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ARTIGO

PIPA DA VIDA: PRÁTICAS NARRATIVAS CONECTANDO


OS JOVENS PARA A VIDA

THE KITE OF LIFE: PRACTICES NARRATIVES CONNECTING YOUNG TO LIFE

RESUMO: Este artigo tem como objetivo relatar ABSTRACT: The purpose of this paper is to report MARISOL LURDES DE
ações da psicologia comunitária junto a um gru- actions of community psychology with a group of ANDRADE SEIDL
po de adolescentes em situação de risco social, adolescents at social risk, in particular, poverty. Mestre em psicologia
em especial, a pobreza. Era nossa intenção a Was our intention promoting actions of empower- clínica (Unisinos),
promoção de ações de empoderamento dos jo- ment of young people about future to life through especialista em Terapia
vens em relação ao futuro para a vida, através da narrative practice. For this we used methodology of de Família e de casal.
prática narrativa. Para isso utilizamos a metodo- the “Kite of Life”, which sought to reconnect these Coordenadora do serviço
logia da “Pipa da Vida”, a qual buscou reconectar adolescents with their families of origin, strengthe- de Psicologia da Horta
esses adolescentes com as famílias de origem, ning intergenerational alliances. We observed that Comunitária Joanna de
fortalecendo as alianças intergeracionais. Os va- the actions of empowerment proposed through Angelis/RS
lores, habilidades e sonhos compartilhados no the technical reconnected with their young fami-
grupo revelaram o legado intergeracional de suas lies and among their own generation. The values,
famílias de origem, um reconhecimento de suas skills and dreams shared in the group revealed the
GISLAINE OLIVEIRA
identidades e de seu protagonismo como um ser intergenerational legacy of their families of origin,
BAPTISTA
social. Entre os valores geracionais compartilha- recognition of their identities and their role as a so-
dos o que se mostrou mais significativo para os cial being. Among the generational values shared Graduanda do curso de
jovens foi a amizade. O testemunho dos mem- what was more significant for young people was psicologia da Universidade
bros sobre histórias ricamente vivenciadas sobre the friendship. The testimony of the members ri- Feevale/RS.
amizade reforçou o reconhecimento deste valor e chly experienced stories about friendship reinfor-
o sentido que tem para a vida dos jovens na co- ced the recognition of this that has value and the
munidade. Portanto, ações sociais que buscam a meaning to the lives of young people in the com-
promoção do protagonismo social de jovens em munity. Therefore, social actions that seek promo-
situação de risco precisam levar em conta suas ting social involvement of young in risk situation
características, seus legados multigeracionais, need take into account their characteristics, their
além do contexto em que vivem. Desta forma, as multigenerational legacies, beyond the context in
competências individuais poderão ser promovi- which they live. This way, the individual competen- Recebido em 19/02/2012.
das, enriquecidas, mas mantendo viva a história cies can be promoted, enriched, but keeping alive Aprovado em 20/08/2012.
pessoal de cada protagonista, facilitando assim the personal history of each protagonist, facilitating
a reautoria. the reauthoring.

PALAVRAS-CHAVE: prática narrativa, risco so- KEYWORDS: narrative practice, social risk, inter-
cial, aliança intergeracional, reautoria. generational alliance, reauthoring.

