Sociedade de Advogados
O presente texto foi redigido e apresentado em 2011 como trabalho de fim de estágio em
advocacia e tem como incidência directa a conduta dos advogados, quer na relação que
mantêm entre si, nessa condição, judicial ou extrajudicialmente, quer na relação que mantêm
com os magistrados, funcionários de cartórios, peritos, intérpretes, testemunhas e outros
intervenientes nos processos. Os exemplos referidos na altura ao longo do texto são verídicos,
ao qual se aditaram apenas dois casos recentes. A intenção de o manter fiel à versão e
pensamento originais levou-nos a muito ligeiros acréscimos. Procedemos, pelo contrário, a
vários cortes à versão original do texto para reduzir a sua amplitude, permitindo-se uma
maior utilidade e capacidade para divulgação. A publicação e divulgação deste nosso escrito
é motivada pelo recente episódio de detenção de um advogado na Província de Benguela por
ordem do juiz da causa, difundido amplamente nas redes sociais, num momento em que se
encontrava no exercício de funções, como resultado de alegadamente ter dirigido as
seguintes palavras ao juiz: “muito obrigado pela sua ignorância” (ou talvez “muito obrigado
pela sua arrogância” ou ainda “muito obrigado pela sua intolerância”). A exigência legal de
descrição, em respeito da privacidade de que cada cidadão tem direito, levou-nos a suprimir
a identidade dos seus intervenientes, de tal forma que julgamos ter sido evitada qualquer
exposição não consentida.
1. Razão de ordem
Muitos são os exemplos em que, diante do seu pronunciamento, os advogados
vêm questionada a sua prudência e urbanidade no tratamento dos profissionais
do foro. Com alguma recorrência, no ânimo de tutela dos interesses dos seus
constituintes e/ou interesses profissionais mais ou menos pessoalizados, assiste-
se à verificação de comunicações não completamente cobertas pelo brilho exigível
à profissão. Citemos alguns:
2. Da função de advogar
As relações humanas existem propensas ao conflito; por isso existe o Direito a
partir do momento em que o homem mostrou a sua incapacidade para viver
isoladamente. A sua condição de ser destinado ao grupo obrigou-o a definir regras
e modos de organização. Se esses conflitos apareceram desde a sua existência
primária, aí se aplicou o Direito, aí se decidiu pelo justo, aí se fez justiça e aí se
colocou a necessidade de proteger os direitos de que estivesse envolvido no
conflito, aí se colocou o problema da defesa, aí se levantou a necessidade de
advocare. O advocatus surge como defensor, conhecedor do Direito e das regras,
não disponíveis aos “homens comuns” e assim se proclamou ao longo dos tempos
o exercício profissional da defesa.
O advogado não é um qualquer defensor, um qualquer protector de interesses.
Em verdade, o advogado é o titular da arte de defender, é um artista, que deve
pintar o quadro da realização da justiça com as cores mais aptas, a seu ver, a
colorir e encantar os que se deleitam com a sua apreciação. Essas cores têm de
ser vivas: por isso, o advogado é também um poeta da advocacia, que não deve
1
Parecer, constante do Website http://www.oa.pt/Conteudos/Pareceres/detalhe_parecer.aspx?
idc=57113&idsc=31612&ida=45421
2
Desta forma, o patrocínio judiciário, o acompanhamento por Advogado, o direito de defesa do
arguido em processo criminal, a não denegação de justiça por insuficiência financeira (cuja expressão
prática é sempre dada por Advogado ou por quem assuma funções a ele equiparadas – defensor
oficioso não advogado) têm, agora, a dignidade e a imperatividade que resulta de várias consagrações
constitucionais e mais concretamente dos artigos 29.º e 67.º da Constituição. Nem sempre tiveram tal
dignidade (é verdade!), se atendermos aos tempos mais remotos da história de Angola, nomeadamente
os que se seguiram à independência. O modelo ideológico político-económico adoptado – que
influenciara substancial e naturalmente a concepção do Direito e da Justiça – observava os advogados
como efémeros sujeitos de realização da justiça, tal qual eufemisticamente designados por
“auxiliares”, como se a concretização da justiça e do Direito não lhes pertencesse e estes apenas
apoiassem aqueles a quem era incumbida essa missão. Não só os vários textos não o consagravam,
como a legislação limitava-se a admitir os advogados e os colectivos de advogados meros auxiliares
da administração da justiça. O advogado, defensor do Direito e do Justo, era um verdadeiro perigo
para a manutenção da ideologia política vigente na altura. Veja-se que, em tais tempos, o advogado
era mesmo impedido de manter o primeiro contacto com o arguido preso seu constituinte, muitas
vezes forjada, mas sempre percebida, situação que, não obstante a transição constitucional para um
novo modelo de Estado, manteve-se de forma mitigada e relativa no período intermédio entre o
monopartidarismo e a actual Constituição. Neste aspecto, o país precisou de uma verdadeira reforma
de consciência jurídica e de civilidade, que teve o seu início da primeira década do actual milénio,
passando a assumir o desafio permanente e contínuo de se tornar, antes de um Estado de Direito, um
verdadeiro Estado dos Direitos, pelo que só nos últimos anos se pode, de facto, afirmar a emancipação
de uma ideia jurídica de liberdade, em todo o território angolano, para todos os angolanos e categorias
profissionais.
