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Economia

04 de Julho de 2014

Entrevista

'Governo espantou as montadoras que viriam ao


país’
Presidente da chinesa JAC Motors, Sergio Habib faz um raio-X do setor
automotivo após as medidas protecionistas implantadas no governo
Dilma. O diagnóstico: deu tudo errado.
Por Ana Clara Costa

Sérgio Habib, presidente da JAC Motors no Brasil (Alex Silva/Estadão Conteúdo)

O governo Dilma empreendeu um esforço hercúleo para agradar as montadoras nacionais.


Desde 2011, uma série de medidas protecionistas foi implementada, como aumento de
impostos sobre carros importados e exigência de uso de conteúdo nacional para as
fábricas interessadas em se instalar no Brasil. Hoje, percebe-se o tamanho do erro.
Mesmo com toda a bondade petista, vendas e produção despencam mês a mês. A
chinesa JAC Motors vivencia como nenhuma outra os efeitos das medidas desastradas. A
companhia havia anunciado a instalação de uma fábrica no Brasil semanas antes do
aumento de 30 pontos porcentuais do imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre
os carros importados, em setembro de 2011. A ideia era importar veículos ao longo de três
anos para então começar a produzi-los no país. O novo IPI inviabilizou as importações e a
conjuntura ruim atrasou a instalação da fábrica. Em entrevista ao site de VEJA, o
presidente da JAC, Sergio Habib, lamentou a situação. “As medidas dificultaram a entrada
de novas montadoras. O governo quis que o empresário se casasse com o Brasil antes de
namorá-lo. E ninguém mais quer correr esse risco”.

O novo regime automotivo instaurado pela presidente Dilma, também chamado de


Inovar-Auto, fracassou? Ele não atingiu o objetivo do governo porque, em vez de
facilitar, dificultou a vinda de novas fábricas ao Brasil. Tanto a JAC quanto a Chery já
haviam anunciado fábricas no país antes do Inovar-Auto e antes do aumento do IPI. Mas
as novas empresas não vieram. BMW, Jaguar, Mercedes e Audi já estavam no Brasil
como importadoras e iam fazer fábrica, com Inovar-Auto ou sem. Já outras marcas
asiáticas, como a Wulling e a indiana Tata, não vieram e não vão vir tão cedo.

Por quê? Para montar uma operação em qualquer país, primeiro é preciso ver a aceitação
do produto e testar o mercado como importador. Depois de testar, ocorre o investimento.
Foi assim na década de 1990 com Toyota, Citroen, Honda, Peugeot, Renault e Nissan. A
Citroen importou carros durante 10 anos e só então fez a fábrica. A Peugeot, durante 9
anos. A Toyota começou a importar em 1991 e só em 1999 construiu a fábrica. Todas elas
ficaram cerca de uma década importando antes de construir. Hoje, com o Inovar-Auto,
você não pode importar sem ter um projeto de fábrica. Ou seja, ele exige que uma
empresa se case com o Brasil antes de namorá-lo. E essa não é a lógica para nenhuma
empresa. Ninguém topa. O Brasil exige do empresário um cheque de 500 milhões de reais
para a construção de uma fábrica sem que ele esteja familiarizado com o mercado
brasileiro. Isso não faz sentido para ninguém.

A única forma de testar é pagar o novo IPI? Sim, mas isso é inviável. Os 30 pontos
porcentuais que o governo aumentou em 2011 equivalem a um imposto de importação de
85%. Nenhum país decente pratica uma alíquota como essa. E não compensa porque o
consumidor não vai pagar. A única forma de importar é por meio de cotas que o governo
estabeleceu ao criar o Inovar-Auto. Mas essas cotas funcionam apenas para marcas que
já estavam no país, como as de automóveis de luxo, por exemplo. Além disso, o limite de
cotas é de 4 500 carros por ano, o que é insignificante para um mercado de 3,5 milhões de
automóveis como o Brasil.