Promover o protagonismo social das comunidades em situação de risco tem se


constituído um desafio para os profissionais que atuam na área social. Geralmen-
te, as práticas apresentam um viés com foco no problema e na doença, sob uma
ótica tradicional do modelo do déficit, hoje consideradas limitadas e pobres por
restringir o entendimento sobre os processos do desenvolvimento humano. Em
contrapartida, práticas pós-modernas apoiadas pelo movimento construcionista
social preconizam o empoderamento do protagonismo familiar e comunitário, por
meio de ações colaborativas no enfrentamento dos problemas e em práticas que
reconheçam os valores e os potenciais das famílias e das comunidades na busca de
soluções para as dificuldades e adver- moldam as respostas, geralmente satu-
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sidades da vida (McNamee & Gergen, radas de problemas.
1998; Lietz, 2006). Dessa forma, a narrativa não é ape-
O discurso do Construcionismo nas um modo de representação, mas
Social entende o sujeito como ser rela- um modo específico de construção e
cional, permeado pela pluralidade de constituição da realidade, como Bru-
suas vivências em contextos sociais e a ner (1991) apontou. A fim de estudar
singularidade de suas construções nar- esse modo de construção, é necessário
rativas (McNamee & Gergen, 1998). examinar como as pessoas dão senti-
White e Epston (1990) consideram as do às suas experiências. E elas o fazem
construções narrativas resultado da narrando-as. Portanto, a narrativa
forma como as pessoas falam, perce- funciona como um modelo flexível,
bem e experienciam o mundo em que que opera como forma de mediação
vivem e, deste modo, criam histórias extremamente mutável entre o indi-
sobre suas vidas e sua identidade. víduo e o padrão cultural. Dessa for-
Caminhando na direção do reco- ma, as narrativas são ao mesmo tem-
nhecimento das histórias de vida dos po modelos relacionais e modelos de
indivíduos, famílias e comunidades, a identidade, preenchendo a condição
terapia narrativa entende as pessoas humana com abertura e plasticidade
como peritas em suas próprias vidas, (Brockmeier & Harré, 2003).
ou seja, elas têm competências, ap- Segundo McNamee e Gergen
tidões, crenças e valores, que ajudam (1998, p. 38), “as realidades narrati-
reduzir a influência dos problemas no vas construídas socialmente conferem
seu dia a dia (Morgan, 2007). sentido e organização à experiência
Segundo Jill Freedman e Gene individual”. De forma que compre-
Combs, os terapeutas narrativos estão endemos e vivemos nossas vidas por
interessados em trabalhar com pessoas meio de histórias, que consistem em
para obter e aumentar as histórias que eventos em sequência através do tem-
não sustentam ou não suportam os po e de acordo com um enredo. As
problemas. À medida que as pessoas histórias se dão dentro de um con-
começam a habitar e viver histórias texto, no qual atribuímos significados
alternativas, os resultados vão além aos eventos. Os contextos se referem
da resolução das dificuldades. Dentro ao gênero, classe social, raça, cultura e
delas, as pessoas produzem novas des- preferência sexual. Assim, as crenças,
crições de si mesmas, novas possibili- as ideias e as práticas da cultura na
dades para relacionamentos e novos qual vivemos têm uma grande impor-
futuros (1996, p. 16). tância com relação aos significados
Seguindo nesta ótica narrativa, o que damos aos contextos nas quais
trabalho com comunidades que vivem as histórias de vida foram formadas
em situação de risco social exige um (McNamee & Gergen, 1998).
olhar mais amplo para as adversidades A Terapia Narrativa (White & Eps-
e desafios aos quais respondem. A uti- ton,1990) oferece recursos muito enri-
lização de abordagens que realmente quecedores para a re-escritura da his-
se insiram nos contextos de vida das tória dos adolescentes em sofrimento
comunidades a fim de conhecer o sig- psíquico e social de forma crítica e re-
nificado de suas experiências oferece flexiva, e, ao reescrever suas habilida-
a possibilidade de compreensão das des e competências, revisitar traumas
experiências vividas e de como elas e riscos cotidianos, protegidos, entre-

