelo caminho da resistência e a construção de formas
de autogoverno. Foi um massacre perpetrado por paramilitares, protegidos por auto-
ridades civis e militares.
No Ano 2000, esperançados com a alternância política com a assun-
ção de Vicente Fox à Presidência, proveniente do Partido Acción Nacional, o
EZLN promoveu novas condições para reandar o diálogo com o Gover-
no. Nesse sentido, reconfigurou-se a proposta COCOPA e, convocou-se
a uma caravana de Chiapas ao Zócalo da Cidade do Mexico. Recuperando
a memória do pêndulo que percorre o vínculo do EZLN com a sociedade
civil e o Governo, poderíamos afirmar, que esse foi o momento de maior
visibilidade, reconhecimento e apoio ao movimento.
Em março de 2001, logo de 37 dias de caminhada, os zapatistas
pediram para tomar a palavra no Congresso. Com posterioridade ao Ter-
ceiro Congresso Nacional Indígena (CNI), com uma presença midiática
surpreendente, o Senado enviou um ditame unânime chamado: “a con-
trarreforma indígena”. A publicação dessa reforma no Diário Oficial, do
dia 14 de agosto de 2001, foi precedida da votação dos Deputados do
Partido de La Revolución Democrática (PRD) em contra, apesar do voto
a favor dos seus Senadores (GOMEZ, 2010, tradução nossa). O Supremo
Tribunal decretou, declarando improcedentes as controvérsias indígenas
oportunamente planteadas, que alcançaram as 330 objeções. Em concreto, 117
no ano de 2001, os três poderes do Estado articularam-se para impor um
freio ao diálogo com os zapatistas e os indígenas, em geral, rejeitando a
legalização dos seus direitos, antes virtualmente reconhecidos através dos
Acordos de San Andrés.
Tempo depois, o Governo de Felipe Calderón, em 2006, e até 2012,
continuaria essa política, assegurando que o tema dos zapatistas ‘se jus-
tifica pela marginação e a miséria’, como afirmou em 2011, em Chiapas
(CALDERON, 2011, tradução nossa). Cabe destacar, que os zapatistas
lançaram “a Outra campanha” em 2006, a qual consistiu em ações cristaliza-
das em um documento de taxativo rompimento com os canais institucio-
nais de diálogo e concertação com as forças do Estado. É uma proposta
de militância, persistência na autonomia e auto-organização que alcançou
o apoio de grande parte da sociedade civil nacional e internacional.
A Outra, foi realizada em paralelo à campanha eleitoral de 2006, na
qual competiam para ocupar a Presidência, o candidato Felipe Calderón
Hinojosa – pelo Partido Acción Nacional  (PAN), Roberto Madrazo –
pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI) e Andrés Manuel López
Obrador – pelo Partido da Revolução Democrática  (PRD). Embora An-
drés Manuel tenha escutado os indígenas, o Subcomandante Marcos lan-
çou o comunicado “Um pinguimna Selva Lacandona”49, afirmado que as
bases zapatistas não acreditam no projeto alternativo de nação por ele
proposto. Manifestaram-se contra essa candidatura e contra toda a classe
política mexicana.
A Outra Campanha zapatista teve como finalidade gerar um movi-
mento anticapitalista, não partidário e gerador de relações políticas desde
abaixo. A Outra campanha finalizou com uma brutal repressão do Estado
em San Salvador Atenco, nos dias 3 e 4 de maio de 200650.
No entanto, os e as zapatistas continuaram denunciando o assédio
de organizações paramilitares, até hoje. Os dois momentos constitutivos
constatados permitem compreender a estratégia do EZLN rumo à cons-
trução de autonomia. Desarticulada a via armada como caminho, inclusive
desarticulando o Frente Zapatista de Liberación Nacional como espaço trans-
118
versal de apoio político da sociedade civil, os zapatistas iniciaram uma fase
de luta em outro plano, constituindo sem reconhecimento do Estado, a
sua própria autonomia.

49 Em Revista Rebeldía, nro. 33. 29 de julio de 2005, DF, México.


50 Os eventos de San Salvador Atenco referem-se às consequências sociais
que teve o intuito de expropriação de terras por decreto para a edificação de um aero-
porto. Pagavam-se 7 pesos, ou seja, meio dólar por metro quadrado aos habitantes da
zona, a cambio de suas terras. Em resistência, articulou-se o Frente de Pueblos en defensa
de la Tierra. Em 2002 e 2003 teve mobilizações que alcançaram o cancelamento da
construção do aeroporto. Logo, foi firmado um acordo com o governo que reconhe-
ceu ao Frente de Pueblos como administrador da zona. Ao assumir o governador Peña
Nieto aFrente solicitou às autoridades municipais de Texcoco a licença para instalação
de floristas, e a causa disso, a polícia ingressou na zona e realizou detenções arbitrárias,
violações de mulheres, furtos, torturas. As forças eram comandadas por Medina Mora,
procurador de justiça do governo federal. A própria Procuradoría Geral da República
(PGR) julgou ação abusiva. As punições aplicadas aos militantes do Frente Popular en
Defensa de la Tierra foram desmedidas.
A DIALÉTICA COMO MÉTODO DE APROXIMAÇÃO

A relação que se estabelece entre o Estado e o movimento social


em um momento histórico determinado encontra-se imbuída de contra-
dições, avanços e retrocessos. Em algumas oportunidades parecera acon-
tecer um deslocamento da intenção do Governo opressor e o efeito que
pode alcançar no movimento social. Em outros termos, nada pode gerar
maior temor a um Estado que a deflagração de autonomia ao interior de
seu próprio território, no qual reclama o monopólio da força física. Trata-
-se de uma quebra desse monopólio do poder estatal e, portanto, do fim
da exclusividade do controle da violência no seu território. A autonomia
em tanto autodeterminação constitui uma força que quebra com a sua
univocidade e irradia uma alternativa.
Analisando a suma de ações estatais é possível visualizar que quanto
maior pressão, maior vontade de resistência. A reação natural de um mo-
vimento social que realizou todas as empresas necessárias para estabelecer
uma via de comunicação, frente à rejeição, é a realização por seus próprios
119
meios aquilo que reclama, não só porque a sua vontade se legitima com o
apoio que encontra em setores afins –também excluídos pelo Estado- mas
também porque a correlação de forças a isso o conduze.
Esse sucesso encontra antecedentes em outras experiências latino-
-americanas. No caso da revolução cubana, por exemplo.

A acusação de Castro enquanto comunista quando oficialmente


ele não era [...] não fez outra coisa que favorecer o processo que
seus inimigos queriam evitar. Assim, quando Castro declarou-se
comunista não fez mais que seguir as regras do jogo impostas pelo
seus inimigos que colocaram o tema do comunismo no centro do
debate. (ANSALDI; GIORDANO apud MIRES, 2012, p. 259, tra-
dução nossa).

Um processo semelhante aconteceu quando o EZLN, em conjunto


com o CNI, segundo comunicado na declaração Retiemble en sus centros la
tierra51, resolveu participar nas eleições. O documento afirma a decisão
de apoiar uma candidatura feminina e indígena às eleições presidenciais
do México. A proposta apenas alcançou o número de votos válidos para
a legalização da candidatura, em julho de 2018, mas o conjunto de ações
para viabilizá-la implicou uma renovada visibilidade do movimento, a con-
tinuidade na prática de exercício pendular de tensão e distensão com o
Governo e, o sinal de que as demandas indígenas persistem. A proposta
do EZLN e o CNI não consistiram em uma decisão de tomada do poder,
porém em uma renovada veiculação das treze demandas históricas, que
continuam tão vigentes quanto ontem.

O que propomos é a organização. Nem tanto nos preocupa chegar


e sentarmos na cadeira presidencial, mas abrir esse espaço para ir
organizando povos indígenas e outros setores da sociedade civil
que acham importante a busca dessa outra forma de se organizar.
(PATRICIO, 2017, tradução nossa).

Os zapatistas não aspiram à conquista do poder, eles nunca ab-


120
dicaram do poder que efetivamente têm da legitimidade que não só as
organizações indígenas e atores da sociedade civil nacional e internacional
lhe atribuem. Tomaram o poder, a partir do seu surgimento enquanto or-
ganização.

CRÍTICAS DAS ESQUERDAS

Se existe um tema difícil para uma conversa com militantes de par-


tidos de esquerda e organizações sociais de diversos países de América
Latina, ele é a causa zapatista. Os zapatistas fizeram uma revolução que

51 Comunicado conjunto del Congreso Nacional Indígena y el Ejército Zapa-


tista de Liberación Nacional, del 14 oct. 2016. Disponible en: http://enlacezapatista.
ezln.org.mx/2016/10/14/que-retiemble-en-sus-centros-la-tierra/. Acceso en: 3 jul.
2017.
não se enquadra nos marcos teóricos de uma revolução clássica. Não só
isso, por ter sido em um território preciso dentro de um estado sem abar-
car a totalidade do país – a causa nacional –, perde para muitos, o caráter
de revolução acabada.
A ideia de revolução zapatista não fica restringida ao conceito tradi-
cional de classe que percorre a forma partida e, por conseguinte, as estra-
tégias definidas para tomada do poder do Estado. Também não se encon-
tra amarrada a uma necessária crise orgânica prévia, menos a segue uma
proposta de uma vanguarda revolucionária. Para os zapatistas,

Trata-se de uma concepção inclusiva, anti-vanguardista e coleti-


va [...] não se trata da conquista do poder ou da implantação de
um novo sistema social, mas de algo anterior. Trata-se de lograr
construir a antessala de um novo mundo. As novas relações polí-
ticas devem cumprir três condições: a democracia, a liberdade e a
justiça. Não estamos propondo uma revolução ortodoxa, mas algo
muito mais difícil: uma revolução que faça possível a revolução.
(MARCOS apud CECEÑA, 2002, tradução nossa).
121
Numa entrevista que o então subcomandante Marcos ofereceu para
Julio Scherer, o prestigioso jornalista fundador do semanário mexicano
Proceso, o Sup afirmava que os zapatistas consideram-se rebeldes que pro-
curam mudanças sociais. “Não entramos na definiçao de revolucionário
clássico. No contexto no qual surgimos, nas comunidades indígenas, não
existia essa expectativa. Porque o sujeito coletivo o é também no processo
revolucionário, e é quem marca as pautas” (SCHERER, 2001, tradução
nossa).
A sua ideia de revolução assume assim, a construção de poder po-
pular como desafio processual. Ainda mais, trata-se de um projeto político
de criação autogestada da vida social nas comunidades. Dita autonomia é
política e tem uma materialidade territorial. Os zapatistas defendem a au-
tonomia em três escalas: comunal, municipal e regional. Trata-se da cons-
trução de outro poder, de abaixo para cima, exercido a traves das práticas
de democracia direta e assemblaria.
A formação e o funcionamento dos Municípios Autônomos Re-
beldes Zapatistas (MAREZ) ilustram os alcances da luta zapatista
no horizonte da transformação social. Eles têm um caráter de rea-
grupamento territorial a partir de vários tipos de nexos históricos:
a pertinência a uma etnia, os trabalhos em comum, a situação geo-
gráfica, as relações de intercambio. A diferencia das divisões terri-
toriais arbitrarias dos municípios “oficiais”, os municípios rebeldes
são o resultado da afinidade entre os seus habitantes. Esta ruptura
coloca um desafio radical frente ao poder, em tanto desloca o con-
flito desde a arena política para a questão fundamental do controle
do território. (ORNELAS, 2004, p. 6, tradução nossa).

Dita forma de organizar-se, parte de uma ideia profundamente ar-


raigada à sua visão de mundo, que consiste em um amálgama de elemen-
tos próprios ancestrais, permeados pela Língua e aos diferentes costumes
tzotziles, tzeltales, tojolabalesecholes, dentre outros grupos étnicos; e elemen-
tos marxistas, até maoístas, apreendidos e repreendidos pelos primeiros
guerrilheiros que, na clandestinidade, construíram o movimento na década
dos Anos de 1980. A reformulação de ambas as visões e perspectivas de
122
mudança social, seu debate e necessária aplicação, monta uma estrutura
não ortodoxa e, portanto, menos suscetível de enquadramento teórico. E
ainda, que essa amálgama pode resultar uma debilidade para algumas cor-
rentes intelectuais de esquerda, é dita construção heterodoxa que radica a
capacidade de resistência do movimento.
O certo é que os zapatistas escapam à auto identificação de sujeitos
que compartilham ou formam parte de uma classe. Afirmam que são parte
de um contentor mais amplo no qual a classe é definida pelos homens ao
viver a sua própria história. Essa definição indiferenciada coloca-o de ma-
neira ampla na luta contra um sem número de desigualdades e carência de
direitos derivados de diferentes formas de submissão. Ao mesmo tempo,
liga a sujeitos de diferentes sectores de classe, com diferentes expectativas
de mudança, misturando estratégias e colocando no acento não na traje-
tória mas na experiência concreta de luta. “Então, segundo o acordo da
maioria dessa gente que vamos escutar, pois fazemos uma luta com todos,
com indígenas, operários, camponeses, estudantes, maestros, empregados,
mulheres, crianças, idosos, homens, e com todos aqueles que tenham bom
o seu coração e tenham a vontade de lutar para que não acabe-se de des-
truir e vender a nossa pátria que se chama “México” e que vem ficando
entre o Rio Bravo e o Rio Suchiate, e de um lado tem o Oceano Pacifico e
do outro o Oceano Atlântico” (EZLN, 2005, tradução nossa).
No entanto, outro aspecto destacado pelos críticos marxistas é a au-
sência de uma visão de aliança de classe trabalhadora, nos termos de uma
construção de um internacionalismo. Lenin entendia que era fundamental
subordinar os interesses da luta proletária em cada país, aos interesses da
luta do proletariado no mundo inteiro. Porém, a vinculação que o EZLN
tem assumido com a sociedade civil internacional baseia-se na solidarie-
dade e ajuda direta, mas pouco se fundamenta nas lutas comuns compar-
tilhadas contra opressores comuns concretos. Nesse sentido, multiplicam-
-se as interpretações sobre os fatores que reproduzem o estado atual das
coisas, limitando a construção de uma visão de superação compartilhada
de classe. É interessante recordar, que na luta os zapatistas reclamam “ser
123
reconhecidos como indígenas e como mexicanos”. Nas suas próprias pa-
lavras,

Nós, como zapatistas, lutamos pelo socialismo o pelo que? Nós dé-
cimos: nós não sabemos por que se disse socialismo, nós queremos
terra, saúde, moradia, educação, liberdade, paz, justiça, democracia,
não sabemos se chama-lo de socialismo ou de paraíso. Não nos
importa o nome, o que nos importa são as 13 demandas. (ZAPA-
TISTA, 2015, p. 29, tradução nossa).

O programa de ação não é previsível, nem segue os passos de uma


plataforma política, muito menos consiste na formação de uma ferramen-
ta para centralizar as decisões do tipo partido político. A ideia de vanguar-
da é rejeitada. O marxismo-leninismo considera, que a missão da vanguar-
da é conduzir a massa sem deixar que o seu papel se limite a reflexar e
seguir o que as massas dizem ou fazem52. Os zapatistas não aceitam guiar o
processo de suma de forças sociais para dirigir os tempos e as formas que
assumira a mudança social. Eles entendem que a destruição do sistema
capitalista ocorrera de forma gradual, no reconhecimento e organização
dos “de baixo”.
Acreditam que a destruição do sistema capitalista só realizara-se se
um ou muitos movimentos o enfrentam e derrotam no seu núcleo central,
ou seja, a propriedade privada dos meios de produção e de cambio. As
grandes transformações não começam arriba nem com fatos monumen-
tais e épicos, mas com movimentos pequenos que aparecem como irrele-
vantes para o político e o analista de arriba. Os zapatistas afirmam que a
história não e transforma a partir de praças cheias ou multidões indignadas
senão, partindo da consciência organizada dos grupos e coletivos que se
conhecem e reconhecem mutuamente, embaixo e à esquerda, construindo
uma outra política (GALEANO, 2007, tradução nossa).
Frente às críticas daqueles que sugerem caminhos pretensamente
corretos para a realização de uma revolução política e social, os zapatis-
124
tas dão conta de que a autonomia cria, cotidianamente, as bases para o
autogoverno às margens do Estado. Embora seja necessário reconhecer,

52 “A missão da vanguarda é, portanto, conduzir a massa. A vanguarda deixa


de cumprimentar o seu papel se só dedica-se a refletir, a seguir o que as massas di-
zem ou fazem. Isto significa ir detrais delas, deixar de guiá-las e impulsioná-las. Não
obstante, ser vanguarda das massas, conduzir as massas, não significa substituir as
massas. Ser vanguarda significa ser o grupo dirigente capaz de tomar as ideias justas
das massas para elaborar lineamentos de ação e pronunciamentos que impulsionem
as massas para a frente. A vanguarda não pode crer-se possuidora da verdade toda e
elaborar detrais de um escritório todas a suas linhas de ação sem consultar diretamente
as massas e tomar em conta as suas iniciativas revolucionarias. Se isto ocorre, as mas-
sas deixam de reconhecer em estes dirigentes a sua vanguarda e eles transformam-se
em uma direção burocrática que, no fundo, nada dirige. Para evitar que a vanguarda
ou núcleo dirigente da classe operária deixe de cumprimentar o seu papel, é preciso
que o partido e os seus membros submetam-se às críticas das massas. Os dirigentes
devem recolher e impulsionar a crítica das massas em todas as organizações nas que
elas participam. (HARNECKER; URIBE, 1972, p. 14, tradução nossa).
que a autonomia em alguns municípios não consegue ser total, pois o
vínculo com outras comunidades e com algumas instituições do Estado,
como escolas e hospitais, é preciso o desenvolvimento das autonomias
demonstrar, que as propostas zapatistas não são ideais, mas horizontes
de mudança enraizados no presente comunitário cotidiano. A experiência
zapatista consegue ensaiar uma luta alternativa à tradição das esquerdas.
O valor que dita cristalização tem é enorme, simbólica e materialmente,
fundamentalmente, considerando o descrédito de vários setores críticos
da esquerda que ficaram deslegitimados ou desarticulados, logo após as
ditaduras militares latino-americanas. Ainda mais, em um mundo sem um
Muro de Berlim, o recurso do autogoverno destaca-se como formulação
renovadora da práxis política.

A EPISTEME ZAPATISTA

“Trata-se de conhecer com ochuyma, que inclui pulmão,


coração e fígado.
Conhecer é respirar e bater. E supõe um metabolismo
125
e um ritmo com o cosmos.”
Silvia Rivera Cusicanqui (2016)

Uma das maiores riquezas do movimento zapatista é a sua capa-


cidade de reflexão sobre os próprios desafios, caminhos e obstáculos. É
comum se identificar com os seus comunicados, assumir como próprios
os seus razoamentos sobre a conjuntura e, aliás, simpatizar com as suas
formas semânticas de relato. Mas, o EZLN também publica denúncias
e críticas dirigidas, uma delas se encontra orientada, exclusivamente, aos
cientistas sociais.
Nas conferências intituladas ‘Ni el centro ni la periferia’, de dezembro
de 2007, Galeano (2007, p. 5, tradução nossa), fez um diagnóstico sobre o
estado atual das Ciências Sociais. Na sua análise, comenta que na América
Latina, tem primado um tipo de saber imitativo, que encontra ecos no
presente.
Tem um momento em que as pautas marcavam-se a partir de um
centro geográfico e daí ia se estendendo rumo a periferia, como
uma pedra lançada no centro de um estanque. A pedra conceitual
tocava a superfície da teoria e produzia uma série de ondas que
afetavam e modificavam os distintos fazeres científicos e técnicos
adjacentes.

Também, afirma que no trabalho teórico tem se alcançado um grau


de absoluto distanciamento da realidade, chegando a sua negação. Nesse
sentido, a neutralidade, aliás, teria implicado uma “obsessão pela higiene
anti-realidade”. Os zapatistas entendem que as Ciências Sociais têm entra-
do na dinâmica capitalista do mundo da moda. “A teoria é uma moda que
tem nas teses [...], as conferencias, as revistas especializadas e os livros, os
substitutos das revistas de moda [...] As universidades européias e os ins-
titutos repetem a lista da moda: Paris, Roma, Londres, Nova York” (GA-
LEANO, 2007, tradução nossa). Nessa perspectiva, foi construindo-se a
ideia que é possível transformar as relações sociais sem lutar e sem tocar
126
os privilégios dos poderosos.

Que sustentemos que o núcleo central do domínio capitalista está


na propriedade dos meios de produção não significa que ignore-
mos [...] os outros espaços de domínio. É claro para nós que as
transformações não devem se enfocar só nas condições materiais.
Por isso para nós não há hierarquia de âmbitos; não sustentamos
que a luta pela terra é prioritária sobre a luta de género, nem que
esta seja mais importante que a do reconhecimento e respeito a
diferencia. Pensamos, por outro lado, que todas as ênfases são ne-
cessárias. (GALEANO, 2007, p. 41, tradução nossa).

Por isto, a proposta zapatista compreende elementos que podem


contribuir para a visualização de uma epistemologia própria. Essa episte-
me pode colaborar em criar metodologias e técnicas específicas de aborda-
gem da realidade social. Uma tarefa importante consiste, então, em recu-
perar os elementos básicos, a partir dos quais se constrói teoria na Ciência
Social: sujeito, tempo e espaço53.
Sobre o sujeito, os zapatistas assumem, na sua visão de mundo plu-
ral, um sujeito protagonista da história e da sua história, oposto ao consi-
derado nas investigações tradicionais: branco, adulto, masculino, individu-
al. Os zapatistas falam a partir de um nós, que compreende coletivos de
comunidades constituídas. Trata-se de uma noção basal, a partir do qual
olhar e falar da realidade. O nós zapatista encontra fundamentos nas formas
de falar dos tojolabales - povos mayas - (LENKERSDORF, 1996, tradução
nossa), que tem uma estrutura de enunciação, escuta e resposta particular,
que da conta de relações recíprocas. Tratam-se de frases, afirmações e
estruturas linguísticas que no ato de comunicar evidenciam complementa-
riedade, e assim, explicam uma intersubjetividade existente entre iguais. A
ideia central que descreve os modos de intercambiar ideias seria que, para
eles, a comunicação é intersubjetiva, ou então não é comunicação.
O sujeito coletivo, comunitário por sua vez, forma parte de uma
educação não competitiva. O conhecimento se transmite a partir de pro-
127
blemas reais que os aprendizes devem resolver; e, as soluções que eles
encontram são desenvolvidas em grupo. A educação é participativa e a
comunidade tem um papel importante nesse contexto. No caso, a cos-
movisão tojolabal não admite uma divisão dualista da realidade em duas
esferas do tipo: o sagrado e o profano. A comunidade é cósmica, indivisa
e sagrada. Não tem divisão de atividades somente econômicas, religio-
sas, políticas ou culturais. Todas as pessoas e coisas são sagradas, todas
tem coração e todas são sujeitos, mas, nem todos os corações são iguais
(LENKERSDORF, 1996, tradução nossa).
Sobre o tempo. El tempo zapatista é “muy otro”. Não se parece
com a linha temporal com a qual desenhamos uma trajetória histórica:

53 A episteme zapatista, em particular é o tema de um livro em processo de ela-


boração que aborda os pontos centrais das cosmovisões dos povos indígenas - choles,
tojolabales, tzotziles, tzeltales, mames- que confluem no EZ.
em etapas, evolutiva, teleológica, orientada ao progresso. Existem tempos
diferentes e se correspondem com os ciclos da Natureza.
Os choles, o winik, explicam a sua existência e passo pelo mundo, a
partir do milho, alimento sagrado, origem e fim da vida. Os choles mantêm
relação de longa data com o povo tzeltal da região dos Altos de Chiapas
e, com os tzotziles, com quem tem modos de trabalho e produção seme-
lhantes. Ainda quando a desposessão da terra foi a razão principal de es-
treitamento de relações entre os povos choles, tzeltales e tzotziles, o grau de
marginação e as condições de vida precárias subsequentes uniram os seus
vínculos (DE VOS, 1994, tradução nossa).
Nas comunidades autônomas zapatistas, desde antes do amanhecer,
as mulheres trituram os grãos molhados durante a noite para fundi-los
- com cal e farinha - e amassar as tortilhas. Logo, se cozinham em um
comal, guardam e separam o milho para o pozol, o bolo de farinha grossa
dissolvido em água, o alimento na milpa, onde a terra é trabalhada para
obter feijão. O milho é colhido e na sua abundância, armazenado para
quando a terra não der o necessário. Em tempos de celebração, nada como
128
o trabalho comunitário de elaboração de tamales. O milho guarda-se, cui-
da-se, utiliza-se para alimentar os animais de cuidado e compartilha-se. A
temporalidade é própria, alheia ao trabalho assalariado. Trata-se de um
ciclo contínuo, que respeita a Natureza e o seu devir. Tempo de fricção,
de árduo trabalho para trabalhar a terra e preparar a plantação. Tempo de
limpa, de cuidado e espera. Tempo de colheita, de planificação do trans-
porte e preparação do armazenamento. Festa do milho novo, de colheita e
abundância. O monte, a água, a nuvem, o animal, a terra, o vento, têm fun-
ções específicas, com tempo próprio, em harmonia. Não há espaço social
comunitário, não rodeado de milpas, o milho é constitutivo e constituinte.
Em vários comunicados zapatistas (EZLN, 2014, tradução nossa)
menciona-se o Outro Tempo, uma temporalidade que vai contracorren-
te e deslocada da nacional-estatal, de calendários e geografias ocidentais,
predominantemente urbanas. O EZLN não somente recupera as tradições
indígenas de um tempo que segue os tempos da natureza, de ida e volta na
toma de decisões e respeito ao silencio, mas também um tempo em que é
possível se encontrar com o Outro. Esse Outro é as vezes o indígena, as
vezes o postergado, o diferente.
Sobre o espaço. O território é para os zapatistas uma construção na
qual dialogam o passado e futuro para dar sentido a um presente de práxis
da autonomia. Na comunidade, o território é uma categoria com profundo
caráter simbólico que se expressa em rituais, práticas cotidianas, na rela-
ção com a Natureza. O território implica um vínculo indissolúvel com os
antepassados, o uso medicinal de ervas e plantas, o passar do tempo, os
cultivos e os astros, os costumes e o conhecimento a elas inerente.
A luta pela terra em particular é uma causa fundante da mobiliza-
ção dos e das camponesas de Chiapas, assim como, da sua participação
em atividades e debates políticos. Os ejidos, as organizações de ejidos e as
autoridades que desta organização derivam-se como os comissários ejidales
e as assembleias ejidatarias, constituíram atores centrais no conhecimento
das relações sociais que se fraguam nas comunidades e, ao mesmo tempo,
converteram-se em canais de comunicação entre regiões rurais distantes
129
que atravessam situações de precariedade semelhantes. O seu agrupamen-
to, conhecimento mútuo e ativação colaboraram no final dos regimes de
fincas, como forma de organização tradicional, conservadora e excludente
e, com a aprendizagem das formas de politização desejada pelos indígenas.

CONCLUSÃO

A concepção do tempo, do espaço e do sujeito para os povos que
conformam o EZLN tem profundas raízes que expressam respeito aos
processos próprios de cada comunidade e de harmonia com os ciclos da
Natureza. Os povos mayas desenvolveram a sua cultura em relação com o
milho, e assim, o fizeram também as comunidades indígenas que os suce-
deram. A epistemologia dos zapatistas recolhe esses elementos e, ao serem
recuperados e colocados em movimento, permitem mostrar os limites da
nossa visão sobre a realidade social. Os intentos de diálogo com o Gover-
no, a crítica das esquerdas e a denúncia que os zapatistas realizam a pro-
dução das Ciências Sociais contemporâneas permitem explicar o âmbito
restringido das nossas iniciativas e os desafios que nos restam. Há muito
que aprender das cosmovisões indígenas ainda, muito que escutar desde o
âmbito dos claustros acadêmicos.
A episteme zapatista exige um compromisso da teoria com a prá-
tica, com a experiência concreta dos sujeitos sociais, com a honestidade
acabada, com a sinalização das causas, fatores e desencadeantes. Trata-se
da construção de um saber edificado ao calor da realidade, de denúncia,
criando conceitos úteis, comunicáveis na Língua de quem experimenta
essa realidade.
Surgirão mais perguntas que respostas acabadas, fechadas e, logica-
mente, coerentes, sem dúvida. Ali radica o desafio, a potência epistêmica,
a potencia criadora de outros mundos, teórica e, praticamente possíveis,
mas também, quem sabe, algum dia, eleitoralmente realizáveis.

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130
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132
Capítulo 6

Repensando o Micro Fórum de Luta por Terra,


Trabalho e Cidadania no Sul da Bahia
Augusto Marcos Fagundes Oliveira

“Canto a canto os galos do Povo suspenderam


no azul a manhã mobilizada”
Pedro Tierra - Inventar o fogo [Fragmento] (2013)

INTRODUÇÃO

A proposta de repensar o micro fórum de luta pela terra, trabalho e


cidadania no Sul da Bahia, a partir do Curso de Realidade Brasileira (CRB), 133
que se justifica como “um espaço de discussão e ação que nasceu da neces-
sidade de reforçarmos as nossas lutas regionais do campo e da cidade”54, e
se anuncia, através das entidades participantes: CPT; Movimento Estadual
de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (CETA); Con-
selho Indigenista Missionário (CIMI); Associação para o Resgate Social
(ARES)-Camacã; Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) - Santa Lu-
zia; Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GEOGRAFAR); Mo-
vimento pela soberania popular na mineração (MAM); Levante Popular
da Juventude, Paróquia São João Batista – São João do Paraíso – Mascote;
“aberto a toda e qualquer entidade que queira participar”55. Tal articulação
faz-se encruzilhada em educação e mística à guisa do popular.

54 Programa do Curso de Realidade Brasileira Camacã, jun./jul. 2018.


55 Programa do Curso de Realidade Brasileira Camacã, jun./jul. 2018.
Os encontros são mensais, os temas predeterminados nas articula-
ções, conforme as tensões sociais em que vivem tais sujeitos, buscam-se
suprir carências de informações pontuadas na necessidade de se assegurar
que os discursos não sejam vazios ou meramente repetitivos, porém que
alimentem ações, que mesclem posturas coletivas e individuais, a partir
da trajetória dos sujeitos, estes que, na sua maioria, são mulheres negras,
dentre coletivos de quilombolas, indígenas, camponesas sem terra, repre-
sentantes de comunidades de fundo e de fecho de pasto, algumas em pro-
cesso de ocupação ou de retomada de terras. Todos integrantes vivem a
diminuição do acesso à água, alguns vivem o impedimento de tal acesso56,
dado pela “invisibilidade expropriadora”: como estratégia de integração,
mecanismos de subordinação, de invisibilização jurídica, de negação da
condição de pessoa, de negação do estatuto de agente social (BANDEI-
RA, 1990).
A participação não se restringe aos nomes dos formalmente inscri-
tos, pois alguns desses sujeitos, na sua condição de vivente ultrapassam a
fronteira de indivíduos e se confirmam “divíduos”57- conceito que refleti-
134
rei ao longo do texto -, entrelaçam partilhas em si mesmos e de si mesmos,
compartilham suas tensões, violências (PEREIRA; GOMES, 2001) e uto-
pias, seja a mulher ou o homem que é cônjuge, mãe/pai, tia/tio, rezadeira/
rezador, artista, liderança comunitária, porém, para estar ali, em alguns ca-
sos implica não estar sozinho, pois está com criança acompanhante, com
algum(a) companheiro(a).
Como prática de articulação e educação popular, há que se consi-
derar também, a potência educacional e mística - eixos catalisadores de
mobilização – agência de cunho ecumênico que entretece catecismos e
saberes populares com saberes de encantados de marcas étnicas afro-a-

56 As fontes de tal informação são falas de tais sujeitos, e também, faço uso
de Canuto, Luz e Andrade (2016), a mais recente publicação da CPT, que abrange os
conflitos no campo no Brasil que está acessível ao público.
57 Vide conceito, através de Strathern (2006, p. 40).
meríndias, que entretecem processos educativos comunitários, através dos
seus “ecossistemas socioeducativos” (ARAÚJO, 2006; MENEZES, 2015;
PIMENTEL, 2002): a casa, a igreja, a roça, suas “sabenças”, seus me-
canismos de fortalecimento intra e intergrupos, tomando freirianamente,
leituras do mundo, da palavra e da palavramundo (FREIRE, 1989) e: que
se assuma papel crítico; que seja sujeito deste ato; que o ato de estudar, é
de fato, uma atitude frente ao mundo de entretecer e valorização dos elos
(FREIRE, 2015). E herdada das Comunidades Eclesiais de Base do Brasil
(CEBs) a mística do profetismo social-modelo de profetismo responsável
por realizar uma crítica social ao denunciar as injustiças sociais, o poder e
os ‘desvios morais e éticos’ (OLIVEIRA, 2015).
Enredados por manifestações artísticas locais, tais eixos catalisado-
res de mobilização popular, através da máxima “ninguém vai morrer de
sede, se calarem a voz do povo, as fontes secarão” da 41ª romaria da terra
e das águas em Bom Jesus da Lapa (BA) alimentam o que a CPT nomina,
como “os pequenos nichos que ainda resistem a se incorporar e se sub-
meter totalmente às leis do mercado “todo poderoso” (CANUTO; LUZ;
135
ANDRADE 2016, p.10).
Nesta ambiência de encruzilhadas, por vezes choque, fazem-se
também redes de solidariedade ou como escreveu Raffestin (1993, p. 187-
188): “nodosidade”

Lugares de reunião, de condensação, com fracas densidades aqui,


acentuadas densidades ali, reúne atores paradigmáticos que, se tive-
rem acesso à categoria de atores sintagmáticos, fundarão, se possí-
vel, uma centralidade que determinará uma marginalidade.

Para refletir tal processo, este artigo busca compreender: como se


constitui o chamamento à articulação, construção temática do CRB e seu
processo; e a continuação, de romaria, enquanto encruzilhada da terra e
das águas na busca por justiça e paz; e, finaliza, analisando o campo tensi-
vo entre a invisibilidade expropriadora e o protagonismo de tais agentes.
DO CHAMAMENTO À ARTICULAÇÃO, CONSTRUÇÃO
TEMÁTICA DO CRB E SEU PROCESSO

A teia de alianças do micro fórum de luta pela terra, trabalho e


cidadania no Sul da Bahia se processa no cenário pós-golpe de 2016, do
Programa de Governo que se estabeleceu, evidenciam-se alguns elemen-
tos, de acordo com Canuto, Luz e Andrade (2016, p. 10):

Na série de Medidas Provisórias, Projetos de Lei, Propostas de


Emendas Constitucionais e Decretos que afetam diretamente po-
vos e comunidades do campo e na nomeação de pessoas para altos
cargos abertamente contrárias aos direitos dos povos indígenas,
das comunidades quilombolas e de outras comunidades campo-
nesas;
Na extinção de ministérios e autarquias que deviam se preocupar
com os direitos humanos; e na diminuição de recursos e de pesso-
al para órgãos responsáveis por garantir algumas políticas sociais,
como Funai, Incra, Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do
Trabalho, e outros;
136 Na polêmica em torno à divulgação da Lista Suja do Trabalho Es-
cravo em que a preocupação maior é como proteger os responsá-
veis pela exploração do trabalho em condições análogas ao traba-
lho escravo, não as pessoas que sofrem a exploração.

Segundo a Executiva e Coordenação Nacional da CPT (CANUTO;


LUZ; ANDRADE, 2016, p.11), a adoção dessa política para o campo tra-
duziu números crescentes de violência e conflitos, no ano de 2016:

61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de


15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últi-
mos 25 anos, número superior a esse só em 2003, com o registro
de 73 assassinatos;
1.079 ocorrências de conflitos por terra, (ações em que há algum
tipo de violência - expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de as-
sassinato, ameaças de morte, prisões etc). É o número mais eleva-
do nos 32 anos de registros da CPT;
1.295 no total do conjunto dos conflitos por terra - soma de ocor-
rências, ocupações/retomadas, acampamentos - média de 3,8 con-
flitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a CPT
iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
1.536 conflitos no campo – soma de conflitos por terra, pela água e
trabalhistas- média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado
desde 2008.

Tais dados parecem ilustrar e atualizar elementos que Ianni (1984)


escreveu, referente às origens agrárias do Estado brasileiro, em especial,
as classes sociais rurais, as lutas sociais no campo, a sociedade agrária e as
formas sociais da terra; pois podemos refletir a expansão do Capitalismo
no campo, subordinando ao mercado a agricultura, pecuária, extrativismo,
agroindústria, artesanato rural. Acresça-se que, “os latifundiários e os em-
presários sempre impuseram os seus interesses, de forma mais ou menos
brutal” (IANNI, 1984, p. 155).
Pondera-se que a existência do conflito implica o reconhecimento
de que há uma tensão, que há duas perspectivas em enfrentamento e afir-
mam Porto-Gonçalves et al (2016, p. 75-76) “no caso da questão agrária, 137

os conflitos por terra têm sido cada vez em maior número” e, ainda sa-
lientam:

E uma agricultura energívora, como essa do capital latifundiário


monocultor, não pode prescindir de amplas áreas planas ou sua-
vemente onduladas. O mesmo se dá quanto ao consumo de água,
pois não se planta sem água. Assim, a terra por maior que seja a ex-
tensão, sem água torna impraticável a agricultura. Por isso, grande
parte dos conflitos, sobretudo nas áreas de front de expansão/inva-
são desse padrão de acumulação de capital agrário/agrícola é com
relação ao acesso à água. São inúmeros os registros de conflitos
que derivam da apropriação da água pelo capital não só como uma
forma de aumentar a acumulação senão,também, como uma forma
de desterritorializar com violência as comunidades e, assim, im-
possibilitando a vida e, quase sempre, obrigando ao deslocamento
das famílias. Aliás, esses conflitos têm sido cada vez mais comuns,
seja pela expansão das monoculturas em grande escala que exigem
grande volume de água para irrigação, seja com o avanço de em-
presas mineradoras, como na comunidade de Quebra Braço no
município de Caetité (BA), onde as famílias denunciam o impedi-
mento de acesso a água, por parte da empresa Indústrias Nucleares
do Brasil (INB). A empresa nuclear não só é proprietária do poço
que abastece à comunidade, como ainda controla diretamente o
acesso e distribuição da água para a subsistência da comunidade.

Esse cenário também se estabelece localmente, haja vista que a re-


gião em foco, que como escreveu Chiapetti (2009, p. 30), a região se forma
como “espaço derivado” cujo “vetor principal uma ordem forânea, que
sobrepunha à ordem local, o que tem lhe outorgado constantes e contra-
ditórios períodos de crescimento econômico e crise” sobre este conceito,
Santos (1978, p. 104 – 105 apud CHIAPETTI, 2009, p. 31, grifo do autor)
sinaliza:

A cada necessidade imposta pelo sistema em vigor, a resposta foi


encontrada, nos países subdesenvolvidos, pela criação de uma
nova região ou a transformação das regiões preexistentes. É o que
138
chamamos de espaço derivado, cujos princípios de organização de-
vem muito mais a uma vontade longínqua do que aos impulsos ou
organizações simplesmente locais. Pelo fato de serem derivados,
estes espaços se organizam e se reorganizam em relação a interes-
ses distantes: sua organização é função de necessidades exógenas e
depende de parâmetros importados, tomados de empréstimos aos
sistemas representativos desses interesses distantes.

E nesta região tem-se vivido tais conflitos correlatos à ocupação


da terra e acesso à água, que se tornaram mais agudos com a “crise da
vassoura de bruxa” que alterou o quadro social local, evidenciando de-
sigualdades, gerando com fluxos migratórios, adensamento populacional
em cidades tidas como pólos regionais – Ilhéus e Itabuna -, pauperização
e favelização da população. E, de acordo com Chiapetti (2009, p. 53-54):

A classe dos proprietários de terra e de capital, que sempre teve re-


presentação no exercício do poder político, afirmou-se novamente
como classe hegemônica política e econômica, na vanguarda do
desenvolvimento econômico regional. Mas, sem proporcionar uma
redefinição do poder econômico que representasse uma mudança
nas relações sociais e na vida material da sociedade, apenas con-
firmou-se para a região a vocação histórica de um espaço deri-
vado, isto é, a consolidação de uma situação geográfica favorável
ao fluxo de exportação de matéria-prima para abastecer mercados
distantes e contribuir com o aumento dos fluxos financeiros para o
reforço das reservas cambiais.

Logo, as cidades de pequeno porte que não se enquadram no perfil


de pólos regionais estão mais vulneráveis. É então, que entram em cena
grupos subalternos que, em meio a tensões com as autoridades locais,
acionam a potência da organização e mobilização sociais, como o caso de
articular a sociedade civil a colher assinaturas e avançar com demandas no
setor jurídico na busca de “renascimento nacional, restituição da nação ao
povo” (FANON, 1968, p. 25).
Mais que instrumentalização para a coleta de assinaturas, constrói-
-se um processo emancipatório de protagonismo, que se efetiva em uma
práxis de educação popular, em interlocução por meio de grupos catalisa- 139
dores, circulando tal qual, o “uso do rádio de bolso” sempre lembrado nas
reuniões (BOGO, 2003; CONCEIÇÃO; OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA,
2015). Com esta conduta, escutam-se as memórias comunitárias, e assim,
são entretecidas redes, malhas sociais, na perspectiva de união e fortifica-
ção da articulação. Historicamente, concebe-se o pensamento da mobili-
zação, tomando como elementos o “rádio de parede” – atualizado na figu-
ra da TV de “muitas polegadas”- e o “rádio portátil” – este atualizado no
popular “zap” (WhatsApp). O “rádio de parede” ou de estante – imóvel
- a TV, ocorre que para ter acesso a isso, para acessar as informações, as
pessoas devem se dirigir a determinado lugar; outra categoria, que é o
“rádio portátil”, são as informações que chegam às pessoas. Através do
“zap”, os catalisadores se movem na comunidade, eles são agentes dinâmi-
cos, moventes, traduzindo-se em ação comunitária no fazer, convivendo
na dinâmica comunitária, intervindo com os sujeitos, intervenção que tem
sua culminância nos encontros do micro fórum.
Micro fórum pensado como campo de semeadura e cultivo de re-
flexões e agenciamento, que se efetiva quando os sujeitos catalisadores, en-
quanto divíduos – divisíveis, portanto - retornam às comunidades e retroali-
mentam a formação protagonista intra-comunidade e inter-comunidades,
através do fortalecimento ou da efetivação de ações, junto aos seus cole-
tivos. Das entidades participantes com seus próprios campos de ações,
sindicatos, associações de moradores/produtores, ambientalistas, ONGs,
centros comunitários, paróquias. Desta socialidade emergem vozes, que
evocam anseios, que são tornados temas para reflexão, potência e ação
transformadoras. Elegem-se os temas: formação étnico-cultural do povo
brasileiro; formação econômica do Brasil; formação das classes sociais
brasileiras; a questão agrária brasileira; o patriarcado brasileiro; trabalho de
base e projeto popular para o Brasil.
Os interlocutores, que assumem o direcionamento das reflexões,
são docentes e estudantes universitários e outras lideranças comunitárias
envolvidas com o protagonismo da voz e dos sujeitos subalternos em um
processo de “articulação de solidariedade” em face da violência, que não é
140
fruto do acaso, mas de um projeto político e econômico hegemônico que
se impõe, através de litígios de terra, ameaças várias de empresas agrope-
cuárias ou lavradores (FIGUEIRA, 2008). Afirma Cosme (2016, p. 129),
que “a Bahia sozinha teve mais da metade dos conflitos ocorridos no Nor-
deste (57,14%), distribuídos da seguinte forma: 13 por mineração, 05 por
empresários, 04 por fazendeiros e 02 por hidrelétricas”.
O cenário é prenhe de tensões e assimetrias:

Na Bahia, o juiz da Comarca de Casa Nova (BA), Eduardo Padilha,


emitiu sentença de reintegração de posse em favor de dois em-
presários contra 400 famílias que vivem no território desde 1860.
Os empresários teriam comprado do Banco do Brasil títulos de
dívidas da Camaragipe, empresa que na década de 1980, estaria
envolvida com a grilagem da área em disputa para fraudar emprés-
timos bancários no esquema de corrupção nacional apelidado de
Escândalo da Mandioca. (CANUTO, 2016, p. 116).
Conflitos que se agudizam à medida que o tabuleiro do xadrez jurí-
dico assegura que, de acordo com Mota e Motoki (2018), em região onde
famílias habitam ali há 300 anos, compartilhando áreas comuns para o
pastoreio, colheitas, remédios e roças, percam acesso à terra e água. Havia
a partilha comunitária do território, contudo começou a grilagem, “houve
a necessidade de fechar o pasto”, logo, ao se apropriar das terras públicas,
onde essas comunidades têm vivido, as fazendas investiram na monocul-
tura:
Indignados com a ameaça de sumiço do rio Arrojado, mais de mil
camponeses decidiram colocar fogo nas bombas que puxam água
do rio para irrigar a fazenda Igarashi, com 2.539 hectares de plan-
tação de feijão e outros cultivos. A resposta do estado da Bahia foi
rápida, com a criação de uma força tarefa para encontrar culpados
pelo levante.
Há dois anos a Igarashi tem autorização do governo da Bahia para
retirar 106 milhões de litros de água do rio diariamente, enquanto
toda a população da cidade, cerca de 33 mil habitantes, consome 3
milhões por dia. Mas são as 55 comunidades ribeirinhas, onde mo-
ram 12 mil pessoas, que dependem diretamente do Arrojado para
sobreviver: o rio fornece peixes e sua água é usada para agricultura, 141
além das demais atividades cotidianas.
O prejuízo estimado pela empresa foi de 60 milhões de reais. As
perdas dos camponeses não podem ser calculadas em dinheiro. “O
levante foi de um povo desesperado de ficar sem o seu rio”, afir-
ma Julita de Abreu Carvalho, da Comissão Pastoral da Terra. Na
sua avaliação, “nenhum prejuízo financeiro poderia se comparar ao
prejuízo de um rio morto”.
Foi em 2017 que as bombas começaram a desviar a água. A reação
da população em Correntina, porém, foi resultado de uma pressão
que se acumula desde os anos 1980, com a crescente apropriação
de terras públicas por grandes fazendas, que muitas vezes usam
documentos falsos, processo conhecido como grilagem. Encurra-
ladas por esse avanço, além de quilombolas e indígenas, estão as
comunidades de fundo e de fecho de pasto, que criam gado em
áreas de uso comum. “Um nome novo para uma forma de viver
antiga”, como define Jamilton Magalhães, morador da comunidade
Buriti, do fecho de pasto Gado Bravo.
A partir dos anos 1990, depois do projeto de reflorestamento e
do aumento da soja no município, começaram a secar os cursos
d’água”, explica Marcos Rogério dos Santos, morador de Correnti-
na e presidente da Associação Ambientalista Corrente Verde, cuja
família foi expulsa pela grilagem. Ele calcula que já secaram mais
de 30 nascentes e regos - pequenos canais que dão funcionamento
a um sistema de irrigação coletivo e centenário, construídos e man-
tidos por essas comunidades. (MOTA; MOTOKI, 2018).

É neste cenário de conflitos por terra, ocupações e retomadas, con-


flitos trabalhistas, trabalho escravo, conflitos pela água, que as articulações
urgem para que as populações locais possam dar conta dos enfrentamen-
tos, dos conflitos no campo, alimentando a “cultura da fé” em oposição à
“cultura da corrosão”, fazendo uso dos termos de Barba (2012), produzin-
do significados e cicatrizes na memória das comunidades e dos divíduos
e, insuflando novos valores, o que se recompõe através das articulações de
solidariedade.

DE ROMARIA ENQUANTO ENCRUZILHADA DA TERRA E DAS ÁGUAS NA


142 BUSCA POR JUSTIÇA E PAZ

Nessa atmosfera de partilha que se reacende através da mística, ce-


rimônia de solidariedade como compromisso herdado na práxis das lutas
jurídico-políticas e, das organizações comunitárias de base, a exemplo das
CEBs:

Como reconhecimento da “opção preferencial pelos pobres”, na


qual se considera participação e diálogo como base para reconhe-
cer e superar sua condição histórica de violência, exclusão, racismo
e vulnerabilidade, e, como diz o bispo Pedro [Casaldáliga], no teste-
munho “das grandes causas que dão sentido à vida”, politicamente
faz irromper reivindicações, caminhos. (OLIVEIRA, 2015, p. 55).

