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Cód. 7-02-04-060
Editara Universidade de Brasília / MELHORAMENTOS
MASSA E PODER
Ao receber o Prêmio Nobel de
Literatura, Canetti não era consi-
derado um azarão, pois, ao lon-
MASSA E PODER
go de muitos anos, ele construiu
uma sólida reputação literária,
baseada em dois livros muito só-
lidos e incomuns; o próprio Auto
de Fé, um embasamento para
chegar a sua obra maior Massa
e Poder, na qual tenta uma aná-
lise imaginária mais sistemática
das multidões como um fenôme-
no e dos efeitos de massa nas
sensações do cotidiano.
Não há dúvida de que Canetti
com esta obra enriqueceu so-
bremaneira nosso conhecimen-
to dos processos de massa e po-
der. Ele olha para os fenômenos
como se estes ainda não estives-
sem enevoados por qualquer
teoria, não organizados para fá-
cil acolhimento. A obra de Ca-
netti, escrita numa linguagem
,alara, objetiva e forte deve mui-
to às disciplinas científicas e a
um conhecimento envolvente
de culturas estranhas, especial-
mente das "primitivas", que en-
contraram acolhida com ele.
Canetti está lá, onde a antropo-
logia, a sociologia e a psicolo-
gia nascem e se fecundam reci-
procamente.
Elias Canetti
MASSA E PODER
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CONSELHO DIRETOR
Abílio Machado Filho Tradução de
Amadeu Cury
Aristides Azevedo Pacheco Leão Rodolfo Krestan
Isaac Kerstenetzky
José Carlos de Almeida Azevedo
José Carlos Vieira de Figueiredo
José Ephim Mindlín
José Vieira de Vasconcellos
Reitor: José Carlos de Almeida Azevedo
Vice-Reitor: Luiz Octávio Moraes de Sousa Carmo
Edição: 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 A MALTA
Ano: 1986 85 84 83
Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-04-060 Malta e maltas 101
A malta de caça 106
A malta de guerra 108
A malta de lamentação 113
A malta de multiplicação 171
1, A comunhão 123
DO PINHEIRO AO LIVRO, UMA REALIZAÇA0 MELHORAMENTOS A malta interna e a malta silenciosa 125
5
A determinação das maltas. Aversão dos chefes pelos sobreviventes
Sua constância histórica 127 Soberanos e sucessores 269
Maltas nas lendas históricas dos arandas 129 As formas de sobrevivência 273
Formações de homens entre os arandas „ ... 133 O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos 278
Os mortos como sobreviventes 291
Epidemias 303
MALTA E RELIGIÃO A respeito da sensação de cemitério 306
A respeito da imortalidade 308
A inversão das maltas 139
Selva e caça entre os leles de Kasai 140
Os despojos de guerra entre os jívaros 145 ELEMENTOS DE PODER
As danças da chuva dos índios pueblos 149
Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo 151 Força e poder 313
Força e rapidez 315
O islamismo como religião de guerra 155
Pergunta e resposta 317
Religiões de lamentação 157
O segredo 323
A festa do muharram entre os xiitas 160 330
Sentenciar e julgar
Catolicismo e massa 170 O poder do perdão. A graça 332
O fogo sagrado de Jerusalém ..... 174
A ORDEM
MASSA E HISTÓRIA
A ordem: fuga e aguilhão 337
Símbolos de massa das nações 185 A domesticação da ordem 341
A Alemanha de Versalhes 197 Contragolpe e medo de mandar 342
Inflação e massa 201 A ordem a muitos 344
A essência do sistema parlamentar 207 Espera de ordens 346
Divisão e multiplicação. Socialismo e produção 209 Espera de ordens dos peregrinos em Arafat 349
A autodestruição dos xosas 212 Aguilhão-ordem e disciplina 350
Ordem. Cavalo. Flecha 352
Castrações religiosas: os skoptsys 355
AS ENTRANHAS DO PODER Negativismo e esquizofrenia 358
A inversão 361
Tomar e incorporar A dissolução do aguilhão 364
223
Ordem e execução. O verdugo satisfeito 367
A mão 233
Ordem e responsabilidade 369
Sobre a psicologia do ato de comer 242
A METAMORFOSE
O SOBREVIVENTE
Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos 375
O sobrevivente 251 Metamorfose de fuga. Histeria, mania e melancolia 381
Sobrevivência e invulnerabilidade 252 Automultiplicação e auto-ingestão. A figura dupla
Sobreviver como paixão 254 do totem 387
O poderoso como sobrevivente 256 Massa e metamorfose no delirium tremens 399
A salvação de Flávio Josefo 260 Imitação e simulação 412
6 7
O personagem e a máscara . . . 416
A desconversão 421
Proibições de metamorfose 422
Escravidão ........... , . . 427
ASPECTOS DO PODER
PODERIO E PARANÓIA
Epílogo 515
Notas 523
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Inversão do temor de ser tocado
Não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado
pelo desconhecido. Ele quer saber quem o está agarrando; ele
o quer reconhecer ou, pelo menos, classificar. O homem sempre
evita o contato com o estranho. De noite ou em locais escuros
o terror diante de um contato inesperado pode converter-se
em pânico. Nem mesmo a roupa oferece segurança suficiente;
é fácil rasgá-la, é fácil chegar até a carne nua, lisa e indefesa
do agredido .
Todas as distâncias que o homem criou em torno de si
surgiram a partir deste temor de ser tocado. As pessoas se
fecham em suas casas nas quais ninguém pode entrar, e so-
mente dentro delas é que elas se sentem relativamente seguras.
O medo do ladrão não diz respeito apenas às suas intenções de
assalto, mas também a um temor de ser tocado por um ataque
repentino e inesperado vindo das trevas. A mão, transformada
em garra, sempre volta a ser utilizada como símbolo deste
medo. Uma boa parte deste contexto foi incluída no duplo
sentido da palavra "agarrar". Tanto o contato mais inofensivo
como o ataque mais perigoso estão incluídos neste termo, e
sempre existe uma certa influência do segundo sentido sobre
o primeiro. O substantivo "agressão" passou a designar uni-
camente o sentido pejorativo do termo,
Esta aversão em relação ao contato não nos abandona
quando nos misturamos com outras pessoas, A maneira como
nos movimentamos na rua, entre muitas pessoas, em restau-
rantes, trens e ônibus, é determinada por este medo. Mesmo
quando nos encontramos muito próximos de outras pessoas,
quando podemos contemplá-las e estudá-las detalhadamente,
evitamos, na medida do possível, entrar em contato com elas.
Quando agimos de outra maneira, isto ocorre apenas porque a
outra pessoa nos agrada e então a aproximação parte de nós
mesmos.
A rapidez com que nos desculpamos quando, involunta-
riamente, entramos em contato com alguém, a ansiedade com
a qual se esperam estas desculpas, a reação violenta e às vezes
agressiva quando o pedido de desculpas não é feito, a anti-
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palia e o ódio que sentimos em relação ao "malfeitor", mesmo pergunta; no entanto, mesmo assim, têm pressa de chegar
quando não existe maneira de se ter certeza de que ele real- lá onde se encontra a maioria. Existe uma espécie de decisão
mente o é -- toda esta confusão de reações psíquicas relativas nos seus movimentos que se diferencia consideravelmente da
ao ser tocado pelo estranho, em sua extrema instabilidade e manifestação de uma curiosidade comum. Pensa-se que o mo-
irritabilidade, demonstra que se trata de algo muito profundo vimento de uns contagia os outros, mas não é apenas isto:
que nos mantém em posição de alerta e nos deixa suscetíveis eles têm todos uma meta. E antes de encontrarem palavras
a um processo que jamais abandona o homem depois que ele apropriadas para descrever isto, a meta passa a ser a zona de
estabeleceu os limites de sua pessoa. Até mesmo o sono, que maior densidade, o lugar onde se reúne o maior número de
nos torna muito mais indefesos, é extremamente fácil de ser pessoas.
perturbado por este tipo de temor. É preciso dizer mais algumas coisas a respeito desta forma
Somente quando imerso na massa é que o homem pode extrema da espontaneidade da massa. Lá onde ela se origina,
escapar deste temor em relação ao contato. Esta é a única no seu próprio núcleo, ela não é tão espontânea quanto parece.
situação na qual o temor se transforma no seu oposto. Para Mas no restante, se deixarmos de lado as cinco, dez ou doze
isto é necessária uma massa densa, na qual um corpo se estreita pessoas a partir das quais ela se originou, a espontaneidade
contra outro corpo, densa também na sua constituição anímica, realmente existe. E a partir do momento em que ela se torna
ou seja, quando já não se presta mais atenção a quem "se consistente, existe o desejo de aumentar esta consistência. A
aperta" contra a gente. Assim que uma pessoa se abandona à ânsia do crescimento é a primeira e principal característica da
massa, ela deixa de temer o seu contato. Neste caso ideal, massa. Ela quer incluir todos os que estão, de alguma forma,
todos são iguais entre si. Nenhuma diferença conta, nem mesmo ao seu alcance. Todo e qualquer ser com forma humana pode
a dos sexos. Qualquer pessoa que se aperte contra nós, torna-se tomar parte dela. A massa natural é a massa aberta: seu cresci-
idêntica a nós mesmos. Nós a sentimos, da mesma forma como mento não tem limites prefixados. Ela não reconhece casas,
sentimos a nós mesmos. De repente, tudo acontece como que portas ou fechaduras; todos os que relutam em se incluir nela
dentro de um só corpo. Talvez este seja um dos motivos pelos tornam-se suspeitos. O termo "aberta" deve ser compreen-
quais a massa procura se apertar tão densamente: ela quer se dido aqui num sentido amplo: a massa é aberta em todas as
livrar da maneira mais completa possível do temor do contato partes e em todas as direções. A massa aberta existe enquanto
de cada um dos seus indivíduos componentes. Quanto maior cresce, Sua desintegração tem início no instante em que deixa
for a veemência com a qual os homens se apertam, tanto maior de crescer,
é a certeza de que eles não se temem entre si. Esta inversão do Pois com a mesma rapidez com a qual se formou, a massa
temor de ser tocado faz parte da massa. O alívio que se pro- também se desintegra. Nesta forma espontânea, ela é uma con-
paga dentro dela — e que será examinado dentro de outro figuração frágil, Sua abertura, que lhe possibilita o cresci-
contexto — alcança uma proporção impressionantemente ele- mento, é simultaneamente seu perigo. Dentro dela sempre
vada na sua densidade máxima. permanece vivo o pressentimento da desintegração que a amea-
ça, e da qual ela procura escapar através de um crescimento
acelerado, Enquanto pode, ela incorpora tudo; no entanto, por
Massa aberta e fechada incorporar tudo, ela é forçada a se desintegrar.
Em oposição à massa aberta, que pode crescer até o infi-
Uma aparição tão enigmática quanto universal é a da massa nito, que se encontra em todos os lugares e que justamente
que surge repentinamente onde antes não havia coisa algu- por este motivo reclama um interesse universal, existe a massa
ma. É possível que algumas pessoas tenham estado juntas, fechada,
umas cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado, nada Esta renuncia ao crescimento e estabelece como sua
era esperado. Repentinamente, tudo está cheio de gente. De meta principal a permanência. A característica que mais chama
todos os lados pessoas começam a afluir como se todas as a atenção nela é o limite. A massa fechada se estabelece; ela
ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que cria o seu lugar limitando-se; o espaço que ela irá preencher
aconteceu, sendo incapazes de responder a qualquer tipo de lhe é assinalado. Ela é comparável a um recipiente no qual
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se verte um liquido; sabe-se sempre quanto líquido pode ser qual ele encerra sua propriedade e sua própria pessoa, o posto
colocado dentro dele. Os acessos ao espaço são limitados; não que ele ocupa, o status que almeja, tudo isto serve para criar,
se pode ingressar nele de qualquer maneira, O limite é res- para fortalecer e para aumentar distâncias. A liberdade é tolhi-
peitado. Este limite pode ser feito de pedra, de paredes sóli- da no momento em que existe um movimento de maior pro-
das. É possível que haja a necessidade de um determinado fundidade em direção a outra pessoa. Impulsos e reações de-
ato de recepção; talvez seja preciso pagar uma determinada saparecem como água num deserto. Ninguém é capaz de chegar
quantia pelo ingresso. E quando o espaço está repleto com a às proximidades, às alturas de outra pessoa. Hierarquias fir-
densidade desejada, ninguém mais é admitido. Mesmo quando memente estabelecidas em todos os âmbitos da vida impedem
transborda, a parte principal continua sendo a massa densa a intenção de chegar até os superiores, de inclinar-se até os
dentro do espaço fechado; e os que permaneceram do lado de inferiores, a não ser em termos de aparências superficiais. Nas
fora não podem realmente fazer parte dela. diversas sociedades existentes, estas distâncias estão recipro-
O limite serve para impedir um aumento desordenado, camente equilibradas de maneira diferente. Em algumas delas,
mas também para dificultar e para retardar a desintegração. a ênfase é dada às diferenças de origem; em outras, às dife-
A massa ganha em estabilidade o que sacrifica em termos de renças de ocupação ou de propriedade.
possibilidade de crescimento. Ela se protege de influências Não é importante detalhar aqui todas as características
externas que poderiam ser-lhe hostis e perigosas. No entanto destas hierarquias. O importante é que elas existem por todos
ela conta de maneira toda especial com a repetição. Através os lados, que estão instaladas na consciência dos homens, e
da perspectiva de voltar a se reunir, a massa supera todas as que determinam de maneira decisiva o comportamento deles
vezes a sua própria dissolução. O edifício, o arcabouço espera em relação aos demais. A satisfação de se estar acima de outras
por ela, ele existe por causa dela, e enquanto ele existir a pessoas dentro de uma hierarquia não compensa a perda de
massa continuará se reunindo exatamente da mesma maneira, liberdade de movimentos. Nas suas distâncias, o homem se
O espaço continua existindo mesmo nos momentos de maré torna mais rígido e mais sombrio. Ele é obrigado a suportar
baixa e, pelo seu vazio, ele lembra o tempo da maré cheia. estas cargas e não avança, não progride. Ele se esquece de
que estas cargas foram criadas por ele mesmo e deseja liber-
tar-se delas. Mas como poderá libertar-se delas sozinho? Por
A descarga mais que faça para conseguir isto, por maior que seja sua
determinação neste sentido, ele continua situado entre os de-
O acontecimento mais importante que se desenrola no interior mais, que fazem seus esforços malograrem. Enquanto os
da massa é a descarga. Antes disto, a massa em si não chega demais se ativerem às suas distâncias, ele será incapaz de se
a existir realmente; é através da descarga que ela se integra aproximar deles.
de verdade, A descarga é o momento no qual todos os que Somente todos juntos são capazes de se libertar de suas
pertencem a ela se despojam de suas diferenças e sentem-se distâncias. E é exatamente isto o que acontece dentro de uma
iguais massa. Na descarga todas as separações são colocadas de lado
Entre estas diferenças devem ser consideradas principal- e todos se sentem iguais. Dentro desta densidade, como pra-
mente as de imposição externa: diferenças de status, de posi- ticamente não existe espaço entre as pessoas, os corpos se
ção e de propriedade. Os homens, como indivíduos, sempre pressionam uns contra os outros, e cada um fica tão próximo
têm consciência destas diferenças, que têm peso enorme, for- do outro como de si mesmo. O alívio que isto provoca é
çando-os a posições claramente separadas. O homem se situa impressionante. É em função deste momento feliz, no qual
com segurança num lugar determinado, mantendo-se distante ninguém é mais, ninguém é melhor do que os outros, que os
de tudo o que se aproxima dele com gestos judiciais eficazes. homens se transformam em massa.
Como um moinho de vento numa planície extensa, assim o No entanto o momento da descarga, tão desejado e tão
homem permanece em pé, expressivo e em movimento; até repleto de felicidade, comporta em si mesmo um perigo par-
o próximo moinho de vento não existe coisa alguma. Toda a ticular. Ele padece de uma ilusão básica: os homens que re-
vida, como ele a conhece, é definida por distâncias: a casa na pentinamente estão se sentindo iguais, não foram realmente
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tinuação. No entanto seria errôneo acreditar que a facilidade
igualados para sempre. Eles retornam às suas casas separadas de quebrar os objetos constitui o fato decisivo. Já foram ata-
e dormem nas suas próprias camas. Eles conservam suas pro- cadas esculturas feitas das pedras mais duras, que foram mu-
priedades; não renunciam aos seus nomes. Eles não repudiam tiladas e tornaram-se irreconhecíveis. Os cristãos destruíram
os seus familiares, nem tampouco escapam deles. Somente em as cabeças e os braços dos deuses gregos. Reformadores e
casos de transformações especiais e muito sérias é que os
revolucionários fizeram com que fossem baixadas dos seus
homens se libertam de velhos laços, contraindo novas ligações. pedestais imagens de santos, às vezes até de alturas conside-
E estas ligações que pela sua própria natureza são capazes de radas como um perigo mortal; e mais de uma vez a pedra que
admitir apenas um número limitado de membros e que devem se quis triturar era tão dura que foi impossível destroçá-la
assegurar sua própria existência mediante regras especiais e completamente.
rígidas, eu as denomino cristais de massa. Posteriormente tra- A destruição de imagens que representam alguma coisa
tarei demoradamente de suas funções. é a destruição de uma hierarquia que deixou de ser aceita.
A massa propriamente dita, porém, se desintegra. Ela Desta forma são atacadas as distâncias habituais, que estão à
sente que acabará por se desintegrar. E teme esta decomposi- vista de todos e que são válidas em todos os lugares. Sua
ção. Ela somente poderá subsistir se o processo da descarga dureza era a expressão de sua permanência; elas existiam,
tiver continuidade devido à chegada de novos elementos hu- eretas e imóveis, há muito tempo, desde sempre, e era impos-
manos. Somente o incremento da massa impedirá que seus sível aproximar-se delas com intenções de hostilidade. Mas
componentes tenham de submeter-se novamente às suas cargas agora elas estão caídas e destroçadas. A descarga se consumou
privadas.
através deste ato.
No entanto, não é sempre que se chega a este ponto. A
destruição do tipo mais comum, à qual nos referimos inicial-
Impulso de destruição mente, consiste somente num ataque a todos os limites. Portas
e janelas pertencem às casas, sendo ao mesmo tempo a parte
Fala-se freqüentemente a respeito do impulso de destruição mais delicada de sua limitação com o exterior. Uma vez des-
da massa; esta é a primeira de suas características, que salta troçadas as portas e as janelas, a casa perdeu sua individuali-
aos olhos e é impossível negar que se encontra em toda parte, dade. Agora, qualquer pessoa pode entrar nesta casa segundo
em todos os países e dentro das mais variadas culturas. Apesar sua própria vontade; nada e ninguém se encontra protegido
de se tratar de uma realidade comprovável e que é geralmente dentro dela. De maneira geral, acredita-se que nestas casas
desaprovada, ela jamais chega a ser satisfatoriamente explicada. estejam abrigados os homens que pretendem se excluir da
De preferência, a massa destrói casas e coisas. Como massa, os seus inimigos. Agora, tudo o que os separava da massa
muitas vezes se trata de objetos frágeis, como cristais, espelhos, foi destruído. Entre eles e a massa já não existe coisa alguma.
vasilhames, quadros e louças, existe uma tendência a se acre- Estes homens podem sair e juntar-se a ela. Podem ser pro-
ditar que seria justamente esta fragilidade das coisas que incita curados e apanhados.
a massa à destruição. É bem verdade que o ruído produzido No entanto, existe mais do que isto. O próprio indivíduo
pela destruição, o barulho das vidraças se partindo fornece tem a sensação de que dentro da massa ele consegue ultrapas-
uma contribuição importante ao encanto da coisa toda: são sar os limites de sua própria pessoa. Ele se sente aliviado, já
os vigorosos vagidos de uma nova criatura, os gritos de um que todas as distâncias que o voltavam para si mesmo e que
recém-nascido. O fato de eles serem tão facilmente provocados o encerravam em si mesmo foram abolidas. Ao eliminar estas
aumenta sua popularidade; tudo grita em uníssono e esse ba- cargas da distância, ele se sente livre e sua liberdade o impele
rulho equivale ao aplauso das coisas. Uma necessidade parti- à ultrapassagem destas fronteiras. E o que acontece com ele
cular desse tipo de barulho parece existir no início dos acon- deve acontecer também com os outros, e ele espera a mesma
tecimentos, quando a massa ainda está sendo formada por um coisa por parte dessas outras pessoas. Ele se irrita com o fato
número bastante reduzido de elementos, e quando ainda não de que um recipiente de barro seja formado apenas por limites.
aconteceu quase nada. O barulho promete o reforço desejado Numa casa desagradam-lhe as portas fechadas. Ritos e cerimô-
e funciona como um presságio feliz de que haverá uma con-
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nias, tudo o que serve para conservar as distâncias, são coisas convencido de boa fé de que o importante era o próprio sermão,
que o ameaçam e que lhe são insuportáveis. Haverá uma inten- ter-se-ia mostrado surpreendido e talvez até bastante indignado
ção posterior de conduzir a massa fragmentada para estes reci- se alguém lhe explicasse que o que lhe causava satisfação era
pientes pré-moldados. A massa odeia suas futuras prisões, que o grande número de ouvintes e não o sermão propriamente
sempre foram suas prisões. Para a massa nua tudo tem a apa- dito. Todas as cerimônias e as regras características de institui-
rência da Bastilha. ções deste tipo procuram, no fundo, interceptar a massa: mais
O mais impressionante de todos os meios de destruição vale uma igreja segura e repleta de fiéis do que o mundo in-
é o fogo. Ele é visível a grandes distâncias e serve para atrair certo na sua totalidade. Com a regularidade da ida à igreja,
outras pessoas. Ele destrói de maneira irremediável. Depois com a repetição familiar e exata dos rituais exatos, garante-se
de um incêndio, nada volta a ser como era antes. A massa à massa algo assim como uma vivência domesticada de si mes-
que incendeia julga-se irresistível. Tudo vai se incorporando ma. A realização destas cerimônias em tempos estabelecidos
a ela enquanto o fogo avança. Tudo o que lhe for inimigo é acaba se convertendo no sucedâneo de necessidades de índole
destruído pelo fogo. Como se verá mais tarde, o fogo é o sím- mais dura e violenta
bolo mais vigoroso que existe para a massa. E depois de toda É possível que organizações deste tipo tivessem sido su-
a destruição, o fogo, exatamente como a própria massa, está ficientes, se o número de pessoas tivesse permanecido mais ou
fadado a se extinguir. menos estável. Porém as cidades cresceram sem parar; o au-
mento populacional dos últimos cem anos ocorreu com uma
velocidade crescente. Isto também criou todos os estímulos
O estouro necessários para a formação de massas novas e maiores, e nada,
nem mesmo uma liderança mais experiente e sofisticada, teria
A massa aberta é a massa propriamente dita que se abandona sido capaz de evitar este fato em tais circunstâncias.
livremente ao seu impulso natural de crescimento. Uma mas- Todas as sublevações contra um cerimonial tradicional
sa aberta não tem uma sensação ou uma visão clara da magni- de que nos fala a história da religião têm sempre como obje-
tude que pode chegar a alcançar. Ela não se prende a uma tivo acabar com a limitação da massa que, finalmente, quer
construção que lhe seja conhecida e que haja necessidade voltar a sentir seu próprio crescimento Tome-se como exem-
de preencher. Sua medida fixa não está estabelecida; ela quer plo o Sermão da Montanha do Novo Testamento: ele ocorre
crescer até o infinito, e para isto o de que necessita são quan- ao ar livre, pode ser ouvido por milhares de pessoas e, não
tidades cada vez maiores de pessoas. É neste estado primitivo resta a menor dúvida quanto a isto, é dirigido contra a
que a massa chama mais a atenção. No entanto ela conserva manipulação das cerimônias limitadas do templo oficial. Pen-
algo de excepcional em si, e o fato de ela sempre acabar se se-se na tendência do cristianismo paulino de evadir-se dos
desintegrando faz com que nunca seja levada totalmente a limites nacionais e tribais do judaísmo para converter-se numa
sério. É possível que ela tivesse continuado a ser encarada fé universal para todos os homens. Pense-se no desprezo exis-
com pouca seriedade, se o enorme aumento populacional re- tente dentro do budismo em relação ao sistema de castas,
gistrado em toda parte e o crescimento acelerado das cida- vigente na época, na índia.
des — dois fatos que caracterizam nossos tempos modernos -- Também a história interna das diversas religiões mun-
não tivessem fornecido oportunidades cada vez mais freqüen- diais é rica em acontecimentos de conteúdo semelhante. Tem-
tes para a sua formação. plo, casta e igreja sempre são limites por demais estreitos. As
As massas fechadas do passado, a respeito das quais cruzadas levam a formações de massas de uma tal magnitude
ainda falaremos de maneira mais detalhada, tinham todas se que nenhum edifício eclesiástico da época poderia congregar.
transformado em instituições familiares, O estado peculiar no Cidades inteiras se transformam mais tarde em espectadores
qual entravam freqüentemente os seus participantes parecia dos flagelantes e estes ampliam sua fama transferindo-se de
ser algo natural; a reunião sempre era realizada com um fim cidade para cidade. Ainda no séc. XVIII, Wesley constrói seu
determinado — religioso, festivo ou bélico — e esta meta movimento sobre sermões pronunciados ao ar livre. Ele tinha
parecia santificar aquele estado. Quem assistisse a um sermão, uma grande consciência do significado das suas enormes mas-
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sas de ouvintes, chegando inclusive a mencionar várias vezes força e em intensidade, tanto maiores possibilidades terão de
em seus diários estimativas de quantas pessoas o teriam ouvido sobrevivência através do confronto.
num determinado dia. O estouro para fora dos locais fechados
habituais tem sentido cada vez que a massa deseja recuperar
o seu antigo prazer pelo crescimento repentino, rápido e ili- O sentimento de perseguição
mitado.
Portanto, estouro é a denominação que eu dou à repen- Entre as características que mais chamam a atenção na vida
tina transição de uma massa fechada para uma massa aberta. da massa, existe uma que se poderia definir como um certo sen-
Este processo é bastante freqüente; no entanto, ele não deve timento de perseguição, uma sensibilidade peculiar e uma irri-
ser compreendido num sentido excessivamente espacial. Muitas tabilidade furiosa em relação aos inimigos assinalados como
vezes, tem-se a impressão de que uma massa não cabe mais tais de uma vez por todas. Estes inimigos podem se comportar
nos limites de um espaço dentro do qual estava bem guar- da maneira como quiserem — podem proceder com dureza ou
dada, e que ela se estende pela praça e pelas ruas de uma com amabilidade, podem mostrar-se compreensivos ou frios,
cidade, onde, atraindo tudo e sendo exposta a tudo, ela se duros ou brandos; todas as suas atitudes sempre serão interpre-
movimenta livremente. No entanto, mais importante do que tadas como se se originassem de uma maldade constante, de um
este processo externo é o processo interno que lhe é corres- posicionamento negativo em relação à massa, de uma intenção
pondente: a insatisfação do número dos participantes em re- preconcebida de destruir a massa de maneira declarada ou não.
lação à limitação, a determinação repentina de atrair, o desejo Para explicar este sentimento de inimizade e de persegui-
passional de alcançar todos. ção, precisamos partir novamente de um fato básico: a massa,
A partir da Revolução Francesa estes estouros foram uma vez formada, quer crescer rapidamente. É difícil fazer uma
adquirindo uma forma que consideramos moderna. Talvez devi- imagem exagerada da força e da imperturbabilidade com a qual
do ao fato de a massa ter-se libertado a tal ponto das religiões ela se estende. Enquanto ela sente que está crescendo — por
tradicionais, isto nos tenha facilitado considerá-la desde então exemplo, em situações revolucionárias que começam com mas-
de maneira nua, por assim dizer, biologicamente, sem todas as sas pouco numerosas mas de elevada tensão — ela sente como
injeções de sentidos e de metas transcendentes que antes po- limitação toda e qualquer coisa que se opuser ao seu cresci-
diam tingir nossos julgamentos. A história dos últimos cento mento. Ela pode ser dispersada pela polícia, mas isto terá um
e cinqüenta anos registrou uma multiplicação acelerada de efeito meramente temporário — é o equivalente a uma mão
estouros deste tipo; até mesmo as guerras estão incluídas, uma que passa em meio a uma nuvem de mosquitos. No entanto ela
vez que se tornaram guerras de massa. A massa já não se também pode ser atacada a partir do seu próprio interior, dado
conforma com condições e promessas piedosas; ela quer expe- que se concorde com as exigências que levaram à sua formação.
rimentar por si mesma o sentimento supremo de sua potência Os mais fracos então se afastam dela; outros, que estavam em
e de sua paixão selvagens e, para alcançar esta meta, torna vias de se juntar a ela, voltam do meio do caminho.
sempre a se utilizar de todas as situações e exigências sociais O ataque exterior à massa somente pode fortalecê-la. Ela
que lhe apareçam. volta a ficar coesa com uma intensidade maior depois de fisica-
É importante estabelecer em primeiro lugar que a massa mente separada. O ataque de dentro, no entanto, é o que apre-
nunca se sente saciada. Enquanto existir um homem que não senta perigos verdadeiros. Uma greve que tenha conquistado
esteja incluído nela, ela demonstrará apetite. Ninguém pode algumas vantagens começa a desintegrar-se de forma visível. O
afirmar com certeza que ela continuaria apresentando este ape- ataque de dentro apela às características individuais. Este ataque
tite, se alguma vez realmente conseguisse absorver todos os é considerado pela massa como um suborno, algo "imoral",
homens, mas é muito provável que sim. Suas tentativas de uma vez que é contrário à sua convicção clara e transparente.
perdurar têm, no fundo, algo de impotência. O único caminho Todo indivíduo que pertence a uma determinada massa leva
no qual ela tem possibilidades de sobreviver consiste na for- dentro de si um pequeno traidor que quer comer, beber, amar
mação de massas duplas, ou seja, que depois uma massa possa e ser deixado em paz. Enquanto satisfizer estas suas necessi-
se medir com outra. E quanto mais elas se aproximarem em dades de maneira paralela e sem fazer muito alarde delas, ele
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terá permissão para continuar. Porém, assim que ele se fizer e conquistar todos os que possam ser alcançados e conquistados.
notado, começará a ser temido e odiado; fica publicamente no- Elas aspiram a uma massa universal; a uma massa que dependa
tório que deu ouvidos às tentações do inimigo. de cada uma das almas e na qual todas as almas lhe pertençam.
A massa sempre é semelhante a uma fortaleza sitiada, mas Porém a luta que são obrigadas a travar as leva pouco a pouco
sitiada de maneira dupla: ela tem um inimigo do outro lado a uma espécie de respeito encoberto pelos adversárias, cujas
das muralhas, e tem um outro inimigo no seu próprio porão. instituições já existem. Elas percebem que é difícil conseguir
Durante a luta, ela atrai partidários em números cada vez maio- manter-se. Cada vez vão lhe parecendo mais importantes as
res. Diante de todos os portões reúnem-se seus novos amigos instituições que lhes assegurem solidariedade e permanência.
que pedem passagem com golpes decididos e impetuosos. Em Estimuladas pelas instituições dos seus adversários, fazem
momentos favoráveis, esta petição costuma ser aceita; mas tam- tudo para introduzir novas instituições; e, quando o conseguem,
bém existem os que preferem escalar as muralhas. A cidade com o passar do tempo estas acabam se transformando no as-
fica cada vez mais e mais repleta de lutadores; mas cada um sunto principal. O próprio peso das instituições, que passam
deles traz consigo o seu próprio pequeno e invisível traidor, então a ter uma vida própria, vai aplacando pouco a pouco o
que se esconde rapidamente dentro de algum porão. O estado ímpeto da finalidade inicial. As igrejas são construídas de
de sítio consiste na tentativa de impedir o acesso dos novos maneira a acolherem os fiéis que já existem. Elas somente são
convertidos. Para os inimigos que estão do lado de fora, as ampliadas com reservas e cautelas, e somente quando existe
muralhas são mais importantes do que para os sitiados. São os uma verdadeira necessidade de que isso seja feito. Existe uma
sitiadores que sempre reforçam as muralhas, dando-lhes alturas tendência acentuada para reunir os fiéis em unidades que
mais elevadas. Eles procuram subornar os recém-convertidos e, sejam separadas entre si. Justamente porque agora eles chega-
quando não conseguem dissuadi-los totalmente, procuram pelo ram a ser tantos, a tendência à desintegração é muito grande
menos dar uma carga suficiente de hostilidade ao pequeno trai- — um perigo que deve ser enfrentado permanentemente.
dor que sempre os acompanha no seu caminho. Por assim dizer, as religiões universais históricas têm
O sentimento de perseguição da massa nada mais é do que dentro do próprio sangue um sentimento de desconfiança em
este sentimento de ameaça dupla. Os sitiadores cercam cada relação à perfídia das massas. Suas próprias tradições, que têm
vez com mais força os muros externos; simultaneamente, os um caráter obrigatório, lhes mostram o quão rápida e inespe-
porões ficam cada vez mais minados por dentro. As ações do radamente elas cresceram. Suas próprias histórias de conver-
inimigo são abertas e visíveis quando ele trabalha nas muralhas; sões em massa lhes parecem ser milagrosas e realmente o são.
mas são ocultas e traiçoeiras quando ocorrem nos porões. Nos movimentos de apostasia, que as igrejas temem e perse-
Entretanto, a utilização de imagens deste tipo somente nos guem, este mesmo tipo de milagre se volta contra elas, e os
proporciona uma parte da verdade. Os que chegam de fora, os ferimentos que lhes são infligidos na própria carne são dolo-
que querem ingressar na cidade, não são apenas novos partidá- rosos e inesquecíveis. Estes dois fatos, o rápido crescimento
rios, reforços e apoio; eles também funcionam como alimento nos seus primórdios e as apostasias não menos rápidas mais
da massa. Uma massa que não aumenta de tamanho está em tarde, mantêm sempre viva sua desconfiança em relação à
estado de jejum; as religiões sempre souberam aproveitar com massa.
1
maestria este argumento. Veremos em seguida como as gran- 1 O que elas desejam em substituição à massa é um obe-
des religiões conservam suas massas sem que o processo de diente rebanho. É bastante habitual encarar os fiéis como se
crescimento seja demasiado agudo ou violento . fossem cordeiros, elogiando sua obediência. Elas renunciam
por completo à tendência essencial da massa, ou seja, ao cres-
cimento rápido. Conformam-se com uma ficção passageira de
Domesticação das massas nas religiões universais igualdade entre os fiéis que, sem dúvida alguma, jamais chega
a ser completamente real; contentam-se com uma determinada
As religiões com pretensões universais, quando são mun- densidade, que é mantida dentro de limites moderados e com
dialmente reconhecidas, logo modificam a tônica utilizada para uma forte direção. A meta, de preferência, é colocada numa
alcançar suas metas. No começo, o que lhes importa é alcançar grande distância, num além para o qual as pessoas não devem
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se transferir imediatamente, uma vez que ainda estão vivas, Pânico
e que deve ser merecido por meio de muitos esforços e sub-
missões. Gradativamente a direção vai se transformando no Como já foi dito freqüentemente, o pânico num teatro é
que existe de mais importante. Quanto mais distante estiver uma desintegração da massa. Quanto mais unidos tenham es-
a meta, tanto maior é sua possibilidade de permanência. No tado os espectadores pela representação, quanto mais fechado
lugar daquele princípio de crescimento, aparentemente impres- seja o formato do teatro que os mantém exteriormente unidos,
cindível, é colocada uma coisa completamente diferente: a tanto mais violenta será esta desintegração.
repetição. Porém também pode acontecer que, somente pela repre-
Os fiéis são reunidos em determinados espaços e em de- sentação, não se tenha formado tipo algum de massa autên-
terminados momentos; mediante atividades sempre idênticas, tica. Muitas vezes o público não se sente cativado e perma-
eles adquirem um estado semelhante ao da massa, que os im- nece junto apenas por já estar ali. O que a obra não conseguiu
pressiona sem no entanto chegar a ser perigoso, e ao qual eles é produzido instantaneamente por um incêndio. O fogo é tão
se acostumam. O sentimento de sua unidade lhes é ministrado perigoso para os homens como para os animais e constitui
em doses. Da exatidão destas doses depende a subsistência da o mais intenso e antigo símbolo de massa. A percepção do
igreja. fogo leva a limites insuspeitados quaisquer sentimentos de
Onde quer que os homens se tenham acostumado a esta massa que tenham existido entre os espectadores. Diante do
vivência repetida com precisão e limitada com exatidão dentro perigo comum e inequívoco aparece um medo comum a todos.
de suas igrejas ou templos, não podem mais prescindir dela. Assim, durante um curto espaço de tempo, existe no público
uma massa de verdade. Se não estivessem dentro de um tea-
Mantêm com respeito a ela uma dependência como se fosse
tro, seria possível fugir em conjunto como uma manada de
uma espécie de alimento essencial para tudo o que significa
animais em perigo e, mediante movimentos sincronizados, au-
vida para eles. Uma proibição inesperada do seu culto, a re-
pressão da sua religião por um decreto estatal são coisas que mentar ainda mais a energia da fuga. Um terror ativo de massa
deste tipo é a grande vivência coletiva de todos os animais
não podem ocorrer sem conseqüências. A perturbação da sua
que vivem em bandos e que, como bons corredores, costumam
economia de massa cuidadosamente equilibrada deve levar, de-
salvar-se em conjunto.
pois de algum tempo, ao estouro de uma massa aberta. Esta
No teatro porém a massa deve desintegrar-se da maneira
apresenta então todas aquelas características elementares que
mais violenta possível. As portas permitem a passagem de
já vimos anteriormente. Ela se expande com rapidez. Implanta poucas pessoas de cada vez. A energia da fuga se transforma
uma igualdade real e não fictícia. Procura densidades novas e por si mesma numa energia de revide. Entre as fileiras dos
agora muito mais intensas. Abandona momentaneamente aque- assentos pode passar apenas uma única pessoa e cada um está
la meta distante e difícil de ser alcançada, para a qual foi meticulosamente separado do seu vizinho; cada pessoa está
educada, e fixa-se numa meta aqui, imediatamente próxima sentada sozinha, cada qual ocupa o seu próprio lugar. A dis-
à vida concreta. tância até a porta é diferente para cada uma das pessoas. O
Todas as religiões repentinamente proibidas se vingam teatro normal procura fazer as pessoas sentarem-se deixando-
através de uma espécie de secularização: num estouro inespe- lhes apenas a liberdade das mãos e das vozes. O movimento
rado de selvageria, o caráter de sua fé se modifica completa- das pernas lhes é limitado o mais possível.
mente, sem que elas mesmas consigam compreender a natu- A ordem repentina de fuga que é ditada pelo fogo se vê
reza desta modificação. Elas acreditam que se trata da fé imediatamente confrontada pela impossibilidade de um mo-
antiga e acham apenas que estão se segurando com maior vimento comum. A porta pela qual cada indivíduo deve pas-
intensidade às suas mais profundas convicções. No entanto, sar, que ele vê, na qual ele se vê nitidamente recortado contra
na verdade, elas se transformaram em coisa completamente todas as demais pessoas, passa a ser uma espécie de moldura
diferente, com um sentimento agudo e singular de massa aber- de uma imagem que logo o domina. E desta forma a massa,
ta que agora são, e que não querem deixar de ser por preço ainda em seu apogeu, é forçada a se desintegrar violentamente.
nenhum. Este processo torna-se evidente nas mais violentas tendências
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individuais: cada um empurra, golpeia e pisoteia em torno de
bolo de massa entrou na economia psíquica dos indivíduos e
si, num verdadeiro frenesi.
forma uma parte inseparável dela. Aquele pisotear frenético de
Quanto mais se luta "pela própria vida", tanto mais evi-
seres humanos que é observado com tanta freqüência em casos
dente se torna a luta contra os outros que atrapalham de de pânico, e que parece ser tão absurdo, nada mais é do que
todos os lados. Ali estão eles de pé feito cadeiras, feito balaus-
o pisotear para apagar o fogo.
tradas, feito portas fechadas, com a diferença de que atacam
O pânico como desintegração somente pode ser evitado
violentamente. Empurram de um lado para o outro, para
prolongando-se o estado original do medo unitário da massa.
onde lhes apraz, ou melhor, para onde eles mesmos são em-
Isto pode ser provocado, por exemplo, numa igreja que esteja
purrados. Mulheres, crianças e pessoas idosas não são poupa-
das; nenhuma destas pessoas é diferenciada da categoria de ameaçada: numa situação de medo comunitário reza-se a um
homens adultos. Faz parte da constituição da massa que todos Deus comum a todos, em cujas mãos está o poder de extinguir
sejam iguais; e mesmo que alguém já não se sinta como o fogo por meio de um milagre.
parte da massa, ela continua a envolvê-lo totalmente. O pâni-
co é uma desintegração da massa dentro da massa. O indiví-
duo quer sair do seu interior e escapar de uma massa que A massa como anel
está ameaçada na sua forma de todo. No entanto, como ainda
se encontra fisicamente mergulhado, imerso dentro dela, pre- Encontramos um tipo de massa duplamente fechada no
cisa lutar contra ela, pois entregar-se, deixar-se levar, signifi- caso do circo. Vale a pena estudá-lo em relação a esta sua
caria sua perdição, já que a própria massa está ameaçada. Num qualidade peculiar.
momento destes não é possível acentuar-se suficientemente a O circo é bem delimitado exteriormente. Em geral ele é
própria individualidade. Golpes e empurrões têm sua réplica visível a uma grande distância. Sua localização na cidade, o
em outros golpes e empurrões. Quanto mais golpes a pessoa espaço que ocupa são conhecidos por todas as pessoas. Sabe-
distribuir, quanto mais golpes receber, tanto mais claramente se sempre onde ele se encontra, mesmo quando não se está
se sentirá ela mesma, tanto mais nítidos se tornarão seus pensando nele. Os ruídos que saem dele chegam a atingir luga-
próprios limites. res muito distantes. Uma boa parte da vida que transcorre
É curioso observar até que ponto a massa assume, para dentro dele acaba se comunicando à cidade circundante.
quem está lutando dentro dela, o caráter do próprio togo. Ela Porém, por mais excitantes que sejam estas comunicações,
nasceu pela visão súbita de uma chama ou por um grito de não é possível entrar nele sem algumas dificuldades. O número
"fogo!"; ela joga com o indivíduo que tenta escapar como de lugares no circo é limitado. Sua densidade tem um limite
se fosse formada de labaredas também. As pessoas que o indi- fixo. Os assentos estão dispostos de tal maneira que as pes-
víduo empurra são, para ele, objetos ardentes, seu contato soas não se apertem de maneira excessiva. Pretende-se que as
está carregado de hostilidade e cada parte do seu corpo que pessoas dentro dele tenham uma certa comodidade; todos de-
entra em contato com os outros lhe causa sustos. Qualquer vem ter uma boa visão, cada qual do seu lugar, sem que se
pessoa que se coloque em seu caminho está contagiada por atrapalhem uns aos outros.
esta intenção hostil e generalizada do fogo; a maneira como Em relação ao lado externo, contra a cidade, o circo re-
ele se propaga, como avança pouco a pouco em torno dos presenta uma muralha inanimada. Em relação ao lado interno,
indivíduos, e como finalmente os rodeia completamente, se ele ergue uma muralha de homens. Todos os presentes viram
assemelha muito ao comportamento da massa que os ameaça suas costas para a cidade. Eles se desprenderam da ordem da
por todos os lados. Seus movimentos imprevisíveis, o gesto cidade, de suas paredes, de suas ruas. Durante sua permanên-
de um braço, de um punho ou de uma perna são como as la- cia no circo não lhes importa o que acontece na cidade. As
baredas do fogo, que podem aparecer repentinamente de qual- pessoas deixam para trás a vida dos seus relacionamentos, de
quer lugar. O fogo, como o incêndio de um bosque ou de uma suas regras, de seus usos e costumes. Sua permanência em con-
estepe, é uma massa hostil, podendo chegar a despertar um junto em grande número está garantida apenas por um deter-
sentimento deste tipo em qualquer pessoa. O fogo como sím- minado espaço de tempo; a excitação lhes foi prometida, po-
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rém sob uma condição muito especial: a massa deve descar- diretamente como um estado de igualdade absoluta. Uma ca-
regar-se para dentro. beça é urna cabeça, um braço é um braço, as diferenças entre
As filas são escalonadas de baixo para cima para garantir eles carecem de importância. É justamente por causa desta igual-
que todos possam ver o que está ocorrendo embaixo. No en- dade que as pessoas se transformam em massa. Tudo o que
tanto isto tem como conseqüência que a massa está sentada poderia desviar deste intento é deixado de lado. Todas as exi-
perante si mesma. Cada um tem mil corpos e mil cabeças ins- gências de justiça, todas as teorias de igualdade extraem sua
taladas à sua frente. Enquanto ele estiver lá, todos também energia, em última instância, desta vivência de igualdade que
estarão. O que provoca a excitação neste espectador também cada qual conhece à sua maneira a partir da massa.
excita os demais, e ele o percebe. Os demais estão sentados a 3 — A massa ama a densidade. Não existe uma densi-
alguma distância dele; os detalhes, que em outras ocasiões dade que seja densa demais. Nada deve interpor-se, nada deve
servem para distinguir e individualizar as pessoas, se perdem. ficar vacilando; na medida do possível, tudo deve ser ela mes-
Todos se tornam muito parecidos, todos se comportam de ma. A sensação de densidade máxima ocorre no momento da
maneira semelhante. O indivíduo percebe nos demais apenas descarga. Urna dia será possível medir-se e determinar com
as coisas que ele mesmo está sentindo naquele instante. A mais exatidão esta densidade.
excitação visível dos demais aumenta a excitação que ele mes- 4 — A massa necessita de uma direção. Ela está em
mo sente. movimento e se movimenta em direção a algum lugar. A di-
A massa que se exibe desta forma não é interrompida reção, que é comum a todos os componentes, intensifica o
em lugar algum. O anel que ela forma é fechado. Nada escapa sentimento de igualdade. Uma meta, que está fora de cada
dela. O anel formado por rostos fascinados e superpostos um e que é coincidente em todos, submerge as metas privadas,
possui alguma coisa de curiosamente homogêneo. Este anel desiguais, que seriam a morte da massa. Para esta subsistir,
inclui e contém tudo o que ocorre abaixo dele. Nenhum dos a meta é indispensável. O temor da desintegração, que sempre
seus membros integrantes o deixa escapar, nenhum quer par- está vivo dentro dela, faz com que seja possível orientá-la em
tir dali. Cada falha neste anel poderia evocar a desintegração, direção a quaisquer objetivos. A massa existe enquanto tenha
a separação posterior. Mas não existe falha alguma: esta uma meta não alcançada. Mas ainda há nela outra tendência
massa é fechada em relação ao lado externo e também em si, ao movimento que leva a formações novas e superiores. Fre-
ou seja, é duplamente fechada. qüentemente é impossível prever a natureza destas formações.
