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Conferência

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PRÁTICAS DO IMPOSSÍVEL E TEORIA DOS DISCURSOS
Conferência proferida por MICHEL BOUSSEYROUX* na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo**

Três profissões impossíveis

No prefácio do livro Juventude desorientada, de August Aichhorn, o educador dos


cuidados de si e dos outros que se tornou membro da Sociedade Psicanalítica de
Viena em 1922, Freud (1925/1977) disse que há muito tempo ele havia feito sua ein
Scherzwort, uma piada, uma brincadeira na qual diz que há três profissões impossíveis:
educar, curar, governar.
É no capítulo VII de “Análise terminável e interminável” que Freud (1937/1977)
retorna a esses três impossíveis, dizendo: “Parece, entretanto, que a análise seja a
terceira dessas profissões ‘impossíveis’, sobre as quais pode-se, de saída, ter certeza de
um sucesso insuficiente. As duas outras conhecidas há muito mais tempo são educar
e governar” (ibid., p. 282). Notar-se-á que, em 1937, Freud não fala mais, como em
1925, do curar, do Kurieren, como impossível, mas do Analysieren, e coloca o adjetivo
impossível entre aspas, marcando por aí que ele empresta esse termo de outro, seja
para atenuar a radicalidade desse adjetivo ou para dele distanciar-se. O impossível
é aqui ligado à finalidade da análise, e mesmo a seu fim, sobre o qual Freud (ibid.)
declara que seu sucesso insuficiente é, de saída, assegurado.
Freud (ibid.) assim dizia com conhecimento de causa, já que conheceu casos de
análise com sucessos insuficientes, a começar pela de Ferenczi, da qual fala no capí-
tulo II, onde define o que entende por fim de uma análise, a saber, um fim que teria
suprimido todos os recalques e preenchido todas as lacunas da memória, não sem se
perguntar, também, se um tal fim poderia ser produzido, mas também se seria teo-
ricamente concebível. É, portanto, do ponto de vista da teoria mesma da análise, da

* Psiquiatra e psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - França.
Docente do Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Ouest da École de Psychanalyse des Forums du
Champ Lacanien – France. Autor de inúmeros livros e artigos em periódicos de psicanálise de diferentes países,
dos quais se destacam os livros: Au risque de la topologie et de la poésie, élargir la psychanalyse (Érès Éd.); Figures du
pire, logique d’un choix, éthique d’un pari (Presses Universitaires Du Mirail); Psychanalyse ou religion?, du réel au
sens, pratique d’une antinomie (Érès Ed.).
** Proferida em 26 de abril de 2013, na PUC-SP, a convite do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade, do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP.

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concepção que dela ele faz, que Freud coloca um impossível. E é para esse impossível,
sobre o qual Freud tropeçava, que Lacan trouxe, teorizando o objeto da psicanálise,
uma solução, uma via de passagem, um passe.
Resolver esse impossível do fim não elimina, entretanto, longe disso, o impossível
que é o real, com o qual se confrontam a experiência e a prática da análise. Vê-se bem
que há impossível e impossível. O impossível lógico não é o impossível que justifica
o fracasso e o insucesso, mesmo a renúncia, como sabia muito bem Napoleão, para
quem o impossível não era senão uma “declaração de impotência que serve de refúgio
aos covardes”.

Uma impossibilidade prática

Há, então, o impossível que se postula de saída, como uma desculpa, e há o impos-
sível que se acaba por encontrar e que se demonstra, logicamente, como princípio de
limitação. O impossível pelo qual Lacan especifica o real é uma limitação do simbóli-
co: é do real que faz limite ao simbólico e à verdade.
Essa noção de limitação me leva à fórmula de Freud, falando das três profissões
impossíveis. Lá, o impossível qualifica uma profissão, o exercício de uma profissão, de
uma prática. É esse exercício que comporta um impossível, uma impossibilidade prá-
tica, praxique. Há em toda prática, no sentido em que fala Aristóteles, como uma ação
que tem seu fim nela mesma, um núcleo de impossível. Lacan (1964/1998) retoma
essa noção de práxis em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dizendo que
é a ação que põe o homem em condições de tratar o real pelo simbólico e que uma
práxis não é mais do que a análise orientada para o que, no coração da experiência, é
o núcleo do real.
A profissão de psicanalisar seria, então, impossível, se se quer bem ler Freud com
Lacan, porque é a profissão, a prática mais orientada para a experiência do impossível –
o que ressoa bastante bem também com o dizer de Georges Bataille, cuja influência
secreta sobre Lacan é incontestável. O impossível toma aqui uma tonalidade ética,
a ética da psicanálise sendo definida por Lacan, no Ato de fundação de sua Escola,
como “a práxis de sua teoria”. Teoria e ética estão, portanto, estreitamente enodadas
por Lacan, e é a prática do analista que deve mantê-las juntas e responder a elas, o
que requer que ele esteja à altura de seu impossível. Porque o impossível, isso não