Aí, mesclam-se vozes, aperfeiçoa-se mais que a escuta, mas a per-


cepção ampliada, a potência da empatia, divíduos plurais, negociando ten-
sões intra e inter-grupos, cultivando o sentido comunitário associado ao
oikos, à casa, à morada, à terra, onde as pessoas convivem, cultivam e re-
partem o viver, a pertença. A máxima de Tashunka Witko58 “não se vende
a terra na qual as pessoas andam” (BROWN, 1986, p. 197) se coaduna à
resistência, que tem início com a apresentação dos participantes, e aí, cada
qual do seu jeito, polindo a esperança, cultivando os saberes com afeto,
com sabores, para além da mera mecanização de cumprir atividades.
Os encontros duram em média um dia de sábado, sendo a manhã e
tarde para curso de formação; e noite livre, tendo como indicação algum
filme; no domingo retoma-se o curso até o início da tarde, quando se en-
cerram as atividades. Um norteador tem sido as ferramentas do Teatro do
Oprimido, de Augusto Boal: palavra (escrita); imagem; som. Eis que con-
flui o teatro como fazer político em sua condição subjuntiva, como o fazer
do oprimido que se reconhece, que ao olhar de Boal (1990, 2009a, 2009b,
2011, 2013) – (LIGIÉRO; TURLE; ANDRADE, 2013) não é vítima, pois
como subalterno se reconhece e se organiza.
Utilizo-me de Scott (2004) para pensar “a arte da resistência”: o
encontro a se constituir, enquanto resistência, enquanto espaço de trânsito
dissidente, através de cerimônia de solidariedade, integrada por confiden- 143
tes aproximados que compartilham experiências similares de dominação
e, utiliza-se de códigos diversos na sua comunicação ou comunhão para
defender seu discurso oculto que se torna público, ao investir na formação
de agentes políticos, como militantes, como agentes que potencializam
transformações.
Para sensibilizar sobre o impacto das barragens, dos plantios de
eucalipto, da ganância, do dinheiro e suas formas de cooptação ao poder
hegemônico contrário à existência dessas comunidades, a poética-políti-
ca emerge como elo no grupo de formação e busca criar elos para além
daquele momento e lugar de formação. E como escreveu Bogo (2003, p.
40): “mas a palavra deveria sair de dentro daqueles que tinham idoneidade,
pois neles se depositava a esperança”.

58 Este líder lakota é mais conhecido pelo seu nome em inglês Crazy Horse (c.
1840-1877).
Tomo então por referência, a performance de Gilcélia Pereira dos
Santos a incorporar o rio, e mesclar-se com o rio, e na sua narrativa
59

poética evocar o pertencimento do “lugar onde eu nasci e por onde vou


passar”; que o rio diz na sua voz – assim como a ativista que é mulher,
mãe, cônjuge, liderança comunitária do assentamento onde mora - “tive
que arrumar forças para poder continuar, me encontrarei com os compa-
nheiros e vamos nos misturar, e juntos seguir em frente e ir parar no meio
do mar”, como demarcação profética e política. E alerta, que “se um dia
neste lugar eu deixar de existir”, que o aviso da escassez da água, do acesso
às águas, e o pedido de ajuda foi dado, fraternalmente, onde o ambiente e
a humanidade compõem um todo complementar, simbiótico. Ao término
desta sua performance, diz: “assinado Rio São João, Distrito de Teixeira
do Progresso, Município de Mascote, e a criadora fui eu (Jilcélia Pereira
dos Santos)”.
Também com potência poética-política, os chamamentos de cren-
tes nas religiões de matrizes afro-brasileiras, e de indígenas de diversas
aldeias Tupinambá e Pataxó Hãhãhãi, pedindo aconselhamento e acolhi-
144
mento na caminhada, entoando maracás e cânticos. Encantados, caboclos,
inquices, voduns e orixás são convocados a guiar. Ali intelectuais da tradição,
repartindo saberes e vivências, suas cicatrizes da memória e tatuagens da cul-
tura60, que marcam as pessoas e os lugares e configuram uma nodosidade
por constituir o ponto de apoio da alavanca da resistência e da oposição
(RAFFESTIN, 1993, p. 126), como forma de aglutinar a força; como cha-
mamento ao compromisso, ao protagonismo, à construção coletiva da fra-
ternidade e da esperança, “combinar palavras com ações, de acordo com o
avanço das ações, é possível elevar o conteúdo das palavras e transformar
a consciência social das pessoas” (BOGO, 2003, p. 41).

59 Esta atuação de Jilcélia Pereira dos Santos ocorreu na manhã, de 01 de julho


de 2018, na Escola Municipal de Camacã em um dos encontros de formação [registra-
do em vídeo pelo autor].
60 Para pensar estes termos em itálico recorro a Farias (2006).
Nos encontros de formação é semeada a assistência mútua, asso-
ciação política, poética, mística. Conforme o panfleto que convida para
a “41ª romaria da terra e das águas em Bom Jesus da Lapa (BA)”, são
convocados “todas e todos” a continuar o testemunho de fé e a buscar
“com passos firmes, a paz fruto da justiça”. Transcrevo:

Nos últimos anos os povos e comunidades tradicionais têm sido


profundamente atacados pela grilagem de seus territórios e dizi-
mado seus costumes. É preocupante o agravamento dos conflitos
por água nos territórios Quilombolas, Indígenas, Fundos e Fechos
de Pasto, Geraiseiros, Ribeirinhos, Extrativistas, entre outros. [...]
Como exemplo, citamos os conflitos por terra e água envolvendo
comunidades ribeirinhas em Correntina que sofrem sequelas da
ação do agrohidronegócio (sic), onde uma só fazenda em um dia
consome 100 vezes mais água, do que toda uma população da ci-
dade de Correntina.
Outra realidade gritante trata-se das comunidades impactadas pelo
Projeto de Irrigação Baixio de Irecê (Xique-Xique e Itaguaçu da
Bahia), onde 760 famílias estão sendo expulsas de seus territórios
para dar lugar ao projeto de irrigação Baixio de Irecê, com a água
145
do São Francisco que está agonizando.

Convoca-se ao compromisso dos seus coletivos, que com sede de


justiça social, se anuncia no panfleto a 41ª romaria da terra e das águas:
“Ninguém vai morrer de sede”. A convivência e partilha de angústias e
utopias a se estruturar como “ecclesia”, como reunião dos divíduos, sem
distinções hierárquicas, onde não há leigos nem clérigos, mas sujeitos que
partilham os locais de trabalho, homens e mulheres de diversas faixas etá-
rias, de diversas latitudes, diversos tipos humanos ganham visibilidade e
fazem uso da voz (OLIVEIRA, 2015). Neste campo tensivo reivindicam
direitos, reconhecem-se nas suas trajetórias, utopias e (a)diversidades:

Nos últimos quatorze anos no Brasil, p ano de 2017 foi o mais


violento com 70 assassinatos no campo, destas, 10 foram na Bahia,
sendo as vítimas: indígenas, quilombolas, trabalhadores sem terra
e assentados. Deste número, 40% foram em massacres. (COMIS-
SÃO PASTORAL DA TERRA, 2018).
Anuncia-se a romaria, enquanto encruzilhada da terra e das águas
na busca por justiça e paz. Da mística, alimentando a busca de caminhos
em prol da superação das adversidades, compartilha-se uma mensagem
da importância de se aprender com o passado e cultivar esperanças, luta
social:
Todas temos origem humilde.
Muitas de nós gostaríamos de ter podido sentar nos bancos de
escola
e assim entender melhor o mundo em que vivemos.
Não nos foi dado esse direito.
Em nosso país leis são justiça para os ricos e punição para os po-
bres.
Parecem não ter alma. Parecem não ter carne. Preocupação social.
Sabem os senhores, quantas crianças estão em nosso meio?
Sabem o que fazíamos antes de conseguirmos abrigo e sonhos aqui
embaixo de lonas pretas? Sabem da fome?
Sabem do choro de nossas crianças, frente às ameaças de violência?
Sabem da dor de ver os nossos filhos pisoteados, feridos à bala,
mortos, como as mães de nossos companheiros de Eldorado de
Carajás?
146
Sabem os senhores o que é dor?
Devem saber. Devem saber do riso e da fartura.
Devem saber do dormir sem choro de criança com fome.
Com a humildade que temos, mas com a coragem que aprende-
mos, nós lhe dizemos: não recuaremos um passo da decisão de
lutar pela terra.
A justiça pra nós é aquela que reparte o pão, que reparte a riqueza,
que só pode ser reconhecida como o fruto do trabalho, da vida.
Após 500 anos de escravidão e opressão de exclusão e ignorância.
De pobreza e miséria, chegou o tempo de repartir, chegou o tempo
da nossa justiça, que, pra muitos, pode não ser legal, mas que não
há um jurista no mundo que nos diga que não seja legítima.
Não queremos enfrentar armas, animais e homens. Nem homens,
animais e armas. Mas nós os enfrentaremos.
E voltaremos de novo. E cem vezes. E duzentas vezes.
Porque os corpos podem ser destruídos pela violência da polícia.
Mas os sonhos nem a mais potente arma poderá destruir.
Nós somos aquelas que parimos mais que filhos. Parimos os ho-
mens do futuro.
Nossos filhos serão educados sobre nossas terras libertas ou aqui,
debaixo de nossas lonas pretas. Aprenderão a ler, a escrever, coisa
que muitos dos nossos não podem fazer.
Viverão para entender das leis. Para mudá-las.
Para fazê-las de novo, a partir das necessidades do nosso povo.
Carta Aberta das Mães Sem Terra. (COMPANHIA ENSAIO
ABERTO, 2011, p. 9).

Através do agenciamento da ecclesia, no qual os sujeitos “não que-


rem mais superar a religião no pensamento, mas sim realizar os seus con-
teúdos profanados através do esforço solidário” (HABERMAS, 2013,
p. 21), assume-se o campo tensivo, as assimetrias entre a invisibilidade
expropriadora e protagonismo de tais agentes, que protagonizam sair da
invisibilização jurídica e da negação social.

CONCLUSÃO

O micro fórum se constrói como encruzilhada de vozes, ao tempo


que busca articular sujeitos subalternos na partilha de suas agonias como 147
antídoto contra a opressão, à invisibilização, a negação existencial; rea-
cende a condição do processo educacional popular, de rodas de conversa,
de educar através da arte, através das vivências, recompondo memórias
enquanto se analisa a sociedade e se busca intervir na suposta ordem do
mundo, subvertendo-a, tornando a dor de muitos massacres físicos e sim-
bólicos, um elemento mobilizador como atitude frente ao mundo.
É contra a imobilidade que se instala em tempos temerosos de
Brasil atual, que se firmam e instauram articulações comprometidas com
o protagonismo social dos seus sujeitos na construção de uma sociedade
democrática, na mística utopia da fraternidade humana, onde o planeta
Terra e suas gentes não sejamos apenas um objeto à exploração do capital
sempre multifacetado. Afirma-se que ninguém morrerá de sede, nenhuma
sede.
São vivências partilhadas, tensões, antagonismos, diferenças, porém
sem o sentido da subtração, senão como divisão que se multiplica, o repar-
tir pães e entendimentos na construção de caminhos que, como na canção
já em vias de domínio público: “caminhante, não há caminho, o caminho
se faz ao caminhar”. Sair da invisibilidade e da negação sociais, superar a
condição de espaço derivado, semeando memórias: na prática é formação
cidadã em uma razão emancipadora, a abrir caminhos, a criar possibilidade
de economia sustentável, tanto oikos quanto nomoi como potência de aco-
lhimento e, quiçá autogestão, como potência de ecoar a multivocalidade
popular, de assegurar que as fontes não secarão.
O micro fórum busca celebrar a vida, gente idosa, gente ainda de
menos de um ano de nascida, além de sujeitos cujas faixas etárias estão en-
tre estes dois marcos se põem a compartilhar a vivência, enquanto os en-
contros de formação pretendem refletir autonomia, protagonismo, modos
de enfrentamento na convivência social assimétrica e desigual. Buscam-se
formas jurídico-políticas de assegurar exercício pleno dos Direitos Huma-
nos, superar acusações de incitamento e, efetivamente, acessar instâncias
que determinam as formas de poder e nas quais o poder se afirma.
A proposta em curso é do delicado fazer de descolonizar mentes,
148
movente, falante, em diálogo, em enfrentamentos, entre as rotas de colisão
e o popular “comer o mingau pelas beiradas” para evitar sucumbir. Reco-
nhece-se o crescimento da violência, inclusive contra esses setores sociais,
os fóruns são meios de denunciar e assegurar encaminhamentos de tais
denúncias, o que recompõe a mística do profetismo social, que denuncia
as injustiças. Se os sujeitos de hoje sucumbirem, assim como os ancestrais,
simbolicamente somos sementes, ousamos brotar.

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151
Capítulo 7

Mulheres Negras em Movimento e a Articulação de


Classe, Gênero e Raça

Renata Gonçalves

INTRODUÇÃO: Nossos Passos Vêm de Longe!

Em dezembro de 1988, aconteceu o I Encontro Nacional de Mu-


lheres Negras na Cidade de Valença-RJ, organizado pelo Movimento de
Mulheres Negras. O ano era emblemático, pois celebrava o centésimo ani-
versário da abolição da escravatura, que serviu como mote para seminários
e debates em diversas cidades nos diferentes Estados sobre a condição
152 dos negros no Brasil. Vários Coletivos de mulheres negras, que se organi-
zavam, desde os anos de 197061, no bojo da efervescência feminista e da
luta antirracista (RIBEIRO, 1995), também realizaram seminários, debates
acerca de sua condição específica enquanto mulher e negra e, como tal,
ocupando os piores espaços na sociedade brasileira e, aparecendo sistema-
ticamente na base da pirâmide social.
A ideia de um Encontro Nacional de Mulheres Negras, propria-
mente dito, foi gestada durante o IX Encontro Nacional Feminista, reali-
zado em 1987, em Garanhuns-PE. Este Encontro feminista “foi mesclado
por fortes pressões e críticas das mulheres negras em relação à ausência da
questão racial na pauta” (RIBEIRO, 1995, p. 449). O intenso debate que se

61 Silva (2014) identifica, que o primeiro registro de organização autônoma de


mulheres negras remonta aos anos de 1950, quando foi criado o Conselho Nacional
de Mulheres Negras no Rio de Janeiro, como desdobramento do Departamento Fe-
minino do Teatro Experimental do Negro, sob a direção de Maria Nascimento.
travou ali conduziu as mulheres negras a decidiram pela realização, no ano
seguinte, de um Encontro Nacional de Mulheres Negras com a finalidade
de congregar mulheres negras, de todo o território brasileiro, e refletir
sobre os motivos que as levavam a receberem um tratamento diferenciado
na sociedade brasileira.
O final dos anos de 1970, no Brasil, foi de retomada de intensas lu-
tas populares com massivas mobilizações políticas, em especial, no tocante
ao fim da Ditadura Militar, ao direito de voto, à construção da nova Carta
Magna etc. Dentre os movimentos sociais que emergiram, destacavam-
-se o movimento negro e o movimento feminista. Ambos, colocando ao
movimento social “clássico” com forte presença operária, a necessidade
de consideram suas pautas “específicas”: o movimento negro, denuncian-
do o mito da democracia racial e sua fictícia “cordialidade”, que empurra
para os porões do exército industrial de reserva a massa de trabalhadores
negros; o movimento feminista, denunciando a estrutura patriarcal da so-
ciedade, que impõe às mulheres uma condição de subalternas.
As mulheres negras poderiam se sentir representadas e, logo, se 153
inserirem em qualquer um dos dois movimentos ou, como era o mais
comum, em ambos. Talvez por este motivo, a organização destas, enquan-
to movimento social autônomo, escancarou um problema. Apesar de já
estarem organizadas em vários coletivos (do Coletivo de Mulheres da Fa-
vela e Periferia, no Rio, à Comissão de Mulheres Negras do Conselho da
Condição Feminina, em São Paulo, passando pelos Coletivos de Salvador,
Recife, Curitiba etc.), a organização do I Encontro Nacional deu uma vi-
sibilidade para a situação das mulheres negras que elas jamais imaginaram,
mas também, provocou muitas tensões. O “sair da sombra” veio acompa-
nhado de desconfianças por parte dos movimentos que, supostamente, as
representavam, sobretudo os movimentos negro e feminista. Elas foram
acusadas de provocarem uma cisão no interior das organizações políticas
que se proclamavam o sujeito da transformação social, ao lado do movi-
mento operário.
Com o I Encontro Nacional, tornava-se evidente que elas não se
sentiam representadas, nem pelo movimento negro, com protagonismo
negro masculino, nem pelo movimento feminista cujas pautas priorizavam
a ruptura com certo “modelo” feminino ao qual não se identificavam.
Carneiro (2003), a este respeito, reconhece os ganhos que as mulheres em
geral tiveram a partir das lutas feministas, porém observa que o feminismo
ficou prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres e,
portanto, foi incapaz de “reconhecer as diferenças e desigualdades presen-
tes no universo feminino, a despeito da identidade biológica” (CARNEI-
RO, 2003, p. 118). As outras formas de opressão não foram percebidas,
todavia tiveram suas vozes silenciadas e seus corpos estigmatizados. As
especificidades das mulheres negras foram invisibilizadas, uma vez que
não podiam (e não podem) ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica
do combate ao sexismo. Tal como Hooks (2015), feminista negra estadu-
nidense enfatizou com relação às mulheres negras de seu país, as daqui
permaneciam a maioria silenciosa.
154 LIAMES E RUPTURAS NA CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO

Em crítica ao livro A Mística feminina, de Betty Friedan, de 196362,


considerada a obra que abriu caminho para o feminismo contemporâneo,
Hooks (2015, p. 194) observa que aquilo que Friedan apresenta, como “o
problema que não tem nome”, para descrever a condição das mulheres,
reduz-se “à situação de um seleto grupo de mulheres brancas casadas, com
formação universitária, de classe média e alta – donas de casa entediadas
com o lazer, a casa, os filhos, as compras, que queriam mais da vida”.
Querer algo mais da vida significou, segundo Hooks (2015, p. 119), sair da
esfera doméstica, lançar-se no mercado de trabalho, sem que se colocas-
se a questão sobre quem iria substituí-las nas tarefas domésticas. Friedan
nada mencionou sobre as “necessidades das mulheres sem homem, sem

62 O livro foi publicado no Brasil, em 1971, pela Editora Vozes.


filhos, sem lar, ignorou a existência de todas as mulheres não brancas e
das brancas pobres”. Mesmo reconhecendo, que se tratava de questões
candentes, a feminista negra identifica que estas não eram centrais para a
maioria das mulheres cujas preocupações imediatas se referiam à própria
sobrevivência econômica e à discriminação étnico-racial63.
Cardoso (2010) chega à análise semelhante ao examinar o livro Uma
história do feminismo no Brasil, de Pinto (2003). Neste, o movimento feminis-
ta brasileiro é apresentado como oriundo dos espaços universitários, o que
o colocava distante das camadas populares. Sua chegada a este segmento
resultaria de uma “escolha política estratégica e não como decorrência na-
tural de seu desenvolvimento” (PINTO, 2003, p. 85). Para Cardoso (2010,
p. 3), este “feminismo sobre o qual Pinto se debruça não tem espaço para
experiências de mulheres que, por desconhecerem o manejo da escrita e
da erudição, não deixaram registros escritos sobre suas ações, dessa forma,
suas vozes e protagonismo são silenciados”. Enquanto Pinto confere uma
posição de privilégio às feministas pelo fato de pertencerem a uma inte-
155
lectualidade, diferentemente de outros movimentos, como os sem-terra,
indígenas e negros, Cardoso (2010, p. 3) pondera que esse mesmo saber
que, de um lado,

[...] permite a uma parcela das feministas a autoridade da fala, im-


possibilita, por outro, a apropriação da prática discursiva por nós
mulheres negras feministas, na medida em que as produções fe-
ministas, de modo geral, são evasivas no trato teórico da relação
entre gênero e raça no Brasil, na importância das diferenças raciais
na constituição de gênero e das identidades das mulheres. E prin-
cipalmente a falta de estudos nesta área oculta adiscussão sobre o
privilégio de ser mulher branca, em uma sociedade racista.

63 Cabe observar, que A mística feminina foi lançado no momento de ascensão


das mobilizações pelos direitos civis do(a)s negro(a)s nos Estados Unidos.
Esta cegueira do feminismo acadêmico foi percebida muito cedo
pelas mulheres negras, que se mobilizavam no Brasil. O que as movia a
se organizarem nacionalmente era muito semelhante às questões identifi-
cadas, tanto por Claudia Pons Cardoso como por Bell Hooks, com relação
às negras estadunidenses. Aqui, cem anos depois de assinada a lei áurea,
as mulheres negras identificavam que tinham inserção mais precária no
mercado de trabalho, que eram elas as que mais sofriam com o controle
dos corpos femininos64, sobretudo, a esterilização sem consentimento a
que eram submetidas65 e a sexualização. O I Encontro sintetiza essas pre-
ocupações políticas nos seguintes objetivos:

a) denunciar as desigualdades sexuais, sociais e raciais existentes,


indicando as diversas visões que as mulheres negras brasileiras têm
em relação ao seu futuro; b) fazer emergir as diversas formas, lo-
cais de luta e autodeterminação face às formas de discriminação
existentes; c) elaborar um documento para uma política alternativa
de desenvolvimento; d) encaminhar uma perspectiva unitária de
luta dentro da diversidade social, cultural e política as mulheres
156 presentes no Encontro; e) realizar diagnóstico da mulher negra; f)
discutir as formas de organização das mulheres negras; g) elaborar
propostas políticas que façam avançar a organização das mulheres
negras, colocando para o mundo a existência do Movimento de
Mulheres Negras no Brasil de forma unitária e de diferentes ver-
tentes políticas. (MOREIRA, 2007, p. 67).

64 À época, o tema central era a esterilização em massa imposta às mulheres


negras como cura para a doença da pobreza. Hoje, 30 anos depois, um promotor
do município de Mococa, São Paulo, determinou a esterilização de moradora em
situação de rua. Ver: Uol Notícias. Esterilização ‘forçada’ de moradora de rua gera in-
dignação. 16.06.2018. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
afp/2018/06/14/esterilizacao-forcada-de-moradora-de-rua-gera-indignacao.htm>.
Acesso em: 17 jun. 2018.
65 Esta política atrelada à violência cotidiana que assassina seus filhos, le-
vou o movimento negro a concluir que está em curso no Brasil uma prática de
extermínio da população negra.  A este respeito, consultar o clássico de Abdias
Nascimento, Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, lan-
çado em 1978. Nascimento (2016).
Apesar do diálogo com as feministas, as mulheres negras sentiam
necessidade de uma autonomia com relação a esse movimento, na medida
em que o discurso feminista sobre a opressão de gênero estruturada pela
“ideologia patriarcal não dá conta da diferença qualitativa que este tipo
de opressão teve e tem ainda na construção da identidade feminina da
mulher negra” (CARNEIRO; SANTOS, 1985, p. 42). As fronteiras com o
movimento feminista apareceram, por exemplo, quando mulheres negras
discutiam a necessidade da luta por creches comunitárias e eram contes-
tadas por feministas brancas. Ora, escreve Lemos (2016, p. 19), “éramos
as babás e as empregadas domésticas de suas casas e as nossas crianças
ficavam ‘soltas’ nas favelas quando trabalhávamos”. A luta por creches
comunitárias torna-se, paulatinamente, uma bandeira feminista, tamanha
a importância para as mulheres moradoras das áreas pobres, majoritaria-
mente negras.
O caráter universalista do discurso feminista, no geral, impedia a
percepção das desigualdades raciais. Por outro lado, a participação nos
movimentos negros trazia outra dimensão do problema: as práticas sexis-
157
tas e machistas dos homens que lideravam tais movimentos, evidenciando
que a luta contra o racismo era ineficaz, se não fosse atrelada à luta contra
o machismo.

O ápice da tensão se dava diante da negação no ato de compartilhar


o microfone e que piorava quando disputávamos a representação
política. As intervenções nas reuniões eram desqualificadas, tendo
em vista que a expectativa e as solicitações dos homens negros
eram para que assumíssemos as tarefas tradicionalmente reserva-
das às mulheres. Este cenário deixava evidente a estrutura patriar-
cal reproduzida pelos militantes, sem contar os constantes apelos à
nossa sexualidade configurando outro ponto de tensão, tendo em
vista as constantes investidas, cantadas e a declarada crítica e aver-
são, por parte de alguns homens negros, contra as lésbicas negras.
(LEMOS, 2016, p. 20).

Mesmo percebendo as vantagens que o patriarcado possibilita aos


homens negros em comparação com as mulheres negras, considerava-se
o peso da discriminação racial sobre eles que, em geral, estão em situação
inferior às mulheres não negras, levando Carneiro e Santos (1985, p. 37)
ao afirmarem que não cabe “a suposição de que uma perspectiva feminista
para o movimento de mulheres negras passe pela oposição ou distancia-
mento do homem negro”. Era fundamental atrelar a luta contra o racismo
à luta antissexista. Era necessário, segundo Carneiro (2003), “enegrecer”
a agenda feminista e introduzir a pauta feminista no movimento negro.

O “NÓ” DA QUESTÃO PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Analisar a dinâmica do processo de organização das mulheres ne-


gras, enquanto movimento social exige certo esforço de teorização e o de-
sejo de analisá-lo, a partir de uma perspectiva das teorias dos movimentos
sociais. Porém, o que deveria ser um instrumento de análise tem sido ob-
jeto de alguns mal-entendidos, o que leva a nos restringirmos, no âmbito
deste artigo, a expressar algumas ponderações.
A partir da década de 1970, foram realizados vários estudos sobre
158 movimentos sociais no Brasil. Os principais abordavam a questão da par-
ticipação popular no meio urbano. O primeiro período dessa década foi
marcado por pesquisas que procuravam enfatizar o caráter sindical e polí-
tico-partidário dos movimentos. Parâmetros como esses não deixaram de
contribuir para que se elaborassem interpretações deterministas que, além
de empobrecerem as análises dos movimentos, que se expressavam por
meios dos “canais clássicos”, não abriam espaço para leituras de outros
tipos de conflitos sociais.
Como se sabe, o estudo dos movimentos sociais adquiriu grande
impulso na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, a partir do final dos
anos de 1960. De certo modo, esse impulso expressava as percepções so-
bre as mudanças que ocorriam nas sociedades de “capitalismo avançado”.
Nelas, que alguns autores denominavam “sociedades pós-industriais”, já
não mais haveria lugar para projetos políticos voltados para a totalidade
das relações. Touraine (1984, p. 256, tradução nossa), por exemplo, demar-
cando a transformação central dos conflitos sociais ressaltava, que já não
era “em nome do cidadão ou do trabalhador que (podiam) ser conduzidas
grandes lutas reivindicatórias contra um aparelho de dominação que rege
cada vez mais o conjunto da sociedade para orientá-la em direção a certo
tipo de desenvolvimento”. As novas lutas seriam travadas em nome de
“coletividades, definidas pelo seu existir mais do que por sua atividade”
(TOURAINE, 1984, p. 257, tradução nossa, grifo nosso).
Com esses movimentos sociais adjetivados como “novos”, não
mais se trataria de lutar pela direção dos meios de produção; e sim, pelas
finalidades das orientações culturais da sociedade. Nascera um novo sujeito
histórico que, diferentemente do antigo tinha por base “um coletivo difu-
so, não-hierarquizado, em luta contra as discriminações de acesso aos bens
da modernidade e, ao mesmo tempo, crítico de seus efeitos nocivos, a
partir da fundamentação de suas ações em valores tradicionais, solidários,
comunitários” (GOHN, 1997, p. 122). Nessa perspectiva, mais do que um
grupo de interesses ou instrumento de pressão, os novos movimentos
sociais questionariam o próprio modo de utilização social de recursos e
159
modelos culturais.
Também no Brasil, sobretudo a partir do final dos anos de 1970, a
exemplo do movimento de mulheres negras, surgiram novos movimentos
sociais. A questão é detectar sua novidade e examinar suas diferenças e si-
militudes com a dos - na época - novos movimentos sociais das sociedades
de capitalismo avançado.
Antes de fazermos este cotejo que, para nós, é crucial, observamos
que, mesmo no que se refere ao primeiro mundo, a novidade dos no-
vos movimentos sociais não deve ser absolutizada. Melucci (2001), que se
considera um dos responsáveis pela introdução da noção de novos movi-
mentos sociais afirma, que o debate em torno dessa questão está fundado
sobre um equívoco. Observa que sua intenção era

[...] assinalar a descontinuidade do fenômeno coletivo que emergia


na sociedade contemporânea, com respeito à tradição que o con-
solidava como movimento típico da sociedade industrial. Mas no
aspecto conceitual, é evidente que a noção de novidade, do novo, é
uma noção relativa. [...] Não se tem uma noção absoluta do novo,
novo faz referência sempre a uma coisa precedente que diz respei-
to e que o diferencia. Logo, a noção de novos movimentos era por
definição uma noção alusiva, transitória que servia para assinalar
esta descontinuidade. (MELUCCI, 2001, p. 46).

O autor enfatiza, que nos fenômenos contemporâneos existem ele-


mentos de tensões, aspectos da ação coletiva que não podem ser explica-
dos no quadro da sociedade moderna capitalista do tipo industrial. Logo,
“fenômenos e dimensões da ação requerem um aparato conceitual e cate-
gorias que não podemos simplesmente extrair da análise de fenômenos de
ação coletiva da sociedade industrial” (MELUCCI, 2001, p.47). Algumas
de suas observações podem ser igualmente úteis para analisarmos o novo,
também nos movimentos sociais no Brasil. É necessário, antes de tudo,
estar atento à coexistência dos diferentes conflitos mencionados para
compreender as novidades. Enquanto nos países de capitalismo avançado
160 – fonte inspiradora das análises dos novos movimentos sociais – se falava
em fim do conflito capital-trabalho, aqui acontecia uma nova arrancada
fordista. O desenvolvimento capitalista industrial estava em pleno alento,
o que provocou um aumento numérico da classe operária, bem como sua
concentração em alguns setores e regiões.
O mesmo desenvolvimento também contribuiu para intensificar
conflitos atrelados ao processo de urbanização precária, que era incapaz
de suprir as “carências” urbanas do proletariado nascente, que já adqui-
ria um caráter amplo: o capital, incapaz de inserir plenamente a todos na
esfera produtiva, acarretou as mais diversas situações (subemprego, por
exemplo), levando, inclusive, à redefinição das lutas. Esse novo surto de
desenvolvimento capitalista e, correspondente crescimento, além de maior
diversificação do proletariado estiveram na base de uma nova arrancada
daquelas lutas populares (sindicais e partidárias inclusas) em um contexto
de Ditadura Militar.
As lutas das quais participaram setores deste novo e heterogêneo
proletariado, em um contexto marcado pela existência de uma Ditadura
Militar, também foram múltiplas e heterogêneas: emergiram movimen-
tos grevistas, movimentos de mulheres, movimentos negros. Para Sader
(1988, p. 36), a heterogeneidade interna e a dispersão dos movimentos
expressavam uma incapacidade de universalização de seus objetivos e se-
riam determinados pelas próprias características da formação histórica da
sociedade brasileira. Assistia-se, segundo o autor, “à emergência de uma
nova configuração de classe”.
Todavia, apesar da notória efervescência política, que possibilitou
inclusive o surgimento do feminismo e a emergência do movimento ne-
gro, talvez não tenham sido as mulheres a novidade por excelência nos no-
vos movimentos sociais, como assinalou Souza-Lobo (1991); mas sim, as
mulheres negras. De lá, onde ninguém esperava, surgia um novo movimen-
to social com características e reivindicações próprias, dando passagem a
uma consciência política cujas protagonistas, de uma só vez, em um único
e enovelado processo escancaravam as três contradições que estruturam a
161
sociedade contemporânea: patriarcado-capitalismo-racismo.
A condição das mulheres negras guarda estreita relação com o pas-
sado escravista, com a organização patriarcal e com a exploração capita-
lista de classe, formando, como sugeriu Saffioti (2004), um verdadeiro nó.
Sobre o Capitalismo, racismo e sexismo, os mesmos fazem parte de uma
engrenagem que reforça desigualdades para melhor se reproduzir.

ESCRAVIDÃO, RACISMO E VIOLÊNCIA PATRIARCAL

Recentemente, foi publicado o resultado de uma pesquisa sobre a


história genética de habitantes de remanescentes de Quilombos no Vale do
Ribeira, Estado de São Paulo. Por meio da investigação do cromossomo
Y, que define o sexo masculino nos seres humanos e que pode ser usado
para retraçar a linhagem hereditária paterna, descobriu-se que, aproxima-
damente 65% dos cromossomos Y nas comunidades quilombolas pesqui-
sadas são de origem europeia. A conclusão é simples: a maioria masculina
descende de homens escravizados que eram filhos de mulheres escravi-
zadas com os senhores escravocratas. A linhagem patrilinear europeia é
padrão que se mantém igualmente em outras populações negras brasileiras
e norte-americanas cujas origens remontam ao período escravista.
Na contramão do(a)s autore(a)s, que apresentaram as comunidades
pesquisadas como “verdadeiras relíquias do processo de miscigenação da
população brasileira” (KIMURA et al., 2017), estamos, na verdade, diante
da face mais cruel da violência contra as mulheres negras escravizadas: o
estupro praticado pelos escravocratas como um instrumento de domina-
ção. Em análise sobre a condição das mulheres escravizadas nos Estados
Unidos, Angela Davis observa a extrema vulnerabilidade a que elas foram
exposta, mais que os homens escravizados, sendo a coerção sexual uma
constante em suas vidas. Se os homens eram açoitados e mutilados, “as
mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro, na
verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprie-
162
tário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de
trabalhadoras” (DAVIS, 2016, p. 20).
No Brasil não foi e não é diferente. Na formação social brasileira
encontram-se características autoritárias próprias à família patriarcal que
se consolidou durante o regime escravista, assegurando a autoridade do
“pai-senhor”, isto é, do patriarca, branco e proprietário, que detinha o
controle quase absoluto66 sobre a vida e a morte do(a)s escravizado(a)s
com o objetivo de garantir a máxima produção, o que implicava aumentar
a exploração da força de trabalho escrava, feminina ou masculina, indis-
tintamente.

66 Isso não significa que o(a)s negro(a)s estavam reduzidos a coisas, sem sub-
jetividade alguma. Ao contrário, a historiografia crítica brasileira tem demonstrado
diferentes dimensões das experiências do(a)s escravizado(a)s, reconhecendo-os como
sujeitos históricos e destacando suas constantes lutas contra a escravidão.
Como trabalhadoras escravizadas, as mulheres negras eram consi-
deradas iguais aos homens e recebiam os mesmos castigos que eles. Toda-
via, por serem do sexo feminino, também foram vítimas de abuso sexual
e de outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A
este respeito, Davis (2016, p. 19) explica que a

postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conve-


niência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens,
eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam
ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às
mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de
fêmeas.

Enquanto fêmeas, estavam sexualmente à disposição dos senhores


quando necessário, em especial, por causa do fim do comércio mundial de
escravos, sendo utilizadas como “reprodutoras” para expandir a força de
trabalho escrava. Nessa condição, foram reduzidas a “animais cujo valor
monetário podia ser calculado com precisão a partir de sua capacidade de
163
se multiplicar” (DAVIS, 2016, p. 19), dificultando a constituição de laços
familiares frente às constantes separações originadas pelas vendas de com-
panheiro(a)s e filho(a)s67.
As conjunturas do tráfico internacional, também interferiram na
constituição das famílias escravizadas no Brasil. A historiografia nacional
apresenta um importante debate a esse respeito (ROCHA, 2009). De um
lado, encontramos autore(a)s que consideram que a dinâmica de comer-
cialização ilegal de escravos não impediu a formação de famílias estáveis,
possibilitando vínculos parentais entre os sujeitos, levando à consolidação
do próprio regime escravista, na medida em que funcionavam como esta-
bilizadoras da ordem vigente; e de outro, pesquisadore(a)s que enfatizam

67 Davis (2016, p. 24) chama atenção ao fato de que, mesmo nessas circuns-
tâncias opressoras, as mulheres extraíam “de sua vida a força necessária para resistir à
desumanização diária da escravidão”.
que as relações entre a casa-grande e a senzala eram instáveis e conflituo-
sas. Nos dois campos interpretativos, o que está em evidência é a dinâmica
patriarcal, que extrapola o âmbito das relações pessoais e assume, cada vez
mais, um caráter estruturante da sociedade chegando aos dias atuais.
As considerações sobre a dinâmica patriarcal nos aproximam da
acepção feminista sobre o patriarcado, compreendendo-o como uma es-
trutura em que os homens detêm o poder, ou ainda, como um “sistema
total que impregna e comanda um conjunto das atividades humanas, cole-
tivas e individuais” (DELPHY, 2009, p. 178). O patriarcado está na origem
do que Pateman (1993) denominou contrato sexual ou um pacto masculino
que impôs um acordo, que é tanto sexual como social: no plano social, o
contrato é patriarcal e “cria o direito político dos homens sobre as mulhe-
res”, mas ele é “também sexual no sentido do estabelecimento de um aces-
so sistemático dos homens ao corpo das mulheres” (PATEMAN, 1993,
p. 17). Um conceito moderno para uma prática arcaica. Em se tratando
de mulheres negras e escravizadas, o arcaísmo do acesso aos seus corpos,
mais do que prática sistemática, foi violento.
164
Distanciamo-nos diametralmente do romantismo que Freyre
(2003) atribuiu à violação dos corpos das mulheres negras escravizadas.
Jamais houve harmonia entre a casa-grande e a senzala! Do topo do po-
der patriarcal escravocrata, não poderia haver consentimento, exceto sob
o primado de relações marcadas pela imposição e violência. As análises
gilbertofreyreanas contribuíram para propagar o mito da democracia ra-
cial, ideologia responsável por difundir a ideia de que no Brasil, a escravi-
dão foi branda, a convivência entre os povos foi pacífica e continuou as-
sim no pós-abolição, onde não se originou um conflito ou um “problema
negro”, como se reconhecia existir em outros países. Para Freyre (2003,
p. 367), todo brasileiro “em tudo que é expressão sincera de vida”, traz “a
marca da influência negra”:

Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar.


Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão
de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias
de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro
bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor
físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira
sensação completa de homem.

Além do fato de que “todo brasileiro”, a quem o autor se refere é


branco, sua “expressão sincera de vida” atribui às mulheres negras uma
posição de extrema subalternidade. Nas lavouras, nas cozinhas, nas camas
etc. e sempre na condição de subservientes. Enquanto fêmeas, seus corpos
eram violentados para extrair o leite para amamentar seus futuros opres-
sores e para “aliviar as taras sexuais dos sinhôs” (CARNEIRO; SANTOS,
1985, p. 42). Eis em versão tupiniquim, o contrato sexual.
Em nossa concepção, na formação social brasileira, a violência con-
tra as mulheres negras escravizadas precedeu e, ao mesmo tempo, moldou
o próprio contrato sexual para o conjunto das mulheres, mas, obviamente,
não sem estabelecer uma hierarquia entre elas, como explicita o ditado po-
pular denunciado por González (1988, p. 139): “branca para casar, mulata
para fornicar e negra para trabalhar”. A violência também hierarquiza, de 165
acordo com a classe social e, sobretudo, com a cor da pele – o que, aliás,
em geral no Brasil, indica a origem de classe – sendo maior ou menor e
mais ou menos tolerada socialmente. Isso significa que o contrato/pacto
não é apenas sexual, nem somente social, ele também é racial, como am-
plamente denunciado pelas mulheres negras.

CLASSE, GÊNERO E RAÇA NA ARTICULAÇÃO DO FEMINISMO NEGRO

A necessidade de uma discussão específica sobre a condição das


mulheres negras as conduziu a se organizarem como um movimento so-
cial, o que provocou inúmeras tensões, sendo a maior delas, a acusação de
que estariam fragmentando, tanto o feminismo como o movimento negro.
Talvez, por essa razão, antes mesmo que ocorresse o I Encontro Nacional
de Mulheres Negras tenham se preocupado em rebater as críticas. No Edi-
torial do Boletim de preparação do I Encontro, lemos o seguinte:
Nosso objetivo é que nós, mulheres negras, comecemos a criar
nossos próprios referenciais, deixando de olhar o mundo pela
ótica do homem, tanto o negro quanto o branco, ou da mulher
branca. O sentido da expressão ‘criar nossos próprios referenciais’
é que queremos estar lado a lado com as(os) nossas(os) compa-
nheiras(os) na luta pela transformação social, queremos nos tornar
porta-vozes de nossas próprias ideias e necessidades. Enfim, que-
remos uma posição de igualdade nessa luta (BOLETIM INFO-
MATIVO, 1988, p. 2).

Situação semelhante vemos no surgimento do Combahée River,


coletivo de mulheres negras dos Estados Unidos, que existiu de 1974 a
1979. Em seu manifesto de fundação, as mulheres negras escrevem que
“estivemos envolvidas no processo de definir e clarificar a nossa política
e, ao mesmo tempo, fazer um trabalho político no nosso próprio grupo e
em coalizão com outras organizações e movimentos progressistas” (FAL-
QUET, 2006, p. 55). E apresentam uma declaração geral sobre a política
do movimento, em que se manifestam como comprometidas ativamente
166 na luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe. Nes-
se sentido, consideram ser tarefa particular do movimento desenvolver
uma análise e uma prática integradas, baseadas no fato de que os grandes
sistemas de opressão são interligados. Para o Coletivo, a síntese dessas
opressões cria as condições das vidas das mulheres negras e, portanto,
consideram o feminismo negro como o movimento político, lógico, para
combater as opressões multifacetadas e simultâneas que todas as mulheres
não-brancas enfrentam. A experiência e a desilusão dentro de movimentos
de libertação, assim como a experiência na periferia da esquerda branca
masculina, que, segundo o Manifesto, as levaram a desenvolver uma polí-
tica que fosse antirracista, diferentemente daquela das mulheres brancas e,
antissexista, diferentemente daquelas dos homens brancos e negros (FAL-
QUET, 2006).
Na manifestação do I Encontro de Mulheres Negras no Brasil e no
Manifesto do Coletivo Combahée River, percebemos o intercruzamento
das relações de classe, gênero e raça. São de manifestações como estas,
que vimos emergir um pensamento feminista negro, isto é, nos termos
de Collins (2016), de onde brota uma criatividade intelectual própria ao
seu status de “outsider within” (as forasteiras de dentro)68. Segundo a autora,
ser outsider within tem proporcionado às mulheres negras, uma visão de
mundo bastante diferente do status quo. Assim, uma “revisão cuidadosa da
emergente literatura feminista negra revela que muitas intelectuais negras,
especialmente aquelas em contato com sua marginalidade em contextos
acadêmicos, exploram esse ponto de vista, produzindo análises distintas
quanto às questões de raça, classe e gênero” (COLLINS, 2016, p. 100).
Ao explicar que o pensamento feminista negro resulta de ideias
produzidas por mulheres negras, a partir de um ponto de vista de, e para
mulheres negras, Collins (2016, p. 101) sugere que “é impossível separar
estrutura e conteúdo temático de pensamento das condições materiais e
históricas que moldam as vidas de suas produtoras”. Isso significa que o
pensamento feminista negro é produzido por mulheres negras.
Esse referencial teórico-metodológico do feminismo negro, não diz
respeito somente às experiências das estadunidenses, ele pode ser pensado
167
para diferentes contextos em que, em estreitos vínculos com os interesses
do capital, a opressão patriarcal e o racismo teimam em invisibilizar as
lutas das mulheres negras. Em uma sociedade em que a herança escra-
vista, a opressão patriarcal e a exploração capitalista de classe sustentam
a desigualdade social, “cada vez mais se torna necessário o aporte teórico
e prático que o feminismo negro traz para pensarmos um novo marco
civilizatório” (RIBEIRO, 2018, p. 127).

Nossos passos vêm de longe!

68 Collins trata da relação das mulheres negras com as “suas” famílias


brancas, onde mais do que trabalharem como empregadas domésticas torna-
vam-se membros honorários destas famílias. Mas as mulheres negras sabiam
que, apesar do status de insider, sempre seriam outsiders.
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PARTE II
170

DEMOCRACIAS E LUTAS SOCIAIS


Capítulo 8

A Democracia e a Rosa Vermelha

Davide Giacobbo Scavo

INTRODUÇÃO

A hipótese que orienta este trabalho é substancialmente, a ressig-


nificação do conceito de Democracia, hoje reduzida a mera normalização
das instituições, apresentada como um método procedimental, passando-
-se do exercício ativo do poder popular - como aparecia no seu significado
original - para o gozo passivo dos direitos pessoais, trocando os direitos
coletivos com a privacidade e o isolamento do cidadão individual. Um mo-
delo democrático centrado na governabilidade69 do sistema, que margina- 171

lizando a grande maioria, incapaz de contrapor-se ao poder do capital que


julga os cidadãos, principalmente, pela capacidade de consumo, propondo
políticas públicas centradas nos princípios de utilidade e rentabilidade eco-
nômica, afastando, ao mesmo tempo, todos os outros critérios de escolha
que sejam diferentes do espírito racional do capital.
No começo de século passado, Rosa Luxemburgo já tinha alertado
sobre a irracional necessidade de acumulação do capitalismo globalizado,
ocupando sempre novos espaços, ultrapassando “as fronteiras não capi-
talistas” para poder reproduzir-se. Uma incorporação não somente geo-
gráfica, mas política, econômica e cultural, buscando absorver tudo o que

69 Procura-se aliviar o Estado e o meio político de uma sobrecarga de deman-


das sociais, desviando aquelas exigências que transcendem os limites de “um Estado
mínimo e forte” para as relações mercantis.
“fica de fora”, privatizando cada espaço comum, enfrentando, nessa lógica
expansionista, qualquer comunidade que resiste, que refuta considerar o
mundo uma mercadoria, que não aceita a barbárie capitalista.
Os espaços comuns e coletivos estão sendo ocupados pelo capital,
tornando o espaço privado e o mercado, dominantes sobre o público e
o Estado. A desnacionalização, a privatização, a desregulamentação e a
“flexibilização” dos contratos de trabalho vêm ganhando terreno, afir-
mando-se em cada fábrica, como na sociedade toda, sendo o princípio de
“lean production”, o elemento regulador da vida social (WOMACK; JONES;
ROSS, 1992). O trabalho humano é sempre mais uma mercadoria desvalo-
rizada com capacidade de negociação, de seus detentores, cada vez menor
diante das empresas, com legislações trabalhistas, estabelecidas graças às
grandes lutas sociais e às ameaças de revolução social, voando pelos ares.
O triunfo da “mercadorização” é total e mais completo do que jamais
foi em qualquer momento do passado, passando-se a atribuir qualidades
humanas a formas exteriores de coisas e inversamente qualidades “coisais”
às formas sócio-humanas.
172
O fetichismo da mercadoria e a reificação das relações sociais são
partes desse processo democrático, provocando alterações profundas em
todo o complexo societário, fornecendo um único horizonte possível, for-
mando cidadãos acríticos sem perspectivas de mudanças sociais, fazen-
do passar como natural uma mundialização capitalista sem precedentes
em suas formas de produzir e viver. Quase todos os partidos de direita
como de esquerda apresentam políticas similares, fechados nos próprios
parlamentos; quando fora, domina o consumo mundializado, abrangendo
todos os aspectos e atividades de vida em um processo de “marketing pro-
gressivo”, invadindo áreas da existência que até recentemente estavam fora
do reino da troca, onde o mercado alimenta sua “insaciável voracidade de
crescimento [...] redefinindo como produtos, setores inteiros anteriormen-
te considerados partes das propriedades públicas, que por tanto não estava
à venda”. (KLEIN, 2002, p. 73). Desenvolveu-se um mercado dominador
das relações interpessoais, o qual reorienta e redistribui as escolhas pesso-
ais, tornando a cultura do Shopping Center, mundialmente dominantes. Uma
hegemonia capitalista centrada no bem-estar dos mercados e, ao mesmo
tempo, no mal-estar social.
Nesse contexto, o crescimento da desigualdade não é um fenômeno
ocasional e passageiro, representando sua substância e seu coração, pois
o bem-estar dos mercados substituiu o bem-estar do povo, introduzindo
“uma nova classe dominante, que conta com poucas dezenas de milhares
de indivíduos no mundo todo, caracterizadas por Sepúlveda (2012, tradu-
ção nossa) definiu aquele “miserável 1% da humanidade que se está apro-
priando dos 99% da riqueza do planeta, eufemisticamente chamado de
mercado”70. Contrariando os discursos oficiais do Banco Mundial e Fundo
Monetário Internacional, da maioria dos partidos políticos, meios de co-
municação, intelectuais orgânicos, que decantam quase cotidianamente os
benefícios universais das receitas monetaristas, os dados sobre a pobreza
mundial denunciam uma progressiva pauperização das classes mais po-
bres, e um cimento dos mais ricos. Vive-se uma condição de esvaziamento
das energias utópicas e achatamento das perspectivas históricas em relação
173
ao futuro, um processo de isolamento social do indivíduo, reduzido à con-
dição de “espectador consumidor”, submetido à ordem socioeconômica
estabelecida, apresentada pela mídia hegemônica como única realidade
possível, desencorajando qualquer ação coletiva que vise as transforma-
ções estruturais, sendo inimiga das ilusões alternativas, achatando-se na
concepção que nada pode haver mais que o Capitalismo, desacreditando
a política e tudo o que é público, representados como esferas dominadas
pela ineficiência e pela corrupção.
Uma democracia que vive próxima dos interesses do grande capital
e afastada das necessidades do povo soberano, mostrando evidentes sin-
tomas de esgotamento, fissuras profundas que se multiplicam, rachaduras

70 Segundo os dados do United Nations Development Program. Human Development


Report, (2011), nos últimos anos, a parcela da renda do 1% mais rico aumentou sensi-
velmente.
que estão afetando sua legitimidade, vivendo em baixa, reclusa nos parla-
mentos e assediada pelas grandes massas. Uma crise democrática que abre
o caminho para novas perspectivas e novas lutas, que esperamos possam
resgatar o importante legado de Rosa Luxemburgo, com suas interessan-
tes contribuições “no campo da economia política, do processo de acumu-
lação de capital, das formas de desenvolvimento do capitalismo”, como
no processo democrático, refletindo sobre o papel do partido, das massas
e da revolução (LOUREIRO, 1999, p. 9). Luxemburgo apresenta uma teo-
ria democrática revolucionária, centrada na participação direta das massas
populares em todas as esferas da vida social, que não pode ser desvincula-
da do regime econômico, das relações de poder, do papel do Estado, das
relações de dominação, do poder de organizar e governar a produção e a
apropriação, elementos diferenciados que agem na mesma totalidade.