As propriedades da massa Cada uma destas quatro propriedades que foram determi-
nadas podem estar presentes em maior ou menor medida.
Antes de tentarmos uma divisão da massa, vale a pena Conforme focalizarmos uma ou outra, chegaremos a uma divi-
resumir rapidamente as suas principais propriedades. Quatro são diferente das massas. •
características devem ser destacadas: Já falamos a respeito de massas abertas e fechadas e tam-
1 — A massa sempre quer crescer. Seu crescimento não bém explicamos que esta divisão se refere ao seu crescimento.
tem limites impostos pela natureza. Onde tais limites são cria- Enquanto não houver obstáculos ao seu crescimento, a massa
dos artificialmente, ou seja, em todas as instituições que são é aberta; ela é fechada, assim que existirem quaisquer limita-
utilizadas para a conservação de massas fechadas, sempre exis- ções ao seu crescimento.
te a possibilidade de um estouro, que de fato ocorre às vezes. Outra divisão, a respeito da qual ainda falaremos bas-
Não existem disposições que possam evitar o crescimento da tante, é a que existe entre massas rítmicas e estancadas. Esta
massa de uma vez por todas e que sejam realmente seguras. divisão se refere às duas propriedades principais seguintes: a
2 — No interior da massa reina a igualdade. Trata-se de igualdade e a densidade, mas vistas em conjunto.
uma igualdade absoluta e indiscutível, que jamais é colocada A massa estancada vive em função de sua descarga. Po-
em dúvida pela própria massa. Ela possui uma importância rém ela se sente segura desta descarga e a posterga. Ela deseja
tão fundamental que seria possível definir o estado da massa um período relativamente prolongado de densidade para pre-
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parar-se para o momento da descarga. Seria quase possível pessoal ou do ânimo de cada um. Mas as pessoas também
dizer que ela se esquenta em sua densidade, postergando o podem caminhar mais depressa ou mais devagar, podem cor-
mais possível a descarga. O processo da massa, neste caso, rer, estancar de repente ou começar a saltar.
não começa com a igualdade, mas sim com a densidade. A O homem sempre prestou atenção aos passos dos outros
igualdade se torna, neste caso, a meta principal da massa, na homens; ele sempre teve mais consciência dos passos alheios
qual ela finalmente desemboca; todo grito comum, toda exte- do que dos próprios. Também os animais tinham um passo
riorização comum expressam então de uma maneira válida esta familiar. Muitos deles possuíam ritmos mais ricos e percep-
igualdade. tíveis do que os dos homens. Os animais providos de cascos, ao
Na massa rítmica, muito pelo contrário, a densidade e a fugir, faziam um barulho como o de um regimento formado
igualdade coincidem desde o princípio. Aqui, tudo depende apenas por tambores. O conhecimento mais antigo do homem
do movimento. Todos os estímulos corporais que irão se pro- dizia respeito aos animais que o rodeavam, que o ameaçavam
duzir estão predeterminados e se transmitem através da dança. e que ele caçava. Ele aprendeu a conhecê-los pelo ritmo dos
Esquivando-se e reaproximando-se, a densidade é modificada seus movimentos. A forma mais primitiva de escrita que ele
de uma forma consciente. Por uma representação de densi- aprendeu a decifrar foi a das pegadas — era uma espécie de
dade e de igualdade, o sentimento de massa é provocado ar- notação musical rítmica que sempre existiu; ela se imprimia
tificialmente. Estas configurações rítmicas nascem com muita automaticamente no solo mole, e o homem que a lia a asso-
rapidez e é apenas a fadiga física que lhes determina um fim. ciava aos ruídos inerentes à sua formação.
A dupla seguinte de conceitos, os de massa lenta e rápida, Muitas destas pegadas apareciam em grandes quantidades
refere-se exclusivamente à natureza de sua meta. As massas e muito próximas umas das outras. Os homens, que original
que chamam a atenção, ou seja, as que geralmente são assunto mente viviam em pequenos bandos, podiam assim tomar cons-
de conversa, e que formam uma parte tão importante da nossa ciência, pela tranqüila observação destas pegadas, do contraste
vida moderna, as massas políticas, esportivas, bélicas, com as existente entre o pequeno número de seu bando e a enorme
quais entramos em contato diário, são todas massas rápidas. quantidade de algumas manadas. Os homens estavam sempre
Completamente diferentes delas são as massas religiosas do com fome e sempre caçando; quanto maior a possibilidade
além ou dos peregrinos; nestas, a meta se encontra na dis- de caça, tanto melhor para eles. Mas eles mesmos também
tância, o caminho é demorado e a verdadeira constituição da queriam ser mais. O sentimento do homem em relação à sua
massa é postergada para algum país muito distante ou para própria multiplicação sempre foi muito intenso. Este senti-
um reino existente nos céus. Destas massas lentas, na verdade, mento não se restringe, de forma alguma, apenas àquilo que
vemos apenas os afluentes, porque os seus estados finais, tão se costuma designar, insatisfatoriamente, como tendência à
almejados, são invisíveis e inalcançáveis para os que não são reprodução. Os homens queriam ser mais naquele exato mo-
crentes. A massa lenta se reúne com lentidão e se considera mento, naquele exato local. A grande quantidade da manada
como algo permanente numa distância extremamente remota. a que estavam dando caça e sua própria quantidade que dese-
Todas estas formas, cuja substância foi apenas ligeira- javam aumentar estavam vinculadas de maneira especial ria
mente esboçada aqui, exigem considerações mais detalhadas. sua maneira de sentir as coisas. Eles expressavam tudo isto
num determinado estado de excitação comum que eu chamo
de massa rítmica ou palpitante.
Ritmo O meio encontrado para isto foi, em primeiro lugar, o
ritmo dos próprios pés. Onde muitos andam, outros andam
O ritmo, originalmente, é um ritmo dos pés. Todo ser conosco. Os passos somados rapidamente a outros passos si-
humano caminha, e como ele caminha sobre duas pernas, gol- mulam um maior número de participantes Eles não se movem
peando alternadamente o chão com os pés, isto produz, inde- do lugar onde estão; em sua dança, permanecem sempre no
pendentemente de sua vontade, um ruído rítmico. Os dois pés mesmo lugar. Seus passos não se apagam; eles se repetem e
nunca pisam no chão com a mesma intensidade. A diferença persistem durante multo tempo, sempre com a mesma inten-
entre eles pode ser maior ou menor, dependendo da disposição sidade e animação. Suprem com intensidade o que lhes falta
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em número. Quando pisam com maior intensidade, o ruído é tremidade de lanças e pedaços de paus. As mulheres jovens,
mais forte. Eles exercem sobre todos os homens das proxi- até mesmo as esposas do chefe, participavam da dança com o
midades uma força de atração que não diminui enquanto a busto descoberto.
dança não é interrompida. Todo ser vivo que se encontra ao "O compasso do canto que acompanhava a dança era
alcance do ruído se une a eles, permanecendo unido. O natural observado com muito rigor. A mobilidade das pessoas era es-
seria que se fossem unindo quantidades cada vez maiores de pantosa. De repente saltavam verticalmente do solo, todos ao
homens. Mas como depois de pouco tempo não há mais quem mesmo tempo, como se todos os bailarinos estivessem anima-
se possa unir a eles, eles precisam, a partir dos seus números dos por uma única vontade. Ao mesmo tempo brandiam suas
reduzidos, simular este aumento desejado. Movimentam-se armas e deformavam o rosto e com as grandes cabeleiras, usa-
como se a quantidade aumentasse cada vez mais. Sua excitação das tanto pelos homens como pelas mulheres, assemelhavam-se
vai aumentando até entrar num estado de loucura. a um exército de górgonas. Ao cair, batiam simultaneamente
De que maneira, porém, eles conseguem suprir o que não com ambos os pés no chão. Este salto era repetido com fre-
podem alcançar em termos de números crescentes? É muito qüência e cada vez mais depressa.
importante, por exemplo, que cada um deles faça a mesma "Os traços do rosto eram distorcidos de todas as ma-
coisa. Cada um deles pisoteia e o faz exatamente da mesma neiras possíveis aos músculos de um rosto humano; e cada
forma. Cada um balança os braços e agita a cabeça. A equi- nova careta era pontualmente adotada por todos os partici-
valência dos participantes se ramifica na equivalência dos seus pantes. Quando um deles contraía o rosto fortemente, como
membros. Tudo o que é móvel num ser humano adquire uma se estivesse num torniquete, todos o imitavam imediatamente.
espécie de vida própria; cada perna, cada braço passam a Eles giravam os olhos de um lado para outro; às vezes ape-
viver sozinhos. Os vários membros passam todos a coincidir. nas o branco dos olhos ficava visível, e tinha-se a impressão
Ficam muito próximos uns dos outros; freqüentemente des- de que iam saltar para fora da órbita. A boca era esticada até
cansam uns sobre os outros. À sua equivalência junta-se desta perto das orelhas. Simultaneamente todos esticavam as línguas
forma sua densidade; densidade e igualdade passam a ser uma para fora da boca; jamais um europeu seria capaz de imitar
única coisa. Finalmente, está dançando uma única criatura gestos desse tipo; eram gestos que mostravam um apren-
equipada com cinqüenta cabeças, cem pernas e cem braços, dizado longo e precoce. Seus rostos ofereciam um aspecto tão
sendo que todos atuam da mesma maneira ou com a mesma espantoso que era um alívio desviar os olhos.
intenção. Na sua excitação máxima, estes homens se sentem "Cada parte de seus corpos estava em ação, separada-
realmente como uma unidade, e é apenas o esgotamento físico mente; os dedos. dos pés, os dedos das mãos, os olhos, as
que os derruba. línguas, bem como os braços e as pernas. Com a mão espal-
Todas as massas palpitantes têm — justamente devido a mada eles se golpeavam às vezes no lado esquerdo do peito,
este ritmo que predomina nelas — algo de parecido. O relato às vezes nas coxas. O barulho do canto era ensurdecedor;
seguinte, que serve apenas para ilustrar uma destas danças, mais de trezentas e cinqüenta pessoas participavam da dança.
é originário do primeiro terço do século passado. Ele diz res- Pode-se imaginar o efeito que ela devia produzir em tempo
peito à haka dos maoris -- uma tribo da Nova Zelândia — de guerra; como servia para aumentar a coragem e como
que originalmente era uma dança de guerra. levava a um ponto ainda mais elevado a aversão recíproca
"Os maoris se dispõem numa fileira alongada, com uma entre dois grupos diferentes."
profundidade de quatro homens. A dança chamada haka de- O girar dos olhos e o esticar da língua são sinais de tei-
veria encher de espanto e de medo qualquer pessoa que a mosia e de desafio. No entanto, se bem que a guerra de ma-
presenciasse pela primeira vez. Toda a sociedade, homens e neira geral seja uma coisa dos homens, e em especial dos
mulheres, pessoas livres e escravos, se misturavam sem consi- homens livres, todos se entregavam à excitação da haka. Neste
deração à posição hierárquica que cada grupo ocupava na caso a massa desconhece todas as divisões de sexo, de idade e
comunidade. Os homens ficavam totalmente nus, excetuan- de hierarquia social: todos agiam da mesma maneira. O que
do-se apenas uma cartucheira que lhes pendia da cintura. Todos porém diferencia fortemente esta dança de outras de intenções
estavam armados com fuzis ou com baionetas, fixadas na ex- semelhantes é uma ramificação particularmente extrema da
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igualdade. É como se cada corpo se descompusesse em todas Estancamento
as suas partes isoladas, não somente em pernas e braços como
freqüentemente acontece, mas também em dedos, artelhos, A massa contida é compacta; nela não existe a possibili-
línguas e olhos, e repentinamente todas as línguas se unem e dade de um movimento verdadeiramente livre. Seu estado pos-
fazem a mesma coisa no mesmo instante. Logo em seguida é sui algo de passivo; a massa contida espera. Espera por uma
a vez dos artelhos e dos olhos executarem exatamente o mesmo cabeça que lhe será mostrada, ou por palavras, ou está con-
movimento. As pessoas em cada uma de suas menores partes templando um combate. Neste caso importa principalmente
são tomadas por esta sensação de igualdade, que passa a ser a densidade: a pressão, que se sente por todos os lados, tam-
representada numa ação que a aumenta ainda mais de forma bém pode servir aos afetados como medida para a força da
violenta. A visão de trezentas e cinqüenta pessoas que saltam formação, da qual eles agora fazem parte. Quanto maior for o
simultaneamente, que esticam simultaneamente a língua, que número de pessoas participantes, tanto maior se torna esta
rolam simultaneamente os olhos deve criar uma sensação in- pressão. Os pés não têm para onde ír, os braços estão compri-
superável de unidade. A densidade não é apenas uma densi- midos; livres permanecem apenas as cabeças para ver e ouvir;
dade das pessoas, mas sim de todos os seus membros, de suas os corpos transmitem os estímulos diretamente uns aos outros.
partes componentes em separado. Seria possível pensar que Entra-se em contato com vários homens simultaneamente, com
os dedos e as línguas, mesmo se não pertencessem às pessoas, o próprio corpo. Sabe-se que são vários homens, mas, como
seriam capazes de se reunir e de lutar por conta própria. O eles também estão unidos, eles são considerados como uma
ritmo da haka destaca isoladamente cada uma destas igual- unidade. Este tipo de densidade não tem pressa; sua influência
dades. Juntas e em sua escalada, elas são irresistíveis. é constante por uma duração determinada; ela também é
Porque tudo isto acontece sob a condição de que seja amorfa, não se submetendo a nenhum ritmo familiar e ensaia-
visto: o inimigo está acompanhando, olhando para o que acon- do. Durante muito tempo não acontece nada; porém os desejos
tece. A intensidade da ameaça comum é que caracteriza a haka. de ação se reprimem e se rompem finalmente com uma violên-
Mas como a dança já existia, ela acabou se transformando em cia tanto maior.
algo mais. Ela é ensaiada desde a infância, possui várias for- A paciência da massa contida talvez não seja tão surpreen-
mas diferentes, e é apresentada em todos os tipos de ocasiões. dente se levarmos em consideração o significado que este sen-
Muitos viajantes já foram recepcionados amistosamente com a timento de densidade tem para ela. Quanto mais densa for,
apresentação desta dança. O relato citado, aliás, diz respeito tanto maior será o número de pessoas atraídas. Com sua den-
a uma ocasião deste tipo. Quando uma tropa amiga se une a sidade ela mede sua magnitude, mas a densidade também é o
outra, ambas se saúdam com uma haka; e isto é feito com estímulo máximo para um crescimento posterior. A massa mais
tanta seriedade que qualquer espectador desprevenido passa densa cresce mais depressa. O ato de se conter antes da des-
a temer o início dos combates a qualquer instante. Durante carga é uma exibição desta densidade. Quanto mais ela se con-
os funerais de um grande chefe, depois dos momentos da mais tém, tanto maior é o tempo durante o qual ela sente e mostra
intensa lamentação e de automutilação que são costumeiros sua densidade.
entre os maoris, depois de uma ceia festiva e abundante, re- Do ponto de vista dos indivíduos que formam uma mas-
pentinamente todos se erguem num salto, pegam suas armas sa, o momento da contensão é como um momento de admira-
e adotam a formação de uma haka. ção; são colocados de lado as armas e os aguilhões com os quais
Nesta dança, da qual todos podem participar, a tribo em geral as pessoas se defendem tão bem umas das outras; as
toda se sente como massa. Eles se utilizam desta dança quando pessoas se tocam e, por isso mesmo, não se sentem coibidas;
sentem necessidade de serem massa e de aparecerem como os toques deixam de ser toques, o temor recíproco deixa de
tal diante de outras pessoas. Na perfeição rítmica alcançada existir. Antes de sair em qualquer direção que seja, as pessoas
por esta dança, ela certamente atinge sua finalidade. Graças querem ter certeza de que permanecem unidas. Trata-se de um
à haka, a unidade dos maorís nunca chega a ser seriamente crescer em conjunto, para o qual se requer tranqüilidade. A
ameaçada de dentro para fora. massa contida não tem certeza absoluta quanto à sua unidade,
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e por este motivo se mantém tranqüila durante o maior pe- acontecer que provocam manifestações ruidosas. A voz é ouvida
ríodo possível de tempo. com freqüência e em ocasiões distintas. Da desintegração final
Mas esta paciência tem seus limites, Uma descarga, fi- se aboliu uma parte de seu caráter doloroso graças à predeter-
nalmente, acaba se tornando indispensável; sem ela não é minação da duração. Por outro lado, o derrotado terá a opor-
possível sequer afirmar que a massa chegou a existir. O grito tunidade de uma revanche e a situação não ficou encerrada
que era habitual antigamente nas execuções públicas, quando a definitivamente. Aqui a massa realmente pode se tornar am-
cabeça do malfeitor era erguida e apresentada pelo carrasco, pla; ela pode primeiro congregar-se nas entradas e depois con-
ou o grito que conhecemos atualmente em espetáculos espor- ter-se nos assentos; ela grita de uma forma que está ao alcance
tivos representam a voz da massa. Sua espontaneidade é da de todos, quando chega o momento exato para isso; e, mesmo
maior importância. Os gritos ensaiados e repetidos em intervalos quando tudo termina, ela fica almejando outras oportunidades
regulares ainda não são um sinal de que a massa conseguiu semelhantes.
atingir uma vida própria. Eles podem conduzir a isso, mas Massas contidas de natureza muito mais passiva se formam
são exteriores como os exercícios táticos de uma divisão mili- nos teatros. O caso ideal é quando se representa diante de
tar. Por outro lado o grito espontâneo, que a massa não pode uma casa cheia. O número desejado de espectadores é dado
prever com exatidão, é inequívoco; seu efeito costuma ser desde o início., Eles se reúnem por própria conta e, excetuan-
imprevisível. Ele pode expressar sentimentos de qualquer es- do-se pequenos congestionamentos diante das bilheterias, as
pécie; freqüentemente é menos importante o tipo de sentimento pessoas encontram sozinhas seus caminhos para dentro da sala.
expresso do que sua força e densidade, bem como a liberdade Tudo está prefixado: a peça apresentada, os atores, a hora de
na sua seqüência. Estes são os elementos que dão à massa o começar e os espectadores instalados em seus lugares. Os atra-
seu espaço espiritual. sados são recebidos com um leve descontentamento. Como um
Mas eles podem ser tão violentos e concentrados que dis- rebanho disposto a pastar, as pessoas permanecem ali sentadas,
solvem instantaneamente a massa, As execuções públicas pro- tranqüilas, e com uma paciência infinita. No entanto cada um
vocam este resultado; só é possível acabar uma vez com a vida está muito consciente de sua existência separada; pagou seu
de uma mesma vítima. E, quando se trata de uma pessoa que ingresso e está consciente de quem se instalou a seu lado. Antes
sempre foi considerada invulnerável, até o final a massa duvida do início do espetáculo, o espectador contempla com calma
que sua vida tenha terminado. A dúvida, que neste caso se aquela série de cabeças reunidas; elas lhe despertam um senti-
origina do motivo, aumenta a contensão natural da massa. O mento agradável de densidade, mas não demasiadamente in-
efeito será tanto mais agudo e cortante ao se avistar a cabeça tenso. Em si, a igualdade existente entre os espectadores con-
decepada. O grito que se segue será terrível, mas será também siste apenas no fato de que todos se submetem aos mesmos
o último grito desta massa tão absolutamente determinada. estímulos vindos do palco. Mas suas reações espontâneas diante
É possível dizer-se que, neste caso, a massa paga o excesso de da representação estão limitadas. Até mesmo o aplauso tem
expectativa estancada, que desfruta de uma maneira mais inten- seus momentos predeterminados, e na maior parte das vezes
sa, com sua própria morte instantãnea. as pessoas aplaudem apenas nos momentos em que devem
Nossos modernos espetáculos esportivos são mais funcio- aplaudir. É apenas pela intensidade dos aplausos que se pode
nais. Os espectadores podem permanecer sentados; a paciência julgar até que ponto a massa foi formada; a intensidade é o
coletiva se torna visível em toda a sua clareza. Todos têm a único parâmetro conhecido, e é aplicado também pelos atores.
liberdade de sapatear, mas não se movem de seus lugares. No teatro o estancamento se tornou um rito a tal ponto
Têm a liberdade de aplaudir com as mãos. Está prevista uma que pode ser sentido externamente, como uma leve pressão
determinada duração para o espetáculo, e normalmente não há exterior que não chega ao fundo das pessoas e que, de qual-
motivos para reduzi-la; pelo menos durante este tempo as pes- quer modo, apenas lhes proporciona o sentimento de alguma
soas permanecem juntas. E durante este tempo uma série de forma tênue de unidade interna. Porém não se deve esquecer
acontecimentos pode ocorrer. Não é possível saber de antemão quão grande e comum é a expectativa com que aguardam sen-
de que lado e quando será marcado um- gol; além disso, à tadas e que esta expectativa perdura durante toda a represen-
margem destes acontecimentos centrais, muitos outros podem tação. Somente raras vezes as pessoas deixam o teatro antes
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do final; mesmo quando estão decepcionadas, as pessoas agüen- Talvez o caso mais impressionante seja a famosa Parada
tam; isto significa, portanto, que durante este tempo as pes- de Arafat, o ponto culminante da peregrinação a Meca. Na
soas se mantêm unidas. planície de Arafat, a algumas horas de distância de Meca,
O contraste entre o silêncio do auditório e as manifesta- reúnem-se num dia determinado e estabelecido ritualmente de
ções sonoras do aparelho que atua sobre as pessoas é ainda 600 a 700 mil peregrinos. Eles se agrupam num grande cír-
mais perceptível em concertos. Aqui, tudo se baseia na total culo em torno do Monte da Misericórdia, uma colina que se
ausência de perturbações. Qualquer movimento é indesejável, ergue no meio desta planície. Por volta das 2 h da tarde,
todos os ruídos são execráveis. Ao passo que a música que é quando o calor está no seu ponto mais intenso, os peregrinos
apresentada vive, em boa parte, em função do seu ritmo, ne- tomam suas posições e permanecem ali de pé até o pôr-do-sol,
nhum efeito rítmico por parte do auditório pode ser notado. de cabeça descoberta e trajando a túnica branca típica. Com
Os efeitos provocados pela música de maneira contínua e mu- atenção apaixonada escutam as frases do pregador, instalado
tável são do tipo mais diverso e intenso possível. Está excluída no alto da colina. Seu sermão é um elogio ininterrupto a
a possibilidade de que a maioria dos presentes não os sinta, e Deus. Os peregrinos respondem com uma fórmula que é repe-
é impossível que não os sinta simultaneamente. No entanto, tida mil vezes. "Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos
todas as reações exteriores são omitidas. As pessoas ficam sen tuas ordens!" Alguns soluçam de excitação, outros golpeiam
tadas imóveis, como se não ouvissem coisa alguma. É evidente o próprio peito. Alguns desmaiam devido ao terrível calor.
que neste caso foi necessária uma educação prolongada e arti- Porém é essencial que eles permaneçam durante todas essas
ficial para o estancamento, a cujos resultados nós já nos acos- horas na planície sagrada sob um calor incandescente. No mo-
tumamos. Pois, julgando-se com objetividade, existem poucos mento em que o sol se põe, é dado o sinal da partida.
fenômenos na nossa vida cultural que sejam tão surpreenden- Os processos restantes, que pertencem ao que de mais
tes como o público de concertos. As pessoas que permitem que enigmático se conhece em costumes religiosos, serão tratados e
a música atue naturalmente dentro delas se comportam de interpretados posteriormente noutro contexto. Aqui apenas
forma muito diferente; e pessoas que jamais tiveram oportu- nos interessa esse momento de contensão, que tem duração
nidade de ouvir música, quando vivem uma tal situação pela de várias horas. Centenas de milhares de homens em excitação
primeira vez podem deixar-se cair na mais irrefreável agitação. crescente permanecem na planície de Arafat e não podem
Quando os aborígines da Tasmânia ouviram pela primeira vez abandonar essa posição diante de Alá, aconteça o que acon-
a Marselhesa, tocada por marinheiros desembarcados lá, deram tecer. Juntos tomam posição e juntos recebem o sinal da par-
expressão à sua satisfação com estranhas contorções do corpo tida. O sermão os incentiva e eles incentivam a si próprios
e com os gestos mais assombrosos, provocando gargalhadas por meio de gritos. Na fórmula que empregam está contido
nos marinheiros. Um jovem entusiasmado puxava os cabelos, o termo "aguardar", que sempre se repete. O sol, que se mo-
coçava a cabeça com as duas mãos e dava grandes gritos. vimenta com lentidão imperceptível, submerge tudo na mesma
Apesar de tudo conservou-se nos nossos concertos uma luz deslumbrante, no mesmo ardor; seria possível falar até de
pequena dose de descarga física. O aplauso representa a gra- uma encarnação do estancamento.
tidão aos intérpretes; trata-se do intercâmbio de um ruído Entre as massas religiosas ocorrem todos os tipos de gra-
breve e caótico por outro prolongado e bem organizado. duações de imobilidade e de silêncio, mas o grau mais elevado
Quando os aplausos não existem em absoluto, quando as pes- de passividade que se pode alcançar é o imposto à massa de
soas se separam silenciosas tal como quando estavam sentadas, fora para dentro .de maneira violenta. Na batalha duas massas
sente-se por inteiro a esfera do reconhecimento religioso. se encontram, cada uma querendo ser mais forte que a outra.
É daí que deriva originalmente o silêncio do concerto. O Por meio de gritos de combate procuram provar a si mesmos
estar de pé juntos diante de Deus é um exercício muito difun- e ao inimigo que realmente são os mais fortes. A meta do
dido em algumas religiões. Isto se caracteriza pelos mesmos combate é emudecer o outro lado. Quando todos os inimigos
sintomas de contensão que já conhecemos nas massas secula- estiverem derrotados, sua potente voz que era temida com
res e que podem provocar descargas igualmente repentinas e razão emudeceu para sempre. A massa mais silenciosa é a dos
intensas. inimigos mortos. Quanto mais perigosa ela tenha sido, tanto
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maior é a alegria de vê-la imóvel e reunida num monte. Tra- Ele sempre consegue o resultado desejado, por si mesmo ou
ta-se de um vício peculiar sentir os inimigos tão indefesos graças aos inimigos pelos quais eles se sentem ameaçados. A
quanto um monte de mortos. Isso porque como monte eles história da marcha, que dura quarenta anos, contém muitas
se arremessaram uns contra os outros, como monte gritaram formações isoladas de massa de natureza súbita e aguda, a
uns contra os outros. Essa massa silenciada dos mortos não respeito das quais teremos ocasião de falar mais adiante com
era considerada anteriormente como morta. Supunha-se que maior profundidade; porém todas elas estão subordinadas à
em outra parte continuariam vivendo à sua maneira todos idéia mais ampla de uma massa lenta única que se movimenta
juntos, e no fundo deveria ser uma vida semelhante à conhe- em direção à meta, à terra que lhes foi prometida. Os adultos
cida. Os inimigos que jaziam como cadáveres representavam envelhecem e morrem, nascem e crescem novas crianças, mas
assim para o observador o caso extremo de uma massa contida. apesar de os indivíduos não serem os mesmos, o grupo, como
Em lugar dos inimigos abatidos, podem ser considerados conjunto, continua o mesmo. Ele não é integrado por novos
todos os mortos que jazem na terra comum aguardando a grupos. Desde o começo está estabelecido quem pertence a
ressurreição. Cada um que morre e é enterrado aumenta ele e tem direito à Terra da Promissão. Como esta massa não
o número deles; todos os que já viveram alguma vez perten- pode crescer de forma brusca, durante toda a sua marcha ela
cem ao grupo que assim vai aumentando seu número. A terra se atém a uma única pergunta central: como conseguir que
que os une é sua densidade e desta forma se tem a sensação não se desintegre?
de que estão muito próximos uns aos outros apesar de estarem Uma segunda forma de massa lenta poderia ser compa-
enterrados isoladamente. E assim permanecem por tempo inde- rada melhor a um sistema fluvial. Ele começa com riachos que
finido até o dia do juízo final. Sua vida é interrompida até o vão se unindo pouco a pouco; no rio que se forma desembocam
momento da ressurreição, e esse instante coincide com o de outros rios de ambas as margens; tudo se transforma, desde
sua reunião perante Deus que os julgará. Por enquanto, nada que haja território suficiente para isso, numa grande corrente,
acontece; jazem como massa, como massa tornam a erguer-se. cuja meta é o mar. A peregrinação anual a Meca talvez seja
Para a realidade e o significado da massa contida não existe o exemplo mais impressionante dessa forma de massa lenta.
demonstração mais grandiosa que o desenvolvimento desta Das partes mais distantes do mundo islâmico partem cara-
concepção de ressurreição e juízo final, vanas de peregrinos, todas elas em direção a Meca. Algumas
começam muito pequenas; outras, equipadas com todo o luxo
dos príncipes, são desde o princípio o orgulho dos países onde
Lentidão ou a distância da meta tiveram origem. Porém, no decorrer de sua marcha, todas se
encontram com outras caravanas que têm a mesma meta, e
À massa lenta pertence a distância da meta. Avança-se com assim vão aumentando cada vez mais; nas proximidades da
grande tenacidade em direção a uma meta que é imóvel e no meta final, elas se transformam em poderosas correntes. Meca
caminho é preciso que todos permaneçam juntos. O caminho é o seu mar, lugar onde desembocam.
é longo, os obstáculos desconhecidos, os perigos ameaçam de Cada peregrino pode dedicar muito tempo ao cultivo de
todos os lados, Não é permitida uma descarga antes que se vivências de tipo comum que nada têm a ver com o sentido
alcance a meta. da viagem em si. Cada dia se transforma numa luta constante.
A massa lenta tem a forma de um comboio. Desde o prin- É necessário discutir o tempo todo, às vezes com muitos ris-
cípio ela pode ser formada por todos os que pertencem a ela, cos, pois habitualmente as pessoas são pobres e precisam preo-
como foi o caso da saída dos filhos de Israel do Egito. Sua cupar-se com o alimento e a bebida. A vida destes homens está
meta é a Terra Prometida e eles formam uma massa enquanto muito mais exposta a perigos do que em casa. Não são perigos
acreditam nessa meta. A história da sua marcha é a história que .se refiram necessariamente ao seu empreendimento. Desta
dessa fé. Freqüentemente as dificuldades são tão grandes que maneira, esses peregrinos permanecem amplamente como indi-
começam a duvidar. Sofrem fome ou sede, e quando murmuram víduos que, separados, vivem para si mesmos como se não
se vêem ameaçados pela desintegração. Constantemente o ho- fizessem parte de uma massa. Porém desde que perseverem
mem que os conduz se esforça para restabelecer a fé de todos. em sua meta, o que ocorre na maior parte das vezes, eles são
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sempre parte de uma massa lenta que perdura — não importa processos de massa. As metas devem ganhar significado na
de que maneira se comportem em relação a ela — e perdurará distância, as mais próximas devem perder cada vez mais seu
até que a meta seja alcançada. peso e parecer finalmente como carentes de valor. A descarga
Uma terceira forma de massa é encontrada em todas as terrena nunca é de grande duração; somente o que foi trans-
formações que se referem a uma meta invisível e inalcançável ferido para o além tem permanência.
nesta vida. O além, no qual os bem-aventurados esperam por Desta forma a meta e a descarga coincidem; a meta porém
todos os que ganharam um lugar lá, é uma meta bem articula- é invulnerável. Como a Terra Prometida aqui na terra pode
da e propriedade exclusiva dos que crêem. Eles a vêem de ser ocupada e devastada pelos inimigos, o povo ao qual ela
maneira clara e exata diante de si, e não precisam conformar-se foi prometida pode ser desalojado dela. Meca foi conquistada
com um símbolo vago que a substitua, A vida é como um e saqueada pelos carmatas, que levaram consigo a pedra sa-
caminho de peregrinação até lá e entre esse além e eles está grada da Kaaba. Durante muitos anos não foi possível realizar
apenas a morte. O caminho não está determinado detalhada- peregrinação alguma.
mente, e é difícil percebê-lo pelos aspectos visuais. Muitos se O além, no entanto, com seus bem-aventurados, está a
extraviam e o perdem de vista. De qualquer forma, a espe- salvo de todas as devastações deste tipo. Ele vive somente da
rança do além influi tanto na vida dos crentes que temos o fé e somente através dela pode-se chegar até ele. A desintegra-
direito de falar de uma massa lenta à qual pertencem todos
ção da massa lenta do Cristianismo começou no momento em
os adeptos de uma crença. Como eles não se conhecem uns aos que a fé nesse além começou a se decompor.
outros, vivendo dispersos em muitas cidades e países, o aspecto
anônimo dessa massa é o que causa mais impressão.
Qual porém é o aspecto dentro dela, e o que mais a dife-
rencia das formas rápidas? As massas invisíveis
A descarga não ocorre na massa lenta, Seria possível dizer
que esta é a sua principal característica e assim, em vez de Em qualquer parte habitada da Terra encontramos a idéia dos
lentas, seria possível falar de massas sem descarga. Porém é mortos invisíveis. Seria possível até dizer que ela é a idéia mais
preferível a primeira designação, pois não se pode renunciar antiga da humanidade. Certamente não existe nenhum grupo,
inteiramente à descarga. Na representação de um estado final, tribo ou povo que não se preocupe seriamente com seus mor-
ela sempre está contida. Ela está deslocada a uma grande dis- tos. O ser humano era possuído por eles; eles tinham uma
tância. Lá onde está a meta também se encontra a descarga. tremenda importância para ele e sua influência sobre os vivos
Uma intensa visão dela sempre existe, sua certeza está no fim. era parte essencial da própria vida.