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tanto, por “ilhas de segurança” de suas utilizadas como recurso de empodera-
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próprias histórias de vida. mento dos jovens em relação ao futu- narrativas conectando...
Marisol L.. de A. Seidl e Gislaine O. Baptista
As práticas narrativas têm um ro. Para isso utilizamos a metodologia
cunho sociopolítico voltado para liber- da Pipa da Vida, a qual buscou reco-
tar as pessoas de descrições de identi- nectar esses adolescentes com as famí-
dade estreitas focadas nos problemas, lias de origem, fortalecendo as alianças
contribuindo para a construção dos intergeracionais.
processos de cidadania e identidade Esta ferramenta, segundo Denbo-
popular, respeitando a cultura, crenças, rough (2010), é uma forma de reconec-
etnias e as histórias singulares de vida tar as alianças transgeracionais através
das comunidades. Práticas libertadoras do resgate das habilidades, valores e
de estigmas sociais e voltadas para o sonhos. O exercício que utiliza a metá-
fortalecimento e reconhecimento dos fora citada anteriormente é constituído
valores das comunidades locais são es- por cinco etapas as quais foram adapta-
senciais na construção de uma socieda- das pelas autoras.
de pós-moderna e atuante. 1ª etapa – desenhar a pipa, escrever
Portanto, comunidades que vivem os sonhos, habilidades, valores e as his-
em situação de pobreza e sofrimento tórias referentes a si próprios e às pes-
podem se beneficiar de um trabalho soas significativas em sua vida.
que contribua de forma colaborativa 2ª etapa – os ventos que atrapa-
para a mudança e para as novas traje- lham a pipa, como metáfora para
tórias de sucesso destas comunidades, as dificuldades vividas pelos jovens.
mas, sobretudo, respeitando sua sin- O coordenador convida os jovens a
gularidade. compartilharem seus desenhos, co-
Dessa forma, o objetivo deste traba- locando-os na parede e comentando
lho foi desenvolver ações da psicologia sobre os ventos/problemas que atra-
comunitária junto a um grupo de ado- palham suas vidas.
lescentes em situação de risco social, 3ª etapa – cada jovem escreve uma
em especial, a pobreza. Visando a pro- carta para alguém especial contando
moção de ações de empoderamento como foi fazer a pipa da vida, falando
dos jovens em relação ao futuro para sobre suas habilidades, valores e so-
a vida, utilizamos a técnica da Pipa da nhos (adaptado da prática da árvore
Vida (Denborough, 2010), a qual bus- da vida para este trabalho com o ob-
cou reconectar esses adolescentes com jetivo de aumentar a conexão com a
as famílias de origem, fortalecendo as família).
alianças transgeracionais pelo resgate 4º etapa – os pais são convidados
das histórias de habilidades, valores e para uma conversa a respeito da car-
sonhos. ta recebida, momento este em que as
alianças intergeracionais serão reco-
nectadas entre pais e filhos, reconhe-
MÉTODO: DELINEAMENTO cendo os ensinamentos que foram
herdados e como os filhos levam para
O trabalho buscou desenvolver a vida esta herança geracional (adapta-
ações da psicologia comunitária jun- do da prática da árvore da vida).
to a um grupo de adolescentes em si- 5º etapa – as pipas são confeccio-
tuação de risco social, em especial, a nadas e empinadas, experienciando
pobreza. As práticas narrativas foram um momento lúdico, prazeroso e ri-

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tualístico. Na visão de White (2007), à comunidade. Em seu trabalho comu-
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as práticas narrativas constituem-se nitário, a instituição entende o sujeito
em andaimes através dos quais o tera- enquanto cidadão construtor de sua
peuta colabora na re-escritura da vida própria história, por meio de uma vi-
das pessoas. Portanto, a Pipa da Vida são dialética da realidade e do seu papel
é um instrumento que proporciona no mundo. As práticas narrativas vêm
ações que visam a promoção da alian- complementar a filosofia construcio-
ça intergeracional de uma família, e nista da instituição, levando em conta
também alianças geracionais entre os as ideias e as práticas da cultura na qual
jovens de uma comunidade. vivemos.
Foram realizados cinco encontros
nos quais foi desenvolvida a técnica
PARTICIPANTES da Pipa da Vida. As entrevistas foram
gravadas e transcritas para posterior
Este trabalho foi desenvolvido com análise. Os procedimentos utilizados
cinco jovens de 10 a 12 anos que parti- para este trabalho com os adolescentes
cipam de projetos sociais realizados por estavam de acordo com as resoluções
uma ONG na região de Porto Alegre, 196 do Conselho Nacional de Saúde
que vivem em situação de risco social, e a 016/2000 do Conselho Federal de
em especial, a pobreza. A instituição Psicologia, como a entrega do termo
frequentada por esses jovens iniciou-se de compromisso livre esclarecido que
em 1990. Desde então, ela vem estimu- foi entregue em duas vias aos respon-
lando crianças, adolescentes e jovens a sáveis, as quais foram assinadas. No
desenvolverem seus potenciais, estimu- termo ficam assegurados o direito ao
lando a paz, o respeito por si, pelo pró- anonimato e a confidencialidade dos
ximo e pelo meio ambiente. A referida participantes.
ONG também contempla um espaço
onde funciona uma clínica de saúde, na
qual profissionais prestam seus serviços RESULTADOS E DISCUSSÕES