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se faz demonstrar. O impossível, isso se experimenta, isso se vive. E é à altura desse


impossível que é preciso viver, que é preciso elevar-se, aufheben, o possível da vida.
É por querer evitá-lo que se permanece na impotência.

Manter-se à altura do impossível

“(...) colocar a vida, quer dizer o possível, à altura do impossível, é tudo o que pode
fazer um homem se ele não quer se iludir”, Georges Bataille escreve isso em 1942,
em “O riso de Nietzsche”. Eu digo, então, com Lacan, que essas profissões que Freud
diz impossíveis, esses unmöglichen Berufe, não são unmöglichen senão tanto quanto a
ética própria a cada uma dessas profissões se mantém à altura do impossível que lhes
é própria.
A cada profissão impossível, seu impossível. O unmöglich do Regieren, o impos-
sível do governar não é o unmöglich do Erzieben, o impossível de educar, que não é o
unmöglich do Kurieren, o impossível do curar, que não é o unmöglich do Analysieren, o
impossível de analisar.
Ao que Lacan acrescenta um outro impossível, que não é aquele de uma profissão,
mas aquele de uma vocação própria a outro tipo de laço social, o laço que instaura a
histérica, o impossível do fazer desejar. Porque há, no fazer desejar, do qual a histérica
faz, não profissão, mas vocação, uma vontade de impossível bem particular. A histérica
não quer só gozar da impotência do mestre. Ela (ele) quer gozar, excetuando-se da
impossibilidade de fazê-la (fazê-lo) gozar, na qual é, por ela (por ele), colocado o
Outro.

A teoria dos quatro discursos

Chego aqui à teoria dos discursos de Lacan (1969-1970/1992) e aos seus impos-
síveis. Essa teoria é uma topologia dos quatro grandes tipos de gozo discursivo, aquela
do discurso do mestre (M), aquela do discurso da universidade (U), aquela do discurso
da histérica (H) e aquela do discurso do analista (A). Por discurso, pode-se entender a
definição que lhe dá Miller no nr.1 dos Cadernos para a Análise (1965, p. 4): “por discur-
so entendemos um processo de linguagem que restringe a verdade”. Porque a verdade
ocupa um lugar à parte em cada discurso que restringe o esquema, como veremos.

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Lacan constrói sua teoria dos quatro discursos a partir de quatro letras de sua ál-
gebra, S1, S2, a, $, que correspondem respectivamente ao significante mestre, ao saber,
ao mais-de-gozar e ao sujeito, sem que nenhuma comutação seja permitida entre elas.
Esses quatro termos ocupam quatro lugares que são denominados por Lacan
(1969-1970/1992) o lugar do agente, também chamado lugar do semblante, o lugar
do outro, o lugar da produção e o lugar da verdade; esses lugares situando-se nos
quatro vértices de um tetraedro pelo qual Lacan apresenta a estrutura quadripódica
do discurso. As arestas entre esses vértices são vetorizadas, exceto a aresta entre a
produção e a verdade, que é barrada pela barreira do gozo e onde Lacan inscreve, sob
a forma de uma flecha curvada, passando por cima de um pequeno triângulo preto, a
impotência necessária à estrutura de cada discurso.