Na massa lenta procura-se retardar o processo que conduz à Eles eram imaginados todos juntos, como os vivos hoje,
descarga, colocá-lo a longo prazo. As grandes religiões revela- e era habitual reconhecê-los. "Os antigos bechuanas, da mesma
ram notável maestria neste processo de aproximação da meta forma que os demais nativos do sul da África, acreditavam que
com lentidão. A elas importa conservar os adeptos que foram o espaço deles estava povoado pelos espíritos de seus ances-
conquistados. Para conservá-los e para conquistar novos adep- trais. Terra, ar e céu estavam repletos de espíritos que tinham
tos é preciso que se reúnam de tempos em tempos. Se durante poder de exercer influências maléficas sobre os vivos." "Os
essas assembléias se chegou alguma vez a descargas violentas, polokis, povo do Congo, acreditam estar rodeados por espíritos
elas devem ser repetidas e, na medida do possível, superadas que a todo. momento procuram fazer-lhes mal, que a todas as
em intensidade; pelo menos é imprescindível uma repetição horas do dia e da noite procuram prejudicá-los. Rios e riachos
regular das descargas, caso não se queira perder a unidade dos estão povoados pelos espíritos de seus ancestrais. O bosque
crentes. O que acontece nesse tipo de serviço religioso, que e a selva virgem também estão cheios de espíritos. Eles podem
ocorre em massas rítmicas, não é controlável a maiores distân- tornar-se perigosos para os viajantes surpreendidos pela noite.
cias. O problema central das religiões universais é o domínio Ninguém é suficientemente corajoso para cruzar à noite a flo-
sobre seus fiéis em extensas regiões da Terra. Esse domínio resta que separa uma aldeia da outra. Nem sequer a perspec-
somente é possível mediante um retardamento consciente dos tiva de uma grande recompensa consegue convencê-los a fazer
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isso. A resposta a tais propostas sempre é: existem espíritos ouvir como os exércitos avançam uns contra os outros para
em demasia na floresta." depois recuarem e tornarem a avançar. Depois de uma batalha,
Acredita-se comumente que os mortos morem juntos num o sangue deles tinge as pedras e os rochedos de vermelho. A
país distante, debaixo da terra, numa ilha ou numa casa celeste. palavra ghairm significa "grito", "chamada", e sluagh-ghairm
Uma canção dos pigmeus do Gabão diz: era o grito de guerra dos mortos. Mais tarde se transformou
"As portas da caverna estão fechadas. Os espíritos dos no termo slogan. Os gritos de combate das nossas massas mo-
mortos se reúnem lá aos bandos como um enxame de moscas dernas derivam daqueles dos exércitos de mortos das terras
que dançam ao entardecer. Um enxame de moscas que dançam montanhosas. Dois povos nórdicos que vivem em locais muito
ao entardecer, quando a noite caiu, quando o sol desapareceu, distantes — os lapões da Europa, e os tlingits do Alasca —
um enxame de moscas: movimentos de folhas mortas numa têm a mesma idéia a respeito da aurora boreal como batalha.
forte tempestade". "Os lapões-kolta acreditam ver na aurora boreal os tombados
Mas não é suficiente que os mortos se tornem cada vez na guerra que, como espíritos, continuam combatendo entre
mais numerosos e que um sentimento de densidade se torne si no ar. Os lapões russos vêem na aurora boreal os espíritos
predominante. Eles também estão em movimento e procuram dos mortos. Eles habitam uma casa onde às vezes se reúnem;
empreendimentos conjuntos. Eles são invisíveis para a maioria lá eles se matam entre si e o chão se cobre de sangue. A aurora
das pessoas, mas existem homens com dons especiais, os boreal indica que as almas dos mortos vão dar início às suas
xamãs, que sabem conjurá-los e que podem submetê-los à batalhas. Entre os tlingits do Alasca todos os que morrem de
condição de seus servidores. Entre os chukches, da Sibéria, doença e não na guerra vão para o inferno. Somente os guer-
"um bom xamã possui legiões inteiras de espíritos auxi- reiros valentes, mortos em batalha, estão no céu. Este se abre
liares e quando ele convoca todos, eles chegam em quantida- de vez em quando para acolher novos espíritos. Ao xamã os
des tão grandes que rodeiam a pequena tenda onde ocorre o espíritos aparecem sempre como guerreiros inteiramente arma-
esconjuro, como uma parede de todos os lados". dos. Estas almas dos extintos aparecem freqüentemente como
Os xamãs dizem o que vêem "com uma voz que treme de aurora boreal, principalmente como labaredas com formato
emoção. O xamã grita através do iglu: de flechas em movimento constante, que às vezes passam umas
`O espaço celeste está repleto de seres nus, que chegam junto às outras ou trocam de lugar, o que lembra muito a
voando pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas, maneira de combater dos pingüins. Uma intensa aurora boreal
que vão voando e incitam as tormentas e as nevadas. anuncia, acredita-se, um grande derramamento de sangue, por-
Ouçam os silvos. É como o bater de asas de grandes pás- que os guerreiros mortos estão desejando novos companheiros".
saros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a fuga Segundo as crenças dos germanos, um enorme número
das pessoas nuas! Os espíritos do ar sopram a tormenta, os de guerreiros se encontra reunido no valhalla. Todos os ho-
espíritos do ar derramam a neve sobre a Terra' ". mens que desde o começo do mundo morreram em batalhas
Esta imagem grandiosa de espíritos nus em fuga faz parte chegaram ao valhalla. Sua quantidade cresce cada vez mais,
das crenças dos esquimós. pois as guerras não têm fim. Lá eles se alimentam e bebem,
Alguns povos imaginam os seus mortos, ou uma certa e seus alimentos e suas bebidas são renovados constantemente.
parte deles, como exércitos combatentes. Entre os celtas da Todas as manhãs eles empunham suas armas e partem para o
região montanhosa escocesa, o exército dos mortos é designado combate. Neste jogo eles se matam, mas tornam a se erguer,
por uma palavra especial: sluagh. Esta palavra poderia ser pois não se trata de uma morte verdadeira. Através de seis-
traduzida por "multidão de espíritos". O exército de espíritos centos e quarenta portões eles voltam a entrar no valhalla em
voa em grandes nuvens que vão e voltam — como os estor- colunas de oitocentos homens.
ninhos sobre a terra. Eles sempre retornam aos locais dos seus Porém não são apenas os espíritos dos mortos que os
pecados terrestres. Com suas infalíveis flechas envenenadas, seres vivos imaginam invisíveis em grande quantidade. "De-
matam gatos, cachorros, ovelhas e bovinos dos seres humanos. pende apenas do homem — afirma antigo texto judaico —
Travam batalhas no ar exatamente como os seres humanos e é preciso ter muito presente que nenhum espaço livre existe
fazem sobre a terra. Em noites claras e geladas pode-se ver e entre o céu e a terra, que tudo está repleto de bandos e multi-
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dões. Uma parte delas é pura, cheia de graça e doçura; outra Houve estimativas mais precisas quanto ao seu número. Entre
parte, porém, são seres impuros, predadores e atormentadores. estas conheço duas que diferem muito entre si: uma afirma
Todos voam no ar de um lado para outro: alguns querem a existirem 44,635,569 e a outra 11 bilhões.
paz, outros buscam a guerra; alguns estabelecem o bem, outros Contrastando muito com o que acabamos de referir, en-
provocam o mal; alguns trazem vida, outros a morte." contramos a idéia que cada um faz dos anjos e dos bem-aven-
Na religião dos antigos persas os demônios formam um turados, Entre eles tudo é calma, nada se deseja conseguir,
exército especial que possui um comando supremo próprio, A pois já se chegou à meta. Mas também eles estão reunidos em
respeito do número incontável desses demônios encontra-se no exércitos celestiais, "uni sem-número de anjos, patriarcas, pro-
livro sagrado Zend-Avessa a seguinte fórmula; "Milhares e fetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens e outros justos",
milhares de demônios. Dezenas de milhares e dezenas de mi- Dispostos em grandes círculos, eles estão em torno de seu
lhares são suas miríadas incontáveis". Senhor, como os súditos de uma corte se voltam para o rei.
Na Idade Média cristã havia sérias preocupações quanto Uma cabeça junto a outra, baseiam sua bem-aventurança na
ao número de diabos. No Diálogo sobre os Milagres, de Caesa- proximidade do Senhor. Eles foram aceitos para sempre a seu
rius de Heisterbach, informa-se que em determinada ocasião lado; assumem sua contemplação e não a deixarão jamais. Isto
eles invadiram a tal ponto o coro de uma igreja que pertur- é a unica coisa que ainda fazem, e a fazem em comum.
baram o canto dos monges; estes tinham iniciado o terceiro O espírito dos crentes está povoado de tais idéias de
salmo: "Senhor, quão numerosos são nossos inimigos". Os massas invisíveis, Tanto os mortos como os santos são imagi-
diabos começaram a voar de um lado para outro no coro, e se nados em grandes multidões concentradas. Seria possível dizer
misturaram aos monges que esqueceram completamente o que que as religiões começam com estas massas invisíveis. Sua
estavam cantando e, na confusão, os de um lado procuravam sedimentação é distinta; em cada crença existe um equilíbrio
abafar com gritos a voz dos do outro lado. Se tantos diabos particular para elas. Seria possível e muito desejável fazer uma
se reúnem num lugar para perturbar uma única missa, quantos classificação das religiões segundo a maneira como manipulam
não haveria então na Terra toda! Mas o Evangelho, segundo suas massas invisíveis. As religiões superiores, entre as quais
Caesarius, confirma que uma legião deles entrou num único se incluem as que conseguiram vigência geral, nos mostram uma
ser humano. grande segurança e clareza neste sentido. Às massas invisíveis,
Um sacerdote malvado, no seu leito de morte, disse a que são mantidas vivas em seus sermões, unem-se os temores
uma parenta que estava junto dele: "Você está vendo aquele e os desejos dos homens. Esses invisíveis formam o sangue da
grande celeiro na nossa frente? Debaixo de seu teto existem fé. Na medida em que vão perdendo sua força, a fé enfraquece,
tantos fios de palha quantos diabos estão agora em torno de mas continuamente novas multidões ocupam o lugar das
mim". Eles esperam ali pela alma do sacerdote para conduzi-Ia anteriores.
ao castigo. Mas eles também fazem suas tentativas ao lado do De urna destas massas — que talvez seja a mais impor-
leito de morte das pessoas piedosas. Durante o enterro de uma tante — não se falou ainda. É a única que também para nós,
bondosa abadessa, havia mais diabos reunidos em torno dela homens de hoje, apesar de sua invisibilidade, nos parece na-
do que folhas nas árvores de uma grande floresta. Ao redor tural. Trata-se da descendência. Um homem é capaz de conhe-
de um abade moribundo seu número era superior ao dos cer duas ou talvez três gerações. Mas na sua infinidade a des-
grãos de areia na beira do mar. Esses dados são provenientes cendência não é visível para ninguém. Sabe-se que ela tende
de um diabo que esteve lá pessoalmente e que transmitiu a a aumentar, primeiro lentamente, depois com aceleração cada
informação a um cavalheiro que conversou com ele. Ele não vez maior. Tribos e povos inteiros remontam a um único pa-
escondeu sua decepção pelos esforços vãos que fizeram, e con- triarca, e das promessas que foram feitas a ele é óbvio que
fessou que já por ocasião da morte de Cristo estivera sentado ele deseja bons descendentes, mas sobretudo em grande quan-
sob um braço da cruz. tidade: numerosos como as estrelas dos céus e como a areia
Como se vê, a insistência desses diabos é tão grande do mar. No Shi-King, cancioneiro clássico dos chineses, encon-
quanto sua quantidade. Quando o abade cisterciense Richalm tramos um poema no qual a descendência é comparada a uma
fechava os olhos, via-os tão densos como o pó ao seu redor. nuvem de gafanhotos:
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As asas dos gafanhotos dizem: Puxe, puxe! contidos, por exemplo, na obra de Caesaríus de Heisterbach.
Oh, oxalá teus filhos e teus netos Desde então eles abriram mão de todas as suas características
Estejam ali em incontável exército! que podiam lembrar a figura humana e diminuíram ainda mais
de tamanho. De forma muito diferente e em quantidade inco-
As asas dos gafanhotos dizem: Ate, ate! mensuravelmente maior, eles tornaram a aparecer no séc. XIX
Oh, oxalá teus filhos e teus netos como bacilos. Em vez de atacarem a alma, o objetivo deles
Se sucedam em linhas e sem fim! é o corpo humano, para o qual podem se tornar muito peri-
gosos. São poucas as pessoas que já usaram um microscópio
As asas dos gafanhotos dizem: Une, une! para vê-los. Porém todos os que ouviram falar a seu respeito
Oh, oxalá teus filhos e teus netos têm consciência de sua presença e se esforçam ao máximo para
Sejam para sempre uma unidade! não entrar em contato com eles; mas, graças à sua invisibili-
dade, trata-se de um esforço um tanto quanto vago. Com sua
periculosidade e com suas quantidades enormes concentradas
O grande número, a não-interrupção da sucessão — ou em espaço muito pequeno, eles sem dúvida tomaram a posição
seja, uma espécie de densidade não influenciada pelo tempo — anteriormente ocupada pelos diabos.
e a unidade são os três desejos expressos neste caso para a Uma massa invisível que sempre existiu, mas que apenas
descendência. A nuvem de gafanhotos como símbolo da massa se reconheceu como tal quando apareceu o microscópio, é a
de descendentes é especialmente impressionante, porque os do esperma Duzentos milhões destes animaizinhos espermá-
insetos aqui não são mencionados como bichos daninhos, mas ticos se colocam em movimento simultaneamente. Eles são
sim por causa do vigor da sua multiplicação, que é conside- iguais entre si e estão reunidos em enorme densidade. Todos
rada como exemplar. têm uma meta e, excetuando-se apenas um, os demais perecem
O sentimento da descendência continua tão vivo como no caminho. Pode-se objetar que não são seres humanos e que
sempre esteve. Mas a idéia de massa se desligou da idéia da fundamentalmente, neste sentido, não se deveria falar de uma
descendência, e foi transferida à humanidade futura no seu massa como as descritas anteriormente. Porém esta objeção
conjunto total. Para a maioria de nós os exércitos dos mortos não nos oferece a chave do assunto. Cada um destes animai-
se transformaram numa superstição vazia, no entanto consi- zinhos espermáticos leva consigo tudo o que se conserva dos
dera-se uma atitude nobre e de maneira alguma ociosa preo- ancestrais. Ele contém os ancestrais; ele é os ancestrais. É uma
cupar-se com a massa dos que ainda não nasceram, desejando- tremenda surpresa voltar a encontrá-los aqui, entre uma exis-
lhes o bem e preparando para eles uma vida melhor e mais tência humana e a próxima, sob forma totalmente diferente:
justa. Dentro da inquietação comum a respeito do futuro da todos eles incluídos em uma criatura minúscula e invisível e
Terra, este sentimento em relação aos não-nascidos é da maior esta criatura repetida em números tão incomensuráveis.
importância. Graças à repugnância que sentimos quanto à sua
eliminação, pode ser que a idéia que fazemos do que eles
poderão vir a sofrer, se levarmos adiante as possibilidades bé- Classificação segundo o efeito dominante
licas do momento, conduza, mais do que todos os outros temo-
res privados, à supressão destas guerras e da guerra em geral. As massas que conhecemos estão dominadas pelos mais diver-
Se considerarmos ainda o destino das massas invisíveis sos sentimentos. Ainda não se falou a respeito do tipo destes
das quais estamos falando, pode-se afirmar que algumas desa- sentimentos. A primeira intenção da investigação era de se
pareceram em grande parte, outras por completo. A estas fazer uma classificação segundo princípios formais. O fato de
últimas pertencem os diabos, em sua forma familiar, que, ape- a massa ser aberta ou fechada, lenta ou rápida, invisível ou
sar das quantidades referidas, já não são encontrados em lugar visível nos díz muito pouco do que elas sentem, do seu
algum. No entanto, eles deixaram seus vestígios. Quanto ao conteúdo.
seu tamanho diminuto, poderíamos citar vários testemunhos Este conteúdo, sem dúvida, nunca aparece em estado puro.
surpreendentes da época de seu maior florescimento, como os Já se conhecem as ocasiões em que a massa passa por uma
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série de sentimentos que se sucedem rapidamente. Os homens pertencessem a uma só criatura. Mas os braços que acertam
podem passar horas e horas no teatro e as vivências que ali têm mais valor e mais peso. A meta é tudo. A vítima é a meta,
têm no seu conjunto são dos tipos mais variados. No concerto mas também é o ponto da maior densidade: ela reúne as ações
suas emoções estão ainda mais desprendidas da ocasião do que de todos em si mesma. Meta e densidade coincidem.
no teatro; pode-se dizer que neste caso elas alcançam o seu Um motivo importante para o rápido crescimento da
nível extremo de variedade. No entanto, essas ocasiões são massa de perseguição é a ausência de perigo do empreendi-
artificiais; sua riqueza é o produto final de culturas evoluídas mento. Não existe perigo, pois a superioridade do lado da
e complexas. Seu efeito é comedido. Os extremos se anulam massa é total. A vítima nada pode fazer. Ela foge ou morre.
uns aos outros. Estas disposições servem de maneira geral para Ela não pode golpear; em sua impotência ela é apenas vítima.
um apaziguamento e uma diminuição de paixões, às quais Mas ela também foi entregue à sua perdição. Está destinada,
apenas os seres humanos se sentem entregues. pela sua morte ninguém precisa temer uma sanção. O assassi-
As principais formas afetivas da massa remontam porém nato permitido substitui todos os assassinatos dos quais as
a épocas muito anteriores. Elas aparecem muito cedo, sua his- pessoas se devem abster, e cuja execução poderia provocar
tória é tão antiga quanto a própria humanidade e duas delas duras penas. Um assassinato sem risco, permitido, recomen-
são mais antigas ainda. Cada uma delas se caracteriza por uma dado, compartilhado com muitos outros constitui uma sensa-
coloração uniforme: uma única paixão principal a domina. De- ção irresistível para a grande maioria dos homens. Quanto a
pois de terem sido delineadas com clareza, é impossível voltar isso cabe dizer que a ameaça de morte que pende sobre todos
a confundi-las entre si. os homens e que sob diferentes disfarces está sempre ativa,
A seguir faremos a distinção de cinco tipos de massa ainda que a defrontemos continuamente, torna necessária uma
segundo seu conteúdo afetivo. A de perseguição e a de fuga derivação da morte para os outros. A formação das massas de
são as duas massas mais antigas. Elas ocorrem tanto entre os perseguição corresponde a esta necessidade.
animais como entre os homens e é provável que sua formação É uma empresa tão fácil e que se desenvolve com tanta
entre os homens se tenha baseado sempre nos modelos ani- rapidez que é preciso apressar-se para chegar a tempo. A pressa,
mais. As massas de proibição, de inversão e a festiva são a euforia e a segurança de uma massa como esta têm algo de
especificamente humanas. Uma descrição destas cinco espécies inquietante. É a excitação de cegos que estão mais cegos
principais é indispensável, e sua interpretação pode ter um quando de repente acreditam ver. A massa vai ao sacrifício
alcance considerável. e à execução para desfazer-se de uma vez por todas da morte
de todos aqueles que a constituem. O que realmente ocorre
é o contrário do que se esperava. Pela execução, mas somente
Massas de perseguição depois de ela ter ocorrido, a massa se sente mais ameaçada do
que nunca pela morte. Ela se desintegra e se dispersa numa
A massa de perseguição se forma tendo como finalidade a espécie de fuga. Quanto mais elevada for a categoria da vítima,
obtenção de uma meta de maneira rápida. Esta meta é conhe- maior é o seu medo. Ela somente pode manter-se coesa, se
cida e está caracterizada de maneira precisa; ela também está uma série de efeitos idênticos se sucederem com grande
próxima. Esta massa está disposta a matar e sabe também rapidez.
quem será morto. Com uma determinação sem igual, ela avan- A massa de perseguição é muito antiga; ela remonta à
ça em direção à meta; é impossível impedir que ela a alcance. unidade dinâmica mais primitiva que se conhece entre os ho-
Basta dar a conhecer esta meta, basta comunicar quem deve bens: a malta de caça. A respeito das maltas, que são peque-
morrer, para que a massa se forme. A concentração para matar nas e que além disso se diferenciam muito das massas, fala-
é de índole particular e não há nenhuma que a supere em remos mais detalhadamente em outro lugar. Aqui trataremos
intensidade. Todos querem participar dela, todos golpeiam. apenas de algumas ocasiões gerais que dão motivo à formação
Para poder desferir o seu golpe, cada um se aproxima o mais de massas de perseguição.
possível da vítima. Quando não podem golpear, querem ver Entre os tipos de morte que uma horda ou um povo
como fazem os demais. Todos os braços avançam como se impõe ao indivíduo, podemos distinguir duas formas princi-
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pais; uma é a expulsão. O indivíduo é abandonado, exposto carregado de tudo e teria apedrejado Cristo. O julgamento, que
indefeso às feras ou à morte por inanição. O grupo a que antes normalmente é realizado diante de um grupo limitado de ho-
pertencia nada mais tem a ver com ele; não é permitido aco- mens, representa a grande multidão que em seguida presencia
lhê-lo e todos estão proibidos de lhe oferecer alimentos. Toda a execução. A sentença de morte que, pronunciada em nome
a comunidade se contaminaria com ele e se tornaria culpada. da Justiça, soa abstrata e irreal, converte-se em algo claro
Essa solidão, em sua forma mais rigorosa, é aqui o castigo quando é executada diante da multidão, porque é precisa-
extremo: a separação do grupo a que pertencia, a qual — prin- mente ela que faz justiça e a publicidade da justiça é uma
cipalmente em relacionamentos primitivos — muito poucos referência à massa.
são capazes de suportar. Uma derivação deste isolamento é a Na Idade Média as execuções são realizadas com pompa
entrega ao inimigo. Quando se trata de homens, e quando solene e da maneira mais lenta possível. Ocorrem casos em que
é efetuada sem combate, ela se torna particularmente cruel e a vítima profere discursos edificantes aos espectadores. Em seu
humilhante, como uma morte dupla. último momento, ela se preocupa com a sorte da massa e lhe
A outra forma é a de matar coletivamente. O condenado aconselha a não fazer o que ela mesma fez. A vítima mostra
é conduzido a um campo aberto e apedrejado. Todos partici- aonde se chega com uma vida como a sua. A massa sente-se
pam desta morte; atingido pelas pedras de todos, o culpado muito lisonjeada por esta preocupação e pode dar à vítima uma
é destruído. Ninguém assume o papel de executor. Toda a última satisfação: estar novamente entre eles como igual, ser
comunidade mata. As pedras estão no lugar da comunidade, um "bom" como eles, condenando junto a eles sua vida pas-
servem de lembrança da sua decisão e do seu ato. Em lugares sada. O arrependimento dos malfeitores ou dos infiéis diante
onde se perdeu o uso do apedrejamento, continua existindo da morte, que os eclesiásticos procuraram por todos os meios
essa inclinação para matar coletivamente. A morte pelo fogo sob o pretexto de salvar suas almas, também tem este sentido:
pode ser comparada a isso: o fogo atua no lugar da multidão converter a massa de perseguição numa futura massa festiva.
que desejou a morte do condenado. A vítima é alcançada pelas Cada qual deve sentir-se confirmado em suas boas intenções
chamas em todo o seu corpo; pode-se dizer que ela se vê e acreditar na recompensa futura.
atacada e morta por todas as partes. Nas religiões infernais Em tempos de revolução as execuções são aceleradas. O
se acrescenta algo mais: com a morte coletiva pelo fogo, que verdugo parisiense Samson se sente orgulhoso pelo fato de
é um símbolo para a massa, relaciona-se a idéia da expulsão, seus ajudantes não precisarem de mais de "um minuto por
ou seja, o inferno, a entrega nas mãos dos inimigos infernais. pessoa". Uma grande parte da excitação do estado de ânimo
As chamas do inferno chegam até a terra e acabam com o das massas em tais momentos deve ser atribuída à rápida su-
herege a que se destinam. A morte por flechadas, o fuzila- cessão de um sem-número de execuções. Para :a massa é impor-
mento de um condenado à morte por um pelotão de soldados tante que o verdugo lhes mostre a cabeça do justiçado. Este
têm um grupo executor cujos membros funcionam como dele- é o momento da descarga. Aquele a quem tenha pertencido a
gados da sociedade. No enterramento de homens em formi- cabeça está agora degradado; no curto instante em que fixa os
gueiros, prática conhecida na África e em outras regiões, de- olhos na massa é uma cabeça como todas as outras. É possível
lega-se às formigas, que substituem uma massa poderosa, esta que tenha estado sobre os ombros de um rei, porém, mediante
empresa vergonhosa. o fulminante processo da degradação, diante de todos ele se
Todas as formas de execução pública dependem do velho igualou aos demais. A massa que aqui está constituída por
exercício de matar coletivamente. O verdadeiro verdugo é a cabeças de olhares fixos alcança a sensação de sua igualdade
massa que se reúne em torno do cadafalso. Ela aprova o espe- num abrir e fechar de olhos quando, por sua vez, a cabeça
táculo; num impulso apaixonado, ela chega de lugares muito os olha fixamente. Quanto mais poderoso tenha sido o justi-
distantes para presenciá-lo do começo ao fim. Ela quer que a çado, quanto maior a distância que antes o separava da massa,
morte suceda e não vê com agrado que lhe arrebatem a vítima. tanto maior a excitação da descarga. Se ele era um rei ou um
O relato da condenação de Cristo aborda este fato na sua personagem poderoso, ocorre além disso a satisfação da inver-
essência. O "crucifica-o" parte da massa. Ela é o elemento são. O direito de uma justiça sangrenta, que foi seu privilégio
propriamente ativo; noutros tempos ela mesma teria se en- durante tanto tempo, foi exercido agora contra ele. Os que
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ele mandava matar, antes, o mataram agora. A importância de comportamento mais execrável e ao mesmo tempo mais
desta inversão hão pode ser considerada como excessivamente estável, Como nem sequer precisa se reunir, ela também evita
elevada: existe um tipo de massa que se forma por mera sua desintegração; e a repetição diária do jornal garante suas
inversão. distrações.
O efeito da apresentação da cabeça à multidão não se
esgota com a descarga. Reconhecendo-a com tremenda violên-
cia como uma das suas, caindo, por assim dizer, entre a mul- Massas de fuga
tidão e não sendo mais do que eles mesmos, igualando desSa
maneira todos, cada um se vê refletido nela. A cabeça cor- A massa de fuga se estabelece pela ameaça. É inerente a
tada é uma ameaça. Os olhos mortos olharam tão fixamente
ela que tudo fuja, que tudo seja arrastado. O perigo que
para a massa que esta agora não consegue se libertar deles.
ameaça um dos seus componentes é o mesmo para todos os
Como a cabeça pertence à massa, sua morte também a afeta:
demais. Ele se concentra sobre um determinado lugar. Não
assustada e influenciada de maneira misteriosa, a massa co-
faz diferenças. Pode ameaçar os habitantes de uma cidade, ou
meça a se desintegrar. Trata-se de uma espécie de fuga na
todos os que compartilhem da mesma fé, ou todos os que
qual agora se dispersa. falem um determinado idioma.
A desintegração da massa de perseguição que cobrou sua
Foge-se em conjunto, porque assim se foge melhor. A
vítima é particularmente acelerada. Os donos do poder são•
excitação é a mesma: a energia de uns é acrescentada à dos
muito conscientes disso. Eles lançam uma vítima à massa para
outros; os homens avançam unidos numa mesma direção. En-
deter seu crescimento. Muitas execuções políticas foram orde-
quanto estão juntos, sentem o perigo como que repartido entre
nadas com este fim exclusivo. Por outro lado, os porta-vozés
eles. Existe a idéia remota de que o perigo irá se abater sobre
dos partidos radicais freqüentemente não percebem que, ao
algum lugar. Enquanto o inimigo se apodera de um dos fugi-
alcançar sua meta (a execução pública de um inimigo perigoso),
se prejudicam mais do que ao partido inimigo. Pode acontecer tivos, os demais têm oportunidade de escapar. Os flancos da
fuga estão descobertos, mas como são muito extensos é inima-
que, após tal execução, a massa dos seus partidários se desfaça
ginável que o perigo possa atacar a todos de uma só vez. Entre
e que por muito tempo — talvez nunca mais — não consiga
reencontrar sua antiga força. Teremos ocasião de nos apro- Tantos, ninguém em particular supõe que será a vítima. Como
fundar mais nos motivos desta transformação, quando falar- o movimento único de todos tende à salvação, o indivíduo
mos das maltas e, em particular, das maltas de lamentação. sente grandes esperanças diante da possibilidade de alcançá-la.
A aversão ao matar coletivamente é de data muito re- O que mais chama a atenção na fuga de massa é a inten-
cente. Isto não deve ser supervalorizado. Ainda hoje todos sidade de sua direção. A massa, por assim dizer, se transformou
participam das execuções públicas através dos jornais. A dife- toda em direção com a finalidade de se afastar do perigo. Como
rença é que assim tudo é mais cômodo. Pode-se ficar tran- importa apenas a meta onde as pessoas se salvam, e o espaço
qüilamente instalado em sua própria casa e, entre cem detalhes existente até lá, as distâncias que antes existiam entre os ho-
relatados, pode-se gaStar mais tempo com os que nos excitam mens passam a ser irrelevantes. Criaturas muito diferentes e
de maneira especial. Quando tudo termina, o prazer não é opostas, que jamais se uniram, neste caso podem repentina-
estragado pelo mais leve vestígio de culpa. Não se é respon- mente encontrar-se lado a lado. No decorrer da fuga, não de-
sável nem pela condenação, nem pelas testemunhas, nem pelo saparecem as diferenças mas sim as distâncias entre elas. De
relato e nem mesmo pelo jornal que publicou este relato. todas as formas de massa, a de fuga é a mais abrangente. A
Porém agora se está muito mais informado do que em épocas imagem desigual que ela oferece não é resultado apenas da
anteriores, quando era necessário andar e ficar de pé durante participação de todos, deve-se também à velocidade muito dife-
horas, e quando se via pouca coisa. No público dos leitores dos rente que pode ser desenvolvida pelos homens em fuga. Entre
jornais se mantém viva uma massa de perseguição, moderada . eles existem jovens, velhos, fortes, fracos, mais ou menos car-
porém devido à distância dos acontecimentos; entretanto mais regados, Os diferentes aspectos desta imagem podem confun-
irresponsável, estaríamos tentados a dizer, e com uma forma dir um observador que esteja à margem. Mas eles são secun-
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dários e quando comparados com a força imensa da dire- massa torna a dissolver-se. O perigo porém também pode ser
ção -- carecem de qualquer significado. eliminado na sua própria fonte de origem. Declara-se um armis-
A energia da fuga se multiplica enquanto cada integrante tício e a cidade da qual se fugia deixa de estar ameaçada. Vol-
reconhece os demais: eles podem ser empurrados para a frente, ta-se isoladamente, apesar de todos terem fugido em conjunto,
mas não excluídos lateralmente. Porém no momento em que e tudo volta a ficar tão separado como estava antes da fuga.
se passa a depender apenas de si mesmo, e cada qual considera No entanto existe ainda uma terceira possibilidade, que pode
os que o rodeiam unicamente como obstáculos, a fuga em ser considerada o desaparecimento da fuga na areia. A meta
massa muda de caráter, transformando-se no seu oposto, o está excessivamente distante, o ambiente é hostil, as pessoas
pânico; uma luta de cada um contra todos os demais que sofrem fome, enfraquecem e se cansam. Ao invés de alguns,
estejam no seu caminho. Com mais freqüência se chega a uma são centenas e milhares que ficam para trás. Esta decompo-
inversão quando a direção da fuga é perturbada várias vezes. sição física começa lentamente, e o movimento original é man-
Basta bloquear o seu caminho, para que a massa se movimente tido durante um espaço de tempo infinitamente superior. Os
noutra direção. Quando seu caminho é bloqueado diversas homens continuam se arrastando, mesmo quando já desapare-
vezes, ela não sabe mais para onde se dirigir; neste momento ceram completamente todas as possibilidades imagináveis de
ela perde sua consistência. O perigo, que até então tinha um salvação. De todas as variantes de massa, a mais tenaz é a
efeito unificador e de incentivo, passa a caracterizar cada um da fuga; nela, os últimos componentes permanecem juntos até
como inimigo dos demais, e todos começam a tentar a própria o momento final.
salvação. Não são escassos os exemplos de fuga de massa. Nossa
A fuga de massa no entanto, ao contrário do pânico, era tornou-se muito rica neste sentido. Até os acontecimentos
extrai sua energia da coesão. Enquanto ela nao se deixa dis- da última guerra, todos pensariam primeiro no destino da
persar por coisa alguma, enquanto perdura sua continuidade
Grande Armée de Napoleão, por ocasião de sua retirada da
como uma poderosa corrente que não se divide, o medo que a
Rússia. Este é o caso mais grandioso: a composição deste exér-
impele também é suportável. Assim que ela começa a se mo-
cito por homens de tantos idiomas diferentes, o inverno terrí-
vimentar, uma espécie de euforia se apossa da fuga em massa:
vel, a enorme distância que a maioria deles foi obrigada a
a euforia do movimento em comum. Ninguém está mais
exposto do que os demais e, apesar de cada um dos participan- percorrer a pé... Esta retirada, que acabou degenerando numa
tes correr ou cavalgar no máximo de suas forças para se co- fuga de massa, é conhecida em todos os seus detalhes. A fuga
locar em segurança, cada qual tem sua posição dentro do de uma metrópole, nestas mesmas proporções, sem dúvida foi
conjunto, que pode ser reconhecido em meio à agitação ge- presenciada pela primeira vez quando os alemães se aproxima-
neralizada. ram de Paris em 1940. Este famoso "êxodo" não teve uma
No decorrer da fuga, que pode estender-se durante dias duração muito longa, já que logo em seguida foi assinado o
ou semanas, alguns ficam para trás, porque suas forças se armistício. Porém a intensidade e a magnitude deste movimento
esgotaram ou por terem sido alcançados pelo inimigo. O des- foram tais que o episódio se tornou para os franceses a prin-
tino que atingiu este indivíduo poupou os demais; ele passa cipal lembrança de massa da última guerra.
a ser um sacrificado ao perigo. Por mais importante que ele Não pretendemos acumular aqui toda uma série de exem-
tenha sido pessoalmente para cada um como co-fugitivo, na plos de épocas recentes. No entanto eles ainda estão vivos na
sua condição de caído ele se tornou ainda mais importante memória de todos. Vale a pena ressaltar que a fuga de massa
para todos. Sua sina confere novas forças aos que já estão sempre foi bem conhecida pelo homem, mesmo quando ele
enfraquecidos. Como ele era mais fraco do que os outros, o ainda vivia em grupos muito reduzidos. Ela já desempenhava
perigo o atingiu. O isolamento em que ele fica atrasando-se, um importante papel em sua imaginação, antes mesmo que
vislumbrado rapidamente pelos demais, enfatiza para os outros houvesse número suficiente para que ela pudesse ocorrer. Lem-
o valor da coesão. Não se pode enfatizar demais a importância bramos neste contexto a versão de um xamã esquimó:
do caído para a consistência da fuga. "O espaço celeste está repleto de seres nus que vêm
O fim natural da fuga é alcançar a meta. Na segurança, a voando pelo ar, Seres humanos, homens nus, mulheres nuas,
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que vão voando, provocando tempestades e nevascas. Ouçam entanto, segundo seu rendimento, os salários são distintos.
o ruído que provocam. É como o bater de asas de grandes Sua igualdade certamente não é muito profunda, e não basta
pássaros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a para provocar a formação da massa. Porém, quando se
fuga das pessoas nuas"! chega a uma greve, os trabalhadores se tornam iguais de
uma maneira Mais unificadora: na negativa de continuar
trabalhando. A proibição do trabalho gera uma atitude aguda
e resistente.
Massas de proibição
O momento da parada é um .grande momento, glorificado
em todos os hinos dos trabalhadores. Para isso contribui em
Uma espécie especial de massa forma-se através de uma proi- grande parte o sentimento de alívio com que é iniciada a greve
bição: muitos, em conjunto, não querem continuar fazendo o entre os trabalhadores. Sua igualdade fictícia, da qual tanto
que até então faziam como indivíduos. A proibição é repen- se fala mas que na verdade não vai além da utilização de suas
tina; ela é auto-imposta pelos próprios indivíduos. Pode tra- mãos, torna-se real. Enquanto trabalhavam tinham que fazer
tar-se de alguma proibição antiga que, por algum motivo, coisas dos tipos mais variados e tudo lhes era prescrito. Quando
tenha caído no esquecimento; ou então de alguma outra proi-
suspendem o trabalho, todos fazem a mesma coisa. É como
bição que é retomada de tempos em tempos. Mas também pode
se todos deixassem cair os braços no mesmo instante, como se
ser alguma proibição inteiramente nova. De qualquer forma,
agora todos tivessem de empregar suas forças em não voltar a
ela é imposta com grande força. Tem o caráter absoluto de
uma ordem, mas seu aspecto decisivo é o que tem de negativo, levantá-los, indiferentes à fome que possam sofrer seus fami-
liares. A suspensão do trabalho iguala os trabalhadores. Com-
Ela nunca vem de fora, ainda que assim pareça. Sempre surge
a partir de uma necessidade dos próprios afetados. Apenas a parada com o efeito deste instante, sua reivindicação concreta
proibição é pronunciada, a massa começa a se formar. Todos tem pouco peso. Pode ser que o objetivo da greve seja um
se negam a fazer o que o mundo exterior espera deles. O que aumento salarial e não resta a menor dúvida de que em fun-
até então faziam sem muito alarde, como se lhes fosse natural ção deste objetivo eles se sintam unidos. Porém somente isso
e fácil, repentinamente deixa de ser feito, não importa por que não bastaria para que formassem uma massa.
motivo. Na determinação de sua negativa pode-se reconhecer Os braços que caem têm um efeito contagioso sobre os
sua solidariedade. O próprio elemento negativo da proibição outros braços. O que eles não fazem comunica-se à sociedade
contagia a massa desde o instante do seu nascimento e con- toda, A greve se expande por "simpatia" e impede que outros,
que inicialmente não pensavam numa interrupção, continuem
tinua sendo, enquanto ela existir, sua característica principal.
desempenhando sua tarefa normal. 0 sentido da greve é que
Poderíamos portanto falar também de unia massa negativa. A
ninguém deve fazer coisa alguma enquanto os trabalhadores
resistência é o elemento que a caracteriza; a proibição repre-
insistirem em ficar parados; e quanto maior for o resultado
senta um limite e um dique; ninguém pode cruzar a fronteira,
alcançado por esta intenção, tanto maiores são as probabilida-
ninguém pode romper este dique. Quem cede e desobedece à
proibição é repudiado pelos demais. des de que eles vençam com a greve.
Nos nossos tempos o melhor exemplo de massa negativa Dentro da própria greve é importante que cada qual se
ou de proibição é a greve. Os trabalhadores estão habituados atenha à proibição. Chega-se espontaneamente à criação de
a desempenhar seu trabalho regularmente, em horas determi- uma organização a partir do interior da própria massa. Ela tem
nadas. Eles realizam tarefas dos mais diversos tipos; um faz a função de um estado que nasce com plena consciência de sua
isto, outro faz algo completamente diferente. Entretanto num existência fugaz, e que é regido apenas por um punhado de
mesmo horário todos se apresentam e num mesmo horário leis; estas, no entanto, são respeitadas da maneira mais rigo-
todos abandonam o lugar de trabalho. Eles são iguais em fun- rosa possível. Piquetes vigiam os acessos ao lócal de onde partiu
ção desse momento comum de apresentar-se e de retirar-se. a ação: o próprio lugar de trabalho passa a ser um terreno
A maioria deles realiza trabalhos manuais. Também estão pró- proibido. A proibição que pesa sobre os trabalhadores modi-
ximos num outro ponto: a remuneração do seu trabalho. No fica totalmente suas vidas diárias e lhes confere uma dignidade
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especial. A responsabilidade que cada um tem em relação à Massas de inversão
greve faz com que esta se torne um bem comum. É neste sen-
tido que a responsabilidade é protegida e considerada num "Meu querido, meu bom amigo, os lobos sempre comeram os
sentido mais elevado. No seu vazio e no seu silêncio existe cordeiros; será que desta vez os cordeiros comerão os lobos?"
algo de sacrossanto. Qualquer pessoa que se aproxime deve Esta frase encontra-se num carta que Madame Jullien escreveu
ser examinada quanto às suas convicções. Quem aparecer com a seu filho durante a Revolução Francesa. Ela contém, redu-
intenções profanas, quem quiser trabalhar, é considerado ini- zida a uma fórmula concisa, a essência da inversão. Até agora
migo ou traidor. alguns poucos lobos subjugaram muitos cordeiros. Chegou o
A organização se encarrega de uma distribuição justa de momento de os muitos cordeiros se voltarem contra os pou-
víveres ou de dinheiro. O disponível deve durar o mais pos- cos lobos. Sabe-se que os cordeiros não são carnívoros. Porém
sível. É importante que cada qual receba quantidades idênti- o que chama a atenção nesta frase está justamente na sua
cas. O mais forte nem pensará em receber mais; até mesmo o aparente falta de sentido. As revoluções são os tempos típicos
avarento se dá por satisfeito. Como geralmente existe multo da inversão. Os que durante tanto tempo permaneceram inde-
pouco para cada um, e como a distribuição é feita de maneira fesos repentinamente começam a mostrar os dentes. Seu
eqüitativa, já que é feita em público, este tipo de distribuição número deve compensar o que lhes falta em experiência e
contribui ainda mais para o orgulho que a massa sente pela maldade.
sua igualdade. Existe algo de muito sério e respeitável em A inversão pressupõe uma sociedade estratificada. A limi-
torno dessa organização. Não se pode deixar de pensar no tação de certas classes entre si, possuindo umas mais direitos
sentido da responsabilidade e na dignidade de uma formação que as outras, deve ter existido durante bastante tempo, deve
deste tipo, surgida espontaneamente de seu próprio meio, ter exercido suas influências na vida cotidiana dos homens
quando se fala da selvageria e do prazer destrutivo da massa. durante muitos anos, antes que surja a necessidade da inver-
Um estudo da massa de proibição é indispensável pelo fato são. O grupo superior tinha o direito de dar ordens ao inferior,
de mostrar aspectos muito característicos e até mesmo únicos. seja por ter chegado ao país por conquista colocando-se acima
Enquanto ela permanece fiel à sua essência, consegue evitar de seus habitantes, seja porque a estratificação ocorreu a partir
qualquer destruição. de acontecimentos no interior do próprio povo.
É verdade, sem dúvida, que não é fácil mantê-la neste Toda ordem deixa nos que são forçados a obedecer a ela
estágio. Quando as coisas não correm bem e a carência alcança um doloroso espinho. Quanto à natureza destes espinhos, que
proporções difíceis de suportar, e principalmente quando se são indestrutíveis, muita coisa será dita mais adiante. Homens
sente atacada ou sitiada, a massa negativa tende a converter-se que estão constantemente recebendo ordens e que se sentem re-
pletos destes espinhos possuem um forte impulso para se livrar
numa massa positiva ou ativa. Após um certo tempo é possível
dessa situação. Esta liberação pode ser alcançada de duas ma-
que os grevistas, que de maneira tão repentina proibiram ati-
neiras. Podem transmitir para outros as ordens que foram
vidade às suas mãos, tenham de fazer um grande esforço para recebidas de cima; para isso é necessário que haja inferiores
não usá-las de alguma forma. Basta que eles sintam que a que estejam dispostos a receber suas ordens. Mas também
unidade de sua resistência está ameaçada para que se mostrem podem devolver a seus superiores tudo o que durante muito
inclinados à destruição, antes de mais nada à destruição na tempo suportaram e sofreram por parte deles. Um indivíduo,
esfera das atividades às quais estavam acostumados. É justa- fraco e indefeso, terá pouquíssimas ocasiões de conseguir esta
mente aqui que começa a tarefa mais importante da organiza- oportunidade. Mas quando muitos se encontram numa massa,
ção; ela tem de manter puro o caráter da massa de proibição, pode acontecer o que lhes estava vedado num plano indivi-
e impedir toda e qualquer ação individual positiva. Da mesma dual. Juntos podem voltar-se contra aqueles que até então
forma ela deve reconhecer quando chega o momento de levan- lhes davam ordens. A situação revolucionária pode ser consi-
tar a proibição à qual a massa deve sua existência. Quando sua derada como o estado clássico de tal inversão. E a massa cuja
visão corresponde ao sentimento da massa, ao levantar a proi- descarga consiste principalmente numa liberação conjunta dos
bição ela deve determinar sua própria dissolução. "espinhos-ordens" deve ser designada como massa de inversão.
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A Queda da Bastilha é tida como o princípio da Revolu- possível libertar-se do seu espinho. A massa de inversão é
ção Francesa, que na verdade tinha começado antes com um um processo que ataca toda uma sociedade e, mesmo tendo
banho de sangue entre coelhos. Em maio de 1789 os Estados êxito imediato a princípio, somente chega ao final de maneira
Gerais se reuniram em Versalhes. Deliberaram a abolição dos lenta e difícil. A massa de perseguição existente na superfície
direitos feudais, entre os quais se contava o direito de caça é uma condição de processo rápido. A inversão lentamente
da nobreza. No dia 10 de junho, um mês antes da Queda da começa a aparecer a partir do que existe de mais profundo.
