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* Psiquiatra e psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - França.
Docente do Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Ouest da École de Psychanalyse des Forums du
Champ Lacanien – France. Autor de inúmeros livros e artigos em periódicos de psicanálise de diferentes países,
dos quais se destacam os livros: Au risque de la topologie et de la poésie, élargir la psychanalyse (Érès Éd.); Figures du
pire, logique d’un choix, éthique d’un pari (Presses Universitaires Du Mirail); Psychanalyse ou religion?, du réel au
sens, pratique d’une antinomie (Érès Ed.).
** Proferida em 26 de abril de 2013, na PUC-SP, a convite do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade, do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP.
concepção que dela ele faz, que Freud coloca um impossível. E é para esse impossível,
sobre o qual Freud tropeçava, que Lacan trouxe, teorizando o objeto da psicanálise,
uma solução, uma via de passagem, um passe.
Resolver esse impossível do fim não elimina, entretanto, longe disso, o impossível
que é o real, com o qual se confrontam a experiência e a prática da análise. Vê-se bem
que há impossível e impossível. O impossível lógico não é o impossível que justifica
o fracasso e o insucesso, mesmo a renúncia, como sabia muito bem Napoleão, para
quem o impossível não era senão uma “declaração de impotência que serve de refúgio
aos covardes”.
Há, então, o impossível que se postula de saída, como uma desculpa, e há o impos-
sível que se acaba por encontrar e que se demonstra, logicamente, como princípio de
limitação. O impossível pelo qual Lacan especifica o real é uma limitação do simbóli-
co: é do real que faz limite ao simbólico e à verdade.
Essa noção de limitação me leva à fórmula de Freud, falando das três profissões
impossíveis. Lá, o impossível qualifica uma profissão, o exercício de uma profissão, de
uma prática. É esse exercício que comporta um impossível, uma impossibilidade prá-
tica, praxique. Há em toda prática, no sentido em que fala Aristóteles, como uma ação
que tem seu fim nela mesma, um núcleo de impossível. Lacan (1964/1998) retoma
essa noção de práxis em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dizendo que
é a ação que põe o homem em condições de tratar o real pelo simbólico e que uma
práxis não é mais do que a análise orientada para o que, no coração da experiência, é
o núcleo do real.
A profissão de psicanalisar seria, então, impossível, se se quer bem ler Freud com
Lacan, porque é a profissão, a prática mais orientada para a experiência do impossível –
o que ressoa bastante bem também com o dizer de Georges Bataille, cuja influência
secreta sobre Lacan é incontestável. O impossível toma aqui uma tonalidade ética,
a ética da psicanálise sendo definida por Lacan, no Ato de fundação de sua Escola,
como “a práxis de sua teoria”. Teoria e ética estão, portanto, estreitamente enodadas
por Lacan, e é a prática do analista que deve mantê-las juntas e responder a elas, o
que requer que ele esteja à altura de seu impossível. Porque o impossível, isso não
“(...) colocar a vida, quer dizer o possível, à altura do impossível, é tudo o que pode
fazer um homem se ele não quer se iludir”, Georges Bataille escreve isso em 1942,
em “O riso de Nietzsche”. Eu digo, então, com Lacan, que essas profissões que Freud
diz impossíveis, esses unmöglichen Berufe, não são unmöglichen senão tanto quanto a
ética própria a cada uma dessas profissões se mantém à altura do impossível que lhes
é própria.
A cada profissão impossível, seu impossível. O unmöglich do Regieren, o impos-
sível do governar não é o unmöglich do Erzieben, o impossível de educar, que não é o
unmöglich do Kurieren, o impossível do curar, que não é o unmöglich do Analysieren, o
impossível de analisar.
Ao que Lacan acrescenta um outro impossível, que não é aquele de uma profissão,
mas aquele de uma vocação própria a outro tipo de laço social, o laço que instaura a
histérica, o impossível do fazer desejar. Porque há, no fazer desejar, do qual a histérica
faz, não profissão, mas vocação, uma vontade de impossível bem particular. A histérica
não quer só gozar da impotência do mestre. Ela (ele) quer gozar, excetuando-se da
impossibilidade de fazê-la (fazê-lo) gozar, na qual é, por ela (por ele), colocado o
Outro.
Chego aqui à teoria dos discursos de Lacan (1969-1970/1992) e aos seus impos-
síveis. Essa teoria é uma topologia dos quatro grandes tipos de gozo discursivo, aquela
do discurso do mestre (M), aquela do discurso da universidade (U), aquela do discurso
da histérica (H) e aquela do discurso do analista (A). Por discurso, pode-se entender a
definição que lhe dá Miller no nr.1 dos Cadernos para a Análise (1965, p. 4): “por discur-
so entendemos um processo de linguagem que restringe a verdade”. Porque a verdade
ocupa um lugar à parte em cada discurso que restringe o esquema, como veremos.