Leia também:
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O que é pior para o setor: a exigência de instalação de fábrica ou as regras de


conteúdo local? As regras que regulam o conteúdo local usado na fabricação dos carros,
para que se consiga um desconto no IPI, são muito retrógradas. Não é papel do governo
controlar se o farol do carro que estamos usando foi fabricado no Brasil, na China ou na
Alemanha. A empresa tem de comprar o farol onde lhe for mais conveniente. Mas o
governo vai além: quer saber se o espelho retrovisor e até mesmo o motor responsável por
movimentar o espelho são fabricados no Brasil. Por isso decidiu criar o Inovar-Peças, para
estimular a cadeia de suprimentos. Mas, como controlar esse tipo de detalhe é algo
dificílimo, o projeto ainda não saiu do papel.

É possível para uma montadora estrangeira recém-chegada cumprir as metas de


conteúdo local? No caso da JAC, vamos cumprir as exigências de conteúdo local não
porque o governo quer, mas sim porque, no nosso caso, compensa e é possível. Agora, se
sou a BMW, é óbvio que vou importar meu motor da Alemanha. Não faz sentido o governo
exercer poder sobre isso. Nenhum país é bom em tudo. Se a gente quer ter um país
competitivo, temos de nos especializar em algumas coisas e fazê-las bem, e barato.
Quando se fecha o país, força-se as empresas a tomar decisões baseadas em decretos,
em vez de bom-senso.

Os preços dos carros subiram desde a criação do Inovar-Auto, em 2012? Nos últimos
cinco anos, os preços de carros não subiram muito. Começaram a subir este ano. O que
ocorreu foi que, quando a indústria de veículos passou de 2,5 milhões para 3,5 milhões de
carros, os ganhos com produtividade permitiram que o aumento da produção em 1 milhão
de veículos compensasse a inflação e os gastos com reajustes salariais. Agora que o
mercado estagnou, a empresa tem aumento de despesa, tem de reajustar salário de
funcionários, pagar o reajuste do aluguel, do preço da energia. Tudo subiu, mas a
produção não. Então, agora, percebe-se o aumento de preços.

E se houvesse mais concorrência? Seria a única forma de fazer com que os preços dos
carros subissem menos que a inflação. Ou não subissem. A tendência, quando se é
empresário num país fechado, é passar mais tempo em Brasília tentando defender seus
interesses do que na fábrica tentando diminuir custo. E tem o custo Brasil, que piora o
cenário. Levar um contêiner da fábrica da JAC de HengFeng para Shangai, na China, o
que corresponde a uma distância de pouco mais de 500 quilômetros, custa cerca de 500
reais. No Brasil, transportar um contêiner de São Paulo ao Rio de Janeiro custa 1 900
reais. O nosso país está muito torto. Para compensar esse custo de logística, o dólar tinha
que estar custando 8 reais.

A imagem do Brasil para o empresário estrangeiro está arranhada? Quando trouxe a


JAC para o Brasil, a intenção era importar 30 mil carros por ano por três anos, para depois
construir uma fábrica com capacidade para 100 mil carros. Minha esposa, que é mineira,
me disse para tomar cuidado com a ousadia. Mas eu então pensei: há muitos anos não se
muda a regra do jogo no Brasil. Fernando Henrique e Lula não mudaram. Sabe o que
aconteceu? Ela tinha razão. O que é uma pena, pois mudar as regras do jogo no meio da
partida, conforme o placar, espanta o empresário, que acaba não investindo mais nada. O
espírito animal do empresário está na toca. Quem quer investir num país onde não se
conhecem as regras do jogo, onde tudo é incerto? O pior é que esse sentimento é
generalizado. Mudaram as regras no setor elétrico, automotivo, de infraestrutura. E depois
reclamam que poucos se interessaram pelas privatizações. Numa escala mais ampla, isso
trava o país.