Bastilha, Camille Desmoulins, que participava como delegado Mas a inversão pode ser ainda muito mais lenta: ela pode
das reuniões, informa a seu pai numa carta: "Os bretões estão ser uma promessa de glória. "Os últimos serão os primeiros".
pondo em prática alguns artigos dos seus cadernos de reivindi- Entre as duas situações encontra-se a morte. No outro mundo
cações. Matam pombas e animais silvestres. Cinqüenta jovens as pessoas tornarão a viver. Quem foi o mais pobre aqui
participam aqui na região de uma devastação sem precedentes e nada fez de mal, valerá muito mais no outro mundo. Ele
entre lebres e coelhos. Dizem que caçam à vista dos guardas de continua existindo como ser novo em melhor situação. Ao
quatro a cinco mil animais na planície de Saint Germain". Os crente se promete a libertação de seus problemas. Entretanto,
cordeiros, antes de enfrentar os lobos, voltam-se contra as nada se diz a respeito das circunstâncias mais precisas desta
lebres. Antes da inversão, que é dirigida contra os próprios libertação; e mesmo que mais tarde todos estejam juntos no
superiores, as pessoas maltratam os que estão mais abaixo, os além, não se faz propriamente uma referência à massa como
animais de caça. substrato de uma inversão.
O acontecimento propriamente dito ocorre, portanto, no No centro deste tipo de promessa existe a idéia da res-
día da Bastilha. A cidade toda se abastece de armas. O levante surreição. Casos de ressurreição realizados por Cristo neste
dirige-se contra a justiça real, simbolizada pelo edifício ata- mundo são relatados nos Evangelhos. Os pregadores dos cé-
cado e tomado. São libertados os presos que podem então lebres Revivais dos países anglo-saxões utilizavam o efeito de
incorporar-se à massa. O governador responsável pela defesa morte e ressurreição de muitas maneiras. Os pecadores reuni-
da Bastilha e seus ajudantes são executados. Mas também dos eram ameaçados por eles com os mais espantosos castigos
ladrões são enforcados nos postes. A Bastilha é arrasada e não infernais e caíam num estado de indescritível temor. Viam
fica pedra sobre pedra. A justiça nos seus dois aspectos prin- um enorme lago de fogo e enxofre diante deles e a mão do
cipais — como sentença de morte e como indulto -- passa Todo-poderoso prestes a lançá-los no terrível abismo. Conta-se
às mãos do povo. A inversão, momentaneamente, consumou-se. a respeito de um destes pregadores que a violência de sua
Massas desse tipo formam-se nas mais diversas circuns- oratória era aumentada por suas repugnantes expressões fa-
tâncias: podem ser levantes de escravos contra seus senhores, ciais e por sua voz trovejante. As pessoas viajavam 60, 80,
de soldados contra seus oficiais, de gente de cor contra os 150 km para poder ouvir esses pregadores. Os homens tra-
brancos que estão instalados em seu meio. Trata-se sempre de ziam consigo suas famílias em carroças cobertas e vinham
um grupo de pessoas que durante muito tempo estiveram sob abastecidos de víveres e cobertores para vários dias. Por volta
o domínio de outros. Os insurgentes atuam sempre a partir do ano 1800, uma parte do Estado de Kentucky caiu num
de seus espinhos acumulados e sempre, portanto, tiveram que transe febril por causa desse tipo de assembléias. As reuniões
esperar bastante antes de poderem começar a agir. eram realizadas ao ar livre, pois não havia edifícios naquela
Entretanto, grande parte do que pode ser observado na época capazes de abrigar estas enormes massas. Vinte mil pes-
superfície das revoluções desenvolve-se, sem dúvida alguma, soas se reuniram em agosto de 1801 no Meeting de Cane
entre massas de perseguição. A caça é feita contra homens in- Ridge. Mais de cem anos depois as lembranças deste aconte-
dividuais; quando eles são alcançados, são mortos em conjunto cimento ainda se encontravam vivas no Kentucky.
por todos, sob forma de tribunal, ou até mesmo sem julga- Os espectadores eram aterrorizados pelos pregadores até
mento. Porém a revolução nunca consiste nisto. As massas de o ponto de caírem por terra e lá permanecerem imóveis como
perseguição, que atingem rapidamente seu fim natural, nunca mortos. Eles eram ameaçados com as ordens de Deus. Por
são suficientes. A inversão uma vez iniciada segue sempre em causa destas ordens eles se precipitavam na fuga, buscando
frente. Cada um procura chegar a uma situação na qual seja a salvação numa espécie de morte aparente. Esta era a inten-
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ção consciente e declarada do pregador, ele queria "derru- Este medo, aumentado pelo pregador de todas as formas pos-
bá-los". Tudo ocorria como num campo de batalha; à direita síveis, os leva ao estado de inconsciência. Eles se fingem de
e à esquerda caíam no chão filas inteiras de pessoas. Os pró- mortos como alguns animais que tentam fugir; porém seu
prios pregadores faziam a comparação com o campo de bata- terror é tão grande que no decorrer do processo perdem a
lha. Para a inversão moral que queriam provocar, eles acha- consciência. Quando voltam a si, declaram-se dispostos a sub-
vam muito apropriado fazer alusão a esta situação extrema. meter-se às ordens e às proibições divinas. Em troca disso, o
O êxito da pregação era medido pelo número de "derruba- temor, exacerbado ao máximo, diminui diante do castigo imi-
nente. Seria possível dizer que este processo é semelhante ao
dos". Uma testemunha ocular, que realizou uma contabilidade
exata, informa que no transcorrer do Meeting de vários dias, da domesticação: a pessoa se deixa domesticar pelo pregador
cerca de três mil pessoas caíram inertes ao chão, ou seja, quase para servir obedientemente a Deus.
a sexta parte de todos os presentes. Os que caíam eram trans- Este caso é diametralmente oposto ao de uma revolução
portados a uma sala de reuniões vizinha. Todo o tempo como foi interpretada acima. Lá tratava-se de uma libertação
metade do assoalho estava coberto por homens prostrados. de espinhos que iam sendo acumulados progressivamente pela
Muitos ficavam imóveis durante horas, incapazes de falar ou submissão a um senhor. Aqui trata-se de uma submissão nova
de se movimentar. Às vezes voltavam a si durante alguns mi- aos mandamentos de Deus; de uma disposição, portanto, a
nutos e com gemidos profundos, gritos penetrantes ou orações aceitar voluntariamente todos os espinhos que podem decorrer
piedosas davam a entender que continuavam vivos. Alguns disso. Comum a ambos os processos existe apenas o fato de
ficavam batendo com os calcanhares no chão. Outros grita- uma inversão e do cenário psíquico no qual ela ocorre: num e
vam como se estivessem à beira da morte e se agitavam como noutro caso, a massa.
peixes apanhados numa rede. Alguns ficavam rolando horas
a fio no chão. Havia outros que, repentinamente, saltavam
sobre os estrados dos oradores ou sobre os bancos e fugiam Massas festivas
em direção à floresta gritando: "Perdidos! Perdidos!".
Quando os caídos voltavam outra vez a si, eram outros Designarei um quinto tipo de massa como massa festiva.
homens. Levantavam-se e exclamavam: "Redenção!". Eles ti- Existem muitos suprimentos num espaço limitado, e todas
nham "renascido" e podiam agora dar início a uma vida boa as pessoas que se movimentam nesta área determinada podem
e pura. Tinham deixado para trás sua velha existência de participar da festa. Os produtos, de qualquer espécie, são ex-
pecadores. Porém a conversão somente era digna de crédito postos em grandes porções. Cem leitões estão dispostos em
quando precedida por uma espécie de morte. fila. Foram empilhadas montanhas de frutas. Em recipientes
Ocorriam também fenômenos de natureza menos extrema, enormes preparou-se a bebida predileta que aguarda os con-
mas que atuavam no mesmo sentido. E em certa ocasião todas sumidores. Existem coisas em quantidades maiores do que as
as pessoas concentradas romperam em pranto. Muitos foram que podem ser consumidas. E para consumi-las chegam grupos
acometidos por contrações convulsivas irresistíveis. Alguns, cada vez maiores de pessoas. Enquanto houver comida e be-
geralmente em grupos de quatro ou cinco, começaram a latir bida as pessoas se servem e tem-se a impressão de que os
como cachorros. Após alguns anos, quando a excitação adqui- suprimentos jamais chegarão ao fim. Existe um excesso de
riu uma forma mais tranqüila, primeiro alguns poucos e de- mulheres para os homens e um excesso de homens para as
pois toda a multidão eram possuídos por "riso sagrado". mulheres. Nada e ninguém ameaça, nada impele à fuga; a
Mas tudo o que ocorria, ocorria na massa. Poucas for- vida e o prazer estão assegurados enquanto durar a festa.
mas mais excitadas e mais tensas do que essa se tornaram Muitas proibições e separações foram suspensas; permitem-se
conhecidas. e favorecem-se as aproximações pessoais menos usuais. A
A inversão que enfocamos aqui é diferente da que acon- atmosfera para o indivíduo é de distensão e não de descarga.
tece nas revoluções. Trata-se da relação dos homens para com Não existe uma meta idêntica para todos e que todos devem
os mandamentos de Deus. Até agora eles tinham atuado contra alcançar unidos. A festa é a meta e ela foi conseguida. A den-
ele. Mas agora o terror dos seus castigos desabou sobre eles. sidade é muito grande; a igualdade, por outro lado, deve-se
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à situação e à alegria. As pessoas se movem entre as outras curiosidade e expectativa ou todo medo são dirigidos a uma
e não com as outras. As coísas que estão expostas, que se segunda aglomeração de seres humanos que estão separados
acumulam visualmente e que se consomem são uma parte essen- por uma distância clara. Quando eles são vistos de frente, seu
cial da densidade: seu núcleo. Primeiro se reúnem os objetos aspecto fascina; quando não são vistos, podem ser ouvidos.
e somente quando eles estão reunidos as pessoas são convo- Da ação ou da intenção do segundo grupo depende tudo o que
cadas para se reunir em torno deles. Podem transcorrer se faz. As atitudes contra eles influem sobre as atitudes que
anos até que haja tudo o que é necessário, e pode ser que temos para com os elementos do nosso próprio grupo. O con-
grandes privações tenham de ser suportadas para proporcionar fronto, que em ambos provoca um alerta especial, modifica a
esta abundância efêmera. Porém as pessoas vivem pensando natureza da concentração dentro de cada grupo. Enquanto
neste instante e o evocam conscientes de que é a meta. Pes- aquele grupo não se dispersa, este deve continuar unido. A
soas que em geral pouco se vêem foram solenemente convi- tensão existente entre ambos os grupos se traduz numa pres-
dadas e em grupo. A chegada dos diversos contingentes é são sobre os elementos de cada grupo. Quando se trata da
acentuada de maneira forte e aumenta consideravelmente a tensão de um jogo ritual, a pressão se manifesta com uma
alegria geral. espécie de pudor: faz-se tudo o que é possível para não dei-
Este estado provoca um sentimento geral de que graças xar descoberto o nosso lado perante o adversário. Porém, se
ao prazer comum desta festa será possível garantir numerosas os adversários ameaçam e se realmente a vida está em perigo,
festas posteriores. Com danças rituais e representações dra- a pressão se transforma na couraça de uma defesa decidida
máticas comemoram-se acontecimentos de natureza idêntica. e unida.
Sua tradição está incluída no presente desta festa. Pouco De qualquer forma, uma massa mantém a vida da outra,
importa que se celebrem os fundadores desses eventos, os heróis o que pressupõe que elas sejam mais ou menos equivalentes
culturais responsáveis por todas as maravilhas desfrutadas, os em termos de tamanho e de intensidade. Para manter-se como
antepassados ou, como em sociedades mais frias posteriores, massa não se pode ter um adversário demasiadamente supe-
apenas se homenageiem os ricos anfitriões; em qualquer um rior, ou pelo menos ele não deve ser considerado como sendo
destes casos parece estar garantida uma futura repetição de demasiadamente superior. Se se tiver a sensação de inferiori-
ocasiões similares. Uma festa provoca a outra e pela densidade dade diante do adversário, a massa procurará a salvação na
de objetos e de homens multiplica-se a vida. fuga e, caso esta pareça impossível, a massa se desintegrará
em pânico, cada qual fugindo individualmente. Porém não é
este o caso que nos interessa aqui. Para a constituição do
A massa dupla: homens e mulheres. sistema de duas massas, como também podemos denominá-lo,
ambos os lados devem ter um sentimento de equilíbrio de
Vivos e - mortos forças.
Se quisermos compreender a origem desse sistema, deve-
O mais seguro e freqüentemente o único meio de conser- mos partir de três oposições básicas. Elas aparecem sempre
var a massa é a existência de uma outra massa com a qual onde existem seres humanos e todas as sociedades conhecidas
a primeira se possa comparar. Seja que elas se enfrentem de eram muito conscientes de sua presença. A primeira oposição,
maneira lúdica e meçam forças, ou seja que se ameacem seria- e também a mais nítida, é a que existe entre homens e mu-
mente, a visão ou a representação intensa da segunda massa lheres; a segunda, entre os vivos e os mortos; a terceira, na
não permite que a primeira se desintegre. Enquanto as pernas qual se pensa quase exclusivamente hoje em dia quando se
se mantêm juntas umas às outras, os olhos estão fixos noutros fala de duas massas que se enfrentam, é a oposição entre o
olhos diante deles. Enquanto os braços se movimentam se- amigo e o inimigo.
guindo um ritmo comum, os ouvidos estão atentos ao grito Se considerarmos a primeira divisão, ou seja, a que separa
que aguardam do outro lado. homens e mulheres, não fica imediatamente evidente o que
Existe uma proximidade física em relação às outras pes- isto poderia ter a ver com a formação de massas especiais.
soas e age-se com elas numa unidade familiar e natural. Toda Homens e mulheres vivem juntos em famílias. Existirá possi-
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velmente uma divisão de trabalho, mas mal podemos imaginar atenção os ruídos feitos pelo grupo oposto. Eles usam as
que os grupos se enfrentem em classes separadas e excitadas. mesmas exclamações e com elas se exaltam até chegar a um'
É preciso voltar a relatos de condições de vida mais espontâ- estado de excitação de massa comum a ambos. As atividades
neas para se obter uma imagem diferente da forma desta opo- essenciais ocorrem entre os homens. Porém as mulheres com-
sição. partilham do desenvolvimento da massa. Vale a pena observar
Jean de Léry, jovem huguenote francês, foi testemunha, que elas, assim que ouvem os primeiros ruídos vindos da
em 1557, de uma grande festa entre os tupinambás do Brasil. casa dos homens, se reúnem num amontoado muito denso,
"Recebemos ordens para ficar na casa onde estavam as respondendo aos gritos selvagens que ouvem com intensidade
mulheres. Não sabíamos ainda o que iriam fazer, quando de cada vez maior. Elas estão repletas de medo por estarem fe-
repente começou um barulho bastante forte na casa onde se chadas — não podem sair por motivo algum — e, como não
encontravam os homens, a uma distância de uns trinta passos podem saber o que acontece entre os homens, sua excitação
de nós e das mulheres. O som se assemelhava a um murmúrio vai adotando um colorido especial. Elas saltam no sentido
de orações. vertical, como se pulassem para fora. As características histé-
"Quando as mulheres, cerca de duzentas, ouviram o ruí- ricas que o observador nota são típicas de uma fuga de massa
do, levantaram-se aguçando os ouvidos, juntando-se para for- impraticável. A tendência natural das mulheres seria fugir
mar um grupo bem unificado. Logo em seguida, os homens para onde estão os homens, mas como existe uma grave proi-
elevaram suas vozes. Percebemos com clareza que todos can- bição quanto a isso, elas fogem, por assim dizer, permanecendo
tavam em coro, repetindo muitas vezes uma interjeição com no mesmo lugar.
a qual pareciam se incentivar: 'He, he, he, he!'. Notáveis também são as sensações do próprio Jean de
"Ficamos muito espantados quando as mulheres respon- Léry. Ele compartilha da excitação das mulheres sem no en-
deram usando a mesma interjeição: 'He, he, he, he!'. Durante tanto pertencer realmente à massa que elas formam. Ele é um
mais de um quarto de hora choraram e gritaram de modo tão estranho e é um homem. Em meio a elas, mas delas separado,
alto que não sabíamos que expressão mostrar no rosto. ele deve temer a possibilidade de se tornar vítima dessa massa.
"Em meio ao choro, elas saltavam a grandes alturas, os Que a participação das mulheres à sua maneira não é in-
seios tremendo, com espuma em volta da boca. Algumas caí- diferente ao outro grupo salta à vista em outra passagem do
ram desmaiadas, como pessoas que sofrem de epilepsia. Tive relato. Os feiticeiros da tribo, ou "caraíbes", como os chama
a impressão de que o diabo entrara nelas, enlouquecendo-as Jean de Léry, proíbem terminantemente que as mulheres aban-
totalmente. Bem perto de onde estávamos era possível ouvir a donem sua casa. Mas lhes ordenam que ouçam com o máximo
algazarra das crianças fechadas num recinto separado. Apesar de atenção o canto dos homens.
de já estar convivendo há mais de meio ano com os selvagens, A influência das mulheres sobre o grupo dos seus ho-
e de me ter acostumado bastante a eles, eu me senti — não mens pode ser de importância também quando estão muito
quero ocultá-lo — cheio de pavor. Perguntei-me como ter- mais separados entre si. Para o êxito de expedições guerreiras,
minaria a situação e desejei estar de volta ao nosso forte." as mulheres às vezes contribuíram à sua maneira. Em seguida
Finalmente a algazarra diminui, as mulheres e as crianças daremos três exemplos — um da Ásia, outro da América e o
emudecem e Jean de Léry ouve os homens cantando maravi- último da África — de povos que nunca tiveram contato entre
lhosamente em coro. O canto é tão bonito que ele não resiste si e que com toda certeza jamais se influenciaram mutuamente.
à tentação de querer vê-los. As mulheres procuram retê-lo, Entre os kafirs de Hindukusch, as mulheres representam
pois conhecem a proibição e sabem que não podem ir até onde a dança guerreira, quando seus homens estão ausentes numa
estão os varões da tribo. No entanto, o francês consegue ir expedição. Assim elas enchem de vigor e coragem os guerrei-
até lá. Nada lhe acontece e juntamente com dois outros com- ros, e aumentam sua vigilância para que eles não se deixem
patriotas, ele participa da festa. surpreender pelo inimigo.
Homens e mulheres encontram-se portanto estritamente Entre os jívaros, da América do Sul, as mulheres se reú-
separados, em casas diferentes mas próximas. Os grupos não nem enquanto seus homens estão numa expedição de guerra,
podem ver-se um ao outro, mas cada qual escuta com grande noite após noite, numa determinada casa, executando uma
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dança especial. Elas usam maracás e conchas penduradas no é considerada como especialmente dolorosa pelos sobreviven-
corpo e entoam cantos de esconjuro. Acredita-se que essa dan- tes. Eles resistem da melhor maneira que lhes é possível, mas
ça guerreira das mulheres possui um poder peculiar: ela pro- sabem que sua resistência não lhes ajudará muito. A massa
tege seus pais, maridos e filhos das lanças e das balas do existente do outro lado é maior e mais forte e o homem em
inimigo, e dá também uma segurança efêmera ao inimigo, de questão é atraído por ela. Tudo o que é feito neste mundo
modo que este não perceba o perigo até que seja demasiado leva em consideração a noção da superioridade do além. É pre-
tarde. Os cantos também servem para impedir que os inimigos ciso evitar tudo o que irrite o outro lado, que tem influência
se vinguem no caso de uma derrota. sobre os vivos e que pode prejudicá-los em todos os sentidos.
Myrary chama-se, em Madagascar, uma antiga dança das Para alguns povos a massa dos mortos é o reservatório de onde
mulheres que somente deve ser executada no momento do surgem as almas dos recém-nascidos. Deles depende que as
combate. Quando uma batalha era anunciada, mensageiros mulheres tenham filhos. As vezes os espíritos se aproximam
especiais avisavam as mulheres. Estas, então, soltavam os ca- sob a forma de nuvem, trazendo a chuva. Eles podem impedir
belos, começavam a dança, estabelecendo desta maneira uma a existência das plantas e dos animais dos quais os vivos se
espécie de comunicação com os homens. Quando os alemães nutrem; eles podem fazer novas vítimas entre os vivos. O pró-
marcharam contra Paris em 1914, as mulheres de Tananarive, prio morto que somente entregamos após dura resistência, já
com a finalidade de proteger os soldados franceses, dançaram está disposto a participar do poderoso exército existente do
a myrary. Apesar da grande distância, isto parece ter tido um outro lado.
efeito prático. Morrer portanto é um combate, um combate entre dois
No mundo todo existem festas nas quais homens e mu- inimigos de força desigual. Os gritos que soltamos, os golpes
lheres dançam em grupos separados, se bem que visíveis um que infligimos a nós mesmos em meio ao luto e ao desespero
ao outro; geralmente ficam um diante do outro. Não é neces- talvez também sejam tidos como expressões desse combate.
sário descrevê-los, pois são universalmente conhecidos. Eu me O morto não deve acreditar que foi entregue sem resistência,
limitei a relatar apenas alguns casos mais extremos em que a que os daqui não combateram por ele.
separação, a distância e também a excitação são especialmente Trata-se de um combate muito peculiar. É um combate
notórias. Nestes casos podemos falar de uma massa dupla que perdido de antemão, sem que a coragem empregada tenha im-
está profundamente arraigada; ambas estão reciprocamente pre- portância. Desde o princípio foge-se do inimigo, e no fundo o
dispostas de maneira positiva. A excitação de uma serve para enfrentamos apenas para conservar as aparências com a espe-
favorecer o bem-estar e a prosperidade da outra. Homens e rança de derrotá-lo mediante uma escaramuça de retaguarda.
mulheres pertencem a um povo e dependem uns dos outros. O combate é simulado também como um último tributo pres-
Nas lendas das amazonas, que não se restringem apenas tado ao agonizante, que logo em seguida passará a engrossar
à antiguidade grega e das quais encontramos exemplos entre as fileiras do inimigo. Trata-se de conseguir que o morto que
os nativos da América do Sul, as mulheres se separavam para nos abandona fique bem disposto em relação a nós, ou pelo
sempre dos homens e os combatiam nas guerras como se fos- menos que ele não se volte demais contra os vivos, já que isto
sem um povo diferente. poderia estimular os inimigos potenciais a novos e perigosos
Mas antes de voltar à análise da guerra, onde a essência ataques.
perigosa e aparentemente inevitável da massa dupla encontrou O essencial neste tipo de combate entre os mortos e os
sua expressão mais forte, não podemos deixar de lado a anti- vivos é seu caráter intermitente. Nunca se sabe quando algo
guíssima oposição entre os vivos e os mortos. voltará a acontecer. É possível que nada ocorra durante muito
Em referência ao que ocorre em torno dos moribundos e tempo. Mas ninguém pode confiar nisso. Cada novo golpe
dos mortos, é importante a idéia de que no além atua uma chega de improviso e vem das trevas. Não há uma declaração
quantidade muito maior de espíritos, entre os quais o defunto de guerra. Depois de uma única morte, tudo pode terminar.
acabará sendo incluído. O lado dos vivos não entrega de bom Mas também é possível que o ataque continue, como sucede em
grado seus integrantes. Sua perda enfraquece os vivos e quan- tempos de pestes e epidemias. A retirada é contínua e a situa-
do se trata de um homem na plenitude de suas forças, a morte ção nunca termina completamente.
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Posteriormente falaremos a respeito da relação dos vivos no campo de batalha". Valr, no nórdico antigo, significa os
para com os mortos. Aqui quisemos enfocar apenas o problema "cadáveres do campo de batalha"; valhall nada mais é do que
de uma massa dupla, cujas partes mantêm uma relação recí- a "morada dos guerreiros caídos". Por derivação do antigo
proca e perpétua. termo alemão wal formou-se a palavra woul, que significa
A terceira forma de massa dupla é a da guerra. É ela que "derrota". No anglo-saxão, porém, a palavra correspondente,
atualmente mais nos interessa. Depois das experiências deste wol, significa "peste, enfermidade contagiosa". Comum a todos
século, daríamos qualquer coisa para compreendê-la e para estes termos, quer se trate de caídos no campo de batalha, de
acabar com ela. derrota, de peste ou de enfermidade contagiosa, é a idéia de
um monte de mortos.
Porém esta idéia não é apenas germânica. Ela é encon-
A massa dupla: a guerra trada no mundo inteiro. Numa visão do profeta Jeremias a
Terra toda aparece como um enorme campo de cadáveres em
Nas guerras o que importa é matar. "As fileiras do inimi- decomposição. "Os mortos do Senhor num mesmo tempo fica-
go foram dizimadas." Trata-se de matar aos montes. É preciso rão estendidos no solo de uma extremidade da Terra à outra;
acabar com a maior quantidade possível de inimigos; a perigosa eles não serão chorados, nem recolhidos, nem enterrados; de-
massa de adversários vivos deve ser transformada num monte verão jazer no campo e transformar-se em esterco."
de mortos. Vence aquele que mata mais inimigos. Na guerra O profeta Maomé tem um sentimento tão intenso em
se enfrenta uma massa crescente de vizinhos. Seu aumento é relação aos seus inimigos mortos que se dirige a eles numa
inquietante em si. Sua ameaça, que já está contida no mero espécie de pregação triunfal. Após a batalha de Bedr, o pri-
crescimento, desencadeia a própria massa agressiva, que força meiro grande triunfo sobre seus inimigos em Meca, "mandou
a guerra. Na sua condução, procura-se ser sempre superior, ou lançar os inimigos mortos numa cisterna. Somente um deles
seja, ter sempre em campo um grupo mais numeroso e apro- foi sepultado debaixo de terra e pedras, porque estava tão
veitar, em todos os sentidos, a fraqueza do adversário antes inchado que não era possível tirar-lhe a couraça; apenas este
que ele possa aumentar numericamente. A forma de conduzir foi excluído, ficando fora. Quando os demais já tinham sido
a guerra é portanto, em detalhe, a imagem exata do que ocorre lançados à cisterna, Maomé se colocou diante dela e exclamou:
no plano geral: pretende-se ser a maior massa de vivos. Do `Oh, homens da cisterna! A promessa do vosso senhor se
lado adversário deve ficar o monte maior de mortos. Nesta cumpriu? A promessa do meu Senhor estava correta!'. E seus
concorrência das massas de crescimento se encontra o motivo companheiros disseram: 'Oh, enviado de Deus! São apenas ca-
de fundo essencial, poderíamos até dizer, o motivo básico dáveres'!. E Maomé replicou: 'Eles sabem, mesmo assim, que
mais profundo das guerras. Em vez de mortos também se a promessa do Senhor se realizou".
podem fazer escravos, principalmente mulheres e crianças, que Desta maneira ele reuniu os que anteriormente não que-
servem exatamente para multiplicar a massa da própria tribo. riam ouvir suas palavras; na cisterna eles estão bem guardados
Porém a guerra nunca é uma verdadeira guerra quando não e intimamente unidos. Não conheço exemplo mais penetrante
tem primeiro como objetivo um monte de inimigos mortos. que defina esta classe de vida e o caráter de massa que se
Todas as palavras familiares para designar feitos bélicos, atribui ao monte de inimigos mortos. Eles já não ameaçam,
tanto nas línguas antigas como nas novas, expressam exata- porém é possível ameaçá-los. Com eles pode-se exercer impu-
mente esta relação. Fala-se de "matança" e de "carnificina". nemente qualquer ato pérfido. Tenham eles sentimento ou não,
Grandes quantidades de sangue tingem os rios de vermelho. supõe-se que o tenham para enfatizar o próprio triunfo. Eles
O inimigo é abatido no campo até o último homem. Cada um estão reunidos na cisterna de tal maneira que nenhum se po-
se bate "até o último homem". Não existe perdão. deria mover. Caso um deles despertasse, teria apenas mortos
No entanto é importante notar que também o monte de ao seu redor. Seus próprios companheiros o privariam do ar
mortos é considerado como unidade e algumas línguas pos- necessário para respirar; o mundo ao qual regressaria estaria
suem palavras especiais para designá-la. A palavra alemã wal- formado de mortos, de cadáveres das pessoas que lhe eram
statt contém a antiga raiz wal, que significa "os que ficaram mais próximas.
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Entre os povos da Antiguidade, os egípcios não eram con- de suas vestes brancas que modificam a cor do campo — a
siderados grandes guerreiros; a energia do seu Velho Império frase mais terrível, definitiva, do resultado de uma batalha.
era canalizada mais para a construção das pirâmides do que Porém este resultado somente pode ser visto pelos com-
para as conquistas. Apesar disso, eles também realizaram ex- batentes. A batalha foi travada à distância e o povo que per-
pedições bélicas. O relato seguinte foi feito por Une, um juiz manece na pátria também gostaria de ter algo do monte de
superior que seu rei Pepy nomeou comandante contra os be- inimigos mortos. Usando a imaginação lhes é proporcionada
duínos. Em seu túmulo, Une nos dá informações a respeito de esta satisfação. O filho e sucessor de Ramsés II, Merenptah,
sua vida: nos diz como ganhou uma grande batalha contra os líbios. Todo
o acampamento deles, com todos os seus tesouros e com os
Este exército foi feliz e despedaçou o país dos beduínos. parentes de seu príncipe, caiu nas mãos dos egípcios; depois do
Este exército foi feliz e destruiu o país dos beduínos. saque, ele foi incendiado; 9.376 prisioneiros completavam o
Este exército foi feliz e derrubou suas torres, saque. Mas isto ainda não era suficiente; para que o povo to-
Este exército foi feliz e cortou suas figueiras e videiras. masse conhecimento do número de mortos, cortaram-se os ór-
Este exército foi feliz e incendiou todas as suas aldeias. gãos sexuais dos caídos; aos circuncidados cortavam-se as mãos,
Este exército foi feliz e matou dezenas de milhares de sol- e todo este carregamento foi transportado por burros. Mais
tarde, Ramsés III teve de combater novamente os líbios. Neste
dados.
Este exército foi feliz e trouxe prisioneiros em grande caso o número de troféus se elevou a 12.535. É evidente que
estes carregamentos macabros nada mais são que um monte
quantidade.
reduzido dos inimigos mortos, transportável e visível, para o
povo todo. Cada um dos caídos contribui com uma parte do
A forte imagem da destruição atinge o ponto culminante
seu corpo para o monte global; e é importante que todos os
no verso que nos informa a respeito das dezenas de milhares troféus se assemelhem.
de soldados mortos. No decorrer do Novo Império os egípcios
Outros povos se interessavam mais por cabeças. Os assí-
realizaram, se bem que não durante muito tempo, uma polí- rios estabeleciam um preço pela cabeça de cada inimigo; cada
tica sistematicamente agressiva. Ramsés II mantém prolonga- soldado procurava reunir o maior número possível delas. Num
das guerras contra os hititas. Num hino de louvor diz-se o se- relevo da época do rei Assurbanipal, podemos ver uma cena
guinte sobre ele: na qual os escribas estão de pé em suas grandes tendas, ano-
"Ele que pisoteia o país dos hititas, convertendo-o num tando a quantidade das cabeças decepadas. Cada soldado traz
monte de cadáveres, como Sekhmet quando almeja a peste». suas cabeças, joga-as sobre um monte comum, dá o seu nome
Já em sua história mitológica a deusa Sekhmet, com cabeça de e o da sua divisão e se retira. Os reis assírios sentiam grande
leão, havia provocado entre os homens rebeldes um terrível paixão por esses montes de cabeças. Quando estavam junto ao
banho de sangue. Ela continua como deusa da guerra e do exército, presidiam a entrega dos troféus e entregavam pes-
massacre. O autor do hino de louvor, porém, reúne a imagem soalmente os prêmios correspondentes aos soldados. Quando
do monte de cadáveres dos hititas com a das vítimas de uma se encontravam distantes do campo de batalha, ordenavam que
epidemia; um relacionamento que para nós não é novidade. o monte de cabeças fosse levado até eles; caso isto fosse im-
Em sua célebre crônica sobre a batalha de Kadesh, trava- possível, conformavam-se apenas com as cabeças dos coman-
da contra os hititas, Ramsés II narra como foi separado de dantes inimigos.
suas tropas e como, graças a uma força e a uma coragem ex- O objetivo imediato e muito concreto da guerra é por-
cepcionais, conseguiu vencer a batalha. Seus soldados "desco- tanto visível. Não é necessário procurar mais ilustrações para
briram que todos os povos nos quais penetrei jaziam no pró- isto. A história é pródiga destes exemplos. As vezes tem-se a
prio sangue com todos os melhores combatentes dos hititas e impressão de que ela se preocupa sobretudo com estes casos
com os filhos e irmãos de seu soberano. Eu fiz com que o e que graças apenas a um esforço contínuo e repetido conse-
campo de Kadesh se tornasse branco, não sendo possível pi- guiu dedicar-se também a outros eventos da humanidade.
sá-lo devido à quantidade". É a quantidade dos cadáveres e Se considerarmos ambos os lados combatentes, a guerra
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oferece a imagem de duas massas duplamente entrelaçadas. isto eu mesmo posso ser morto". Porém, para começar uma
Um exército do maior tamanho possível procura produzir o guerra, para que ocorra o seu estalo, para que apareça uma
maior monte possível de inimigos mortos. Exatamente o mes- consciência guerreira entre o próprio povo, concorda-se apenas
mo é válido também para o lado oposto. O entrelaçamento é com a primeira parte da frase. Mesmo que sejamos os agresso-
resultado do fato de que cada participante de uma guerra per- res, sempre tentaremos criar a ficção de estarmos ameaçados.
tence sempre simultaneamente a duas massas: para o seu pró- A ameaça consiste no fato de que alguém se arvora no
prio povo ele pertence ao número dos guerreiros vivos; para direito de matar outra pessoa. Cada um dos que formam um
os adversários, pertence a um número de mortos potenciais determinado lado se encontra sob a mesma ameaça: ela iguala
e desejáveis. todos, a ameaça é dirigida a cada um. A partir de um dado
Para manter o espírito bélico num nível elevado, é neces- momento, que para todos é o mesmo, ou seja, o da prepara-
sário afirmar constantemente a própria força, ou seja, men- ção da guerra, pode acontecer a mesma coisa a todos. O exter-
cionar o número de guerreiros existentes no próprio exército mínio físico do qual as pessoas habitualmente se sentem pro-
e também a quantidade de inimigos mortos. Desde os tempos tegidas pela própria sociedade, justamente por pertencerem
mais remotos as crônicas de guerra se caracterizam por esta a ela, está agora muito próximo. Decretou-se a um só tempo
dupla estatística: tantos soldados nossos participaram, tantos a mais terrível ameaça para todos os que fazem parte de um
inimigos foram mortos. Existe uma grande tendência para exa- mesmo povo. Mil pessoas, cada uma das quais foi informada
geros, principalmente no que diz respeito ao número de ini- no mesmo instante da proximidade de sua morte, reúnem-se
migos mortos. para desviar o perigo. Procuram atrair rapidamente todos os
Enquanto durar a guerra jamais se admitirá que o número que podem ser afetados pela mesma ameaça; reúnem-se em
de inimigos vivos seja excessivo. Mesmo quando se sabe disso, grande densidade, e para sua defesa submetem-se a uma direção
o fato não é comentado; procura-se minimizar este inconve- comum de ação.
niente mediante a distribuição das tropas em combate. Con- Os afetados de ambos os lados em geral se reúnem bas-
forme já observamos, tudo é feito para conseguir, por meio de tante depressa, fisicamente ou no plano das idéias e sentimen-
trocas e de mobilidade constante das divisões do exército, uma
tos. O estouro de uma guerra é, antes de mais nada, o estouro
superioridade no terreno. Somente depois da guerra é que se
de duas massas. Assim que elas se formam, a suprema intenção
mencionam as baixas sofridas.
de cada uma delas é manter-se como convicção e como ação.
As guerras podem durar muito tempo; elas continuam
Renunciar a elas equivaleria a abandonar a própria vida. A
sendo travadas, mesmo quando já estão perdidas; isso está re-
lacionado com a mais profunda tendência da massa: manter-se massa guerreira atua sempre como se tudo o que está fora dela
em estado agudo, não se desintegrar, continuar sendo massa. fosse morte. E o indivíduo, por mais guerras a que tenha so-
Este sentimento às vezes é tão forte que se prefere sucumbir brevivido, voltará a sucumbir a esta mesma ilusão numa nova
em conjunto a reconhecer a derrota e com ela viver a decom- ocasião, sem opor resistência. A morte, que na realidade sempre
posição da própria massa. ameaça cada um, deve ser anunciada como sentença coletiva
Mas como ocorre a formação da massa bélica? O que é para que seja enfrentada de forma ativa. Existem, por assim
que cria num determinado momento esta incrível coesão? O dizer, épocas declaradas de morte nas quais ela se volta contra
que induz o homem repentinamente a arriscar tanto e tudo? um determinado grupo escolhido arbitrariamente. "Agora é
Este processo ainda é tão enigmático que deve ser abordado contra todos os franceses", ou "agora é contra todos os ale-
com bastante cautela. mães". O entusiasmo com o qual os seres humanos recebem
Trata-se de uma empresa surpreendente. Chega-se à con- semelhante declaração tem sua raiz na covardia do indivíduo
clusão de que se está ameaçado de extermínio físico e em relação à morte. Ninguém deseja enfrentá-la sozinho. É
proclama-se esta ameaça publicamente diante do mundo todo. mais fácil fazê-lo a dois, quando dois inimigos executam a sen-
"Eu posso ser morto", diz-se, e por dentro pensa-se: "porque tença reciprocamente; e já não se trata da mesma morte, quan-
quero matar este ou aquele". A ênfase certamente deveria ser do milhares caminham juntos ao seu encontro. O pior que
dada à segunda frase: "Eu quero matar este ou aquele e por Pode acontecer aos homens numa guerra é que morram juntos;
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isto os livra da morte individual, que é o que temem acima de orquestra, mas é importante que se manifestem como uma
tudo. totalidade. Quem os vê ou os vir deve sentir, antes de mais
No entanto eles não acreditam que o pior venha a acon- nada, que eles jamais se desintegrarão. Sua vida fora do cristal
tecer. Eles vêem uma possibilidade de desviar e de evitar a não conta. Mesmo quando se trata de uma profissão, como é o
sentença coletiva que foi decretada contra eles. Seu pára-mortes caso de um músico de orquestra, nunca se pensa em sua exis-
é o inimigo; e tudo o que têm a fazer é agir antes dele. É. tência privada: eles são a orquestra. Em outros casos eles estão
preciso apenas ser suficientemente rápido e não vacilar um uniformizados e é somente assim que os vemos juntos. Eles se
instante sequer diante da morte. O inimigo vem como se convertem em homens muito diferentes quando deixam o uni-
tivesse sido chamado, pois foi ele quem pronunciou a sen- forme. Soldados e monges podem ser considerados como a forma
tença, quem disse "morte!" em primeiro lugar. Sobre ele mais importante desta espécie. Neste caso, o uniforme expressa
recai o que ele mesmo dirigiu contra os outros. É sempre o que os integrantes do cristal moram juntos; mesmo quando
inimigo quem começou. Se ele não foi o primeiro a declará-lo, aparecem separados, pensa-se sempre na sólida unidade à qual
pelo menos já o planejava, e se não o planejava, já tinha pensa- pertencem: o convento ou a divisão de exército.
do nisso; e se ainda não tinha pensado, iria pensar dentro de A clareza, o isolamento e a constância do cristal formam
pouco tempo. A morte como desejo existe por toda parte, e não um contraste agudo e inquietante em relação aos agitados fe-
é preciso ir muito a fundo no ser humano para encontrá-la. nômenos da própria massa. O processo de crescimento rápido
A notável e inconfundível alta tensão, característica de e controlado e a ameaça de desintegração, que confere à massa
todos os acontecimentos bélicos, tem duas causas: querer adian- sua inquietude particular, não estão ativos dentro do cristal.
tar-se à massa e atuar na massa. Sem este último elemento não Mesmo nos momentos de maior agitação, ele sempre se des-
se tem a menor perspectiva de êxito no primeiro. Enquanto taca da massa. Qualquer que seja a massa à qual dê origem, e
durar a guerra é preciso que se permaneça como massa; a por mais que pareça misturar-se com ela, jamais perderá total-
guerra chega ao seu fim quando isto não acontece. A pers- mente o sentimento de sua singularidade, e após a desintegra-
pectiva de certa esperança de vida que se oferece à massa tem ção da massa voltará a reunir-se imediatamente.
contribuído muito para o apreço em que se têm as guerras. A massa fechada não se distingue do cristal apenas por
Pode-se demonstrar que sua densidade e sua duração nos tem- sua maior magnitude, mas também por possuir um sentimento
pos modernos estão relacionados com as massas duplas, multo mais espontâneo de si mesma, e por não poder permitir-se uma
maiores, que se vêem tomadas pela convicção bélica. séria distribuição de funções. A massa nada tem em comum
com o cristal a não ser sua limitação e sua repetição regular.