 Fig. 1: O tetraedro dos dicursos e o quadrípode do discurso do Mestre

Cada termo pode, por permutação circular, vir ocupar esses quatro lugares, de sorte
que se pode passar de um discurso ao outro por um pequeno quarto de volta, seja
no sentido levógiro (anti-horário), onde o discurso da universidade se ilumina de seu
progresso no discurso do analista, seja no sentido destrógiro (horário), onde o discurso
do mestre se ilumina por regressão do discurso da histérica.

O quinto discurso

Observamos que o lugar da verdade é o único através do qual nenhuma flecha


chega e que ele é também o único de onde partem duas flechas, que vão em direção ao
agente e em direção ao outro do discurso. Este aqui indica que a verdade é inacessível –

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salvo no quinto discurso, o discurso capitalista, o único discurso que faz laço associal,
porque seu laço ignora a perda ligada à barreira do gozo, em sua função de barrar a
passagem da produção do discurso à verdade.
No lugar da verdade há, no discurso capitalista, o dinheiro, o engolidor, com um
apóstrofo, de todos os valores. Quanto ao que, para Marx (1867/2012), esse discurso
produz, a mais-valia, a Mehrwert, é para Lacan a MehrI a beber (aproveito aqui do
equívoco homofônico que me oferece a língua francesa), um mais que sedento quanto
mais se bebe, tanto é a sede insaciável, impossível de beber, o falta-a-gozar é mantido
no sujeito consumidor.
Porque o discurso capitalista não é o discurso do explorador nem do explorado. É,
a princípio, o discurso do consumidor. É ele, o sujeito consumidor do mais-de-gozar
do mercado capitalista que, de seu lugar de agente e de semblante desse discurso
que se autorrelança num duplo laço, tem um acesso imediato à verdade da potência
mercadológica do capital financeiro que, para além do padrão do lingote fálico, é o
significante mestre.
Notamos também que nesse discurso não há flecha entre o lugar do agente e o
lugar do outro: o semblante aí é desligado do outro que é, nesse discurso, o saber
do trader, quer dizer, daquele que, no mundo globalizado do capitalismo financeiro,
compra, vende, especula sobre os valores e que encarna a figura daquele que trabalha
pela cifração do gozo, por ser o estrito operador de mercado.
Nos quatro discursos, essa flecha entre o agente e o outro do discurso é a flecha do

poder próprio a cada discurso, poder que Lacan indexa de um impossível.

Fig. 2: O discurso capitalista

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Um poder que restringe um impossível


Redefinamos logo o discurso: chamemos discurso um laço social de poder que res-
tringe um impossível. Assim, o que restringe o discurso do mestre é o impossível que
tem Um que faz andar o mundo. O que também restringe o poder é também a im-
possibilidade de governar o que não se domina, o saber inconsciente. E é por isso que
o discurso do mestre libera a estrutura do inconsciente como discurso. Enquanto que
o que restringe o discurso da universidade é a impossibilidade de um saber sobre o
objeto. Quanto ao que restringe o discurso da histérica, é a impossibilidade de que
o sujeito possa abordar o significante do gozo que é o falo, a causa do desejo ficando
alojada no lugar da verdade que o saber, que a histérica faz produzir pelo outro, é
incapaz de satisfazer.

 Fig. 3: O discurso da histérica

E à qual impossível restringe o discurso do analista? Aqui, a restrição do impos-


sível é aquela do impensável de um discurso que não pode ser sustentado senão pelo
que dele seja ejetado!
O discurso do analista restringe seu agente ao silêncio, lá onde o discurso da histérica
o restringe a se fender por uma fala. O discurso do analista é um discurso essencial-
mente sem fala. Isso se dá pelo fato de que não é possível que o sujeito que aí fala
como analisante tenha seu desejo de falar saturado pelo objeto que, entretanto, causa
seu dizer e que o analista encarna por seu silêncio de semblante de dejeto.