PIPA DA VIDA

SONHOS
Sonhos
Sonho
Sonho realizado
realizado no Sonho a ser a ser
Sonho
ano passado
ano passado realizado este
realizado
ano este ano

VALORES
Valores HABILIDADES
Habilidade

Histórias dos
Histórias Histórias
Histórias das
Valores
dos dasHabilidades
Valores Habilidade
sss

PESSOAS
Pessoas
IMPORTANTES
importantes

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Convidam-se os adolescentes a de- pessoas da sua rede social. Elas tam-
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senharem uma pipa no papel, onde bém refletirão sobre o que estes eventos narrativas conectando...
primeiro, em uma das pontas da pipa, dizem sobre as qualidades de relaciona- Marisol L.. de A. Seidl e Gislaine O. Baptista

pretende-se, segundo Denborough mentos particulares. Assim, a paisagem


(2010), que os adolescentes pensem em de identidade ou significados (habili-
suas esperanças, sonhos e desejos que dades, valores, intenções, sonhos) tem a
gostariam de realizar e assim possam ver com as interpretações que são feitas
ver que direção suas vidas estão to- através da reflexão sobre estes eventos
mando. Uma característica dos jovens que estão se abrindo através das paisa-
quando estão escrevendo é comparti- gens de ação (eventos e ações através do
lhar verbalmente com os colegas. “O tempo).
meu sonho é ser médica para ajudar Após terem resgatados os valo-
as pessoas.” Em continuação, os ado- res e as habilidades, convidam-se os
lescentes resgatam suas habilidades e adolescentes a contarem histórias de
competências. “Uma das minhas habi- como esses valores e competências
lidades que mais gosto é fazer poesias, ajudam em suas vidas e com quem
e escrevo muito bem”, diz a pequena aprenderam e como aprenderam. Até
garota de doze anos. A coordenadora neste momento, a ferramenta utiliza
do grupo faz perguntas para facilitar recursos que White (2007) denomina
os discernimentos dos jovens em rela- de “cenário de ação” e que envolve in-
ção às suas histórias de vida. “E como vestigar eventos e ações significativas
descobriu que essa era uma de suas na vida da pessoa, ou seja, sua vida
habilidades”, pergunta-lhe a terapeuta. pregressa e atual. “Meus pais estavam
“Quando fiz uma poesia para minha quase se separando, aí pedi para eles
mãe, ela me elogiou um monte...” que não se separassem porque eles se
Conforme Ncazelo (2006), quando amam e existe muito amor entre eles...”
se fala em habilidade, não se pensa em Conforme Morgan (2007), a paisagem
coisas óbvias, são procuradas as habi- de ação é constituída de experiências
lidades mais sutis, anunciando o que de eventos que são ligados em sequên-
é importante apreciar na vida. Quan- cia através do tempo e de acordo com
do se chega nesta parte da técnica, já enredos específicos se constituindo na
se está no território de identidade história de vida do sujeito.
da pessoa, assim definido por White Também a técnica em análise utili-
(2007). No território de identidade, za-se do recurso de re-associar ou re-
relacionam as implicações que a histó- -membrar (se reconectar com pessoas
ria alternativa tem em termos de com- significativas) através do que o adoles-
preensão da identidade. Aqui os ado- cente aciona na sua “rede social” e que
lescentes são convidados a refletirem Michael White denomina “Clube de
sobre sua própria natureza pessoal e Vida” (Russel, 2007). Os adolescentes
relacional. têm a oportunidade de pensar nas pes-
Voltando à metáfora em estudo, os soas importantes da sua vida, aquelas
adolescentes também falaram sobre os que mais lhes ensinaram (eles podem
valores que levam para a sua vida. “Um citar pessoas que já morreram). Con-
valor que eu aprendi é o amor, pois forme Sluzki (1997), a rede social pes-
quem tem amor tem tudo.” Segundo soal constitui-se daqueles seres com os
Morgan (2007), à medida que falam de quais o sujeito interage, troca sinais e
suas habilidades e valores, refletem so- sente-se significado. Constitui-se esta
bre o caráter, motivos, desejos, de várias rede de familiares, amigos, conheci-