Porém no cristal tudo é limite; todos os que o integram estão
Cristais de massa constituídos como limite. Para a massa fechada, pelo contrário,
coloca-se um limite fora, talvez na forma e no tamanho do
Por cristais de massa eu designo pequenos e rígidos grupos edifício em que ela se reúne. Dentro deste limite, o lugar em
de homens, fixamente limitados e de grande constância, que que cada um de seus integrantes se encontra com os demais
servem para desencadear massas. É importante que esses permanece fluido e por isso a qualquer momento são possíveis
grupos sejam facilmente controláveis, que possam ser abran- surpresas, atitudes imprevistas e mutáveis. Sempre, também
gidos de uma só vez. Sua unidade é muito mais importante que nesta constituição limitada, a massa fechada pode alcançar um
seu tamanho. Sua função deve ser familiar. É preciso saber grau de densidade e de intensidade que leva ao seu estalo. O
para que existem. Uma dúvida quanto à sua função os privaria cristal de massa, porém, é totalmente estático. Suas atividades
de todo sentido; o melhor é que sempre se mantenham iguais estão prefixadas. Ele é muito consciente de cada manifestação
a si mesmos. Eles não podem ser confundidos. Um uniforme ou movimento.
ou um determinado local de ação é. muito conveniente. Também a permanência histórica do cristal de massa é
O cristal de massa é duradouro. Nunca varia de tamanho. surpreendente. Apesar de se produzirem formas novas, as an-
Seus integrantes aprenderam o que fazer ou que convicção tigas continuam sempre existindo de maneira obstinada e para-
devem ter. Eles podem ter funções distribuídas como uma lela. É possível que, por alguns momentos, elas passem a um
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segundo plano, perdendo algo de sua nitidez e do seu caráter los de massa, pelo contrário, nunca são formados por seres
indispensável. As massas que lhe pertenciam talvez tenham
humanos, sendo apenas percebidos como massa.
sido extintas ou totalmente reprimidas. Como grupos inofen-
A análise detalhada destes símbolos pode à primeira vista
sivos, sem qualquer influência sobre o exterior, os cristais
parecer imprópria em relação ao tema. Porém veremos que
continuam vivendo então para si mesmos. Pequenos grupos desta maneira podemos focalizar a massa propriamente dita de
de comunidades religiosas resistem em países que mudaram de uma forma nova e frutífera. Examinando os seus símbolos,
crença. No momento em que se tornam necessários, voltam lançaremos sobre a massa uma luz nova e não seria inteligente
com segurança, em número proporcional ao das massas que deixar de aproveitar a oportunidade.
tenham surgido e cujo incitamento e desencadeamento possam
ser oportunos. Todos os rígidos grupos "desativados" podem
ser reassumidos e reativados. Eles podem voltar a ser utiliza. O fogo
dos como cristais de massa com pequenas modificações em sua
constituição. Praticamente não existe nenhuma grande mu- Quanto ao fogo, pode-se dizer de antemão que ele se asse-
dança política que não se lembre de antigos grupos destrona- melha em todas as partes: quer seja pequeno ou grande, quer
dos, usando-os, reformando-os com tal intensidade que pos- apareça aqui ou lá, quer tenha grande ou pequena duração,
sam dar a impressão de algo completamente novo e perigosa- para nossa imaginação ele tem algo de igual que independe de
mente ativo. suas contingências. A imagem do fogo nos parece uma marca
Posteriormente veremos como funcionam os cristais de vibrante, inextinguível e determinada.
massa nos seus detalhes. De que maneira eles desencadeiam as O fogo se propaga, é contagioso e insaciável. A violência
massas somente pode ser demonstrado mediante casos concre- com que devasta bosques, estepes e cidades inteiras forma
tos. Os cristais são formados de maneira diversa, por isto dão uma de suas características mais impressionantes. Antes do
origem a massas muito distintas entre si. No decorrer deste princípio do incêndio uma árvore estava junto de outra árvore,
trabalho — de maneira quase imperceptível — entraremos uma casa junto de outra casa, cada qual separada da outra,
em contato com uma série deles. independente. Não resta a menor dúvida de que o que se
encontrava isolado é unido pelo fogo num tempo mínimo. Os
objetos isolados e diferenciáveis se fundem com as próprias
Símbolos de massa chamas. Eles se igualam até o ponto de desaparecerem com-
pletamente: casas, criaturas, tudo é devastado pelo fogo. Ele
Símbolos de massa é o nome que dou às unidades coletivas é contagioso: a pouca resistência às chamas sempre é algo
que não estão formadas por seres humanos, mas que no assombroso. Quanto mais vida tenha alguma coisa, tanto menos
entanto são compreendidas como massas. Unidades deste tipo pode defender-se do fogo; somente o que existe de mais ina-
nimado — os minerais — consegue resistir ao fogo. Sua célebre
são o trigo e a floresta, a chuva, o vento, a areia, o mar e o
falta de misericórdia não conhece limites. Ele quer abranger
fogo. Cada um destes fenômenos contém em si características
tudo, alcançar tudo.
essenciais da massa. Mesmo não sendo constituídos por seres
O fogo pode ocorrer em todos os lugares. Ninguém se
humanos, estes fenômenos lembram a massa e a representam
surpreende com o fato de ocorrer um incêndio aqui ou ali;
em mitos e sonhos, em conversações e em cantos, sempre existe sempre um potencial de fogo em todos os lados. Este
simbolicamente.
surgir de improviso, porém, é sempre impressionante e será
Convém separar estes símbolos dos cristais de forma investigado na procura das causas. Como freqüentemente estas
clara e inequívoca. Os cristais de massa se apresentam como
causas não podem ser encontradas, isto contribui para o sen-
um grupo de homens que chamam a atenção' pela sua coesão
timento reverente vinculado à idéia do fogo. Ele possui uma
e pela sua unidade. Os cristais são concebidos e vivem como
onipresença oculta que pode manifestar-se a qualquer mo-
unidades, mas também são formados por homens que atuam
mento e em qualquer lugar.
realmente: soldados, monges, toda uma orquestra. Os símbo-
O fogo é múltiplo. Não somente temos consciência de que
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existe fogo em inúmeros lugares, mas também de que o fogo Ela pode ser contida e domada. Ela prbcura um inimigo. Ela
em si mesmo é múltiplo: fala-se de chamas e de labaredas. se apaga tão rapidamente como aparece, freqüentemente de
Nos Vedas o fogo é designado como "o Agni uno, o múltiplo modo igualmente inexplicável; e, obviamente, possui a sua
inflamado". própria vida inquieta e violenta. Estas semelhanças entre o
O fogo é destrutivo; ele pode ser combatido e domado; fogo e a massa levaram à sua íntima interpenetração. Ambos
ele se extingue. Ele tem um rival elementar, a água, que o se confundem, podendo aquele assumir o lugar desta. Entre os
enfrenta sob a forma de rios e de chuvas. Este rival sempre símbolos de massa que sempre estiveram ativos na história da
existiu, e com todas as suas diversas qualidades é igual ao humanidade, o fogo é um dos mais importantes e mutáveis.
fogo. A inimizade entre eles é proverbial, "água e fogo" é a É necessário abordar algumas dessas relações entre fogo e
expressão para a inimizade da mais extrema e inconciliável massa.
espécie. Nas mais antigas concepções do fim do mundo, sempre Entre as características mais perigosas da massa, que sem-
é um ou o outro que se torna vencedor. O dilúvio universal pre são destacadas, a que mais chama a atenção é a tendência
faz com que toda a vida pereça na água. A conflagração mun- a incêndios criminosos. Esta tendência tem uma importante
dial destrói o mundo pelo fogo. Às vezes aparecem ambos, raiz no incêndio de florestas. A floresta, que também é um
mutuamente se influenciando, numa mesma mitologia. Mas o antiguíssimo símbolo de massa, muitas vezes é incendiada pelos
homem aprendeu a dominar o fogo na sua existência temporal. seres humanos com a finalidade de criar espaço para que eles
Além de conseguir utilizar sempre algum tipo de água contra possam se estabelecer. Existem bons motivos para se supor
ele, o homem também mantém o fogo dividido. Em fogões e que os homens aprenderam a manipular o fogo pelos incêndios
fornalhas ele é mantido prisioneiro. O homem alimenta o fogo das florestas. Entre floresta e fogo existe uma relação pré-
como se alimenta um animal; ele pode causar sua morte por
histórica. Os campos de cultivo se localizam sempre onde antes
inanição; pode sufocá-lo. E com isto já insinuamos a última
existiam florestas e quando surge a necessidade de os campos
propriedade do fogo: ele é tratado como se tivesse vida pró-
serem ampliados, é sempre preciso destruir novas partes da
pria. Ele tem uma vida inquieta e se apaga. Quando o asfi-
xiamos completamente aqui, ele mesmo assim continua viven- floresta.
do em outros lugares. Se reunirmos estas características isoladas Os animais fogem da floresta incendiada. O terror de
do fogo, teremos uma imagem surpreendente: ele é igual a si massa é a reação natural, e seria possível até mesmo dizer a
mesmo em toda parte; propaga-se com rapidez; é contagioso reação eterna, dos animais perante os grandes incêndios; em
e insaciável; pode originar-se em qualquer lugar e o faz rapi- outros tempos, esta também foi a reação do homem. Este, no
damente; é múltiplo; é destrutivo; tem um inimigo; apaga-se; entanto, apoderou-se do fogo e agora o tem em suas mãos, não
age como se vivesse, e por este motivo é tratado como se trata precisando temê-lo. Ao antigo temor o ser humano sobrepôs
um ser vivo. Todas estas propriedades são também proprieda- seu novo poder e ambos, fogo e homem, formam agora uma
des da massa; dificilmente seria possível fazer um resumo mais surpreendente aliança.
exato dos seus atributos. Voltemos ao que já foi dito: a massa, A massa, que antes punha-se a correr diante do fogo,
em todas as suas partes, é igual a si mesma; nas épocas e nas agora se sente intensamente atraída por ele. Conhece-se o efeito
culturas mais diversas, entre homens de todas as procedências, mágico que os incêndios têm sobre os homens de todas as
idiomas e tipos de educação ela é essencialmente a mesma. categorias. Eles não se conformam com os fogões e fornalhas
Nos lugares onde aparece, ela se amplia com maior violência. que cada grupo estabelecido mantém para seu uso privado;
Poucos conseguem resistir ao seu contágio, ela quer continuar querem um fogo visível a grande distância, junto ao qual todos
crescendo sempre, a partir do seu interior, ela não tem limites se possam reunir. Uma curiosa inversão do velho temor de
fixados de antemão; ela pode constituir-se em todos os lugares massa lhes ordena que se precipitem ao local do incêndio
onde haja homens reunidos e sua espontaneidade e rapidez são somente quando ele for suficientemente grande; lá eles sen-
inquietantes. Ela é múltipla, mas forma uma unidade; é cons- tem algo do magnífico calor que antes os unia. Em tempos de
tituída por um sem-número de seres humanos e nunca se sabe paz, muitas vezes eles são obrigados a abrir mão por longos
exatamente quantos são eles. A massa pode ser destrutiva. Períodos desta vivência. Faz parte dos mais fortes instintos da
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massa, assim que ela se forma, criar o fogo para si mesma, e cinzas ardentes até que o sol se levante recebendo deles o fogo,
utilizar sua atração para o próprio crescimento. o mesmo sol do qual haviam recebido o fogo no anoitecer do
Todo homem leva dentro de seu bolso um pequeno ves- dia anterior.
tígio destas importantes relações antigas: a caixa de fósforos. Aqui, portanto, o fogo ainda é uma massa viva. Assim
Ela representa, de maneira uniforme, uma floresta de troncos como outros índios durante a dança se transformam em bú-
isolados, cada qual equipado com uma cabeça inflamável. Seria falos, estes assumem o fogo. Posteriormente o fogo vivo no
possível acender vários deles, ou até todos, provocando assim qual se transformam os navajos converte-se num simples sím-
artificialmente um incêndio de floresta. O indivíduo pode sen- bolo de massa.
tir-se tentado a fazer isto, mas geralmente não o faz, porque a É possível encontrar para cada símbolo de massa que se
expressão minúscula deste ato estaria totalmente privada de reconhece a massa concreta da qual ele se alimenta. Aqui não
seu antigo esplendor. nos referimos apenas a hipóteses. A tendência do homem a
Porém a atração que o fogo exerce pode ir ainda mais converter-se em fogo, a reativar este antigo símbolo, também
longe. Os homens não se limitam a correr até ele e rodeá-lo; é forte em culturas posteriores mais complexas. Cidades sitia-
existem antigos costumes com os quais eles expressam sua das que já não têm mais esperança de socorro freqüentemente
identificação com o fogo. Um dos mais belos exemplos disto se incendeiam. Reis com toda a sua corte, encurralados e sem
é a famosa dança do fogo dos índios navajos. esperança de salvação, incineram-se. Exemplos disso encontra-
"Os navajos do Novo México preparam uma gigantesca mos tanto nas antigas culturas do Mediterrâneo como entre
fogueira em torno da qual dançam a noite toda. No período os hindus e os chineses. A Idade Média, que acredita no fogo
entre o pôr-do-sol e o amanhecer são representados onze atos do inferno, se contenta com hereges isolados, que ardem em
determinados. Assim que o disco do sol desaparece no hori- lugar do público todo reunido; este, por assim dizer, envia
zonte, os organizadores entram dançando freneticamente na seus representantes ao inferno, certificando-se de que ardem
clareira. Eles estão quase nus e com os corpos pintados; dei- também na realidade. Uma análise do significado que o fogo
xam seus longos cabelos soltos para que se movimentem livre- assumiu nas diversas religiões seria do maior interesse. Porém
mente. Trazem consigo bastões de dança enfeitados com plu- esta análise somente teria valor se fosse realmente exaustiva
mas na extremidade; dando saltos selvagens, eles se aproximam e por esse motivo deve ficar para mais tarde.
das altas labaredas. Estes índios dançam em atitude desajeita- Entretanto parece-nos válido mencionar já aqui o signi-
da, meio agachados, meio rastejando. Na verdade, o fogo é ficado que os atos incendiários impulsivos têm para o indi-
tão quente que os atores precisam rastejar no chão para po- víduo que os comete; o indivíduo que está realmente isolado
der se aproximar dele. Eles querem incendiar as plumas que e que não pertence ao círculo de uma convicção religiosa ou
enfeitam as extremidades de seus bastões. Um disco, que re- política.
presenta o sol, é erguido e em torno dele tem prosseguimento Kriibelin narra o caso de uma mulher solitária, de meia-
a dança selvagem. Cada vez que o disco desce e torna a ser idade, que em sua vida provocara cerca de vinte incêndios, os
erguido, tem início uma nova dança. Quando já está quase primeiros ainda em sua infância. Ela é acusada seis vezes de
amanhecendo, as cerimônias sagradas se aproximam do final. incêndio intencional e passa mais de vinte e quatro anos numa
Homens pintados de branco avançam e acendem pedaços de penitenciária. "Se ao menos isto ou aquilo se queimasse", diz
cascas nas últimas brasas da fogueira; depois voltam a saltar ela em sua idéia fixa. Principalmente quando tem fósforos na
numa caçada selvagem em torno do fogo, jogando fagulhas, bolsa, ela se sente impulsionada por um ímpeto invisível. A
fumaça e chamas sobre todo o corpo. Eles chegam a saltar até única coisa que lhe importa é contemplar o fogo. Mas ela tam-
mesmo dentro das brasas, confiando na argila branca que os bém gosta de confessar seus feitos e o faz com muitos deta-
deve proteger de queimaduras mais sérias." lhes. Desde muito jovem ela deve ter experimentado o valor
Eles dançam no fogo, eles se convertem em fogo. Seus do fogo como meio de atrair as pessoas. Provavelmente a
movimentos são os das chamas. O que eles seguram em suas aglomeração em torno de um incêndio foi sua primeira impres-
mãos e incendeiam deve causar a impressão de que eles mesmos são de massa. O fogo pôde então facilmente ocupar o lugar
estão ardendo. No final dispersam as últimas fagulhas das da própria massa. Ela é impelida em direção de sua culpa e a
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assumir esta culpa pela sensação de que todos olham para pertence ao mar: são as gotas. Elas estão isoladas, são apenas
ela. É isto que ela deseja e através disto ela própria se trans- gotas; quando não estão coesas entre si, seu pequeno tamanho
forma no fogo que é contemplado. Sua relação com o ato e seu isolamento têm algo de impotência. São quase nada e
incendiário tem portanto um caráter duplo. Por um lado ela despertam um sentimento de compaixão no observador. Basta
quer ser parte da massa, que observa fixamente o fogo. Ele mergulhar a mão na água, erguê-la e observar as gotas que,
está nos olhos de todos ao mesmo tempo, reunindo estes olhos fracas, escorrem dela. A compaixão que se sente por elas pode
através de uma violenta compulsão. Ela não tem a menor opor- ser comparada à que é provocada em nós pelos homens sem
tunidade de ingressar numa massa, e menos ainda durante os esperança, pelos marginalizados. As gotas somente voltam a
intermináveis períodos de cárcere, por causa de seus miseráveis contar quando não podem mais ser contadas, quando voltam
antecedentes que a isolaram desde muito pequena. Depois, a formar um amálgama com o todo.
quando este primeiro incidente do incêndio se encerra e a massa O mar possui uma voz, que é extremamente mutável e
ameaça escapar das mãos dela, ela a mantém em vida, trans- que se escuta sempre. Trata-se de uma voz que soa como mil
formando-se ela mesma em fogo. Isto acontece da maneira vozes. Muitas nuanças podem ser ouvidas nela: paciência, dor,
mais simples: ela confessa o ato incendiário. Quanto mais de- cólera. Porém, o que mais impressiona nesta voz é a sua tena-
talhada seja sua confissão, quanto mais ela tenha a dizer a este cidade. O mar nunca adormece. Ele é ouvido o tempo todo:
respeito, tanto maior será o período durante o qual ela é de noite, de dia, durante anos, decênios; sabe-se que ele já
observada com atenção, justamente porque ela mesma é o fogo. podia ser ouvido há séculos atrás. Tanto no seu ímpeto como
Casos deste tipo não são tão raros como se pensa. Mesmo na sua rebeldia, ele lembra uma única criatura que compar-
não sendo sempre tão extremos, eles nos fornecem, do ponto tilha destas características com ele: a massa. Porém ele tem a
de vista do indivíduo isolado, a prova irrefutável da relação constância que falta a esta. Ele não desaparece de tempos em
existente entre a massa e o fogo. tempos; ele está sempre presente. O desejo máximo e nunca
alcançado da massa, ou seja, o desejo de perdurar, é represen-
tado pelo mar como algo já conseguido.
O mar O mar engloba tudo e jamais atinge um ponto de satu-
ração. Todos os rios, as correntes fluviais, ªs nuvens e as
O mar é múltiplo, está em movimento e possui uma densa demais águas da Terra poderiam ser despejados no mar, sem
coesão. O múltiplo nele são as ondas que o constituem. Elas que seu tamanho aumentasse perceptivelmente; ele não se
são incontáveis; qualquer pessoa que esteja no mar, encon- modificaria e teríamos sempre a sensação de que se trata
tra-se rodeada de ondas por todos os lados. O caráter uni- sempre do mesmo mar. Ele é tão grande que pode servir de
forme do seu movimento não exclui diferenças de tamanho modelo à massa que deseja tornar-se cada vez maior. A mas-
entre elas. Elas jamais estão numa calma total. O vento, que sa gostaria de se tornar grande como o mar, e para atingir
vem de fora, determina sua direção; as ondas rolam ora num, isto ela procura atrair quantidades cada vez maiores de ho-
ora noutro sentido, seguindo as ordens dele. A densa coesão mens. Na palavra oceano o mar encontrou algo semelhante
das ondas expressa também o que sentem os homens que à sua mais festiva e solene dignidade. O oceano é universal;
fazem parte de uma massa: flexibilidade em relação aos de- ele chega a todas as partes, banha todas as terras; é sobre
mais, como se um determinado indivíduo fosse os demais, ele que, nas concepções antigas, flutua a Terra. Se o mar não
como se já não fosse mais limitado por si mesmo, como se se fosse insaciável, a massa não teria uma imagem para sua pró-
tratasse de uma dependência da qual não existe maneira de pria insaciabilidade. Ela não poderia se conscientizar de ma-
escapar e, justamente, em contrapartida, aparece uma sensação neira tão clara de seu próprio impulso mais profundo e obs-
de força, um ímpeto que é dado por todos em conjunto. A curo, a necessidade de atrair números cada vez maiores de
índole peculiar desta coesão entre os homens é desconhecida. componentes. No entanto o oceano, que naturalmente se en-
O mar também não consegue explicá-la, expressando-a porém contra diante dos olhos da massa, lhe confere um direito
muito bem. mítico à sua indomável aspiração de universalidade.
No entanto, além das ondas, existe outro múltiplo que Apesar do mar ser mutável nos seus caprichos, podendo
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apaziguar e ameaçar, podendo irromper em tormentas, ele a direção da queda; todas as demais têm, comparadas com
está sempre presente. Sabe-se onde ele se encontra; sua loca- ela, algo de derivado, de secundário. A queda é o que mais
lização tem algo de aberto, de descoberto. Ele não nasce re- se teme desde os tempos mais remotos, e contra o que nos equi-
pentinamente onde antes não havia coisa alguma. Ele não pamos durante toda a vida. Aprende-se a procurar uma pro-
possui a característica misteriosa e repentina do fogo, que teção para a queda; fracassar neste sentido a partir de uma
ataca a partir do nada, feito um animal selvagem e que, como certa idade é algo ridículo ou perigoso. A chuva é, ao contrá-
tal, pode surgir de qualquer parte. O mar é encontrado ape- rio do ser humano, aquilo que deve cair. Nada cai com tanta
nas nos lugares onde sabemos com certeza que ele está. freqüência e em tal quantidade quanto a chuva. É possível
No entanto não se pode afirmar que ele careça de mis- que o número de gotas retire da queda uma parte de seu peso
tério. Seu mistério não reside na característica do repentino, e de sua dureza. Ouve-se quando elas batem no chão e este é
mas sim no seu conteúdo. A vida da massa, da qual ele está um ruído agradável. Sentimos as gotas na pele e esta sensação
repleto, faz parte tão intrínseca dele como a sua constância. é agradável. É possível que não deixe de ser importante o fato
Desta maneira a grandiosidade desta formação é realçada ainda de que pelo menos três sentidos participem da vivência da
mais pela idéia do seu conteúdo: todos os vegetais e animais chuva: visão, audição e tato. Todos esses sentidos compreen-
que ele contém em quantidades imensas. dem a chuva como algo múltiplo. É fácil proteger-se contra
O mar não tem limites internos e não está dividido em ela. Poucas vezes chega a ser realmente ameaçadora e na maior
pequenos povos e territórios. Ele tem apenas um idioma, que parte das vezes envolve o ser humano de maneira tensa e
é o mesmo em todas as partes. Não existe, por assim dizer, agradável.
homem algum que possa ser excluído dele. Ele é por demais Sentimos a queda de todas as gotas como algo uniforme.
abrangente para que possa corresponder a alguma das massas O paralelismo dos traços, a uniformidade do ruído, a mesma
que conhecemos. Mas ele é o modelo de uma humanidade sa- sensação de umidade que cada gota provoca na pele — tudo
ciada em si mesma, na qual desemboca toda a vida e que isso contribui para acentuar ainda mais a impressão de igual-
tudo contém. dade das gotas.
A chuva pode ser mais intensa ou mais leve, sua densi-
dade é variável. O número de suas gotas está sujeito a gran-
A chuva des flutuações. Nunca se espera um aumento cada vez maior;
pelo contrário, sabemos que tudo terá um fim e que este fim
Em todas as partes e principalmente lá onde é escassa, a significa que as gotas irão sumir no solo sem deixar rastro.
chuva, antes de cair, é percebida como unidade. Ela se aproxi- Como símbolo de massa, a chuva não caracteriza o cresci-
ma em forma de nuvem e primeiro cobre o céu, que escurece mento frenético e imperturbável que é representado pelo fogo.
antes de chover; tudo fica cinzento. É possível que se possua Ela não tem a constância e apenas ocasionalmente tem a carac-
uma consciência mais unificada daquele instante em que a terística inesgotável do mar. A chuva é a massa no instante
chuva parece segura que do próprio sucesso, pois freqüen- de sua descarga, e por isso caracteriza também sua desinte-
temente podemos desejá-la com grande intensidade, pode gração. As nuvens das quais elas se originam desaparecem com
transformar-se numa questão vital o fato de chover. Nem sem- a chuva; as gotas caem porque já não podem mais permanecer
pre é fácil fazer com que isto aconteça, e ajuda-se a situação juntas e não se sabe se elas posteriormente voltarão a se reu-
com feitiços; existem métodos numerosos e muito diversos nir nem como farão isso.
para atraí-la.
A chuva cai sob a forma de muitas gotas. Elas são visí-
veis e são vistas todas movimentando-se na mesma direção. O rio
Em todos os idiomas diz-se que a chuva cai. A chuva é vista
como muitos traços paralelos; devido ao número das gotas que O que mais chama a atenção no rio é sua direção. Ele se
caem, acentua-se a unidade de sua direção. Não existe direção movimenta entre margens estáticas, nas quais é visível a sua
capaz de causar uma maior impressão ao ser humano do que passagem incessante. A ausência de repouso de suas massas de
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água, que se sucedem de forma ininterrupta enquanto o rio contém muitos elementos diversos em si, e o que transporta é
é um rio, o caráter decidido da sua direção geral, mesmo po- mais importante e determinante para seu aspecto do que o que
dendo variar em casos isolados, sua decisão de caminhar para está incluído no mar e que desaparece debaixo de sua enorme
o mar, sua incorporação de outros rios menores, tudo isto lhe superfície.
confere um inegável caráter de massa. Desta forma o rio se Unindo todos esses fatores, poderíamos considerar o rio
transforma também em um de seus símbolos, porém não tanto como símbolo de massa apenas limitadamente. Ele o é de ma-
da massa em si, mas sim das formas singulares de sua mani- neira muito diferente da do fogo, do mar, da floresta ou do
festação. A limitação da largura, do que não pode aumentar de trigo. Ele é símbolo de um estado ainda dominado, antes do
maneira contínua e repentina, faz com que o rio, como sím- estalo e antes da descarga; representa mais sua ameaça do que
bolo de massa, tenha sempre algo de provisório. Ele repre- sua realidade: é o símbolo da massa lenta.
senta as procissões: os homens que observam das calçadas da
rua são como as árvores nas margens, o sólido encerra o que
é fluido. As manifestações em grandes cidades têm uni caráter A floresta
semelhante ao do rio. Dos diferentes bairros chegam os afluen-
tes até que se forme a corrente principal propriamente dita. A floresta está acima dos seres humanos. Ela pode ser
Os rios são principalmente um símbolo para o tempo em que espessa e com uma abundante vegetação rasteira; é possível
se forma a massa, o tempo em que ela ainda não alcançou o que seja difícil penetrar nela, e mais difícil ainda avançar den-
que chegará a ser. Ao rio falta a universalidade do mar e a tro dela. Porém sua densidade propriamente dita, aquilo que
força de propagação do fogo. Porém, por outro lado, sua dire- realmente a constitui, sua folhagem, está em cima. Ë a folha-
ção é levada ao extremo e, como cada vez existe mais água, gem de cada um dos troncos, que se entrelaça e forma um teto
ele se transforma, por assim dizer, desde o começo, numa di- contínuo; é a folhagem que retém quase toda a luz lançando
reção que parece inesgotável e que talvez seja levada mais a uma sombra extensa e conjunta.
sério em sua origem do que em sua meta. O homem, vertical como uma árvore, alinha-se entre as
O rio é a massa em sua vaidade, a massa que se exibe. demais árvores. Porém elas são muito mais altas do que ele
O elemento de exibição não é menos significativo que o de e, para vê-las, ele precisa levantar os olhos. Não existe outro
direção. Sem margens não existe rio. A fileira dupla da vege- fenômeno natural no seu ambiente que esteja acima dele de
tação é como a dos homens. O rio, poderíamos dizer, possui maneira tão permanente e ao mesmo tempo tão próxima e tão
uma pele que quer ser vista. Todas as formações de caráter múltipla. As nuvens passam, a chuva some e as estrelas estão
fluvial — como procissões e manifestações — mostram a distantes. De todos esses fenômenos, que em sua multiplici-
maior parte possível de sua superfície: elas se esticam o mais dade atuam de cima para baixo, nenhum possui a proximidade
que podem, exibindo-se ao maior número possível de especta- permanente da floresta. A altura das árvores é alcançável. É
dores. Elas querem ser admiradas ou temidas. Sua meta ime- possível subir nelas para colher os frutos; quando isso acon-
diata não é realmente importante, importante é o tamanho do tece, é possível dizer que já se viveu lá em cima.
espaço que as separa dos espectadores, o comprimento das ruas A direção que atrai os olhos do homem é a de sua própria
pelas quais elas se estendem. Quanto à densidade, não transformação: a floresta cresce constántemente de baixo para
existe um caráter decisivo entre os participantes. Ele é maior cima. A igualdade dos troncos é aproximada, sendo também,
entre os espectadores e se estabelece uma densidade especial na verdade, uma igualdade de direção. Quem está na floresta
entre os participantes e os espectadores. Existe algo de aproxi- sente-se protegido; ele não está na parte superior onde a flo-
mação amorosa entre duas criaturas muito compridas, uma das resta continua crescendo, e também não está no local de sua
quais mantém a outra prisioneira, permitindo que ela deslize maior densidade. Justamente esta densidade é sua proteção
lenta e ternamente ao longo de si própria. O crescimento ocor- e a proteção está lá em cima. E assim a floresta se converteu
re a partir da vertente, porém através de afluentes estrita- num modelo de recolhimento. Ela obriga o homem a levantar
mente predeterminados no espaço. os olhos, agradecido pela sua proteção superior, O levantar
A igualdade das gotas é subentendida no rio. Porém ele dos olhos ao longo de tantos troncos se transforma num olhar
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mais elevado. A floresta antecipa o sentimento de igreja, o de rência. Seu ritmo, quando é agitado pelo vento, é semelhante
estar diante de Deus entre colunas e pilastras. Sua expressão ao de uma simples dança.
mais regular, e portanto mais perfeita, é a curvatura da cúpula, A igualdade do homem perante a morte é vista com
todos os troncos entrelaçados formando uma unidade suprema agrado na imagem do trigo. No entanto, como este cai sempre
e inseparável. em conjunto, ele provoca a imagem de um tipo muito preciso
Outro e não menos importante aspecto da floresta é a sua de morte: a morte coletiva na batalha, quando são extermina-
imobilidade múltipla. Cada um dos troncos está enraizado e das fileiras inteiras de soldados; o trigal é como o campo de
não cede diante de ameaça alguma. Sua resistência é absoluta, batalha.
nunca cedendo seu lugar. O tronco pode ser cortado, mas não A flexibilidade se converte em submissão; ela tem algo
movido. Assim, a floresta se converteu num símbolo do exér- de uma reunião de súditos fiéis que jamais seriam capazes de
cito: um exército em formação, um exército que não foge em conceber um pensamento de resistência. Levemente estreme-
circunstância alguma; que se deixa despedaçar até o último cidos pelo sentimento de obediência, receptivos a qualquer
homem antes de ceder um único palmo de terreno. ordem, permanecem assim. Quando o inimigo se abate sobre
eles, são pisoteados sem piedade.
A origem do trigo a partir de um amontoado de semen-
O trigo tes é tão importante e característica como os montes de grãos,
que são o resultado final. Pouco importa se o resultado da
Sob mais de um aspecto o trigo é uma floresta reduzida. colheita for sete ou cem vezes maior, os montes de grãos que
Ele cresce onde antes estava a floresta, mesmo nunca chegando vão sendo armazenados são sempre um múltiplo do monte
a alcançar a altura dela. O trigal pertence inteiramente ao ho que lhes deu origem. Crescendo e ficando unido, o trigo se
mem e é uma obra dele. É ele quem o semeia, é ele quem o multiplicou. É nesta multiplicação que está a sua bênção.
ceifa; nos antigos rituais, o homem realiza cerimônias para que
ele cresça melhor. Ele é flexível como os pastos, exposto à
influência de todos os ventos. Todos os talos cedem juntos ao O vento
impulso do vento, o trigal todo se inclina de uma só vez. Du-
rante tempestades ele é abatido inteiramente e permanece caído Sua intensidade varia, e com ela a sua voz. Ele pode ge-
durante longo espaço de tempo. No entanto ele possui a mis- mer ou uivar, pode ser forte ou fraco, e existem poucas notas
teriosa capacidade de voltar a se erguer outra vez e, desde que que ele não possa alcançar. Desta maneira, ele age como algo
não tenha sido seriamente afetado, não demora muito para vivo, mesmo muito tempo depois de outros fenômenos natu-
retomar sua antiga posição. As espigas crescidas são como ca- rais terem perdido sua característica de coisa viva para os seres
beças pesadas; elas se inclinam afirmativas em nossa direção humanos. Além da voz, o que mais chama a atenção nele é a
ou se viram, dependendo de onde sopre o vento. direção. Para caracterizá-lo, é importante saber de onde sopra.
Normalmente a altura do trigo é inferior à do ser huma- Como estamos inteiramente rodeados pelo ar, os golpes que
no. No entanto, de qualquer forma, ele, o homem, continua recebemos do vento são sentidos de uma maneira multo física;
sendo senhor do trigo, mesmo quando este cresce acima de sentimos que estamos totalmente dentro do vento, ele tem
sua cabeça. O trigo é cortado em conjunto, da mesma forma algo de unificador; na tempestade ele gira tudo o que encon-
que cresceu e foi semeado em conjunto. Até os restos que o ser tra diante de si.
humano não aproveita para sí mesmo permanecem sempre jun- Ele é invisível, mas o movimento que confere às nuvens
tos. Mas muito mais coletivo é o destino do trigo que é semea- e às ondas, às folhas e às plantas, dá-lhe uma presença que
do, cortado e colhido, batido e armazenado. Enquanto cresce, se faz sentir de múltiplas maneiras. Nos hinos dos Vedas, os
ele permanece enraizado; não pode se afastar dos outros talos. deuses da tormenta, os maruts, aparecem sempre no plural.
O que acontece, acontece a todos. Ele possui uma grande den- Deles existem três vezes sete ou três vezes sessenta. Eles são
sidade, e sua altura não é muito diferente da dos homens; no irmãos da mesma idade, moram no mesmo lugar e nasceram
seu conjunto, ele sempre tem mais ou menos a mesma apa- no mesmo local. Seu barulho é o trovão e o choro do vento.
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Eles sacodem as montanhas, derrubam as árvores e engolem, A relação do homem com a areia do deserto prepara al-
como elefantes selvagens, as florestas. Freqüentemente tam- gumas de suas atitudes posteriores: a luta que ele tem de tra-
bém são chamados de "cantores": o canto do vento. Eles são var com força crescente contra numerosos inimigos muito pe-
poderosos, iracundos e terríveis como leões, mas também são quenos. A areia é seca e esta sua característica foi transferida
travessos e gostam de brincar como as crianças e os bezerros. para os gafanhotos. O homem que cultiva as plantas teme os
A antiguíssima identificação da respiração e do vento de- gafanhotos como teme a areia, porque o que eles deixam atrás
monstra a maneira concentrada como o sentimos. Ele possui de si após sua passagem é um deserto.
a densidade da respiração. Mas, justamente em sua invisibili- Surpreende o fato de a areia ter podido transformar-se
dade, ele se torna apropriado para simbolizar massas invisí- num símbolo da descendência. Mas o fato, que conhecemos tão
veis. Desta forma, ele é atribuído aos espíritos (como uma bem pela Bíblia, demonstra quão intenso é o desejo da multi-
tormenta se aproxima feito um exército selvagem), ou podem plicação. Aqui o enfoque não é dado apenas à qualidade. É
ser espíritos em fuga, como os da visão do xamã esquimó. certo que se deseja para si mesmo um grande número de filhos
As bandeiras são o vento que se torna visível. Elas são fortes e virtuosos, mas para um futuro mais distante, como
como pedaços cortados de nuvens, mais próximos e mais co- soma da vida de várias gerações, queremos uma massa de des-
loridos, pertencem aos homens e têm uma forma permanente. cendentes que seja a mais extensa possível, e ao mesmo tempo
Elas chamam a atenção pelo seu movimento. Os povos, como a mais numerosa, incontável; e a massa mais numerosa que se
se fossem capazes de dividir o vento, valem-se das bandeiras conhece é a da areia. Num símbolo semelhante adotado pelos
para demonstrar publicamente que o ar existente acima deles chineses, é enfatizado o fato de que pouco importa a valori-
lhes pertence. zação individual dos descendentes. Lá os descendentes são
identificados com um enxame de gafanhotos, cuja imensidade
numérica, solidariedade e não-interrupção se transmitem à des-
A areia cendência.
Outro símbolo que a Bíblia também emprega para com-
Das propriedades da areia, que são importantes dentro parar a descendência são as estrelas. Também aqui trata-se
deste contexto, é preciso destacar principalmente duas. Temos principalmente da quantidade; elas são incontáveis; obviamen-
por um lado a sua pequenez, a igualdade entre todas as suas te não se trata da qualidade de determinadas estrelas isoladas
partes. Tudo isto forma uma única característica, pois os grãos e mais destacáveis. Mas o mais importante é o fato de elas
de areia somente são percebidos em conjunto devido ao seu permanecerem para sempre. As estrelas nunca passam, estão
diminuto tamanho. Por outro lado, temos o infinito da areia. sempre presentes.
Ela não pode ser avaliada, sempre existe mais areia do que se
pode abranger com a vista. Quando ela aparece em montes
pequenos, não se dá atenção a ela. Realmente ela é notória Os montes
apenas onde é incontável, como na praia e no deserto. O mo-
vimento incessante da areia tem como conseqüência que ela é Os homens reuniram em um mesmo grupo todos os mon-
colocada mais ou menos a meio-termo entre os símbolos de tes que têm alguma importância para eles. A unidade do
massa líquidos e os sólidos. Ela forma ondas como o mar, pode monte formado por frutas ou grãos é o resultado de uma ati-
subir no ar como nuvem; a poeira é uma areia ainda mais fina. vidade. Muitas mãos participaram da colheita; esta depende
Uma característica significativa é a ameaça da areia, a maneira de uma determinada época do ano, e tem portanto uma impor-
como ela se opõe ao homem isolado como algo agressivo e tância primordial, ou seja, ela determina a mais antiga divisão
hostil. O deserto inanimado, uniforme e colossal, enfrenta o do ano. Os homens exprimem com festas sua alegria em relação
homem com um poder quase insuperável: ele é formado por ao monte que conseguiram formar. Eles expõem estes montes
inúmeras partículas da mesma espécie. Ele sufoca o homem com muito orgulho. Freqüentemente as festas são realizadas
exatamente como o mar, mas de maneira muito mais traiçoeira, em torno destes montes.
porque leva mais tempo. As coisas reunidas são todas de uma mesma natureza;
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de homens que os construíram, tanto mais profunda a im-
um determinado tipo de fruta, um determinado tipo de grão.
pressão que produzem nas gerações posteriores. Eles repre-
As coisas reunidas são amontoadas na maior densidade possí-
sentam o esforço mítico de muitos, dos quais nada resta a
vel. Quanto maior a quantidade e a densidade, tanto melhor.
Um monte significa que se tem muito à disposição, não preci- não ser esse monumento indestrutível.
sando mais trazer as coisas de longe. O tamanho do monte é
importante. As pessoas se orgulham dele; somente quando ele
tem um tamanho suficiente é que pode perdurar por muito O tesouro
tempo e ser de utilidade para todos. Desde que as pessoas
Também o tesouro, como todos os montes, foi acumulado.
se acostumem à formação do monte, este jamais será dema-
siadamente grande. Elas se recordam principalmente dos anos Mas em vez das frutas e dos grãos eles têm como unidades
que lhes trouxeram as maiores bênçãos. Nos anais estes anos formadoras elementos que não podem servir de alimento e
são anotados como os mais felizes. As colheitas competem que não são perecíveis. Importante é o valor especial destas
entre si de ano para ano, ou de local para local. Pouco importa unidades e somente a confiança na durabilidade deste valor
que os montes pertençam a uma comunidade ou a um indi- incentiva a formação do tesouro. Ele é um monte que deve
víduo; de qualquer forma eles servem de modelo e garantem permanecer intato e que deve crescer. Quando pertence a um
poderoso, ele seduz outros poderosos a tentativas de roubos.
segurança.
É verdade que estes montes são consumidos, em alguns O prestígio que ele confere a seu proprietário coloca este
em perigo. Lutas e guerras se originaram pela conquista de
lugares, de maneira muito rápida, em ocasiões especiais. Outras
tesouros e muitas pessoas poderiam ter vivido mais tempo se
vezes são consumidos lentamente, de acordo com a necessi-
dade. Sua constância é limitada, sua diminuição faz parte da possuíssem tesouros menores. Por este motivo ele forçosa-
idéia que se tem do monte desde o início. Sua reconstituição mente é guardado em segredo. A característica peculiar do
depende do ritmo das estações do ano ou das chuvas. Todas as tesouro reside conseqüentemente na tensão entre o brilho que
colheitas formam montes rítmicos e a realização das festas ele deve difundir e o segredo que o protege.
é determinada a partir deste ritmo. O prazer voluptuoso do número que cresce repentina-
mente se desenvolveu em sua forma mais perceptível no te-
souro. Todas as demais contagens que buscam resultados cada
Montes de pedra vez mais elevados — as de gado e de homens, por exemplo
— não podem alcançar a mesma concentração dos elementos
Mas existem também montes completamente diferentes, que contados. A imagem do dono que conta secretamente seu te-
não são comestíveis. Montes de pedra são formados porque é souro está tão profundamente gravada no espírito do homem
muito difícil desmontá-los novamente. Eles são construídos como a esperança do tesouro que é descoberto de maneira
para durarem muito tempo, uma espécie de eternidade. Eles repentina: ele está tão bem escondido que já não pertence
não devem diminuir jamais, devem continuar sendo o que são. mais a ninguém, seu esconderijo acabou sendo esquecido. Exér-
Não são transferidos para os estômagos e ninguém vive dentro citos bem disciplinados foram atacados e sucumbiram devido
deles. Na sua forma mais antiga, cada pedra representa o a esta súbita avidez de tesouros; muitos triunfos acabaram
homem que a levou para o monte. Posteriormente aumenta o sendo transformados em derrotas. A transformação de um
tamanho e o peso das partes que constituem esses montes, e exército num bando de homens à procura de tesouros, antes
eles somente podem ser formados graças aos esforços de muitos. mesmo de participarem de uma batalha, é narrada por Plutarco
em sua obra Vida de Pompeu.
Sem contar o significado destes montes, eles sempre contêm
em si os esforços concentrados de inúmeros e árduos cami- "Pompeu mal acabara de atracar sua frota nas proximi-
nhos. Muitas vezes a forma como eles foram construídos é dades de Cartago, quando sete mil homens dos inimigos passa-
um enigma. Quanto menos se compreende sua presença, quanto ram para seu lado; ele mesmo trouxera seis legiões completas
para a África. Ocorreu então um curioso incidente. Alguns
mais distante seja a procedência da pedra e quanto mais longos
soldados encontraram casualmente um tesouro e obtiveram
os caminhos percorridos, tanto maior deve ter sido o número
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uma soma considerável de dinheiro. Quando isto se tornou
conhecido, todos os demais soldados tiveram a idéia de que
a região deveria estar repleta de riquezas que os cartagineses
teriam enterrado anteriormente, em seus tempos de infortúnio.
Durante muitos dias Pompeu nada pôde fazer com seus sol-
dados, que se preocupavam apenas com a procura de tesouros.
Rindo, ele passeava e observava os milhares de homens que
cavavam e reviravam o solo. Finalmente eles se cansaram da
busca e pediram a Pompeu que os conduzisse para onde A MALTA
quisesse, uma vez que já estavam suficientemente castigados
pela sua tolice."
