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Costa – UFRN
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contra as aparências, contra as opiniões dos sentidos, as crenças populares e
míticas. No segundo entendimento da relação o que se procura é, pelo
contrário, levar em conta as aparências, reconhecendo que é na aparência que
se manifesta, de algum modo, a própria realidade. A expressão ‘salvar os
fenômenos’ é aqui apropriada: ela foi primeiramente usada pelos astrônomos
gregos, como exigência de que as hipóteses sobre os reais movimentos dos
astros fossem concebidas de tal maneira que os seus movimentos visíveis ou
aparentes pudessem ser deduzidos. De Galileu em diante, essa exigência
metodológica foi generalizada para toda a ciência natural. As construções
teóricas da ciência devem ser capazes, ao menos, de salvar os fenômenos.
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esta via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer
aquilo que não é - isso é impossível - nem expressá-lo
em palavras.
O ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser
de modo algum.
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não ser, onde há geração e corrupção. Através dele deixamo-nos enganar pelos
sentidos e pelo hábito por eles criado, como se lê no poema:
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se, por exemplo, a luz e a noite: com nenhum dos dois, segundo Parmênides,
está o nada. O mesmo se dá com a vida e a morte, pois também o cadáver,
para Parmênides, sente e vive.
Essa tentativa feita por Parmênides de salvar os fenômenos de uma
ontologia monista e abstrata conduziu, naturalmente, a aporias que os filósofos
posteriores apontaram. Se luz e noite, vida e morte, são ser, e o ser é idêntico,
como considera Parmênides, então elas devem ser idênticas, o mesmo se
sucedendo com todos os opostos que se dão nas aparências. Os fenômenos,
assumidos nos ser, precisam ser igualados e imobilizados, como que
empedrados pela fixidez do ser. Parmênides salva, assim, o ser, mas não
parece ter tido a mesma sorte no esforço de salvar os fenômenos.
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mundo das aparências possui uma realidade intermediária, entre o ser e o não
ser. Desse intermediário há um conhecimento também intermediário, entre a
ciência e a ignorância, que é a opinião (a doxa), geralmente enganadora. Eis a
passagem da República, onde isso é exposto:
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Episteme mundo
ou ciência inteligível
dianoia ou objetos
conhecimento matemáticos
mediano
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do conhecimento absoluto, mas pode ser para Platão objeto de conhecimento
provável, da opinião ou doxa. A opinião pode ser crença (pistis), se for acerca
das coisas sensíveis, mas será mera imaginação (eikasia) se for conhecimento
das imagens sensíveis e sombras das coisas.
As imagens sensíveis e sombras são a forma mais própria daquilo que
chamamos de aparência. Elas são cópias das cópias das idéias, que são as
coisas sensíveis. Por isso aqui a aparência corre maior risco de ser mero
parecer (Schein). Para Platão, como é sabido, a mímese na arte e a retórica na
política, pertencem muito facilmente a esse domínio.
Que a opinião, o saber acerca das aparências, seja uma forma, ainda que
inferior e incerta de conhecimento, deve-se ao fato de que as coisas sensíveis
são cópias das idéias. Se elas não o fossem, restaria apenas a matéria informe
e incognoscível.
Platão tem, pois, uma resposta articulada aos problemas deixados por
Parmênides. As dificuldades estão deslocadas para a relação entre aparência e
realidade, entre o mundo sensível e as idéias, e no caráter irredutível das
metáforas com que tenta explicar essa relação, como é o caso da noção de
cópia e de participação.
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concepção epistemológica chamada de realismo direto: nós podemos ter
imediato acesso à realidade como a forma que está nos fenômenos observados.
Eis uma passagem onde Aristóteles que parece confirmá-lo:
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A distinção entre aparência e realidade volta a ocupar um lugar importante
no cenário do questionamento filosófico com o empirismo moderno. Os
empiristas, por defenderem o princípio fundamental de que todo o nosso
conhecimento se fundamenta na experiência, reabilitam a aparência como
manifestação da realidade aos sentidos e ao intelecto. Eis uma passagem de
Thomas Hobbes que é característico dessa afirmação do papel positivo da
aparência ou fenômeno para a aquisição do conhecimento:
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corpos como sendo suas qualidades primárias ou suas qualidades secundárias.
Exemplos de qualidades primárias são a forma, a solidez e o número,
enquanto exemplos de qualidades secundárias são a cor, o sabor, o odor.