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Fig. 4: O discurso do analista

Quanto ao impossível, ao real próprio ao avesso da psicanálise, próprio, portanto,


ao discurso do mestre, é bem aquele, por estrutura, que separa o S1 do S2. É essa
separação radical que revela o discurso do analista produzindo “um outro estilo de sig-
nificante-mestre” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 187), um S1 que, por estar separado
pela barreira do gozo do saber em posição de verdade, não seja do estilo do Pai e de
seu semblante, mas do estilo do real e de seu sentido deixado em branco.
O discurso capitalista é o único discurso onde o processo da linguagem não se dá
pela verdade apenas semi-dizendo-se, constrangido a abandonar suas pretensões sobre
o gozo. Enquanto que no discurso do mestre, tal qual Lacan (ibid.) o escreve, vê-se
bem, que a verdade que, por ser inacessível, não pode senão se meio-dizer, restringe o
processo de linguagem S1-S2 à en rabattre. Porque nessa dupla S1-S2, é o Um do S1
que seriamente faz problema. Quanto ao S2, não é tão claro que seja identificável ao
saber. O que ele cifra, antes de tudo, no lugar do outro do discurso do mestre, explica
Lacan (1975-1976/2007) em sua primeira lição do seminário O sintoma, é o símbolo
como se dividindo, dividindo-se em símbolo e sintoma para fazer nó, numa cadeia
borromeana a quatro, com o sujeito e o pequeno a da fantasia que esse discurso acolhe
por baixo. Tanto e tão bem que o discurso do mestre prova ser o laço social de poder que
restringe o real do enodamento borromeano pelo sintoma.

O discurso do mestre pervertido


Quando ele produz sua teoria dos quatro discursos, no seminário O avesso da psi-
canálise, Lacan (1969-1970/1992) fala muito do discurso da universidade (que, notem

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bem, não é o discurso do professor, este aqui, quando é o caso, encontrando-se lá onde
está o $, qual seja, quando é o discurso do analista que lhe dá lugar, lá onde estão ana-
lisante). O discurso da universidade é o discurso que, por colocar no lugar dominante
o saber para, em suma, desnaturalizá-lo, é o discurso que produz o professor e que
recalca o significante mestre sob a barra, no lugar da verdade, de sorte que ao saber S2
é suposto um autor S1.
O saber, nesse discurso, é um saber douto, doutoral, professoral, referido a autores
de teses. É um saber típico de um expert. É o discurso dos experts, daqueles que co-
nhecem um raio, que não conhecem tudo, mas que conhecem tudo num certo raio.
É também o discurso da burocracia, que Lacan (ibid.) considera que seja o discurso
que assegura o poder dos totalitarismos. Com efeito, Lacan (1ibid.) não se incomoda
em dizer, em dezembro de 1969, que o contestador, assim como o celibatário de Marcel
Duchamp, ele mesmo faz seu chocolate, que nos países comunistas, onde, destronando-
-se o tzar, fez-se rei o saber, é a universidade que mantém o controle e, de toda forma, a
aspiração revolucionária. Isso termina sempre no discurso do mestre “pervertido”.

Fig. 5: O discurso da Universidade (ou discurso do mestre pervertido)




Se, para Lacan (ibid.), o discurso universitário é o discurso do mestre pervertido, é


porque ele é correlativo de uma degenerescência do significante mestre. Nesse discur-
so, o mestre domina (s’y mastérise); nesse discurso o mestre se degenera em masterchef.
Porque o grau de mestre se transforma no significante mestre do espaço europeu
universitário desde 1999.

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À época onde Lacan fala disso, que é aquela das repercussões do mês de maio de
1968 (l’émoi de Mai 68), já havia sido lançada na França, pelo ministro da Educação
Nacional, Edgar Faure, em novembro de 1968, uma grande reforma universitária que
criava as UER, as unidades de ensino e de pesquisa, assim como, para os estudantes,
as ditas unidades de valor, cujo valor, ridiculariza Lacan, cai abaixo daquele em jogo
no mercado capitalista, o saber tendo se tornado um mercado. É então que é criado,
por Serge Leclaire, o Departamento de Psicanálise de Vincennes-Paris VIII – sem o
apoio de Lacan (ele não lhe dá seu apoio senão, em janeiro de 1975, com a criação da
revista Ornicar?, onde publicará seu seminário R.S.I).