Por que o mercado consumidor de veículos está tão ruim? Nada afeta tanto as vendas
quanto a alta dos juros e a falta de confiança no emprego. Se a montadora aumenta o
preço do carro de 3% a 4%, o efeito na prestação é muito menor do que quando a Selic
passa de 7,5% para 11,5%. E esse impacto é tão significativo justamente porque uma
minoria compra carro à vista. Cerca de 65% são financiados. E, justamente porque são
financiados, um consumidor não vai se comprometer com a compra de um bem durável
caro se não tiver absoluta certeza que terá emprego para conseguir pagar as parcelas.
Hoje, as pessoas estão com medo do futuro. O que muitos têm feito é trocar de carro, mas
por um usado, não zero. Assim, se arriscam menos, pois gastam menos também. Como
resultado, o mercado de carros usados subiu 12% em 2014, enquanto o de carros zero
caiu mais de 3%.

A menor oferta de crédito também ajudou nessa piora? Não, de forma alguma. Os
bancos não estão mais restritivos hoje do que um ano atrás. O que acontece é que os
juros estão mais caros e isso restringe o acesso ao bem. Há ainda a questão da
inadimplência, que não é um problema de agora. Desde que a economia começou a
desacelerar, três anos atrás, os bancos estão mais rígidos na hora de avaliar o cliente que
pede financiamento automotivo. Não é algo que tenha começado em 2014, então não se
pode culpá-los.

A Copa teve alguma influência no mercado de veículos? Sim, e relevante. As vendas


caíram 17% em relação ao ano passado. Ninguém trabalha, ninguém faz nada. No Rio de
Janeiro tivemos apenas 15 dias úteis no mês. Quem consegue vender diante desse
cenário? A Copa do Mundo, para quem não tem restaurante, hotel ou bar, foi terrível. Há
municípios que decretam feriado em todos os dias de jogos.
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Governo mantém alíquotas reduzidas do IPI de veículos até fim do ano

Como será a estrutura da fábrica JAC no Brasil? Está sendo construída em Camaçari,
Bahia, e dois terços do negócio pertencerão aos chineses. Eu fico com um terço.
Inicialmente, a participação seria o oposto, pois pegaríamos financiamento do BNDES
para comprar o maquinário, pelo programa PSI. Mas mudamos de ideia. Como Brasil é
caro, o BNDES dá dinheiro a taxas subsidiadas. Em vez de você ter uma taxa normal de
juros, você tem uma indústria não competitiva e juros subsidiados. O problema é que
mesmo assim não compensa. Um prensa fabricada no Brasil, mesmo com juros baratos, é
mais cara do que uma prensa nos Estados Unidos, na Coréia ou na China. No passado, os
juros do BNDES eram mais realistas, mas o banco financiava maquinário estrangeiro. A
fábrica da Hyundai foi toda construída com máquinas importadas e com dinheiro do
BNDES. No nosso caso, a conta não fechou. Vamos trazer máquinas de fora, inclusive da
Alemanha, pagando menos. Só que o capital será dos chineses, por isso a troca de
participação societária.

Os chineses estão decepcionados com o Brasil? A maior frustração é a mudança de


regra. O chinês é muito prudente, estuda o país profundamente e essas mudanças
assustam. A JAC recebeu ordem do governo chinês para crescer seu negócio. Para onde
eles iriam crescer? O Brasil é um destino óbvio. Agora, o governo pensa que o mercado
interno é patrimônio do povo brasileiro e que tem de ser usado por empresas que estão
fixadas no país. E isso faz com que a gente pague pelas ineficiências que a falta de
concorrência traz. O Inovar-Auto pode até ter sido feito com a melhor das intenções. Mas
não precisava disso, não precisava de decreto para convidar um empresário a investir
aqui. Todos que se instalaram já tinham planos. Agora, o Inovar-Auto acaba em 2017.
Qual empresa que jamais trabalhou em solo brasileiro começaria a planejar sua vinda com
base num regime que termina em três anos, ainda mais se permanecer um governo que
tem o histórico de mudar as regras do jogo?

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