ANÁLISE CRÍTICA DA DEMOCRACIA LIBERAL

174
Hoje, os ideais liberais e o método democrático gradualmente se
combinaram em um modo tal, que a democracia é o principal instrumento
de defesa da liberdade de mercado, afastada dos princípios de auto-orga-
nização e autogoverno popular, distanciada do poder popular, que consti-
tuiriam o núcleo fundamental do conceito normativo de democracia. Uma
democracia liberal que confunde os interesses privados com os públicos,
vivendo uma contradição constante entre as expectativas populares da
prática real, afirmando-se claramente uma concepção elitista-competiti-
va, com líderes políticos depositários de grandes poderes, reduzindo os
partidos e os parlamentos a funções quase decorativas, dirigindo-se direta-
mente às massas, apresentados acima das partes, intérpretes indiscutíveis
da nação. Uma Democracia domesticada pelo poder das elites políticas e
econômicas que, controlando quase totalmente a mídia, oferecem a pró-
pria visão de mundo como conjunto de ideias e práticas que garantam a
exploração social e a manutenção do domínio social (LOSURDO, 2004).
Uma teoria democrática, como mostra Wood (2003), foi historica-
mente transformada e ressignificada, criando-se as bases da democracia
representativa liberal, onde o governo é filtrado pela representação con-
trolada pela classe dominante, esvaziada de qualquer conteúdo social, com
um legado universal antagônico ao conceito clássico da isegoria ateniense71.
Um modelo democrático adversário do poder popular, teorizado nas nu-
vens etéreas da ciência política dominante, convivendo pacificamente ao
lado do poder econômico e do partidarismo da mídia, contrário a qualquer
mudança que possa alterar a separação entre os setores populares e os
grupos dirigentes, buscando limitar a carga emancipatória que a palavra
democracia ainda carrega, impondo limites e filtros que garantam a estabi-
lidade do sistema, apropriando-se de valores que possam ser tolerados no
regime capitalista, neutralizando brutalmente os outros.
Uma democracia procedimentalista, centrada no respeito e na ga-
rantia das famosas “regras do jogo” propostas por Norberto Bobbio, con-
ferindo, por um lado, evidentes ganhos e direitos aos cidadãos72 e, por ou-
tro, desvalorizando o significado originário da Democracia, como projeto
175
de sociedade com seu caráter inclusivo e participativo. Uma Democracia
Liberal estruturada na igualdade civil e na desigualdade social que, ceden-
do ao mercado, decapitou politicamente as classes subalternas, não mais

71 Os atenienses tinham liberdade e igualdade de fala permitindo-se, tanto aos


ricos como aos pobres emitir julgamentos políticos, como expresso no Protágoras
de Platão; por exemplo, quando Protágoras, respondendo a Sócrates, demonstra que
“seus compatriotas agem sabiamente ao aceitar o conselho de um ferreiro ou de um
sapateiro em questões políticas” (PLATÃO, Protágoras, 324d.).
72 Sendo sempre bom lembrar, que os direitos hoje presentes na Democracia
moderna não foram um presente da classe dominante, mas uma conquista da massa
popular, como bem evidência a luta pela extensão dos direitos civis, historicamente
privilegio de uma minoria. Na França a Lei Le Chapelier proibia até o final do XIX
século as greves e as manifestações dos trabalhadores em defesa da “livre empresa” e
da iniciativa privada dos proprietários. As sangrentas batalhas pela ampliação do sufrá-
gio eleitoral, sempre se depararam contra ardorosas defesas de uma série de medidas
que visava a exclusão do exercício de um direito político básico das mulheres, negros,
pobres e trabalhadores.
consideradas titulares de direitos sociais e econômicos, privadas de uma
organização partidária com a qual podiam contar, sem possibilidade de
acesso aos meios de informação, impossibilitados, em última análise, de
fazer-se ouvir no plano político. Uma Democracia domesticada, onde a
grande maioria é reduzida a “produtor de governos”, podendo escolher
entre diferentes grupos organizados, representantes dos interesses do ca-
pital, como candidamente confessavam os Federalistas norte-americanos

[...] a ideia da representação real de todas as classes de pessoas por


pessoas de todas as classes [como] absolutamente visionárias. [...]
Mecânicos e manufatureiros, com poucas exceções, sempre se in-
clinarão a dar votos para os comerciantes [...] eles sabem que, por
maior que seja a confiança que tenham em seu próprio bom senso,
seus interesses são mais eficientemente promovidos pelos comer-
ciantes do que por si mesmos. Eles sabem que seus hábitos na vida
não lhes oferecem esses dons adquiridos sem os quais, numa as-
sembleia deliberativa, as maiores habilidades naturais são em geral
inúteis. [...] devemos, portanto considerar os comerciantes como
os representantes naturais de todas essas classes da comunidade.
176 (HAMILTON apud WOOD, 2003, p. 196).

Uma teoria elitista que apresenta o povo como uma multidão de


indivíduos interessados apenas nas questões que diretamente lhes afetam
a vida diária, agindo na busca de seus próprios interesses egoísticos “per-
dendo completamente a noção de realidade”, resultando em uma par-
ticipação política marcada por um reduzido senso de responsabilidade,
ignorância, falta de julgamento e impulsos irracionais. Nesta perspectiva
teórica, o cidadão médio analisa a política de “forma infantil”, “se tornan-
do novamente um primitivo”, sendo vulnerável à manipulação dos dese-
jos e escolhas por grupos de interesses que podem modelar e até criar a
“vontade do povo”. Sendo assim, não pode haver lugar para “pressões de
baixo”, exigindo que “o público fique tranquilo enquanto seus interesses
mais vitais ou seus ideais mais caros são tomados como meta” (SCHUM-
PETER, 1964, p. 318-320).
Uma Democracia sempre mais dominada pelas correntes liberais,
que hoje colocam novamente em discussão direitos e liberdades conquis-
tados depois de seculares lutas populares, “transportando” os critérios de
“eficiência” e “racionalidade econômica” da economia para o âmbito da
Democracia, convertendo os direitos em mercadorias que só podem ser
adquiridos por aqueles que podem pagá-las, questionando demandas e ne-
cessidades que se achavam já adquiridas, transformadas em questões indi-
viduais, da noite para o dia, diante das quais nada se pode fazer, a não ser
criar as condições mais favoráveis para que seja o mercado o encarregado
de dar-lhes uma resposta. Precisamos defender e ampliar a democracia
com novos adjetivos, procurando horizontes alternativos, convencidos
que não há uma única direção de desenvolvimento democrático, mas vá-
rias possibilidades no interior das “leis de bronze” da história.

A PROPOSTA DEMOCRÁTICA DE ROSA LUXEMBURGO

Resgatamos a importante contribuição de Rosa Luxemburgo no 177


campo democrático contra hegemônico, entendendo a participação popu-
lar como elemento indispensável para a emancipação das classes subordi-
nadas e para sua verdadeira inclusão. Luxemburgo apresenta o processo
democrático como um percurso popular que se realiza na práxis, quan-
do o povo soberano tem a oportunidade de tomar as decisões sobre o
seu próprio destino em um processo de autodeterminação popular e de
emancipação social, garantindo um maior controle sobre sua própria vida,
tornando-se artífice do próprio futuro. Uma Democracia participativa não
restrita à esfera pública, incentivando a participação popular nos campos
econômico e no social, agindo nos lugares de produção, modificando as
relações desiguais entre o proprietário dos meios de produção e o tra-
balhador dono da força de trabalho. Uma Democracia audaz, radical e
profunda, que não foge do conflito de classe e da exploração do trabalho,
núcleo original do Capitalismo, buscando modificar as diferenças de classe
e de condição social, incentivando a participação popular na esfera estatal
como na esfera privada.
Uma Democracia que não vive acima das classes sociais como um
valor kantiano puro e universal, mas como um processo popular dinâmico
e revolucionário de autodeterminação de classe73 em todas as esferas da
vida. Um percurso centrado no conflito, na luta pela conquista de espa-
ços públicos diferentes dos espaços dominados pelos valores capitalistas,
criando os germes de uma sociedade mais justa e mais igualitária. Uma
teoria democrática centrada na luta de classe, não podendo existir De-
mocracia sem modificação nas estruturas de poder capitalistas, sem reco-
nhecimento da pluralidade e do conflito de opiniões, sem ruptura com as
tradições estabelecidas.
Um processo democrático que permita às classes subalternas de
gozar plenamente da vida, desafiando a naturalização das desigualdades
na relação entre proprietários – homens – e não proprietários – trabalha-
dores.
A luta pela Democracia não pode ser desvinculada do Socialismo e
178
da revolução, etapas do mesmo movimento, elementos inseparáveis de um
único processo, disputando o poder no território, nas fábricas, nos muni-
cípios, na própria coletividade, nas famílias, na cultura cotidiana, em um
renascimento interior do proletariado, onde “a grande massa trabalhadora
deixe de ser uma massa governada para viver ela mesma a vida política e
econômica na sua totalidade e para orientá-la por uma autodeterminação
consciente e livre” (LUXEMBURGO, 1991, p.1).

73 Entendemos como classe social, a definição proposta por Bensaid


(apud LENIN, 1999, p. 252): Chamamos classes os vastos grupos de homens que
se distinguem pelo lugar que ocupam num sistema historicamente definido de
produção social, por sua relação (em geral fixada por leis) com os meios de produ-
ção por seu papel na organização social do trabalho, pelos modos de obtenção e a
importância da parte das riquezas sociais de que eles dispõem. Assim, o conceito
de classe social está relacionado aos meios de produção, posição na divisão do
trabalho, natureza e importância da renda.
Luxemburgo (1991, p. 1) propõe uma identidade inseparável en-
tre Democracia e Socialismo, não podendo existir Democracia em uma
sociedade que não seja socialista, e Socialismo sem as necessárias e fun-
damentais liberdades democráticas, como ressalta na “Revolução Russa”,
indicando a falta de liberdades nas medidas adotadas pelos bolcheviques,
como o túmulo do socialismo. “Sem eleições gerais, sem liberdade ilimita-
da de imprensa e de reunião, sem luta livre de opiniões, a vida morre em
todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente, onde a burocra-
cia resta como único elemento ativo [...].”
Rosa acompanha a Revolução Russa reclusa nas “hospitaleiras salas”
do cárcere alemão, lendo com ardil esperança, os jornais que seus camara-
das introduziam de contrabando, felicitando-se pelas novas oportunidades
oferecidas ao proletariado internacional. Uma esperança que, porém, esta-
va longe de ser acrítica e ingênua, declarando sim, seu incondicional apoio
a “Lênin, Trotsky e seus amigos”, mas alertando sobre alguns aspectos da
Revolução Russa que pareciam contraditórios, como a falta das liberdades
democráticas74. Rosa será implacável com o processo revolucionário, criti-
179
cando a decisão dos bolcheviques de dissolver a Assembleia Constituinte,
em novembro de 1917, problematizando a limitação das liberdades civis e
políticas, lembrando que a liberdade somente para quem apoia o Governo,
somente para os membros do partido, não representa a liberdade plena.
A liberdade é também de quem pensa diferentemente, sendo elemento
necessário para a construção da Democracia e do Socialismo.
Uma teoria democrática de duas pontas que dialeticamente dialo-
gam. De um lado reivindica a importância do individualismo metodoló-
gico, devendo-se considerar os indivíduos com suas qualidades, objetivos,
crenças e ações, garantindo suas liberdades e necessidades; e, de outro
lado, retoma o coletivismo metodológico marxiano, rejeitando as robinso-
nadas da economia clássica e a redução das classes a uma soma de relações

74 Além da falta das liberdades civis e políticas, Luxemburgo questiona a polí-


tica agrária e as revoluções nacionalistas.
individuais, como o pescador e o caçador isolados de Smith e Ricardo,
ressaltando a necessidade de se perceber como classe para combater o
processo de exploração da classe capitalista em face da classe trabalhadora,
superando as rivalidades devastadoras criadas pelo mercado sobre o traba-
lho. Retomando Marx, o individuo singular no Capitalismo é submetido a
um poder que lhe é estranho, o poder do mercado mundial, podendo-se
libertar somente através a cooperação com os outros homens, perceben-
do-se como classe para si.
Em nossa opinião, a Revolução Russa de 1905 será uma marca fun-
damental na formação do pensamento democrático de Luxemburgo, que
ficou fascinada e admirada pela prova de força que o proletariado russo
deu ao mundo. Rosa não se limitou a escrever dezenas de artigos e pro-
nunciar centenas de discursos a favor da Revolução Russa, mas decidiu
regressar na Polônia para colaborar ativamente na Revolução, sendo detida
e torturada pela policia secreta czarista.
De volta à Alemanha, Rosa procurou sistematizar seus pensamen-
tos na obra “Greve de Massa, partido e sindicados” com o intuito de
180
acordar o sonolento partido social democrático sobre a necessidade de ga-
rantir o protagonismo social das grandes massas na luta pela Democracia.
Uma batalha que não podia começar no dia e na terra prometida, deven-
do-se desenvolver cotidianamente abaixo da superfície, como uma tou-
peira, lutando pela formação de espaços livres das relações monetaristas,
conquistando progressivamente os micropoderes presentes na sociedade
capitalista, sendo a práxis revolucionária o fator decisivo, a rocha sobre a
qual será edificada a vitória final da revolução. Uma revolução democrática
longa, formando lentamente espaços de autonomia e poder na sociedade
capitalista (NEGT, 1984).
Uma luta democrática, onde luta e democracia são etapas do mesmo
movimento, duas faces da mesma moeda, dois momentos inseparáveis de
um só processo. “Na luta, na revolução, as massas proletárias aprendem
o idealismo necessário e adquirem rapidamente maturidade”, sendo “os
erros cometidos por um movimento” mais frutíferos que a infalibilidade
do melhor comitê central (LUXEMBURGO, 1979). A luta no pensamento
de “Rosa a vermelha” é a chave democrática, a escola da democracia, po-
dendo a grande massa tornar-se consciente só através a ação, sendo práxis
e conscientização dialeticamente inseparáveis.
Quanto mais a massa se auto-organiza e age, mais se conscientiza.
Quanto mais se conscientiza, mais age. Quanto mais os explorados se
organizam e lutam, mais se conscientizam. Quanto mais se conscientizam,
mais lutam. Mais uma vez Rosa retoma Marx e as “As teses sobre Feuer-
bach” (1990), ressaltando que a Democracia Socialista pode existir só a
partir de uma experiência concreta de luta popular, buscando transformar
a sociedade e a si mesmo, em alguns dias de greve geral os trabalhadores
aprendem mais do que em dez anos indo a comícios, ouvindo discursos
ou lendo panfletos (LUXEMBURGO, 1979).
Uma longa série de batalhas populares que podem tomar diferen-
tes formas e significados, sendo econômicas e políticas, oscilando entre a
reforma da Democracia liberal e a luta pelo Socialismo. Em “Reforma ou
Revolução?” (1999), em contraposição ao reformismo de Bernstein, a re-
181
volucionária polonesa ressalta que as reformas são importantes, qualquer
mudança que favoreça os trabalhadores é positiva, mas, sem uma revolu-
ção socialista, nunca poderá existir uma verdadeira Democracia, existindo
uma ligação indissolúvel entre as reformas e a revolução, sendo a luta pelas
reformas, um meio; e a revolução socialista, o fim.
O “elemento decisivo na distinção entre o socialista e o radical bur-
guês” é o abandono do objetivo final, ou seja, o abandono do Socialismo.
O reformismo de Bernestein “visa a uma única coisa: conduzir-nos ao
abandono do objetivo último, a revolução social, e, inversamente, fazer da
reforma social, de simples meio de luta de classes, o seu fim” (LUXEM-
BURGO, 1999, p. 24). Retomando a teoria marxiana, critica ferozmente
as fantasiosas e celestiais elaborações reformistas de Bernstein, publican-
do alguns artigos, em 1898 e 1899; e, em 1900, redigindo “Reforma ou
Revolução”, reafirmando a importância da totalidade, sendo a sociedade
capitalista não uma soma de elementos, cada um autônomo em relação aos
outros, mas um sistema orgânico de relações e processos coerentemente
ordenados, não se podendo abstrair os lados positivos do capitalismo e
excluir os negativos.
Como ressalta Moraes (2001), o modelo democrático é aceitável
no Capitalismo quando não ultrapassa os limites da ordem burguesa, não
sendo mais bem-vindo, quando ameaça os privilégios e os interesses esta-
belecidos, não hesitando em “apelar para os generais”, quando esse méto-
do se torna disfuncional ao regime capitalista. A Democracia liberal é um
valor universal, na medida em que é considerada como idealidade abstrata,
tornando-se suja e cruel no reino das necessidades A democracia é consi-
derada por Bernstein e os reformistas como uma categoria universal, pa-
radigmática e abstrata, convivendo harmoniosamente com o Capitalismo,
projetando uma imagem paradisíaca e irreal que nada parece com a con-
cretude terrena, sendo a Democracia nela marcada, desfigurada e refor-
mulada pelo interesses do sistema capitalista. É impossível esquecer que
a Democracia - com suas liberdades e direitos políticos - é o resultado de
uma história de combates e lutas do proletariado, para ser finalmente per-
182
cebido pelas classes dominantes, não só como trabalhadores, mas como
indivíduos e cidadãos, artífices e criadores das instituições democráticas
e dos direitos civis, não aceitando a desigualdade formal, intrínseca no
capitalismo, entre proprietários – homens – e não proprietários – traba-
lhadores75(LOSURDO, 2004).
Somente Luxemburgo teve a coragem de levantar a própria voz
contra as formulações reformistas de Edward Bernstein, membro respei-
tadíssimo do partido socialdemocrata, para ter sido o secretário de Engels.
No final do Século XIX, Bernstein publicava no “Newe Zeit”, revista da
socialdemocracia alemã, uma serie de artigos revisitando, radicalmente, a
práxis marxiana, centrando seus esforços na estratégia democrática e par-

75 Como ressalta Barrington Moore (1966), a Democracia hoje presente em


países como Inglaterra, França e Estados Unidos, não poderia existir sem a Revolução
Inglesa, a Revolução Francesa e a Guerra Civil Norte-Americana.
lamentar como único percurso possível para chegar ao Socialismo. Partin-
do da constatação concreta e real do crescimento progressivo do partido
socialdemocrata,
Bernstein formulou teoricamente, o que a direção do partido já
pensava, ou seja, a possibilidade de uma transição pacifica do Capitalis-
mo para o Socialismo, sem revolução, ganhando as eleições, acumulando
constantemente poder pelas vias democráticas. A massa perderia seu pro-
tagonismo social, delegando o partido, as cooperativas e os sindicados
de derrotar o Capitalismo quase naturalmente, sem convulsões e dores,
abandonando a arma antidemocrática da violência.
Formulações revisionistas que não encontraram grandes objeções
por parte de Kautsky e Babel, que ao contrario elogiaram como inter-
pretação democrática do marxismo, tornando-se ao longo do Século
XX, sempre mais dominantes na esquerda européia, com as sucessivas
contribuições teóricas dos marxistas austríacos Max Adler e Otto Bauer;
e, sobretudo, dos eurocomunistas italianos Togliatti, Berlinguer e Ingrao,
todos defendendo a ideia da “democracia progressiva”, como processo
de aprofundamento democrático, centrados nas conquistas eleitorais que 183
podem garantir a ampliação da democracia, chegando-se a um momento
em que conviveriam harmonicamente, as instituições da democracia re-
presentativa com as instituições da Democracia de base (INGRÃO, 1977).
Pensamento reformista, hoje hegemônico na esquerda partidária, defendi-
do no Brasil por Carlos Nelson Coutinho, evidenciando a importância do
aprofundamento e da ampliação das instituições democráticas forjadas no
Capitalismo, caminhando gradualmente e regularmente até o Socialismo,
sendo a Democracia um meio e um fim, não podendo surgir só após a
Revolução Socialista. Como “a arte de Homero não perde sua validade
universal com o desaparecimento da sociedade grega”, também a Demo-
cracia, com o desaparecimento da sociedade burguesa, não perde seu valor
universal, sendo possível estimular as “reformas de estrutura” no interior
da sociedade capitalista (COUTINHO, 1980).
A teoria democrática de Luxemburgo é uma interessante síntese da
experiência russo-polonesa e da experiência ocidental alemã, criando uma
unidade entre o objetivo final e a ação cotidiana, não separando os mo-
mentos particulares das lutas da “grande política”, relacionando as lutas
dos oprimidos da terra ao objetivo final da Democracia e do Socialismo.
Uma luta pela Democracia e pelo Socialismo, centrada no espontaneísmo
popular como elemento fundamental para a tomada de consciência, em
um processo que, concordando com Loureiro (2008) podemos chamar de
revolução cultural, buscando modificar profundamente, não só o poder
político e econômico; mas também, as pessoas em um “renascimento in-
terior do proletariado”. Uma Democracia socialista que nasce através da
educação e formação política das massas em um processo vivo que se
aprende na prática, quando a maioria tem a oportunidade de tomar as
decisões sobre o seu próprio destino. Um espontaneísmo que não pode
prescindir do papel do partido político. Seria um erro pensar, que Rosa
menospreze o papel do partido no processo de aprendizagem das massas.
A sua história de vida mostra o contrário, quando estudava em Zurich,
sempre manteve contatos com o partido revolucionário polonês exilado,
participando ativamente da criação do Partido Socialista de Polônia e, logo
184
depois, do Partido Socialista do Reino de Polônia e Lituânia (PSP e L). Na
Alemanha, tornou-se um membro de referência do Partido Socialdemo-
crata Alemão, fundando, juntamente com Karl Liebknecht, a Liga Spar-
takus, que no primeiro de Janeiro de 1919, transformar-se-á no Partido
Comunista Alemão.
Um partido político que se deve formar, a partir do espontaneísmo
popular, sendo o resultado da práxis popular. Em “Questões de organiza-
ção da social democracia russa” (1991), Rosa critica a separação leninista
entre dirigentes do partido e massa, ressaltando que a Democracia é um
processo de aprendizagem que não pode ser introduzido de fora por uma
vanguarda de revolucionários, oriunda de burguesia, mas deve ser expe-
rimentada e construída pelo mesmo proletariado, destacando o partido
político como a expressão dos desejos e das necessidades da massa, sendo
um elemento agitador e esclarecedor, sendo uma referência cultural e po-
lítica das massas, mantendo vivo o debate, combatendo asperamente os
valores capitalistas e, abraçando os ideais socialistas, como o coletivismo a
solidariedade e a autodisciplina (LOUREIRO, 1997). Na defesa da greve
de massas, em 1906, nas críticas à concepção de Lênin sobre a questão
da organização, nas críticas às posturas da socialdemocracia alemã, nos
questionamentos acerca dos rumos da Revolução Russa de 1917 e, na de-
fesa dos conselhos de soldados e operários durante a Revolução Alemã
de 1918, aparece claramente a questão da organização que, juntamente ao
espontaneísmo representam elementos do mesmo processo democrático.
Rosa acredita que a consciência de classe possa nascer na própria
luta popular, na práxis revolucionária, como bem expresso no Fausto de
Goethe, “no princípio era a ação.” A iniciativa é das massas e não do par-
tido, o verdadeiro sujeito é o proletariado, não existindo separação entre
ação e consciência. Como ressalta Loureiro (1999), é a partir do chauvinis-
mo e conservadorismo demonstrado pelo proletariado europeu, aderindo
à Primeira Guerra Mundial e, abandonando o internacionalismo socialista,
que Rosa Luxemburgo percebe que não há guias infalíveis que possam
mostrar ao proletariado o caminho a seguir, mas é o mesmo proletariado
185
que, através da ação, deve aprender dos próprios erros, tornando-se um
sujeito revolucionário autônomo e consciente.
Frente à vergonhosa traição da socialdemocracia alemã, que o 4
agosto de 1914 votou unanimemente, a favor dos créditos de guerra, mais
uma vez a revolucionária polonesa se rebelou, “a socialdemocracia depois
do 4 de agosto de 1914 é um cadáver putrefato”, capitulando sem digni-
dade frente às necessidades sangrentas do Capitalismo, barateando a dor
e as lagrimas dos trabalhadores com algumas vagas no Parlamento76. O
Socialismo pode existir apenas através da experiência e do protagonismo
do proletariado, sendo a ação das massas condição prévia e necessária para
a existência de uma revolução socialista. A própria massa em movimento

76 Lenin acreditou, inicialmente, que a policia alemã tivesse falsificado a no-


ticia, não podendo acreditar que o maior partido da esquerda européia, diretamente
ligado a Marx e Engels, pudesse trair seu legado internacionalista.
representa o partido, não existindo vanguarda de fora; mas sim, uma van-
guarda como porta voz do movimento, que se forma e opera no movi-
mento em uma relação dialética entre teoria e prática, entre a consciência
do Socialismo e a experiência prática da massa popular.
Na “Crise da social-democrática” (LUXEMBURGO, 1998), Rosa
evidencia que a massa popular torna-se sujeito histórico, através da sua
própria ação revolucionária, podendo decidir o processo histórico. Não se
trata mais de esperar que o fruto amadureça, segundo as “leis naturais” da
Economia ou da História, mas de agir (LÖWY, 2003).
A Democracia e o Socialismo são o resultado do espontaneísmo
popular, onde o falso é um momento do verdadeiro, podendo-se alcançar
a verdade através dos erros cometidos. A ação espontânea das massas
será sempre “pavimentada de terríveis sacrifícios”, mas é a experiência
dos próprios erros que levará a massa a aprender, tornando-se um verda-
deiro sujeito revolucionário. Assim como precisamos cair para aprender a
caminhar, para a massa tornar-se madura precisa agir e errar, “para viver
ela mesma a vida política e econômica na sua totalidade e para orientá-la
186
por uma autodeterminação consciente e livre” (LUXEMBURGO, 1979).
Segundo Rosa, a espontaneidade proletária é a chave para a consciência
socialista, podendo aprender a partir das experiências vividas, das lutas,
das greves de massa; mas também, dos erros cometidos, das decepções e
dos retrocessos:

Os seus erros [do proletariado] são tão gigantescos quanto as suas


tarefas. Não há esquema prévio, válido de uma vez por todas, não
há guia infalível para lhe mostrar o caminho a percorrer. A expe-
riência histórica é seu único mestre. O caminho espinhoso da sua
autolibelação não só está juncado de sofrimentos sem limites, mas
também de inúmeros erros. [...] A moderna classe operária paga
caro toda compreensão da sua missão histórica. O gólgota da sua
libertação está pavimentado de terríveis sacrifícios. [...] Parecemo-
-nos verdadeiramente com aqueles judeus que Moisés conduziu
através do deserto. Mas não estamos perdidos e venceremos, se
não tivermos desaprendido a aprender. (LUXEMBURGO, 1979,
p. 45).
Em um Capitalismo avançado, Luxemburgo reconhece que no
espontaneísmo sem mediação, não há lugar na história das revoluções
vitoriosas, sendo necessária a organização, que representa a “forma de
mediação entre ser social e consciência.” A organização e o partido –
revolucionário – são graus de mediação do movimento operário, nos
quais se tornam conscientes as atividades revolucionárias das massas. “Se
Spartakus se apoderar do poder será apenas sob forma da vontade clara,
indubitável, da grande maioria das massas proletárias de toda a Alemanha”
(LUXEMBURGO, 1991, p. 2). Espontaneidade e organização não estão
em uma relação exterior entre si, mas contém uma dialética própria, sendo
o partido, a parte teórica da práxis popular, formando-se através da práxis,
no meio da práxis, desenvolvendo as experiências populares e buscando o
objetivo final. Um partido proletário construído do baixo de modo demo-
crático, para poder realizar suas tarefas históricas. Uma vanguarda política
consciente, indispensável na direção das lutas revolucionárias, fornecendo
às massas protagonistas do movimento, o teórico, os objetivos em longo
prazo, os caminhos pelo Socialismo (GUÉRIN, 1982).
187
Luxemburgo (1991) descrevendo a Liga Spartakus evidenciava que:
não é um partido que quer passar por cima das massas operárias, ou por
meio destas próprias massas, para impor sua dominação; a Liga Spartakus
quer apenas ser, em todas as ocasiões, a parte do proletariado mais cons-
ciente do objetivo comum, chamando continuamente a grande massa ope-
rária à consciência de seus deveres históricos.
O partido aparece como expressão dos desejos e das necessidades
da massa; e não, como vanguarda revolucionária isolada das massas, pois
se alguém é portador de alguma verdade, esse alguém é a própria massa e
o partido é elemento da mesma massa. Cabe ao partido, apenas o papel de
agitar, esclarecer, manter vivo o debate e apontar caminhos e soluções, ser
uma referência cultural e política das massas, combatendo asperamente os
valores capitalistas, como o egoísmo e a corrupção para abraçar valores
socialistas como o coletivo, a solidariedade e a autodisciplina, construindo
uma hegemonia de classe proletária (LOUREIRO, 1997).
Com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e o desmorona-
mento da dinastia dos Honzenhollern, a socialdemocracia chegava ao po-
der em uma atmosfera política evidentemente favorável, multiplicando-se
os Conselhos dos trabalhadores e soldados em todo o país, libertando-se
os dirigentes da socialdemocracia detentos nas prisões, sendo o proleta-
riado mobilizado e ativo na cena política alemã. Rosa Luxemburgo, saída
do cárcere de Breslau, imergiu-se corpo e alma no torrente revolucionário
que emergia no país derrotado da guerra, criando a Liga Spartakus, fazen-
do discursos inflamado, debates públicos, publicando panfletos e artigos
de jornais, atacando frontalmente a estratégia reformista da socialdemo-
cracia, levantando o proletariado alemão para concluir a revolução, toman-
do definitivamente o poder.
A revolucionária marxista estava participando de sua última bata-
lha, junto de Karl Liebknecht e os spartakistas contra os dirigentes da so-
cialdemocracia, como Ebert e Scheidemann, que aliados aos interesses do
grande capital, procuravam canalizar os movimentos populares nos limites
da democracia burguesa. Rosa decidiu romper definitivamente com o par-
188
tido social democrático, nos dias 30 e 31 de dezembro de 1918, formando
o Partido Comunista Alemão, declarando mais uma vez sua incansável fé
no poder criativo da massa, o elemento revolucionário decisivo, o pilar
sobre o qual se poderá construir a vitória final, o elo determinante para a
criação do Socialismo.
Na manhã de 15 de janeiro de 1919, o cadáver de Rosa Luxembur-
go foi encontrado no rio Landwehr, a paz novamente reinava em Berlim,
os militares do Freikorps, a burguesia, a imprensa reacionária e muitos dos
dirigentes da socialdemocracia alemã podiam comemorar, o capital estava
salvo, “Rosa a sangrenta” estava morta.

CONCLUSÕES

A Democracia liberal é sempre mais submetida ao poder do Merca-


do, fragmentando, despolitizando e multiplicando as demandas de grupos
de interesses corporativamente posicionados. As demandas sociais não
são atendidas pelas políticas públicas, desviando a maior parte delas para
o Mercado por meio da privatização e desestatização. Com a centraliza-
ção do Mercado, a Democracia se tornou funcional às suas disposições,
administrando e garantindo as regras do jogo, procurando manter a or-
dem dominante, oferecendo políticas realistas, esvaziando de significado
a noção de público e de responsabilidade pública, deixando a regulação
das relações sociais nas mãos do Mercado e dos imperativos de eficácia e
produtividade. A Democracia é obscurecida e empobrecida pelos valores
do capital, apresentada como um método de escolha entre opções já pre-
determinadas, tendo a liberdade de poder eleger “o menos pior”, excluin-
do-se os interesses sociais, os ideais e os valores cuja proteção seria mais
importante do que qualquer engenharia institucional.
A Democracia liberal pode ser compreendida a partir de uma aná-
lise histórica centrada na crença de que a igualdade social é impossível,
sendo a desigualdade natural e eterna, sendo necessário conservar uma
separação entre os mais capacitados, as elites, e os subordinados, que sem-
189
pre foram massacrados, fragmentados, menosprezados, pisoteados pelos
seus “superiores sociais”. Um processo político que se perde ao longo da
história, passando pela Magna Carta, legitimando os privilégios feudais e
o poder da aristocracia sobre a multidão, pela Revolução Inglesa de 1688,
que transformou as terras coletivas em propriedade da classe burguesa,
podendo dispor como quisesse da terra, dos animais e dos camponeses
aí presentes. É o que conta Marx no Livro I do Capital, um processo de
ascensão do capital em colaboração com a força do Estado nas mãos da
burguesia, criando artificiosamente a figura do trabalhador, que desnudado
de seus meios de subsistência, viu-se obrigado a vender “livremente” sua
força de trabalho em troca de salário. Um processo que continua com as
revoluções burguesas ao longo do Século XIX, tomando o poder estatal e
transformando a política em um instrumento de violência legitima contra
os plebeus que questionassem as desigualdades sociais, políticas e econô-
micas.
Durante o Século XX, os esforços para derrotar a barbárie capitalista
se enfocaram no Estado e na conquista do poder político. As dúvidas
principais eram acerca de como conquistar o poder estatal, seja pela via
parlamentar, ou pela via extraparlamentar. A História respondeu. A ques-
tão de como ganhar o poder não era tão fundamental como parecia ser.
Em nenhum dos casos, a conquista do Estado logrou realizar as mudanças
que se esperavam. Tanto os governos parlamentares como os governos
revolucionários fracassaram, com responsabilidades diferentes. A contri-
buição de Luxemburgo, no campo da teoria democrática contra-hegemô-
nica, parece-nos importante, pois, se de um lado, não abandona a luta pela
tomada do poder estatal, não podendo existir uma verdadeira democracia
sem ruptura, sem combate, sem revolução socialista; de outro lado, apre-
senta o processo democrático como uma longa série de batalhas populares
em todas as esferas da vida social, no campo político, na economia, na
sociedade civil, na cultura, na construção do “senso comum”. Luxembur-
go, pouco antes do revolucionário italiano Antonio Gramsci, ressalta a
necessidade de entender o Socialismo, não apenas como assalto ao poder
190
político, sendo imprescindível uma revolução cultural, “um renascimento
interior do proletariado”, revolucionando ontologicamente as relações do
homem com seus semelhantes, entre “eu e os outros”.
Se a modernidade capitalista pode ser bem representada pela frase
de Descarte “ego cogito, ego sum”, sendo o eu, o “ego economicus” o
elemento central do desenvolvimento capitalista, no Socialismo - ressalta
Luxemburgo - a história não se faz a partir do “ego” de Descarte, mas do
“nos”, onde os outros, não são mais seres que vejo e ouço, mas aqueles
com os quais ajo em comum. O nos é o sujeito da história. O fundamento
epistemológico da vida social e da Democracia.
Hoje, o legado democrático da “Rosa Vermelha” parece extinto
nos atuais partidos de esquerda, que se renderam à ideologia neoliberal,
ficando sempre mais reclusos nas instituições, ao lado do poder e da ma-
nutenção da ordem existente, oferecendo uma política sem perspectivas,
sem valores alternativos ao modelo capitalista, condenando qualquer for-
ma de mudança de caráter popular. A esquerda parlamentar deixou, sim-
plesmente, de ser marxista, aceitando a Democracia liberal, considerada
universal, acima das críticas, abandonando a luta de classe e se relegando
a operar só na “esfera política” à margem de uma concepção totalizadora
da vida social, abandonando o econômico, o social, o ideológico, o cultural
(BORON, 2000).
Nós acreditamos, que o legado imortal de Rosa Luxemburgo com a
sua dialética marxista, sua práxis revolucionária, sua crença popular e seu
inflexível exemplo de vida, possa representar uma importante referência
política nas multíplices lutas protagonizadas pelos oprimidos do mundo
contra o capital globalizado, procurando democratizar a vida social.

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Capítulo 9

Movimentos Feministas e suas


Contribuições para Pensar uma
Democracia Plural e Inclusiva
Maria Mary Ferreira
Hildete Pereira de Melo

INTRODUÇÃO

A proposta deste texto é discutir a importância do movimento


feminista na construção de um modelo de Democracia, que contemple
os diferentes segmentos que no decorrer da história do Brasil foram ex-
cluídos, ignorados e se mantêm à margem dos espaços de decisão. Em 193
que pesem as mudanças que vêm ocorrendo em vários países do mundo,
no Brasil a Democracia representativa, escrita na Constituição Federal de
1988, é uma utopia que não se efetivou completamente, basta ver os in-
dicadores de gênero, raça/etnia e identidades de gênero na representação
política no Brasil.
As formas de exclusão são múltiplas e se perdem na história po-
lítica brasileira, embora seguramente a má aplicação da lei eleitoral, esta
passa por uma execução “trôpega” da política de cotas para as mulheres
na política, até o exercício da cidadania sobre o domínio de uma visão
patriarcal, que perpassa a vida das organizações sociais e econômicas, do
Estado, partidos políticos, sindicatos e atinge as mulheres nos seus esfor-
ços de romper as formas de interdição e exclusão de sua participação na
vida pública.
Com essa perspectiva, este estudo propõe uma reflexão sobre as
ações dos movimentos feministas brasileiros, ao longo dos últimos qua-
renta anos, na construção de uma política inclusiva nos marcos da Demo-
cracia liberal e as reflexões do pensamento feminista para a construção de
uma verdadeira sociedade igualitária.

BREVE HISTÓRICO DAS DEMANDAS E CONQUISTAS


FEMINISTAS NO BRASIL PÓS 1970

A forma como os movimentos feministas se organizaram nas últi-


mas décadas do Século XX, embora com variações regionais e locais, em
grande parte, a partir dos anos de 1970, deram-se através de grupos de
reflexão que tinham como horizonte o autoconhecimento das militantes,
o fortalecimento de suas identidades, e ainda que difuso, a negação de
uma autoridade com a formação de grupos horizontais. Esta horizonta-
lidade era o fio condutor que permitia às mulheres presentes nos grupos
de reflexão construir as pautas e bandeiras de lutas e, caracterizar a opres-
são masculina acima das questões de classe. A discriminação era devido a
nosso sexo e brancas, negras, idosas, ricas e pobres viviam um cotidiano
194 de submissão.
No entanto, esse processo de autoconhecimento e reflexão foram
importantes e vitais para a difusão das ideias feministas, através da vivên-
cia e práticas nas oficinas de modelagem, de autoexame, de desenho e co-
lagem e descobertas sobre corpo, sexualidade, prazer, erotismo, juventude
e velhice, gravidez, aborto. Essas práticas políticas deram aos movimen-
tos feministas, uma enorme capacidade de se integrar e de construir uma
identidade de gênero entre as mulheres, fato que possibilitou uma forma
criativa e independente das mulheres se organizarem e de construírem um
debate mais orgânico, sobre diversos temas da sexualidade.
A particularidade dessa forma de atuar, politicamente chamava
atenção de outros grupos políticos que viam as feministas com descon-
fianças e, até mesmo, “não políticas”, burguesas, mal amadas e outras de-
nominações, as quais tentavam de todas as maneiras estigmatizar e desqua-
lificar esse movimento quando do seu surgimento em meados dos anos
sessenta no Brasil.
Autoras como Alves (1980), Costa (2009), Ferreira (2007), Scavone
(2004), Melo (2018), Melo e Thomé (2018) e dentre outras, são unânimes
em afirmar que os movimentos feministas no Brasil emergem na luta con-
tra a Ditadura nos anos sessenta e se fortalecem nos anos setenta e oitenta,
como protagonistas das mudanças sociais, no contexto das relações de
gênero. Foram sujeitos importantes na construção e implementação de
políticas públicas, dentro do contexto do Estado liberal, em que se vivia e
se vive em tempos atuais.
A horizontalidade com que os movimentos feministas, nos idos de
1970, organizaram-se criou uma relação de identidade entre as mulheres e
trouxe para o cenário político importantes debates como o descolamento
da sexualidade da reprodução, configurando assim, autonomia ao corpo e
liberdade de ter desejo, a libertação da sexualidade em relação à procria-
ção. Para isso, a descoberta dos contraceptivos foi muito importante, fato
que favoreceu um amplo debate entre as feministas que diziam claramen-
te: sexo não deve ser visto apenas como um ato sagrado para gerar filhos,
“as regras do domínio patriarcal determinavam, que a mulher só seria uma
195
“mulher completa”, caso se tornasse mãe (BANDEIRA; MELO, 2010,
p. 243). Ao afirmar que sexo é bom, saudável e um direito das mulheres,
os feminismos resgataram que a reprodução e as tarefas dos cuidados são
fundamentais para todas as pessoas; e não, uma parte da vida inválida de
ser vivida. Discutir essa problemática pelos feminismos foi um momento
de um aprendizado integrador e transformador, tanto quanto o de fazer
política, no qual as feministas recusavam as hierarquias impostas pelos
partidos, sindicatos, discutiam a centralização e verticalização das decisões
e exigiam que suas vozes fossem ouvidas e consideradas nos debates po-
líticos.
Essa forma pouco convencional de atuarem, seguramente contri-
buiu para que os movimentos feministas e as mulheres que se envolveram
nessas associações tivessem, naqueles anos de chumbo, incomodado pou-
co. As feministas foram herdeiras da informalidade do vestuário e cos-
tumes dos movimentos “hippies” que vicejaram, nos anos de 1960 e de
1970, e dos campi norte-americanos ganharam o mundo. Mas também,
denunciavam as contradições da sociedade patriarcal, presentes nas práti-
cas dos partidos políticos e sindicatos e, nos grupos clandestinos, a grande
maioria marxistas, que pregavam liberdade e igualdade, mas que na vida
pessoal, mostravam as contradições nas relações machistas, segregacionis-
tas com suas companheiras, ato considerado imperdoável para as ativistas
feministas.
Os movimentos feministas atuavam de forma livre, expondo suas
ideias, em geral, pautadas no ideal de liberdade e defesa intransigente
da Democracia, da igualdade e dos direitos das mulheres. Para Ferreira,
(2007, p. 38): [...] “O feminismo e as feministas vieram se contrapor a
este modelo de sociedade e defender um mundo mais partilhado, paritário
cujas decisões devem também passar pelo pensamento das mulheres”. As
pautas apresentadas pelas feministas à sociedade e ao Estado nos anos
setenta, oitenta, noventa e mais recentemente, confirmam a radicalidade
e intensidade desse movimento na luta por igualdade e cidadania para as
mulheres.
196
Em um olhar retrospectivo nos últimos 50 anos, as feministas se
firmaram como um ator político no cenário nacional. Atuaram, de for-
ma intensa e ininterrupta, com o objetivo de tornar a política um espaço
acessível às mulheres e, através de sua ação política, elevar as mulheres à
condição de sujeito de direitos. No entanto, é preciso contextualizar essa
realidade, mais igual para as mulheres brancas. Porque a experiência das
mulheres negras foi diversa ao longo da história brasileira da Colônia, Im-
pério e a República. Porque como afirma Carneiro (2003), as mulheres
negras fazem parte de um contingente de mulheres que viveram uma ex-
periência histórica diferenciada, escravizadas, violadas e marginalizadas e
que para a perspectiva feminista impõe a estas mulheres uma dupla forma
de ação da opressão patriarcal aliada a de cor/raça.
Escrever a síntese das mudanças e resultados que as ativistas fe-
ministas brancas e negras conquistaram, nos últimos 30 anos, deve ser
mensurado no conjunto de políticas, programas e legislações que altera-
ram, de forma substancial, a vida das brasileiras ao longo destas últimas
décadas. Vejamos, primeiro foi lenta a chegada do estado de direito no
Brasil; depois, do Golpe Militar de 1964, este começou com a anistia geral
e irrestrita, em agosto de 1979 e culminou com um grande chamamento às
mulheres para atuação no espaço político. Por quê? O cerceamento políti-
co de antes foi afastado, voltaram os exilados e a explosão do feminismo
na Europa e nos EUA contagiou as brasileiras e, na sua grande maioria, es-
tas ativistas agruparam-se nos movimentos feministas nacionais (TELES,
2017). E, nesse momento, fez-se a pergunta: os movimentos sociais e fe-
ministas deveriam ingressar nos partidos políticos e disputar eleições? Em
1982, a primeira eleição depois da Anistia, o quadro partidário nacional
já refletia este novo cenário com a criação do Partido dos Trabalhadores
(PT). E as feministas se agitaram em vários estados brasileiros, organizan-
do uma plataforma feminista para negociar com os partidos políticos. No
Rio de Janeiro, essa plataforma intitulou-se “Alerta Feminista” e este nome
foi utilizado por outros movimentos pelo Brasil adentro (MELO, 2017).
Mas os espaços políticos foram hostis para as mulheres e, até os
197
dias atuais, a representação feminina é pouco expressiva. Contudo, se es-
sas portas do poder político não foram arrombadas, os anseios das mu-
lheres por políticas públicas de igualdade foram acontecendo ao longo
das décadas seguintes. Claro, a agenda feminista internacional foi determi-
nante porque a partir da convocatória da Organização das Nações Unidas
(ONU) do “Ano Internacional da Mulher”, em 1975, na Cidade do Méxi-
co, essa agenda foi reforçada e os movimentos feministas puderam com a
legitimidade da ONU desfraldar suas bandeiras e reivindicações no Brasil,
apesar do regime de exceção ainda ser vigente. No segundo momento,
apesar da derrota da Emenda das Diretas, foi eleito um Governo civil para
o Brasil em 1985 e as políticas para as mulheres e de gênero passaram a ser
introduzidas no Governo, nas três esferas republicanas: União, Unidades
Federativas e Municipais.
De forma sucinta, essas políticas vão da criação pelo Ministério
da Saúde, em abril de 1983, de uma comissão para discutir a saúde da
mulher. As feministas denunciavam a falta de uma política relativa à saúde
materna, de que iam da morte materna, às esterilizações promovidas por
organizações internacionais, à descriminalização do aborto. Este grupo
ministerial redigiu um documento intitulado “Bases de Ação Programáti-
ca”, que foi o embrião do Programa de Ação Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), neste grupo, participavam feministas dentre as quais: a médica
sanitarista Ana Costa, a socióloga Graça Ohana, além de médicos e pro-
fessores da Universidade de Campinas (UNICAMP).
Assim, em 1984, foi oficialmente criado o PAISM para o atendi-
mento feminino integral à saúde das mulheres (LUIZ; SOUTO, 2018). No
campo da violência contra a mulher, as ações pioneiras do Governador
Franco Montoro no Estado de São Paulo com a criação da Delegacia da
Mulher que, posteriormente, contagiou políticas de segurança em diver-
sas unidades nacionais até a criação do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher (CNDM), em setembro de 1985 (BERTOLIN; ANDRADE;
MACHADO, 2018).
Assim, na Década de 1980, o Brasil foi um dos primeiros países da
198
América Latina a instituir um órgão de políticas públicas de gênero, no
mais alto nível da administração nacional (COSTA, 2014). Destas, desta-
cam-se a igualdade entre homens e mulheres em geral e, especificamente,
na sociedade conjugal (BRASIL, 1988) Art.5º, I, Constituição Federal),
complementadas com as mudanças do Código Civil de 2003. A proibição
da discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo ou estado
civil (Art.7, XXX), licença maternidade de 120 dias. O planejamento fa-
miliar como livre decisão do casal, atendimento global à saúde da mulher
e a implementação do aborto legal. A obrigação do Estado de coibir a
violência no âmbito das relações familiares e a notificação compulsória
nos casos de violência contra a mulher, atendida em serviço de saúde,
públicos e privados.
Na gestão da Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres,
Nilcea Freire (Governo Lula), foi aprovada a Lei Maria da Penha e, em
seus desdobramentos, o Pacto de Combate à Violência Doméstica, a cria-
ção das Varas da Família e as ações resultantes desta legislação (BAN-
DEIRA; MELO, 2014). Foram muitas conquistas e estas contribuíram
em grande parte para recuperar a dignidade das mulheres, embora outras
pautas e reivindicações, ainda não tenham sido efetivadas, a exemplo da
descriminalização do aborto e da paridade na participação política das mu-
lheres nos espaços de poder.
É certo dizer, que tais pautas faziam e fazem parte da construção da
igualdade de direitos dentro do modelo de Democracia liberal que se vive
no Brasil, infelizmente, a luta pela construção de uma sociedade de iguais
ainda é um horizonte em uma estrada longa e cheia de curvas e desafios.
Os recentes acontecimentos vivenciados no Brasil, que resultaram no im-
peachment da Presidenta Dilma Rousseff, reafirmado pelas feministas como
golpe misógino e patriarcal, tornam ainda mais distantes, o caminho para
uma democracia radical e plural.