Ao lado destes montes que se tornam irresistíveis por esta-
rem ocultos, existem outros que são reunidos de forma pública,
como uma espécie de imposto voluntário, na esperança de
serem concedidos posteriormente a um só ou a um pequeno
grupo de indivíduos afortunados. Todas as formas de loterias
devem ser incluídas nesta categoria; elas são formações rápidas
de tesouros: sabe-se que logo depois de verificado o resultado,
serão entregues ao feliz contemplado. Quanto menor for o
número dos ganhadores, ou seja, quanto maior for o tesouro,
tanto maior será sua atração.
A cobiça que une os homens nestas ocasiões pressupõe
uma confiança absoluta na unidade do tesouro. Dificilmente
se conseguirá fazer uma imagem exagerada da força desta
confiança. O homem se identifica com seu dinheiro. Uma
dúvida a respeito de seu valor o ofende; um abalo no seu
valor faz com que se abale também a confiança que ele tem
em si mesmo. Na desvalorização de sua unidade monetária se
atinge o próprio homem, que é diminuído. Quando a veloci-
dade deste processo aumenta, quando se chega ao caso de uma
inflação, os homens despojados se agrupam em formações que
se identificam inteiramente com as massas de fuga. Quanto
mais os homens perdem, tanto mais eles se identificam com
seu destino. O que em alguns privilegiados que estão em condi-
ções de salvar alguma coisa para si mesmos, parece pânico, trans-
forma-se para todos os demais que foram despojados de seu
dinheiro, e que portanto são iguais na pobreza, numa fuga
de massa. As conseqüências deste fenômeno que principalmente
no nosso século teve um alcance histórico imprevisível serão
tratadas em outro capítulo.
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Malta e maltas
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utilização em civilizações mais complexas. Sempre que se trata mais forte. Caso ela tenha consentido, isto se deve ao fato de
de provocar a rápida aparição de massas, elas são utilizadas ter sido enganada por ele. A idéia desta superioridade é o mais
constantemente como cristais de massa. insuportável para eles e os obriga a se juntarem contra ele.
Mas também muito do que existe de arcaico na vida das Como animal feroz — ele atacou uma mulher — ele é acos-
nossas culturas modernas se expressa sob a forma de maltas. sado e morto por todos. O assassinato dele lhes parece permi-
A nostalgia por uma existência simples ou natural, por um tido e necessário, proporcionando-lhes uma franca satisfação.
desprendimento das crescentes pressões e coerções do nosso
tempo, tem exatamente este conteúdo: o desejo de uma vida
em maltas isoladas. Caça à raposa na Inglaterra, viagens tran- Maltas nas lendas históricas dos arandas
soceânicas em pequenas embarcações com tripulação reduzida,
retiros espirituais em conventos, expedições a países desconhe- Como se desenha a malta na mente dos aborígines aus-
cidos, até mesmo o sonho de viver com poucas pessoas numa tralianos? Duas lendas ancestrais dos arandas apresentam uma
natureza paradisíaca, onde tudo por assim dizer se multiplica imagem clara a este respeito. A primeira trata de Ungutnika,
por conta própria, sem exigir o mínimo esforço por parte dos célebre canguru dos míticos tempos primordiais. Relata-se o
homens — comum a todas estas situações arcaicas é a idéia seguinte a respeito de suas aventuras com os cães selvagens:
de um número reduzido de pessoas que se conhecem bem entre "Ele ainda não era adulto, era um animal pequeno quan-
si e que participam de um empreendimento claro e preciso, do partiu em peregrinação. Depois de ter viajado umas três
com grande determinação ou delimitação. milhas, mais ou menos, chegou a uma planície aberta onde viu
Ainda hoje podemos encontrar uma forma descarada da uma malta de cães selvagens. Estavam deitados perto de sua
malta em todo ato de justiça de linchamento. A expressão é mãe, que era muito grande. Ele brincou por ali e examinou os
tão descarada como o próprio ato, pois trata-se de uma supres- cães selvagens; neste momento eles o perceberam e começaram
são da justiça. O acusado é considerado indigno dela. Ele deve a dar-lhe caça. Ele saltava tão depressa quanto possível para
sucumbir como um animal, sem as formalidades habituais entre escapar, mas eles o alcançaram numa outra planície. Rasgaram-
os homens. Sua diferença na aparência e no comportamento, lhe o ventre e comeram primeiro seu fígado, depois lhe arran-
o abismo que no sentimento dos assassinos existe entre eles e caram a pele, jogando-a de lado, e lhe arrancaram toda a carne
sua vítima, facilita-lhes tratá-la como uni animal. Quanto mais dos ossos. Assim que terminaram, voltaram a deitar-se outra
ela escapa deles pela fuga, tanto maior é o prazer com que vez.
eles se transformam em malta. Um homem com todas as suas "Mas Ungutnika não estava completamente destruído,
forças, capaz de correr bem, proporciona-lhes a oportunidade uma vez que sua pele e seus ossos ainda restavam. Diante dos
de uma caçada que eles aceitam com prazer. Por sua natureza olhos dos cães, a pele se moveu e se colocou sobre os ossos.
esta caçada não pode ser muito freqüente e é possível que este Ele ergueu-se novamente e fugiu correndo. Os cães o segui-
aspecto a torne ainda mais excitante. As crueldades que os as- ram e o alcançaram desta vez perto de Ulima, uma colina. Uli-
sassinos se permitem em relação à vítima talvez se expliquem ma significa fígado e tem este nome porque desta vez eles não
com o fato de eles não poderem devorar sua presa. Provavel- comeram o seu fígado, preferindo jogá-lo fora; e o seu fígado
mente eles se consideram seres humanos por não fincarem seus se transformou numa colina escura que assinala este lugar. O
dentes na vítima. que já tinha acontecido antes voltou a acontecer e Ungutnika,
A acusação de índole sexual, da qual freqüentemente esta que voltou a ser o que era, correu desta vez até Pulpunja. Esta
malta toma seu ponto de partida, transforma a vítima num palavra designa um ruído peculiar que é emitido por pequenos
ser perigoso. Imagina-se com detalhes o crime real ou suposto. morcegos. Neste lugar, Ungutnika se virou para trás e fez este
A vinculação de um homem negro com uma mulher branca, a ruído para assustar os cães e para zombar deles. Ele foi agar-
imagem da intimidade corporal entre eles sublinham, aos olhos rado outra vez e despedaçado, mas, para assombro dos seus
dos vingadores, a diferença que existe entre os dois. A mulher perseguidores, mais uma vez voltou a ficar inteiro. Ele então
fica cada vez mais branca, ao passo que o homem se torna correu até Undiara com os cães atrás de si. Quando atingiu
cada vez mais negro. Ela é inocente, pois como homem ele é um lugar perto de uma fonte, eles o alcançaram e o comeram.
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Cortaram sua cauda e a enterraram ali, onde em forma de pedra tencem ao mesmo totem, se bem que a um subgrupo diferente.
continua existindo até hoje. Chama-se churinga-cauda-de-can- Os homens perguntam ao caçador: "Você tem lanças gran-
guru; durante as cerimônias de multiplicação ela é desenterra- des?" e ele responde: "Não, apenas pequenas". E o caçador
da, mostrada a todos e limpa com esmero". acrescenta: "E vocês têm lanças grandes?" Eles dizem: "Não,
Quatro vezes o canguru é caçado pela malta de cães sel- a penas pequenas". Aí o caçador diz: "Coloquem suas lanças
vagens. É morto, despedaçado e devorado. Nas três primeiras no chão". E eles respondem: "Bem, mas coloque as suas tam-
vezes sua pele e seus ossos permanecem intatos. Enquanto bém no chão". As lanças são jogadas no chão e todos os ho-
estão inteiros, ele pode voltar a se incorporar e seu corpo volta mens, agora unidos, partem contra o animal. O primeiro ca-
a movimentar-se; os cães o caçam outra vez. Portanto, um mes- çador conserva apenas um escudo e a sua churinga — pedra
mo animal é comido quatro vezes. A carne, depois de devora- sagrada — na mão.
da, volta a existir. De um canguru formaram-se quatro, mas "O canguru era muito forte e afastou os homens de si
mesmo assim ele continua sendo sempre o mesmo animal. com golpes. Então todos saltaram sobre o animal e o caçador,
A caçada também é sempre idêntica, modificando-se ape- que ficou por baixo no monte, foi pisoteado até morrer. O can-
nas os locais dos maravilhosos acontecimentos, que ficam para guru também parecia estar morto. Eles enterraram o caçador
sempre assinalados na paisagem. O morto não cede; volta a com seu escudo e sua churinga e levaram o corpo do animal
viver e caçoa da malta que não pára de se assombrar. Mas a consigo para Undiara. Ele não estava realmente morto, mas
malta também não cede: ela precisa matar a presa, mesmo morreu pouco depois e foi colocado numa caverna. Não foi
quando já foi devorada. A determinação da malta e a repetiti- comido. Lá, onde estava o corpo do animal, formou-se um
vidade de suas ações não poderiam ser concebidas de maneira banco de pedra na caverna e depois de sua morte seu espírito
mais clara ou mais simples. entrou nele. Pouco depois morreram também os homens e os
A multiplicação é atingida aqui por uma espécie de re-res- seus espíritos foram morar num charco situado ao lado. A tra-
surreição. O animal não é adulto e não produziu filhotes; em dição diz que, em épocas posteriores, cangurus em grandes
vez disto, ele quadruplicou a si próprio. Como se vê, a multipli- quantidades foram a esta caverna e penetraram por ali na ter-
cação e a reprodução estão longe de serem coisas idênticas. A ra; também os seus espíritos passaram a morar na pedra."
partir da carne e dos ossos, ele se reincorpora diante dos olhos Neste caso, a caça individual passa a ser a caça de toda
dos seus perseguidores e os incita à caça. a malta. O animal é atacado sem armas. Querem sepultá-lo de-
A cauda que é sepultada permanece como pedra; é mo- baixo de um monte de homens. O peso dos caçadores unidos
numento e testemunho deste milagre. A força desta ressurrei- conseguirá sufocá-lo. O animal é muito forte e dá golpes em
ção quádrupla está agora nela, e quando ela é bem tratada, torno de si; a situação não é fácil para os homens que têm
como ocorre durante as cerimônias, sempre volta a ajudar na dificuldades em dominá-lo. No ardor do combate, o primeiro
multiplicação. caçador fica embaixo do monte e, no lugar do canguru, é pi-
A segunda lenda principia com a caça que é feita por um soteado até a morte. Ele é enterrado com seu escudo e com a
único homem contra um canguru grande e muito forte. Ele o churinga sagrada.
viu e quer matá-lo e comê-lo. Segue-o por longas distâncias A história de uma malta de caça que sai à procura de um
numa caçada demorada; eles acampam em muitos lugares, man- determinado animal e, devido a um erro, em vez do animal
tendo sempre uma determinada distância entre si. Em todos acaba matando o mais proeminente dos caçadores, está difun-
os locais por onde o animal passa, deixa marcas na paisagem. dida pela Terra toda. Ela termina com a lamentação pelo mor-
Num determinado local ele ouve um ruído e se coloca de pé to: a malta de caça passa a ser uma malta de lamentação. Esta
nas patas traseiras; uma pedra de 8 m de altura ainda hoje o transformação forma o núcleo de muitas religiões importantes
representa desta forma nesse lugar. Mais tarde ele escava o e amplamente difundidas. Também neste caso, nesta lenda dos
chão à procura de água; também esta nascente continua exis- arandas, fala-se a respeito do enterro da vítima. Escudo e chu-
tindo ainda hoje. ringa são enterrados com ela e a simples menção da churinga,
Mas por fim o animal se sente extremamente cansado e que é considerada sagrada, dá ao acontecimento um certo toque
se deita. O caçador encontra um grupo de homens que per- solene.
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O próprio animal, que somente morre depois, é sepul- joga sobre um moribundo, apertando-se contra ele por todos
tado em outro lugar. Sua caverna se transforma num san- os lados. Esta situação, que já mencionamos, é particularmente
tuário para os cangurus. No decorrer dos períodos posterio- interessante: ela representa uma transição para monte de mo-
res, grande número de cangurus vão até a pedra e penetram ribundos e de mortos de que ainda falaremos várias vezes
nela. Undiara, este é o nome do local, acaba se transforman- neste livro. Alguns casos destes densos montes australianos
do num local sagrado, onde os membros do totem-canguru serão tratados no próximo capítulo. Aqui basta mencionar que
celebram suas cerimônias. Estas servem para a multiplicação
o monte denso de vivos, formado intencional e violentamente,
deste animal e, desde que sejam realizadas com perfeição, não é menos importante do que o monte de mortos. Se este
haverá sempre cangurus em número sufícente pelos arredores. último parece ser mais familiar para nós, isto se deve apenas
Vale a pena observar como nesta lenda foram apresen- ao fato de ele ter assumido dimensões colossais no decorrer
tados dois acontecimentos básicos religiosos inteiramente da história. Normalmente se diria que os homens estão reuni-
distintos entre si. O primeiro contém, como já foi dito, a dos em grande número apenas depois de mortos. Mas o monte
transformação da malta de caça em malta de lamentação; o de vivos nos é igualmente conhecido: em seu núcleo, a massa
segundo, que ocorre na caverna, representa a transformação não é outra coisa.
da malta de caça em malta de multiplicação. Para os australia-
nos, o segundo acontecimento tem um significado muito maior,
colocando-se no centro do seu culto. Formações de homens entre os arandas
O fato de eles aparecerem um ao lado do outro depõe a
favor de uma tese fundamental deste ensaio. Cada uma das As duas lendas ancestrais que foram mencionadas acima estão
quatro espécies básicas de malta existe desde o princípio e contidas no livro que Spencer e Gillen escreveram a respeito
em todos os lugares onde haja homens. Assim são sempre pos- da tribo dos arandas (que eles preferem chamar de "aruntas").
síveis as transformações de um em outro tipo de malta. De- A maior parte desta obra famosa é dedicada à descrição de
pendendo da ênfase dada a esta ou àquela transformação, ori- suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia dar uma idéia
ginam-se formas religiosas básicas. Como os dois grupos mais exagerada de sua multiplicidade. Especialmente notória é a
importantes distingo as religiões de lamentação e as religiões riqueza de formações físicas realizadas pelos participantes no
de multiplicação. Porém também existem, conforme veremos decorrer das cerimônias. Em parte são formações que conhe-
mais adiante, religiões de caça e de guerra. cemos intimamente, uma vez que mantiveram seu significado
Um vestígio de acontecimentos bélicos está presente até até nossos dias; em parte porém são formações que nos causam
mesmo na lenda mencionada. A conversa a respeito das lanças, espanto devido à sua estranheza extrema. As mais importantes
mantida entre o primeiro caçador e o grupo de homens que serão mencionadas rapidamente,
ele encontra no caminho, refere-se às possibilidades bélicas. Em todos os empreendimentos secretos que se realizam
Quando eles jogam no chão todas as lanças que possuem, em silêncio, é freqüente a fila indiana. Em fila indiana partem
estão renunciando a um combate. Somente depois disto é que os homens para buscar suas churingas sagradas, que são es-
atacam unidos o canguru. condidas em cavernas ou em outros lugares. Eles caminham
Aqui encontramos o segundo ponto que me parece ser cerca de uma hora ou mais antes de alcançar sua meta; os
digno de nota nesta lenda: o monte de homens que se lança jovens que são levados nestas expedições são proibidos de for-
sobre o canguru. Uma massa coesa de corpos humanos deve mular perguntas. Se o homem mais idoso, sob cujas ordens
sufocar o animal. Entre os australianos fala-se freqüentemente eles estão, lhes quer explicar qualquer coisa — digamos a
a respeito de tais montes de corpos humanos. Encontramos respeito de determinadas formações na paisagem relacionadas
estes montes constantemente em suas cerimônias. Num deter- C0111 as lendas dos ancestrais — ele o faz usando uma lingua-
minado momento, nas cerimônias de circuncisão dos jovens, o gem mímica.
candidato se deita no chão e um certo número de homens se Nas cerimônias propriamente ditas aparece habitualmente
deita sobre ele, de maneira que ele se vê obrigado a suportar um número multo reduzido de intérpretes, disfarçados de an-
o peso de todos. Em algumas tribos um grupo de homens se cestrais de um totem que atua por meio deles. Geralmente
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são dois ou três, às vezes apenas um. Os jovens formam um quentes, mas naturalmente não uns sobre os outros. As provas
círculo, dançando em torno deles, emitindo determinados gri- de fogo se desenrolam de maneiras muito variadas; uma delas
tos. Este rodar em círculo é uma formação muito freqüente, é realizada da seguinte maneira: os jovens se dirigem ao outro
que sempre volta a ser mencionada. lado do leito do rio, onde as mulheres os esperam em dois
Numa outra ocasião, durante as cerimônias do engwura, grupos. As mulheres avançam na direção deles e os cobrem
que são o acontecimento mais importante e solene na vida da com uma chuva de ramos em chamas. Em outra ocasião, a
tribo, os jovens se deitam enfileirados sobre tini montículo longa fila dos jovens se coloca diante da fila formada pelas
alongado e permanecem assim ligados ao chão, em silêncio, mulheres e pelas crianças. As mulheres dançam e os homens
durante horas a fio. Este estender-se em fileira no chão repe- lançam com toda a força que lhes é possível ramos incendiados
te-se freqüentemente e numa ocasião chegou a ter uma duração por cima de suas cabeças.
de oito horas, das nove da noite até as cinco da manhã. Numa cerimônia de circuncisão, seis homens que se dei-
Impressionante também é uma outra formação muito mais tam juntos no chão formam uma mesa. O noviço se deita
densa. Os homens chegam bem perto uns dos outros, formando sobre eles e é operado nesse local. O "deitar-se sobre o no-
um monte; os velhos ficam de pé no centro, os jovens na parte viço", que faz parte da mesma cerimônia, já foi mencionado
externa. Esta figura em forma de disco, na qual todos os par- no capítulo anterior.
ticipantes estão estreitamente comprimidos uns contra os Se procurarmos um sentido para estas formações, talvez
outros, gira durante umas duas horas numa dança circular, du- seja possível dizer o seguinte:
rante a qual se canta o tempo todo. Depois todos se sentam A fila indiana simboliza a migração. Seu significado na
com a mesma formação, de maneira que o monte continua tão tradição da tribo é fundamental. Freqüentemente se diz que
compacto como quando estavam de pé, e continuam cantando os antepassados migraram para baixo da terra. É como se,
durante mais umas duas horas. andando um atrás do outro, os jovens tivessem de pisar nas
As vezes os homens formam duas fileiras, uma diante da pegadas dos seus ancestrais. O tipo de sua movimentação e
outra, e cantam. Na cerimônia decisiva com a qual se conclui seu silêncio contêm o respeito em relação aos caminhos e às
a parte ritual do engwura, os jovens se formam em quadrilha e metas sagradas.
passam em companhia dos anciãos para o outro lado do leito O rodar ou dançar em círculo aparece como a proteção
do rio, onde as mulheres e as crianças esperam por eles. das representações que se desenrolam no seu centro. Elas são
Esta cerimônia é muito rica em detalhes; em nossa enu- defendidas de tudo o que não pertence ao círculo; elas são
meração, à qual importam apenas as formações, devemos aplaudidas, homenageadas e desta forma toma-se posse delas.
mencionar um monte no chão, que se forma com todos os O deitar-se numa fileira poderia ser símbolo da morte.
homens juntos. Os três anciãos que carregam um objeto espe- Os noviços permanecem neste estado absolutamente mudos, e
cialmente sagrado representando a bolsa na qual estavam con- durante muitas horas ninguém se move. Depois, repentina-
tidas as crianças dos tempos primordiais, caem no chão e mente, eles levantam com um salto e nascem outra vez para
cobrem com seus corpos esse objeto, que as mulheres e as a vida.
crianças estão proibidas de ver. Depois todos os demais ho- As duas fileiras colocadas frente a frente, que atuam numa
mens, mas principalmente os jovens para os quais a cerimônia e noutra direção, expressam a divisão em duas maltas inimi-
é realizada, se lançam sobre os três anciãos e todos jazem gas, onde o outro sexo substitui a malta inimiga. A quadrilha
juntos num desordenado monte no chão. Nada se distingue parece ser uma formação destinada à proteção por todos os
mais no grupo e apenas as cabeças dos três anciãos sobressaem lados; pressupõe-se que os homens estejam se movimentando
do monte. Durante algum tempo eles permanecem assim esten- num ambiente hostil. Esta formação é bastante conhecida na
didos e depois todos procuram se levantar e se individualizar história que está mais próxima de nós todos.
outra vez. A formação de tais montes no solo também ocorre Restam agora apenas as formações mais densas: o disco
em outras ocasiões, mas esta é a mais importante que os obser- dançante que está repleto de homens e o monte enredado no
vadores mencionam. solo. O disco, justamente pelo seu movimento, é o caso extre-
Nas provas de fogo, os jovens se deitam sobre as ramas mo de uma massa rítmica: uma massa que é tão densa e fechada
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quanto possível, dentro da qual não existe espaço algum, a
não ser para quem lhe pertença.
O monte no chão protege um segredo precioso. Indica
que se quer cobrir e reter algo com toda a força. Num monte
deste tipo também se envolve um moribundo e é desta ma-
neira que, imediatamente antes de sua morte, se rende a ele
uma última homenagem. É tão importante para os seus iguais
que, com ele no meio, este monte relembra o dos mortos.
MALTA E RELIGIÃO
136
A inversão das maltas
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apoderar-se deste desprezo tal como foi encontrado, conser-
vá-lo no nível em que estava antes de ser alcançado. O que se
A essência do sistema parlamentar
faz necessário é um processo dinâmico de rebaixamento: é
preciso tratar alguma coisa de tal maneira que ela valha cada o sistema de dois partidos do parlamento moderno uti-
liza a estrutura psicológica dos exércitos combatentes. Na guerra
vez menos, como a unidade monetária durante a inflação, e civil eles estavam realmente presentes, se bem que a contra-
este processo deve continuar até que o objeto tenha chegado gosto. Não se mata com prazer gente do nosso próprio povo,
a um estado de completa carência de valor. Então é possível sempre existe um sentimento de tribo que se opõe às guerras
jogá-lo fora como um papel com impressão defeituosa. civis e, na maior parte das vezes, faz com que elas terminem
Durante a inflação alemã, Hitler encontrou como objeto logo após alguns anos, ou antes. Mas os dois partidos que
para esta tendência os judeus. Eles eram ideais para represen- existem devem continuar se enfrentando. Lutam, abrindo mão
tar este papel: sua antiga vinculação com o dinheiro, para cujos dos seus mortos. Supõe-se que o de número maior vença num
movimentos e flutuações de valor eles tinham como que um choque cruento. A preocupação principal de todos os generais
faro tradicional; suas habilidades nas atividades especulativas, é a de ser o mais forte, de ter mais homens à disposição do
sua afluência às bolsas de comércio, onde sua maneira de agir que o lado contrário num determinado momento e num lugar
contrastava cruamente com o ideal de conduta militar dos ale- de choque real. O general que triunfa é aquele que consegue,
mães, tudo isto devia fazer com que eles parecessem, numa dentro do que é possível em muitas localidades importantes,
época repleta de suspeitas e caracterizada pela falta de estabili- manter a supremacia, mesmo que no conjunto ele seja o mais
dade e pela hostilidade do dinheiro, como particularmente du- fraco.
vidosos e hostis. O judeu era individualmente "mau": ele es- Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão
tava bem com o dinheiro, quando ninguém mais sabia como verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não
lidar com ele, preferindo manter uma boa distância. Se na basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode
inflação se tivesse tratado de processos de desvalorização dos contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação con-
alemães como indivíduos, teria sido suficiente despertar o ódio tinua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma
contra determinados judeus. Mas não era este o caso; os ale- verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que
mães, como massa, estavam se sentindo humilhados pelo des- se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e
crédito dos seus milhões. Hitler, que tinha uma visão muito agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a con-
clara a este respeito, orientou sua atividade contra os judeus tagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os
360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica
como um todo.
fora do jogo. Dentro do parlamento não deve haver mais
No tratamento dos judeus, o nacional-socialismo repetiu
mortos. Esta intenção é expressa de maneira mais clara na imu-
da forma mais exata possível o processo da inflação. Primeiro
nidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em re-
eles foram atacados como maus e perigosos, como inimigos; lação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares
depois foram sendo cada vez mais desvalorizados; como já não (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).
se tinha mais judeus em quantidade suficiente, eles passaram Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da
a ser coletados nos países conquistados; e, no final, eles eram maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também
considerados literalmente como insetos nocivos, que podiam a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa
ser exterminados aos milhões. Ainda hoje ficamos boquiaber- guerra; cada uma destas vontades tem a convicção do maior
tos diante do fato de os alemães terem ido tão longe, de terem direito próprio e da própria razão; é uma convicção fácil de
sido capazes de cometer, de tolerar ou de ignorar um crime ser encontrada, ela se encontra a si mesma. O sentido de um
dessas proporções. Dificilmente eles poderiam ter chegado tão partido consiste justamente nisto, em manter vivas esta vonta-
longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma de O adversário que fica em minoria não se
inflação durante a qual o marco chegou a valer apenas um bi- e esta porque
submete que de repente tenha deixado de acreditar em seu
lionésimo do seu valor original. E foi esta inflação como fenô- direito, m s simplesmente porque se dá por vencido. É fácil
meno de massa que eles descarregaram sobre os judeus. para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é
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castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de
eles haveriam de conquistar a vitória. Aqui também não se
colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma completamente
deve chegar ao ponto em que haja mortos. No entanto, a imu-
diferente. Porém ele conta com batalhas futuras. E o número
destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em ba- nidade dos eleitores não é tão importante quanto a das cédulas
talha alguma. de votação, que eles entregam e que contêm o nome do seu
candidato preferido. É permitido influenciar os eleitores de
A igualdade dos parlamentares, justamente o que os trans- quase todas as maneiras, até o momento em que eles se com-
forma em massa, consiste em sua imunidade. Neste ponto não prometem definitivamente com o nome de sua preferência, que
existe diferença alguma entre os partidos. O sistema parla-
mentar funciona enquanto se mantiver esta imunidade. Ele o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironi-
zado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras
desmorona assim que algum posto seja ocupado por alguém possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas
que se permita contar com a morte de qualquer um dos mem- batalhas eleitorais; se ele tiver uma orientação política, seus
bros da corporação. Nada é mais perigoso do que ver mortos destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos. Mas o
entre estes vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui momento da votação propriamente dita é quase sagrado; sa-
mortos em seu resultado. Um parlamento somente é um par- gradas são as urnas fechadas e lacradas que contêm as cédulas
lamento enquanto excluir os mortos. eleitorais; sagrado também é o processo de contagem.
O distanciamento instintivo de seus próprios mortos, por O aspecto solene de todos estes acontecimentos origina-se
exemplo, no parlamento britânico, inclusive dos que morreram na renúncia da morte como instrumento de decisão. Com cada
de forma pacífica e fora do parlamento, manifesta-se no siste- uma das cédulas usadas descarta-se, por assim dizer, a morte.
ma da eleição complementar. O sucessor do defunto não está Mas o que ela teria conseguido, a força do oponente, é cons-
predeterminado. Ninguém sobe de posto e ocupa automatica- cienciosamente anotado em um número. Quem joga com estes
mente o lugar do falecido. Novos candidatos se apresentam. números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar
A luta eleitoral é conduzida novamente em todas as suas à morte e nem sequer se apercebe disto. Os entusiasmados
formas regulares. Para o morto não existe posto de espécie amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de
alguma no parlamento. Ele não tem sequer o direito de dispor votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas in-
de sua própria herança. Nenhum parlamentar que está a ponto tenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tra-
de morrer pode saber com certeza quem chegará a ser seu tados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como
sucessor. A morte, com todas as suas perigosas repercussões, estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor
está eficientemente excluída do parlamento inglês. para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue.
Contra esta concepção do sistema parlamentar seria pos- O deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito
sível levantar a objeção de que todos os parlamentos conti- isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito
nentais são formados por muitos partidos que têm tamanhos mais para o deputado. Ele existe justamente para votar com
desiguais; que estes partidos apenas ocasionalmente se juntam freqüência. Mas também é muito menor o número de homens
em dois grupos de combate. No sentido da votação, este fato entre os quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício
não altera coisa alguma. Ela é sempre e em todos os lugares devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de
o momento essencial. Ela é que determina o que deve aconte- seus grandes números.
cer e ela sempre depende de dois números, dos quais o maior
obriga todos os que participaram da votação. Com a imunidade
do parlamentar vive e morre o parlamento de qualquer país. Divisão e multiplicação. Socialismo e produção
Em princípio, a eleição do delegado está aparentada com
as coisas que acontecem no parlamento. Considera-se como o O problema da justiça é tão antigo quanto o da partilha
melhor dos candidatos, o vencedor, aquele que demonstrar ser ou divisão. Em qualquer lugar onde um grupo de homens saía
o mais forte. O mais forte é o que obtém o maior número de para caçar, sempre se chegava por fim a uma partilha. Na malta,
votos. Se os 17562 homens que o apóiam se formassem como eles tinham agido como unidade, mas na partilha eles voltavam
exército fechado contra os 13.204 que seguem seu adversário, a se separar, a formar indivíduos isolados. Entre os homens
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jamais se desenvolveu um estômago comum que possibilitasse transformaram em massas enormes que em quase todos os
a um certo número deles alimentar-se como se fosse uma única centros da civilização continuam crescendo diariamente. Porém,
criatura. Na comunhão eles deram origem a um ritual que mais
se considerarmos que não é possível prever o fim deste cres-
se aproximava desta idéia de um estômago comum. Foi como cimento, que cada vez mais homens produzem cada vez mais
uma aproximação — insuficiente, mas mesmo assim uma apro- bens, que entre estes bens também se encontram seres vivos,
ximação — de um estado de coisas ideal e do qual sentiam ne- animais e vegetais, que os métodos para a geração de bens
cessidade. O que existe de isolado na ingestão, na incorporação animados e inanimados quase já não se diferenciam mais, será
é uma das raízes da pavorosa formação do poder. Quem come forçoso admitir que a malta de multiplicação foi a formação
sozinho e às escondidas, unicamente para si, também é obrigado mais rica e de maior êxito que a humanidade conseguiu produ-
a matar sozinho e para si. Quem mata junto com os outros zir. As cerimônias que como meta tinham a multiplicação fo-
também deve compartilhar sua presa com os demais. ram transformadas em máquinas e em processos técnicos. Cada
Com o reconhecimento da partilha tem início a justiça. Sua fábrica é uma unidade que serve a um mesmo culto. A novi-
regulamentação é a primeira lei. Até o dia de hoje, esta é a lei dade está na aceleração do processo. O que antes era uma
mais importante e como tal é o objetivo específico de todos os geração e uma intensificação da espera — da chuva, do trigo,
movimentos que se preocupam, de forma definitiva, com a cole- da aproximação de manadas de animais que se caçavam, do
tividade das atividades e da existência do ser humano. crescimento de outros que eram mantidos domesticados —
A justiça exige que cada qual tenha o que comer. Mas ela transformou-se hoje em geração imediata. Apertam-se alguns
também espera que cada qual contribua com sua parte para a botões, mexe-se em algumas alavancas e obtém-se o que se
obtenção deste alimento. A grande maioria dos homens está quer, da forma que se deseja, em algumas horas ou até mesmo
ocupada com a produção de bens de todas as espécies. Alguma em menos tempo.
coisa andou mal com a sua partilha. Este é o conteúdo do so- Vale a pena chamar a atenção para o fato de que a rela-
cialismo, quando reduzido à sua fórmula mais simples. ção rígida e exclusiva entre proletariado e produção, que há
No entanto, seja qual for a opinião que se tenha a res- mais ou menos cem anos ganhou tanto prestígio, restabelece
peito da maneira de repartir os bens no nosso mundo moderno, de maneira particularmente clara a velha idéia que serviu de
tanto os seguidores como os adversários do socialismo estão base para a malta de multiplicação. Proletários são os que
de acordo quando à premissa para a solução deste problema. aumentam mais rapidamente e este aumento ocorre de duas
Esta premissa é a produção. De ambos os lados do conflito formas. Por um lado, eles têm mais filhos do que as demais
ideológico que dividiu a Terra em duas metades atualmente pessoas; já pela sua própria descendência eles têm algo de
de potência semelhante, estimula-se a produção por todos os massa em si. Mas seu número também aumenta de outra ma-
meios. Pouco importa se produzimos para vender ou se pro- neira: pela afluência cada vez maior de homens do campo para
duzimos para repartir; o processo de produção em si não só os locais de produção. E justamente este duplo sentido de
não é discutido por lado algum, como também é venerado e aumento, como sabemos, é uma característica da malta de mul-
não se exagera quando se afirma que este processo atualmente tiplicação primitiva. Para suas festas e cerimônias confluíam
fixá-la historicamente é insuficiente. pessoas que assim, como um todo formado por muitos, se
É possível que as pessoas se perguntem de onde se ori- entregavam a procedimentos que haveriam de lhes garantir
gina esta veneração. Alguém poderia julgar que fosse possível urna rica descendência.
reconhecer um momento da história da humanidade em que Quando foi erigido e efetivado o conceito de um prole-
se tenha iniciado a sanção da produção. Um pouco de reflexão tariado despojado de seus direitos, deixou-se a ele a plena eufo-
mostra que este momento não existe. A sanção da produção ria do aumento. Em momento algum levantou-se a possibili-
remonta a tempos tão distantes que qualquer tentativa de dade de que seu número pudesse ser reduzido, uma vez que
fixá-la historicamente é insuficiente. seus ao
me mbros não passavam bem. Confiava-se na produção.
A hybris da produção remonta à malta de multiplicação. Devido auAmpen
rotodudzta que
produção deveria haver também mais
É fácil ignorar esta relação, uma vez que já não são mais as proletários. eles provocavamdeveria servir
maltas que se dedicam praticamente à multiplicação. Elas se eles mesmos. Proletários e produção tinham de crescer m
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tua dependência. Esta porém é exatamente a mesma relação deveria sacrificar um boi aos espíritos dos mortos e, no quarto
inseparável própria da atividade das maltas primitivas de mul- dia, voltar até onde eles estavam. No aspecto deles havia algo
tiplicação. Queremos nos tornar mais, e desta maneira também que exigia obediência e o homem fez tudo o que lhe tinha
deve se tornar mais tudo aquilo de que se vive. Uma coisa não sido ordenado. No quarto dia retornou ao rio. As estranhas
pode ser separada da outra; tudo está tão intimamente rela- Pessoas lá estavam outra vez; surpreso, reconheceu entre eles
cionado que muitas vezes não se sabe mais o que deve crescer. seu irmão que estava morto havia muitos anos. Foi então que
Já mostramos que o homem, identificando-se com certos ficou sabendo quem eram eles. Disseram que como eternos
animais que sempre vivem juntos em grande número, adquiriu inimigos dos homens brancos tinham vindo dos campos de
um sentimento exacerbado da multiplicação. Seria possível di- batalha além do mar para ajudar os xosas; que graças ao seu
zer que ele somente aprendeu esta idéia a partir dos animais. invencível poder os ingleses seriam desalojados do país; que
Ele tinha diante de si cardumes de peixes, enxames de insetos Umhalakaza teria de servir de intermediário entre eles e os
e enormes manadas de animais quando, em suas danças, repre- chefes e receberia as instruções para retrarsmiti-las. Se a ajuda
sentava estes animais de forma tão perfeita que acabava se oferecida fosse aceita, aconteceriam feitos surpreendentes, mais
transformando neles, que se sentia igual a eles se conseguia surpreendentes do que tudo o que jamais tinha acontecido.
fixar em seus totens essas determinadas metamorfoses para Antes de mais nada, ele deveria dizer às pessoas que acabassem
transmiti-las aos seus descendentes como tradição sagrada; com com suas bruxarias dirigidas contra o próximo e que matassem
isso ele transmitia também uma intenção de multiplicação que e comessem o gado mais gordo.
ultrapassa amplamente a do próprio ser humano. A notícia desta relação com o mundo dos mortos rapida-
Esta é exatamente a relação que atualmente o homem tem mente se divulgou entre os xosas. Kreli, o chefe supremo da
em relação à produção. As máquinas são capazes de produzir tribo, saudou a mensagem com alegria; dizem inclusive, mas
mais do que se podia sonhar. Toda a multiplicação cresceu sem que se possa prová-lo, que ele próprio foi o autor do
assim de uma maneira enorme. No entanto, como de maneira plano todo. Correu a voz de que a ordem dos espíritos devia
geral se trata de objetos e somente em grau menor de seres ser obedecida; deviam ser sacrificados e comidos os melhores
vivos, ele aumenta sua dedicação ao número destes objetos, espécimes do rebanho. Uma parte da tribo vivia sob a sobe-
aumentando sua própria necessidade em relação a eles. Existem rania britânica. Mensageiros foram enviados também aos chefes
cada vez mais coisas para as quais ele vê alguma utilidade; deste setor; eles foram informados do que tinha ocorrido e sua
utilizando estas coisas, geram-se novas necessidades. É este colaboração foi solicitada. Os clãs dos xosas se colocaram ime-
aspecto da produção, a multiplicação irrefreada como tal em diatamente em movimento. A maioria dos chefes começaram
todas as direções, que mais salta à vista em todos os países imediatamente a matança do gado. Somente um deles, Sandi-
"capitalistas". Nos países que dão uma importância especial le, homem prudente, titubeava ainda. O alto comissário inglês
ao "proletariado" — onde se impedem as grandes acumula- mandou que comunicassem a Kreli que ele podia fazer o que
ções de capital nas mãos de 'pessoas individuais — os proble- quisesse em seu próprio território, mas se não deixasse de
mas da distribuição comum são, teoricamente, equivalentes instigar súditos britânicos a destruírem suas propriedades seria
aos da multiplicação. castigado. Kreli pouco se importou com a ameaça; estava con-
vencido de que logo chegaria o momento em que ele distri-
A autodestruição dos xosas buiria os castigos.
As revelações feitas pelo profeta tinham cada vez maior
Numa manhã de maio de 1856, uma jovem xosa foi bus alcance. A jovem, de pé no meio do rio entre multidões incal-
car água num riacho que passava perto de sua casa. Quando culáveis de crentes, ouvia até mesmo estranhos ruídos sub-
retornou, contou que tinha visto uns homens estranhos junto terrâneos que vinham de sob seus pés. Seu tio, o profeta, ex-
ao rio, muito diferentes dos que ela encontrava normalmente. plicou que eram as vozes dos espíritos que confabulavam a
Seu tio, chamado Umhlakaza, foi ver os forasteiros e os encon- respeito dos assuntos dos vivos. A primeira ordem já deter-
trou no lugar indicado. Estes lhe disseram que voltasse para minara que era necessário matar gado; mas os espíritos eram
casa e executasse determinadas cerimônias; em seguida ele insaciáveis. Cada vez se sacrificava mais gado, mas nunca era
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suficiente. O delírio crescia de mês para mês, causando sempre reservas de alimento até o último vestígio. Entre estes estava
novas vítimas. Depois de um certo tempo até o cauteloso chefe
um tio do chefe Kreli. "É a ordem do chefe", disse; depois,
Sandile acabou cedendo. Seu irmão o convenceu com muita quando já não havia mais nada para comer, o ancião e sua
eficiência. Com seus próprios olhos ele teria visto os espíritos
esposa favorita se sentaram num kraal vazio e morreram. Tam-
de dois falecidos conselheiros de seu pai, tendo falado pessoal- bém o principal conselheiro de Kreli se opôs ao plano, até ver
mente com eles; pediam-lhe que ordenasse a Sandile que ma- que suas palavras eram inúteis. Então, declarando que tudo o
tasse seu gado, sob pena de sucumbir junto com o homem que tinha pertencia ao seu chefe, deu ordem para matar e
branco. destruir e fugiu como um demente. É possível que muitos te-
A última ordem do profeta também foi comunicada. Sua nham agido desta forma contra sua própria convicção. O chefe
execução haveria de ser o último preparativo dos xosas; depois ordenava e eles obedeciam.
dela, eles seriam dignos da ajuda de um exército de espíritos. Nos primeiros meses de 1857 reinava uma atividade in-
Nem um único animal deveria continuar com vida em seus comum no país inteiro. Preparavam-se grandes currais para
rebanhos; todos os cereais estocados teriam de ser destruídos. abrigar o gado que logo haveria de chegar em grandes quan-
Para os que obedecessem delineava-se um futuro paradisíaco. tidades. Fabricaram-se gigantescos recipientes de couro para
Num dia predeterminado, rebanhos de milhares e milhares de guardar o leite, que logo iria existir com a abundância da água.
cabeças, mais bonitas do que todas que se tinham matado, sai- Alguns já passavam fome enquanto executavam este trabalho.
riam da terra e cobririam as pastagens por todas as partes. A leste do rio Kei, as ordens do profeta tinham sido executa-
Grandes campos de milho, maduro e pronto para ser consumi- das literalmente, mas mesmo assim o dia da ressurreição tinha
do, brotariam do solo num abrir e fechar de olhos. Neste dia sido adiado. É que no território do chefe Sandile, onde as
os antigos heróis da tribo, os grandes e sábios do passado, res- ordens tinham começado a ser executadas somente mais
suscitariam e participariam do regozijo dos crentes. Desapa- tarde, a matança ainda não chegara ao fim. Uma parte da
receriam a preocupação e a enfermidade, bem como todos os tribo já passava fome, ao passo que outra ainda estava des-
achaques da velhice; a juventude e a formosura seriam atribu- truindo seus haveres.
to tanto dos mortos ressuscitados como dos vivos fracos. Mas O governo fez tudo para proteger suas fronteiras. Todos
pavoroso seria o destino de todos os que se opusessem à von- os postos foram reforçados, todos os soldados disponíveis fo-
tade dos espíritos ou dos que se descuidassem da execução de ram enviados para lá. Os colonos também se tinham preparado
suas ordens: o mesmo dia em que os crentes receberiam tanta para absorver o choque. Depois de se terem preocupado com
alegria seria para eles um dia de ruína e de perdição: o céu a defesa, começaram a reunir provisões para salvar a vida
cairia e os trituraria junto com os mestiços e os brancos. dos que passavam fome.