Em direção ao campo de concentração generalizado


É também ao fim de dezembro de 1968 que uma sentença decidiu pela separação da
neuropsiquiatria em duas especialidades bem distintas. A neurologia e a psiquiatria, e
que estabeleceu uma política de setorização que transforma os hospitais psiquiátricos,
a sociatria assumindo o lugar da antipsiquiatria que já começava a sair de moda. Lacan
não deixou de reagir vivamente a tudo isso, escrevendo, em 3 de fevereiro de 1969, um
texto importante, intitulado “De uma reforma em seu furo”, que ele envia ao jornal Le
Monde que lhe pediu para escrever um artigo sobre a reforma psiquiátrica. Esse artigo
não passou, não foi jamais publicado.
É preciso dizer que a interpretação que Lacan (1969a/2006) faz dessas reformas,
assim como o diagnóstico que ele traz sobre o que chama o mês de maio (l’émoi de Mai)
e sua “maiomemória” (maimoire) no sujeito capitalista, deve ter parecido bem extremista
ao comitê de redação desse jornal. Leio pra vocês o que Lacan escreve:

O que os estudantes, na revolta de maio de 68, vomitavam sob o título da sociedade de


consumo e dos carros que não servem senão para entupir as calçadas, eram os objetos dos
quais esta sociedade espera satisfazer-se à vontade, porque eles não substituem o objeto a
fatídico.(Ibid.)

Mas, anuncia vinte anos antes do colapso do bloco comunista,

a subversão capitalista universal não cessou de oscilar do Oeste para o Leste. Ela tem seu
papel a cumprir. O “nunca mais como antes” de que se enrouquece a maiomemorização das
boas almas é, a tomar por seu início, cômico, quer dizer, triste. Porque é claro que é mais
que nunca como antes e que o mês de maio precipita o que o causou.” “A unidade de valor”
promovida à medida das retribuições diplomantes confessa, na forma de um lapso enorme,

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o que fixamos da redução do saber a serviço do mercado. Quanto ao “setor” psiquiátrico,


o alinhamento desenha-se não menos do que nos novos centros ditos universitários, do
fim para onde tende o sistema, se a ciência que vem ainda em ajuda, aí sucumbe: a saber, o
campo de concentração generalizado. (Ibid.)

Como vocês podem ver, Lacan (ibid.) não vai de mão morta. Ele acena que os
novos centros hospitalares universitários nos levam direto, por pouco que a ciência
os ajude, ao campo de concentração generalizado! Quando se vê o que estão para se
tornar, na França, nossos novos centros hospitalares universitários, concluo que Lacan
foi um visionário! O campo de concentração generalizado seria, então, aos olhos de
Lacan (ibid.), o fim para onde tende todo o sistema que pretende, em nome da polí-
tica do setor psiquiátrico, assim como em nome da política da interdisciplinaridade,
de-segregar o que desde séculos se segregava tanto nos asilos como nas Faculdades?
Dito de outra forma, o discurso da universidade, na medida em que ele evolui cada
vez mais para um discurso de experts e de tecnocratas, seria, em sua finalidade, um
discurso fundamentalmente de-segregador – e, portanto, concentracionário.

Segregação e de-segregação
Para compreender bem essa tese extremamente subversiva, é preciso ler o que
Lacan declara no prefácio, datado no Natal de 1969, que ele escreveu para o livro de
Anika Rifflet-Lemaire, jovem pesquisadora da Universidade de Louvain, intitulado
Jacques Lacan. Lá, lê-se, em nota, que “A recusa da segregação está naturalmente no
princípio do campo de concentração”.
O que Lacan (1969b/1987) considera estar naturalmente no princípio do universo
concentracionário é a recusa da segregação: nos campos, não mais se discrimina, junta-
-se, uniformiza-se, confunde-se, reduz-se à formas do humano ao disforme, aniqui-
la-se as diferenças. No princípio do campo de concentração está a recusa absoluta
da diferença. Os campos têm por princípio a produção industrializada de um puro
concentrado de indiferença. O grande terror staliniano não foi possível senão graças
à “dominação estabelecida do discurso universitário na U.R.S.S.”, sobre o qual Lacan
(ibid.) diz que é antipático “do discurso sectário, ao contrário dos E.U.A., próspero
em ser seu fundador”.
Com efeito, o discurso sectário realmente prosperou nos E.U.A. Esteve na origem
da Guerra da Secessão entre abolicionistas e escravagistas, que foi seguida, nos estados