AS CRÍTICAS DO MOVIMENTO FEMINISTA AO MODELO


DE ESTADO LIBERAL
199
O conceito de Democracia que perpassa o debate político e per-
meia a reflexão deste artigo, fundamenta-se na visão construída pelo vá-
rios movimentos sociais e dentre eles o movimento feminista, que vê a
Democracia como uma contraposição à visão liberal que concebe as ne-
cessidades e capacidades dos indivíduos, como se fossem interdependen-
tes a qualquer condição social ou política imediata.
Os liberais consideram que os homens foram criados iguais, e que,
portanto, merecem dignidade e respeito, mas é importante lembrar, que
pouco fizeram para construir de fato a igualdade de direito, que tanto de-
fendem. Ao longo da Revolução Francesa aos dias atuais, ou seja, há mais
de dois séculos, a burguesia ampliou suas fortunas, manteve privilégios e
contribuiu para o aumento das distâncias sociais com acúmulos de riqueza
nas mãos de parcelas ínfimas, em detrimento de milhares de despossuídos.
Continuamos uma sociedade cada vez mais estratificada, desigual, injusta
e patriarcal.
Os princípios liberais alcançados e efetivados em grande parte dos
países ocidentais: Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega, dentre outros,
estão muito distantes de se aproximarem das realidades da maioria dos
países latino-americanos, africanos e asiáticos. O caso brasileiro é emble-
mático pela disparidade de rendimentos, que coloca o Brasil no final da
lista das nações mais desiguais do mundo (PIKETTY, 2014).
No princípio da Filosofia liberal está explícita a promoção da liber-
dade individual, as pessoas foram criadas iguais (os homens) e têm direitos
inatos, cabendo ao estado regular esses direitos para evitar que as injus-
tiças se tornem abismais. Como pensar as mulheres e as pessoas negras
vivendo igualmente, em um mundo que as excluiu e negou sua cidadania?
A segregação das mulheres no mundo privado, as impediu de serem vistas
como sujeitos, e como tal, aptas a participar da organização do mundo, da
mesma forma que os negros, em virtude do longo período de escravidão
e posterior segregação, não são vistos como iguais.
Não há dúvida de que o modelo liberal, como bem afirma Marx,
prestou uma ativa contribuição ao modo de produção capitalista, que
200
como sistema econômico se fundamenta no lucro - embora a submissão
das mulheres não afete esta questão - para O Capital, o excedente não tem
sexo, este é gerado pelo trabalhador/trabalhadora (WOOD, 2003). Na re-
alidade, as teorias econômicas, nas suas vertentes clássica, neoclássica e
marxista ignoraram essa questão. E não tem nada a dizer sobre o razão
disso, apenas para as explicações relativas às desigualdades e discrimina-
ções no Mercado de trabalho (MELO; SERRANO, 1997).
Isso é acentuado pela contribuição da noção de homem racional,
como individuo competitivo que tende naturalmente a perseguir seu pró-
prio interesse e obter ao máximo de lucro (vertente neoclássica). Desse
modo, a cidadania para os liberais não chega a ser uma atividade coletiva
e política, mas uma atividade individual e econômica, ou seja, o direito de
perseguir os interesses próprios sem impedimento no Mercado. O cidadão
é visto pelos liberais como portadores de direitos, assim como veem a De-
mocracia como sociedade capitalista de Mercado e, concebem a política
como governo representativo, fato que transforma o modelo liberal em
um modelo, politicamente estéril, enfatiza Dietz (1999).
Dentro desse modelo, não cabia as mulheres, excluídas da racio-
nalidade liberal e reduzidas a objetos, “coisas”, sua condição de escravas,
subalternas, as tornavam invisíveis, sem voz, sem direito, passaram a ser
vistas como propriedade dos homens, tal qual, seus filhos e empresas. A
luta das feministas liberais contribuiu para alterar, em grande parte, essas
relações, passando a exigir igualdade de tratamento. Porém, Mouffe (1999,
p. 35) reconhece que as feministas liberais “lutaram por uma ampla gama
de novos direitos das mulheres, cuja finalidade é fazê-las cidadãs iguais,
mas sem desafiar os modelos liberais dominantes de cidadania e política”.
As críticas ao modelo liberal, construídas pelas feministas, con-
tribuíram para desmistificar a afirmação de igualdade de oportunidades
defendida pelos liberais ao enfatizar que “[...] O acesso igual não é uni-
camente um princípio básico do pensamento liberal, é também, um ele-
mento condutor do nosso discurso político contemporâneo” (DIETZ,
1999, p. 11). Em inúmeros estudos esclarecem e desmitificam o mito em
201
torno das “oportunidades iguais”, criado ideologicamente, para negar a
realidade e tratamento desigual dirigidos às mulheres cujos estereótipos,
discriminação sexual e subordinação que lhes foram impostas no mundo
da casa e no mundo do trabalho, demonstraram o quão contraditório é o
modelo liberal.
As políticas positivas, criadas pelo estado liberal, a partir das pres-
sões das feministas, tais como: a ampliação das licenças maternidades, pla-
nos de ações afirmativas, creches, leis contra assédio sexual contribuíram,
enormemente, para dar certa humanidade e fôlego ao modelo liberal, en-
tretanto, apenas encobriu as profundas desigualdades e opressão as quais
foram largamente denunciadas pelas feministas marxistas.
No Século XXI, as feministas nas diversas correntes: marxistas, ra-
dicais, culturais e negra, que denunciam as bases patriarcais do Estado
liberal revelam que, a opressão decorrente da divisão sexual do trabalho
exerce uma dupla exploração sobre as mulheres, na medida em que são ex-
ploradas no mundo da casa e no trabalho de todo dia, sem reconhecimen-
to. É um trabalho que lhes retira a capacidade de pensar e de participar da
vida social e pública, como seus companheiros – a segregação a que são
submetidas nas duplas jornadas de trabalho as enclausurou, impedindo-as
de estar nos bares, nos partidos, nos sindicatos, ou seja, lhes foram inter-
ditados o direito de participar dos debates, da vida social e da política, e
assim, intervir nos seus destinos.
É importante ressaltar, que a distinção entre o mundo público e o
mundo privado tem se constituído um tema central para o debate sobre a
opressão das mulheres, uma vez que a distinção entre esses dois mundos
atuou como um poderoso princípio da exclusão das mulheres, ou seja
[...] “desempenhou certamente um importante papel na subordinação das
mulheres” (MOUFFE, 1999, p. 41).
Para as feministas marxistas, as mulheres serão livres quando se
derrotar o Estado capitalista e liberal e, com sua derrota, seria desmonta-
do a estrutura capitalista e patriarcal que mantinha e mantêm as mulheres
202 subjugadas aos homens. Dietz (1999, p. 14) esclarece, que “o que as fe-
ministas marxistas esperam é um reordenamento igualitário do trabalho
produtivo e reprodutivo e a construção de relações humanas verdadeira-
mente liberadoras, uma sociedade que produza valores de uso, que não
tenha proprietários”.
As contribuições das feministas marxistas para pensar um modelo
de estado foram importantes para compreendermos, que existe um sis-
tema econômico fundamentado em relações de gênero implantado nas
estruturas capitalistas cujo predomínio masculino, fundado em uma noção
de racionalidade, separou o mundo público do privado e, com isso, estig-
matizou as mulheres, isolando-as ao mundo da casa, sobrecarregando-as
de trabalho doméstico e dos cuidados com a família e, desse modo, as
excluiu dos espaços públicos e de decisão, fato que contribuiu para que as
mulheres ficassem alheias às mudanças que iam sendo processadas, muitas
dessas mudanças foram aprovadas à revelia da participação das mulheres.
Enquanto as mulheres eram confinadas ao mundo doméstico, os
seus companheiros ficaram livres dos cuidados com a reprodução da vida,
“voltavam-se integralmente para as atividades mercantis relacionadas a
produção material dos bens e serviços” (MELO; THOMÉ, 2018, p. 25) e
puderam interferir na vida pública.
As contribuições desta corrente feminista foram importantes, po-
rém, não se pode deixar de mencionar seus limites e restrições ao mundo
do trabalho. Dietz (1999, p. 14) esclarece, que a visão de cidadania das
feministas marxistas é restrita, uma vez que:

[...] o fazem geralmente combinando-a com trabalho, luta de classe


e revolução socialista... Em virtude disso sua visão de cidadania
tende a restringir a política a luta revolucionária e as mulheres a
categoria de “reprodutoras” e a liberdade à realização da igualdade
econômica e social e à derrota da necessidade natural. Uma vez
alcançada a liberdade – parecem dizer – a política termina ou se
converte em pouco mais do que Marx uma vez denominou de “ad-
ministração das coisas”.
203
Os textos de Kollontai (2017, p. 163), umas das mais importantes
teóricas feministas marxistas dizem muito sobre os limites desta corrente
feminista, quando enfatiza que: “o trabalho das mulheres da classe traba-
lhadora é apenas uma forma de despertá-las, de incorporá-las às fileiras de
quem luta por um futuro melhor [...]”.
O lugar de reprodutora é claramente percebido nos textos da auto-
ra ao ressaltar o pensamento de Lenin:

Wladimir Ilitch considerava que é preciso dar à mulher a oportu-


nidade de simultaneamente trabalhar no aparato governamental e
garantir a possibilidade de ser mãe. A mulher é uma força produ-
tiva valiosa, mas tem o dever de ter filhos. A maternidade é um
importante dever social [...] Emancipá-las é dar a ela a possibilidade
de criar e educar os filhos combinando maternidade e trabalho
público. (KOLLONTAI, 2017, p. 174-175).
Sem desconsiderar o pensamento das feministas marxistas, que,
como mencionado, trazem contribuições inestimáveis para o reconheci-
mento da mulher trabalhadora, outras correntes de pensamento feminista
passaram a refletir e buscar um modelo de democracia, que pudesse abar-
car as múltiplas dimensões das organizações de mulheres, contemplando
suas lutas por direitos e igualdade de forma mais ampla.
Assim, o debate que se instaurou nos anos de 1970, na Europa
e nos Estados Unidos; e, nos anos de 1980 e 1990, na América Latina,
permitiu avançar no conceito de democracia e ampliar a presença das mu-
lheres nas instâncias decisórias em vários países do mundo. Foi um fe-
minismo que desnudou as contradições do modelo liberal e dos modelos
marxistas, passando a buscar saídas para a construção de um projeto de
democracia que garantisse a igualdade de fato.

QUAL A DEMOCRACIA QUE QUEREMOS? Apontamentos para pensar


uma democracia sob a ótica das mulheres

204
Para pensar um modelo de sociedade democrática, a partir do olhar
dos movimentos feministas, subentende-se pensar uma sociedade política
com igualdade de gênero e participação, pontos que estão inseridos na
perspectiva da democracia que expressa universalidade, igualdade, inclu-
são, respeito às identidades, à diferença e às individualidades. Esse é um
horizonte ainda distante da realidade brasileira, no que pese os esforços de
aproximação construídos nos governos petistas (2003-2015).
Ao debater o conceito de Democracia é sempre bom lembrar sua
recusa a qualquer tipo de distinção, discriminação, exclusão e todas e
quaisquer restrições. Na Democracia, parte-se do princípio de que vive-
mos em uma sociedade de iguais, e, como tal, devem-se criar mecanismos
de garanti-la. A Democracia nos abre a perspectiva de pensar o eu e o nós,
enquanto seres que falam e expressam o que pensam e agem, participan-
do da vida pública. Seus princípios antiliberais deslegitimam os interesses
individuais, pois seu princípio básico é coletivo.
A Democracia prolonga a ideia liberal, afirma Rémond (2003). Para
esse autor, somos, muitas vezes, tentados a ver a Democracia como um
simples desenvolvimento da ideia liberal, mas desde o Século XIX, ela
rompeu com a ordem da sociedade liberal. Bobbio a percebe, como “um
regime no qual todos os cidadãos adultos têm direitos políticos – onde
existe, em poucas palavras, o sufrágio universal” (BOBBIO, 1992, p. 44).
A Democracia, não obstante, vai muito mais além, pois tem alcance
muito mais amplo e dimensão muito mais profunda; ao mesmo tempo, em
que se contrapõe aos desmandos autoritários, insere-se nos cotidianos, in-
terferindo nas muitas formas de exercício de dominação, pondo em xeque
as relações de gênero e de poder.
As concepções de Democracia, segundo Santos (2002) podem ser
divididas em três momentos: concepção hegemônica; concepção não
hegemônica (ambas situadas na segunda metade do Século XX); e De-
mocracia participativa (Século XXI), que, no atual contexto, está sendo
questionada pelos movimentos sociais que propõem, por meio da Reforma
Política, mudanças substanciais para garantir a participação e presença de
205
segmentos sociais, historicamente excluídos (FERREIRA, 2010).
Ao refletir sobre as três concepções, Santos (2002) enfatiza que a
concepção hegemônica foi marcada pelas visões liberais e marxistas que,
ao longo do Século XX, polarizaram grandes debates e se contrapõem,
enquanto a visão marxista entende Democracia como centro de um pro-
cesso de exercício da soberania por parte dos cidadãos, adquirida pela
autodeterminação no mundo do trabalho, a concepção liberal estabelece
limites e regula a ação do indivíduo em defesa intransigente da proprieda-
de. Esse debate foi perfeitamente visível nos projetos da disputa travada
entre Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva, nas eleições de 2014
(FERREIRA, 2015).
As concepções não hegemônicas de democracia negam as concep-
ções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras de organização
da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana, entretanto, sem rom-
per com as concepções hegemônicas, pois mantêm a ideia de democracia
associada ao aperfeiçoamento da convivência humana (SANTOS, 2002).
Nessa concepção, é garantido o direito ao voto, mas a representação polí-
tica passa a ser questionada.
A polarização entre esses dois debates remete à discussão mais am-
pla sobre democracia representativa e democracia participativa, terceira
concepção apresentada por Santos (2002). Para esse autor, essas questões
se colocam de modo mais agudo naqueles países nos quais existe maior
diversidade étnica; (vejam o exemplo do Brasil e grande parte dos países
africanos) e, entre aqueles grupos que têm maior dificuldade para ter seus
direitos reconhecidos, caso que se aplica às mulheres, aos/às negros/as,
aos/às indígenas.
Na leitura de Norberto Bobbio, democracia representativa e de-
mocracia participativa não são dois sistemas alternativos, senão podem se
integrar reciprocamente. Para o autor podem ser interligados como duas
formas de democracia necessárias, mas não são consideradas suficientes
em si mesmas (BOBBIO, 2000). Na democracia participativa, os cidadãos
debatem e votam diretamente sobre as principais questões de seu interes-
206
se, sem a necessidade de haver intermediários. Embora seja difícil ajuizá-la
no contexto de um País continental como o Brasil, porém, é possível pen-
sá-la e efetivá-la, através de instâncias comunitárias que contribua para que
a tomadas de decisão passem a ser mais coletivizadas.
A participação dos cidadãos na vida política é, para Bobbio, as-
sim como para Boaventura Santos, extremamente salutar e necessária para
corrigir os vícios da representação que tende a concentrar o poder em
uma elite econômica, política e social. Ela deve se desenvolver em duas
direções: para a democratização do Estado, mas também, para a democra-
tização da sociedade.
Ao buscar novas interpretações e ampliação do sentido de demo-
cracia, é importante considerar que a democracia será sempre um pro-
jeto em construção, que passa por um processo de redefinição do seu
significado cultural. Nessa redefinição é que se questiona a democracia
representativa, uma vez que grande parte da sociedade não se sente repre-
sentada pelos seus dirigentes. As mulheres se constituem menos de 10%
das representadas na atual conjuntura política brasileira; e os negros são
apenas 9%. Por essa razão, segundo Ferreira (2015, p. 235) “novas formas
de pensar a democracia estão sendo reinventadas e novos projetos estão
em debate neste momento, entre os quais o da Reforma Política, que mo-
difica a forma de acesso à política, põe fim ao financiamento privado de
campanha” e abre a possibilidade de construir a igualdade de gênero na
política no Brasil.
Ao pensar a democracia no atual contexto do Estado brasileiro,
há de se reconhecer os desafios que estão postos a essa sociedade que
se intitula democrática, tendo em vista que os indivíduos ainda são trata-
dos de forma desigual, em termos de classe social, de gênero, geração, de
orientação sexual, de raça e etnia. As desigualdades refletidas nos indica-
dores sociais demonstram que alguns têm acesso; e outros não, aos bens e
serviços: cultura, lazer, educação de qualidade, saúde e moradia. Enquanto
uns conseguem exercer seus direitos políticos como cidadãos e cidadãs;
outros, embora tenham projetos e desejo de participar, não conseguem,
207
dada as estruturas políticas conservadoras, pouco afeitas à presença de
segmentos que, ao longo da construção das sociedades, foram excluídos –
o que se aplica às mulheres e aos negros: na eleição realizada no Brasil em
2014, foram eleitos apenas 9,7 % de mulheres para o Congresso Nacional
e apenas 9% de negros; nas eleições de 2018, o número de mulheres eleitas
para a Câmara Federal foi de 15%. Esses dados denotam a contradição da
democracia liberal em voga no País.
Esses fatos e evidências nos levam a questionar a democracia repre-
sentativa e pensar uma forma de democracia, que possa garantir inclusão e
alterar as relações racistas e patriarcais da política brasileira.

POR UMA DEMOCRACIA PLURAL: uma perspectiva apontada


pelos movimentos feministas

Os debates feministas, que se instauraram no Brasil pós-impeachment


de Dilma Rousseff, reacenderam as discussões sobre as várias correntes
dos movimentos feministas, ficando claro que não há unanimidade entre
os vários movimentos que se dividem, mas, no nosso entendimento, não
se digladiam, buscam respostas e tentam se aliar naquilo que são pontos
comuns: a opressão das mulheres, a violência de gênero, a sub-representa-
ção, a legalização do aborto.
É certo, que não há consensos em torno de qual modelo de de-
mocracia que se quer construir. Aqui, apresentamos uma reflexão sobre a
possibilidade de pensar a democracia, mas em uma perspectiva mais plura-
lista. Para tanto, buscamos inspiração no pensamento de Chantal Mouffe
e Joan Scott, sem perder de vista as concepções de Carole Pateman, que
embora receba críticas nas suas concepções, a partir do que escreveu em
seu livro, O Contrato Sexual; entretanto, as afirmações de Paterman não
podem ser desconsideradas, quando se busca construir um debate que
permita contemplar os interesses das mulheres, a partir delas mesmas.
A discussão apresentada por Chantal Mouffe sobre democracia ra-
dical em uma perspectiva feminista é um tema ainda pouco aceito, refleti-
do e teorizado na Ciência Política, da mesma forma como tem sido pouco
208
digerido as críticas que Pateman (1993, p. 17) faz no seu livro O Contrato
Sexual, no qual assevera que “o patriarcado não parece ser relevante para
o mundo público. Ao contrário, o direito patriarcal se propaga por toda
sociedade civil”, razão porque a necessidade de discutir e debater den-
tro do contexto da sociedade capitalista e liberal é necessário e urgente,
se considerarmos que essa sociedade negou as mulheres, não apenas o
direito á racionalidade; mas o direito à existência. Em se tratando Joan
Scott, embora seus estudos sobre gênero sejam hoje referência para as
Ciências Humanas e Sociais, todavia, o debate que a autora nos traz sobre
a dicotomia entre igualdade e diferença, permite compreender o quanto
esse debate polarizou o movimento feminista. A autora sugere, que esta
oposição “não pode estruturar as decisões da política feminista” (SCOTT,
1999, p. 217), mas é necessário entender, como essa dicotomia interfere
na compreensão da mulher e nas suas individualidades no contexto da
sociedade patriarcal em que vivemos.
Mouffe (1999) parte do princípio, que para pensar uma democracia
radical e plural é necessário romper com a visão essencialista que vê a
mulher como natureza, emoção, mãe. Embora não se considere antiessen-
cialista, a autora considera que esse tipo de visão “interfere na construção
de uma alternativa democrática cujo objetivo seja a articulação de distintas
lutas ligadas a diferentes formas de opressão” (MOUFFE, 1999, p. 30).
Desse modo, considera que é importante que as feministas comprometi-
das com um novo modelo de política, democrática, radical e plural des-
construam as identidades essenciais sob pena de sacrificar a proposta de
construção desse modelo proposto.
As críticas de Chantal Mouffe ao pensamento de Carole Pateman
são importantes para ampliar nossos olhares, acerca do debate sobre pa-
triarcado e compreender os limites da cidadania das mulheres. Porém, é
importante ressaltar, que Pateman considera que a cidadania formal em
que vivemos foi obtida dentro da estrutura patriarcal, que não considerou
e nem valorizou as tarefas, atividades e qualidades das mulheres. Parte do
princípio também, que as mulheres não nasceram livres, e assim, não têm
209
liberdade natural, isso implica em não aceitar a concepção patriarcal de
cidadania na qual as mulheres são parecidas com os homens. Os argumen-
tos defendidos por Pateman abrem uma reflexão importante para pensar-
mos os lugares que foram determinados às mulheres que a enclausuram
nos espaços inferiorizados, espaços estes, ainda hoje, poupo partilhados
pelos homens.
A solução proposta por Pateman (1993) é a elaboração de uma con-
cepção “sexualmente diferenciada” de cidadania que reconheça as mu-
lheres em suas singularidades e, que inclua as mulheres como mulheres
em um contexto de igualdade e cidadania ativa. Para a referida autora, a
dominação patriarcal que tem se revelado no final do Século XX, difere de
outras formas de dominação, ela vê com muito mais clareza, a relação de
poder do homem sobre a mulher e sua exclusão política. Por isso, Pateman
(1993, p. 19) propõe que: “se tire o contrato sexual do esquecimento, a re-
lação entre patriarcado e contrato tem sido pouco explorada, mesmo pelas
feministas, embora na sociedade civil moderna, instituições extremamente
importantes sejam criadas e mantidas através de contratos”.
Na sua argumentação, Pateman (1993) enfatiza que o patriarcado
não pode ser compreendido como um problema que se situa no âmbito
privado das relações familiares, que dizem respeito ao homem e a mulher
ou ao casal cujos conflitos são passíveis de ser resolvidos, através de leis e
políticas públicas, a exemplo da Lei Maria da Penha, no Brasil. A existên-
cias de inúmeras leis e permanência da exclusão nas instâncias de poder
demonstram que a situação das mulheres tem se mantido inalterada, e, em
alguns grupos sociais, se agudiza. O exemplo mais visível desta assertiva é
o aumento de feminicídio no Brasil, nos últimos dois anos.
O patriarcado se modernizou e não está restrito e relativo, primor-
dialmente, à sujeição das mulheres no âmbito familiar, vai além desse âm-
bito. A dimensão mais dramática do direito patriarcal apontado pela auto-
ra é o fato de a sociedade ser conivente com a opressão dos homens sobre
as mulheres, quando transformam os corpos das mulheres em mercadoria,
210 criando uma importante indústria: a da prostituição (PATEMAN, 1993).
Ao criticar o pensamento de Pateman, que considera essencialis-
ta, Mouffe (1999) enfatiza que a autora não consegue superar a distinção
entre o público e o privado e, que não consegue desconstruir a oposição
entre homens e mulheres. Sua forma de pensar se reduz a uma visão
materialista e uma “concepção inadequada do que deveria ser uma política
democrática inspirada no feminismo” (MOUFFE, 1999, p. 39). A partir
dessa crítica, a autora propõe:

Quero argumentar que as limitações das concepção moderna de


cidadania não vão ser superadas se em sua definição se tornar poli-
ticamente relevante a diferença sexual, mas ao construir uma nova
concepção de cidadania na qual a diferença sexual, se torne algo
realmente não pertinente... [...] Não há razão para que a diferen-
ça sexual tenha que ser pertinente em todas as relações sociais.
(MOUFFE, 1999, p. 39).
Ao justificar suas críticas, Mouffe (1999) esclarece que não está dis-
cordando totalmente do desaparecimento da diferença sexual como dis-
tinção permanente; nem tampouco, está afirmando que a igualdade entre
homens e mulheres exija relações sociais neutras. Concorda que tratar ho-
mens e mulheres igualmente implica tratá-los diferencialmente. Sua tese é
que “no domínio da esfera política e no que está relacionado com a cida-
dania, a diferença sexual não deve ser uma distinção pertinente” (MOU-
FFE, 1999, p. 40). A proposta da autora para uma democracia radical e
plural é pensada a partir do entendimento de que a cidadania é uma forma

[...] de identidade política que consiste na identificação como prin-


cípios político da democracia moderna e pluralista, ou seja, na afir-
mação da liberdade e da igualdade para todos. [...] A cidadania não
é só uma identidade entre outras, como no liberalismo, nem é a
identidade dominante que anula a todas as outras, como no repu-
blicanismos cívico. É ao invés, um princípio articulador que afeta
as diferentes posições de sujeito do agente social, ao mesmo tempo
que permite uma pluralidade de lealdades específicas e o respeito
da liberdade individual. 211

O debate sobre a visão das duas autoras, não se esgota neste texto.
Considero importante, nesta discussão, recuperar as reflexões de Pateman,
a fim de que possamos ampliar nossos olhares sobre o momento brasilei-
ro, expresso pela vitória eleitoral do candidato Jair Bolsonaro. O papel da
mulher no contexto eleitoral recente, no Brasil, foi minimizado, desquali-
ficado. O discurso conservador e misógino veiculado pela campanha do
presidente eleito demonstrou que é importante retomar ao discurso de
Pateman, rever o debate sobre o contrato sexual é refletir sobre o “lugar da
mulher” determinado pelo futuro Presidente do Brasil: um lugar menor,
invisível, um lugar de procriadora, do lar.
CONCLUSÃO

Nos últimos trinta anos, sob o império da Constituição Federal de


1988, o Brasil deu alguns passos no sentido de incorporar as mulheres
brancas e negras na cidadania, Foi um avanço cultural e civilizatório, em-
bora ainda diverso e desigual. Porque o liberalismo no Brasil não se efe-
tivou integralmente, ou seja, as conquistas do Estado liberal que agora
em diversas nações é uma realidade, no Brasil, em que pese suas várias
tentativas de aproximação – Segundo Governo Getúlio Vargas, João Gou-
lart, Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff - foram ceifadas pelos
liberais, através de golpes de Estado.
Os “liberais” brasileiros, nunca aceitaram dividir privilégios e cons-
truíram mecanismos de acumulação através do controle dos espaços de
poder, garantindo assim, um estado a serviço de seus interesses. Pensar
uma alternativa ao modelo liberal é construir um projeto de democra-
cia inclusiva, que para os movimentos feministas, plurais do Século XXI,
não mantenha privilégios e exclusões de segmentos sociais, tais como: as
212
mulheres e a população negra, mas uma democracia radical que construa
formas inclusivas de participação que possam alterar as regras, até então,
impostas pela classe dirigente liberal, ou seja, pensar um projeto que inclua
todos e todas que nas palavras das feministas do grupo # Partida, que a
democracia seja, a maior garantia que uma sociedade pode ter para uma
vida justa e politicamente feliz. A participação das mulheres, em devir fe-
minista, é o que precisamos nesse momento.

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215
Capítulo 10

A MARCHA DAS MARGARIDAS:


das lutas pela democracia ao
desmonte das políticas públicas com o golpe
de 2016 no Brasil

Berenice Gomes da Silva

Introdução

O processo democrático no Brasil tem como marco as intensas
mobilizações ocorridas nos anos 1980 que culminaram com a amplia-
ção dos direitos civis, políticos e sociais assegurados na Constituição de
216 1988. Foi uma década em que surgiram os movimentos sociais, populares
e sindical - rurais e urbanos-, com destaque para o Movimento Sem Terra
(MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a criação do Partido
dos Trabalhadores (PT). Este período foi antecipado pela transição de-
mocrática de um regime autoritário de um golpe que caracteriza diversos
períodos da história política do Brasil, como ocorreu com o impeachment
da Presidenta Dilma Roussef, em 2016, passando pelo governo Temer e a
eleição do Bolsonaro à presidência do país.
O debate sobre a democracia assumiu lugar de destaque também
na década de 1980 e tem sido recorrente nos dias de hoje no contexto de
crise do capitalismo mundial, marcado por golpes na América Latina e no
Brasil, por uma crise política diante de uma conjuntura de crescimento do
conservadorismo nos últimos anos. Compreendemos que a democracia
brasileira, assim como nos demais países da América Latina, convive com
um autoritarismo cuja expressão maior é o medo, a violência e a repres-
são, marcas de ditaduras militares vivenciadas nesses países. Isto explica a
existência de um regime democrático caracterizado, sobretudo, pelas re-
gras eleitorais e nas instituições que se baseiam em tais princípios, mas
ao mesmo tempo, convivem com a violência que se traduz entre outras
formas, no assassinatos de trabalhadores (as) do campo, defensores (as)
dos direitos humanos, como foi o caso de Margarida Alves, em 1983, de
Chico Mendes, em 1988, Dorothy Stang, em 2005, Marielle Franco, em
2018 e muitos outros, além da população negra que vive nas periferias das
cidades, especialmente, jovens e mulheres.
Por estas e outras questões é que buscamos em Silva (2015, p.398),
assim como em outros (as) autores (as), caracterizar o Estado brasileiro,
posto que: “A marca do Estado brasileiro continua sendo a repressão aos
movimentos sociais e/ou seletivamente aos membros das classes popu-
lares. Conforme ocorreu com as Ligas Camponesas em 1960, duramente
reprimidas por reivindicar reforma agrária”. Ao analisar a relação entre a
democracia e o papel do Estado, a criminalização dos movimentos sociais
no Brasil, é uma de suas marcas e para a autora, assim como na década de
1960, as lutas sociais dirigidas por movimentos, como o MST, o MTST,
217
o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), assim como o Movi-
mento Passe Livre, de 2013, recebem do Estado o mesmo tratamento au-
toritário, sob o argumento de que tais “mobilizações e lutas sociais contra
as políticas neoliberais são identificadas como ameaça ao Estado Demo-
crático de Direito” (SILVA, 2015, p. 398).
As organizações dos(as) trabalhadores(as) rurais surgem em con-
textos contraditórios e conflituosos de luta pelo acesso à terra materiali-
zada na bandeira da reforma agrária. A criação da CONTAG, em 1963 se
deu em meio a um processo de controle das organizações dos trabalha-
dores, por parte do Estado, via Ministério do Trabalho. Neste período, a
criação da previdência social, um dos benefícios incluídos no Estatuto do
Trabalhador Rural, foi importante para dar reconhecimento aos sindicatos
como entidade representativa dos (as) trabalhadores (as). O Estatuto do
Trabalhador Rural foi uma das respostas do Governo diante das mobiliza-
ções dos (as) camponeses na luta pela reforma agrária, nos anos 1960. Para
Deere (2004, p.178): “Nesse período o movimento operário e camponês
foram ganhando força, o último organizando-se contra as injustiças do
sistema de posse de terra tradicional, a fazenda ou a grande propriedade
(...)”.
Ainda na década de 1960 e meados dos anos 1970 o acirramento
das contradições do capitalismo dependente e monopolista e o endure-
cimento do regime autoritário resultaram em novas formas de interven-
ção do Estado. A violência no campo e a expulsão dos (as) trabalhadores
(as) rurais cresciam e os conflitos com os latifundiários aumentavam em
meio à inabilidade do Estado nos governos militares que não conseguiram
avançar na implementação do Estatuto da Terra que previa a alteração da
estrutura fundiária. A aprovação do Estatuto da Terra ocorreu diante das
pressões dos (as) trabalhadores (as) pela reforma agrária e também devido
à pressão do Governo dos Estados Unidos que patrocinava a reforma
agrária, por meio da Aliança para o Progresso, que obrigou o Governo
Castelo Branco a adotar uma reforma agrária branda, em 1964 (DEERE,
2004). Apesar dos limites conjunturais impostos, o Estatuto da Terra res-
218
paldou algumas políticas significativas para os (as) trabalhadores (as), pela
via judicial, embora, boa parte do judiciário, assim como do legislativo,
tinha compromissos com os interesses dos proprietários (SILVA, 2017).
O Estatuto da Terra, aprovado no Governo João Goulart respal-
dou, além dos direitos trabalhistas, o direito à organização sindical que era
tutelada pelo Estado. Após o período de intervenção militar, os movimen-
tos sociais começaram a se reestruturar, a se reorganizar e o sindicalismo
rural se expandiu, por meio dos STRs (Sindicatos dos Trabalhadores Ru-
rais) que exerceram primeiramente papel assistencialista, sendo o principal
deles, a assistência à saúde. A abertura democrática na década de 1980 e
o fortalecimento do sindicalismo urbano, o chamado novo sindicalismo
marcado pelas greves do ABC paulista, favoreceu a aliança entre os (as)
trabalhadores (as) rurais e urbanos e este período foi antecedido pela re-
alização do III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em 1979.
Como o governo militar representava a classe proprietária, não houve
avanço na década de 1970, em relação à distribuição de terras, pelo con-
trário, houve a adoção de políticas que favoreceram a modernização da
agricultura que representou o investimento em crédito subsidiado para as
grandes propriedades que investiram no agronegócio nas grandes fazen-
das de gado e madeira.

A política de modernização também provocou uma mudança nas


relações de trabalho, com a força de trabalho assalariada tem-
porária. A prioridade do governo militar, em termos de resolver
os problemas dos conflitos rurais, estava focada na colonização
espontânea e planejada da fronteira amazônica, a qual coincidiu,
em propósitos, com o desenvolvimento da doutrina de segurança
nacional brasileira. Para os milhões de expropriados pela política
de modernização, a principal opção era a migração para as áreas
urbanas e para as grandes cidades brasileiras, as quais se expandiam
em tamanho (DEERE, 2004, p.179).

Também foi na década de 1980 que a nova categoria social dos(as)


trabalhadores(as) sem terra surge em decorrência do processo de moder-
219
nização da agricultura e da intensificação do caráter empresarial das gran-
des propriedades, representado pelo agronegócio, apoiado com recursos
públicos (MEDEIROS, 1989). Neste contexto de intensas mobilizações,
conflitos e assassinatos em meio a um clima de intensa violência no campo
em decorrência do processo de luta pela terra surgem as organizações de
mulheres trabalhadoras rurais com forte presença no Oeste Catarinen-
se e na região Nordeste, mais especificamente nos Estados da Paraíba e
Pernambuco, onde temos como protagonistas Margarida Alves, Elizabete
Teixeira, conforme descreve SILVA (2017). Outros movimentos surgem
neste período, como podemos ver nos trabalhos de Cordeiro (2004), Bor-
dalo (2011; 2017), Aguiar (2015).
Neste processo histórico e político de organização das mulheres
trabalhadoras rurais alguns agentes merecem destaque: a igreja católica,
por meio das CEBs e as pastorais, o movimento sindical do “novo sin-
dicalismo” e das “oposições sindicais” e a contribuição do movimento
feminista. Para Aguiar (2015) estes são aspectos importantes que ajudam a
compreender o processo que levou ao surgimento da Marcha das Marga-
ridas, em 2000, e os elementos que a constituem, assim como a sua forma
de organização que envolve a articulação de movimentos e organizações
com trajetórias e concepções distintas.
Deste modo, o presente artigo tem como objetivo ressaltar o prota-
gonismo das mulheres na luta pela terra, no contexto das lutas sociais no
campo, bem como revelar as contradições da democracia brasileira nota-
damente o caráter excludente, opressor e patriarcal do Estado brasileiro,
tendo como referência de análise a Marcha das Margaridas.

CONTRADIÇÕES DA DEMOCRACIA NO BRASIL

O debate sobre a democracia além da complexidade que envolve os


aspectos históricos e teóricos implica diretamente na relação com os direi-
tos civis, políticos, culturais, sociais e econômicos, e o ponto de partida é
sabermos de qual democracia estamos nos referindo.
220 Para Silva (2003), a análise sobre as formas de participação dos mo-
vimentos sociais no Brasil, nos anos 1980 e 1990, possibilita percebemos
que as razões que contribuíram para a propagação dos chamados “no-
vos movimentos sociais”, principalmente, os movimentos populares, são
oriundas do entrelaçamento dos fatores políticos, culturais e econômicos.
Silva (2003) acrescenta ainda que um dos limites no campo teórico para
analisar a democracia no Brasil é nomeá-la e perceber a relação que ocorre
entre o Estado e a sociedade civil, pois ela se confunde com o próprio
Estado em seu modelo democrático,

A começar pela dificuldade de adjetivos, como “democracia polí-


tica”, “democracia econômica” e “democracia participativa”. Em
decorrência, qualquer reflexão que sobre participação, como pano
de fundo da democracia, exige que se faça um percurso pelas prin-
cipais teorias da democracia burguesa no século 20, nomeadamen-
te os modelos de democracia elitista e participativa (SILVA, 2003,
p.13).
A autora ressalta ainda que antes de discutirmos os modelos de
democracia, é necessário retratar o seu surgimento e as contradições que
movem sua interpretação influenciada na origem histórica em Atenas, mas
mesmo este sistema político recebe duras críticas das classes dominantes.
Para estas classes, o maior receio era qual a dimensão política que as clas-
ses populares iriam tomar. “As classes dominantes passaram a aceitar a
democracia somente quando perceberam que ela poderia ser forte aliada
na dominação de classe. Portanto, os diversos modelos têm um conteúdo
classista” (SILVA, 2003, p.13). Este conteúdo se expressa nos limites e na
forma de controle da participação das classes populares.
Sobre democracia no Brasil, Luís Felipe Miguel (2018, p. 7), ressalta
que “Se a democracia é entendida como tendo o objetivo de ampliar a
capacidade de influência popular sobre as decisões públicas, então o pro-
cesso em curso no Brasil pode ser definido como desdemocratização”.
Para Silva (2013), uma das características da democracia brasileira são os
dilemas que ocorrem devido a influência de dois projetos distintos: o pri-
meiro é o seu processo de alargamento em que ocorre a criação de espaços
públicos cujo marco formal foi a Constituição de 1988 e a instituição do 221
princípio da participação da sociedade civil. O segundo é o projeto neoli-
beral onde predomina as regras do mercado na economia e a restrição de
direitos.
O golpe que se instaurou no Brasil em 2016, que culminou com o
afastamento da Presidenta Dilma, tem revelado as suas ramificações e os
interesses aos quais esse processo está vinculado. Por tratar-se de um pro-
cesso em curso, cuja análise requer uma profundidade e complexidade que
exigiria um tempo maior, neste tópico, apresentaremos algumas questões
relevantes neste período que “justificam” e ajudam a compreender este
processo, a partir das características deste golpe. Este golpe causou es-
panto em muitos analistas da política brasileira que acreditavam que a de-
mocracia inaugurada com a Constituição de 1988 estava consolidada, mas
o que vimos foi que as instituições que deveriam protegê-la, não apenas
não o fizeram, como contribuíram para a sua desestabilização (MIGUEL,
2018). Para este autor,
O ano de 2016 foi marcado no Brasil por um grave revés quanto
à possibilidade de promover uma transformação social em sentido
igualitário. A destruição da Presidente da República que chegara ao
posto pelo voto popular, por meio de um impeachment sem res-
paldo na Constituição vigente, mostrou que a democracia eleitoral
passava à condição de uma ordem tutelada por grupos poderosos.
O governo que emergiu do golpe dedicou-se a implementar, em
ritmo acelerado, políticas de restrição de direitos, recusando qual-
quer debate público sobre elas e desprezando a evidente insatisfa-
ção da maioria da população (MIGUEL, 2018, p. 7).

O golpe de 2016 possui dimensões jurídicas, políticas, econômi-


cas, midiáticas e envolve interesses externos e internos para atender aos
interesses do grande capital representado pelo poder dos EUA. Dentre
as instituições que colaboraram com este processo temos a grande mídia
empresarial, setores majoritários do judiciário, empresários, sobretudo, do
chamado rentismo e do agronegócio.
No entanto, se considerarmos a eleição do atual presidente como
222 parte do golpe, trata-se de um período marcado pela resistência dos mo-
vimentos sociais e populares, de partidos e lideranças de esquerda, de no-
vos movimentos, a exemplo das Frentes compostas por ativistas incluindo
intelectuais, advogados, professores (as), feministas, juventude e artistas.
As mobilizações e denúncias contra o desmonte do Estado que
provocam a interrupção das políticas públicas e inexistência de espaços
de participação política e controle social, tem sido uma luta contínua dos
movimentos sociais e populares, incluindo os movimentos sociais do cam-
po e o movimento feminista onde se inserem as mulheres trabalhadoras
rurais. Tais mobilizações integram as lutas anticapitalistas globais travadas
pelos movimentos sociais, com recorte para o espaço rural, onde trabalha-
dores e trabalhadoras travam suas lutas no contexto da realidade brasileira
marcada por relações patriarcais e capitalista ultraliberal que passa a se
instalar no país, a partir de 2016.
A MARCHA DAS MARGARIDAS: nossos passos vêm de longe

Como ressaltamos anteriormente, o surgimento dos movimentos


de mulheres trabalhadoras rurais localiza-se no contexto da abertura de-
mocrática, assim como no período de fortalecimento do movimento fe-
minista no Brasil, ambos na década de 1980. O cenário das áreas rurais era
marcado pela presença das CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base) e gru-
pos organizados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) que apoiavam as
organizações de trabalhadores (as), incluindo as mulheres, desde os anos
1970 com ações formativas e organizativas. Estas experiências somadas à
necessidade de participação política em função Da própria conjuntura do
país resultaram na mobilização e organização das mulheres, a partir da luta
pela terra e pelo reconhecimento como trabalhadora rural estendendo-se
aos direitos previdenciários, assistência à saúde, documentação e, conse-
quentemente, o conjunto de políticas públicas, na década de 1990 que
foram fortalecidas com a Marcha das Margaridas, a partir de 2000.

Contexto histórico das lutas sociais do campo e o surgimento 223


das organizações de mulheres

Desde a década de 1950, com a criação das Ligas Camponesas e,


posteriormente, dos sindicatos rurais, os(as) trabalhadores(as), com apoio
de organizações da igreja católica, de partidos progressistas, como o Par-
tido Comunista Brasileiro (PCB), o Movimento de Educação de Base
(MEB), a Ação Popular (AP) denunciaram a crescente violência no campo
e colocaram em xeque o problema da propriedade da terra e a necessidade
da reforma agrária, obrigando assim o Governo Federal a dar respostas à
questão e resultando na institucionalização de diversas políticas, conforme
descreve Leonildes Medeiros em sua obra sobre a história dos movimen-
tos sociais do campo, de 1989.
O período militar no Brasil explicitou o problema da ausência de
políticas voltadas para o campo, ao mesmo tempo em que a violência
exigia uma resposta do Estado, resultando na criação do Estatuto do Tra-
balhador Rural, em 1963, em diversas políticas no período de 1960. A im-
plementação destas medidas encontrou barreiras no Congresso Nacional
devido à correlação de forças com forte representação dos latifundiários
(MEDEIROS, 1989). Dentre as políticas implementadas nesse período
encontra-se a regulamentação da sindicalização rural decorrente da apro-
vação do Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo-se aos direitos con-
quistados pelos(as) trabalhadores(as) urbanos, sendo o principal deles, a
previdência (salário mínimo, férias remuneradas, carteira de trabalho, li-
cença maternidade). Acrescenta-se ainda a criação do órgão responsável
pela política agrária, a Superintendência de Política de Reforma Agrária
– SUPRA.
Entretanto, como ressalta Medeiros (1989), o direito à previdência
só foi efetivado quatro anos depois e restrito à assistência médico-social,
por meio do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRU-
RAL), contribuindo assim para o papel dos sindicatos como assistencialis-
tas em detrimento da representação política. A difícil situação de pobre-
za rural levava a maioria dos(as) agricultores(as) a buscar no sindicato o
224
atendimento de suas necessidades imediatas de assistência, principalmente
provocadas pela ausência do Estado.
No período da Nova República dois acontecimentos marcaram as
lutas do campo: o IV Congresso dos Trabalhadores Rurais da CONTAG,
em 1984 e o I Congresso do Movimento Sem Terra, em 1985. As princi-
pais questões apresentadas como propostas pela CONTAG foram: a lei de
greves, a ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários, a revisão da
política agrícola do Governo Federal, o apoio efetivo à pequena produção
e uma política voltada para os (as) atingidos (as) por barragens (MEDEI-
ROS, 1989).
O Congresso dos Sem Terra, cujo lema era “Terra não se ganha, se
conquista” deu o tom do seu posicionamento frente à Nova República. Suas
propostas incluíam a reforma agrária sob o controle dos trabalhadores,
a desapropriação de terras em áreas com até 500 hectares, a distribuição
das terras em poder dos Estados e da União, a expropriação de terras das
multinacionais, a extinção do Estatuto da Terra e a criação de novas leis
com a participação dos(as) trabalhadores(as).
No entanto, a criação de uma legislação e suas normativas resul-
tantes de um processo intenso de lutas sociais e políticas marcadas por
conflitos não apenas do campo, mas por se tratar de diferentes interesses
dos setores envolvidos com a questão da terra e dos direitos trabalhis-
tas, inclusive, teve diversos desdobramentos, como podemos perceber nas
análises de alguns autores(as):

Tanto o Estatuto do Trabalhador Rural quanto o Estatuto da Terra


(...) longe de representarem a imposição unilateral da vontade de
um grupo, refletiram um jogo de conflitos e composições entre os
interesses dos setores sociais envolvidos com a questão da terra ou
dos direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que expressaram as
alterações nas “composições de poder e estilos de populismo” que
desembocaram no golpe militar de 1964. (...) Antes de indicar uma
política, a nova legislação impôs um novo recorte da realidade,
criou categorias normativas para o uso do Estado e da sociedade,
capazes de permitir modalidades, antes impensáveis, de interven-
225
ção do primeiro sobre esta última. (...) Tornou-se uma referência
capaz de permitir a reordenação das relações entre grupos e pro-
piciar a formação de novas identidades. (PALMEIRA e LEITE,
1997: p. 23 apud BORDALO, 2017, p. 33)

Ao surgirem, as organizações de mulheres trabalhadoras rurais tive-


ram como principais reivindicações o direito à sindicalização e à previdên-
cia social. “Durante a metade da década de 1980, nos sindicatos filiados à
CONTAG, assumiu-se que somente uma pessoa por família poderia ser
membro de sindicato, geralmente o homem chefe de família” (DEERE,
2004, p.180). Ademais, as mulheres não eram consideradas como traba-
lhadoras da agricultura, seu trabalho não era remunerado, era considerado
como “ajuda” e não era reconhecido nem mesmo como trabalho tempo-
rário. Além disso, como os sindicatos eram espaços de assistência à saúde,
se as mulheres não eram sindicalizadas, logo elas estavam em desvantagem
nos serviços de assistência e também nos benefícios, como a aposenta-
doria, até mesmo as viúvas recebiam um percentual apenas de 30% da
pensão dos maridos, como retrata Deere (2004).
Durante o 4º Congresso da CONTAG, em 1985 que as questões
de interesse das mulheres foram consideradas relevantes e passaram a ser
debatidas em um fórum nacional do movimento sindical rural. A região
Nordeste e a região Sul são os locais de surgimento das primeiras organi-
zações e mobilização das trabalhadoras rurais. Para Deere (2004, p. 180):
“O ímpeto veio da primeira reunião oficial do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR), de Sertão Central”, em Per-
nambuco e nas reuniões acontecidas em Brejo, na Paraíba no período de
1982 e 1983. Neste momento a questão estava ligada diretamente à rea-
lidade de convivência com a seca que havia se prolongado e foi a partir
da criação de movimentos autônomos de mulheres rurais que o debate
passou a ser sobre a participação das mulheres no movimento sindical,
inclusive com elaboração de propostas que foram encaminhadas ao Con-
gresso da CONTAG (DEERE, 2004).
Ao analisar as relações entre a representação política e a autono-
226
mia do MMC (Movimento de Mulheres Camponesas) de Santa Catarina,
Caroline Bordalo enfatiza, em sua pesquisa de doutoramento, que lhe in-
teressa dar tratamento sociológico à conquista dos direitos pelas mulheres
rurais organizadas em sindicatos e movimentos. “A forma historicamente
assumida – luta pelo direito à sindicalização e pelo reconhecimento como
trabalhadora – é uma dimensão desse processo mais amplo inscrito no co-
tidiano dessas mulheres e na disputa política histórica pela representação
do campesinato” (BORDALO, 2017, p. 27).
As mulheres da região Sul, reuniram-se também desde a década de
1980 e suas reivindicações eram voltadas para a participação na estrutura
do movimento sindical. Deere (2004) ressalta que a primeira reunião anual
de mulheres dirigentes da FETAG – RS (Federação dos Trabalhadores na
Agricultura) ocorreu já em 1981 e o 1º Encontro Estadual foi realizado
em 1985, pela FETAG e CPT, e contou com a participação expressiva
de dez mil mulheres. Não por mera coincidência, foi na região do Oeste
Catarinense que deu origem às mulheres da Via Campesina, a qual o MST
está vinculado internacionalmente. A partir de então, as organizações de
trabalhadores(as) rurais passaram a incorporar não somente as mulheres
em suas direções, como também passaram a debater as suas pautas (DE-
ERE, 2004). Deste modo, as mulheres travaram fortes mobilizações pelo
reconhecimento como trabalhadoras.
Bordalo recorre a outros estudos para ressaltar que uma das “novi-
dades” em relação à representação dos trabalhadores rurais e campesinos
é a presença do Estado, a partir da década de 1960, e ressalta que esta pre-
sença possui muitos significados. “A partir desse momento passou a existir
uma legislação destinada a uma categoria profissional que abarcava uma
diversidade de relações sociais do meio rural” (BORDALO, 2017, p. 32).
Deere (2004) considera que um dos fatores que explicam a abertura
da CONTAG para a entrada de mulheres nas direções foi influenciado
pelo crescimento do “novo sindicalismo” e também a disputa com a re-
cém criada CUT. O sindicalismo tradicional passou a realizar eleições esta-
duais e municipais e a considerar a participação das mulheres. Ao realizar o
227
II Congresso Nacional, em 1986, a CUT criou a Comissão Nacional sobre
a Questão da Mulher Trabalhadora, responsável pelas questões relativas
às mulheres rurais e urbanas. Neste mesmo ano, 1986, foi realizado em
São Paulo, o 1º Encontro Nacional de Mulheres Rurais autônomas, com
o poio da própria CUT e do MST. O objetivo era criar uma organização
nacional que posteriormente capitalizada por outros movimentos, como o
MMTR – NE e uma articulação regional no Sul, em 1988.
Portanto, assim como o movimento feminista urbano, foi na déca-
da de 1980 que surgiram e se fortaleceram diversos movimentos de mu-
lheres rurais, seja no sindicalismo rural, nos movimentos sociais do cam-
po, como o MST ou movimentos autônomos, como é o caso do MMTR
– NE. Além da luta pelo reconhecimento de direitos, a pauta central pas-
sou a ser a inclusão das mulheres na reforma agrária. Estas mobilizações
foram importantes para articular os direitos das mulheres à terra e à pre-
vidência na Constituição de 1988 que culminou com a formulação de um
artigo constitucional, assim como outros artigos que tratavam dos direitos
da mulher resultaram de uma emenda popular à Constituição que contou
com uma campanha de assinaturas. Esta iniciativa foi articulada por ativis-
tas e feministas acadêmicas vinculadas ao CNDM (Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher) e se somou aos esforços das mulheres lideranças dos
sindicatos, bem como os movimentos de mulheres rurais que eram cres-
centes. A luta pelo direito à previdência social foi uma questão que uniu
a maioria das mulheres rurais de um modo geral e isto acabou, de certa
forma, enfraquecendo a proposta do direito da mulher à terra, conforme
a análise de DEERE (2004).
No final dos anos 1980 e início da década de 1990, a grande mobi-
lização das mulheres trabalhadoras rurais foi a “Campanha de Documen-
tação da Trabalhadora Rural”, realizada pelos diversos sindicatos rurais
(STRs) espalhados pelo país. A inexistência de documentos limitava as
mulheres rurais ao direito básico de cidadania e ao acesso a políticas públi-
cas e programas, como o crédito rural e a assistência técnica, evidenciando
assim, que elas possuem mais barreiras se comparadas às trabalhadoras
228
urbanas. Somente no início dos anos 2000, passaram a ter a garantia de
acesso à terra como titular do lote no assentamento e como beneficiária
das políticas e programas de desenvolvimento rural.