Os missionários e os agentes do governo se esforçavam Finalmente chegou o dia tão ansiosamente esperado. Du-
em vão para pôr um freio a estes acontecimentos loucos. Os rante a noite toda os xosas tinham ficado acordados na maior
xosas estavam totalmente enlouquecidos e não toleravam obje- das excitações. Eles esperavam ver nascer sobre as colinas do
ção ou resistência. Os brancos que se intrometiam no assunto oriente dois sóis vermelhos como sangue; o céu então cairia e
eram ameaçados; eles já não se sentiam sequer seguros de esmagaria todos os inimigos deles. Quase mortos de fome,
suas próprias vidas. Uma fé fanática tinha se apoderado de passaram a noite em meio a uma alegria selvagem. Depois,
todos os xosas; alguns dos seus chefes, no entanto, viram em finalmente, o sol apareceu como sempre, sozinho, apenas um
tudo isto uma boa oportunidade para iniciar uma guerra. Eles único sol e o coração dos xosas desfaleceu. Mas eles não per-
tinham constantemente um plano em mente: lançar toda a tribo deram as esperanças de imediato; talvez fosse necessário espe-
xosa armada e em estado de extrema inanição contra a colônia rar até o meio-dia, quando o sol alcançasse seu ponto mais
dos brancos. Eles mesmos estavam por demais exaltados para alto; e como então nada aconteceu eles esperaram ainda pelo
conseguir ver os perigos desta empresa, contra o êxito da qual pôr-do-sol. Mas o sol se pôs e tudo terminou.
tudo parecia conspirar. Os guerreiros, que deveriam ter-se lançado juntos contra
Alguns não acreditavam nas previsões do profeta, nem no a col poralgum
gum erro incompreensível não tinham sido
êxito da guerra; mas mesmo assim destruíram todas as suas reunidos. E agora era demasiado tarde para isto. Uma tentativa
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de adiar novamente a data da ressurreição não surtiu efeito. em comunicação com estes. Prometem-lhes um exército auxi-
A alegre excitação dos xosas tinha se transformado no mais liar. Como exército, ou seja, como massa de guerreiros mortos,
profundo desespero. Como mendigos, não como guerreiros, num eles se unirão ao exército dos xosas vivos. Este esforço será
estado de total inanição, tinham agora de tomar o caminho realizado exatamente como se tivesse sido feita uma aliança
em direção à colônia. Por pequenos pedaços dos grandes reci- com uma outra tribo. Mas desta vez trata-se de uma aliança
pientes para o leite, que naqueles dias de grande esperança com a tribo dos próprios mortos.
tinham sido confeccionados com tanto esmero, irmãos lutaram Assim que chegar o dia prometido, repentinamente todos
contra irmãos, pais contra filhos. Velhos, fracos e enfermos serão iguais. Os velhos voltarão novamente a ser jovens, os
foram abandonados ao seu próprio destino pelos mais jovens. doentes terão saúde, os angustiados ficarão alegres; os mortos
Para comer, procuravam todos os tipos de vegetais, inclusive se misturarão aos vivos. Um começo nesta direção de igualdade
as raízes das árvores. Os que estavam próximos do mar ten- generalizada já se efetua com a primeira ordem. Os vivos devem
taram subsistir à base de crustáceos, mas como não estavam abandonar os feitiços que usam uns contra os outros; a con-
habituados a este tipo de alimentação sofreram disenteria e fusão existente em suas intenções de hostilidade é o que mais
pereceram rapidamente. Em alguns lugares, famílias inteiras se perturba a unidade e a regularidade da tribo. Depois, naquele
sentavam juntas para morrer. Mais tarde, muitas vezes se en- grande dia previsto, a massa da tribo, que por si mesma é fraca
contraram, debaixo de uma única árvore, de quinze a vinte demais para poder vencer seus inimigos, repentinamente se
esqueletos juntos, pais que tinham morrido junto de seus filhos. verá aumentada por toda a massa dos seus mortos.
Uma interminável corrente de criaturas esfomeadas despejou-se Também a direção na qual se movimentará a massa está
sobre a colônia; na maior parte eram homens e mulheres jo- prescrita: ela se abaterá sobre a colônia dos homens brancos,
vens, mas também pais e mães com crianças meio mortas nas sob cujo domínio uma parte da tribo já se encontra. Seu poder,
costas. Eles se acocoravam diante das fazendas e pediam co- graças ao reforço dos espíritos, será insuperável.
mida com vozes lastimosas. Aliás, os espíritos têm os mesmos desejos dos vivos; eles
Durante o ano 1857, a população do setor britânico do gostam de comer carne e por causa disso exigem que o gado
país xosa caiu de 105.000 para 37.000. Morreram 68 mil pes- lhes seja sacrificado. É de supor-se que eles também saboreiem
soas. E a vida de milhares deles somente pôde ser salva graças os cereais que são destruídos. A princípio os sacrifícios ainda
às reservas de cereais que o governo distribuiu. Na zona livre, são isolados; eles podem ser interpretados como sinais de pie-
onde não existiam tais reservas, pereceram quantidades ainda dade e submissão. Depois porém eles aumentam, os mortos
maiores. O poder da tribo xosa ficou completamente aniqui- querem tudo. A tendência de multiplicação que geralmente se
lado. tem pelos animais e pelos cereais transforma-se numa tendên-
cia de multiplicação para os mortos. O que agora deve aumen-
tar é o gado morto, os cereais destruídos, uma vez que agora
Relatamos estes acontecimentos de maneira bastante deta- se trata de gado e cereais para os mortos. A inclinação dinâ-
lhada, e o fizemos propositalmente. Poder-se-ia suspeitar mica da massa de crescer de forma impetuosa, desconsiderada
que tudo isso foi inventado por alguém que tivesse a intenção e cega, sacrificando-se tudo a ela — fenômeno que aparece
de esclarecer a sucessão dos acontecimentos de massa, seu de- onde quer que se forme uma massa de homens vivos —, essa
senvolvimento previsto e sua precisão. No entanto, tudo real- inclinação é transferida. Os caçadores a transferem para seus
mente aconteceu dessa forma em meados do século passado, animais de caça, que nunca existem em número suficiente e
ou seja, num passado que não é tão remoto assim. Existem cuja fertilidade procuram incentivar através de numerosas ce-
relatos de testemunhas oculares do acontecimento, relatos que rimônias. Os criadores de gado a transferem para seus animais:
qualquer pessoa pode consultar. eles farão tudo para que seus rebanhos cresçam, e graças à sua
Vamos tentar extrair alguns pontos essenciais da história. habilidade na criação, realmente os transformam pouco a pouco
Por um lado, chama a atenção o fato de que os mortos em grandes e vastas manadas. Os agricultores transferem a
dos xosas estejam tão vivos. Eles realmente participam dos mesma inclinação para os produtos que conseguem extrair do
destinos dos vivos. Eles encontram meios e maneiras de entrar solo. Seus cereais multiplicam-se por 30 ou por 100 e os silos
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onde são armazenados, visíveis e admirados por todos, são a interessava um triunfo sobre os brancos; interessava-lhes so-
nítida expressão de que eles foram bem-sucedidos nesta súbita mente aumentar seu próprio número. Através de truques e
multiplicação. Eles fizeram tanto para isso que este sentimento simulações, ,priaram-se primeiro do gado e dos cereais dos
de massa transferido para as manadas ou para o cereal se trans- vivos; depoi , c,s mortos por inanição se foram, seguindo um
forma como que em uma nova consciência de si mesmos, e após outro. Apesar de tudo, portanto, a vitória foi conquistada
freqüentemente eles devem sentir-se como se tivessem conse- pelos mortos — se bem que se tratou de outra vitória e de
guido tudo isso sozinhos. outra guerra. No final, os mortos ficaram sendo a maior das
Durante esta "autodestruição" dos xosas, tudo o que neles massas.
havia de tendências de multiplicação de homens, de gado e de De importância especial para o comportamento dos xosas
cereais, transferiu-se para sua idéia dos mortos. Para vingar-se nos parece ser também a ordem. Ela tem algo de autônomo e
dos brancos que os despojavam cada vez mais de suas terras, como ação ela tem seu valor de forma independente, por si
para realizar contra eles uma guerra com possibilidade de êxito própria. Os mortos que dão a ordem necessitam de um inter-
depois de todas as guerras que já tinham perdido, necessitavam mediário para a sua transmissão. Eles reconhecem assim a hie-
de uma coisa: da ajuda de seus mortos. Assim que conseguis- rarquia terrestre. O profeta deve dirigir-se aos chefes e con-
sem assegurar realmente o apoio destes, assim que estes efeti- vencê-los a aceitar as ordens espirituais. No momento em que
vamente aparecessem em bandos numerosos, eles poderiam Kreli, o chefe supremo, se declara favorável ao plano dos
iniciar a guerra. Com eles, também voltariam o gado e o milho espíritos, a ordem segue seu curso normal. Mensageiros são
do país dos mortos em quantidades muito maiores do que as enviados a todos os clãs dos xosas, mesmo aos que se encon-
que tinham sido enviadas, tudo o que se tinha acumulado tram sob a "falsa" soberania dos ingleses. Até os incrédulos,
entre os mortos no decorrer dos tempos. que se defendem durante bastante tempo contra a execução
O gado que era morto e os cereais que eram destruídos do plano, entre eles o tio de Kreli e seu principal conselheiro,
tinham a função de um cristal de massa aos quais iriam se terminam acatando a "ordem" do chefe e explicam enfatica-
agregar todo o gado e todos os cereais do além. Noutras épocas, mente que esta ordem é o único motivo de sua submissão.
para conseguir esta mesma meta, teriam sem dúvida sacrificado Tudo se torna ainda mais estranho, no entanto, quando
seres humanos. Naquele grande dia previsto, os campos fica- levamos em consideração o conteúdo da ordem. Trata-se essen-
riam repletos de novas e enormes manadas e sobre os campos cialmente de sacrificar o gado, ou seja, de matar. Quanto mais
brotaria milho maduro e pronto para o consumo. enfaticamente a ordem é repetida, quanto mais envolvente e
A finalidade desta empresa, portanto, era a reaparição maciça é sua aplicação, tanto mais a ordem antecipa a própria
dos mortos juntamente com tudo o que pertence à vida. Em guerra. Do ponto de vista da ordem, por assim dizer, o gado
função desta intenção prioritária sacrificava-se tudo. Esse modo substitui os inimigos. Ele substitui os inimigos e também o
de pensar e de agir era confirmado por membros daquele gado deste, da mesma forma que os cereais que são destruídos
mundo que se conheciam. O irmão do profeta, os dois conse- substituem os cereais dos inimigos A guerra começa no pró-
lheiros do antigo e falecido chefe eram os avalistas de um prio país, como se os homens já estivessem no país inimigo.
convênio que foi estabelecido com os mortos. Quem se opunha A ordem entretanto retorna à sua origem, quando ainda era
ou hesitava, tirava da massa algo que lhe pertencia, pertur- sentença de morte, a sentença de morte instintiva de uma es-
bando assim sua unidade. Por isso era melhor colocar ime- pécie contra a outra.
diatamente essas pessoas entre os inimigos; juntamente com Sobre todos os animais que o homem mantém em cati-
estes haveriam de morrer. veiro pende sempre a sentença de morte. Se bem que a sen-
Considerando-se o resultado catastrõfico dos acontecimen- tença seja — com freqüência durante muito tempo — sus-
tos — o fato de que no solene dia prometido não ocorreu coisa pensa, nenhum desses animais é indultado. Dessa maneira o
alguma, de que não apareceram campos de milho nem rebanhos, homem transfere impunemente sua própria morte, da qual ele
nem exércitos de mortos — pode-se dizer que, do ponto de tem perfeita consciência, aos seus animais. O lapso de vida
vista da crença dos xosas, eles foram enganados pelos seus que ele lhes concede está relacionado com sua própria vida; a
mortos. Estes não tinham levado a sério o convênio, não lhes única diferença é que, no caso dos animais, é ele quem estabe-
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lece quando devem morrer. A morte dos seus animais lhe é
w
mais suportável quando ele possui muitos e retira apenas
alguns da manada para serem sacrificados. Suas duas metas
— a multiplicação de seus rebanhos e a morte necessária dos
animais isolados — podem existir muito bem lado a lado.
Desta forma, como pastor, ele é muito mais poderoso do que
qualquer caçador. Seus animais estão todos juntos e não fogem.
A duração da vida deles está em suas mãos. Ele não depende
da oportunidade que os animais lhe oferecem, não precisa ma- AS ENTRANHAS
tá-los no ato. A violência do caçador se transforma no poder
do pastor.
DO PODER
A ordem, portanto, que é dada aos xosas, é uma ordem
íntima em sua essência: a execução da sentença de morte sobre
seus animais deve preceder a matança de seus inimigos, como
se, no fundo, ambos fossem a mesma coisa; e de fato são.
É digno de consideração o fato de que esta ordem de
matar emane dos próprios mortos, como se eles tivessem auto-
ridade suprema a este respeito. Em última instância, eles fazem
com que tudo seja transferido para o além. Entre eles se en-
contram todos os que deram ordens no passado, gerações de
chefes. Seu prestígio reunido é grande; sem dúvida, também
seria grande se todos eles, não como mortos, repentinamente
estivessem entre os homens. Mas não se pode evitar a impres-
são de que seu poder aumentou ainda mais pela morte. O fato
de eles terem podido chamar a atenção por meio do profeta, de
que tenham aparecido e falado com ele, confere-lhes um poder
maior do que possuíam em vida, um prestígio sobrenatural;
desta maneira evitaram a morre e continuam impressionante-
mente ativos. Contornar a morte, o desejo de esquivar-se dela
constituem as mais antigas e tenazes tendências de todos os
que detêm o poder. Neste contexto é significativo acrescentar
que o chefe Kreli sobreviveu durante muitos anos após a morte
do seu povo por inanição.
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Tomar e incorporar
O SOBREVIVENTE
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O sobrevivente
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clã dos leões dizem aos do clã das cabras: "Fomos nós que de de que ela seja analisada com coragem, é possível aprender
salvamos vocês da extinção".
rnclita coisa.
Finalmente devemos lembrar outro recurso utilizado pelos
sobreviventes, que vem de data histórica e é perfeitamente
fidedigno. Numa luta de extermínio entre duas tribos indíge- Os mortos como sobreviventes
nas da América do Sul, um único homem da parte derrotada
fica com vida e é enviado de volta ao seu povo pelo inimigo.
Sua função é a de informar os seus a respeito de tudo o que Ninguém que se ocupe com os testemunhos originais da
vida religiosa deixará de se surpreender com o poder dos mor-
viu e desestimulá-los a empreender uma nova luta. Humboldt
tos. A existência de muitas tribos está inteiramente tomada por
nos deixou um relato a respeito deste mensageiro da tragédia:
"A demorada resistência que os cabres, reunidos sob o ritos que se refere m aos mo r tos.
O primeiru f a tu que ehaina a atenção em todas as partes
comando de um corajoso chefe, tinha oferecido aos caraíbes,
causou a perdição daqueles depois de 1720. Os cabres tinham é o medo diante dos mortos. Eles estão descontentes e cheios
de inveja em relação aos seus, que deixaram para trás. Pro-
derrotado seus inimigos junto à desembocadura do rio; uma curam se vingar dos vivos, às vezes por causa de ofensas que
grande quantidade de caraíbes foi massacrada enquanto eles lhes foram feitas ainda em vida, mas freqüentemente também
fugiam entre as corredeiras do rio e uma ilha. Os prisioneiros pelo simples fato de os outros ainda estarem vivos. A inveja
foram devorados; mas com aquela astúcia refinada e com a dos mortos é o que os vivos mais temem. Eles tratam de apa-
crueldade que é própria dos povos da América do Sul e do ziguá-los, adulando-os e oferecendo-lhes alimento. Proporcio-
Norte, os cabres deixaram um caraíbe vivo; ele foi obrigado nam-lhes tudo o de que necessitam no caminho até o país dos
a subir numa árvore para ser testemunha dessa cena bárbara mortos, somente para que estes permaneçam bem distantes e
e informar seu povo a respeito do acontecido. A ebriedade da para que não retornem para causar dano ou para atormentar
vitória do chefe dos cabres foi de curta duração. Os caraíbes os seus familiares. Os espíritos dos mortos enviam enfermi-
voltaram em número tão grande que sobraram, apenas alguns dades ou as trazem consigo, têm influência sobre a prosperi-
míseros restos dos cabres antropófagos." dade dos animais e sobre as colheitas, influem na vida de cem
O indivíduo que foi mantido vivo como testemunha pre- maneiras diferentes.
sencia do alto de uma árvore o modo brutal como seus com- Uma verdadeira paixão, que sempre volta a aparecer entre
panheiros são devorados. Todos os guerreiros com os quais os mortos, é a necessidade de levar os vivos consigo. Uma vez
havia partido caíram durante a luta ou terminaram no estô- que os mortos invejam todos os objetos da existência cotidia-
mago dos inimigos. Ele é enviado de volta como sobrevivente na, que eles são obrigados a deixar para trás, originalmente era
forçado, com as cenas de terror gravadas na retina. O sentido costume não conservar coisa alguma (ou o menos possível) do
de sua mensagem, como foi imaginada pelos inimigos, seria: que lhes havia pertencido. Colocava-se tudo dentro do túmulo
"Um de vocês sobreviveu. Isto mostra quão poderosos nós ou cremava-se com os cadáveres. Abandonavam-se as palhoças
somos. Não se atrevam a lutar novamente conosco!" No en- nas quais eles haviam morado; jamais se retornava a elas. Fre-
tanto a impressão do que ele viu é tão grande, sua sobrevivên- qüentemente eles eram enterrados numa casa com todos os seus
cia forçada é tão chocante que ele acaba incitando os seus à pertences; desta maneira dava-se-lhes a entender que não se
vingança. Os caraíbes se reúnem em grande massa e dão cabo tinha a menor intenção de conservar qualquer coisa deles para
definitivamente dos cabres. si próprio. Mas isso não era o suficiente para afastar comple-
Esta tradição, que não é a única do seu tipo, mostra com tamente a cólera dos mortos. Porque a maior inveja dos mortos
que clareza estes povos primitivos vêem o sobrevivente. O pe- não se referia aos objetos, que podiam ser fabricados ou
culiar da situação lhes é perfeitamente consciente. Eles contam adquiridos novamente, mas sim à própria vida.
com ela e procuram utiIizá-Ia para seus fins particulares. De Chama a atenção o fato de que mesmo nas condições
ambos os pontos de vista, tanto dos inimigos como dos amigos, mais diferentes, os homens sempre atribuíram aos mortos este
o caraíbe que foi obrigado a subir na árvore desempenhou cor- sentimento. E este sentimento parece dominar os defuntos de
retamente o papel que dele se esperava. De sua dupla função, todos os povos. Eles sempre preferiam permanecer com vida.
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Para os que ainda vivem, todos os que já não vivem sofreram E agora, vê só, ela causou tua morte. Não me faças nada,
ri.14A++•
uma derrota; esta derrota consiste em não se ser um sobrevi- tu mesmo causaste o teu próprio mal, alguma coisa de ruim
vente. O morto não consegue se conformar com isto e é natural meteu dentro de tua cabeça esta vontade de comer areia. Olha,
que ele queira provocar em outras pessoas esta dor suprema estou colocando aqui o teu arco e tuas flechas para que tu
que lhe foi infligida. possas brincar. Eu sempre fui boa para contigo. Agora não
Cada morto, portanto, é alguém que foi sobrevivido. So- deixes de ser bom também para comigo, e não me faças coisa
mente nas catástrofes grandes e relativamente raras em que ,,
alguma.
todos perecem é que a relação passa a ser diferente. A morte Em seguida, aproximou-se a mãe e disse numa espécie
isolada que nos interessa aqui desenrola-se de tal forma que
um homem é arrancado do meio de sua família e do seu grupo. filho, eu te trouxe ao mundo para que pudesses
Ele deixa todo um bando de sobreviventes e todos os que têm dver litt
O‘Mu
d i
na s
ea : as coisas boas e para que te divertisses com elas.
qualquer tipo de direito sobre o morto se unem numa malta Este meu peito te alimentou enquanto quiseste mamar. Eu
fúnebre que o lamenta. Ao sentimento de enfraquecimento te fiz coisinhas lindas e roupinhas. Eu me preocupei contigo
devido à sua morte soma-se o de amor que se sentia por ele, e te alimentei e brinquei contigo e nunca te bati. Agora deves
e freqüentemente um sentimento é inseparável do outro. Ele é ser bom e não me causar nenhum mal."
lamentado e pranteado da maneira mais apaixonada possível O pai do menino morto também se aproximou e disse:
e, em seu núcleo, esse lamento é certamente um sentimento "Meu menino, quando eu te disse que a areia te mataria,
autêntico. O fato de os estranhos suspeitarem da autenticidade tu não quiseste me escutar e agora estás morto. Eu saí
desse lamento deve-se à natureza complexa e múltipla da pró- para te comprar um lindo caixão. Vou ter de trabalhar muito
pria situação. para conseguir pagá-lo. Eu cavei para ti uma sepultura num
Porque as mesmas pessoas que têm motivos para a lamen- lugar lindo, onde gostavas de brincar. Eu vou te acomodar lá
tação são também sobreviventes. Como portadores de uma e vou te dar muita areia para comer, agora que ela não pode
perda, eles se lamentam; como sobreviventes, eles vivenciam mais te fazer mal; eu sei quanto gostas dela. Tu não podes
uma espécie de satisfação. Normalmente eles não irão con- me trazer mal algum; melhor será que vás procurar a quem
fessar este sentimento indevido. Mas eles sabem muito bem te fez comer areia."
o que o morto está sentindo. Ele deve forçosamente odiá-los Tanto a avó como a mãe e o pai amavam esse menino e,
porque eles ainda têm a vida que ele não possui mais. Os apesar de ele ser ainda muito pequeno, temem seu ressenti-
vivos chamam a alma dele de volta para convencê-lo de que não mento porque eles ainda estão vivos. Todos lhe asseguram que
desejavam sua morte. Fazem tudo para que se lembre de como não são culpados pela sua morte. A avó lhe dá o arco e as
foram bons para com ele, enquanto ainda se encontrava entre flechas. O pai lhe comprou um caixão caro e também lhe dá
os vivos. Enumeram as demonstrações práticas de que res- areia para que possa comer dentro da sepultura porque sabe
peitam suas vontades. Conscienciosamente cumprem os últi- quanto ele gosta disso. A ternura simples que eles demonstram
mos desejos do falecido. Em muitos lugares esta última von- é constrangedora; mas, mesmo assim, ela tem algo de inquie-
tade tem força de lei. Tudo o que eles fazem pressupõe de tante, pois está impregnada de medo.
maneira insofismável o ressentimento do morto diante do fato Em alguns povos a crença na vida dos mortos deu origem
de eles terem sobrevivido. a um culto dos ancestrais. Lá, onde ele adquiriu formas fixas,
Um menino índio em Demerara contraiu o hábito de é como se os homens tivessem sabido domar os próprios mor-
comer areia e morreu por causa disso. Seu cadáver estava num tos que são tão importantes. Dando-lhes regularmente o que
ataúde aberto que seu pai providenciara com um carpinteiro eles pedem, honra e alimento, eles ficam satisfeitos. Seus cui-
das imediações. Antes do enterro sua avó se aproximou do dados, desde que realizados segundo todas as regras da tradi-
féretro e disse com voz chorosa: ção,• os convertem em aliados. O que foram nesta vida con-
"Meu neto, eu sempre te disse para não comer areia. Eu tinuam sendo depois; eles ocupam seu lugar anterior. Quem,
nunca te dei areia, eu sabia que isto não te faria bem. Tu na terra, foi um chefe poderoso, também o é debaixo da terra.
sempre foste buscar areia sozinho. Eu te disse que isso era Durante os sacrifícios e as invocações, seu nome é citado em
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primeiro lugar. Sua suscetibilidade é considerada ao extremo; ancestrais, quando se respeitam os antigos hábitos e costumes
quando ela é ferida, as conseqüências podem ser muito perigo- e não se introduzem modificações, quando se realizam regular-
sas. Ele se interessa pela prosperidade dos seus descendentes; mente os sacrifícios, os ancestrais ficarão satisfeitos e irão
muitas coisas dependem dele, e sua boa disposição de ânimo é incentivar o bem-estar dos seus descendentes. Quando alguém
indispensável. Ele gosta de permanecer perto dos seus des- adoece, sabe que provocou o descontentamento de algum dos
cendentes e nada deve ser feito que possa afugentá-lo. seus ancestrais, e conseqüentemente fará tudo o que lhe for
Entre os zulus da África do Sul, esta convivência com os possível para descobrir o motivo deste descontentamento.
ancestrais assume uma forma particularmente íntima. Os rela- Porque os mortos estão longe de ser justos o tempo
tos que o missionário inglês Callaway reuniu e editou há cerca todo. Eles foram seres humanos que todos conheceram pes-
de cem anos são o testemunho mais autêntico a respeito soalmente e cujas fraquezas ainda estão presentes na lembrança
do culto dos ancestrais deste povo. Callaway deixa que seus dos vivos. Nos sonhos eles aparecem de uma forma que com-
informantes tomem a palavra e anota as declarações deles no bina com o seu caráter. Vale a pena citar um caso anotado
seu próprio idioma. Seu livro The Religious System of the com alguns detalhes por Callaway. Este caso mostra que até
Amazulu é muito raro e, por este motivo, não é suficiente- mesmo os mortos bem cuidados e famosos às vezes são to-
mente conhecido; no entanto ele figura entre os documentos mados de ressentimento contra os sobreviventes simplesmente
essenciais e básicos da humanidade. porque eles ainda estão vivos. A história de um destes ressen-
Os ancestrais dos zulus se tornam serpentes e descem timentos, como se verá — transposta para o contexto que nos
para baixo da terra. Mas não são, como se poderia supor, ocupa —, está ligada ao desenvolver-se de uma perigosa
serpentes míticas que ninguém pode ver. São espécies bem enfermidade.
conhecidas que se arrastam até perto das palhoças, entrando Um irmão mais velho morreu. Suas propriedades e em
com freqüência dentro delas. Algumas destas serpentes, graças particular todo o seu gado — que entre os zulus é conside-
a certas singularidades físicas, lembram determinados ancestrais, rado a propriedade mais importante — passaram para seu
e os vivos as consideram como sendo eles. irmão mais jovem. Esta é a ordem habitual da herança. O
Mas não são apenas serpentes, uma vez que em sonhos irmão mais jovem, que assumiu a herança e que realizou todos
aparecem aos vivos sob forma humana, falando com eles. Os os sacrifícios necessários, não está consciente de ter cometido
zulus aguardam esses sonhos, sem os quais a existência se nenhuma falta contra o morto. Mas de súbito ele adoece gra-
torna desagradável; eles querem falar com seus mortos, e é vemente e em sonho seu irmão lhe aparece.
importante vê-los de maneira clara e distinta em seus sonhos. "Eu sonhei que ele me batia e dizia: 'Como é que você
Às vezes a imagem dos ancestrais fica turva e obscura; nestes já não sabe quem sou?' Eu lhe respondi: 'Que posso fazer para
casos, mediante determinados ritos, consegue-se que a imagem que você veja que eu o reconheço? Eu sei que você é meu
volte a ficar clara. De quando em quando, especialmente em irmão!' Ele perguntou: 'Quando você sacrifica um boi, por
todas as ocasiões mais importantes, são-lhes oferecidos sacri- que não me chama?' Eu respondi: 'Mas eu chamo e honro
fícios. Imolam-se bodes e bois para eles, que são convocados você com os seus títulos de glória. Diga-me que boi eu sacri-
de forma solene para que comam essas vítimas. São chamados fiquei sem ter invocado você'. Ele disse: 'Quero carne'. Eu
em voz alta pelos seus títulos de glória, aos quais dão grande recusei e lhe disse: 'Não, meu irmão, eu não tenho, boi algum.
importância; eles são muito sensíveis e considera-se uma ofensa Você está vendo algum no curral?' Ainda que haja um só',
esquecer estes títulos de glória por ocasião dos chamamentos. disse ele, 'eu o quero para mim.' Quando despertei senti dores
O animal sacrificado deve soltar um grito que possa ser ouvido nas costas. Tentei respirar mas não conseguia; meu fôlego
pelos ancestrais, que amam este grito. Os carneiros, que mor-
rem mudos, conseqüentemente, não servem para este tipo de "O homem era obstinado e não queria sacrificar um boi.
sacrifício. Aliás, o sacrifício neste caso nada mais é do que E disse: 'Estou realmente doente e conheço a doença que me
uma ceia da qual participam vivos e mortos em conjunto, uma afeta'. As pessoas lhe disseram: 'Se você sabe qual é a sua
espécie de comunhão entre os vivos e os mortos. doença, por que não se livra dela? Será que um homem pode
Quando se vive como estavam acostumados a viver os causar voluntariamente sua doença? Se ele sabe o que é,
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será que ele quer morrer? Porque quando um espírito está lhe darei a carne que está pedindo. Se eu vir que ele me deixa
irado com o homem, ele o destrói'. paz e que me curo da doença, amanhã mesmo matarei o
em
"Ele respondeu: `Não, senhores! Eu fiquei doente por ga do para ele. Se for ele o responsável, que me faça sarar e
causa de um homem. Eu o vejo em sonhos quando me deito. respirar com facilidade. Que ele faça o meu fôlego voltar ao
Porque ele sente vontade de comer carne, ele se aproxima de normal'.
mim cheio de enganos e diz que não o invoco quando mato "E as pessoas concordaram com ele: 'Sim, se pela manhã
algum animal. Ele me surpreende muito, porque eu matei você estiver com boa saúde, saberemos que é o espírito do seu
muitas cabeças de gado e nunca deixei de invocá-lo. Se ele irmão. Mas, se pela manhã você ainda estiver doente, não dire-
tem vontade de carne, poderia simplesmente me dizer: Meu mos que é o seu irmão; neste caso será apenas uma simples
irmão, eu gostaria de carne. Mas ele diz que eu não o honro doença'.
como deveria. Estou irritado com ele e acredito que ele so- "uando o sol se pôs no horizonte, ele ainda se queixava
mente queira me matar'. de dores. Mas quando chegou a hora de ordenhar as vacas ele
"E as pessoas disseram: 'Você acha que o espírito ainda pediu comida. Pediu um mingau aguado e conseguiu comer um
sabe falar? Onde está ele para que lhe possamos dizer o que pouco. Então disse: 'Quero um pouco de cerveja. Tenho sede'.
pensamos? Nós todos sempre estivemos presentes quando você Suas mulheres lhe deram cerveja e sentiram confiança no co-
sacrificou alguma cabeça de gado. Você sempre o elogiou e ração. Elas se alegravam porque tinham sentido muito medo
chamou por todos os seus títulos de glória, títulos que ele e tinham perguntado: 'Será que a doença é tão grave a ponto
recebeu por sua coragem. Nós ouvimos o que você disse e se de ele não comer coisa alguma?' Elas se alegravam em silên-
fosse possível que este seu irmão ou qualquer outro morto cio; não manifestavam a alegria com palavras, apenas olhavam
se tornasse a levantar, poderíamos interpelá-lo e lhe perguntar: umas para as outras. Ele bebeu a cerveja e disse: 'Agora quero
Por que você diz coisas como estas? rapé; quero uma pitada bem pequena'. Deram-lhe o rapé, que
"O doente respondeu: 'Ai, meu irmão é prepotente por- ele tomou e depois se deitou outra vez. Pouco depois, tornou
que é o mais velho. Eu sou mais novo do que ele. Fico sur- a adormecer.
preso com o fato de ele exigir que eu destrua todo o gado. "À noite veio seu irmão e disse: 'E então? Você já esco-
Ele não deixou o gado como herança quando morreu?' lheu o gado para mim? Você vai matá-lo amanhã?'
"As pessoas disseram: 'Este homem morreu. Mas nós "E o adormecido disse: 'Sim, vou matar um boi para você.
ainda estamos falando com você e seus olhos ainda nos vêem Meu irmão, por que você diz que eu nunca o invoco, se sempre
realmente. Por isso dizemos a você o que importa a ele: fale honro você com todos os seus títulos de glória, quando sa-
com ele com muita calma e, mesmo se você tiver apenas uma crifico gado? Pois você foi muito corajoso e um excelente
única cabra, sacrifique-a. É uma vergonha que ele possa vir e guerreiro'.
matar você. Por que você vê constantemente seu irmão em "Ele respondeu: 'Tenho bons motivos, pois tenho vontade
sonhos e fica doente? Um homem que sonha com seu irmão de carne. Afinal„ eu morri e deixei uma aldeia para você. Você
deveria despertar com saúde'. tem uma grande aldeia'.
"Ele disse: 'Bem, senhores, eu darei a carne que ele ama. " 'Está bem, meu irmão, você me deixou uma aldeia. Mas,
Ele exige carne. Ele me mata. Ele comete uma injustiça comi- quando você me deixou a aldeia e morreu, você tinha matado
go. Todas as noites sonho com ele e acordo sentindo dores. Ele todo o seu gado?'
" 'Não, eu não tinha matado todo ele.'
não é um homem; sempre foi um sujeito miserável e briguento.
`Mas agora, filho do meu pai, você me pede que eu des-
Porque sempre foi assim: uma palavra, um golpe. Quando "
truatudo?'
alguém falava com ele, ele sempre respondia com golpes físicos. " 'Não, eu não exijo que você destrua tudo. Mas eu lhe
Quando havia alguma briga, ele era sempre o culpado e sem- digo: mate para que sua aldeia seja grande!'
pre golpeava os outros. Ele nunca quis ver isto e nunca reco- despertou e se sentiu bem; as dores do seu corpo
nheceu este fato. Jamais disse: Eu cometi um erro, não deve- tinham sumido. Sentou-se e cutucou a mulher: 'Levante-se e
ria ter brigado com esta ou aquela pessoa. Seu espírito é faça fogo'. A mulher acordou e obedeceu. Ela perguntou como
como ele. Ele é ruim e está sempre bravo e irritado. Mas eu ele se sentia. 'Fique quieta', disse ele; 'ao acordar senti o cor-
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po leve. Falei com meu irmão e quando acordei estava curado'. espírito deixar você doente nós saberemos que é o seu miserá-
Tomou uma pitada de rapé e tornou a adormecer. O espírito de vel irmão. Durante sua grave doença, não sabíamos se ainda
seu irmão retornou e disse: 'Veja como curei você. Mate o comeríamos carne com você. Vemos agora que o miserável quer
gado pela manhã!' que você morra. Estamos contentes por ver que você está
"Pela manhã ele se levantou e foi até o curral. Ele tinha novamente com saúde'."
mais alguns irmãos menores e os chamou; eles o acompanha- "Afinal, eu morri", diz o irmão mais velho, e esta frase
ram. 'Eu chamo vocês porque agora estou curado. Meu irmão contém em si a essência da disputa entre eles, da perigosa en-
diz que foi ele quem me curou.' Então mandou que eles lhe fermidade. Não importa de que forma o morto se comporta, não
trouxessem um boi. Eles o trouxeram. 'Tragam esta vaca esté- importa o que ele peça; ele está morto e isto é motivo sufi-
ril!' Eles a trouxeram. Chegaram à parte superior do curral e ciente de amargura. "Eu te deixei uma aldeia", diz ele, e acres-
ali ficaram junto dele. Rezou com as seguintes palavras: centa em seguida: "Você tem uma grande aldeia". A vida do
" 'Agora comam todos vocês, gente de nossa casa. Que um outro é esta aldeia; ele também poderia ter dito: "Eu estou
bom espírito permaneça conosco, que as crianças prosperem e morto e você ainda está vivo".
que todos fiquem com boa saúde. E eu pergunto a você que é É esta repreensão que o vivo teme e, sonhando com ela,
meu irmão: por que volta e torna a voltar em sonhos para mim? dá razão ao morto: afinal ele realmente sobreviveu ao morto. A
Por que sonho contigo e fico doente? Um espírito que é bom amplitude desta injustiça, diante da qual todas as demais injus-
vem e traz boas notícias. Eu tenho que me queixar o tempo tiças empalidecem, confere ao morto o poder de transformar a
todo por estar doente. Que tipo de gado é este que seu proprie- repreensão e a amargura numa grave doença. "Ele quer me
tário deve devorar, depois do que sempre fica doente? Eu lhe matar", diz o irmão mais moço; pois afinal ele morreu, pensa
digo: pare com isso! Pare de me deixar doente! Eu lhe digo: consigo mesmo. Ele sabe portanto muito bem por que o teme,
venha a mim em sonhos, fale comigo tranqüilamente e me diga e para apaziguá-lo consente finalmente em fazer o sacrifício.
o que você quer! Mas você sempre vem com a intenção de me Sobreviver aos mortos, como se vê, implica consideráveis
matar! Está mais do que claro que em vida você foi um sujeito incômodos para os vivos. Mesmo onde se estabeleceu uma ve-
ruim. E debaixo da terra você continua sendo um sujeito ruim? neração regular dos mortos não se pode confiar inteiramente
Eu nunca esperei que seu espírito se apresentasse a mim de neles. Quanto mais poderoso foi um deles entre os homens,
forma gentil e que me trouxesse boas notícias. Mas por que é tanto mais perigoso é seu ressentimento quando está do outro
que você vem com maldade? Você, o mais velho dos meus lado.
irmãos, que deveria trazer coisas boas para a aldeia para que No reino de Uganda encontrou-se uma maneira de man-
nada de ruim aconteça com ela; você, que era o proprietário ter o espírito do rei defunto entre os seus súditos devotos. Ele
da aldeia. não podia ir embora, não podia ser enviado para longe, era
"Depois ele disse as seguintes palavras sobre os animais e obrigado a permanecer neste mundo. Depois de sua morte,
agradeceu: 'Aqui estão os animais que sacrifico para você: um designava-se um médium, um mandwa, no qual se alojava o
boi vermelho e uma vaca vermelha e branca estéril. Mate-os! E espírito do rei. O médium, que tinha a função de sacerdote,
eu lhe digo: fale amavelmente comigo para que eu desperte sem devia ser parecido com o rei e comportar-se exatamente como
dores. Eu digo: deixe que todos os espíritos de nossa casa se ele. Imitava suas peculiaridades na maneira de falar e, quando
reúnam aqui em torno de você que tanto gosta de carne!' se tratava de um rei de tempos remotos, utilizava, como está
"Depois ele ordenou: 'Matem os animais!' Um dos seus comprovado num caso, o idioma arcaico falado trezentos anos
irmãos pegou uma lança e matou a vaca estéril; ela caiu. Depois antes. Quando o médium morria, o espírito do rei entrava num
o boi, que também caiu. Ambos berraram. Ele os matou; eles outro membro do mesmo clã. Assim um mandwa recebia seu
morreram. Ele ordenou que lhes tirassem a pele; e a pele lhes cargo de outro e o espírito do rei tinha sempre uma residên-
foi tirada. Eles os comeram no curral. Todos os homens se reu- cia. Era possível, portanto, que um médium utilizasse pala-
niram e pediram comida. Pedaço por pedaço, foram levando a vras cujo significado ninguém mais entendia, nem mesmo seus
carne. Comeram e ficaram satisfeitos. Eles agradeceram e disse- colegas.
ram: 'Nós agradecemos a você, filho de fulano de tal. Se um Mas não se deve imaginar que o médium representava
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perpetuamente o rei. De tempos em tempos, como se dizia, almas dos mortos. Pois a comunicação com o mundo dos mor-
"o rei o tomava pela cabeça". Ele caía então num estado de tos era perigosa se estes tomavam a iniciativa. Era propícia
obsessão e encarnava o morto em todos os detalhes. Nos clãs se aparecia como culto dos ancestrais, realizada segundo as
responsáveis pelo fornecimento dos médiuns transmitia-se por prescrições da tradição e efetuada nos intervalos devidos.
meio de palavras e de imitações as peculiaridades do rei, na A sobrevivência da alma dependia da força física e moral
época do seu falecimento. O rei Kigala morreu em idade muito que tivesse conseguido durante a vida. Esta força era adqui-
avançada; seu médium era um homem bastante jovem. Mas rida mediante a alimentação e o estudo. De importância muito
quando o rei o "tomava pela cabeça" ele se transformava
especial era a diferença entre a alma do senhor, que era um
num velho: seu rosto se enchia de rugas, a saliva escorria de "comedor de carne" e que se tinha nutrido bem durante toda
sua boca e ele começava a mancar. a vida, e a de um camponês comum, sempre mal alimentado.
Estes ataques eram contemplados com a maior veneração. "Somente os senhores", diz Granet, "têm uma alma no sentido
Considerava-se uma honra poder presenciar um deles; esta- próprio da palavra. Nem mesmo a velhice desgasta esta alma;
va-se então na presença do rei, que era identificado. O morto, pelo contrário, ela a enriquece. O senhor se prepara para a
porém, que podia manifestar-se quando queria no corpo de morte comendo a maior quantidade de manjares refinados e
um homem cuja função era apenas esta, não devia sentir o tomando bebidas vivificantes. No decorrer de sua vida, ele as-
mesmo ressentimento em relação aos sobreviventes que os ou- similou grandes quantidades de essências; tanto mais quanto
tros, que eram expulsos irremediavelmente deste mundo. maiores e mais opulentas eram suas posses. Ele multiplicou
Particularmente rico de conseqüências é o culto dos an- ainda mais a rica substância dos seus ancestrais, que já tinham
cestrais entre os chineses. Para compreender o que é um an- se alimentado de carne e de caça fina. Sua alma, quando ele
cestral entre os chineses, é preciso abordar antes a concepção morre, não se dispersa como uma alma vulgar; ela sai do cadá-
que eles tinham da alma. ver com força total.