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dos e companheiros, que contribuem como responder a essas dificuldades?
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através de um processo dinâmico e “É preciso ter coragem, fé, amizades,
interativo na construção de identida- amor, carinho compreensão para en-
de do indivíduo, ao longo do tempo frentar os ventos da vida.” E, aos pou-
e espaço, num constante construir e cos, as vozes, frágeis e tímidas, se tor-
reconstruir. Um dos relatos que foram nam fortes e decididas a falar.
dados foi: “A minha mãe sempre foi a Ncazelo (2006) assevera que este
pessoa que foi a minha referência, mas momento revela-se um bom ponto
depois que ela morreu, agora é a mi- de entrada para começar a explorar
nha tia.” Segundo Russel, os membros os riscos. Os jovens, metaforicamente
deste “Clube de Vida” podem mudar nomeados como “pipas”, passam a no-
de posição e status ao longo da vida mear as dificuldades que experimen-
das pessoas. Aquelas a quem as pesso- tam na vida. Como se está fazendo um
as dão mais importância com certeza exercício, os adolescentes começam
influenciam mais a construção de sua a externalizar seus problemas. Nestas
identidade (Russel, 2007). conversas de externalização, o grupo
Dando continuidade à técnica da é estimulado a narrar as adversidades
“Pipa da Vida”, sugere-se para os ado- que os jovens enfrentam na vida. Nes-
lescentes após terminarem de desenhar tas conversações, os indivíduos são
e escrever, que compartilhem com os convidados a falarem no coletivo e não
demais colegas a sua pipa, recontando se colocarem pessoalmente, pois é uma
suas histórias. É o momento de expor forma de proteção, como uma ilha de
sua pipa tomada de lembranças, so- segurança.
nhos e desejos. As pipas são colocadas O objetivo das conversações de ex-
na parede e cada jovem apresenta a sua ternalização é permitir que as pessoas
para os demais. A coordenadora do percebam que elas e o problema não
grupo faz perguntas externalizadoras são a mesma coisa. A externaliza-
sobre os sonhos, habilidades e valores ção localiza os problemas não dentro
e como foram aprendidos. Também dos indivíduos, mas como produto
através das conversas de remembrança, da cultura e da história. Problemas
os jovens se reconectam com as pesso- são compreendidos como socialmen-
as mais significativas de suas vidas ao te construídos e criados ao longo do
recontarem histórias de aprendizagens tempo (Russell & Carey, 2007). Ainda
desses valores, habilidades e sonhos. no dizer de Morgan (2007), a pessoa,
Na etapa dois da ferramenta em ao narrar sua história, seleciona fatos e
debate, aborda-se: “O que atrapalha acontecimentos que interpretam e dão
a pipa de subir”, pergunta-lhes a te- significado à sua vida.
rapeuta? “O vento...” Após eles terem Segundo Elkäim (1998), as inter-
falado, os adolescentes são convidados pretações que a pessoa faz e os signi-
a pensarem na pipa como sendo a vida ficados que dá e como os explica, re-
dos jovens, e então se questiona sobre velam a “dominância” de certo enredo
quais seriam as dificuldades e ventos na sua vida. Segundo Nichols (2007),
que os jovens teriam que enfrentar. o terapeuta, por meio de uma série de
“Brigas, desemprego, separações, ciú- perguntas, colabora para que os ado-
mes, drogas...” Também lhes pergun- lescentes separem-se da velha história,
ta a terapeuta: E o que é preciso fazer saturada do problema que desejam
para enfrentar? E quais os efeitos que resolver. Isso se torna possível porque,
os ventos causam em suas vidas? E agora, os jovens já reconhecem seus

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recursos (aptidões, competências, mumente e resolver mais eficazmente
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ações, desejos, conquistas), bem como conflitos. Embora conflitos ocorram narrativas conectando...
estão amparados pelo seu “Clube de frequentemente, estes são resolvidos Marisol L.. de A. Seidl e Gislaine O. Baptista