Os movimentos de mulheres rurais ou camponesas se inscrevem


numa longa trajetória de luta por direitos e num campo específico
de disputa política marcada pela sistemática tentativa de tutela do
campesinato, sempre tomado como ator secundário. Tais direitos
referem-se à luta pela legitimidade de sua representação política e
protagonismo, ao seu reconhecimento como trabalhadora e à sua
luta por igualdade. Logo, a ação política dessas mulheres é marca-
da por estes elementos sendo impossível apartá-los de sua análise.
Evidentemente, estes não são os únicos elementos. O que quere-
mos demonstrar é o fato de que a ação política destas mulheres não
deve ser compreendida em conexão direta e simples com as lutas
das mulheres em geral, mas a partir de sua posição inscrita num
processo específico de lutas travadas nas áreas rurais (BORDALO,
2017, p. 30).
Diante do exposto, podemos afirmar que se trata de organizações
de mulheres que se inserem nas lutas sociais do campo que, consequente-
mente resultará na Marcha das Margaridas, uma combinação de movimen-
tos articulados com estratégias de ação para dar maior peso e visibilidade
às reivindicações das mulheres trabalhadoras rurais. Entretanto, as impli-
cações que envolvem as relações políticas, sobretudo de representação e
as análises teóricas, a partir das constatações em sua concretude, merecem
maior aprofundamento que será objeto de outros estudos.

Eis que surgem as Margaridas

O surgimento da Marcha das Margaridas, como um amplo movi-


mento de mobilização nacional das mulheres oriundas do meio rural bra-
sileiro, ocorre em 2000, influenciado pela Marcha Mundial de Mulheres,
realizada em 1999, em Quebec, com o lema Pão e Rosas. Esta Marcha
internacional mobilizou diversos movimentos de mulheres no mundo e na
América Latina. No Maranhão, por exemplo, as ações foram coordenadas
Movimento de Mulheres da Ilha e congregou diversas lideranças em atos 229

públicos de preparação à Marcha Mundial.


A conquista do aumento do salário no Canadá repercutiu nos movi-
mentos de mulheres de vários lugares do mundo resultando na ideia de um
grande encontro. A participação das organizações de mulheres brasileiras
no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 1999, onde se dá a socia-
lização desta e de outras experiências (SILVA, 2008), conforme descreve
Raimunda Masceno, sindicalista, ex-dirigente da CONTAG, foi a Coorde-
nadora da I Marcha das Margaridas.

Conversávamos sobre isso com a Ednalva [ex-Secretária de Mu-


lheres da CUT], que já se foi, e se comentava que a Marcha Pão e
Rosas teve um resultado fantástico no aumento do salário mínimo
de lá e as mulheres aqui se interessaram. As mulheres de Quebec
marcharam em todos os cantos e chegaram a um lugar e aí é que
várias organizações de mulheres no mundo começaram a discutir
que as mulheres deveriam fazer uma marcha no mundo, ao invés
de ser uma em cada país, seria uma marcha de muitos países (Rai-
mundinha, 2008)77.

Naquele momento, já se desenhava o lema da Marcha de 2000: con-


tra a fome, a pobreza e a violência, temas comuns a todos os movimentos.
Naquele momento, as principais questões estavam pautadas na Carta das
Mulheres Brasileiras articulada pela Marcha Mundial de Mulheres, que
continha posição contrária ao neoliberalismo que aprofundava as desigual-
dades no campo e agravava, ainda mais, a situação das trabalhadoras rurais.
Além de denunciar, era necessário apresentar propostas para superar as
desigualdades de gênero no meio rural.
A partir da articulação das mulheres da CUT e da SOF, vários ou-
tros movimentos também aderiram à Marcha das Margaridas. Segundo
Raimundinha (2008), a decisão de aderir à MMM ocorreu a partir de uma
reunião com a Comissão de Mulheres da CONTAG que contou com a re-
presentante da CUT (Ednalva), que falou sobre o que era a Marcha Mun-
dial de Mulheres. As mulheres presentes compraram a ideia da Marcha
230 Mundial e saíram marchando pelo Brasil e pelo mundo a fora, enquanto
a Carta também circulava por diversos países. Em determinado período,
mulheres de todas as partes do mundo se encontrariam em um mesmo
lugar, em Nova York e depois em Washington, onde fica a Sede do Banco
Mundial. Raimundinha representou as mulheres trabalhadoras rurais nes-
se encontro, realizado no período de 12 a 17 de outubro. Esses encontros
ocorreram após a Marcha das Margaridas no Brasil (20 de agosto), pos-
sibilitando que a representante brasileira levasse o material produzido na
primeira MM para compor o Museu da Marcha Mundial.
Além de realizar mobilizações e parcerias, as mulheres trabalha-
doras rurais coletaram assinaturas para a Carta das Mulheres Brasileiras no
momento de constituição da Marcha Mundial de Mulheres78 (MMM). Os
principais pontos desse documento relacionavam-se a terra, ao trabalho, aos

78 www.marchamundialdemulheres.org.br
direitos sociais, a autodeterminação e a soberania. Para as trabalhadoras rurais,
era importante a criação de uma Marcha nacional organizadas pelas tra-
balhadoras rurais, como forma de expressar a sua identidade política e a
sua representação, semelhante às proporções do Grito da Terra79 para o
movimento sindical rural.
Assim, a Marcha das Margaridas surge neste contexto social e po-
lítico influenciado por intensas mobilizações e de protagonismo do mo-
vimento feminista no mundo. Este compreendido como um movimento
político, amplo e composto por uma pluralidade teórica e ideológica que
envolve diversos movimentos rurais e urbanos, sob a Coordenação das
sindicalistas rurais ligadas à CONTAG que passaram a ampliar as mobi-
lizações para as federações estaduais e seus respectivos sindicatos. Além
da representação nacional da Marcha Mundial de Mulheres que compõe
a Marcha das Margaridas desde o primeiro momento, encontram-se a, o
MMTR – Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, o
MIQCB – Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, as
mulheres da CUT, das seringueiras organizadas no Conselho Nacional dos
231
Seringueiros e mais recentemente, ampliou-se para diversos movimentos
feministas urbanos, incluindo os de jovens feministas.
A denominação da Marcha como Marcha das Margaridas80 foi uma
forma de tornar pública a situação de desigualdades na qual vivem as tra-
balhadoras rurais, evidenciar as diversas formas de violências enfrentadas

79 Trata-se do principal evento da agenda do movimento sindical do campo,


reúne milhares de trabalhadores e das trabalhadoras rurais de todo o País em Brasília.
O Grito da Terra Brasil é uma mobilização promovida pela Contag e apoiada pelas Fe-
tags e pelos STRs e possui um caráter reivindicatório. É por essa razão que a manifes-
tação pode ser considerada como uma espécie de data-base dos agricultores familiares,
dos trabalhadores sem-terra e dos assalariados e das assalariadas rurais brasileiras. Cf:
www.contag.org.br.
80 Margaridas Alves, sindicalista e uma das fundadoras do Sindicato de Alagoa
Grande, na Paraíba, mulher que enfrentou os latifundiários e a sua fúria em defesa
dos(as) trabalhadores(as), motivo pelo qual ela foi assassinada por pistoleiros da re-
gião, em 1983. Cf. http://www.fundacaomargaridaalves.org.br/homenagens/.
e a situação de pobreza enfrentada pela maioria das mulheres. A MM é
uma das maiores manifestações populares que ocorrem atualmente no
País e integra a agenda dos movimentos sociais do campo e dos movi-
mentos feministas, a exemplo da última Marcha, realizada em Brasília, em
agosto de 2015.

O nome de Margarida tinha a ver com o seguinte: a Marcha Mun-


dial trazia a história da fome, da pobreza e da violência e Margarida
foi uma mulher violentada, extremamente violentada, morta por
uma violência cruel de um usineiro lá da Paraíba (...). E na épo-
ca fazia 18 anos da morte de margarida e ainda não havia tido o
julgamento do mandante do crime, que é o Zito Buarque, genro
de Reginaldo... fulano de tal, usineiro que determinou ao genro a
execução de Margarida (Raimundinha apud SILVA, 2008, p.89).

Além de Margaridas Alves, Elizabeth Teixeira também é sinônimo


das lutas sociais do campo, sinônimo também de ruptura e quebra de pa-
drões sociais impostos às mulheres do meio rural de sua época. “Seu nome
232 confunde-se com a história das Ligas Camponesas e atrela-se ao nome
de João Pedro Teixeira, líder camponês de quem ficou viúva. Elizabeth e
João Pedro integraram a primeira Liga de Sapé, na Paraíba, próxima a João
Pessoa” (SILVA, 2008, p.67)81 .
O contexto em que surge a Marcha das Margaridas, em 2000, era
de implementação do neoliberalismo no Brasil e na América Latina, onde
a fome, a pobreza e a precarização do trabalho conviviam com a violência
urbana e no campo, que atingia diretamente as mulheres, além da violência
praticada pelos seus companheiros. Os aspectos conjunturais evidencia-
vam a opção do Governo Brasileiro pelo modelo neoliberal representado
por um Estado mínimo que reduzia o seu papel de intervenção no mer-
cado, regulador das ações. A globalização, representada pela expansão do
capitalismo, sob a égide da quebra de fronteiras, principalmente na comu-

81 Cf. https://anovademocracia.com.br/no-10/1134-memorias-da-lu-
ta-camponesa-elizabeth-teixeira.
nicação, representa a dominação do capital sob o comando dos Estados
Unidos, em relação aos países dependentes.
A Marcha das Margaridas é uma estratégia de mobilização e arti-
culação das mulheres que se organiza de quatro em quatro anos, inter-
calados por momentos de avaliação, formação política e construção de
uma pauta. É coordenado pelas mulheres do movimento sindical rural
organizadas nos sindicatos presentes nos municípios, federações estaduais
e a CONTAG, em nível nacional. É composta por diversas organizações
de mulheres, mistas e autônomas, dentre elas a Marcha Mundial de Mu-
lheres, MMTR – NE, MICB, CNS e outras entidades rurais e urbanas. As
diferenças entre os diversos movimentos de mulheres não comprome-
tem a unidade da constituição desta Marcha, construída em torno de uma
pauta apresentada ao Estado brasileiro. A I Marcha pode ser considerada
como um instrumento de enfrentamento ao neoliberalismo que atinge di-
retamente as mulheres, sobretudo, as mulheres pobres, negras, rurais e
periféricas.

Nós começamos juntas a fazer a Marcha Mundial, somos todas


Marcha Mundial, nós não aderimos a ela, somos parte dela. A gen-
te usava a expressão assim grão de arroz para dizer que éramos 233
muito parecidas, porque sofremos as violências que as mulheres
sofrem, a pobreza que as mulheres vivem e a fome que as mulheres
passam, pois muitas vezes o alimento é prioritário para os filhos,
do que as próprias mães se alimentarem (Ilda, 2007)82.

Os aspectos conjunturais brasileiros, no período da primeira Mar-


cha das Margaridas (em 2000), evidenciaram a opção do Governo Brasilei-
ro pelo modelo neoliberal representado por um Estado mínimo, que redu-
zia o seu papel de intervenção no mercado, e este, passa a ser o principal
regulador das ações. A globalização representada pela expansão do Capita-
lismo, sob a égide da quebra de fronteiras, principalmente na comunicação
representa dominação do capital sob o domínio dos Estados Unidos, em
relação aos países dependentes.

82 Entrevista realizada, em 2008, em Brasília por ocasião da pesquisa do Mes-


trado.
O Golpe de 2016 no Brasil e o impacto na vida das mulheres

A resistência das mulheres ao golpe não é novidade na cena políti-


ca brasileira, haja vista que elas exerceram este papel no golpe de 1964 e
em períodos anteriores no processo de democratização da América Lati-
na. A presença das mulheres na luta contra o regime militar se destacou
também na luta pela anistia, na segunda metade do século passado, ao
mesmo tempo em que a violência cometida contra as mulheres passou
a ser considerado um problema público e não mais reduzido ao espaço
privado. Na prática, o combate à violência passou a ser uma reivindicação
ao Estado integrando a agenda feminista inclui saúde, educação, trabalho,
autonomia, direitos sexuais e reprodutivos e uma das principais bandeiras
foi a criação das Delegacias Especiais de atendimento às mulheres vítimas
de violência, implantadas ainda nos anos 1980. Já as demais políticas pas-
saram a ser institucionalizadas no âmbito do Estado, a partir da década de
1990, como é o caso do PAISM – Programa de Apoio Integral à Saúde
da Mulher.
234
As lutas das mulheres são marcadas por avanços e descompassos
na pauta do movimento feminista no Brasil, em meio a um processo de
democratização que somado ao fortalecimento destes movimentos têm
se fortalecido nos últimos trinta anos, conforme analisa Ferreira (2007).
Entretanto, na atualidade, diversas políticas resultantes do processo de
reivindicação das mulheres têm sido alvo de ameaças, como é o caso dos
direitos trabalhistas e previdenciários, além da própria democracia que tem
sido alvo de ataques constantes.
Diversos artigos têm retratado o golpe de 2016 e o impacto na vida
das mulheres, como forma de denúncia à sociedade e como instrumento
de luta que deve ser apropriado pelas próprias mulheres. Em um destes
artigos Eleonora Menecucci, ex-ministra de Políticas para as Mulheres no
Governo Dilma, ressalta que,

O cenário político hoje no Brasil nos remete a uma pergunta cru-


cial e estruturante sobre o protagonismo das mulheres nas diferen-
tes cenas políticas: na vigência de um golpe patriarcal, machista,
sexista, capitalista, fundamentalista, midiático e parlamentar que
retirou da presidência da República a primeira mulher eleita e ree-
leita com mais de 54 milhões de votos, como ficam os direitos con-
quistados e a cidadania das mulheres? (...) Os articuladores desse
golpe em vigência são aparentemente ocultos, mas quem são eles?
São homens brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram
como estruturantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça
e classe (MENICUCCI, 2016, s/p).

Este golpe teve como terreno fértil as manifestações de junho de


2013, quando reivindicações legítimas contra o aumento do transporte
público passaram a ser espaço de disputa da direita e da mídia monopolista
que aproveitou o ensejo para jogar a população contra o Governo Dilma e
assim preparar o cenário para as manifestações da classe média.
Uma das características destacadas neste golpe, apontada pelo
movimento feminista, é o caráter machista e misógino demonstrado em
vários episódios de setores da direita ultraconservadora que utilizam de
forma violenta a imagem da Presidenta Dilma para atacá-la ao tentar des- 235
qualificá-la e destruir a sua imagem. Os ataques contra a presidenta, que se
repetiram em Países como Honduras, Venezuela e também na Nicarágua,
com forte tendência para derrubar um presidente também legitimamente
eleito é parte do avanço das forças de extrema direita que vem se instau-
rando na América Latina que se traduz com ataques ao pensamento de es-
querda anti-hegemônico e aos ideias progressistas, assim como às políticas
sociais, econômicas, educacionais, aos direitos humanos, de gênero, assim
como nos direitos dos LGBT’s.
No caso da educação, o projeto escola Sem Partido (Projeto de Lei
193/2016) tentou inserir uma Emenda na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira - LDB extinguindo as disciplinas Sociologia, Filosofia
e educação Física, o direito de livre pensamento, os debates sobre gêne-
ro no contexto dos currículos escolares escamoteando o interesse central
que é a privatização da educação. Felizmente este projeto foi derrotado
no Congresso Nacional, no final de 2018. A tentativa de cercear o debate
sobre a promoção da igualdade de gênero ocorre desde 2014 durante a
discussão do Plano Nacional de Educação, pois já havia tentativas de cer-
cear a menção à igualdade de gênero neste Plano e nos planos municipais,
em 2015, pressionados pela bancada evangélica no Congresso Nacional
demonstrando que,

A relação entre o patriarcado e o ultraliberalismo econômico se


mostra com muito vigor no atual contexto golpista fascista, alta-
mente explicitado pelo fundamentalismo do congresso nacional
em especial da câmara dos deputados. Faz-se necessário lembrar
com muita ênfase que esse golpe, teve seu início com as manifes-
tações de 2013 quando o capital que rege os envolvidos no golpe
e a FIESP, aproveitaram e financiaram as manifestações de direita,
conhecidas como dos e das “coxinh@s” e com a violência sexual
explicitamente contra nossa Presidenta na abertura da Copa do
Mundo em 2014, quando mandaram a Presidenta “ tomar no cu”.
(MENICUCCI, 2016, s/p).

Nos governos Lula e Dilma foram sancionadas medidas importan-


236
tes, a exemplo da Lei Maria da Penha e sua implementação, o Programa
Mulher viver sem Violência e a Lei que tipifica os crimes de feminicídio,
tornando o estupro em crime hediondo e altera o Código Penal com a
tipificação da morte de mulheres por sua condição de gênero como femi-
nicídio e não homicídio. O combate à violência é um desafio permanente
a ser enfrentado não apenas pelos movimentos de mulheres, mas pelo
conjunto das instituições e a sociedade em geral.
O percentual em 2017 foi de 73% em 2017. Os casos de homicídios
dolosos tiveram aumento de 6,5% em relação a 2016. Foram registrados
4.201 homicídios – 812 feminicídios – ante 4.473, com 946 feminicídios.
Isto significa que cerca de 12 mulheres são assassinadas todos os dias no
Brasil, de acordo com um levantamento feito por um portal de notícias,
em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. No Maranhão, a situação tem se agra-
vado e só em 2017, houve mais de 30 casos de feminicídio, um aumento
que representa 130% em relação aos anos de 2005 a 2015. Esses dados
evidenciam o aumento da violência contra as mulheres. (FERREIRA; AL-
MEIDA; CABRAL, 2018, p.3). A impunidade é apontada como um dos
elementos que contribuem para o crescimento da violência que atinge as
mulheres.
Outro aspecto gritante que requer uma resposta do Estado brasi-
leiro é o assassinato de lideranças políticas, sobretudo, do campo, quilom-
bolas, defensores (as) de direitos humanos, como foi o caso do assassinato
de Marielle Franco, vereadora do PSOL, no Rio de Janeiro, mulher negra,
favelada, lésbica, que se posicionava em defesa dos direitos humanos e era
contrária à intervenção militar no Rio de Janeiro, sua última ação política.
Os movimentos de mulheres têm denunciado o golpe e também os
desmonte das políticas públicas que só agrava ainda mais a situação de po-
breza, violência e compromete a autonomia das mulheres. Em Manifesto
do 8 de março, em 2018, no lançamento da Marcha de 2019, as mulheres
denunciam a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 que congela
os investimentos dos gastos públicos com direitos sociais básicos, incluin-
237
do a educação e a saúde e se posicionam contrárias às reformas trabalhista
e da previdência, sendo a primeira já aprovada e a segunda adiada median-
te forte pressão dos movimentos sociais, ambas atingem diretamente as
mulheres:

(...) Quanto às mudanças que afetam o acesso das agricultoras


familiares à previdência, está a possibilidade da fixação de uma
contribuição individual, para além dos descontos previdenciários
já aplicados à produção agrícola familiar. Uma vez confirmada,
esta medida inviabilizará o acesso das agricultoras familiares a este
direito, dadas as dificuldades em arcar com os custos adicionais
gerados pela contrarreforma. (MARCHA DAS MARGARIDAS,
2018).

Outra medida que atinge diretamente as lutas do movimento fe-


minista no Brasil foi a PEC 181 – Projeto de Emenda Constitucional que
proíbe o aborto83 nos casos de estupro e risco de morte para a gestante,
justamente em um país onde, uma mulher morre a cada dois dias, segundo
a Organização Mundial da Saúde (OMS), por complicações decorrentes
do aborto clandestino, e onde cerca de um milhão de procedimentos – a
maioria inseguros – são realizados todo ano. No Governo Dilma, foi as-
sinada a lei que obriga o SUS a acolher as mulheres vítimas de violência
sexual.
Além da Constituição de 1988, que assegura a participação da so-
ciedade civil na formulação de políticas públicas, os governos petistas, de
2003 a 2015, representaram um avanço para as políticas públicas, princi-
palmente, pela formulação, implementação com a participação da socieda-
de civil. Destacamos a realização das Conferências Nacionais, neste caso,
de Políticas Públicas para as Mulheres, a partir de 2004, que resultou na
elaboração do I e do II Plano Nacional, as Conferências de Desenvolvi-
mento Rural, além de a Segurança Alimentar e Nutricional, mais direta-
mente ligadas a este segmento.
Uma medida importante adotada pelo Estado brasileiro neste pro-
238
cesso foi a incorporação da transversalidade de gênero no PPA – Plano
Plurianual, de 2004/2007, cuja elaboração constituiu-se numa ação ino-
vadora com a participação de organizações, fóruns e redes da sociedade
civil na elaboração das ações governamentais ocorrido no final de 2002 e
meados de 2003 (BANDEIRA, 2005, p. 171). Assim, a transversalidade
de gênero – ou gender mainstreaming – passou a ser adotada como forma
de dar status à situação das mulheres em todas as dimensões da socieda-
de: social, cultural, econômica, política, com implicações administrativas
e jurídicas. Essas implicações incluem a segurança social, a educação, a
partilha de responsabilidades profissionais e familiares e a paridade nos
processos de decisão (BANDEIRA, 2005). “Nesse sentido, a discussão

83 A ameaça de retirada deste Projeto pelo então presidente da Câmara Fe-


deral, Eduardo Cunha, foi uma das pautas intensas das diversas manifestações de
mulheres, incluindo as chamadas jovens feministas, ocorridas em 2013 e 2014.
acerca da transversalidade das políticas para as mulheres tem como marco
o II Plano Nacional de Reforma Agrária e o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres” (SILVA, 2006a, p. 8). Porém, não se trata de medidas
adotadas de forma autônoma e imediata, além disso, em geral, sofrem
descontinuidades.
A titulação conjunta e o direito à posse da terra foram as principais
reivindicações apresentadas pelas trabalhadoras rurais no início do Gover-
no Lula, em 2003 e resultou em uma das primeiras medidas adotadas pelo
MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), responsável pela política
para a agricultura familiar e reforma agrária, passou a assegurar a possibi-
lidade de a terra não ser exclusivamente em nome do “chefe de família”,
que era considerado somente o homem. Outra medida importante adota-
da pelo Estado brasileiro, foram as alterações na linha de crédito especial
- o Pronaf Mulher- por reivindicação das organizações de agricultoras
familiares que solicitaram o desatrelamento das operações de crédito às
unidades familiares. Com esse programa as trabalhadoras rurais passaram
a ter autonomia para fazer as suas próprias operações de crédito, sem 239
vinculação com as operações do marido ou outros membros da família.
A seguir apresentamos, de forma sintetizada, as demais políticas
resultantes do processo de lutas das mulheres trabalhadoras rurais resul-
tantes da Marcha das Margaridas:
- A implementação do Programa Nacional de Documentação das
trabalhadoras Rurais, anteriormente encabeçado pelos próprios movimen-
tos que realizavam campanhas em todos os Estados;
- a instituição do Pronaf Mulher, como um programa de crédito
específico para as mulheres;
- a assistência técnica e extensão rural (ATER) que passaram a ado-
tar a o gênero como diretriz;
- a implementação do Programa de Comercialização e Fomento
para as trabalhadoras rurais, frutos de seminários nacionais realizados du-
rante a Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária;
- o apoio financeiro e o suporte técnico aos projetos de infraestru-
tura e capacitação, no âmbito do Programa Nacional de Apoio aos Terri-
tórios Rurais84;
- o reconhecimento do trabalho das pescadoras que passaram a ga-
rantir os direitos previdenciários, embora ainda não tenham conquistado o
seguro defeso regulamentado para os pescadores (homens).
Outras ações e programadas estão diretamente ligadas à pauta da
Marcha das Margaridas, dentre elas a agroecologia, o combate à violência
no campo, a geração de trabalho e renda e a participação política. Ressal-
tamos a criação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgâ-
nica – Brasil Agroecológico, em 2014, cuja elaboração e monitoramento
contou diretamente com a participação das mulheres e as ações previstas
no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e no Pacto Nacional
de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, inclusive a instituição
do Fórum Nacional com ações permanentes. Este Fórum foi responsá-
vel pela elaboração das Diretrizes e Ações de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres do Campo e da Floresta85 que resultou na entrega de
240
unidades móveis em todos os Estados, por meio das Secretarias Estaduais
de Mulheres voltadas para oferecer serviços de documentação civil e de
saúde (exames e consultas ginecológicas).
Os dados do Censo 2010 apontou que a contribuição das mulheres
rurais é de 42,4% do rendimento familiar, este dado fundamentou a ado-
ção de uma medida importante do Governo Federal de apoio às políticas

84 Durante o período de 2005 a 2010 atuamos no Ministério do Desenvol-


vimento Agrário, como Consultora do Instituto de Cooperação para a Agricultura e
posteriormente, como gestora na Secretaria de Desenvolvimento Territorial – SDT/
MDA, onde desenvolvemos ações de capacitação e articulação de políticas para as mu-
lheres trabalhadoras rurais, ocasião em que nos aproximamos da temática da Marcha
das Margaridas.
85 Este Fórum Permanente de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
do Campo e da Floresta realizou o II Seminário Nacional, em 2010 e de forma inédita
foi instituído pela Portaria Nº 85 de 10 de agosto de 2010, as Diretrizes e Ações de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta.
de ATER que passaram a garantir que 50% dos recursos para beneficiá-las,
medida diretamente relacionada ao Plano Safra, neste caso, abrangendo
2014/2015. A articulação e mobilização destas demandas eram realizadas
durante o processo de preparação e realização das Conferências Nacionais
de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CNDRSS), inclusive
neste espaço as mulheres trabalhadoras rurais aprovaram a paridade de
gênero entre os (as) delegados (as).
A Marcha das Margaridas em 2015 contou com a participação de
mais de 70 mil mulheres oriundas de todo o Brasil e aconteceu em um pe-
ríodo de pré-golpe, no ano anterior ao impeachment da Presidenta Dilma
Rousseff que esteve presente. Em resposta às reivindicações desta Mar-
cha, a Presidenta Dilma Roussef, apresentou diversas ações e reafirmou
que as mulheres juntas e decididas podem “batalhar por uma vida melhor
no campo, a avançar na conquista dos direitos, a repudiar a injustiça e aqueles que
menosprezam a força das mulheres” (ROUSSEF, 2018, s.p.). Comprometeu-se
ainda em ampliar o diálogo com as organizações presentes na Marcha
para avançar nas políticas necessárias e retomou conquistas da Marcha das
241
Margaridas de 2011.
Uma ação que marca o governo Dilma é a criação da Casa da Mu-
lher Brasileira, um dos eixos do Programa Mulher, Viver sem Violência,
espaço integrado e humanizado que oferece serviços especializados para
as mulheres que sofrem os mais diversos tipos de violência e conta com
acolhimento e triagem; apoio psicossocial; delegacia; Juizado; Ministério
Público, Defensoria Pública; promoção de autonomia econômica; cuida-
do das crianças – brinquedoteca; alojamento de passagem e central de
transportes. Em São Luís, foi inaugurada em 2017, após ter ficado quase
um ano à espera de inauguração por parte de representantes do Governo
Federal, como ocorreu também em outros Estados.
Merece destaque ainda, a PEC das trabalhadoras domésticas, san-
cionada pela Presidenta Dilma que provocou ódio da classe média cuja as-
piração na elite brasileira possui as marcas da escravidão e da manutenção
de seus privilégios.
Destacados os avanços, cabe-nos apresentar os retrocessos, a come-
çar pela desestruturação do Estado brasileiro. Uma das primeiras medidas
do Governo ilegítimo de Michel Temer foi a montagem de um ministério
totalmente masculino, marcadamente branco, representante das elites que
há décadas dominam a política no Brasil, principalmente da região sul e
sudeste. A marca deste governo foi a adoção de pacotes que incluíram a
retirada de direitos e o congelamento nos investimentos por 20 anos, rom-
pendo o pacto constitucional de 1988 e colocando em prática o projeto
ultraliberal que compromete a soberania e as riquezas do país. Em se tra-
tando das políticas para o meio rural, a sinalização do compromisso com
o agronegócio foi demonstrada com a extinção do MDA que se resumiu
à Secretaria Especial de Agricultura Familiar, embora ainda tenha relevân-
cia, sobretudo, por causa do Pronaf.
A participação e o controle social sofreu um esvaziamento das
organizações de mulheres, como pode ser visto no CNDM – Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher – que ainda conseguiu realizar, realizou
junto com a SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres), a Conferên-
242
cias de Políticas para as Mulheres, em 2016, em âmbito nacional, estadu-
al e municipal, às vésperas do impeachment da presidenta Dilma. A– SPM
– perdeu autonomia e, consequentemente, os recursos, as políticas e os
programas foram enfraquecidos, inclusive o recurso para o Programa de
Combate à violência sofreu redução de 61% dos recursos em 2017. Jacke-
line Pitanguy, ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos da Mulher
e ativista do movimento feminista que acompanha o orçamento federal,
denuncia o desmonte das políticas públicas para as mulheres e alerta sobre
a gravidade do problema:

É extremamente preocupante o que está acontecendo, porque é


um desmonte. Houve uma construção eficiente de uma política de
combate à violência contra a mulher, com a Lei Maria da Penha.
Então, sem orçamento para implementar as políticas, nós estamos
voltando a um capítulo de retórica. Cortar a verba constitui um ato
de violência contra as mulheres (...) No Brasil, estamos encerrando
um ciclo virtuoso de conquista de direitos das mulheres, que teve
seu ápice na Constituição de 1988. Nos governos de Dilma e Lula,
a Secretaria de Políticas para Mulheres construiu pactos de enfren-
tamento da violência de gênero, mas agora, com Temer, sofre um
desmonte (PITANGUY, 2018, s.p.).

Estas e outras medidas adotadas pelo governo Temer, sem dúvida,


representam um retrocesso nas lutas dos movimentos feministas, em es-
pecial, dos movimentos de trabalhadoras rurais, fato que nos leva a afirmar
que não existem outros caminhos a não ser a denúncia e outras formas de
resistência, que ajudam a alimentar o debate e a renovar a esperança das
mulheres e dos brasileiros pela retomada e reconquistas de direitos retira-
dos no atual governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resistência e luta das mulheres brasileiras por democracia, liber-


dade e pelas condições dignas de vida e os direitos sociais e humanos são
históricas e se manifesta em diversos momentos históricos com parte das
243
lutas sociais em nível mundial. A luta pela democracia no Brasil tomou
lugar central na agenda das mulheres, tanto no enfrentamento ao regime
militar, quanto nas diversas mobilizações na década de 1980. Desde 2013
com as jornadas de junho, as mulheres retomaram as ruas, com em movi-
mentos inovadores, destacando-se a chamada primavera feminista que no
Brasil a principal pauta era barra o projeto do Eduardo Cunha de suspen-
der o projeto que prever a legalização do aborto em casos de riscos à saúde
da mulher e do estupro. Outra mobilização relevante foi o movimento
ocupação das escolas, em 2016, em que o protagonismo notadamente era
das meninas que se posicionaram contra a reforma do ensino médio, assim
como vimos o surgimento da Marcha das Vadias86 , em 2013, originário do
Canadá e se internacionalizou com ações radicais para denunciar a cultura
do estupro e também da Marcha das Mulheres Negras, que aconteceu em
Brasília, em 2015. A partir de 2015 a pauta voltou-se para o enfrentamento
do golpe, marcada por diversas mobilizações e também por ocupações
de prédios públicos, sede de órgãos de cultura que contou com o apoio e
presença de diversos intelectuais e artistas.
Os crescentes grupos formados por jovens feministas, tanto inde-
pendentes, autônomos, quanto ligados aos partidos de esquerda e aos mo-
vimentos sociais, popular e estudantil, juntamente com o crescimento do
chamado feminismo negro e dos movimentos LGBTs, demonstram que
houve uma inovação na forma de organização. Pois, em geral, são convo-
cados pelas redes sociais, possuem recorte geracional demonstram que o
feminismo tem se ampliado, ao mesmo tempo em que tem enfrentando
velhas questões impostas pelo capitalismo, que são as diversas formas de
opressão e exploração de classe, gênero, raça/etnia e sexualidade. Estes
movimentos são caracterizados pela radicalidade no que defendem, a cria-
244
tividade, a irreverência e a horizontalidade, os movimentos de ocupação
das escolas com a presença massiva de mulheres adolescentes e jovens, em
geral, inaugurando a sua participação em atos coletivos, como contrapon-
to e resistência ao projeto Escola Sem Partido.
Neste contexto de crise política nos deparamos com a emergência
de novos sujeitos nas mobilizações e no debate político que trazem novas
agendas para o Estado e demonstram que após o golpe de 2016 nunca foi

86 O uso do termo vadia passou a ser adotado devido a um episódio ocorrido


em janeiro de 2011, na Universidade de Toronto, Canadá, o policial Michael Sangui-
netti, ao falar sobre abusos sexuais, comentou que as mulheres deviam evitar se vestir
como vadias, para não serem vítimas de estupros. Este argumento repercutiu no mun-
do e a “Marcha das Vadias” surge como reação e se espalhou no mundo e por todo
o Brasil. Neste movimento, não há líder, partido e nem um centro organizacional.
As reuniões são feitas regularmente em locais diversos: a sala de uma faculdade, uma
praça ou, até mesmo, um bar.
tão necessária e urgente defender a democracia, apesar dos seus limites
e contradições. A defesa da democracia mais uma vez teve as mulheres
como protagonistas. Além de se posicionarem contra o golpe, as mulheres
seguem lutando contra o machismo, o racismo e todas as formas de opres-
são e assim, como a Marcha das Margaridas, surge a Marcha das Mulheres
Negras, em 2015 que “explicitou e escancarou para toda a sociedade a
submissão exploração e escravização imposta secularmente e que elas tem
rompido com luta ao darem um basta a esta situação”, afirma Minecucci
(2018).
Em todo o processo do impeachment e após o golpe, ficou claro
que quem mais sofreu com os ataques deste golpe foram as mulheres,
sobretudo, as mais pobres. O governo de Michel Temer atacou frontal-
mente os direitos da classe trabalhadora, especificamente, das mulheres, da
população negra e dos povos indígenas. A filósofa Márcia Tiburi ressalta
que a mulher é a maior vítima dos ataques aos direitos sociais e trabalhis-
tas que o governo Temer impôs ao país, desde 2016. Isto ocorre “porque
trabalham em dobro e numa sociedade neoliberal, na qual o machismo
245
está enraizado, obrigando a mulher a ter dupla, até tripla jornada e sem
remuneração adicional” (TIBURI, 2018, s.p.).
A reforma da previdência foi o tema central das mobilizações de
mulheres no 8 de março de 2017, assim das diversas mobilizações dos
movimentos sociais e populares que contaram com a presença massiva
das mulheres. O manifesto da Marcha das Margaridas do 8 de março de
2018 conclamou as trabalhadoras a lutar pela democracia. Assim se con-
trapõem ao crescimento do conservadorismo e do ódio que estão a servi-
ço da criminalização dos movimentos sociais e são também a base para a
propagação da violência contra a mulher. Neste Manifesto está expressa a
reafirmação das suas lutas desde a primeira Marcha:
Este conjunto de ofensivas aprofunda a fome e a pobreza sobre ter-
ritórios rurais e periferias urbanas, atingindo mais intensamente as mulhe-
res, afinal, sobre nós incide o ônus da divisão sexual do trabalho, que nos
faz acumular as atividades domésticas e de cuidados. Assim, quanto mais
precarizado é o acesso aos direitos sociais, ao trabalho e à renda, maior é
a sobrecarga de trabalho e responsabilidades a nós imputadas. (MARCHA
DAS MARGARIDAS, 2018).
Vale destacar neste debate que as mulheres do Movimento Sem
Terra, ligadas à Via Campesina possuem estratégias diferenciadas da Mar-
cha das Margaridas, baseadas em suas lutas de caráter antissistêmicas têm
como estratégias enfrentar as contradições e os conflitos provocados pela
hegemonia do capital com uma perspectiva mundial. Por isso, o 8 de mar-
ço tem como estratégia a ocupação de espaços públicos e privados, como
forma de cobrar respostas do Estado sobre as políticas para o campo, sen-
do a reforma agrária a principal delas, assim como parar o setor produtivo,
como fizeram cerca 600 mulheres sem terra que ocuparam a fábrica da
Nestlé, em São Lourenço, localizado ao sul de Minas Gerais em protesto
contra a ocupação do Aquífero Guarani ao denunciarem a privatização
das águas para as corporações internacionais conduzidas pelo Michel Te-
mer. Estas mobilizações integram a Jornada Nacional de Lutas e chamam
atenção para as negociações do Governo Temer durante o Fórum Mun-
246
dial das Águas, ocorrido em março, em Brasília.
A Marcha das Margaridas em 2019 tem como lema Margaridas na
luta por democracia e garantia de direitos seguirão denunciando os des-
montes das políticas públicas que têm impactado negativamente sobre
a vida das mulheres do campo, florestas e águas e também pautando o
projeto de sociedade que querem construir. São estas e outras formas de
resistência que as mulheres têm apresentado em todos os cantos deste país
e do mundo.
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248
Capítulo 11

Movimentos Sociais e a Questão


da Identidade: uma pequena introdução
a um debate teórico
Joana A. Coutinho

“Eu sou é eu mesmo.


Divêrjo de todo o mundo.”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

INTRODUÇÃO
249

A questão da identidade voltou ao centro do debate: a polarização
classe X identidade - como se fossem campos opostos - tomou conta do
cenário político em um momento em que as ideais neoliberais parecem
triunfar. Movimentos de caráter mais identitários dominam as discussões
nas redes sociais, em muitos espaços públicos dentro e fora da Acade-
mia. Neste pequeno ensaio, pretendemos abordar como a pauta identitária
cresceu e colocou-nos em uma falsa polarização, entre os pertencimentos
que um indivíduo tem na sua vida. Se sou mulher, negra, nordestina, ser-
taneja, parece moldar mais a minha identidade do que o pertencimento a
uma classe social determinada. A falsa polêmica, no nosso entendimento,
está no fato de que uma das minhas “identidades” pode marcar mais a
minha existência do que a outra. Aqui, entramos no terreno da ideologia
e/ou da maneira como nos construímos em relação ao outro. Muitos estu-
dos têm colocado uma divisão inconciliável entre a questão da classe e da
identidade. De um lado, certa leitura marxista, que desconsidera questões
como as mencionadas ou as trata de maneira secundária. De outro, os
pós-modernos (alguns ex-marxistas) que ao sublinhar as questões étnicas,
de gênero, ignoram e até invocam o “fim” das classes sociais, decreta o fim
das lutas de classes. O Neoliberalismo, então vitorioso, aparentemente, do
ponto de vista ideológico, pelo desmonte do Estado de Bem-Estar nos
países centrais e transformado no abre-te-sésamo de um novo desenvol-
vimento na América Latina, que penaliza ainda mais os trabalhadores, que
acarretou um aumento do desemprego, privatização dos serviços sociais
como educação, saúde etc., flexibilização das leis trabalhistas e, junto com
essas medidas, uma crescente criminalização dos movimentos sociais.

EM BUSCA DA IDENTIDADE

O tema da identidade e cultura é muito complexo. Aqui, intenta-


mos trabalhar com algumas questões que, do nosso ponto de vista, são
importantes nos dias de hoje. Muitos estudiosos se impuseram esta tarefa
250
de explicar a nossa identidade: quem somos, como nos formamos. Darcy
Ribeiro, no livro, Povo Brasileiro, busca explicar essa origem, a começar
pela formação, segundo ele, dos “brasilíndios” - essa mescla entre portu-
gueses e os indígenas que aqui estavam. O primeiro rechaço ou a primeira
negação do que somos sofrem esses mamelucos, pelos pais com quem
queriam identificar-se, mas que aos seus olhos eram os “filhos impuros
da terra”; e, o segundo rechaço vão sofrer, por parte da família da mãe.
O primeiro brasileiro é este “brasilindio”, mestiço, na carne e no espírito,
que não podendo identificar-se como seus ancestrais americanos - que
ele depreciava - nem tampouco com os europeus que depreciavam a esta
mistura de etnias, que fazem, mas a negam, transformam-se em objeto de
burlas dos lusitanos nativos, viam-se condenados à pretensão de ser o que
“não era, nem existia”. Segue Ribeiro (1995, p. 110) na sua cosmovisão de
formação do “brasileiro”. Assim, é que,
[...] por via do cunhadismo, levado a extremo, se criou um gênero
humano novo, que não era, nem se reconhecia e nem era visto
como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros. Esse gênero
de gente alcançou uma eficiência inexcedível, a seu pesar, como
agentes da civilização. Falavam sua própria língua, tinham sua pró-
pria visão do mundo, dominavam uma alta tecnologia de adaptação
à floresta tropical. Tudo isso aurido do seu convívio compulsório
com os índios de matriz tupi.

Holanda (1988, p. 107), talvez tenha sido um dos primeiros que


intenta explicar a nossa origem e nos imputa uma “cordialidade”, que está
longe de configurar a identidade do brasileiro: esta mescla das três raças: o
índio, o branco e os negros escravizados. Mas, a ideia de que a

[...] A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes


tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com
efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao me-
nos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos
padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriar-
cal [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justa- 251
mente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência―e isso
se explica pelo fato de que a atitude polida consistir precisamente
em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são
espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se
converteu em uma fórmula.

Uma análise crítica da interpretação de Brasil, encontramos em Jaci-


no (2017), no texto “Que morra o ‘homem cordial’- crítica ao livro Raízes
do Brasil”. Nesse texto, o autor afirma que as características defendidas
por Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda

[...] acerca da índole do povo brasileiro (e as elites em particular),


portanto das relações senhor/“escravo”, são altamente questioná-
veis. No que diz respeito a docilidade, mansidão, cordialidade do
povo brasileiro e afirmações como a que considera a sociedade co-
lonial brasileira a mais harmoniosa dentre as demais colônias ame-
ricanas e a escravidão benigna, a história está repleta de exemplos
que às contradizem. Tanto no que diz respeito a extrema violência
dos portugueses e seus descendentes, que formaram a elite brasi-
leira, como também da resposta violenta dos oprimidos, durante
todos os últimos quinhentos anos. (JACINO, 2017, p.49).

A nossa suposta “cordialidade” pode ser desmentida com a atuação


na Guerra do Paraguai. Duque de Caxias,

defendeu, ao final da guerra, quando mais de 90,0% da população


masculina adulta do Paraguai havia sido morta e a resistência se
fazia por adolescentes e crianças, que seria necessário “converter
em fumo e pó toda a população paraguaia, para matar até o feto do
ventre da mulher”. Estes são alguns exemplos da índole pacífica e
da “cordialidade” das elites brasileiras. (JACINO, 2017, p. 51).

Ribeiro (1995, p. 169) questiona essa nossa “índole cordial”. Pelo


contrário, afirma ele:

O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo en-


252 trechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por
conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vi-
vemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e
com frequência, se torna cruento, sangrento.

Qual a diferença entre as contendas entre etnias e este novo ele-


mento aglutinador?

Conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as tribos


indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores consequ-
ências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua he-
gemonia às demais. A situação muda completamente quando entra
nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliá-
vel, que é o dominador europeu e os novos grupos humanos que
ele vai aglutinando, avassalando e configurando como uma macro-
etnia expansionista. (RIBEIRO, 1995, p. 169).
Não é nossa pretensão, neste pequeno ensaio, fazer uma análise dos
clássicos em relação a nossa formação como povo, mas, tão somente, assi-
nalar a questão da identidade e suas interpretações. O negro, na sociedade
brasileira foi largado a sua própria sorte com a abolição da escravatura.

Ouso acrescentar que a marginalização do ex-escravizado e seus


descendentes não é resultado apenas da omissão dos grupos diri-
gentes, é também devido a sua ação. Essa exclusão se manifestou
na representação social e política, uma vez que a “formação da
ordem social competitiva e consolidação do regime de classes so-
ciais em São Paulo, em torno das figuras dominantes do fazendeiro
e do imigrante e com exclusão quase total do negro ou do mula-
to como agentes históricos socialmente significativos. (JACINO,
2017, p. 57).