Lacan constrói sua teoria dos quatro discursos a partir de quatro letras de sua ál-
gebra, S1, S2, a, $, que correspondem respectivamente ao significante mestre, ao saber,
ao mais-de-gozar e ao sujeito, sem que nenhuma comutação seja permitida entre elas.
Esses quatro termos ocupam quatro lugares que são denominados por Lacan
(1969-1970/1992) o lugar do agente, também chamado lugar do semblante, o lugar
do outro, o lugar da produção e o lugar da verdade; esses lugares situando-se nos
quatro vértices de um tetraedro pelo qual Lacan apresenta a estrutura quadripódica
do discurso. As arestas entre esses vértices são vetorizadas, exceto a aresta entre a
produção e a verdade, que é barrada pela barreira do gozo e onde Lacan inscreve, sob
a forma de uma flecha curvada, passando por cima de um pequeno triângulo preto, a
impotência necessária à estrutura de cada discurso.
Cada termo pode, por permutação circular, vir ocupar esses quatro lugares, de sorte
que se pode passar de um discurso ao outro por um pequeno quarto de volta, seja
no sentido levógiro (anti-horário), onde o discurso da universidade se ilumina de seu
progresso no discurso do analista, seja no sentido destrógiro (horário), onde o discurso
do mestre se ilumina por regressão do discurso da histérica.
O quinto discurso
salvo no quinto discurso, o discurso capitalista, o único discurso que faz laço associal,
porque seu laço ignora a perda ligada à barreira do gozo, em sua função de barrar a
passagem da produção do discurso à verdade.
No lugar da verdade há, no discurso capitalista, o dinheiro, o engolidor, com um
apóstrofo, de todos os valores. Quanto ao que, para Marx (1867/2012), esse discurso
produz, a mais-valia, a Mehrwert, é para Lacan a MehrI a beber (aproveito aqui do
equívoco homofônico que me oferece a língua francesa), um mais que sedento quanto
mais se bebe, tanto é a sede insaciável, impossível de beber, o falta-a-gozar é mantido
no sujeito consumidor.
Porque o discurso capitalista não é o discurso do explorador nem do explorado. É,
a princípio, o discurso do consumidor. É ele, o sujeito consumidor do mais-de-gozar
do mercado capitalista que, de seu lugar de agente e de semblante desse discurso
que se autorrelança num duplo laço, tem um acesso imediato à verdade da potência
mercadológica do capital financeiro que, para além do padrão do lingote fálico, é o
significante mestre.
Notamos também que nesse discurso não há flecha entre o lugar do agente e o
lugar do outro: o semblante aí é desligado do outro que é, nesse discurso, o saber
do trader, quer dizer, daquele que, no mundo globalizado do capitalismo financeiro,
compra, vende, especula sobre os valores e que encarna a figura daquele que trabalha
pela cifração do gozo, por ser o estrito operador de mercado.
Nos quatro discursos, essa flecha entre o agente e o outro do discurso é a flecha do
poder próprio a cada discurso, poder que Lacan indexa de um impossível.
bem, não é o discurso do professor, este aqui, quando é o caso, encontrando-se lá onde
está o $, qual seja, quando é o discurso do analista que lhe dá lugar, lá onde estão ana-
lisante). O discurso da universidade é o discurso que, por colocar no lugar dominante
o saber para, em suma, desnaturalizá-lo, é o discurso que produz o professor e que
recalca o significante mestre sob a barra, no lugar da verdade, de sorte que ao saber S2
é suposto um autor S1.
O saber, nesse discurso, é um saber douto, doutoral, professoral, referido a autores
de teses. É um saber típico de um expert. É o discurso dos experts, daqueles que co-
nhecem um raio, que não conhecem tudo, mas que conhecem tudo num certo raio.
É também o discurso da burocracia, que Lacan (ibid.) considera que seja o discurso
que assegura o poder dos totalitarismos. Com efeito, Lacan (1ibid.) não se incomoda
em dizer, em dezembro de 1969, que o contestador, assim como o celibatário de Marcel
Duchamp, ele mesmo faz seu chocolate, que nos países comunistas, onde, destronando-
-se o tzar, fez-se rei o saber, é a universidade que mantém o controle e, de toda forma, a
aspiração revolucionária. Isso termina sempre no discurso do mestre “pervertido”.