3
Parecer, Ibidem.
4
Referido em Parecer, Ibidem.
5
Parecer, Ibidem.
6
Cfr. NETO, Abílio. Código de Processo Civil Anotado. 20.ª ed. refundida e actualizada, Lisboa,
Ediforum, 2008, p. 283.
Os mandatários podem, nos termos gerais admitidos pela lei processual – vide
artigos 122.º e ss. e 126.º e ss., todos do CPC (impedimentos e suspeições) –
questionar a isenção dos magistrados, sugerir a sua parcialidade, requerendo a
declaração de impedimento ou de suspeição, de tal forma que, de per si, nada há
de errado, nem fundamenta uma violação de deveres profissionais aptos à
responsabilização disciplinar ou criminal, o facto de ter sido sugerida a
parcialidade do magistrado interveniente na causa. Nesse sentido, dificilmente o
comportamento verificado constituiria um ilícito disciplinar por caber nos limites
permitidos do exercício de um direito (verificação de uma causa justificativa): o
de ampla defesa do seu representado.
Desde que não exista uma finalidade velada com a actuação acusada de
desrespeitadora, e onde não se pode colher qualquer motivação profissional, nada
pode confirmar que o uso de certa estratégia processual (ainda que errada, em
detrimento dos adequados) tenha tido o propósito claro e doloso de manchar ou
quebrar o mérito profissional do juiz da causa ou do advogado da contraparte.
Ademais, o uso de tais expressões não se afasta nem deixa de relevar – sem
prejuízo de provável desmérito profissional – para a tentativa de discussão de
melhores oportunidades processuais, sendo por isso relevantes para a causa
(requisito legitimador e justificador da actuação do mandatário). A ser
considerado como descuido no trato, este desvio, a ser relevado, recebe do CPC
o adequado e necessário tratamento (artigo 154.º, n.º 1). O Tribunal pelo seu
Presidente fará, com urbanidade, a competente advertência, podendo, além disso,
mandar riscar quaisquer expressões que considere ofensivas. Pelo que, ainda que
se considere porventura incorrecta, infeliz, inoportuna e/ou inútil, daí não resulta
que se possa considerar ter havido uma imputação injuriosa ou ofensiva, objectiva
ou subjectivamente considerada, disciplinarmente punível.
7
A lógica de convite, que deverá ser usada na comunicação efectuada pelo magistrado, não retira o
sentido de justicialidade do acto. Não havendo concordância, ou julgando-se excessiva a medida, não
pode julgar-se meramente instrumental e sem relevância processual, em face da garantia da tutela dos
direitos da parte representada. É legítimo entender-se a possibilidade de agravo da decisão, admitindo-
se a eficácia suspensiva, em face novamente da protecção daqueles direitos.
Já quanto aos ilícitos criminais, a questão oferece maior sensibilidade, nos termos
já referidos das garantias constitucionais das imunidades. Não tanto sobre a
possibilidade do seu cometimento por advogados (em nada distintos de qualquer
cidadão, sobretudo se referentes a actos não imputáveis directamente à função ou
ao seu exercício). Ela assume especial peculiaridade, em primeiro lugar, quando
ocorrem enquanto se está a exercer a profissão, e, em segundo argumento, por a
legislação actual admitir que os advogados sejam sujeitos a medidas determinadas
por profissionais forenses contra e para quem dirigem a sua actividade
profissional.
Em caso de cometimento de actos que representem acção criminalmente punível,
parece incontornável a possibilidade de virem a ser sujeitos à devida
responsabilização, se eles não relevavam para a devida defesa ou intervenção no
processo. Duvidosa é a permissibilidade legal a que a actuação do advogado seja
avaliada, qualificada e censurada por aquele profissional forense (magistrado
judicial, do Ministério Público e agentes e oficiais da Polícia Nacional). Em tal
condição, assumem e chegam nalguns casos a agir simultaneamente na posição
de vítima, agente da autoridade e ordem, carcereiro, testemunha, acusador e
julgador, com clara afronta a comandos constitucionais de um processo e
julgamento pautados pelos princípios do contraditório e julgamento justo (artigos
72.º e 174.º).
Sobre a matéria, já o Tribunal Constitucional se pronunciou em justa medida,
quando no acórdão n.º 418/2017 declarou inconstitucional a decisão proferida
pelo Tribunal Provincial de Luanda, onde se procedeu à condenação de um
cidadão com base na acusação de cometimento de injúrias contra juiz em pleno
acto de julgamento. Em situação equiparável, este órgão judicial entendeu que
«os tribunais estão sujeitos ao princípio/dever constitucional de imparcialidade,
com vista a assegurar a todos os cidadãos o direito a um julgamento justo e
conforme à lei, nos termos do artigo 72.º da CRA», pelo que, na qualidade de
ofendido, «não se pode ser juiz em causa própria».