Esse processo que culmina na humilhação do outro. E a humilhação


é “aquele componente donde la dominación se despolitiza, sale de la ley
política, cualquiera ésta sea, y se naturaliza, se vuelve naturaleza” (GILLY;
ROUX, 2015, p.167, tradução nossa). O racismo, continua o autor, 253

Nos es el atributo de algunos seres perversos. Es el destilado úl-


timo de un modo de dominación, el punto terminal —hasta aho-
ra— de una historia de crímenes, aberraciones y catástrofes entre-
lazadas a la vez con un despliegue inédito del ingenio humano. Es
una historia que no termina y que, si no podemos hacerla terminar
bajo ese modo, ella terminará con todos arrastrada por lo que Bo-
lívar denomina “las exigencias del orden social actual y su sorda
pero implacable voluntad de catástrofe.” (GILLY; ROUX, 2015, p.
173, tradução nossa).

Bonfim (2008, p. 203), em “A América Latina: males de origem”,


explica o atraso da América Latina, e, em particular, do Brasil por se man-
ter aprisionadas por uma série de heranças coloniais. Dessas heranças, o
fruto é o surgimento de uma classe parasitária, que atinge todos os aspec-
tos da vida,
Quanto à vida social propriamente dita, moral e intelectual, o regi-
me parasitário tem (e não podia deixar de ter) uma influência igual-
mente sensível e funesta. O primeiro efeito desses processos de
exploração, desenvolvidos pela metrópole, foi preparar uma popu-
lação heterogênea, instável, cindida em grupos, possuídos de ódios
entre si, desde o primeiro momento, formada quase que de castas
distintas. Nos campos, o colono fazendeiro, arremedo do senhor
feudal, constituiu desde logo uma fidalguia territorial, pretensiosa,
arrogante, brutal, ignorante e onipotente, sobre os feudos, uma
população de mestiçagem, produto de índios e negros, negras e
refugos de brancos, indígenas e escravos revéis, uma mescla de
gentes desmoralizadas pela escravidão ou animada de rancores,
uma população vivendo à margem da civilização, contaminada de
todos os seus vícios e defeitos, sem participar de nenhuma das suas
vantagens, reduzida ao viver rudimentar das hordas primitivas. Em
torno dos senhores territoriais, o enxame de parasitas.

Aparece em sua obra, um rechaço ao racismo que seria utilizado


como um instrumento pelos países fortes para dominar aos países débeis.
Nesse sentido, é um antirracista. Transforma esse sentimento em um na-
254
cionalismo e, em certo sentido, em um anti-imperialismo.
Estas nacionalidades sul-americanas estão, ainda, quase informes,
mal se distinguem; mas são realidades, são coisas que existem. Nasceram,
têm vivido, têm lutado séculos, lutas estimuladas e entretidas todas elas
por estas ideias de liberdade. “São veleidades”, dirão... talvez; e é bem
certo que elas estão muito longe ainda do regime de liberdade, consagrado
nas suas leis. Não conhecem, quase, a verdadeira liberdade; todavia, só o
prestígio, o mágico prestígio dessa palavra “liberdade” será bastante para
revolucionar todos esses povos. Desde que um destemido, um patriota,
um agitador, se levante – terá um exército consigo. Basta que lhes lem-
brem a “liberdade perdida”, e lhes falem da situação de “subordinados e
oprimidos” a que serão reduzidos [...]. (BONFIM, 2008, p. 235).
A QUESTÃO DA IDENTIDADE EM PAUTA

Eduardo Devés Valdés, na sua obra: “El pensamiento latinoamericano


a comienzos, del siglo XX: La reivindicación de la identidad,” nos dá um panora-
ma geral de toda a América Latina. Valdés (1997, tradução nossa) afirma,
que o pensamento latino-americano, desde o início do Século XIX, tem
oscilado entre a busca da modernização e o reforçamento da identidade.
Segundo o autor,

Lo modernizador ha sido acentuado hacia 1850, 1890, 1940, 1985;


lo identitario, por su parte, hacia 1865, 1910, 1965. Antes de 1850,
la generación de los civilizadores, con Domingo F. Sarmiento a
la cabeza, marca la primera formulación fuerte y coherente del
proyecto modernizador, en el que se matricularon Victorino Las-
tarria, Francisco de Paula González Vigil Justo Arosemena y Juan
B. Alberdi, entre otros. Luego, durante los años 60, en el marco
de los ataques europeos a América latina, se desarrolla un plan-
teamiento americanista de reivindicación identitaria, liderado por
las obras del chileno Francisco Bilbao; a esta tendencia se hacen
255
sensibles incluso quienes habían rechazado lo americano como
bárbaro así como quienes van a reivindicar las formas autóctonas
(José Hernández). Sucedió a esta onda una nueva acentuación de lo
modernizador que se identificó con el positivismo de los años 80 y
90: los “científicos mexicanos”, la generación del 80 en Argentina
y aquella de la post Guerra del Pacífico en Perú; autores como Va-
lentín Letelier, Eugenio María de Hostos, entre otros y, en Brasil, el
grupo que promovió la república y el abolicionismo. A comienzos
del siglo XX aparece una nueva onda identitaria que cristaliza en
la obra de José E. Rodó, sin menoscabo de obvios antecedentes.
(VALDÉS, 1997, p. 12-13, tradução nossa).

Interessa-nos como a questão da identidade, no contexto da globa-


lização, foi apoderada pelos pós-modernos e a transforma, muito rapida-
mente, na causa central das lutas; a identidade do indivíduo que o compõe
e, de certa maneira, o molda em um “identitarismo” dissociado do ser co-
letivo. Ou, melhor dizendo, este indivíduo que se identifica por sua etnia,
por seu sexo, por sua preferência sexual. Como formamos nossa identida-
de? Nos reconhecemos em relação a nós mesmos e em relação ao outro.
Uma análise ligeira tenderia a eliminar uma das “identidades”, aquela que
se expressa no pertencimento a uma determinada classe social. Então, o
fato de pertencer a um determinado grupo étnico, gênero - ou aos dois - é
o determinador de uma identidade coletiva ou de um sujeito coletivo. Não
pretendemos entrar no campo da psicanálise, mas, tão somente, intentar
discutir a formação dessa categoria como um elemento importante para
a transformação de uma sociedade, que está cada vez mais fragmentada.
Echeverría (2007, não paginado, tradução nossa), em uma fina aná-
lise do “espírito do capitalismo” de Weber, aponta para o nascimento des-
te homem moderno cuja identidade está vinculada à funcionalidade ética
pela reprodução do capital,

En este plano elemental, la identidad humana propuesta por la


modernidad “realmente existente” consiste en el conjunto de ca-
racterísticas que constituyen a un tipo de ser humano que se ha
256 construido para satisfacer al “espíritu del capitalismo” e interiori-
zar plenamente la solicitud de comportamiento que viene con él.

Esse projeto “civilizatório”, que nos constitui, inclusive como uma


identidade nacional, tende a “embranquecer” a nação, mesmo as que,
como no nosso caso, são formadas por outras “identidades”. Vejamos:

Ahora bien, en lo que concierne a estas reflexiones, es de obser-


var que la identidad nacional moderna, por más que se conforme
en función de empresas estatales asentadas sobre sociedades no
europeas (o sólo vagamente europeas) por su “color” o su “cul-
tura”, es una identidad que no puede dejar de incluir, como rasgo
esencial y distintivo suyo, un rasgo muy especial al que podemos
llamar “blanquitud”. La nacionalidad moderna, cualquiera que sea,
incluso la de estados de población no-blanca (o del “trópico”), re-
quiere la “blanquitud” de sus miembros.(..) La explicación de esta
posible paradoja de una nación “de color” y sin embargo “blanca”
puede encontrarse en el hecho de que la constitución fundante,
es decir, primera y ejemplar, de la vida económica moderna fue
de corte capitalista-puritano, y tuvo lugar casualmente, como vida
concreta de una entidad política estatal, sobre la base humana de
las poblaciones racial e identitariamente “blancas” del noroeste eu-
ropeo. Se trata de un hecho que hizo que la apariencia “blanca” de
esas poblaciones se asimilara a esa visibilidad indispensable, que
mencionábamos, de la “santidad” capitalista del ser humano mo-
derno, que se confundiera con ella. La productividad del trabajo
como síntoma de la santidad moderna y como “manifestación”
del “destino” profundo de la afirmación nacional pasó a incluir,
como acompañante indispensable, a la blancura racial y “cultural”
de las masas trabajadoras. (ECHEVERRÍA, 2007, não paginado,
tradução nossa).

Stuart Hall, no livro: “A identidade cultural na Pós-Modernidade”


(1992), nos dá um panorama de como a identidade vai sendo concebida.
Para o autor há três momentos de construção da identidade: 1) pelo Ilumi-
nismo; 2) pela Sociologia e 3) pelos pós-modernos. O sujeito da identidade
iluminista é um sujeito centrado, anificado, dotado das capacidades da ra-
zão, da consciência e da ação. O centro essencial do eu era a identidade. O
sujeito sociológico é o sujeito moderno, não é mais o sujeito autônomo e 257

auto-suficiente. Ao contrário, é formado na relação com “outras pessoas


importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e
símbolos - a cultura-dos mundos que ele/ela habitava [...] “A identidade,
nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘ex-
terior’ entre o mundo pessoal e o mundo público” (HALL,1992, p. 10-11).
A identidade aqui, é forjada na interação entre o “eu” e a sociedade. Há
um núcleo interior que é o “eu real”, formado e modificado em um

[...] diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as


identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa con-
cepção sociológica, preenche o espaço entre o “’interior” e o “ex-
terior” entre o mundo pessoal e o mundo público. (HALL,1992,
p. 10-11).
O sujeito pós-moderno não tem uma identidade “fixa, essencial ou
permanente”. Essa identidade é “formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados em
uns sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1992, p. 13). Assumimos
“identidades diferentes em diferentes momentos, que não são unificadas
ao redor de um ‘eu’ coerente” (HALL, 1992, p. 13). Hall (1992) dá uma
chave interessante para compreendermos esse movimento. Ou seja, o pro-
blema central aqui, não está na nossa compreensão, no fato de termos
“muitas identidades”, mas principalmente, porque essas identidades não
estão unificadas ao “redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há iden-
tidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo,
que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL,
1992, p. 13). A consequência desse sujeito pós-moderno é a formação de
uma identidade fragmentada, contraditória, inacabada.
Então, a questão étnica ou de gênero (sou mulher, sou negra, sou
nordestina, sertaneja) camufla, na verdade, a centralidade da disputa do
conflito de classes e no interior da classe. Não significa dizer, que a classe
258
trabalhadora não tenha sexo, nem cor, ou que, o seu lugar de origem não
influa nessa relação. No caso brasileiro, a maioria negra forma o gran-
de contingente dos pobres. Portanto, a luta contra o racismo, o sexismo,
torna-se extremamente importante na luta contra a opressão, dominação
e humilhação. É falsa a ideia plantada na sociedade brasileira, a partir da
leitura de Gilberto Freire, de que havia (há) uma “democracia racial” no
Brasil. Essa ideia é facilmente desconstruída no cotidiano: os negros têm
salários mais baixos que os brancos (e as mulheres negras têm salários mais
baixos que os homens negros), não ocupam os bancos das Universidades
etc. Então, as reivindicações desse contingente de homens e mulheres são
extremamente importantes. Qual é o problema, no nosso entendimento?
É que ao reivindicar o pertencimento ao grupo étnico, tende a negação de
pertencimento à classe social.
(IN) CONCLUSÃO

Debruçar-nos sobre a questão da identidade nos parece, extrema-


mente importante, para o avanço das lutas pela transformação de uma
sociedade cujo ethos civilizatório está baseado em um racismo identitário,
que promove a branquitude civilizatória. Como diz Echeverría (2007, não
paginado, tradução nossa).

[…] La intolerancia que racteriza de todos modos al “racismo iden-


titario-civilizatorio” es mucho más elaborada que la del racismo
étnico: centra su atención en indicios más sutiles que la blancura
de la piel, como son los de la presencia de una interiorización del
ethos histórico capitalista. Son estos los que sirven de criterio para
la inclusión o exclusión de los individuos singulares o colectivos en
la sociedad moderna. Ajena al fanatismo étnico de la blancura, es
una intolerancia que golpea con facilidad incluso en seres humanos
de impecable blancura racial pero cuyo comportamiento, gestuali-
dad o apariencia indica que han sido rechazados por el “espíritu
del capitalismo”. El “racismo” de la blanquitud sólo exige que la
interiorización del éthos capitalista se haga manifiesta de alguna 259
manera, con alguna señal, en la apariencia exterior o corporal de
los mismos; los rasgos biológicos de una blancura racial son una
expresión necesaria pero no suficiente de esa interiorización, y son
además bastante imprecisos dentro de un amplio rango de varia-
ciones. En los países nórdicos del capitalismo más desarrollado,
una buena parte del “ejército obrero industrial” del que hablaba
Karl Marx --y no sólo del “de reserva”, compuesto de desemple-
ados y marginados, sino incluso del “ejército obrero en activo”--,
que era un ejército de “raza” indiscutiblemente “blanca”, ha fra-
casado siempre en su empeño de alcanzar una blanquitud plena.

Nos últimos anos, tem crescido nos movimentos sociais a reivindi-


cação para integrar-se em um projeto nacional. Isso quer dizer, cotas para
alunos de escolas públicas, de negros e de indígenas. A questão central,
que não podemos perder de vista, é que a constituição do estado capita-
lista de todos os indivíduos como cidadãos, formalmente iguais, oculta o
caráter de classe dessa sociedade. As novas reivindicações, corretas e ne-
cessárias podem, ao contrário de se colocarem em uma luta aberta contra
todos os tipos de dominação e opressão e humilhação (que desumaniza o
outro), levar a uma extrema fragmentação da luta contra elas. A luta contra
o racismo, contra o patriarcado (fundamental e necessária), faz-se mister
em uma luta contra a exploração, não está dissociada dela. Nesse sentido,
deve integrá-la.
Darcy Ribeiro intenta, que o nosso destino é nos unificarmos com
todos os latino-americanos por nossa oposição comum ao mesmo antago-
nista: a América Anglo Saxônica, para fundarmos a Nação Latino Ameri-
cana, como a imaginou Simón Bolívar.
Para terminar, as palavras de Agacino (2018, tradução nossa), em
uma entrevista à Revista Punto final:

La lucha de las organizaciones indígenas y campesinas, asumen hoy


un carácter más universal pues su resistencia se asocia directamente
a la defensa de las condiciones que hacen posible la vida misma.
Sus demandas se empinan estratégicamente por encima de las lu-
chas puramente redistributivas de la clase obrera y movimientos
260
populares urbanos y a la vez que enfrentan radicalmente el descon-
trol del capital, inauguran posibilidades de autodefensa para una
humanidad crecientemente acorralada.

Lutamos para nos reconhecermos como homens e mulheres, ne-


gros, indígenas, brancos que têm identidades diferentes, múltiplas e, por
isso mesmo, complexas, mas junto; e não, separado de uma concepção de
classe que, ao final e ao cabo, sua tarefa é a destruição das classes.

REFERÊNCIAS

AGACINO, R. La revolución de este siglo. Punto Final, n. 894, 9 mar. 2018. Dispo-
nível em: http://www.puntofinal.cl/894/agacino894.php. Acesso em: 8 maio 2018.

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dicación de la identidad. Anuario de Filosofía Argentina y Americana, n. 14, p. 11-75,
1997. ISSN 0590-4595,
Capítulo 12

Decolonizar a “Linguagem”:
novas possibilidades para formulação
de uma teoria crítica sobre as ortodoxias
do contemporâneo
Esmael Alves de Oliveira

INTRODUÇÃO

Ao propor como desafio pensar novas possibilidades, a partir do


campo pós ou decolonial, meu intuito é, sobretudo, refletir sobre a po-
262
tência subversiva presente no pensamento de algumas/alguns autoras/es,
que são vinculadas/os a esse paradigma e que nos ajudam a compreender
alguns eventos contemporâneos ocorridos na sociedade brasileira, do pós-
-golpe de 2016, para assim, quem sabe, criarmos novas estratégias para os
enfrentamentos de velhos dilemas.
Meu diálogo com as autoras e autores pós-decoloniais me conduz à
seguinte indagação: em que medida a linguagem (falada, escrita, expressa
etc.) continua sendo um dos focos privilegiados do dispositivo colonial?
Por meio de uma leitura (in)disciplinada dessas autoras e autores, defendo
a potência de pensarmos a linguagem à luz de uma fala subalterna, como
nos instiga Spivak (2010), de uma Língua selvagem, como nos provoca
Anzaldúa (2009), ou mesmo, de uma linguagem como transculturação e/
ou zona de contato, como explorada por Pratt (1999).
Inicialmente, um esclarecimento se faz necessário: não é meu ob-
jetivo neste texto fazer um apanhando do que se convencionou chamar
de paradigma pós-colonial ou decolonial. Penso que alguns trabalhos,
como o de Cooper e Stoler (1997) e de Miguel Mellino (2008), podem ser
boas referências para quem deseja conhecer um pouco sobre o contexto
de emergência e os diferentes desdobramentos teórico-conceituais desse
“movimento”. Também, não é meu objetivo apresentar uma discussão
sobre os tensionamentos e discordâncias em torno dessa categoria - afinal
pós-colonial ou decolonial?
Influenciado pelas leituras de Foucault (1979), autor caro aos auto-
res e autoras pós-coloniais, faço uso da noção de dispositivo colonial. A
partir de tal noção busco entender o conceito de “colonial” muito menos
como um evento (um antes e um depois), mas como um conjunto hetero-
gêneo e disperso de normas, práticas, discursos e epistemes que lutam pela
construção e reiteração de subalternidades ao longo do tempo. Para esse
exercício crítico, percorro um caminho reflexivo acompanhado por um
conjunto de autoras/es que, apesar de pertencentes a tradições históricas
e culturais distintas, não deixam de experimentar, a partir de vários marca-
dores sociais de diferença (p. e. gênero, raça, nacionalidade), uma condição
de sujeit@s des-centrad@s. 263
Se, historicamente, o Colonialismo pode ser compreendido como
marco fundamental da tentativa do estabelecimento de uma ordem eu-
rocêntrica (entendida aqui como sustentada pela lógica racial/branca, se-
xual/patriarcal e religiosa/cristã), o pós ou decolonial, também pode e
deve ser compreendido como um conjunto concomitante de estratégias
(práticas, discursos, estéticas, dentre outros), que objetivaram e objetivam
a subversão de tal ordem. Assim, não é possível se referir à hegemonia sem
a contra-hegemonia, a centro sem periferia, a global sem local, isto é, não
é plausível uma compreensão amadurecida do dispositivo colonial sem
um olhar atento para as práticas de resistência (chamemos de pós ou de
decolonial) em seu interior. É isso o que os trabalhos de Anzaldúa (2009),
Pratt (1999) e Spivak (2010), nos apontam. E, nesse contexto, discorrer
sobre pós ou decolonial como possibilidade de crítica significa tratar com
seriedade esses pressupostos.
Para evidenciar tais articulações, gostaria de evocar algumas dispu-
tas recentes em torno da linguagem, presentes em nosso país, no contexto
do pós-golpe de 2016. Acredito, inspirado nas reflexões dessas mulheres
pós-decoloniais, que atualmente a linguagem “volta” a se constituir como
um dispositivo importante de produção de um regime neocolonial. Entre-
tanto, deixo para o leitor a problematização dessa “volta”: afinal, será que
algum dia deixou de ser?
Por ora me interessa o movimento de tentar demonstrar que a lin-
guagem é o campo mais disputado, na tentativa de produção de verdades
necropolíticas. Reflito sobre essa minha impressão, a partir de três cenas-
-linguagens entendidas como redes discursivas, estrategicamente articula-
das.

CENA-LINGUAGEM 1: Quando falar no espaço da escola é interdito

Em 2017, na cidade de Dourados-MS, pais/mães e responsáveis de


alunos das escolas públicas foram convocados para uma reunião, convo-
264 cação essa obrigatória e feita pela Promotoria de Justiça da Infância e Ju-
ventude, tendo como pena para quem faltasse à reunião uma multa de 3 a
20 salários mínimos, além da responsabilização por abandono intelectual,
sendo intuito do evento discutir um programa de evasão escolar. Contudo,
na realidade, teve outro direcionamento, pois o discurso do Procurador
de Justiça Sérgio Fernando Harfouche era, explicitamente, “pregação re-
ligiosa” vinculada a uma crítica contra a propalada “ideologia de gênero”.
Esse episódio foi notícia em rede nacional de mídia e veio a se
somar a uma série de mobilizações realizadas pelo chamado Projeto Es-
cola Sem Partido (PESP), que anteriormente, já havia se articulado em
vários estados e municípios da federação em prol da retirada, nos planos
estaduais de educação, da temática de gênero e sexualidade, a partir de
uma concepção de que o espaço da sala de aula não deve ser utilizado
para a “doutrinação”/“lavagem cerebral dos alunos”. Para os autores do
referido projeto, os professores têm se utilizado do espaço escolar para
disseminarem, entre os/as estudantes, ideais que “ferem a moral e os bons
costumes”.

CENA-LINGUAGEM 2: Quando a linguagem artística é censurada

Como não recordar a interdição da exposição Queermuseu, que se-


ria realizada no Santander Cultural em Porto Alegre? Segundo os censores,
haveria imagens que estimulariam a prática da pedofilia.
Em outra manifestação censora, houve a demonização da Mostra
35º Panorama da Arte Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna
(MAM), em São Paulo. Na ocasião, uma menina de cinco anos, acompa-
nhada por sua mãe, toca o corpo de um performer nu, o que leva alguns
participantes a associarem tal prática como algo licencioso e que, inclusive,
feriria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Também em Campo Grande (MS), no dia 14 de setembro de 2017,
quadros da exposição “Cadafalso”, de autoria da artista plástica mineira
Alessandra Cunha, foram arbitrariamente apreendidos pela Polícia Civil
com o argumento de que estariam estimulando a pedofilia. Note-se, po- 265

rém, que a exposição tinha um propósito oposto: denunciar os chamados


crimes sociais e alertar sobre a importância de criação de estratégias para
seu enfrentamento.

CENA-LINGUAGEM 3: “Silenciamento” dos movimentos sociais

Em visita a Nioaque (MS), no dia 13 de julho de 2017, o Presi-


dente eleito Jair Bolsonaro (naquele momento na condição de Deputa-
do Federal) declarou, publicamente: “[...] tudo começa com segurança. O
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) deve ser esperado com
fuzil e cartuchos 762”. O parlamentar é conhecido por declarações favorá-
veis à criminalização dos movimentos sociais e que incitam violências, tais
como: “policial deve matar vagabundo”, “sem-terra que ocupar fazendas
deve ser recebido a bala”, “toda a família deve possuir arma de fogo”.
CRUZANDO IMAGENS, DESLINDANDO DISCURSOS:
o decolonial como tática dissidente

Diversas outras cenas-linguagens poderiam ser acionadas em nossa


memória recente. Em todas elas ou pelo menos em sua maioria, um tom
de ódio aberto e declarado às diferenças, ao pensamento plural, à laicidade.
Nesse sentido, a reflexão que aqui proponho é sobre as nuances e cone-
xões de uma linguagem necropolítica, que busca produzir uma verdade
que opera por meio da violência, da subalternização, da desqualificação do
outro e da matança (física ou simbólica), a partir do argumento de “lega-
lidade” e de “legitimidade” de quem fala e do que se fala. Tal “sutileza”,
amplamente ancorada em concepções naturalizadoras, substancialistas e
essencialistas das identidades, dos corpos, das práticas sociais, enfim, dos
diferentes sujeitos e instituições, tende a operar segundo uma lógica dico-
tômica, que invisibiliza a diferença e a considera como sendo da ordem da
abjeção, do crime, da anormalidade, da subvenção etc.
Ao percorrer as redes de linguagem desses dispositivos de princípio
266 colonial, percebo a relevância de autoras como Anzaldúa (2009), Pratt
(1999) e Spivak (2010). Seja ao problematizar sua própria condição de
sujeito subalterno (feminino e periférico), como fazem Anzaldúa (2009) e
Spivak (2010), seja ao descortinar as artimanhas que cercam a maquinaria
colonial das viagens do Século XVIII nos domínios espanhóis, como faz
Pratt (1999). Para elas, a linguagem se torna o lócus privilegiado de um
regime de verdade, que opera segundo a lógica da hierarquização e da
exclusão. Desse modo, como princípio de organização da racionalidade
ocidental, a linguagem racional (que não é qualquer linguagem, posto que
uma linguagem que esteja “destituída de racionalidade” não é compreen-
dida enquanto tal - vejamos o caso das pessoas com transtorno mental),
precisa ser constantemente produzida e reiterada para marcar uma dife-
rença subalternizada.
Sob essa perspectiva, o princípio de inteligibilidade que se busca
é o do apagamento da diferença em nome da mesmidade, da obliteração
do polifônico pela do monofônico, da negação de verdades provisórias
em prol da defesa dogmática e autoritária de uma verdade absoluta, hie-
rarquizante e antidemocrática. Assim, o dispositivo por excelência para
se alcançar tal finalidade, torna-se a violência, o medo, o terror, o pânico:
busca-se a todo custo o império de uma linguagem asséptica, sem afetos,
sem desejo (GUATARRI, 1985). Entretanto, há que se inspecionarem os
mínimos detalhes (nos termos foucaultianos, seria o retorno de uma nova
clínica? Uma clínica das linguagens?) para conhecer as “reais” intenções,
as classificações etárias, os conteúdos programáticos, os autores a serem
ensinados, os palestrantes convidados etc.
Instaura-se, pois, um estado de pânico moral, onde tudo e todos
são poluidores em potencial (DOUGLAS, 1966). Por esse viés, entende-se
como melhor opção mandar matar, prender, queimar, suspender, censurar.
Mas o que foge, “ou não”, das vistas do regime que tudo quer con-
trolar é que só há controle onde há o que “pode” ser controlado, e que,
também, pode não o ser. Essa ambiguidade se dá pelo entendimento de
que esse “ataque” à linguagem das diferenças não é ingênuo ou irracional,
267
como alguns tendem a acreditar; pelo contrário: trata-se de um ato deli-
berado que reconhece que a linguagem instaura um espaço de entre-lugar
que precisa ser vigiado de modo permanente, uma vez que é instável, in-
certo, mutável, volúvel, inconstante, imprevisível. Por essa compreensão,
defendo que novas possibilidades só podem ser pensadas, se considerar-
mos o caráter perturbador/subversivo da linguagem, e o dispositivo que
tudo busca controlar sabe disso. Por isso, não é fortuito que o foco dos
ataques do movimento Brasil livre (MBL) e do “movimento” escola sem
partido (MESP) sejam espaços como a escola, os museus, os meios de
comunicação, enfim... aquel@s que produzem linguagens dissidentes.
Dessa forma, não é inopinada a discussão de Spivak (2010), mulher
indiana, acerca da condição de subalternidade em relação à fala/linguagem.
Suas ponderações questionam os silenciamentos, historicamente instituí-
dos e naturalizados, e, ao mesmo tempo, apontam para a possibilidade de
um protagonismo que se constrói e se reconstrói pela fala e pelo lugar de
fala do sujeito subalternizado, face às artimanhas dos dispositivos colo-
niais. Em alguns contextos etnográficos isso fica evidente, como no caso
da cosmologia do povo Kaiowá do Estado de Mato Grosso do Sul cuja
noção de pessoa é constituída, ontologicamente, pela palavra (MELIÀ,
1989; SOUZA, 2013). Esse povo tem sido, historicamente, alvo de ataques
por parte da inércia e omissão do Estado e pela violência empreendida
pela maquínica do agronegócio que visam ao seu silenciamento.
Assim, pergunta-nos Spivak (2010): quem fala? Quem pode falar?
Quem historicamente tem o direito à fala? Para ela, a fala/linguagem é
condição indispensável de constituição de um sujeito, de um sujeito pós-
-decolonial. Há possibilidade de compreendemos as perguntas da autora
sob duas direções: “poder falar”, enquanto concessão (enquanto outro
que concede/permite a fala); e “poder falar”, enquanto condição/capa-
cidade. Penso que restringir a pergunta à primeira dimensão é ignorar a
busca de Spivak (2010) pelo desvelamento das artimanhas que o Ocidente
tem produzido como violência epistêmica, com o intuito de destituir a
condição de sujeito desse outro subalternizado.
268
A segunda pergunta de Spivak (2010), “quem pode” ou “não” falar,
é uma indagação sobre as dinâmicas que constituem um sujeito “destituí-
do” de linguagem, ou seja, uma pergunta pela razão que produz condições
subalternizantes. Isso porque um dos efeitos do dispositivo colonial é que
o sujeito colonizado internalize uma possível condição de um sujeito so-
cial, política e culturalmente afásico. Assim, não é por acaso que o Projeto
Escola Sem Partido e o Movimento Brasil Livre dispensem tanta atenção
para a linguagem.
Desse modo, não apenas conseguimos entender o porquê das atu-
ais lutas em torno de quem detém o controle/domínio sobre a linguagem,
mas também, e, principalmente, as potências das linguagem subversivas;
afinal, a linguagem, como um campo em disputa, não possui uma “gramá-
tica” predeterminada. O outro não é estável e, portanto, a diferença pre-
cisa ser negociada e mantida continuamente. Além disso, o que é o outro,
senão linguagem e produção de linguagem? (SAID, 2007).
Essa não-predeterminação da linguagem, também é ilustrada pelo
trabalho documental de Pratt (1999) e que se apresenta na obra: Os olhos
do império. Tendo como base a literatura de viagem, a autora se propõe ao
desafio de pensar os aspectos constituintes das narrativas desenvolvidas,
sobretudo, a partir do Século XVIII, por diferentes viajantes vinculados ao
Império Colonial Espanhol. Sua proposta consiste em evidenciar as tessi-
turas do discurso colonial como constituinte e constituído de/por relações
de poder, nesse movimento operava um deslocamento na unilateralidade
do discurso narrativo. Pratt (1999) parte, de uma descoberta documental
do pesquisador alemão Richard Pietschmann, em 1908 - um manuscrito
datado de 1613, que consta nos Arquivos Reais Dinamarqueses - em que
é possível verificar a apropriação por um indígena andino do “modelo”
narrativo colonial espanhol e, sua remodelação como instrumento de con-
testação e denúncia das mazelas coloniais.
Em outras palavras, o momento de evidenciação em que um dos
dispositivos colonizadores de opressão, a linguagem, torna-se também e,
ao mesmo tempo, instrumento privilegiado de resistência por parte dos
269
subalternizados, essa “re-invenção” da grafia oficial por parte do nativo
andino, segundo a autora, acaba por operar um deslocamento dos sujeitos
na ordem do discurso. Nesse sentido, Pratt (1999) explora a dinâmica do
encontro de mundos não mais compreendidos sob uma perspectiva dua-
lista e maniqueísta, mas dotada de complexas redes discursivas e narrativas
que marcam a polifonia dos sujeitos coloniais por meio da interconexão
de mundos/realidades culturais.
À semelhança de um jogo de espelhos surge no encontro entre o
colonizado e o colonizador, uma refração de sentidos múltiplos em que
impera uma relação de mútua interdependência (o que não significa ser
simétrica). Instaura-se, portanto, uma “zona de contato”, um espaço que
permite a compreensão de complexas redes de interação do dispositivo
colonial, ou seja, um lugar de processos de mútua implicação por meio de
oposições, alianças e engajamentos, nem sempre claros e conscientes para
os sujeitos envolvidos na trama, todavia que não são pré-determinados em
nenhum momento. Nas palavras da autora, “[...] se a metrópole imperial
tende a ver a si mesma como determinando a periferia, ela é habitualmente
cega para as formas como a periferia determina a metrópole” (PRATT,
1999, p. 31).
Nesse jogo, as polaridades pouco ajudam a compreender a dinâmi-
ca de trocas e interações. Nesse sentido, uma das grandes contribuições
dos estudos pós e decoloniais é o foco nas contingências e contradições,
em que se priorizam os interstícios em detrimento das grandes oposições
(colonizador x colonizado). Como afirma a autora, se por um lado houve
vozes coloniais que se opuseram ao modelo eurocêntrico; por outro tam-
bém houve quem a ele se “rendesse”. Assim, ocorreu um intenso processo
de transculturação; em que, tanto metrópole quanto colônia passaram a
ser mutuamente deslocadas e ressignificadas por um processo de inter-
dependência e influência recíproca. Nesse tabuleiro em que operam car-
gos, instituições, capital econômico-cultural, mas também, desejos, afetos
e identificações, não há espaço para papeis e identidades ontologizadas.
No caso do contexto brasileiro, se por vezes os meios de comu-
270
nicação têm nos transmitido a ideia de um movimento homogêneo e ar-
ticulado (uma sociedade dividida entre MBL e “vermelhos”), por outras
somos capazes de perceber os tensionamentos e contradições, tanto nos
movimentos reconhecidos e autointitulados como conservadores quanto
naqueles que se dizem democráticos e progressistas. Por exemplo, como
ignorar no interior do próprio movimento feminista brasileiro as “femi-
nistas radicais”, que em torno da noção essencialista de “feminino” (cujo
critério é estritamente anatômico e fisiológico, ou seja, ter vagina, útero e
ovários) passam a definir quem é ou não mulher de verdade e que, desse
modo, acabam por desconsiderar outras formas de experiência da femi-
nilidade? Como não perceber a massiva adesão popular em torno da tão
propalada e mal compreendida “ideologia de gênero”, que no final implica
o enfrentamento a dilemas que dizem respeito, não apenas a quem discute
gênero e sexualidade, a quem é ou não feminista, mas a tod@s aquel@s
comprometid@s com os valores de uma sociedade inclusiva e equitativa?
Portanto, uma simples questão de quem domina e de quem é dominado
ou também (e ao mesmo tempo), uma rede de relações complexamen-
te articulada em torno de identificações, aversões, desejos, expectativas,
aproximações, distanciamentos imprevisíveis?
Se a Antropologia tem nos apontado que não há um sujeito social
prévio à relação e, que as identidades se constroem em um jogo instável
de negociações e interações sempre contextuais, o pensamento pós ou
decolonial nos permite ir além, ao evidenciar que nesse intercâmbio, a re-
sistência se impõe, simultaneamente, ao ato de se relacionar. É no interior
dos jogos de poder e dos dispositivos de dominação colonial/imperial
que sujeitos, grupos e minorias se articulam, criando estratégias próprias,
tanto de questionamento quanto de reiteração das regras do jogo colo-
nial (BUTLER, 2017). Nem sempre as resistências se constituem como
enfrentamentos abertos ou acionam modelos clássicos de mobilização
identitário-homogeneizador do tipo “trabalhadores uni-vos”; por vezes, é
na sutileza do silêncio, nas pequenas e aparentemente insignificantes ini-
ciativas (nada megalomaníacas e, na maioria das vezes, anônimas) que a
271
re-existência se opera.
É preciso então revermos, continuamente, nossa compreensão de
resistência, mobilização, luta. Conforme pondera, em entrevista, a antro-
póloga Alana Moraes (Museu Nacional/UFRJ) (2017): “não existe outro
mundo para se construir. Existem outras relações e modos de vida a se construir nesse
mesmo mundo”. Desse modo, o desafio de uma proposta pós-decolonial é o
de que percebamos na aparente “convivência” com os regimes de verdade
hegemônicos, que a mimese sempre se opera onde há relação (BHABHA,
2007).
Nesse sentido, penso que a experiência de entre-lugar, vivenciada
por Glória Anzaldúa como chicana nos Estados Unidos, também inspira
pensarmos a linguagem como um campo em que os jogos de poder e de
resistência se instauram, simultaneamente. Com base na obra da artista
plástica Ray Gwyn Smith, Anzaldúa (2009, p. 305) pergunta: “como você
doma uma língua selvagem, adestra-a para ficar quieta, como você a refreia
e põe sela? Como você faz ela se submeter?”. Não seria essa experiência
de interdição de línguas selvagens (portanto indóceis, dissidentes, abjetas,
desejantes) que no Brasil atual quer se instaurar? Assim, ao voltamos aos
pressupostos do Projeto Escola Sem Partido, citado anteriormente, surge
a seguinte indagação: é proibido falar sobre qualquer questão ou sobre
certas questões? Por que falar de gênero, sexualidade, equidade de gênero
é tão ameaçador? Ameaçador para quem? Além disso, quem detém ou
deve deter o privilégio do discurso? Professores não podem problematizar
questões na sala de aula (um pressuposto do pensamento crítico-reflexi-
vo da educação); mas por outro lado, pode-se fazer coação religiosa em
espaços públicos com finalidades antidemocráticas e ofensivas a grupos
minoritários?
Sob essa perspectiva de campo em disputas, em que a única condi-
ção é a relação e, onde não há uma anterioridade que seja capaz de prever
ou predeterminar um resultado, chega-se à constatação de que a Língua é
sempre polissêmica e, como tal, escapa inclusive às intenções do(s) enun-
ciador/es. Recordo-me de uma comunicação realizada em 2017, em Cam-
272
po Grande, pelo colega Fernando Seffner, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que apresentava
que a tentativa de “apagamento” da categoria gênero do Plano Estadual
de Educação do Rio Grande do Sul, instaurou uma verdadeira “torre de
babel”, no que tange aos sentidos da linguagem: segundo ele, em uma ten-
tativa de assepsia “ideológica”, por meio de um recurso que se pretendia
“Jack estripador”, chegou-se a um resultado franksteiniano.
Para Seffner (2017), ao apagar a categoria gênero de modo “insa-
no” (descontextualizada de um jogo de sentidos e relações), criou-se uma
incomunicabilidade de sentidos, afinal, a categoria gênero - no plano - não
se restringia apenas a relações de gênero; mas também, a gêneros literários,
alimentícios etc. Ironicamente, afirmaria Anzaldúa (2009, p. 306): “línguas
selvagens não podem ser domadas, elas podem apenas ser decepadas”.
Uma língua selvagem muito significativa foi a mobilização do movimento
liderado por estudantes, o “Ocupe a Escola”, que surge e é articulado por
iniciativa dos próprios discentes em vários lugares, contando com a adesão
de pais e, dispensando a mediação de professores – como foi o caso das
escolas no Paraná.
Portanto, diante da diferença, do discurso dissonante e das lingua-
gens selvagens, o dispositivo colonial age com violência, instaurando ter-
ror e pânico, pois conhece a potência indócil e capilarizada que a constitui.
Se não há como evitar é preciso cercear, censurar, prender, julgar, estra-
tégias que não deixam de imprimir dor e desconforto àquelas e àqueles
engajados na produção de linguagens desejantes e rizomáticas. Ademais,
por um esforço de evidenciar que não se doma uma língua selvagem, uma
professora da rede básica de ensino, durante um evento em Campo Gran-
de, compartilhou:
[...] A diretora proíbe, mas na sala de aula quem é a educadora sou eu. E além
disso, a demanda vem dos próprios alunos. Eles querem falar, eles desejam falar. Como
professora de literatura não tenho como não ser afetada por uma linguagem que escapa à
censura. Se eu não falo, não é meu silêncio que irá fazer com que a inquietação trazida
pelas dúvidas, perguntas e curiosidades cessem (Transcrição de um trecho da
273
fala da professora durante o evento (De)marcando Diferenças, Campo
Grande, UFMS, 21 de junho de 2017).

Mas há espaço também para as resistências anônimas em escalas


menores. Recebi, no início de 2018, pelo WhatsApp, uma fotogra-
fia de um outdoor em alguma cidade aqui do Brasil (penso que a
localização é um mero detalhe, se levarmos em conta que se tra-
tam práticas fascistas em escala transregional) em que se via uma
propaganda da candidatura do deputado federal Jair Bolsonaro à
presidência. Assim estava escrito: “quando a nação se aproxima do
caos, somente os verdadeiros patriotas se apresentam para defen-
dê-la”. Sobre a imagem havia o seguinte “pixo”: “ditadura nunca
mais, Satanás.” Em outras expressões, o ato de resistência política
se reveste de uma linguagem de afetos, como “#maisamor e me-
nos Bolsonaro”, por exemplo.
ALGUNS PALPITES FINAIS

Penso, a partir do exposto, que mais que discutir novas possibi-


lidades para a formulação de uma teoria crítica, o que urge é uma nova
est-ética e po-ética da existência, dos desejos e dos afetos. Se o pós-colo-
nialismo elege como princípio epistêmico-analítico, a desconstrução (dos
dualismos maniqueístas, dos essencialismos das identidades e posições) e
a desnaturalização (do mundo, da vida), o passo seguinte é o da saída para
as zonas inexploradas do cotidiano, das narrativas ocultadas, das vidas pre-
carizadas que, apesar disso, existem, resistem e re-existem.
Uma análise que contemple apenas as perdas, os traumas e as vio-
lências é uma iniciativa que apenas reitera aquilo que busca evitar e com-
bater, a vitimização dos sujeitos subalternizados. Fazem-se necessárias,
portanto, a elaboração e a promoção de outras narrativas, alternativas que
sigam outros fluxos e obedeçam outras lógicas, que decidam, deliberada-
mente, falar de modos não convencionais. Penso, pois, que o espaço da
arte como linguagem é político e po-ético e, nesse sentido, o lugar por
274
excelência do de(s)colonial (GILROY, 2002).
Igualmente, as polêmicas em torno das exposições brasileiras de
arte falam dessa linguagem “selvagem”, indomável, posto ser des-centra-
da, instável, borradora de fronteiras. Desse modo, a arte mobiliza, acessa e
atinge públicos e sujeitos de diferentes condições sociais, étnicas, de gêne-
ro e de diferentes modos. Ela desperta a sociedade para que reflita sobre
seus tabus, seus preconceitos, seus racismos naturalizados e internaliza-
dos, sua xenofobia, seu sexismo, sua LGBTfobia.
Recentemente, tomei conhecimento de uma das últimas inves-
tidas dessa engrenagem de decepação de Línguas selvagens: segundo o
pesquisador Marcio Caetano da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG/RS), o MBL havia entrado com uma ação contra a veiculação do
desenho animado “Peppa”, pois a personagem estaria estimulando a ero-
tização das crianças. Conforme Caetano (2017), para os autores da ação, a
cabeça da porquinha faz uma explícita menção a um pênis.
Acredito que esse cenário é instigante para retomarmos Fanon
(2008) que, ao pensar sobre o colonialismo, aponta para a existência de
mecanismos coloniais inconscientes que afetam não apenas colonizados,
mas colonizadores. A busca pela contenção, pelo controle, pela normali-
zação do outro é a busca pela contenção, controle e normalização de si
mesmo. O outro torna-se o reflexo de si mesmo, que se deseja incessante-
mente evitar, dada a sensação desestabilizadora de similitude que provoca:
o outro sou eu mesmo, está em mim mesmo. Assim, onde predominaram
(e predominam) as políticas de controle sobre casamentos inter-raciais,
sobre a poligamia, sobre as práticas nefandas/abomináveis (como era re-
ferida em vários contextos a homossexualidade), excede justamente o que
se busca evitar e controlar (COOPER; STOLER, 1997).
O que concluir diante disso tudo? Que a experiência de resistir nas
zonas de contato deve ser entendida, a partir de processos dinâmicos de
inventividade e de experimentação, sem neglicenciar a centralidade de-
sestabilizadora do desejo (DELEUZE; GUATARRI, 1996; GUATARRI,
1985). Nesse movimento, resistir é subverter o dispositivo, operando não
apenas fora dele, mas por meio dele(s) (BUTLER, 2017). Aqui vale uma 275
paráfrase de Preciado (2018), que ao realizar um balanço sobre as nuan-
ces que cercam o regime biopolítico contemporâneo, naquilo que ele tem
chamado de era farmacopornográfica, aponta para a necessidade de resis-
tências outras, em outros termos e com outros focos. Assim, conforme as
dispensações do autor, antes que tudo se reduza a sombras, é indispensá-
vel transformarmos o que temos em experimentação coletiva, em prática
física, em modos de vida e formas de convivência.
Deste modo, acredito que seja ocupando os espaços, fazendo-se
ver no público, percebendo que o privado também é político (BRITZ-
MAN, 1996; RUBIN, 1986), que podemos descolonizar e desarticular a
linguagem-dispositivo colonial. Penso, enfim, que a partir dessa linguagem
descentrada, grupos minoritários e, historicamente, subalternizados não
precisarão mais de discursos de outros sobre si, mas serão os porta-vozes
de si mesmos, de suas histórias, de suas tradições, de seus desejos e de
seus afetos.
REFERÊNCIAS

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276
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FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Fou-


cault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo. Rio de Janeiro: Forense
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GUATARRI, F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo:


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Dourados, 2013.

SPIVAK, G. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.


277
Capítulo 13

O Direito à Comunicação e o Poder da Mídia


Tradicional
Priscilla Pereira da Costa

INTRODUÇÃO

O texto é uma adaptação de parte da pesquisa dissertativa, realizada


no ano de 2016, sobre temática da democracia e as lutas pela democratiza-
ção da comunicação. Nesse sentido, traçamos brevemente uma discussão
sobre o direito à comunicação, caracterizando sua constituição e demons-
trando que a consolidação dela, ainda está distante no contexto brasileiro,
278
sobretudo, diante do complexo midiático brasileiro oligopolizado e mo-
nopolizado. Apresentamos também, de forma breve, um panorama da
mídia brasileira e como está organizada no Estado do Maranhão. Por fim,
concluímos que, diante da concentração midiática, a resistência por meio
da luta e de canais alternativos é imprescindível para a consolidação do
direito à comunicação. A pesquisa bibliográfica serviu de suporte para
essa discussão.

O DIREITO À COMUNICAÇÃO

O direito à comunicação em um ambiente democrático depende


de cidadãos devidamente informados e deliberantes, capazes de participar
das tomadas de decisões sobre os assuntos públicos, o que traduz cidada-
nia e justiça. Então, podemos enumerar pré-condições culturais básicas
para a plena cidadania, ou seja, todos devem ter garantidos os direitos
culturais básicos, informação, conhecimento e representação, podendo ter
acesso a um espaço simbólico coletivo, isto é, participação nos meios de
comunicação. E o que significa ter direito à comunicação?
Em uma reflexão baseada em Bobbio (apud GUARESCHI, 2013)
existem várias gerações de direitos, da 1ª até a 4ª, sendo que o direito à co-
municação estaria compreendido na 4ª geração. Os direitos de 1ª geração
seriam os direitos civis, surgidos nos Séculos XVII e XVIII, relativos às
liberdades: pessoal, de pensamento, de religião, de reunião e econômica,
todos com ênfase central na pessoa. Já a 2ª geração de direitos, surgida
no Século XIX, com a formação do estado democrático representativo,
seriam os direitos políticos, relativos à liberdade de associação em parti-
dos, o direito ao voto e a participação na vida política. Bobbio (1987, p.
153), ao analisar a democracia representativa, destaca esses direitos:

o principio da soberania do povo e o fenômeno da associação, o


Estado representativo (o qual viera pouco a pouco se consolidando
na Inglaterra e da Inglaterra difundindo-se, através do movimento
constitucional dos primeiros decênios do século XIX, na maior
parte dos Estados europeus) conhece um processo de democrati-
279
zação ao longo de duas linhas: o alargamento do direito do voto
até o sufrágio universal masculino e feminino, e o desenvolvimento
do associacionismo político até a formação dos partidos de massa
e o reconhecimento de sua função pública.