À época onde Lacan fala disso, que é aquela das repercussões do mês de maio de
1968 (l’émoi de Mai 68), já havia sido lançada na França, pelo ministro da Educação
Nacional, Edgar Faure, em novembro de 1968, uma grande reforma universitária que
criava as UER, as unidades de ensino e de pesquisa, assim como, para os estudantes,
as ditas unidades de valor, cujo valor, ridiculariza Lacan, cai abaixo daquele em jogo
no mercado capitalista, o saber tendo se tornado um mercado. É então que é criado,
por Serge Leclaire, o Departamento de Psicanálise de Vincennes-Paris VIII – sem o
apoio de Lacan (ele não lhe dá seu apoio senão, em janeiro de 1975, com a criação da
revista Ornicar?, onde publicará seu seminário R.S.I).
a subversão capitalista universal não cessou de oscilar do Oeste para o Leste. Ela tem seu
papel a cumprir. O “nunca mais como antes” de que se enrouquece a maiomemorização das
boas almas é, a tomar por seu início, cômico, quer dizer, triste. Porque é claro que é mais
que nunca como antes e que o mês de maio precipita o que o causou.” “A unidade de valor”
promovida à medida das retribuições diplomantes confessa, na forma de um lapso enorme,
Como vocês podem ver, Lacan (ibid.) não vai de mão morta. Ele acena que os
novos centros hospitalares universitários nos levam direto, por pouco que a ciência
os ajude, ao campo de concentração generalizado! Quando se vê o que estão para se
tornar, na França, nossos novos centros hospitalares universitários, concluo que Lacan
foi um visionário! O campo de concentração generalizado seria, então, aos olhos de
Lacan (ibid.), o fim para onde tende todo o sistema que pretende, em nome da polí-
tica do setor psiquiátrico, assim como em nome da política da interdisciplinaridade,
de-segregar o que desde séculos se segregava tanto nos asilos como nas Faculdades?
Dito de outra forma, o discurso da universidade, na medida em que ele evolui cada
vez mais para um discurso de experts e de tecnocratas, seria, em sua finalidade, um
discurso fundamentalmente de-segregador – e, portanto, concentracionário.
Segregação e de-segregação
Para compreender bem essa tese extremamente subversiva, é preciso ler o que
Lacan declara no prefácio, datado no Natal de 1969, que ele escreveu para o livro de
Anika Rifflet-Lemaire, jovem pesquisadora da Universidade de Louvain, intitulado
Jacques Lacan. Lá, lê-se, em nota, que “A recusa da segregação está naturalmente no
princípio do campo de concentração”.
O que Lacan (1969b/1987) considera estar naturalmente no princípio do universo
concentracionário é a recusa da segregação: nos campos, não mais se discrimina, junta-
-se, uniformiza-se, confunde-se, reduz-se à formas do humano ao disforme, aniqui-
la-se as diferenças. No princípio do campo de concentração está a recusa absoluta
da diferença. Os campos têm por princípio a produção industrializada de um puro
concentrado de indiferença. O grande terror staliniano não foi possível senão graças
à “dominação estabelecida do discurso universitário na U.R.S.S.”, sobre o qual Lacan
(ibid.) diz que é antipático “do discurso sectário, ao contrário dos E.U.A., próspero
em ser seu fundador”.
Com efeito, o discurso sectário realmente prosperou nos E.U.A. Esteve na origem
da Guerra da Secessão entre abolicionistas e escravagistas, que foi seguida, nos estados
do Sul, pelos Códigos Pretos e pelas leis Jim Crow de 1870, que promulgaram a se-
gregação dos negros no nível escolar, nos lugares públicos e nos meios de transporte
e que não foram abolidas senão na década de 1960. Lacan (ibid.) opõe, então, como
antipáticos um do outro, o discurso do mestre sectário americano, que legitima, em
1896, a doutrina Separate but equal (Separados, mas iguais), sobre a qual se funda a
segregação racial, e o discurso do mestre pervertido do regime burocrático soviético,
cujo poder totalitário é fundado sobre a de-segregação. Lacan (ibid.) formula muito
claramente nesse prefácio: “O discurso da Universidade é de-segregador, ainda que
ele veicule o discurso do mestre, já que não o transmite senão para liberá-lo de sua
verdade. A Ciência parece garantir-lhe o sucesso desse projeto. Insolúvel” (p. 8). A
verdade do discurso do mestre, da qual o libera o discurso da universidade, é o quê?
É que ele segrega o sujeito. Sua barreira de gozo o separa do mais-de-gozar. Enquanto
o discurso universitário o de-segrega, produzindo-o como sujeito da universidade, es-
tampado como unidade de valor. E é a ciência que assegurará o sucesso universal desse
poder de-segregador do discurso da universidade.
Referências
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