Vida”. “Quem pode contar histórias por amigos de maneira a aumentar a


de alguém que enfrentou os ventos probabilidade de continuação do re-
da vida”, pergunta-lhe a terapeuta? “A lacionamento. Há também diferenças
minha tia precisou fazer uma cirurgia notáveis de gênero nas qualidades das
e a família estava com muito medo, amizades de meninas e meninos. A
mas eu rezei e tive fé e ela conseguiu amizade desempenha um papel sig-
ficar boa, mas ela também acreditou nificativo no desenvolvimento social,
que ficaria boa.” Depois de a menina fornecendo às crianças ambientes e
ter narrado sua história, os demais contextos em que possam aprender
participantes também compartilha- sobre si mesmas, seus pares e o mun-
ram suas histórias. “Eu era muito bri- do ao seu redor (Rubin et al., 2005).
guenta e depois que conquistei ami- Na 3ª parte, essas lições e aprendi-
gos e tenho mais amizades, agora sou zados, segundo Ncazelo (2006), pe-
muito calma.” dem uma celebração. São quase um
Ainda segundo Morgan (2007), con- convite para celebrar a vida, a história
versas de remembrança (re-membrar secundária, as esperanças, as habi-
ou re-associar) possibilitam enriquecer lidades que foram descobertas, des-
as histórias secundárias e mais do que vendadas, que os jovens vivenciaram
isto, acentua Russel (2007), permitem durante todo esse exercício. Então, os
ao terapeuta que outras pessoas e valo- adolescentes são convidados a escre-
res significativos possam se associar na verem uma carta aos pais ou a alguém
descrição de novas histórias preferidas. especial. Segundo Morgan (2007),
Conforme mencionado nos recortes dentro das práticas narrativas, as
terapêuticos, ficou evidenciado que cartas são usadas em uma variedade
um dos valores importantes para esses de maneiras para ajudar as famílias.
adolescente é a amizade. Como recorte terapêutico, uma ado-
Rubin et al. (2005) apresentam lescente, com 12 anos, escreveu: “Hoje
uma revisão das principais caracte- fizemos uma coisa muito legal, a pipa
rísticas das amizades na infância. Se- da vida onde falamos sobre nossas
gundo os autores, a maioria das crian- habilidades e valores aprendidos com
ças tem pelo menos um amigo. Estas todos vocês que fazem parte da mi-
fazem amizades com outras crianças nha família e quero dizer que vocês
que são semelhantes em característi- me ensinaram tudo o que sei, por isso
cas e comportamentos. As concepções agradeço a vocês.”
de amizade avançam do concreto para Na 4ª etapa, os pais são convidados
o abstrato com a idade, o que se re- a participarem de um encontro para
flete em seus comportamentos com conversar sobre suas impressões, após
os amigos. Com a idade, as crianças terem recebido a carta dos filhos. É um
demonstram mais estabilidade nas momento de reconexão das famílias
relações de amizade que mantêm com seus valores intergeracionais, ao
mais altruísmo recíproco e mais co- perceberem que o legado familiar vai
nhecimento pessoal íntimo. As crian- ser continuado na nova geração. Se-
ças em processo de fazer amigos têm gundo Denborough (2010), no encon-
mais probabilidade de se comunicar tro com os pais podem ser trabalhados
claramente, se autorrevelar mais co- vários princípios chave da construção