Nos Séculos XIX e XX, estariam compreendidos os direitos de 3ª


geração, caracterizados por direitos sociais relativos à saúde, ao trabalho,
à assistência, à educação, à segurança e à superação da miséria. Para Gua-
reschi (2013), a comunicação como direito de 4ª geração contemplaria a
necessidade de participar de espaços políticos com a criação de lugares
que respondam às necessidades das pessoas, ou seja, espaços que materia-
lizem o anseio e a necessidade das pessoas dizerem sua palavra, expressa-
rem sua opinião e manifestarem seu pensamento. Isso implica ser cidadão,
exercendo a participação por meio da garantia dos direitos fundamentais.
Para participar é preciso ter espaços, onde os indivíduos possam
exercer a liberdade de expressão e manifestação e, é nesse aspecto, que
o direito à comunicação é visualizado, uma vez que ele é revestido pela
liberdade de expressão e manifestação.
Marshall (1967) analisa a cidadania nas democracias liberais, descre-
vendo-a em três elementos: 1) o elemento civil, composto pelo princípio
básico da liberdade individual e direitos, como a liberdade de expressão,
o direito de ir e vir, a igualdade perante a lei, enfim, os direitos positiva-
dos, sendo suas instituições representativas, os tribunais; 2) o elemento
político, caracterizado pelo principio básico do direito à informação, que
significa participar do poder público diretamente ou indiretamente (voto-
-representação), sendo suas instituições representativas, os parlamentos
e os governos; 3) o elemento social, caracterizado pelo principio básico
da justiça social, que significa a participação em vários direitos, como à
educação, à saúde e à comunicação, sendo as instituições desse elemento,
o sistema educacional e os serviços sociais.
Portanto, o cidadão é aquele indivíduo que exercita as três dimen-
sões da cidadania na comunidade em que vive. “Cidadania é um status
280 concedido àqueles que são membros de uma comunidade. Todos aqueles
que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações
pertinentes ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76).
Na verdade, os indicadores concretos da cidadania na prática são
os direitos, são eles que a constituem. O Estado reconhece a todos os
indivíduos na esfera da produção e do trabalho, na atividade política e no
consumo, sendo que o desenvolvimento dos direitos civis (centrados na
pessoa) é indispensável para o modo de produção que vivemos, pois, sem
eles, homens não podem participar do mercado, tanto como consumido-
res quanto oferecedores de mão de obra. Em contrapartida, a evolução
dos direitos, destacados acima, em gerações e como elementos constituti-
vos, não foi de maneira natural, ou seja, sem conflitos e contradições. Ao
contrário, a conquista e a evolução deles tiveram resistências e lutas, aqui
exemplificadas no esforço para assegurar o direito à comunicação no qual
a concentração é uma das ameaças mais latentes.
Mesmo com a evolução, primeiro com a conquista das liberdades
civis, que estão centradas nos direitos da pessoa e são indispensáveis ao
modo de produção, mas não suficientes para a conquista dos direitos polí-
ticos, incluindo aqui a participação nas decisões, ou seja, no poder político
e no o acesso ao bem-estar material, a resistência das classes que estão no
poder e a burocracia são barreiras à ampliação dos direitos, enfim, à cida-
dania. Até a instauração de direitos defendidos pelas classes trabalhadoras
é, sucessivamente, postergado ao longo da história por disposições anti-
democráticas das classes dominantes. É como afirma Saes (2003, p. 22):

[...] a evolução da cidadania a partir de seu núcleo mínimo resulta-


ria da eventual capacidade das lutas populares de impor às classes
dominantes um compromisso sobre novos direitos; direitos esses
que, por si mesmos não destroem o capitalismo, mas que nem por
isso são desejados pelas classes dominantes.

Na verdade, a cidadania tem um potencial limitado dentro do modo


de produção em que vivemos, o que significa dizer que as possibilidades 281
de participação da maioria no poder político é revestida de obstáculos.
Além da burocracia, a desigualdade entre as classes, no que diz respeito à
posse tanto de recursos políticos como de dinheiro, de meios de comu-
nicação, dentre outros, é um limitador. Além disso, o próprio modo de
produção capitalista impõe um ritmo que não deixa tempo livre para parti-
cipação. Nesse sentido, contrapondo a visão marshalliana da cidadania, Saes
(2003, p. 38) afirma que: “uma cidadania plena e ilimitada, conforme as
exigências ideológicas subjacentes ao conceito apresentado por Marshall
situam-se além do horizonte da sociedade capitalista e das suas instituições
políticas”, o que nos coloca num cenário de ameaças constantes aos direi-
tos políticos e sociais.
Percebe-se que, nesses elementos constitutivos da cidadania, o di-
reito à comunicação também se faz presente. Lima (2011, p. 220) conclui
que:
Na verdade, o direito à comunicação perpassa as três dimensões
da cidadania, constituindo-se, ao mesmo tempo, em direito civil
– liberdade individual de expressão – em direito político – através
do direito à informação -, e em direito social – através do direito a
uma política pública garantidora do acesso do cidadão aos diferen-
tes meios de comunicação.

Uma vez que há resistências nas conquistas de direitos, enfim, há


uma limitação para a concretização da cidadania na democracia liberal, o
direito à comunicação também está em um rol de direitos prejudicados,
pois ele implica no mínimo de participação.
O direito à comunicação, pertencente ao ser humano, significa dizer
sua palavra, expressar sua opinião e manifestar seu pensamento e, sendo a
comunicação um canal de reprodução social, a garantia e efetividade desse
direito é uma busca das sociedades democráticas.
O que constitui o direito à comunicação? Basicamente, a liberdade
de expressão. O conceito mais usual, na atualidade, sobre liberdade de
282 expressão é o que é baseado na liberdade do ser humano se expressar pu-
blicamente e por diferentes meios, suas opiniões, valores e crenças (GUA-
RESCHI, 2013). Além da constituição básica, a liberdade de opinião87 e a
liberdade de informação e divulgação88, também estão expressas no direito
à comunicação.
No entanto, Guareschi (2013) levanta que existe uma confusão pro-
posital entre os conceitos de liberdade de expressão, o elemento constitu-

87 Liberdade que o ser humano possui de pensar livremente, ter suas opiniões,
suas convicções e aceitar determinados valores (GUARESCHI, 2013).
88 É a liberdade e o direito que a pessoa tem de buscar, receber e divulgar
informação e opiniões livremente, ou seja, o direito de acesso e de circulação, a possi-
bilidade das opiniões circularem de maneira igual (GUARESCHI, 2013).
tivo do direito à comunicação, e o de liberdade de imprensa89, que são dois
termos distintos. Isso acaba sendo um obstáculo à regulamentação de uma
comunicação democrática e ao alcance efetivo do direito à comunicação,
ponto sobre o qual concordamos. E em uma reflexão crítica das práticas
da grande mídia, percebemos atitudes que conotam interesses privados
e que influenciam construções valorativas negativas, nas propostas que
tentam regular o direito à comunicação.
As divergências começam com a utilização dos termos, indiscrimi-
nadamente. E, uma vez que somente os seres humanos são dotados de
palavra, por que eles teriam liberdade de imprensa? Somos nós, humanos,
quem temos a liberdade; somos nós que os sujeitos de direitos e de deve-
res, que temos consciência, portanto, não podemos deslocar a liberdade de
expressão das pessoas para os meios de comunicação.
Guareschi (2013, localização Kindle 1568 de 3283) problematiza:

Pois não existe ‘a imprensa’ em si. O que existe é uma pessoa que
fala, escreve, se expressa, se comunica, e isso é designado pelo ter-
mo ‘liberdade de expressão’. A imprensa é outra coisa. Pode ser a
283
empresa que imprime, ou algum órgão dessa empresa, ou mesmo
uma instituição.

Nordenstreng (apud GUARESCHI, 2013, localização Kindle 1578


de 3283) acrescenta:

a frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela


inclui uma idéia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos
é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de
ao povo para expressar sua voz através da mídia.

89 Guareschi (2013) faz uma recuperação histórica breve do significado do


termo liberdade de imprensa, mais informações, consultar o texto “O Direito humano
à comunicação: por uma democratização da mídia.” O termo origina-se da liberdade
de imprimir: como a ‘imprensa’ era o único modo de expressão através de um meio,
proibindo-se a impressão, estava-se ao mesmo tempo proibindo a existência da im-
prensa.
Lima (2011, p 16) também aponta a dificuldade atrás de quem é o
sujeito do direito à comunicação. A defesa da bandeira da liberdade de im-
prensa, confunde-se com a liberdade de expressão, sendo difundida pelos
principais veículos de comunicação.

A grande mídia fala na liberdade de imprensa e a equaciona com a


liberdade de expressão, mas omite que o fundamento dessa liber-
dade é o direito do cidadão de ser bem informado e de informar
também. Há um deslocamento do sujeito do direito, que sai do
cidadão e da cidadania para as empresas, que são intermediárias
dessas coisas.

Comparato (2001, p.12) problematiza:

Ora a liberdade de expressão não se confunde com a liberdade de


exploração empresarial nem é, de modo algum, garantida por ela.
Constitui, pois, uma aberração que os grandes conglomerados do
setor de comunicação de massa invoquem esse direito fundamental
à liberdade de expressão, para estabelecer um verdadeiro oligopó-
284 lio nos mercados, de forma a exercer, com segurança, isto é, sem
controle social ou popular.

Contemplar o direito à comunicação é levar em conta o direito dos


espectadores da TV, dos ouvintes das rádios e dos leitores das mídias ele-
trônicas; e não, colocar como soberano desse direito, os mediadores deles.
Documentos legais asseguram o direito à comunicação, como a De-
claração Universal dos Direitos Humanos de 1948 no seu Artigo 19. É o
primeiro documento internacional, reconhecido na atualidade, a destacar
a liberdade de expressão no seu texto:

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão,


o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e
o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras,
informações e ideias por qualquer meio de expressão (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, também contempla esse
direito, no Artigo 220, que ainda está pendente de regulamentação. Mas,
apesar de ser garantida como direito e elemento imprescindível para a
reprodução social, na formação social brasileira, a comunicação está ainda
em um rol de direitos negados, o que deixa implícito a negação de outros
direitos (GUARESCHI, 2013).
Na formação democrática brasileira, as classes subalternas se es-
tabeleceram sob princípios não igualitários, sendo negadas todas as
dimensões da cidadania, ou seja, a não garantia de todos os direitos
culturais básicos, como a informação, o conhecimento e a representação,
elementos que contribuem para a participação nos processos decisórios
da sociedade. Historicamente, o que temos é uma sociedade caracterizada
por uma escassa tradição democrática e a presença organizadora de um
Estado muito asfixiante, que acaba por bloquear bastante, a vida partidária
e associativa.
O regime democrático no Brasil seguiu um caminho no qual:
285
as tensões entre a ordem legal criada pela constituição e a ordem
legal criada pelos costumes restringem a plena vigência dos princí-
pios democráticos, colorindo de modo especial toda a estrutura e
o funcionamento das instituições políticas em nosso meio. (FER-
NANDES, 2008, p. 95).

Com a negação desde a informação, a cidadania passa a ser preju-


dicada, conforme demonstra Jambeiro (2007, p. 119): “O incremento da
universalização dos serviços de informação e comunicações é, pois, con-
dição básica para a inserção dos indivíduos como cidadãos”.
Lima (2011) também aponta, que a consolidação do direito à comu-
nicação no contexto brasileiro ainda está distante. Para o estudioso, uma
comunicação democrática implica participação no seu planejamento, no
sentido de ter direito de dizer a palavra, garantindo-se, dessa maneira, o
direito à comunicação.
Já Guareschi (2013) enumera ameaças ao direito à comunicação:
1) a concentração da mídia (talvez a mais destrutiva); 2) o interesse pelo
lucro; 3) a falta de democratização do conhecimento; 4) a exclusão digital;
e, 5) a supressão dos direitos civis. E conclui que o direito à comunicação
é contextualizado com outros direitos, ou seja, não se constitui sozinho.
Cada vez mais, a pluralidade e diversidade diante do mercado se veem
diminuídas. A diversidade informativa e a pluralidade de vozes no ambien-
te midiático e, em espaços de opinião, são necessárias para um exercício
crítico. Então, se são diminuídas as possibilidades, consequentemente, a
liberdade de expressão é atingida. Portanto, vale ressaltar que o reconhe-
cimento do direito à comunicação é necessário ao exercício dos demais
direitos humanos e, portanto, elemento fundamental da vigência demo-
crática.
Mesmo sendo a comunicação nas sociedades modernas suporte da
dinâmica social e a garantia dos direitos fundamentais e da cidadania, sus-
tentadas e defendidas pelas democracias burguesas, o direito à comunica-
ção é constrangido pela hegemonia liberal, que coloca o mercado como
286
eixo central do ordenamento social, confiscando as democracias e, anulan-
do a esfera cidadã. Gomes e Maia (2008, p. 12) afirmam que:

os meios de massa são vistos como o meio ambiente fundamental


da comunicação política, a qual se dirige do centro à periferia do
sistema político, como facilitadores ou perturbadores do acesso
dos cidadãos à informação política necessária para a sua participa-
ção cívica, como fiadores das liberdades políticas da cidadania em
face das pressões e contrapressões de governos e corporações [...].

O desenvolvimento da comunicação e dos meios de comunicação


caminha ao lado do Capitalismo, sendo que os avanços na infraestrutura
de transporte e de informação nos Séculos XIX e XX estiveram, irre-
mediavelmente, apostos ao grande capital, seja industrial ou financeiro, e
também, aos Estados. Com a chegada do rádio, em 1922; e da televisão
no Brasil, por volta de 1950, os mercados da comunicação e os culturais
se organizaram em formas de oligopólio e monopólio com poder e liber-
dade de ação bem amplos, que por vezes, ameaçavam a estabilidade dos
governos.
Se nas fases anteriores ao Capitalismo, a informação, a comuni-
cação e os meios de comunicação estavam relacionados ao comércio, ao
transporte e ao sistema financeiro, atualmente, com a implantação de po-
líticas neoliberais e na fase do Capitalismo monopolista, relacionam-se di-
retamente com a formação e o funcionamento dos mercados aliados ao
desenvolvimento de novas tecnologias. É essa relação intrínseca entre co-
municação e Capitalismo que contribui para um cenário de concentração
e de ameaça ao direito à comunicação.
Para Bolaño (2008), a comunicação nas condições do Capitalis-
mo avançado no qual vivemos, dos Séculos XX e XXI, é instrumento
de poder e, por assim destacar, os interesses gerais e particulares vão se
opor na prática, ou seja, os conflitos são iminentes e culminam em orga-
nização de sistemas nacionais de comunicação, a fim de compatibilizar as
posições em disputa, como as regulamentações pelas políticas públicas de
287
comunicação.
No Brasil, apesar do direito à comunicação ser garantido na Cons-
tituição Federal de 1988, no setor da radiodifusão (comunicação eletrônica
rádio e TV), os interesses políticos, econômicos ou religiosos se reúnem.
São poucos os que têm acesso à comunicação e aos meios de comunica-
ção, assim como, são poucos os operadores dessa área. Dessa maneira, o
poder de utilização da comunicação e dos meios de comunicação acaba se
constituindo nas mãos de poucos.
Somado a um ambiente de regulação dispersa e pouco consistente
para as garantias efetivas dos direitos fundamentais, com destaque para
o direito à comunicação, a radiodifusão prosperou de forma concentra-
da. Isso assinala um dilema, conforme afirma Moraes (2010, p. 205), “a
concentração da mídia se consolidou no vácuo aberto pela liberalização
desenfreada, pela insuficiência de marcos regulatórios e pela deliberada
omissão dos poderes públicos e de organismos multilaterais.”
Desde o início, o modelo de exploração da radiodifusão no Brasil
já privilegiava as esferas privada e comercial. O Estado explora o serviço e
delega a administração e operação a terceiros, por meio de outorgas para
a iniciativa privada. Salientamos que essa configuração não contou com
a discussão do público, ou seja, não teve participação popular, episódio
comum nas decisões políticas do país.
Contamos com um modelo aberto à iniciativa privada e leis frag-
mentadas e fragmentárias: temos como legislação básica, o Código Brasi-
leiro de Telecomunicações (CBT) de 1962, desatualizado e fragmentado
pela Lei Geral de Telecomunicações de 1997; e outras normas, como por
exemplo, resoluções, decretos e portarias, além do próprio texto constitu-
cional que configura, sem ainda regular, várias questões da comunicação
social. Enfim, é uma regulação omissa, que contribuiu para a concentração
da propriedade dos veículos de comunicação no país.
A concentração atinge, não apenas o rádio e a televisão; mas tam-
bém, outros veículos, como jornais e revistas. E, na atualidade, com as
novas tecnologias, avança para os domínios da internet. De fato, os gru-
288
pos controladores que concentram essa mídia, são os mesmos, do rádio
à TV, passando pelos jornais até portais na internet. No Brasil, na mídia90
impressa e na mídia eletrônica é comum os controladores se confundirem.
Lima (2011) afirma, que o Estado Brasileiro, como fiscalizador,
nunca se preocupou com a propriedade dos meios de comunicação e, nem
com formas de regular a concentração:

Uma das consequências dessa omissão reguladora é que nossa mí-


dia privada comercial foi sempre oligopolizada, exatamente porque
se formou com base na ausência de restrições legais à propriedade
cruzada dos diferentes meios. (LIMA, 2011, p. 29).

90 Lembrar no texto que a palavra mídia equivale à expressão, meios de comu-


nicação, também adotada no texto. Comunicação eletrônica equivale à comunicação
de rádio e TV.
Além disso, o sistema midiático brasileiro esteve e é controlado por
grupos familiares, que são os mesmos grupos oligárquicos da política re-
gional e local, de Deputados, de Senadores, de Governadores, dentre ou-
tros, até mesmo de ex-políticos.
Estudiosos denominam esse fenômeno de coronelismo eletrôni-
co , similar à prática política do coronelismo, presente na fisiologia da
91

formação sócio-político-econômica brasileira.

A MÍDIA TRADICIONAL: Maranhão

A presença das oligarquias políticas e familiares no campo midiá-


tico, praticamente dividiu o Brasil em domínios específicos. Assim como
em vários Estados, no Maranhão o domínio também está reproduzido.
Segundo dados do Ministério das Comunicações (MINICOM), até setem-
bro de 2014, o Maranhão possuía 95 emissoras de rádios comerciais, 11
TVs e, 333 retransmissoras de TVs92. É dentro desses números que se
apresentam os atores detentores da mídia local, ratificando as colocações 289
anteriores.

91 Fenômeno bastante particular, alvo de controvérsias no campo da comuni-


cação, que a posse e utilização política de estações de rádio e de televisão por grupos
familiares das elites políticas locais ou regionais é sua base. Já o coronelismo eletrô-
nico, por outro lado, é um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do Século
XX, que sofre uma inflexão importante com a Constituição de 1988, mas persiste e
se reinventa depois dela, resultante da adoção do modelo de curadoria (trusteeship
model), isto é, da outorga pela União a empresas privadas da exploração dos serviços
públicos de rádio e televisão e, sobretudo, das profundas alterações que ocorreram
com a progressiva centralidade da mídia na política brasileira, a partir do regime mi-
litar (1964-1985). Mais informações também em Cultura do silêncio e democracia
no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015) de Venício A. de
Lima.
92 Retransmissora não é emissora geradora, apenas retransmite o sinal de uma
cadeia geradora. Uma geradora de TV ou rádio pode retransmitir o sinal para várias
retransmissoras.
O panorama da concentração no Brasil mantém inalterado, o his-
tórico domínio do setor por uns poucos grupos familiares e pelas políti-
cas locais e/ou regionais. Soma-se a esse cenário a posição hegemônica
ocupada por um único grupo nacional, o Grupo Globo, e mais um novo
poderoso ator, as igrejas evangélicas.
Segundo Lima (2004), os grupos familiares ainda controlam a ra-
diodifusão e a mídia impressa no Brasil; e os oito principais do setor da
radiodifusão são: em âmbito nacional, família Marinho (Grupo Globo),
família Saad (Bandeirantes) e família Abravanel (SBT); em âmbito regio-
nal, família Sirotsky (RBS), família Daou (TV Amazonas), família Jereissati
(TV Verdes Mares), família Zahran (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e
família Câmara (TV Anhangüera). Entre os grupos familiares, apenas Saad
e Abravanel não são afiliados ao Grupo Globo.
Acrescidas a esses atuantes na radiodifusão brasileira, destacam-se
também, outros cinco grupos familiares que controlam a comunicação
no país: Civita (Abril), Mesquita (Grupo OESP – Grupo Estado), Frias
(Grupo Folha), Martinez (CNT) e Levy (Gazeta Mercantil) (LIMA, 2004).
290
A monopolização é horizontal, produzindo-se dentro de uma mes-
ma área do setor. Como a concentração na TV aberta e no rádio é vertical,
uma vez que um único grupo controla os vários aspectos, desde a produ-
ção, veiculação, comercialização e distribuição, e; como a propriedade é
cruzada, o mesmo grupo detém várias mídias do setor das comunicações.
De TVs abertas a jornais impressos, a portais na internet, a rádios, a revis-
tas, a TVs a cabo até a telefonia.
Além disso, o monopólio também se estabelece no formato de cruz,

Trata-se da reprodução, em nível local e regional, dos oligopólios


da ‘propriedade cruzada’, constituindo o que se chamou ‘mono-
pólio em cruz’. Verificou-se que, na grande maioria dos estados da
Federação, os sistemas regionais de comunicações são constituídos
por dois ‘braços’ principais, geralmente ligados às Organizações
Globo. (LIMA, 2004, p. 102).
O Projeto Donos da Mídia93, que reúne dados públicos e infor-
mações dos grupos de mídia montou um panorama completo da mídia
brasileira. Elaborado pelo jornalista Daniel Herz, conta com atualizações
contínuas, acerca das informações sobre o sistema midiático do país. Com
base nesse projeto, e também, com informações do Minicom94, podemos
perceber que dentre os números de rádios e de TVs no Maranhão, a pro-
priedade é concentrada e pertence a políticos locais. O relatório Donos
da Mídia demonstra a presença de 11 grupos no Estado. No quadro abai-
xo, relacionamos os grupos com a quantidade de veículos, proprietários e
abrangência.

Quadro 1 – Grupos midiáticos atuantes no estado do Maranhão


SISTEMA MIRANTE com 22 veículos
Veículos ●Rádios Comerciais (FM e Abrangência: Vários municípios do estado,
AM) em cidades, como Santa Inês, Chapadi-
●TVs (Mirante Cocais, TV Rio Balsas, nha, Codó etc e na capital.
Mirante São Luís e Imperatriz) Grupo afiliado às redes Band (TV), Globo
●Jornal Impresso (O Estado do Ma- (TV)
ranhão) Gaúcha (rádio)
Proprietários/sócios: 1) Fernando Sarney possui 06 veículos (Rádio Mirante FM de 291
São Luís, e a TV Mirante de São Luís. 2) Roseana possui 04 veículos e é sócia de Fer-
nando Sarney nos 02 veículos citados. (Ex-Governadora) 3) José Haichel Sobrinho
é sócio de emissoras de rádios em São Luís (Mirante AM e FM), possui 04 veículos,
sendo sócio dos citados acima. 4) José Sarney Filho possui 02 veículos, é sócio da
TV e Rádio Mirante de São Luís (Deputado Federal). 5) José Reinaldo Carneiro Ta-
vares possui 02 veículos, sócio da Rádio Alecrim (Caxias) e Rádio Verdes Campos
(Pinheiro), é Deputado Federal. 6) José Carlos de Morais possui 06 veículos, como
TV Mirante e TV Meio Norte de Teresina, é o mais novo sócio.
DIFUSORA com 07 veículos

93 Sítio do Projeto Donos da Mídia: http://donosdamidia.com.br/.


94 Antigo Ministério das Comunicações. Atualmente, no Governo Temer, jun-
tou-se a outro Ministério, originando o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações
e Comunicações (MCTIC).
Veículos: Concentrados mais na ca- Abrangência: Vários municípios como, São
pital, São Luís Luís, Imperatriz e Barra do Corda. É afiliado
●Rádios Comerciais (FM e AM, Rá- às redes SBT e Record (TV)95
dio Guajajara de Barra do Corda)
●TVs (Imperatriz)
●Jornal Impresso (O Imparcial)
Proprietários/sócios: 1) Edison Lobão possui 05 veículos, dentre eles: Rádios Difuso-
ra AM e FM e TV Difusora, esses na Capital. (Empresário e suplente de senador) 2)
Luciano Lobão possui 04 veículos, sendo sócio das rádios comerciais do grupo, e a
TV, todos localizados na Capital. 3) Edison Lobão possui 01 veículo, a Rádio Guaja-
jara de Barra do Corda(MA).(Senador) 4) Zenira Massoli Fiquene possui 02 veículos,
rádio e TV na Região Tocantina (Imperatriz).(Viúva de Ex-Governador do MA)

FAMÍLIA ROCHA com 03 veículos96


Veículos: Abrangência: São Luís, Pindaré-Mirim, Presi-
●Rádios Comerciais AM (Rádio dente Dutra, Pedreiras, Balsas, Bacabal, Ca-
Capital AM 1180, Paranoá AM) rolina entre outros, com retransmissoras de
●TVs (TV Cidade em São Luís) rádio e TVs
Proprietários/Sócios: 1) Roberto Coelho Rocha (político, Senador) possui 05 veí-
culos, rádios AM em Presidente Dutra 2) Espólio de Luiz Alves Coelho Rocha (Ex-
-Governador) possui 06 veículos, sendo rádios e a TV Cidade. 3) Luiz Rocha Filho
(político, Prefeito de Balsas) possui 04 veículos, Rádio Paranoá em Presidente Du-
tra, Rádio Capital do Maranhão de Pindaré e; São Luís, Rádio Capital AM 1180. 4)
Alzenira Rocha Oliveira possui 04 veículos.
SISTEMA MARANHENSE com 02 veículos
292 Veículos: Abrangência: São Luís, Viana, João Lisboa,
●Rádio Comerciais (Rádio Karajás Codó, Bacabal
950 em João Lisboa, Rádio Maracu Afiliado à Rede Band TV
em Viana)
●Retransmissoras de TVs
Proprietários/Sócios: 1) Manoel Nunes Ribeiro Filho (ex-político) possui 02 veículos,
Rádio Jainara em Bacabal e Rádio Karajás. 2) Pedro Fernandes Ribeiro (político,
Deputado Federal) possui 02 veículos, sendo uma emissora de rádio em outro es-
tado, Mossoró-RN. 3) Edmilson Pontes de Araújo possui 04 veículos, sendo emisso-
ras de rádio em Cândido Mendes, Santa Rita e Santa Luzia. Ainda existem mais
outros 7 sócios do grupo.
ZILDENI FALCÃO com 02 veículos

95 Por vezes, um mesmo grupo de comunicação, dependendo da localidade


pode ser afiliado e transmitir o sinal de redes nacionais diferentes, por exemplo, em
uma Cidade do Interior do Maranhão, o grupo Difusora pode ser afiliado da Rede
Record e; em outra, pode ser afiliado do SBT.
96 A família Rocha e a Vieira da Silva entraram em disputa judicial sobre a pro-
priedade e a concessão dos veículos, gerando uma polêmica que rivaliza a propriedade.
Veículos: Abrangência: São Luis e interior do estado,
●Rádios Comerciais (FM e AM, Rá- pois a Rádio São Luís atua em parceria com
dio São Luís, 1340khz, Rádio Jovem a Rede Jovem Pan Sat (AM).
Pan São Luís FM) Rádio TV do Maranhão Ltda. Grupo é afilia-
●TV São Luís, Rádio TV do Mara- do à Rede TV
nhão – São José de Ribamar
(retransmissoras Rede TV)
Proprietários/Sócios/Diretores: 1) Ieda Maria Almeida F. de Oliveira sócia rádio AM
em São Luís, com 02 veículos. 2) Zildeni Falcão de Oliveira possui 02 veículos de rá-
dio AM e FM em São Luís, Rádio Jovem Pan e AM 1340. 3)Milton de Sousa Barbosa
Uchoa possui 02 veículos.
VIEIRA DA SILVA com 02 veículos –
Veículos: Abrangência: São Luís, Balsas, Bacabal
●Rádios Comerciais (Rádio Cidade
FM, 99,1 em São Luís) Afiliado à rede Record(TV)
●TV Cidade em São Luís
Proprietários/Sócios: 1) Espólio de Luiz Alves Coelho Rocha possui 06 veículos do
grupo Família Rocha e a TV Cidade. 2) Roberto Coelho Rocha possui 05 veículos,
TV Cidade e outros veículos pertencentes apenas à família Rocha . 3)Raimundo
Lisboa Vieira da Silva possui 02 veículos, Rádio e TV Cidade.4)Maria do Rosário A.
Vieira da Silva possui 01 veículo, Rádio Cidade.
NATIVA com 01 veículo
Veículos: Abrangência: Imperatriz
●Rádios Comerciais Rádio Nativa Grupo é filiado à Rede Record.
FM 293
Proprietários/Sócios/Diretores: 1) José Carlos de Morais possui 06 veículos, como
a Rádio Veneza FM em Caxias-MA e TVs e rádios no Piauí, sócio da TV Mirante. 2)
Michelangela Barros Vieira possui 01 veículo. 3)Michelyne Barros Vieira possui 01
veículo, estas últimas ambas sócias da Rádio Nativa FM.
GOVERNO FEDERAL com 01 veículo
Veículos: Abrangência: TV aberta, canal 2
●TV Brasil Afiliada à rede EBC (TV)
Proprietários/Sócios:1)Hélio Araújo possui 38 veículos. 2)Januário Procópio Toledo
com 38 veículos e demais sócios figuram também com 38 veículos cada por todo
Brasil.
Diretora: Maria Tereza Cruvinel (a mesma nos demais estados)
OESP com 01 veículo (Grupo o Estado)
Veículos: Abrangência: Santa Inês
●TV Eldorado Filiada à rede TV Aparecida
Proprietários/Sócios: 1)Celio Virginio dos Santos Filho. 2)Maria Cecília V. de Carva-
lho Mesquita. 3)Eloi Lacerda Gertel e mais 15 sócios da mesma família Mesquita.
Dezenove proprietários figuram como sócios em mais outros dois veículos de rádio
em São Paulo e todos possuem 03 veículos.
Meio Norte com 01 veículo
Veículos: Abrangência: Timon
●Rádio Comercial – Meio Norte FM Controlado pelo Sistema Integrado Meio
Norte, que abrange o estado do Piauí. Gru-
po filiado às redes Band (TV) e Globo AM –
rádios
Proprietários/Sócios:1) Fernando José Macieira Sarney que possui 06 veículos (rá-
dios e TVs em São Luís e Imperatriz). 2) Ana Amélia Guimarães Sampaio possui 04
veículos, dentre eles, rádios FM no Estado do Ceará.
Governo do Estado do Maranhão com 01 veículo
Veículos: ●Rádio Comercial e públi- Abrangência: Região Metropolitana de
ca (AM, Rádio Timbira AM) São Luís, Alcântara, Rosária, Itapecuru e
outros municípios do Estado.
DIRETORES/Sócios: 1 )Fernando Luis Salgado Borges 2) Raimundo Fernando Leite 3)
Raimundo Leda Dourado
Fonte: Donos da Mídia (2017)

Pelo quadro acima, percebe-se o domínio de políticos e de ex-po-


líticos na mídia local, sendo o Sistema Mirante o maior de todos, seguido
pelo Grupo Difusora, ambos pertencentes a políticos do Estado, Família
Sarney e Família Lobão, respectivamente.
294 O Sistema Mirante, dentre os grupos regionais de comunicação no
país figura como terceiro maior, perdendo em número de veículos, apenas
para os grupos Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS) e Organização Jai-
me Câmara (OJC), que possuem 57 e 24 veículos, respectivamente, ambos
afiliados à rede Globo, com atuações no Sul e Centro-Oeste do país.
O Grupo Difusora e o Sistema Mirante estão ligados a grandes
redes do país, que concentram e alcançam a maior parte do território na-
cional, como o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e o Grupo Globo,
seguidos do Grupo Band.
No total, o Estado do Maranhão possui 174 veículos de comuni-
cação, desde rádios comerciais, comunitárias e TVs. Na Capital São Luís,
existem 14 emissoras de rádios comerciais, entre FM e AM: Fundação
Cultural Pastor José Romão de Sousa (Rádio Esperança FM, 100,9), 105
FM, Rádio Universidade, 106,9, Rádio Cidade FM 99, Difusora 94 FM,
Mirante FM 96,1, Rádio Jovem Pan FM 102, 5, Rádio Timbira, MR Radio-
difusão LTDA, Rádio Difusora AM, Rádio Educadora AM 560, Mirante
AM 600, Rádio São Luís AM 1340, Rádio Capital AM 1180.
Já em relação às TVs, na Capital os canais são divididos entre a TV
Difusora, TV Cidade, TVE Maranhão, TV Mirante São Luís. Segundo
dados do sítio da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATAEL)97,
no Estado do Maranhão existem 10 empresas geradoras autorizadas para a
radiodifusão de sons e imagens, como exemplo, as televisões: TV Difusora
Sul, TV Difusora, TV Eldorado, TV Mirante Imperatriz, TV Cidade, TV
Rio Balsas, TVE Maranhão, TV Mirante São Luís, TV Mirante Cocais, TV
Meio Norte.
No cenário nacional e no retrato do Maranhão, percebe-se a no-
tória presença de políticos nas comunicações; quando não, parentes pró-
ximos estão no controle. Enfim, são grupos familiares vinculados a eli-
tes políticas locais e/ou regionais. A partir da década de 1990, soma-se
a presença de igrejas evangélicas no setor como possuidoras de veículos
de comunicação. Dessa maneira, esses grupos reproduzem e amplificam
ideias, concepções e valores para milhões de brasileiros. São esses grupos
295
interligados em formato de redes que são a base de um sistema de poder
econômico e político que se ramifica por todo o Brasil.
Para Arbex Jr (2010, p. 385):

O monopólio da comunicação exercido pelas corporações da mí-


dia tem conseqüências políticas, culturais, sociais e econômicas de
longo alcance e profundidade. Impede o debate plural e democrá-
tico das ideias, torna visível – quando não ‘demoniza’ – atores e
movimento sociais, padroniza comportamentos, constrói percep-
ções e consensos segundo critérios e métodos não transparentes
e não submetidos ao controle das sociedades. Ao tratar as noti-
cias como ‘produtos’ sujeitos à ‘lei do mercado’, a mídia recorre
ao sensacionalismo, ao sexo e à ‘erotização’ precoce das crianças,

97 Link do sítio da Anatel para visualização das emissoras geradoras de radio-


difusão no Maranhão. Disponível em: http://sistemas.anatel.gov.br/easp/Novo/
Consulta/Tela.asp?OP=E. Acesso em: 17 fev. 2016.
‘glamouriza’ o crime e cria estratagemas de sedução de leitores e
telespectadores.

Enfim, é construída simbolicamente uma realidade que é vendida


ao público, que influencia o debate, resultando em uma construção de
verdades universais e, que exclui posicionamentos diferentes e incômodos.
Novamente, Arbex Jr (2010, p. 389) contribui:

A ‘indústria cultural’ sufoca a produção local, impõe gostos, san-


ciona e dá visibilidades a jornalistas e intelectuais que sustentam a
idéia de que ‘o mercado’ é o melhor e o mais adequado (talvez, o
único) juiz de valor, ao passo que pune, com demissão ou conde-
nação ao ostracismo, aqueles que sustentam posições contrárias
ou distintas.

Há indicadores que à medida que a concentração se expande, a plu-


ralidade e a diversidade são elementos menos importantes, resultando no
estreitamento dos pontos de vista. Em uma TV são veiculadas as mesmas
296 notícias que em outra; no rádio acontece de maneira similar; as agências
de notícias parecem que só apuram os mesmos fatos. Então, se assistir um
jornal X ou Y o espectador consumirá praticamente as mesmas notícias,
pois os veículos seguem geralmente as mesmas pautas.
A exclusão e o sufocamento do contexto local são contínuos nesse
padrão de concentração horizontal, vertical e cruzado. Pela formação das
grandes redes, representado pelas retransmissoras, tanto no rádio quanto
na TV, aquelas práticas são consolidadas.
A verdade é que, se existem poucos que concentram o poder midi-
ático e, se na atualidade a mídia cumpre a função de difundir conteúdos que
ofereçam orientações gerais para a compreensão dos fatos sociais, a ótica será
sintonizada com determinada agrupação social, mais ou menos homogênea
e preponderante; e os conteúdos simbólicos difundidos refletirão o posicio-
namento desses poucos detentores. Moraes (2014, p. 4) relata a partir da ótica
gramsciana que:
os jornalistas burgueses “apresentam os fatos, mesmo os mais sim-
ples, de modo que favoreçam a classe burguesa e a política burgue-
sa em prejuízo da política e da classe trabalhadora”. Exemplificou
com a cobertura tendenciosa das greves: Para a imprensa burgue-
sa os trabalhadores estão equivocados. Há uma manifestação? Os
manifestantes, simplesmente porque são trabalhadores, são sempre
os revoltados, os intransigentes, os delinquentes.

Ainda sob a perspectiva gramsciana, o papel da mídia como aparelho


privado de hegemonia98, sob a influência das classes, instituições e elites do-
minantes é de buscar intervir no plano ideológico-cultural e político com o
objetivo de disseminar informações e ideias, que contribuem para a forma-
ção e consolidação do consenso em torno de determinadas concepções de
mundo, fortalecendo a ordem do capital, conseqüentemente, a democracia
burguesa. No nosso caso, com uma tradição democrática, ainda em cons-
trução, com instituições frágeis e uma sociedade civil que caminha para o
fortalecimento, as possibilidades de influência do grupo midiático aumen-
tam ainda mais.
297
CONCLUSÃO

Diante de um contexto de consolidação ao direito à comunicação,


ainda distante, de um panorama midiático pouco favorável à pluralidade e
diversidade de poucos grupos controladores midiáticos no país, é impres-

98 Para Gramsci (2014), existem dois grandes ‘planos’ superestruturais, um de-


les pode ser chamado de ‘sociedade civil’, que é o conjunto de organismos designados
vulgarmente como privados. A hegemonia é um conceito que expressa a capacidade
de uma classe social unificar em torno de seu programa político e de projeto de so-
ciedade um bloco de forças não homogêneas, marcado por contradições no interior
da classe, esses organismos da sociedade civil, que podem ser chamados de aparelhos
privados de hegemonia, facilitam e conduzem a reprodução do discurso dominante.
São instituições que contribuem para o convencimento, a difusão de uma ideologia, a
conquista de consentimento por parte dos dominados, como por exemplo, as escolas,
as igrejas, os sindicatos, os meios de comunicação entre outros.
cindível a luta contra a concentração na comunicação, que é um processo
vital à democracia. Na história brasileira, a luta contra a concentração so-
fre ataques contínuos dos monopólios midiáticos por meio do lobismo
entre políticos, que tem o objetivo de impedir, desestimular ou proibir a
formação de meios alternativos de comunicação, além de dificultar o pró-
prio exercício do direito à comunicação.
Para Lima (2011), no contexto da democracia parlamentar (demo-
cracia burguesa), o direito à comunicação e a luta pela democratização da
comunicação, ou seja, do efetivo exercício do direito de comunicar, não é
possível em relação à grande mídia. Para o teórico, o caminho é o fomento
de alternativas que deem a possibilidade da pluralidade e da diversidade de
vozes, para, enfim, exercitar-se esse direito. E o caminho para isso são as
políticas públicas, que incentivem os meios alternativos à grande mídia.
Já para Bolaño (2008), a concentração do poder que a comunicação
social confere em mãos privadas teria dois caminhos para o enfrentamen-
to: um sistema misto, em que um poderoso e legitimado setor público
fizesse o contraponto aos interesses dos monopólios e oligopólios da co-
298
municação; ou, uma forte regulamentação por parte do Estado sobre as
atividades destes últimos.
Consciente da necessidade de garantir o direito à comunicação,
de romper com o poder e a manipulação no cenário da comunicação no
Brasil, os sujeitos não hegemônicos levantam a bandeira de luta pela re-
gulamentação. Despossuídos do poder de comunicar, além da defesa da
regulação, defendem também o fomento de meios alternativos de comuni-
cação e, que diante das lutas por direitos e da mídia tradicional, colocam-se
como canais de resistência e nos apontam um caminho de mais pluralida-
de e diversidade.

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Capítulo 14

Cultura Popular em São Luís do Maranhão


nos Anos 90: bumba-meu-boi no contexto
do neoliberalismo
Luana Tereza de Barros Vieira Rocha

INTRODUÇÃO

São Luís, Capital do Estado do Maranhão, detém o título de Cidade


Patrimônio da Humanidade, desde dezembro de 1997, pela Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Esse
título é devido ao rico patrimônio material e imaterial, fruto da coloniza-
300
ção portuguesa e por ser um centro produtor de bens culturais de origem
africana, indígena e portuguesa.
Pela diversidade e forte apelo popular que essas expressões cultu-
rais apresentam a toda sociedade, muitos processos e interesses são desen-
cadeados. Esse acervo cultural tem se constituído em importante meca-
nismo de legitimação, acionado por grupos políticos para atingir e garantir
seu poder político.
Esse processo pode ser observado, quando estudamos a política
cultural do Governo de Roseana Sarney (1994-2002), que através da insti-
tucionalização das expressões culturais desencadeou profundas mudanças
nos grupos de Bumba-meu-boi, adequando-os aos interesses da indústria
do turismo e do Governo do Estado. Os interesses econômicos da polí-
tica cultural impuseram uma padronização das expressões, na busca de
modelá-las como produto vendável no mercado de bens culturais, local,
nacional e até internacional para o turismo.
A política cultural no Estado do Maranhão, principalmente, a par-
tir da Reforma do Aparelho do Estado, em 1998, realizou investimentos
em infraestrutura e mídia, que resultaram em mudanças na organização
interna de grupos de Bumba-meu-boi, principalmente, nas vestimentas
para as apresentações em arraiais espalhados pela Cidade, nas cantigas que
de maneira esporádica homenageiam dirigentes políticos e, no auto do
Bumba-meu-boi para se adequarem ao tempo do espetáculo exigido pelos
patrocinadores e pelo Governo estadual.
O Bumba-meu-boi é uma expressão da Cultura Popular maranhen-
se de grande reconhecimento no calendário festivo, em todo o território
nacional. Incorpora traços e características das matrizes culturais (índio,
negro, português), nas quais estão expressas na diversidade e particularida-
de dos sotaques/estilos de cada grupo de Bumba-meu-boi.
O valor cultural do Bumba-meu-boi está centrado na fala, na me-
mória e na mensagem, uma vez que leva os sujeitos a viver, no lugar festi-
vo, o tempo simbólico que interrompe o cotidiano. A festa insere um novo
significado, um novo sentido às vivências dos sujeitos naquele momento,
301
apoderando-se da rotina, excedendo a lógica das relações sociais, a consti-
tuir um cenário diversificado de práticas e representações que expressam
sentidos variados de viver, participar e festejar o cotidiano.
Concomitante, o Estado, ao identificar o potencial de popularidade
dessa expressão cultural cria mecanismos políticos e ideológicos de re-
estruturação da brincadeira. O processo de apoio à Cultura Popular por
parte dos Governos locais é realizado, através de injeção de recursos fi-
nanceiros ou, popularmente conhecido como cachês, dados aos grupos
juninos com destino a compra de materiais, como os adereços para os
grupos, vestimentas de brincantes, pagamento de transporte e, em alguns
casos, até como “agrado” aos integrantes dos grupos de Bumba-meu-boi,
independentemente de seu sotaque.
As atividades desenvolvidas pelos grupos de Bumba-meu-boi so-
freram um processo de racionalização que ressignificou suas práticas,
adquiridas em décadas de tradição. Ocorreu uma preocupação espacial e
temporal, quanto às práticas desenvolvidas pelas brincadas, algo impensado
em seus primeiros registros. Quanto ao espaço de apresentação, este ficou
restrito aos Vivas. Até meados da década de 1990, os grupos de Bum-
ba-meu-boi tinham um espaço maior e indefinido de apresentação que
giravam em torno de suas comunidades, vizinhanças e a convite de algum
amigo ou devoto de santos padroeiros.
Os sujeitos criadores do Bumba-meu-boi pertencentes à classe su-
balterna encontram-se em um universo contraditório em que, homens e
mulheres, criadores e disseminadores de normas, regras, elementos simbó-
licos ou modos de conceber e atuar no mundo, em todo o tempo e espaço
(CHAUÍ, 2004), vêm também apresentar instrumentos que contrariavam,
em maior e menor frequência, aos interesses das classes dominantes e
dirigentes.
No caso do Brasil, os princípios neoliberais foram assumidos
por determinados grupos da sociedade, como governantes, empresários
e lideranças sindicais e intelectuais, no período de transição democráti-
ca ocorrida na Década de 1980. Na década posterior, em 1990, houve a
302
intensificação desses ideais, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu
o Governo presidencial e realizou a reforma do Estado com forte marke-
ting organizado pela grande imprensa brasileira.
No Estado do Maranhão, Roseana Sarney rapidamente adota as
orientações do Governo Federal e realiza a reforma do aparelho do Esta-
do na administração estadual. Adota o modelo gerencial e o discurso da
eficiência, competência e modernização da máquina estatal. Através da
criação das Gerências de Desenvolvimento Regional com sedes em dezoi-
to municípios de um total de 217 são promovidos “à integração de todas
as ações do poder estadual”, bem como, passam a ser supervisionadas “as
unidades operacionais” nessas regiões, sendo instalados hospitais, escolas,
postos de saúde, centros sociais, equipamentos culturais e outros (SILVA,
2001).
A política cultural do Governo de Roseana Sarney se insere no con-
texto e nos princípios da reforma do aparelho do Estado, baseada prin-
cipalmente, no forte incentivo financeiro para a modernização da cultura
popular e dos espaços de apresentação das expressões culturais. Nisso,
tem-se os “Vivas”, diversos espaços públicos institucionalizados cons-
truídos pelo Estado nos quais são realizadas apresentações de inúmeras
expressões culturais juninas, tanto no período festivo quanto fora desse
período. Esses “Vivas” recebem o nome de acordo com os bairros em
que são construídos, como: “Viva Renascença”, “Viva Maiobão”, “Viva
Liberdade” ou “Viva Bairro de Fátima”, dentre outros.
Este estudo decorre da dissertação de Mestrado pelo Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas e, além das referências bibliográficas
que trabalham as categorias pertinentes ao objeto, têm-se também, as falas
de algumas lideranças de Bumba-meu-boi que já atuaram, direta ou indi-
retamente, nessas agremiações na referida década. Diante desse contexto,
o objeto deste estudo é analisar a relação entre política cultural e os pro-
cessos de criação e recriação do bumba-meu-boi, nos anos 1990, em São
Luís do Maranhão.