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do Sul, pelos Códigos Pretos e pelas leis Jim Crow de 1870, que promulgaram a se-
gregação dos negros no nível escolar, nos lugares públicos e nos meios de transporte
e que não foram abolidas senão na década de 1960. Lacan (ibid.) opõe, então, como
antipáticos um do outro, o discurso do mestre sectário americano, que legitima, em
1896, a doutrina Separate but equal (Separados, mas iguais), sobre a qual se funda a
segregação racial, e o discurso do mestre pervertido do regime burocrático soviético,
cujo poder totalitário é fundado sobre a de-segregação. Lacan (ibid.) formula muito
claramente nesse prefácio: “O discurso da Universidade é de-segregador, ainda que
ele veicule o discurso do mestre, já que não o transmite senão para liberá-lo de sua
verdade. A Ciência parece garantir-lhe o sucesso desse projeto. Insolúvel” (p. 8). A
verdade do discurso do mestre, da qual o libera o discurso da universidade, é o quê?
É que ele segrega o sujeito. Sua barreira de gozo o separa do mais-de-gozar. Enquanto
o discurso universitário o de-segrega, produzindo-o como sujeito da universidade, es-
tampado como unidade de valor. E é a ciência que assegurará o sucesso universal desse
poder de-segregador do discurso da universidade.

De uma antipatia política a uma antipatia ética

Mas há segregação e segregação. Assim Lacan (1969b/1987) relembra que a se-


gregação da psiquiatria na Faculdade de Medicina, “onde a estrutura universitária
desenvolve sua afinidade com o regime patronal”, “se sustenta do que a própria psi-
quiatria faz como serviço de segregação social” (p. 7), e que, se o campo do psicanalista
aí encontrou asilo (como em Henri Ey à Bonneval ou bem como Georges Daumézon
à Saint-Anne), “é muito mais por configuração política do que por conexão prática
que se motiva o abrigo que ele encontrou na psiquiatria” (p. 7). Quanto à sua antipatia
do discurso universitário, Lacan (ibid.) declara que ela não recebeu senão de seu pró-
prio ensinamento sua razão e que essa antipatia não tem menos eficácia segregadora
no campo do psicanalista “quando, sintoma, ela se traduz em instituições que veiculam
os benefícios secundários” (p. 7).
Há também, portanto, aos olhos de Lacan (ibid.), antipatia do discurso do analista
em relação ao discurso da universidade. Mas essa antipatia não é senão política ou
institucional. Ela é ética e mantém a separação radical do saber que ele opera. Com
efeito, o saber do psicanalista é segregador enquanto saber no lugar da verdade que a
barreira do gozo separa radicalmente do significante mestre, assim como o saber do

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inconsciente real é segregador enquanto é, como saber real, radicalmente separado


do sujeito. Por isso, saber do analista e saber do inconsciente real são antipáticos do
discurso do saber que se afirma em seu fechamento, “quando faz tese dessa ficção
que chama um autor, ou da história do pensamento, ou ainda, de alguma coisa que se
intitula num progresso” (p. 6).

Tradução: Suzana Rosa Ramos


Graduada em Psicologia pela USP com Especialização em ARH pelo Centro Universitário Sant’Anna.
E-mail: suzanarosaramos@yahoo.com.br

Revisão técnica: Conrado Ramos


Psicanalista, pós-doutor pelo Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-
-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, doutor em Psicologia Escolar pelo IPUSP, membro AME da
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL - Brasil) e da Internacional dos Fóruns do
Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo).
E-mail: conrado_ramos_br@yahoo.com.br

Referências
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Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1977, v. XIX.
(1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. XXIII.
LACAN, Jacques (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
(1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
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(1975-1976). O seminário, livro 23: o sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MARX, Karl (1867). O capital: crítica da economia política. Livro 1. 30. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
MILLER, Jacques-Alain. La Suture: Éléments de la logique du signifiant. Cahiers pour
l’Analyse, Paris, v. 1, p. 37-49, fev. 1965. Disponível em <http://cahiers.kingston.
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112 A peste, São Paulo, v. 4, no 1, p. 101-112, jan./jun. 2012

Livro Peste 4. n. 2 para site.indb 112 16/12/2014 10:07:03

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