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das alianças intergeracionais. Alguns soas dignas e crescer na vida.
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que se destacaram foram: partilhar Aprendemos o que devemos fazer quando
habilidades e outras implicações posi- valorizamos a vida.
tivas; “ela é muito esforçada, inteligen- Quem valoriza o amor e a amizade são
te, gosta de participar das coisas”, diz pessoas que amam sem interesse.
uma das mães das adolescentes. Outra E esse amor vai muito além das aparên-
mãe, também fala sobre sua filha, “A. cias.
é muito inteligente, participativa, ela Pois através desses valores que nós seres
gosta das atividades que pedem para humanos, somos mais unidos
ela fazer”. E não se esquecendo de proteger aqueles
Outro princípio que se destacou foi que amam,
traçar a linha da história das contribui- dando-lhe carinho, respeito e atenção.
ções mútuas, e descrever ricamente as E juntos construindo aos poucos coisas
ações dos propósitos comuns. Assim, novas.
ambas as mães que estavam na reunião São os valores que nos dizem o que é bom.
trouxeram falas sobre como sua educa- Os valores nos ensinam a não roubar e
ção e os ensinamentos foram passados matar.
de geração para geração e se faziam Mas parece que nem todo mundo aprende.
presentes. “É bom saber que o que meu Pois quando utilizamos esses valores,
pai me ensinou, eu passei para ela”. Eles nos ajudam a enfrentar as dificulda-
Recorte de outra mãe: “Estou feliz em des que se encontra nos caminhos.
saber que ela utiliza na vida dela aqui- Valores como a fé e a educação, que nun-
lo que ensinei como o respeito, amor, ca sai de moda
educação”; “[...] tudo o que ensinei a Que estejam presentes nos nossos atos e
minha filha foi a minha mãe que me ninguém nos tire.
passou porque ela sempre me ensinou Valores são como dente, nasce cada dia
tudo, e me corrigia quando fazia algu- um.
ma coisa errada ”. Por isso precisamos construir um mundo
Os adolescentes presentes nessa melhor e mais feliz.
reunião puderam ouvir o que suas
mães falavam sobre eles. Segundo Este documento coletivo tem o
White (1997), esse momento é cha- significado de compartilhamento de
mado de cerimônia de definição, uma identidade entre os jovens e também
oportunidade de alguém ser visto e re- proporciona uma contribuição para
conhecido pelas testemunhas externas outros jovens da comunidade (este do-
(por suas habilidades, valores, sonhos cumento circulará entre outros grupos
e esperanças). de jovens da instituição e também nos
No mesmo dia os adolescentes le- espaços da rede social a qual a ONG é
ram um poema de sua própria auto- interligada). Este documento revela as
ria, baseado nos valores que emergi- histórias preferidas e alternativas dos
ram durante a realização da técnica da jovens desta comunidade contribuin-
“Pipa da Vida”. do para novas possibilidades (a carta é
uma adaptação de outras práticas nar-
Guiando nossos passos rativas coletivas).
Na 5ª e última etapa, cada criança
É através dos valores que sabemos o que é confecciona sua pipa, escreve um so-
certo, justo e bom. nho a ser realizado e a solta para que o
Sem os valores não conseguimos ser pes- vento leve essa mensagem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS BRUNER, J. S. (1991). The narrative
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construction of reality. Critical In- narrativas conectando...
Neste artigo, os valores, habilidades quiry, 17, pp. 1-21. Marisol L.. de A. Seidl e Gislaine O. Baptista

e sonhos compartilhados no grupo RUSSELL, S., & CAREY, M. (2007). Te-


revelaram o legado intergeracional de rapia narrativa: respondendo às suas
suas famílias de origem, um reconhe- perguntas. Porto Alegre: Centro de
cimento de suas identidades e de seu Estudos e Práticas Narrativas.
protagonismo como seres sociais. Dar DENBOROUGH, D. (2010). Kite of Life:
visibilidade ao uso da técnica Pipa da From intergenerational conflict to
Vida como uma ferramenta conversa- intergenerational alliance. Adelaide:
cional produtora de conexão entre jo- Dulwich Centre Publications.
vens e suas famílias, bem como entre ELKAIM, M. (1998). Panorama das tera-
esses e seus pares se se mostrou uma pias familiares. São Paulo: Summus
ação positiva de empoderamento co- Editorial.
munitário. FREEDMAN, J., & COMBS, G. (1996).
Ações sociais que buscam a pro- The social construction of preferred
moção do protagonismo social de realities. New York: Norton.
jovens em situação de risco precisam LIETZ, C.A. (2006). Covering Stories
levar em conta suas características, of Family Resilience: A Mixed Me-
seus legados multigeracionais, além thods Study of Resilient Families.
do contexto em que vivem. Desta
Families in Society: The Journal of
forma, as competências individuais
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poderão ser promovidas, enrique-
pp. 147-155.
cidas, mas mantendo viva a história
MCNAMEE, S., & GERGEN, K.J. (1998).
pessoal de cada um, facilitando assim
A terapia como construção social.
a reautoria. Dessa forma, as histórias
Porto Alegre: Artes Médicas.
alternativas dão suporte para os ado-
MORGAN, A. (2007). O que é terapia
lescentes prosseguirem suas vidas,
narrativa?: uma introdução de fácil
tomarem iniciativas que estejam em
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harmonia com o que valorizam e com
o que querem para suas vidas. Permi- tudos e Práticas Narrativas.
MURRAY, M. (2004). Narrative
��������������
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tem ainda conectá-los com as pessoas
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