Cultura e cultura popular no capitalismo: um passeio 303


pelas concepções

O conceito de Cultura segue dois aspectos: um amplo; e outro, res-


trito. O primeiro relaciona o homem junto à natureza no envolvimento
histórico com outros sujeitos, a formação do seu comportamento, na con-
cretização dos modos de pensar, agir e sentir; o segundo apresenta um
caráter particular, Cultura na sociedade capitalista como fruto desse modo
de produção.
A Cultura Popular como particularidade da Cultura na sociedade
capitalista, também será compreendida de dois modos: uma como criação
histórica, contestatória e conformista da realidade social feita pela classe
subalterna defendida por Satriani (1986); e outra, como fruto da relação
contínua de interdependência entre os sujeitos históricos antagônicos,
proposta por Canclini (1983). Apesar de apresentarem alguns aspectos
diferentes, estas visões demonstram pontos em comum: ambas se funda-
mentam na lógica da produção, circulação e consumo da sociedade capi-
talista.
Na dimensão ampla, a Cultura no sistema total de vida é fruto de
fenômenos e comportamentos humanos, historicamente construídos
e determinados pela realidade dinâmica da sociedade que ultrapassam a
compreensão acerca do biológico como sexo, idade, cor, território.
Cordeiro (2012) ao elaborar um conceito de Cultura centra-se em
atividades humanas, como o manuseio da terra destinado ao cultivo de
alimento e demarcação de território para morada, no desenvolvimento de
regras e códigos que norteiam o comportamento do homem no mundo
social. Contudo, não esclarece a variação desses elementos no processo
histórico e como os momentos temporais pesam na forma como os sujei-
tos atuam no mundo ao criar a Cultura. As práticas humanas são diversas
de uma sociedade a outra e são construídas e reconstruídas nas relações
sociais. Como diz Marx (2008, p. 207): “os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias
escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente en-
304
contradas, dadas e transmitidas pelo passado”.
A Cultura em caráter amplo é processo complexo do homem no
trato com a Natureza, na luta constante pela vida. É momento de acúmulo
de experiências realizadas no mundo material. Portanto, a Cultura provém
do agir e do pensar do homem, não individualmente; mas em coletivo,
não separado da realidade, todavia determinado historicamente pelo meio.
A Cultura, quando compreendida no âmbito da sociedade capita-
lista assume um caráter restrito, apresentando elementos característicos
desse modo de produção. Nesse contexto, a Cultura será determinada pela
condição histórica em que os sujeitos, dela produtores, são levados a assu-
mirem no mundo social, isto implica dizer, que as relações de interesses,
a divisão de trabalho, as formas de dominação e exploração são aspectos
presentes na formação da Cultura em uma sociedade ou grupo social.
A Cultura nessa concepção é percebida como uma forma material
de produção da vida, que envolve os sujeitos em constante movimento em
uma realidade constituída de contradições e antagonismos de interesses,
da exploração do homem pelo homem nos diferentes momentos tempo-
rais.
No mundo social, o capital organiza, ininterruptamente, as rela-
ções político-econômicas com o objetivo de manter a “interdependência,
alienação e antagonismo” das relações sociais. Para tanto, são necessários
o domínio do conjunto, “das condições materiais e espirituais da apro-
priação do excedente econômico gerado pela força de trabalho nos países
colonizados e dependentes” (MARX, 2008, p. 207).
A Cultura, portanto, tem seu peso no movimento da realidade so-
cial. Ianni (1976, p. 13) defende, que “ideias, valores, princípios e doutri-
nas” são elementos indispensáveis para fazer cumprir as “forças produti-
vas e as relações de produção, ou as relações de apropriação econômica e
dominação política segundo as determinações básicas do modo capitalista
de produção”. A Cultura, em caráter restrito, pode ser percebida por dois
aspectos ou níveis, como infere Canclini (1983): o da representação e o
da relação entre estruturas. Segundo o referido autor, as determinações
305
gerais que o Capitalismo exerce sobre a produção artística são mediadas
pela estrutura do campo teatral, bem como, dos grupos ou instituições que
organizam as danças. Assim, o Bumba-meu-boi como produto cultural no
Maranhão apresenta em suas formas esses elementos.
Em uma apresentação de Bumba-meu-boi é visível o ato da repre-
sentação cujos conflitos sociais aparecem dramatizados em uma obra teatral
ou uma dança, as classes que se encontram representadas. Isto é presente
no chamado auto popular, quando membros da Igreja, da elite local e
demais sujeitos tornaram-se personagens de uma obra teatral, dança. Por
exemplo, o Pai Francisco, a Mãe Catirina, o patrão são figuras que expres-
sam as classes sociais e os antagonismos inerentes à lógica social que a
pertencem, portanto, isso revela “a relação entre a realidade social com a
estrutura e a sua representação ideal” (CANCLINI, 1983, p. 33).
Ainda com foco no auto popular, tomo outra forma de compreen-
são desse momento de expressão da Cultura: a capacidade de interpretar
a organização material expressa na roupa, na dança, na cantiga e no en-
volvimento entre os sujeitos para realizar tais tarefas. Nesse momento,
há uma relação, a da estrutura social com a estrutura do campo teatral e com a
estrutura do campo da dança, isto é, o envolvimento que os sujeitos históricos
têm entre si, os materiais ou recursos que potencializam o seu trabalho e
com inúmeras instâncias sociais da realidade, que dinamizam suas práticas
(CANCLINI, 1983).
A Cultura não se limita apenas à condição de objetos ou como bens
culturais prontos, isto é, o resultado do “ato de produzir” no objeto, mas
é instância que se faz no processo produtivo: “a produção, a circulação e a
recepção”. Isso quer dizer, que cada expressão da Cultura assume aspectos
diferenciados, de acordo com o público (ou receptores) e modifica o seu
significado, segundo o espaço físico (CANCLINI, 1983).
Canclini (1983) afirma que a Cultura Popular não é categoria de um
caráter único, fechado, imóvel. O autor considera que a forma apropriada
de chamar e compreender é: Culturas Populares. O termo no plural desig-
na a variedade étnica, o movimento histórico, espacial e temporal em que
306
os sujeitos sociais de classes antagônicas estão relacionados e inseridos no
universo de produção, circulação e consumo em uma constante interação,
convergência e choque que contribui na formação e dinamização das Cul-
turas Populares.
As Culturas Populares designam pelo menos de imediato, uma for-
ma particular de agir e perceber o mundo. Os homens divididos em classes
criam formas particulares de atuar no mundo social, as quais são determi-
nadas pelas condições materiais objetivas de vida, que levam à realização
e ao desenvolvimento de certas atividades em contextos específicos que
demarcam a trajetória social.
Assim, Burke (2010, p. 50) diz, que “se todas as pessoas numa de-
terminada sociedade partilhassem a mesma cultura, não haveria a mínima
necessidade de se usar a expressão “cultura popular””. Se o termo expres-
sa a divisão dos sujeitos por classes no sistema das relações de produção
econômica da sociedade, faz-se intrínseco salientar, que há uma Cultura
que seja diversa a das classes subalternas, a chamada Cultura dominante.
A compreensão de Culturas Populares apresentada por Satriani
(1986, p. 100) designa um conteúdo, tanto de caráter contestador quan-
to conformista sobre a categoria em análise. Para tanto, a essência dessa
concepção provém das relações entre as classes antagônicas que revela a
existência de duas Culturas distintas, “uma hegemônica, outra dominada
que são frutos da divisão da sociedade em classes” que, por sua vez “é
estreitamente ligada ao conceito de sociedade de classes”.
As Culturas Populares, como diz Satriani (1986, p. 75-76) é “pa-
trimônio coletivo das classes subalternas de qualquer sociedade” e são
consideradas acríticas e inferiorizadas, a começar pela forma como são
nomeados os sujeitos e, por conseguinte, as expressões culturais, isto é, “o
povo desvalorizado tornou-se objeto de uma mistificação, o que reflete a
negação concreta da igualdade”.
As Culturas Populares são ações humanas históricas do trabalho
material sob o peso do modo de produção; e não se concentram somente
na condição de um “conjunto de tradições ou essências ideais, preservadas
307
de modo etéreo”, pois as condições materiais de vida [...] “onde as can-
ções, as crenças e as festas estão ligadas de modo mais estreito e cotidiano
ao trabalho material ao qual se entregam quase todo o tempo” (CAN-
CLINI, 1983, p. 13). Canclini (1983, p. 43) propõe como interpretação de
Culturas Populares:

As culturas populares se constituem por um processo de apropria-


ção desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou
etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão,
reprodução e transformação, real e simbólica, das condições gerais
e específicas do trabalho e da vida.

Desse modo, o capital ao construir todo um cenário de domina-


ção, exploração e humilhação da classe subalterna cria, concomitantemen-
te, uma estrutura dinâmica de vida material de sujeitos subalternos. No
contato dessa realidade, o modo de produção depara-se com as maneiras
“específicas de representação, reprodução [...] das relações sociais” que,
por sua vez, compartilham “as condições gerais de produção, circulação e
consumo do sistema em que vivi” (CANCLINI, 1983, p. 43), as quais, os
subalternos nessas condições atuam nessa realidade.

OS BUMBAS NOS ANOS DE 1990: a resistência dos batalhões na socie-


dade de domínio do mercado cultural

Nos países periféricos e semiperiféricos, a crise foi sentida com


maior agressividade, visto que as instituições multilaterais dos países cen-
trais exigiram maior abertura dos mercados internos para o capital externo
e flexibilização das relações de trabalho, tendo o Estado como principal
agente na construção das condições políticas e ideológicas para a hegemo-
nia do Neoliberalismo.
No Brasil, esse projeto teve uma temporalidade diferenciada. Na
Década de 1980, os movimentos sociais e sindicais estavam em uma fase
de grande mobilização e se constituíram em força política, capaz de criar
308 barreiras à implantação das medidas neoliberais. A Década de 1990 foi
marcada pelo auge do Neoliberalismo e sua maior expressão foi o Go-
verno do Presidente Fernando Henrique Cardoso ao implementar o Pla-
no Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em 1995. A reforma do
Estado foi legitimada pela defesa da necessidade de tornar o Estado mais
eficaz e eficiente e, de construir as condições para a inserção do Brasil no
chamado mundo globalizado (SILVA, 2003).
No Maranhão, esse processo foi abraçado por Roseana Sarney que
se elegeu em 1994, reatualizando o discurso da modernização, que ao lon-
go dos 50 anos de domínio do grupo político do Ex-Presidente José Sar-
ney, tem sido a marca ideológica de sua legitimação no Maranhão.
A política cultural no Governo de Roseana Sarney assume impor-
tância vital, dentro dos eixos de intervenção do Governo, diferentemente
das gestões anteriores. Em seu Governo, expressões culturais são levadas
a um processo de institucionalização, assumindo funções políticas e mer-
cadológicas com objetivos claros de sustentar a imagem de Roseana Sar-
ney, como provedora e protetora da Cultura Popular. Dessas expressões
culturais, as Festas Juninas e o Carnaval foram privilegiados com muitos
recursos financeiros.
Esse projeto de apoio à Cultura Popular teve uma expressiva divul-
gação na mídia, dando muita visibilidade à política cultural da então Go-
vernadora Roseana Sarney. Para Nogueira (2005), uma das consequências
foram as expressões culturais “deixarem de ser expressão dos quintais dos
maranhenses para se transformarem” em espetáculo de consumo “além
de (re)afirmar as relações de dependência e aprofundamento do poder
político e do capital” (NOGUEIRA, 2005).
Para receber investimentos financeiros, o Governo agiu diretamen-
te na organização e padronização dos espaços, calendário e formas de
apresentação das expressões, de modo a atingir um padrão de alcance na-
cional e internacional. Foi exigido, que esses grupos de expressão popular
se transformassem em “personalidades jurídicas, de direito privado, sem
fins lucrativos”. Coube ao Governo, a responsabilidade em determinar os
locais e a quantidade de apresentações.
309
Segundo Claudio Sampaio, liderança do Boi Brilho da Ilha, sota-
que de orquestra, o primeiro patrocinador do grupo foi uma empresa: “no
primeiro ano nós tivemos uma grande ajuda que foi a questão da Vale do Rio, Vale
não, ALUMAR. A ALUMAR foi nosso primeiro grande patrocinador”. Quan-
do indagado quem teria tomado a iniciativa de buscar a parceria, Claudio
Sampaio responde que “fomos nós que procuramos com a ajuda de Seu Wellington
Lago”. Essa pessoa foi um dos primeiros organizadores do grupo junino,
quanto às documentações de legalização (CNPJ, Alvará de funcionamento
etc.), que era de suma importância para participação no circuito junino e,
por conseguinte, para obtenção de qualquer recurso financeiro, seja pelo
Estado, seja por empresas privadas.
É importante ressaltar, que os recursos financeiros adquiridos pelas
agremiações juninas – os cachês – não atendiam às despesas geradas pela
preparação de cada grupo. É comum recorrerem ao próprio salário ou à
aposentadoria ou buscarem ajuda de conhecidos, de brincantes mais anti-
gos e até empréstimos bancários para a quitação de despesas. As dificul-
dades financeiras não se restringiam apenas aos grupos menores de pouca
visibilidade midiática, mas é uma realidade vivenciada também por aqueles
que se inseriram na lógica capitalista de fazer e viver “cultura”.
Para tanto, certos grupos foram procurados ou buscaram patroci-
nadores ou contratantes que pudessem investir nessa empreitada. Assim,
os grupos de Bumba-meu-boi saíram de sua comunidade, dos arraiais es-
palhados pela Cidade e passaram a brincar em outros Estados do Brasil e
em outros países, com o intuito de obter recursos financeiros para manter
suas agremiações, bem como, o luxo exigido pelo Mercado cultural.
Essa prática teve seus primeiros passos, na Década de 1990, com
os grupos a se apresentarem em arraiais organizados por empresas ou
grupos de classe média. Isso retoma as ideias já tratadas sobre a adequação
de grupos aos interesses mercadológicos e políticos de padronização das
expressões de cultura popular, com o objetivo de adquirir um número sig-
nificante de exibições e, consequentemente, de cachês que além de serem
310 destinados a atender as demandas internas, também tinham o propósito
de atingir outros espaços fora do país.
Em toda a trajetória do Bumba-meu-boi até a Década de 1990,
verifiquei dois elementos fundamentais: a capacidade do enredo tratar de
eventos do momento presente e a resistência, diante das investidas de am-
plos setores sociais que eram contrários a essa criação e que, posterior-
mente, tornaram-se simpatizantes de suas práticas.
Os primeiros registros comprovam as ações dos boeiros e a ma-
neira com que a sociedade os recebia. A relação entre ambos possibilitou
a construção dessa expressão. Há uma característica visível no bailar, no
cantar, no vestir-se, no comunicar entre membros do grupo, comunidade
e até Estado: a capacidade criadora de ser uma expressão que retrata o pre-
sente, contrariando os pensamentos fossilizados ou estagnados que taxam
as expressões culturais populares, como um espaço de mera lembrança do
que já foi vivido.
O Bumba-meu-boi apresenta a revolta por sua condição, satiriza
os sujeitos detentores do poder, cultua suas crenças, louvam a natureza,
provoca em suas letras outros grupos e se vangloria por suas rimas e sons
criados. E a cada ano, novos enredos são gerados, a dinâmica da sociedade
alimentava toda essa criatividade, comprovando o caráter real/concreto
dessa arte. Nesse cenário, novos grupos se formaram (e vem se formando
até hoje), criando seu espaço de atuação.
O diálogo sobre os eventos ocorridos na Década de 1990, mostrou
que a maioria dos entrevistados nos três sotaques escolhidos para análise –
zabumba, matraca e orquestra – expressou o caráter temporal da brincada,
quanto à mediação entre a atualidade e as vivências do passado, ao retratar
a todo o momento, as transformações dos Bumbas, que foram constituí-
das de nostalgia, solidariedade, indignação com o descaso do Estado. Há
também, a preocupação com a continuidade da brincada, quando realiza-
ram o cuidadoso trabalho de preparar crianças e jovens brincantes para
assumir o desafiante compromisso de continuar a irreverente brincada de
quatro séculos. 311
Em entrevista com líderes ou representantes das agremiações de
Bumba-meu-boi, constatei que a maioria veio de Municípios do Interior
do Estado. São homens e mulheres do campo, que por determinações
socioeconômicas desfavoráveis migraram de sua terra natal em busca de
melhores condições de vida na Capital do Maranhão, São Luís. Maria José
Guimarães Santos, mais conhecida como Dona Zezé, fundadora e res-
ponsável pelo Bumba-meu-boi de sotaque de orquestra ‘Encanto de Santa
Cruz’, grupo C, de sotaque de orquestra.

Eu vi de Icatú mocinha (...) Eu vi pra cá pra São Luís para estudar porque
tu sabe naquele tempo no interior não tinha segundo grau, tinha aquele primá-
rio que era aquele primariozinho para ser professora e pronto, ficava naquele
povoado. Ai eu vi para cá, conheci um rapaz, me casei e graças a Deus hoje
sou concursada federal e logo vou me aposentar.
É na zona rural, que esses sujeitos criadores do Bumba-meu-boi,
na maioria hoje idosos (as), viram desde crianças a prática de uma arte
que se fez presente em toda a sua vida. Seus pais e pessoas próximas
os ensinaram a fazer do Bumba, um espaço de relação humana, quanto
ao envolvimento com parentes, amigos, vizinhos. Juntos desenvolveram
a capacidade de ajuda mútua, da habilidade de expressar com os recursos
materiais disponíveis o seu talento artístico e criador, trabalho criativo em
que se verificou o prazer e o deleite de atuar como sujeito que produz
para sua realização. Nas três últimas Décadas do Século XX, esse trabalho
agregou determinados elementos destinados, não apenas à satisfação par-
ticular do grupo ou comunidade, mas passou a atender um mercado que
tem as expressões culturais populares como mercadoria.
A vida destes sujeitos criadores do Bumba-meu-boi, segundo An-
drea e Junior (s/d, s/p) ocorreu através das: “migrações campo-cidade
e são caracterizadas através de fatores de expulsão e fatores de atração
correlacionados com o modo de produção capitalista que desemprega no
campo e cria esperança de trabalho na cidade”.
312
A migração campo-cidade decorreu da impossibilidade de sobre-
vivência no lugar de origem e, também, por não encontrar oportunida-
des no lugar de destino. O lugar de destino, geralmente foram áreas pe-
riféricas, potencializando o inchaço populacional e exercendo ocupações
temporárias e mal-remuneradas com as condições de trabalho precárias e
informais.
Ao se inserir na realidade urbana, homens e mulheres que antes
viveram na zona rural do Maranhão, como Guimarães, Cururupu, Ita-
pecuru, Icatú, Mirinzal, Rosário etc. uniram-se com outros sujeitos que
enfrentaram as mesmas condições sociais, dividindo anseios, interesses
e conhecimentos. Compartilharam o seu saber cultural adquirido desde
criança, assumindo o compromisso de continuar na nova terra sua herança
em canto e dança.
José Constantino Soares, conhecido como Seu Constâncio, funda-
dor do Bumba-meu-boi de sotaque de zabumba, Associação Recreativa
Boa Vontade (ou Boi da Boa Vontade), localizado no Bairro da Kennedy
apresentou em entrevista, o exemplo de continuidade, a resistência e a so-
lidariedade quanto ao cuidado de transmitir a um membro a responsabili-
dade de manter a brincada. O gosto pelo Bumba, presente desde a infância
foi continuado com sua chegada e permanência em nova morada na Ca-
pital, bem como, um instrumento de construção de novas amizades entre
sujeitos que vivenciaram realidades em comuns, a resultar, principalmente,
nos bois de promessas constituídos de sentimentos de pertencimento e
compromisso com a herança dada:

O Boi da Boa Vontade surgiu de uma promessa de outra pessoa. Eu fui


convidado para ser o regente da brincadeira. Aí em 1970 foi a fundação dessa
associação, em março de 1970 e ela [a dona] fez esse boi por quatro anos. No
quinto ano tanto ela como o marido dela, morreram. Ai ficou a brincadeira
solta. Aí todo mundo entregou aquilo que tinha dela ai eu procurei fazer um
boi pra mim. Ai em 1975 eu botei o primeiro boi meu, como meu mesmo em
1975. Ai eu tenho ele até hoje. Essa pessoa foi Sirlan de Ralufo Mendes era
o marido da dona da promessa, que era Silvina Monteiro Mendes e ela fez a
promessa pra tomar de conta da brincadeira e eu tomei de conta da brincadeira 313
nesse período de tempo.

Em uma perspectiva religiosa, o Boi surge em decorrência de um


pedido ao Santo e torna-se símbolo de aliança entre um devoto e São
João. Dessa promessa cabe ao dono da brincada cumprir a cada ano seu
compromisso, com a finalidade de agradar ao homenageado, qual concede
graças.
A religiosidade foi e é presente no cotidiano de muitos grupos de
Bumba-meu-boi. A devoção aos santos e entidades de religião de matriz
africana é marcante em todo o processo de existência desses grupos. Estão
presentes no couro do boi, em toadas, em barracões como altares a eles
dedicados etc.. As promessas ao principal santo homenageado no perío-
do, São João, é explicação para a criação de inúmeros grupos. Seu Zeca
do Bumba-meu-boi Lírio de São João, sotaque de orquestra, expressa um
exemplo dessa questão:
Foi uma promessa que eu fiz para São João que eu tinha um sobrinho muito
doente e tinha uma semana que ele vivia no sofrimento em um hospital de
uma dor que não passava. Ai eu vinha do Hospital Dutra, eu sou devoto de
São João eu pedi porque o médico não sabia o que ele tinha. Ai tinha feito a
cirurgia, nada! Não deram o resultado, não identificaram o que era ai eu pedi
a São João subindo ali no Colégio São Luís eu vinha chorando, eu pedi a São
João que se os médicos tivessem condição de curar o menino que ele deixasse ele
vivo, se ele visse que não, que em menos de 24h ele levasse o menino e realmente
foi o que aconteceu, que ele com vida ou sem vida eu botaria um boi para ele
[São João]. Isso em 1999. Ele faleceu em 1999 e eu coloquei o boi em 2000.
Daí surgiu Lírio de São João (Seu Zeca, 2014).

Há também outra forma de criação de grupos de Bumba-meu-boi.


A maioria dos grupos de Bumba-meu-boi, independente de seu sotaque
foram criados a partir de questões ligadas a aborrecimentos, disputas in-
ternas e desentendimentos entre pessoas de notoriedade dentro do grupo.
Grandes grupos de tradição surgiram dessa condição. Como o caso do Boi
da Vila Passos, em que Dona Elza, ao se referir à trajetória de Seu Canuto,
citou a formação desse grupo nesse Bairro:
314

O Mizico, aqui em São Luis. Láem Roma Velha no fundo do Monte Caste-
lo: Não sei o que aconteceu, mas lá eles se afastaram e fundaram esse Boi no
João Paulo na casa de Dona Tércia, depois de muito que vieram para a Vila
Passos, aí ele fixou casa aqui, aí veio pra cá morar.

A busca de melhor reconhecimento pelos amos ou cantadores foi


outra razão de desligamento do grupo de origem. Isto se deu, pela busca
de prestígio incentivado pela mídia, que atuou e continua, através do reco-
nhecimento do talento, bem como a proximidade com parlamentares, na
tentativa de adquirir maiores recursos para seu novo grupo e obter ganhos
particulares dessa relação.
Os meios de comunicação que nos primeiros registros do Bum-
ba-meu-boi retrataram de forma depreciativa e preconceituosa passaram
a atuar, com destaque nos Anos de 1990, de maneira a supervalorizar a
Cultura Popular, selecionando certos grupos e sotaques em detrimento
de outros. A mídia, ao se apropriar dessas criações populares, lançou ao
mercado, um tipo de produção cultural composta, não apenas do bailar,
do cantar; mas também, a história de seus boeiros, de sua comunidade.
Esse quesito é um dos elementos utilizados pelo Mercado cultural
que fascinava os consumidores. A aproximação entre consumidor e pro-
duto, que despertou a sensação de algo intrínseco possibilitou o poder de
domínio exercido pelo capital, tanto aquele que paga para ver e “sentir”
quanto os que estão a atuar como mercadoria, as expressões culturais. E
isso, decorreu do processo elaborado pela “industrialização do folclore ou
da cultura popular” que “fragiliza a organização política dos produtores da
cultura popular, enquanto sujeitos políticos mobilizados na, e pelo coleti-
vo da cultura popular (SILVA, 2008, p. 92).
Mas o grupo submetido à execução de tarefas com prazo de tempo
estipulado, reduzindo partes da brincada para atuar com maior eficiência,
segundo as ordens das secretarias de cultura era o mesmo que brincava na,
e com a comunidade, que deixava extravasar suas emoções, atravessava a
noite em louvor a São João e sob a participação ativa da comunidade con-
315
tinuava a festejar o período junino. É nessa condição que se encontrou a
resistência, pois nesse brincar “em casa” sujeitos de distintas gerações se
relacionavam, compartilhavam conhecimentos, aprendiam e introjetavam
o sentimento de pertencimento, envolvendo-se de tal maneira, que mesmo
com dificuldades financeiras, por exemplo, a expressão cultural apresen-
tava-se ano a ano.
Na fala de Seu Waltinho e de Dona Zezé, ambos de sotaque de
matraca (respectivamente, grupo B e C) foi constatado o respeito para
com a comunidade e a cooperação desta para a continuidade do grupo.
A necessidade de homenageá-la como uma forma de retribuição, ou seja,
dedicar um momento para ela em meio a tantas apresentações ao Estado
é fundamental para a brincada.

Você convida uma autoridade, um deputado, um senador, um vereador para


ser padrinho de seu boi, mas é de suma importância que você tenha uma pessoa
padrinho de seu boi dentro da sua comunidade. Porque é esse que lhe ajuda.
Pessoa comum. Para não acontecer, não como boi do João Paulo, porque nós
não temos muita pretensão, é pequenininha a nossa pretensão em relação a
isso, é que não atende celular, não atende telefone, está viajando a comunidade
não, o cara mora ao pegado da sede do boi, o cara ta ali com a gente, dia-a-dia.
Ontem tinha madrinha chorando da maneira do ritual de batismo do boi. São
pessoas simples, por devoção religiosa mãe de santo, pai de santo. São pessoas
da Cultura mesmo que nós escolhemos e são pessoas que sempre estão próxi-
mos. O Boi do João Paulo tem outra particularidade, os padrinhos não dão por
interesse, os padrinhos dão por simpatia (Seu Waltinho, 2014).

O Bumba-meu-boi, como também outras expressões culturais en-


volvidas, passou a ser procurado não apenas pelos veículos de comunica-
ção em massa, mas por dirigentes políticos. Os parlamentares buscaram
atingir ganhos políticos com distribuição de recursos financeiros ou ma-
térias-primas para grupos de expressão popular. A presença de Roseana
Sarney era constante em sedes de grupos juninos e, através de medidas es-
tatais, adquiriu significativa popularidade juntos aos Bumbas, sendo consi-
derada por estes como a mãe da Cultura.
316
Porque Roseana é a mãe da Cultura! Sem Roseana hoje a Cultura Popular ti-
nha morrido há muitos anos, porque nós tivemos uma reunião ontem de ontem
na câmera municipal o vereador Pedro Lucas tavam falando que nem as lojas
não apóiam a Cultura Popular e não apóiam mesmo! Aqui se você for pedir
uma seda eles não te dão. Então é muito difícil. Então se não fosse a mão da
governadora Roseana Sarney a Cultura Popular tinha morrido no Maranhão.
O Carnaval... Ela gosta, ta no sangue de Roseana, ela é a mãe da Cultura,
ela é a mãe! (Dona Zezé, 2014).

A tentativa de homogeneização e mecanização da Cultura Popu-


lar nos anos de 1990, em que Roseana Sarney atuou como Governadora
(1995 – 2002), não se destinou apenas a potencializar o espaço de domínio
do Mercado cultural, institucionalizando os Bumbas através de acordos
entre Estado (como CNPJ, Alvará de funcionamento, atualização de es-
tatutos) e empresas; mas também, cooperou com um processo de enqua-
dramento/rejeição dos grupos que resistiram ou não tinham condições
de qualquer ordem para aderir às novas exigências, ou seja, atender aos
interesses privados e imediatos das instâncias de poder.
A fala seguinte apresenta as divergências no interior dos grupos de
Bumba-meu-boi cujas gerações assumiram posturas diferentes: os mais
velhos temerosos com os inúmeros benefícios, através de capacitação ofe-
recida por empresa privada; e os mais jovens, motivados a ampliar seu
conhecimento e aderir aos novos elementos, conforme a oferta desses es-
paços, vislumbrando atingir maiores recursos, principalmente, financeiros.
Claudia Avelar, responsável pelo Boi de Seu Leonardo, sotaque de zabum-
ba, grupo A, localizado no Bairro da Liberdade revelou essas questões:

Sabe por quê esses grupos ficaram muito de lado? Porque os donos eles não
permitiam e não permitem que entre jovens com ideias. Tu ta entendendo?
Eu não sei, eles não têm confiança. Eles não têm uma grande confiança. Se
tem você que tem uma formação, que tem um conhecimento diferente que tem
como está atualizando a organização dele, tipo reformulando o estatuto, porque
muitos deles o estatuto é muito fechado dentro de casa e você sabe que de 2006
para cá com a nova atualização do código do processo civil então todas essas
instituições sem fins lucrativos elas tinham que ser renovadas, regulamentadas,
tipo assim: dando brecha para ela não se apresentar só aqui a nível de Estado, 317
ela tinha que ter brecha a nível de Brasil e a nível de mundo e poucos aceitaram
(Claudia Avelar, 2013).

O receio dos mais velhos se justificou pelos inúmeros contatos com


dirigentes políticos. A relação entre eles se deu com interesses claros de
ganhos particulares e que, geralmente, não era realizada, conforme o acor-
do feito. Muitos parlamentares descumpriram a ajuda oferecida, despertan-
do desconfianças entre os grupos por eles procurados.
A pouca popularidade e divulgação midiática de alguns sotaques,
também foi espaço de continuação de traços tradicionais dos Bumbas,
bem como, a resistência de elementos tradicionais, diante de inúmeros
assédios sofridos. Destaco os grupos de Bumba-meu-boi de sotaque de
zabumba, mas também, outros como os de matraca.
A divisão de despesas entre os membros dos grupos reforçaram a
ideia de ajuda e solidariedade. Alguns brincantes cooperavam com o alu-
guel do ônibus e confeccionavam suas roupas. Com os cachês, esse pro-
cesso vem se reduzindo e muitos brincantes, principalmente os mais jo-
vens entraram nos grupos com a pretensão em adquirir dinheiro e viagens
internacionais, responsabilizando o dono de muitas tarefas que, em déca-
das passadas eram divididos entre os membros. O conhecido isolamento
do sotaque de zabumba, principalmente, na Década de 1990, deu-se pela
forma com que esse foi compreendido pela mídia e a maneira pontual e
exclusivista da política pública de lncentivo à Cultura chegou a ele. Não
atrativo à mídia, e, por conseguinte, ao turismo e pouco reconhecimento
e investimento do Estado.
Porém, as dificuldades não recuaram as práticas dos sujeitos criado-
res dos Bumbas, nas quais foram e continuaram a ser movidas pelo amor à
expressão. A história desses homens e mulheres foi nutrida pela memória
coletiva, constituída de calor e significado em sua vida cotidiana.
Mais do que uma mera exibição cultural, o Bumba-meu-boi na di-
versidade de sotaques expressou, diante dos inúmeros entraves postos pelo
318 meio social, a história das classes subalternas. A considerada desordem e
insolência no passado e sua resistência no presente revelou as transforma-
ções sofridas, em que conforme a dinâmica da sociedade, o Bumba-boi foi
agregando elementos de seu tempo, bem como, ressignificando-se.
Foram de suma importância os recursos estatais e, particularmen-
te, a ajuda de determinados dirigentes políticos para o fazer cultural dos
grupos juninos. Não apenas os cachês voltados a atender minimamente
as despesas ou, a forma de estruturação dos arraiais e a distribuição dos
grupos nos chamados Vivas destinados às apresentações, como também,
a relevância do próprio Estado na disseminação dos Bumbas, quanto ao
reconhecimento dessa arte no país e no mundo. Esse processo deu-se
de forma hierárquica e excludente, causando inúmeros desapontamentos
entre líderes, membros e comunidade que participaram diretamente junto.
Tais medidas e envolvimentos destinados ao aprontamento dos Bumbas
desencadearam uma relação de dependência e favores.
Em meio a essas questões, o Bumba-meu-boi em São Luís sobrevi-
veu e assim continua por quatro séculos. Incorporou novos significados.
É uma criação do passado, que em toda a sua trajetória contou em ritmos
musicais e bailado, a história dos sujeitos criadores que cultuaram e lou-
varam seus santos e entidades. Isto que ocorre em todos os anos, fez-se
presente na vida de boeiros, catirinas, nego Chico, índias. Foi e é espaço
de diálogo entre gerações que a cada tempo incorporou e se faz como
processo dinâmico hoje, com novos elementos em seu enredo. Foram e
são conscientes de toda a trama, apesar de muitas investidas que busca-
ram, principalmente, desorganizá-los desde os Anos de 1990, para fins de
interesses particulares.

CONCLUSÃO

A Cultura Popular como instância social é variante e diversificada,


conforme as condições reais de vida dos sujeitos envolvidos, as quais são
determinadas pela complexa sociedade de classe a que pertence. Vidas que 319
estão inseridas em uma realidade de constante movimento, contradição,
reciprocidade e mediação, materializadas nas correlações de forças entre
homens pertencentes à mesma classe, bem como, aquela que a antago-
niza, construindo através de seus envolvimentos/relações novas cenas,
novos contextos, novos sujeitos. As práticas elaboradas e concretizadas
pelos sujeitos criadores das expressões culturais podem ser entendidas,
segundo essa dinamicidade e, o Bumba-meu-boi está inserido neste todo
em movimento.
No Maranhão, verifiquei possíveis caminhos de entendimento da
Cultura Popular, a que pertence o Bumba-meu-boi, como expressão. Refi-
ro-me à ideia de preservação e transformação. Esses termos não se anulam
e, muito menos são opostos, está na realidade cujo movimento contradi-
tório se materializa nas práticas humanas, dando um significado à Cultura
Popular no contexto de dominação das instâncias políticas e econômicas.
O termo preservação refere-se à prática cotidiana dos membros
de cada brincada, ou melhor, a expressão cultural possibilita aos seus
criadores históricos, o desenvolvimento de laços de amizade, pertenci-
mento, devoção, crenças, compromisso com a expressão e com seus brin-
cantes, ligação com a ancestralidade e territorialidade. Tais características
criam todo o cenário de resistência e continuidade das brincadas, diante
de inúmeras dificuldades de várias ordens às quais foram e são submetidos
os grupos juninos. Esses elementos são importantes para desmistificar a
discrepância acerca do significado da Cultura Popular, tida como prática
fossilizada, engessada, descritiva de práticas do passado.
Em toda a trajetória dos Bumba, as formas como os sujeitos cria-
dores se apropriaram, incorporaram e interpretaram os eventos da rea-
lidade em distintos momentos temporais e espaciais corroboraram para
o entendimento do próprio e constante movimento, a que foram e são
suscetíveis de ser inacabados na própria história. Percebi essa ideia na fala
de todos os entrevistados. É nesse momento, que constatei a existência
do processo de transformação. As alterações no interior das agremiações
320
com reflexo de seu desempenho no mundo social decorreram do papel
intrínseco exercido pelo Estado, no qual atua frente às classes dominadas.
Essa prática do Estado é própria da ossatura organizacional, que
busca condensar as relações de força entre classes, isto é, o Estado no
exercício de sua autonomia relativa, tanto concentra em si as relações da
classe ou frações de classe pertencentes ao bloco de poder quanto à domi-
nada e a relação que estas possam apresentar. Para tanto, essa concentração
exige do Estado, não uma ação externa às vidas dos sujeitos pertencentes
à classe dominada, como se as contradições entre as classes fossem algo
“fora” do próprio Estado. Isso implicaria nas lutas de classes que seriam
entendidas como decorrências das contradições, lutas exercidas fora do
próprio Estado cujas classes dominadas atuariam apenas, através de suas
pressões.
O investimento em infraestrutura na Capital e em outros muni-
cípios como a criação dos Vivas, é exemplo do processo de dominação-
subordinação a que os sujeitos criadores foram e estão submetidos.
Ampliando os espaços de apresentação que anteriormente eram restritos
aos terreiros e comunidades, os grupos de Bumba-meu-boi passaram por
um processo de (des)organização de suas práticas, agora, destinadas a (re)
conhecimento do espectador. Para tanto, as secretarias como espaço de
atuação do Estado criaram inúmeras estratégias para atingir com êxito
seus interesses de controle, dominação e subordinação da classe subor-
dinada, aqui representada pelos brincantes de Boi. As exigências de rea-
daptação das brincadas, conforme os critérios estabelecidos designavam
a distribuição de certos grupos para determinados Vivas e expressaram o
caráter de diferenciação entre as brincadas.
Apropriados pelas condições de subordinação e dominação, os gru-
pos juninos se “popularizaram” e a presença e interferência gradativa de
dirigentes políticos, bem como, a midiatização com fins mercadológicos
do fazer cultural teve destaque no Governo Roseana Sarney (1995 a 2002),
gestão que bem soube arquitetar o processo de desorganização-divisão da
classe subalterna.
321
Compreendo esse quesito como uma desigualdade, não apenas en-
tre sotaques, característica que difere e diversifica os Bumbas entre si, mas
um tipo de divisão e separação destes, pautadas em categorias de cunho
depreciativo destinadas aos “iguais”, ou seja, dentre os Bois do mesmo
sotaque houve diferenciações, os quais geraram e, ainda continua a causar
inúmeros impasses dialógicos entre os grupos, concernentes a uma orga-
nização política, proporcionando um “conflito interno” entre aqueles que
compõem essa expressão cultural.
Pelo movimento contraditório da realidade, esses conflitos não
atingiram a todos os grupos e, quando ocorreu, foi variante. As novas
ressignificações e práticas sofridas pelos grupos de Bumbas foram por
seus criadores, reconhecidas como eventos que não dependeram, exclusi-
vamente, de seu papel no cotidiano ou na forma como conduziram suas
brincadas, mas teve influência de outros sujeitos de realidades diferentes
à sua.
Nessa perspectiva, verifiquei nos grupos com destaque os de sota-
que de zabumba, uma série de críticas sobre a forma de como o Estado
e suas políticas públicas atenderam as demandas das expressões de Cul-
tura Popular, em São Luís do Maranhão, bem como, a proximidade de
parlamentares, os quais, no momento temporal faziam parte da máquina
estatal, vislumbrando maior número de simpatizantes às suas iniciativas,
como também, promover a legitimação do poder exercido junto à classe
subalterna.
Pelos recursos escassos para investir nos grupos, visando atender às
exigências do Estado e do mercado de entretenimento, o papel dos seto-
res privados foi muito conveniente para suprir muitas necessidades. Sob a
lógica neoliberal em que o papel do Estado se deu, de forma mínima, no
Governo Roseana Sarney houve a capitalização destes recursos de cunho
privado e destinado aos grupos juninos, revelando o controle desses in-
vestimentos por parte da parlamentar (CARDOSO, 2008). Alguns grupos
atingiram reconhecimento no âmbito internacional ao levar suas brincadas
para outros países com ajuda do próprio Estado, o qual arcava com certas
322 despesas. Mas é válido lembrar que, poucos foram os grupos beneficiados.
Outros surgiram para atender ou fazer parte dessa ressignificação
dos Bumbas em São Luís, nos Anos de 1990. Sofreu transformações, sem
dúvida. Mudanças de interferências políticas e econômicas sob a lógica de
acordo e alianças entre os sujeitos antagônicos.
Todavia, houve grupos que não chegaram a compactuar com tais
interesses, devido ao valor subjetivo de sua brincada (aspecto religioso,
principalmente), que remonta a um caráter hereditário. Por manter certo
distanciamento às relações de subordinação determinadas pela(s) secreta-
ria(s), de modo que viesse a prejudicar elementos históricos e identitários
de suas brincadas, alguns grupos praticamente foram esquecidos, sobre-
vivendo com pouquíssimos recursos atribuídos pelo Estado, ou mesmo,
investindo por conta própria. O grupo de Bumba-meu-boi da Vila Passos
(Boi de Seu Canuto), sotaque de zabumba, é um exemplo.
Constatei no discurso dos sujeitos criadores dos Bumbas, o des-
crédito sobre os incentivos estatais à Cultura. Muitos alegaram que são
incoerentes com as reais necessidades dos grupos e não apresentaram um
caráter universalista. Os recursos – mínimos – do Estado destinados às
agremiações, pouco supriram as imensas despesas geradas na compra de
vestimenta, instrumentos, gastos com deslocamentos, cachês para brin-
cantes, isto é, critérios de enquadramento, que foram inseridos e naturali-
zados nos grupos para poderem participar dos circuitos juninos.
A discordância foi expressa nas falas de líderes/donos ou presiden-
tes dos grupos de Bumba-boi sobre o modo de como se desenrolaram es-
sas iniciativas. O incômodo dessa condição fez alguns líderes, como Dona
Elza, do Boi da Vila Passos, sotaque de zabumba, grupo B, a comentar
um possível “desvínculo” com a Secretaria, ou seja, não continuar com o
cadastro na(s) secretaria(s) e, por conseguinte, não cumprir as exigências
expressas em apresentações nos Arraiais.
A referida brincante expressou o desejo de redefinir sua prática de
Bumbar. Seria uma brincada para a comunidade, nas portas dos apreciadores
de Bumbas como padrinhos, amigos e devotos, os quais como o exercício
323
da solidariedade, respeito e interesse em manter as atividades, através da
ajuda coletiva, o grupo continuaria suas atividades. Isso remete à ideia de
valorização de suas práticas, sentimento de pertencimento, reciprocida-
de e diálogo entre campo e cidade, já que há um número expressivo de
integrantes que residem em outros municípios do Estado, os quais não
medem esforços para participar, ano a ano, das atividades dos grupos de
Bumba.
Desse modo, o Bumba-meu-boi é espaço de lazer, culto religioso,
crítica social e trabalho criativo, um espaço de movimento, o qual relem-
bra as práticas de homens e mulheres que antecederam os atuais sujeitos
criadores dos Bumbas no presente, no contínuo diálogo temporal, espacial
e de ações humanas.
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Políticas Públicas) – Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas, Universidade
Federal do Maranhão, São Luís, 2008.

Entrevistados

Claudio Sampaio, liderança da Associação Cultural e profissional, Bumba-meu-boi


Brilho da Ilha, sotaque de orquestra.
Claudia Regina Avelar, responsável pela Sociedade Junina, Bumba-meu-boi da Liber-
dade, conhecido como Boi de Leonardo, sotaque de zabumba.

Elza Maria dos Reis Santos, Associação da Boa União (Boi da Vila Passos), sotaque de
zabumba.

José Constantino Soares (Seu Constâncio), Associação Cultural Recreativa Boa Vonta-
de, Bumba-meu-boi de sotaque de zabumba.

José de Ribamar Nicomedes dos Reis Silva (Seu Zeca), do Bumba-meu-boi Lírio de
São João, sotaque de orquestra.

Maria José Guimarães (Dona Zezé), do Bumba-meu-boi Encanto do Santa Cruz, so-
taque de orquestra.

Walter David Mendes Seabra (Seu Waltinho), da Associação Folclórica do Bumba-


-meu-boi Brilho de São João (Bumba-boi do João Paulo), sotaque de matraca.

325
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES

Augusto Marcos Fagundes Oliveira


Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Fede-
ral da Bahia (1987/88), mestre em Educação pela Universidade Federal da
Bahia (2002), doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Santa Catarina (2015). Professor na Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC). Coordenador de curso de Ciências Sociais (2016-2018) da UESC,
membro do Comitê de Estímulo à Internacionalização da Universidade
Estadual de Santa Cruz; atua nas áreas de Ciências Sociais, com ênfase em
Antropologia, principalmente nos seguintes temas: identidade, educação,
religião, etnohistória, deslocamentos e diáspora afroameríndia, teatro, teo-
ria pós-colonial, estudos subalternos, homocultura, preconceito.

Berenice Gomes da Silva


326
Doutoranda em Políticas Públicas pela UFMA (2017-2020); Bol-
sista FAPEMA (2017- 2019); Mestre em Sociologia - UnB (2008); Es-
pecialista em Ciência da Informação - UFMA (1999), Graduada em Bi-
blioteconomia UFMA (1997). Atuou como Docente no Departamento
de Biblioteconomia da UFMA, em dois momentos: 2014 - 2015 e 1999
- 2000; Docente na Faculdade Pitágoras em São Luís (2013-2014) e Uni-
versidade Estadual do Maranhão - UEMA (1999-2000). Realizou Assesso-
ramento na área de políticas públicas, movimentos sociais, gestão social.
Experiência em coordenação de equipes, capacitação e formação em de-
senvolvimento humano.

Davide Giacobbo Scavo


Possui graduação em Ciência Política - Università degli Studi di
Roma La Sapienza (1997), mestrado em ciências politicas - Università
degli Studi di Roma La Sapienza (2001), mestrado em Ciências Sociais
- Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010) e doutorado em
Ciências Sociais - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2013).
Atualmente é professor de Ciência Política do Curso de Ciências Sociais e
do Mestrado em Sociologia da UFGD. Tem experiência na área de Ciência
Política, com ênfase: nas teorias democráticas, teorias do Estado, história
da democracia e do liberalismo, socialismo e marxismo.

Esmael Alves de Oliveira


Professor Adjunto, em regime de dedicação exclusiva, do curso
de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
(PPGAnt) da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal
da Grande Dourados (FCH/UFGD) e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(PPGAS/UFMS). Possui graduação em Licenciatura Plena em Filosofia
pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM (2007); Especialização
em Antropologia -UFAM (2008); Mestrado em Antropologia Social - PP-
GAS/UFAM (2009); Doutorado em Antropologia Social pela Universida-
de Federal de Santa Catarina - PPGAS/UFSC (2014), com estágio doutoral 327

na Universidade Eduardo Mondlane (UEM/Moçambique). Pesquisador


vinculado ao Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas
(NUER/UFSC) e ao Grupo de Pesquisa sobre Justiça, Multiculturalismo e
Sociedade (DIVERSO/UFGD). Membro do Comitê de Antropologia Vi-
sual da Associação Brasileira de Antropologia - ABA (Gestão 2015-2016).

Guillermo Alfredo Johnson


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de San-
ta Catarina (1996), é Mestre (1999) e Doutor (2006) em Sociologia Po-
lítica pela Universidade Federal de Santa Catarina. Até meados de 2018
foi Professor da Universidade Federal da Grande Dourados, atualmente é
Professor Associado na Universidade Federal do Maranhão. Realizou Pós-
-doutorado em Ciências Sociais na UNESP/Marília (2016) e foi Professor
Visitante na Universidade Autônoma de México (2016). Tem lecionado e
pesquisado principalmente nos seguintes temas: Estado, políticas públicas
e política latino-americana. Suas últimas produções focalizam discussões
em torno do Estado e das Políticas Públicas, a questão democrática e os
movimentos sociais, sempre considerando aspectos da Política Interna-
cional, particularmente relacionadas com a inserção da América Latina no
cenário internacional.

Hildete Pereira de Melo


Professora Associada da Faculdade de Economia e do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Política Social e do Núcleo de Gênero e
Economia da Universidade Federal Fluminense. Editora por doze anos da
Revista Gênero/UFF (2004-2016), gestora na Secretaria de Políticas para
as Mulheres da Presidência da República (2009-2010 e 2012-2014).

Ilse Gomes Silva


Possui mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do
Maranhão (1996) e doutorado em Ciências Sociais-Política pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (2001). Atualmente é professora as-
328 sociada da Universidade Federal do Maranhão, vinculada ao Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas. Tem experiência na área de Ciência
Política, com ênfase em Estado e Ideologia, atuando principalmente nos
seguintes temas: estado, movimentos sociais, políticas públicas, democra-
cia e lutas sociais. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Ideologias e
Lutas Sociais (NEILS) e coordenadora do Grupo de Estudos de Política,
Lutas Sociais e Ideologias (GEPOLIS).

Jair Pinheiro
Possui doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2000). Atualmente é efetivo da Universidade Esta-
dual Paulista Campus Marília. Tem experiência na área de Ciência Política,
com ênfase em Teoria Política, atuando principalmente nos seguintes te-
mas: ONGS, terceiro setor e neoliberalismo, questão habitacional, ideolo-
gia; sujeito, propina, administração, estado e políticas públicas.
Joana Aparecida Coutinho
Graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católi-
ca de São Paulo (1987), mestrado em Ciências Sociais: Sociologia Política
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e doutorado
em Ciências Sociais: Política pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2004). Atualmente, professora Associada I na Universidade Fede-
ral do Maranhão. Coordena o Observatório de Políticas Públicas e Lutas
Sociais, vinculado ao Programa de Políticas Públicas, e também o Grupo
de Estudos de Hegemonia e Lutas na América Latina É pesquisadora do
Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais. Tem experiência na área
de Ciência Sociais com ênfase em Ciência Política, atuando principalmente
nos seguintes temas: ongs, movimentos sociais, sociedade civil, Estado,
ideologias, classes sociais e lutas de classes.

Luana Tereza de Barros Vieira Rocha


Graduada em Serviço Social pela Ufma, Doutora e mestre em Polí-
ticas Públicas públicas pela UFMA, Especialista em História do Maranhão
e Docência Superior pela UFMA, Pesquisadora do Gepolis na linha Esta- 329

do e Cultura Popular.

Maria Mary Ferreira


Professora Associada do Departamento de Biblioteconomia da
Universidade Federal do Maranhão e do Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas/UFMA. Graduada em Biblioteconomia (1981); Possui
Especialização em Organização de Arquivos pela USP (1991), Especia-
lização em Metodologia do Ensino Superior (UFMA, 1995); Mestrado
em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (1999) e;
Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (2006). Fez
Estágio doutoral na Universidade de Coimbra em Portugal. É autora dos
livros: Vereadoras e Prefeitas: ação política e gênero (2015); Os Bastidores
da Tribuna: mulher, política e poder no Maranhão (2010); As Caetanas vão
à luta: feminismo e políticas públicas (2007); e organizadora das publica-
ções: Mulher, Gênero e Políticas Públicas (1999); Gênero, Política e Poder:
participação das mulheres nos espaços de poder no Norte e Nordeste.
(EDUFMA, 2012); Conhecimento feminista e relações de gênero. (EDU-
FMA, 2012) e Livro, Leitura e Bibliotecas em tempos sombrios (2017).

Marinalva Sousa Macedo


Graduação em Pedagogia e Especialista em Metodologia do Ensino
Superior, Mestre em Educação e doutoranda em Políticas Públicas pela
Universidade Federal do Maranhão. Atualmente, professora do Instituto
Federal de Ciência e Tecnologia do Maranhão

Priscila Pereira da Costa


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Pú-
blicas (UFMA). Possui Mestrado em Políticas Públicas e graduação em
Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade Federal do Ma-
ranhão, pós-graduação, Lato Sensu, em Docência e Pesquisa no Ensino
Superior pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Fa-
culdade São Luís. Atualmente é assessora de comunicação do Tribunal
330 de Justiça do Estado do Maranhão, atuando como Relações Públicas. Foi
professora substituta do Departamento de Comunicação Social da Uni-
versidade Federal do Maranhão.

Renata Gonçalves
Professora da Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada
Santista, desde outubro de 2010. Coordena, desde 2011, o Núcleo de Es-
tudos Heleieth Saffioti - Gênero, Sexualidades, Feminismos - juntamente
com a Profª. Cristiane Gonçalves. A partir de 2012, iniciou o Núcleo de
Estudos Reflexos de Palmares: análise da questão racial no Brasil, hoje
em parceria com o Prof. Devison Nkosi Faustino. É doutora em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2005), com estágio de
doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris; Mes-
trado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1999) e graduação em Serviço Social pelo Institut Cardijn (1992)
- Bélgica.
Victoria Inés Darling
Es profesora e investigadora de la Universidade Federal da Integra-
cao Latino-americana. Posee un Doctorado en Ciencias Políticas y Sociales
por la Universidad Nacional Autónoma de México (2012), una Maestría
en Estudios Latinoamericanos por la misma Universidad y Licenciatura en
Ciencia Política por la Universidad de Buenos Aires (UBA). Su orientación
académica preferencial remite al estudio de los movimientos sociales en
América Latina.

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