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Renan Santos*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Interior da Catedral de Reims, França


É comum se ouvir falar em trevas e barbárie quando alguém se refere à Idade Média, por
vezes com uma expressão de escárnio e desprezo. Ao contrário do que diz este preconceito
herdado dos iluministas, tanto a filosofia quanto a ciência moderna devem muito à Idade
Média e à sua monumental Escolástica.

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Ao final do século 5, o que restava dos escombros do Império Romano era uma multidão
dispersa de povos bárbaros e alguns fragmentos da cultura clássica, que só não desapareceram
devido aos esforços dos monges copistas e dos grandes pensadores cristãos em Alexandria,
Grécia e Roma.

Os primeiros e conturbados séculos da Idade Média europeia seriam dominados pelo


pensamento de santo Agostinho, antigo responsável por solidificar a fé cristã sobre uma série
de elementos platônicos. Veremos a sua influência em autores como Boécio, Dionísio
Areopagita e Escoto Erígena, bem como na tradição das artes liberais que fundamentaram o
ensino medieval.

 

É difícil delimitar a origem da Escolástica porque jamais ela se estabeleceu como uma
doutrina filosófica restrita. Diferente do que se pensa, havia no ambiente católico uma
divergência muito viva em questões teológicas. Foi esse espírito do debate que acabou dando
origem à corrente de atividades intelectuais, artísticas e filosóficas a que se convencionou
chamar de Escolástica (do latim ‘ D.

É o século 12 que vê essa valorização do saber refletida na criação das universidades e na


ascensão da classe letrada. O monge agostiniano santo Anselmo desponta como o primeiro
escolástico, seguido por Pedro Abelardo, Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor.
 

Eis que na segunda metade do século 12 chegam às universidades as traduções hispânicas de


versões árabes das obras de Aristóteles. É o grande choque cultural que muda o rumo do
Ocidente e que catapulta a Escolástica para a sua "era de ouro" no século 13, quando
Agostinho deixa de ser o eixo do pensamento cristão, e a filosofia natural aristotélica se
agiganta diante da teologia.

Os mestres universitários adquirem fama e importância, os livros se multiplicam, e o modelo


de ciência antiga começa a ruir. Robert Grosseteste e seu discípulo Roger Bacon trabalham a
ideia de pesquisa científica, idealizando experimentos. As universidades de Paris, Oxford e
Colônia testemunham os grandes debates e o surgimento de obras gigantescas. É o século de
são Tomás de Aquino, Alberto Magno, são Boaventura e Duns Scotus.

     

Possivelmente a maior contribuição da Escolástica à filosofia tenha sido o seu notável rigor
metodológico e dialético. Os estudantes das principais universidades precisavam passar por
exames que envolviam a disputa oral de argumentos, sempre regida pelo uso da lógica formal
e intermediada por um mestre.

Pedro Abelardo se inspirou nesse método dialético e o aprofundou em sua obra `  ,
que virou referência para a resolução de problemas a partir da sucessão de afirmações e
negações sobre um mesmo tópico. Para isso, era imprescindível uma definição satisfatória dos
termos, que evitasse ambiguidades.

Tiveram muito sucesso nesse sentido os escolásticos, chegando a criar palavras totalmente
novas a partir das raízes do grego e do latim, o que acabou resultando no latim escolástico. A
própria evolução das ciências se deve em grande parte ao desenvolvimento desse rigor
terminológico.

  
 


Entre os renascentistas e iluministas, criou-se a ideia de que a Escolástica havia se submetido


a Aristóteles como um servo feudal se curva ao seu mestre, o que os estudos do século 20
desmentiram profundamente.

A verdade é que, com a chegada da imensa obra de Aristóteles, foram surgindo naturalmente
dois partidos nas universidades: os tradicionais, agostinianos e platônicos, que não admitiam a
ideia de ciências autônomas em relação à teologia, e os "modernos" aristotelistas, fascinados a
tal ponto com a investigação da filosofia natural que buscaram tornar as ciências
independentes da teologia.

Essa discussão levou a grandes contendas acerca da relação entre fé e razão, cuja ruptura
definitiva ficaria a cargo do franciscano inglês Guilherme de Ockham no século 14, abrindo
de vez as portas para a ciência moderna.

       
üa esteira das traduções que abalaram o Ocidente, encontrou-se a ԑ

, obra do filósofo
antigo Porfírio, onde ele expunha o problema dos universais em Aristóteles. Iniciava-se assim
um dos mais longos debates da história da filosofia.

Quando olhamos para duas maçãs, vemos algo de comum entre elas? Ou elas são
completamente diferentes? Há uma substância "maçã" separada delas, ou ela está em cada
uma das maçãs? Ou a substância "maçã" não existe de forma alguma? Perguntas desse tipo é
que dirigiram o debate dos universais.

Os ultrarrealistas, de índole platônica, como santo Anselmo, Odo de Tournai e Bernard de


Chartres, diriam que há uma substância, um universal "maçã" separado de todas as maçãs e
que lhes serve de modelo. Os realistas moderados, mais aristotélicos, como Pedro Abelardo,
João de Salisbury e Tomás de Aquino, afirmariam que o universal "maçã" existe somente nas
maçãs e nunca fora delas. Já os nominalistas, como Roscelin e Guilherme de Ockham,
negariam que houvesse qualquer universal; "maçã" seria um puro nome. Esta discussão
ecoaria no confronto entre empiristas e racionalistas modernos.

  

Chegam os séculos 14 e 15 e o movimento escolástico começa a conhecer sua derrocada,


eivando-se de formalismos dialéticos e discussões cada vez mais estéreis. Ainda assim, conta
este período com grandes figuras, como o já citado Guilherme de Ockham, üicolas
d'Autrecourt, Jean Buridan e üicolau de Cusa. De todo modo, às portas da Renascença, a
Escolástica já se encontrava moribunda.

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üos anos da Contra-Reforma, ainda a península ibérica testemunharia um último sopro do


espírito medieval, através de grandes pensadores católicos formados nas universidades de
Salamanca e Coimbra, como Francisco Suárez, Francisco de Vitória, Domingo de Soto e
Tomás de Mercado.

É neste ambiente da "Escolástica tardia" que se produzem importantes concepções do


jusnaturalismo e da ideia de direito internacional, além dos tratados de matéria econômica que
viriam a influenciar a escola marginal e o liberalismo austríaco nos séc. 19 e 20.

  

Com o declínio dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente
desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano atingiam o
seu auge.

Finalmente, no século 19 é que se verá uma tentativa de resgatar o legado escolástico (e


principalmente tomistaD, através da chamada üeoescolástica (ou üeotomismoD. Tal
movimento ganhou relativa força no século vinte, principalmente no meio católico. Josef
Pieper, Jacques Martitain e Garrigou-Lagrange foram alguns dos seus nomes mais destacados.
  é publicitário, estudioso de filosofia e mantém o blog ! 
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