Locke sugere que as idéias que temos das qualidades primárias são idênticas
às próprias qualidades, enquanto que as idéias que temos das qualidades
secundárias dependem da constituição de nossos órgãos sensoriais. Assim,
pode ser que um cão não perceba um objeto como colorido, mas ele precisará
percebê-lo como sólido, como redondo etc., tanto quanto nós. Assim, ao
menos em parte – como idéias de qualidades primárias – as aparências
sensíveis são reproduções perfeitas da realidade, informando-nos acerca dela,
tal como ela é em si mesma.
Berkeley fez uma objeção epistemologicamente importante ao
representacionalismo de Locke: à pretensão deste de poder afirmar que nossas
aparências sensíveis, nossas idéias, possam representar uma realidade à qual
não temos acesso direto. A objeção de Berkeley é a de que Locke pretende,
primeiro, que só temos acesso cognitivo à nossas idéias, nossas aparências
sensíveis, e, em seguida, que essas idéias representam o mundo real. Ora, se
admitirmos o primeiro ponto, não temos como provar o segundo. Como
verificarmos se nossas idéias de qualidades primárias são realmente idênticas
às qualidades primáris dos objetos reais, se não podemos conferir isso
observando as próprias qualidades primárias? Como podemos saber que
qualquer de nossas idéias corresponde a algo de real se nunca temos acesso ao
que chamamos de real, a não ser através de idéias? Eis a conclusão, nas
palavras de Berkeley:
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corpos externos, que seja afetada pela mesma corrente de sensações ou
idéias que você é afetado, imprimidas na mesma ordem e com a mesma
vividez em sua mente. Eu pergunto se essa inteligência não possuiria toda
a razão para crêr na existência de substâncias corpóreas, representadas por
suas idéias, e excitando-as em sua mente, que você pode possivelmente ter
para crêr na mesma coisa? (Principles of Human Knowledge I, par. 20)
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contemporâneos chamaram de sensibilia) é algo real e intersubjetivamente
acessível.
Kant parece ter pretendido ficar a meio caminho entre uma posição como a
de Locke – o realismo representativo – e uma posição como a de Berkeley (e
também a de Leibniz) – o idealismo ou o fenomenalismo. Kant distingue entre
aparência como fenômeno (como Erscheinung) e como mero parecer (como
Schein). A primeira corresponde à idéia vívida e coerentemente ordenada de
Berkeley e Leibniz. A segunda corresponde a idéia enfraquecida de Berkeley,
que para Kant pode ser mera ilusão. Mas o critério de distinção é para Kant
bem diverso: os fenômenos diferem do parecer pelo fato deles serem
condicionados pelas formas da intuição, i.e., pelo espaço e tempo, acrecido
das categorias do entendimento na unidade sintetizadora da apercepção. Mas
isso não é tudo. Se fosse só isso, Kant poderia ser um fenomenalista. Para ele
o fenômeno é o que chamamos de realidade, de natureza, mas ele o é somente
por ser determinado pela realidade noumênica da coisa em si, acerca da qual
nada podemos saber. Com isso Kant aproxima-se outra vez do realismo
representativo, embora não seja como tal classificável, devido a sua tese de
que os fenômenos são constitutivos daquilo que chamamos de realidade
externa. Eis uma passagem na qual Kant testemunha-nos a sua posição, sem
dúvida complexa e carregada de tensões internas:
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O fenômeno não é, pois, apenas o objeto que se manifesta, mas o objeto
como se manifesta ao homem.
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Em um contexto semelhante, Heidegger considera o fenômeno o em si da
coisa, a sua manifestação. Ele distingue o fenômeno como aparecer puro e
simles do ser em si, a Erscheinung, da simples aparência, a blosse
Erscheinung, que é mero indício, alusão de um ser que permanece oculto. Eis
como ele faz a distinção:
Uma posição não muito distante dessa costuma ser encontrada nas
investigações mais bem sucedidas da distinção no âmbito da filosofia
analítica. Assim, em Sense and Sensibilia, A. J. Austin realiza uma detalhada
investigação propedêutica acerca da multiplicidade de aplicações de palavras
como ‘realidade’ e ‘aparência’ na linguagem ordinária, mostrando, por
exemplo, que faz parte de nossos hábitos linguísticos a admissão de que
vemos "diretamente" objetos físicos. Austin quer defender o realismo direto
contra o fenomenalismo de A. J. Ayer e outros. Ou seja, sob condições
adequadas, aquilo que se dá como aparência, é a própria realidade.
Sob tais perspectivas, a distinção entre aparência e realidade não acarreta
mais consequências tão impressionantes no âmbito metafísico-gnosiológico,
nem mais projeta suas consequências em todos os âmbitos do interesse
humano, tal como ocorreu em seus primórdios.
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