Acreditavam que todos os seres humanos possuíam duas "Se o senhor levou uma vida de acordo com as regras de
almas. Uma delas, chamada po, originava-se a partir do esper- sua situação, sua alma, enobrecida e purificada pelos ritos
ma, estando conseqüentemente presente desde o momento da fúnebres, possui depois de sua morte um poder augusto e se-
procriação; era responsável pela memória. A outra, hun, ori- reno. Possui o vigor benéfico de um gênio tutelar e conserva
ginava-se do ar que a pessoa respirava depois do nascimento ao mesmo tempo todas as características de uma pessoa dura-
e ia se formando pouco a pouco. Tinha o formato do corpo doura e santa. Ela se torna uma alma de ancestral."
ao qual dava vida, mas era invisível. A inteligência, que lhe Passa então a receber um culto próprio num templo es-
pertencia, crescia com ela, que era a alma superior. pecial e toma parte das cerimônias das estações, da vida da
Depois da morte, esta alma-respiração subia ao céu, en- natureza e da vida do país. Quando a caça é abundante, ela
quanto a- alma-esperma permanecia com o cadáver dentro do recebe muita comida. E jejua quando a colheita é má. A alma
túmulo. Era esta, a alma inferior, que mais se temia. Ela era do antepassado se alimenta dos cereais, da carne e da caça fina
maligna e invejosa e procurava arrastar os vivos consigo para das comarcas que são sua pátria. No entanto, por mais rica
a morte. Enquanto o corpo se decompunha, a alma-esperma que seja a personalidade de uma alma de ancestral, por mais
se dissolvia pouco a pouco, perdendo desta forma seu poder que continue vivendo em sua força acumulada, também para
maligno. ela chega o momento em que se dispersa e extingue. Depois
A alma-respiração, pelo contrário, subsistia. Ela necessi- de quatro ou cinco gerações, a tabuleta de ancestrais, à qual
tava de alimentação, pois o caminho que tinha de percorrer fazia jus por determinados rituais, perde o direito a um san-
até o mundo dos mortos era longo. Se os descendentes não tuário especial. Ela é então colocada numa arca de pedra, junto
lhe ofereciam alimento, ela sofria espantosamente. Era infe- com as tabuletas dos ancestrais mais antigos, cujas lembranças
liz quando não conseguia encontrar o caminho e então se tor- já não existem. O ancestral que essa tabuleta representava e
nava tão perigosa quanto a alma-esperma. cujo nome estava escrito nela já não é mais venerado como
Os ritos de inumação tinham uma dupla finalidade: pro- senhor. Sua vigorosa individualidade, que durante multo tem-
teger os vivos da ação dos mortos e garantir sobrevivência às po se destacou com nitidez, se dissipa. Sua trajetória chegou
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ao fim, seu papel de antepassado está encerrado. Através dos possível. A sobrevivência, desta forma, fica despojada de toda
cultos que lhe foram dedicados durante longos anos, ele tinha e qualquer característica de massa. Como paixão seria algo ab-
escapado ao destino dos mortos comuns. Agora ele retorna à surdo e incompreensível; perdeu todas as características assas-
massa dos demais mortos e torna-se anônimo como antes. sinas. As recordações e o sentimento de si mesmo celebraram
Nem todos os antepassados perduram quatro ou cinco uma aliança. Cada um destes elementos desbotou o outro, mas
gerações. Depende de seu status especial que sua tabuleta seja conservou-se o melhor de ambos.
mantida durante tanto tempo, que se invoque sua alma supli- Quem contemplar a figura do poderoso ideal, tal como
cando que aceite alimentos. Algumas tabuletas são depositadas se aperfeiçoou na história e no pensamento dos chineses, ficará
na arca já depois de uma única geração. No entanto, indepen- comovido por sua humanidade. É de se supor que a carência
dentemente do tempo durante o qual perduram, o simples da brutalidade nesta imagem possa ser atribuída a esta moda-
fato de eles existirem já serve para modificar em muitos aspec- lidade de veneração dos ancestrais.
tos as características do sobreviver.
Para o filho deixa de existir o triunfo secreto de ter per-
manecido vivo quando seu pai morreu. Porque afinal, como Epidemias
ancestral, o pai continua estando presente; o filho lhe deve
tudo o que possui, e precisa manter a benevolência dessa alma. A melhor descrição da peste nos foi dada por Tucídides,
Deve alimentar o pai, apesar de ele estar morto, e certamente que a conheceu no próprio corpo e que conseguiu sobreviver
evitará qualquer demonstração de arrogância em relação a ele. a ela. Na sua concisão e exatidão, o texto contém todas as
A alma de ancestral do pai existe enquanto o filho estiver características essenciais desta enfermidade e vale a pena trans-
vivo e, como já vimos, conserva todas as características de uma crever aqui as passagens mais importantes.
pessoa determinada e reconhecível. O pai está muito interes- "Os homens morriam como moscas. Os corpos dos mo-
sado em ser honrado e alimentado. Para sua nova existência ribundos eram amontoados uns sobre os outros. Viam-se
como ancestral é essencial que o filho esteja com vida: se não criaturas semimortas cambaleando pelas ruas ou reunindo-se
tivesse descendentes, não teria quem o venerasse. Ele deseja sedentas em torno das fontes. Os templos nos quais se alojavam
que seu filho e também as gerações seguintes sobrevivam. estavam repletos de cadáveres de pessoas que tinham morri-
Ele quer que eles prosperem, porque dessa prosperidade de- do ali.
pende sua própria existência como ancestral. Ele exige que se "Em algumas casas, os homens estavam tão abalados pelo
viva enquanto se mantenha viva sua recordação. Forma-se as- peso de suas desgraças que deixaram de celebrar os lamentos
sim uma relação íntima e feliz entre esta espécie moderada de tradicionais pelos mortos.
sobrevivência adquirida pelos ancestrais e o orgulho dos des- "Todas as cerimônias fúnebres se transtornaram; os mor-
cendentes que estãos vivos e que procuram conservá-la. tos eram enterrados da melhor maneira possível. Algumas pes-
Também é bastante significativo que os ancestrais per- soas, em cujas famílias tinham ocorrido tantas mortes que elas
maneçam isolados durante o espaço de algumas gerações. Eles já não podiam mais custear os gastos das cerimônias, recor-
são conhecidos como indivíduos e como tais são venerados, e riam aos estratagemas mais insolentes. Chegavam primeiro às
somente quando relegados a um passado mais remoto é que fogueiras que outros tinham construído, depositavam lá seus
se reduzem a uma única massa. O descendente que ainda vive próprios mortos e acendiam a lenha; ou, se encontravam uma
está separado da massa dos seus ancestrais justamente por fogueira que já ardia, lançavam seus mortos sobre os outros
aqueles que, como o pai e o avô, se interpõem como indivíduos cadáveres e se afastavam do local.
isolados e bem determinados. Se na veneração do filho influi "Temor algum em relação às leis divinas ou humanas con-
o fato de ele mesmo ainda estar com vida, esta influência seguia contê-los. No que dizia respeito aos deuses, parecia ter
ocorre de maneira atenuada e moderada. Dada a natureza da pouca importância se eles eram ou não venerados, uma vez
relação, esta influência não pode incitá-lo a multiplicar o nú- que se via que tanto os bons como os maus morriam da mesma
mero dos mortos. Será apenas ele próprio quem irá aumentar forma. Ninguém temia ter de prestar conta de delitos contra
sua quantidade e ele deseja que este fato ocorra o mais tarde as leis humanas; afinal ninguém esperava viver durante o tempo
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suficiente para que isto acontecesse. Cada qual sentia que urna
sentença muito mais grave já tinha sido ditada contra ele. nos; todos juntos num monte de cadáveres. Esta massa es-
Antes da execução desta sentença, cada um procurava conse- --tanque dos mortos, segundo as idéias religiosas, somente per-
manece morta durante algum tempo. Ela irá ressuscitar num
guir ainda algum tipo de prazer nesta vida.
"Os que se mostravam mais compadecidos em relação aos único instante e, apinhada fortemente, se apresentará diante
de Deus para o juízo final. Porém, mesmo deixando de lado
doentes e aos moribundos eram os que tinham sofrido da
peste e que tinham conseguido escapar da morte. Eles não ape- o destino futuro dos mortos — porque as crenças religiosas
nas conheciam o assunto, mas também se sentiam seguros, não são iguais em todos os lugares —, existe uma coisa que é
indiscutível: a epidemia desemboca na massa de agonizantes
desde que ninguém contraía a enfermidade duas vezes; e, caso
a contraíssem, o segundo ataque nunca era mortal. Estas pes- e de mortos. "Ruas e templos" ficam repletos deles. Freqüen-
temente deixa de ser possível sepultar isoladamente vítima por
soas eram felicitadas em todos os lugares e elas mesmas se vítima, da maneira tradicional; os mortos são empilhados uns
sentiam tão exaltadas por sua cura que acreditavam que jamais sobre os outros, milhares numa única sepultura, reunidos em
haveriam de morrer de alguma doença." gigantescas valas comuns.
Dentre todas as desgraças que sempre se abateram sobre Existem três fenômenos significativos, bem conhecidos da
a humanidade, as grandes epidemias é que deixaram lembran- manidade, cuja meta são os montes de cadáveres. Eles são
ças particularmente vívidas. Elas se iniciam de forma tão re- hu
estreitamente relacionados entre si e, por este motivo, é pre-
pentina quanto as catástrofes naturais; no entanto, ao passo ciso delimitá-los bem. Estes três fenômenos são a batalha, o
que um terremoto se esgota na maior parte das vezes em alguns suicídio em massa e a epidemia.
tremores rápidos, a epidemia pode perdurar meses e até mesmo
Na batalha a meta é o monte de cadáveres de inimigos.
um ano inteiro. O terremoto produz seus estragos de uma só Quer-se diminuir o número dos inimigos vivos para que assim
vez; todas as suas vítimas são atingidas no mesmo instante.
o número de aliados seja maior. É inevitável que um certo nú-
Uma epidemia de peste, pelo contrário, tem um efeito cumu- mero de aliados também morra, mas não é isto o que se deseja.
lativo; primeiro são atacadas apenas algumas pessoas, depois A meta é o monte dos inimigos mortos. Esta meta é procurada
os casos se multiplicam; vêem-se mortos por todos os lados; de forma ativa por iniciativa própria, pela força dos próprios
em seguida se vêem mais mortos reunidos do que pessoas vi-
braços.
vas. O resultado final de uma epidemia pode ser o mesmo
No suicídio em massa esta iniciativa é voltada contra os
provocado por um terremoto. Mas numa epidemia as pessoas próprios aliados, Homens, mulheres e crianças, todos se matam
são testemunhas da grande mortalidade que se difunde e se
reciprocamente até que nada mais resta a não ser o monte
espalha diante dos seus olhos. Elas são como participantes de de mortos. Para que nada caia nas mãos do inimigo, para que
uma batalha; mas de uma batalha que perdura durante mais
a destruição seja total, recorre-se ao fogo.
tempo do que todas as batalhas conhecidas. O inimigo, porém, Na epidemia o resultado é o mesmo que no caso do sui-
é secreto, não pode ser visto em lugar algum, não pode ser cídio em massa, com a diferença de não ser arbitrário e de
atacado. Só se pode esperar ser atacado por ele. O combate parecer imposto de fora para dentro por algum poder desco-
é conduzido exclusivamente pelo lado adversário, que ataca nhecido. Leva-se mais tempo para alcançar a meta; dessa forma,
quem quiser. O inimigo ataca tantas pessoas que todas são vive-se numa igualdade de expectativa atroz, durante a qual
levadas a temer a possibilidade de serem atacadas. todos os vínculos habituais existentes entre os homens se des-
Assim que a epidemia é reconhecida como tal, ela somen- fazem.
te pode resultar na morte de todos. Os que são atacados espe- O contágio, tão importante na epidemia, faz com que
ram — uma vez que não existe remédio contra ela — a exe- os homens se afastem uns dos outros. É mais seguro evitar a
cução da sentença. Somente os atacados pela epidemia são aproximação de outras pessoas, uma vez que elas podem trazer
massa: são iguais quanto ao destino que os espera. Seu número
consigo o contágio. Alguns fogem da cidade e se dispersam
aumenta de forma cada vez mais rápida. Eles alcançam a meta por suas propriedades. Outros se fecham em suas casas, onde
em cuja direção se movem em questão de poucos dias. Alcan- não permitem a entrada de outras pessoas. As pessoas se evi-
çam a maior densidade possível tratando-se de corpos huma- tam umas às outras. A manutenção das distâncias se transfor-
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ma numa última esperança. A expectativa de vida, a própria Cada vez mais é o decurso de tempo que mais cativa o visitante.
vida se expressa, por assim dizer, no ato de se manter dis- Cada vez mais sua atenção se desprende das particularidades
tância em relação aos doentes. Os contagiados se transfor-
mam aos poucos numa massa morta; os não-contagiados se comoventes, fixando-se apenas no decurso de tempo.
Ali está o túmulo de um que chegou aos trinta e dois anos
mantêm distantes de todos os demais, freqüentemente até idade; ao lado, outro que chegou aos quarenta e cinco. O vi-
de
mesmo de seus parentes, de seus cônjuges, de seus filhos. É sitante já viveu mais que eles e esses mortos estão, por assim
notável como neste caso a esperança de sobreviver faz do ho-
dizer, fora do páreo. Ele encontra muitos que chegaram à idade
mem um ser isolado, diante do qual se situa a massa de todas dele e, caso não tenham morrido muito jovens, seu destino não
as vítimas. desperta nenhuma compaixão. Mas também existem muitos que
No entanto, dentro desta maldição geral, na qual todos os
que adoecem estão perdidos, acontece o mais surpreendente: o ultrapassaram. Alguns chegaram aos setenta e ali está um
que passou dos oitenta. Estes ainda podem ser alcançados. Eles
existem alguns poucos que saram da peste. É de se imaginar
o incitam a uma imitação. Tudo ainda lhe é possível. A inde-
como devem sentir-se em meio aos demais. Eles sobreviveram terminação da vida que ele tem diante de si é uma grande van-
e se sentem invulneráveis. Assim, eles também conseguem se tagem sobre esses mortos, e com algum esforço poderia até
compadecer dos enfermos e dos moribundos que os rodeiam.
ultrapassá-los. Ao medir-se com eles, ele se enche de esperança,
"Estas pessoas", enfatiza Tucídides, "se sentiam tão exal- uma vez que de antemão já tem uma vantagem: a meta deles
tadas devido à sua cura que achavam que no futuro jamais já foi alcançada, eles não vivem mais. Não importa com quem
morreriam de alguma doença." irá medir-se; de qualquer maneira a força estará do seu lado.
Pois do outro lado não existe força; existe apenas uma indica-
ção da meta alcançada. Os mais idosos já sucumbiram. Eles não
A respeito da sensação de cemitério podem mais nos encarar nos olhos, homem a homem, e nos
incentivam a chegar além da meta que eles alcançaram. O morto
Os cemitérios sempre exercem uma forte atração; nós os de oitenta e nove anos que está sepultado ali adiante funciona
visitamos mesmo quando não temos parentes que foram enter- como um estímulo. O que é que nos impede de chegar à marca
rados lá. Quando se chega a cidades estrangeiras visitamos seus dos noventa anos?
cemitérios, reservando para eles o tempo necessário como se Mas este não é o único tipo de cálculo que fazemos quando
eles existissem para ser visitados. E, mesmo no exterior, não é estamos entre tantos túmulos diferentes. Começamos a pensar
sempre o túmulo de algum homem venerado e ilustre que nos no tempo transcorrido desde que alguns dos mortos foram ali
atrai. E, quando originalmente a visita foi decidida por este mo- sepultados. Os anos que nos separam da data da morte deles
tivo, ela sempre acaba se tornando mais ampla. Num cemitério têm algo de tranqüilizador: significam que o homem está no
sempre entramos num estado de ânimo muito especial. Os cos- mundo desde há muito tempo. Os cemitérios com lápides bem
tumes piedosos querem que nós nos enganemos a respeito deste antigas, que datam do séc. XVIII ou até mesmo do séc. XVII,
estado de ânimo; pois a contrição que sentimos e que demons- têm algo de enaltecedor. Ficamos pacientemente parados diante
tramos com maior ênfase do que o normal encobre, na verdade, das inscrições de difícil leitura e não nos movemos antes de
uma satisfação secreta. conseguir decifrá-las. A cronologia, que normalmente serve ape-
O que é que um visitante faz quando se encontra num ce- nas para fins práticos, adquire uma vida intensa e plena de sen-
mitério? Como é que ele se movimenta e com que se ocupa? tido. Todos os séculos dos quais conhecemos a existência nos
Caminha lentamente de um lado para outro entre os túmulos, pertencem. Quem está enterrado ali não suspeita sequer do inte-
examina esta ou aquela lápide, lê os nomes e se sente atraído resse de quem contempla o curso de sua vida. A cronologia
por muitos deles. Em seguida começa a se interessar pelo que para ele termina com o ano de sua morte; para o observador, no
está escrito debaixo dos nomes. Lá está um casal que viveu entanto, ela continua até o momento presente. Quanto não
junto durante muito tempo e que agora repousa junto no mesmo daria o morto para poder estar ainda ao lado do observador!
túmulo. Ali está uma criança que morreu ainda muito pequena. Paz duzentos anos que ele morreu; nós, por assim dizer, sobre-
Do outro lado, uma moça que chegou apenas aos dezoito anos. vivemos a ele em duzentos anos. Pois, graças a informações de
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todos os tipos, grande parte do tempo que transcorreu desde
w com a certeza de que cem anos mais tarde muitos o leriam. Nos
sua morte, nos é bem conhecida. Nós lemos e ouvimos contar tempos modernos não é possível conceber uma fé na imortali-
muita coisa desse tempo e vivemos pessoalmente uma boa parte dade literária que seja mais clara, mais isolada e mais modesta.
dele. É difícil não sentir certa superioridade nessa situação; até Que significa esta fé? Qual é o seu conteúdo? Significa que a
mesmo o homem ingênuo a sente. pessoa continuará existindo quando todos os seus contemporâ-
Mais ainda, porém, o visitante sente o fato de estar pas- neos tenham deixado de existir. Não que ela esteja indisposta
seando sozinho pelo cemitério. A seus pés jazem muitos desco- e m relação aos vivos como tais. Eles não são eliminados, nada
nhecidos, densamente apinhados. Seu número é indeterminado se faz contra eles; eles nem sequer são combatidos de alguma
se bem que elevado; e cada vez este número aumenta mais. for ma. Desprezam-se os que alcançaram uma glória falsa, mas
Eles, os mortos, não podem separar-se uns dos outros; eles sente-se também desprezo diante da alternativa de combatê-los
permanecem formando um monte. Somente quem está vivo com seus próprios meios. Nem sequer se sente rancor em rela-
vem e vai, seguindo os seus próprios caprichos. Entre todos os ção a eles, uma vez que se sabe até que ponto eles estão equivo-
que jazem deitados, apenas ele está de pé. cados. Opta-se pela companhia daqueles aos quais se irá perten-
cer algum dia; a companhia de todos os que são autores de
obras lidas ainda hoje; daqueles que falam conosco, dos quais
A respeito da imortalidade
nos nutrimos. A gratidão que se sente em relação a eles é uma
É bom partir de um homem como Stendhal quando se gratidão pela própria vida.
fala de imortalidade privada ou literária. Seria difícil encontrar Matar para sobreviver nada pode significar para este estado
uma pessoa com maior aversão às representações correntes de de ânimo, porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de
fé. Stendhal foi um homem inteiramente livre das promessas entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se
e dos laços de qualquer religião. Seus pensamentos e seus sen- estará mais vivo pessoalmente e por conseguinte não se poderá
timentos voltavam-se exclusivamente para esta vida. Ele a sen- matar. Serão as obras que se confrontarão, e será demasiado
tiu e desfrutou da maneira mais precisa e profunda. Ele se abriu tarde para acrescentar qualquer coisa. A rivalidade propriamente
para tudo o que podia lhe dar prazer, e isto não fez com que dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não
se tornasse insípido, porque respeitou o que havia de indivi- estão presentes. O combate que será travado por suas obras
dual em si mesmo. Não reduziu nada a uma unidade duvidosa. nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas essa obra
Desconfiou de tudo o que não era capaz de sentir. Pensou mui- precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais
to, mas nele não existe pensamento frio. Tudo o que registrou, pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade
tudo o que criou conserva o calor de sua origem. Ele amou de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos
muitas coisas e acreditou em algumas, mas tudo era sempre mi- os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna
lagrosamente concreto. Tudo podia ser facilmente encontrado efetivo, tanto o menor como o maior.
dentro dele, sem que tivesse a necessidade de lançar mão de Trata-se do oposto daqueles donos do poder que arrastam
algum truque. consigo para a morte tudo o que os cerca para que, numa exis-
Esse homem que nada pressupunha, que sempre quis en- tência futura, reencontrem tudo aquilo a que estavam acostu-
contrar tudo através de si mesmo, que era a própria vida como mados. Nada caracterizava de maneira mais espantosa sua impo-
sentimento e espírito, que se encontrava no centro de todo acon- tência íntima. Eles matam em vida, matam na morte, um séqüito
tecimento e que por isto também era capaz de contemplar o que de mortos os acompanha para o além.
acontecia de fora para dentro, no qual a palavra e o conteúdo Quem, porém, abrir um volume de Stendhal torna a encon-
coincidem da maneira mais natural possível, como se ele se trá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui
tivesse proposto a depurar a linguagem por conta própria, esse nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais
homem excepcional e realmente livre tinha, apesar de tudo, nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo pro-
uma fé, da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se veitosa para os vivos; nesta reversão da oferenda' aos mortos,
fosse uma amante. todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus
Ele se contentou, sem revolta, em escrever para poucos, aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim.
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ELEMENTOS DO PODER
Força e poder
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estes dois conceitos expressa também a relação entre o poder
e a força. Na boca não restam esperanças, não existe tempo orça e rapidez
nem espaço. Deste ponto de vista, a prisão é como uma amplia- A rapidez, enquanto pertence ao âmbito do poder, é a veloci-
ção da boca. Nela é possível dar alguns passos para cada lado,
exatamente como o rato faz sob os olhos do gato; às vezes sen- dade em alcançar ou em agarrar. Em ambos os casos os ani-
te-se o olhar do carcereiro cravado nas costas. O prisioneiro mais constituíram o modelo para o homem. O homem apren-
deu com as feras corredoras, principalmente com os lobos, a
tem tempo diante de si e esperanças de escapar ou de ser liber-
ação de alcançar. O agarrar mediante um salto súbito lhe foi
tado; e durante todo o tempo percebe-se o interesse destrutivo ensinado pelos felinos: seus mestres invejados e admirados
do aparelho da prisão em que se está, mesmo quando este inte- nisto foram o leão, o leopardo e o tigre. As aves de rapina
resse parece ter deixado de existir. reúnem os dois tipos de rapidez: alcançar e agarrar. Na ave
Mas a diferença entre poder e força se torna visível tam- de rapina, que voa solitária e visível e que depois se precipita
bém numa esfera completamente distinta: nos múltiplos matizes de elevada altura, o processo se expressa de maneira perfeita.
da devoção religiosa. Todos os que acreditam em Deus encon- Ela inspirou ao homem uma arma: a flecha, que durante mui-
tram-se sempre em poder de Deus e cada qual à sua maneira se to tempo foi o instrumento de maior velocidade que ele pôde
conforma com isso. Mas para muitos isto não é suficiente. Eles possuir. Por meio de suas flechas o homem voa para ir alcan-
esperam uma intervenção taxativa, um ato imediato de violência esa.
çar sua presa.
divina que possam reconhecer e sentir como tal. Encontram-se a nimais servem desta forma, desde muito cedo,
como símbolos do poder. Eles representavam os deuses ou os
na situação de quem aguarda ordens. Para eles Deus tem as
ancestrais do homem poderoso. Um lobo era ancestral de
características mais cruas do soberano. Sua vontade ativa, que Gengis-Khan. O falcão Hórus era o deus do faraó egípcio. Nos
implica a submissão ativa deles em cada caso particular, em reinos africanos os animais sagrados da estirpe real são o leão
cada manifestação, torna-se para eles o próprio núcleo da fé. e o leopardo. Das chamas, nas quais se queimava o cadáver do
As religiões deste tipo tendem a acentuar o princípio da pre- imperador romano, sua alma voava aos céus como uma águia.
destinação divina; desta forma seus fiéis têm motivos para sen- O mais rápido, porém, é o que sempre foi o mais rápido:
tir que tudo o que lhes sucede é uma expressão imediata da o raio. O medo supersticioso em relação ao raio, diante do qual
vontade divina. Eles podem submeter-se com maior freqüência não existe proteção possível, está amplamente difundido. Os
e até o fim. É como se eles já vivessem dentro da boca de Deus, mongóis, diz o monge franciscano Rubruk, que chegou até eles
que irá triturá-los logo a seguir. Eles, no entanto, têm a obri- como enviado de Luís IX da França, ou São Luís, temem o
gação de continuar vivendo neste terrível tempo presente sem trovão e o raio mais do que qualquer outra coisa. Durante
qualquer temor, e agindo da maneira mais correta possível. uma tempestade eles expulsam de seus abrigos todos os es-
O Islamismo e o Calvinismo são conhecidos principalmen- trangeiros, envolvem-se em feltros negros e se escondem até
te por esta tendência. Seus partidários estão sedentos da força que tudo tenha passado. Eles se abstêm (informa o historiador
divina. Não lhes basta apenas o poder divino; este lhes parece persa Rashid, que esteve a serviço deles) de comer a carne de
por demais generalizado e distante, deixando que muitas coi- um animal abatido por um raio, não ousando sequer aproxi-
mar-se dele. Entre os mongóis, proibições de todos os tipos
sas fiquem aos cuidados deles mesmos. O efeito desta perma-
servem para se obter o favor do raio. É preciso evitar tudo o
nente espera de ordens sobre os que se entregaram a ela de ue possa
que p a at atraí-lo.
í-lo. Oraio freqüentemente é a arma principal
uma vez por todas é profundo e tem as mais graves conseqüên- deu mais poderoso.
cias sobre seu comportamento em relação aos demais. Dessa
Seu aparecimento repentino entre as trevas tem o caráter
atitude surge o tipo de crente-soldado para o qual a batalha de uma revelação.O raio alcança e ilumina. A partir do seu
é a expressão mais exata da vida; batalha na qual ele não sente comportamento
rtamentopeculiar procura-se deduzir conclusões a res-
medo, porque afinal sente-se dentro dela o tempo todo. Quan- que lugarvontade
do cé dosdeuses. Em que forma ele aparece e em
do falarmos exclusivamente a respeito da ordem examinaremos u. , e onde vem? Para onde vai? Entre os
este tipo de crente com maiores detalhes. etruscos, a interpretação do raio era tarefa de uma classe espe-
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cial de sacerdotes que foram adotados pelos romanos como fui_ deslocamentos decisivos nas relações de poder. Combate-se a
guratores. dissimulação do inimigo com a própria dissimulação. Um go-
"O poder do soberano", afirma um antigo texto chinês, vernante convida importantes militares ou civis para um ban-
"assemelha-se ao do raio, apesar de ser inferior em sua ener- quete festivo. De repente, quando eles menos temem sua ini-
gia". É surpreendente o número de detentores do poder que mizade, são assassinados. A mudança de uma atitude para
foram fulminados pelo raio. É possível que os relatos a este outra corresponde com precisão à retirada da máscara. A rapi-
respeito nem sempre correspondem à verdade, mas o fato de dez do acontecimento é aguçada ao extremo; dela depende o
essa relação ter sido estabelecida já é em si algo significativo. êxito do projeto. O detentor do poder, bem consciente de sua
Notícias a este respeito são numerosas entre os romanos e entre constante simulação, somente pode esperar a mesma coisa por
os mongóis. Ambos esses povos acreditam num deus supremo parte dos outros. Toda rapidez, com a qual ele se adianta aos
no céu, ambos têm um sentido fortemente desenvolvido do outros, lhe parece ser permitida e indicada. Ele pouco se im-
poder. O raio, neste caso, é tomado como uma ordem sobre- portará de pôr as mãos num inocente; afinal, no complexo
natural. Quando ele fulmina, é porque deve fulminar. Quando jogo das máscaras, qualquer um pode equivocar-se. Por outro
fulmina um poderoso, foi enviado por alguém que é ainda lado, ficará profundamente irritado se, devido à falta de rapi-
mais poderoso. Serve como o castigo mais rápido e repentino, dez, um inimigo conseguir escapar.
mas também como o castigo mais evidente.
Ele foi imitado pelos homens e deu origem a um deter-
minado tipo de arma: a arma de fogo. O relampejar e o trovão Pergunta e resposta
do disparo, o fuzil e principalmente o canhão provocaram o
terror daqueles povos que não os conheciam e que os viam Toda pergunta é uma penetração, uma incursão. Quando a
como se fossem um raio. pergunta é utilizada como meio de poder, ela corta feito uma
Mas bem antes disso o homem já quis transformar-se no navalha o corpo do interrogado. Já se sabe o que se pode
animal mais veloz. A domesticação do cavalo e a formação da encontrar; mas não se quer realmente encontrar nem atingir
cavalaria em sua forma mais perfeita determinaram as grandes isso. Com a segurança de um cirurgião, penetra-se nos órgãos
irrupções históricas a partir do Oriente. Nos relatos contempo- internos. O cirurgião mantém sua vítima com vida para ave-
râneos sobre os mongóis sempre se destaca sua rapidez. Sua riguar coisas mais precisas a respeito dela. Este é um cirurgião
aparição sempre era inesperada; apareciam tão rapidamente de tipo especial, que trabalha conscientemente com a provo-
como desapareciam, e reapareciam mais repentinamente ainda. cação de uma dor local. Ele irrita determinadas zonas da víti-
Sabiam utilizar até mesmo a precipitação da fuga como agres- ma para saber coisas seguras a respeito de outras.
são; quando os inimigos acreditavam que eles tinham fugido, As perguntas procuram respostas; as que não recebem
viam-se cercados por eles. respostas são como flechas disparadas para o ar. A pergunta
A velocidade física como qualidade do poder aumentou mais inocente é a que permanece isolada e que não traz outra
desde então de todas as maneiras possíveis. Seria supérfluo consigo. Pergunta-se a localização de um edifício a uma pes-
entrar em detalhes a respeito de seus efeitos nesta nossa era soa desconhecida. Esta nos indica o caminho. Contentamo-nos
técnica. com esta resposta e prosseguimos em nosso caminho. Retemos
À esfera do agarrar pertence um tipo muito distinto de o desconhecido durante um instante. Forçamo-lo a se lembrar
rapidez, a do desmascaramento. Um ser inofensivo ou submisso de alguma coisa. Quanto mais clara e objetiva for a resposta,
está à nossa frente; arrancamos-lhe a máscara; por trás dela tanto mais rapidamente ele se livra do embaraço que nós lhe
existe um inimigo. Para ser eficaz, o desmascaramento deve ser causamos. Ele entregou o que esperávamos dele, e não tem
súbito. Este tipo de rapidez poderia ser designado como ra- nenhuma obrigação de voltar a nos ver.
pidez dramática. O ato de alcançar se restringe aqui a um es- Mas um indagador poderia não ficar satisfeito e continuar
paço muito pequeno, concentra-se. A utilização de uma máscara formulando perguntas. Quando estas se acumulam, não tardam
a.,provocar desgosto, insatisfação por parte do interrogado. Ele
como melo de dissimulação é antiqüíssimo e seu oposto é o
desmascaramento. De máscara em máscara é possível conseguir já não é mais retido apenas externamente; em cada resposta
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ele mostra mais alguma parte de si mesmo. É possível que sejam ioda por escrito. Uma resposta então compromete muito mais.
coisas sem importância, superficiais, mas elas estão sendo ex- Está sujeita a comprovações e o adversário pode utilizar-se dela.
traídas dele por um desconhecido. Estão relacionadas com ou- Quem carece de defesas externas apela para sua armadu-
tras coisas mais ocultas e que ele considera mais importantes. ra interior; esta armadura íntima contra a pergunta é o segredo.
A insatisfação, o desgosto que ele sente não demora muito como se fosse um segundo corpo, mais bem protegido, que
para se transformar em desconfiança. se encontra dentro do primeiro; quem se aproximar demais
Porque o efeito das perguntas consiste justamente em deve preparar-se para encontrar surpresas desagradáveis. Como
realçar o sentimento de poder do interrogador; elas lhe dão algo mais denso, o segredo se separa do ambiente que o cir-
vontade de formular cada vez mais e mais perguntas. Quem cunda e é mantido num local escuro que poucos conseguem
responde se submete tanto mais quanto mais ceder às pergun- iluminar. O que existe de perigoso no segredo sempre é colo-
tas. A liberdade da pessoa reside em boa parte em sua capa- cado acima do seu conteúdo propriamente dito. O mais im-
cidade de defender-se das perguntas. A tirania mais exigente portante e, poderíamos quase dizer, o mais denso do segredo
é a que se permite fazer as perguntas mais exigentes. Sensata é sua defesa eficaz contra a pergunta.
é uma resposta que põe fim às perguntas. Quem pode permi- O silêncio diante de uma pergunta é como o choque de
tir-se isto recorre às contraperguntas; entre pessoas iguais este uma arma contra um escudo ou uma armadura. Emudecer é
é um meio comprovado de defesa. Aquele a quem sua posição uma forma extrema de defesa, em que as vantagens e as des-
não permite réplica deve dar uma resposta exaustiva e escla- vantagens se equilibram. A pessoa emudecida não se expõe,
mas em compeisação parece ser mais perigosa do que realmente
recer tudo o que o outro procura ou, pela astúcia, tirar-lhe a
é. Supõe-se que ela oculte muito mais do que aquilo que ela
vontade de continuar indagando. Ele pode adular o interroga-
prefere não dizer. Ela emudeceu apenas porque tem muito
dor e reconhecer sua superioridade, de tal forma que este já
para ocultar; é importante então não deixá-la ir. O silêncio
não tenha mais necessidade de manifestá-la ele mesmo. Pode
obstinado acaba provocando o interrogatório penoso, a tortura.
desviar sua atenção para outras pessoas, às quais seria mais
Mas sempre, também em circunstâncias ordinárias, a res-
interessante ou produtivo interrogar. Se for alguém hábil em posta nos prende a alguma coisa. Não se pode abandoná-la com
dissimulações, pode ocultar sua verdadeira identidade. A per- facilidade. A resposta obriga a pessoa a se situar num determi-
gunta então passa a ser dirigida a outra pessoa e a resposta nado lugar e a permanecer aí enquanto o interrogador pode
não é sua incumbência. atacar de qualquer ângulo; de certa forma, quem faz as per-
A pergunta, que no fundo é uma espécie de dissecação, guntas contorna o interrogado e escolhe a posição que mais
começa com um toque. O contato se intensifica e chega a lhe convém. Ele pode ficar girando em torno do outro, sur-
diferentes lugares. Onde encontra pouca resistência, penetra. preendendo-o e confundindo-o. A mudança de posição lhe con-
O que é encontrado é colocado de lado, de reserva, para ser fere uma espécie de liberdade que o interrogado não pode ter.
utilizado posteriormente; as coisas encontradas não são apro- Ele procura agredi-lo com a pergunta e quando consegue tocá-lo
veitadas imediatamente. Primeiro é necessário encontrar aquele com ela, ou seja, quando o obriga a dar uma resposta, conse-
ponto bem definido que está sendo procurado. Toda pergunta gue subjugá-lo, prendê-lo num lugar. "Quem é você?" "Sou
sempre dissimula uma finalidade perfeitamente consciente. As fulano". O interrogado já não pode mais ser outra pessoa, ele
perguntas indefinidas, como as de uma criança ou de um tolo, está privado da possibilidade de escapar por metamorfose. Se
não têm força e são fáceis de ser eliminadas. o processo for prolongado, pode ser considerado como uma
Quando se exigem respostas breves e concisas, a situa- espécie de encadeamento.
ção se torna mais perigosa. Uma simulação convincente ou uma A primeira pergunta se refere à identidade, a segunda ao
metamorfose de fuga em poucas palavras passa a ser difícil ou lugar. Uma vez que ambas pressupõem uma linguagem oral,
até mesmo impossível. A maneira mais rudimentar de defesa seria interessante saber se é concebível uma situação arcaica,
é fazer-se de surdo ou fíngír não entender. Mas este estrata- queteria existido antes da pergunta em forma de palavra, e
gema funciona apenas entre iguais. Noutros casos, quando o que fosse equivalente a esta. Nela, lugar e identidade deveriam
coincidir ; uma coisa sem a outra deveria carecer de sentido. Esta
mais forte interroga o mais fraco, a pergunta pode ser formu-
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situação arcaica efetivamente existiu. É o contato vacilante coro separar os prós e os contras. A medida que a pergunta
a presa. Quem é você? Você pode ser comida? O animal, fo cortês e sem intenção de cobrança, ela nos dá uma liberdade
r
constantemente em busca de alimento, toca e fareja tudo o de decisão.
que encontra. Coloca o nariz em toda parte. Você pode ser Nos diálogos platônicos, Sócrates é elevado a uma espécie
comido? Qual é o seu gosto? A resposta é um odor, uma de posição de rei das perguntas. Ele recusa todos os tipos
contrapressão, uma rigidez inerte. O corpo estranho é aqui usuais de poder e se esquiva diligentemente de tudo o que
seu próprio lugar e por meio do farejamento e do toque fami- poderia lembrar isso. A sabedoria, que era sua superioridade,
liariza-se com ele ou, transladando isto para nossos costumes pode ser buscada nele por qualquer pessoa. No entanto Sócra-
humanos, dá-se-lhe um nome. tes freqüentemente não a comunicava numa conversação coe-
Na educação precoce da criança existem dois fenômenos rente, mas sim através da formulação de perguntas. Nos Diá-
que ao se cruzarem se intensificam de forma desmedida; pa- logos, Platão coloca em sua boca as perguntas mais determi-
recem ser desproporcionais e no entanto estão intimamente nantes e mais importantes. Desta forma Sócrates não solta seus
relacionados. Os pais, por um lado, ditam permanentemente ouvintes; obriga-os a separações dos tipos mais diversos. Ele
ordens vigorosas e insistentes; a criança, por outro lado, for- consegue seu domínio sobre os ouvintes exclusivamente me-
mula um sem-número de perguntas. Essas perguntas precoces diante suas perguntas.
da criança são como gritos pedindo alimentos, de forma dife- São importantes as formas de cortesia que restringem as
rente e agora já mais elevada. Elas são inofensivas, uma vez perguntas. Certas coisas não devem ser perguntadas a um es-
que de modo algum podem comunicar à criança todo o saber tranho. Se apesar de tudo o fazemos, nós o assediamos, pene-
dos pais; a superioridade destes continua sendo tremenda. tramos nele; ele teria motivos para sentir-se ferido. Nossa
Com que perguntas a criança começa? As primeiras são reserva, por outro lado, o convence do respeito que sentimos
sempre as que se referem a um lugar: "Onde está?" Outras por ele. O estranho é tratado como se fosse o mais forte;
são: "Que é isto?" e "Quem?" É possível ver claramente o trata-se de uma forma de adulação que provoca nele uma ati-
papel que já é desempenhado pelo lugar e pela identidade. tude idêntica. Somente assim, mantendo uma certa distância
Estas são realmente as primeiras coisas que uma criança indaga. uns dos outros, protegidos de perguntas como se todos fossem
Somente mais tarde, já no final do terceiro ano de vida, é que fortes e iguais nessa força, é que os homens se sentem seguros
ela indaga: "Por quê?" E ainda mais tarde: "Quando?" e e se mantêm em paz.
"Quanto tempo?" que são perguntas temporais. A criança sem- Uma pergunta monstruosa é a que indaga a respeito do
pre tarda muito em ter idéias precisas a respeito do tempo. futuro. Seria possível chamá-la de pergunta suprema; ela tam-
A pergunta que começa de um modo titubeante procura, bém é a mais intensa de todas. Os deuses, aos quais ela é
como já se disse, penetrar mais fundo. Ela tem algo de cor- dirigida, não estão obrigados a responder. Esta pergunta, diri-
tante, funciona como uma navalha. Isto se reconhece na resis- gida ao que existe de mais forte, é uma pergunta desesperada.
tência que as crianças muito pequenas opõem a perguntas du- Os deuses nunca se comprometem, nunca se pode penetrar
plas. "O que é que você prefere, uma maçã ou uma pera?" A neles. Suas exteriorizações são ambíguas, não podem ser de-
criança se calará ou responderá "pera", porque esta foi a úl- compostas. Todas as perguntas feitas a eles são feitas como pri-
tima palavra. Mas uma verdadeira decisão, que seria fazer uma meiras perguntas, que somente têm uma resposta. Freqüente-
separação entre a maçã e a pera, lhe é difícil. No fundo, a mente a resposta consiste apenas em sinais que são reunidos
criança gostaria das duas frutas. Pelos sacerdotes de certos povos em grandes sistemas. Os
A separação culmina lá onde são possíveis apenas as duas babilônios nos deixaram milhares destes sinais. Chama a aten-
respostas mais simples de todas: sim ou não. Por serem dia- ção o fato de que cada um deles se encontra isolado dos demais.
metralmente opostas, todas as soluções intermediárias ficam Não são conseqüência um do outro, não têm coerência interna.
excluídas e a escolha de uma ou outra opção é uma escolha de São listas de sinais, nada mais; mesmo quem conhece todos
compromisso e alcance especiais. eles nunca pode concluir, a partir de cada um, mais do que
Antes de uma pergunta nos ser formulada, muitas vezes algo separado do
não sabemos o que pensamos a respeito. A pergunta nos obriga O interrogatório, em oposição exata a isso, reconstitui o
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passado na totalidade de seu decurso. O interrogatório é diri-
fez ?" Na resposta que serve de álibi, lugar é oposto a lugar,
gido contra alguém mais fraco. Mas antes de nós nos consa-
identidade é oposta a identidade. "Neste momento eu me en-
grarmos à interpretação do interrogatório, convém dizer algu- contrava noutro lugar. Eu não sou a pessoa que fez tal coisa."
mas palavras a respeito de uma instituição que atualmente se "Certa vez", diz uma antiga lenda dos Vedas, "por volta
impôs na maioria dos países, o fichamento policial universal do meio-dia, nas proximidades de Dehsa, uma jovem camponesa
da população. Definiu-se um determinado grupo de perguntas, estava dormindo sobre a relva. Seu noivo estava sentado ao
as mesmas em todos os lugares, que basicamente servem à do dela. Ele pensava em como fazer para se livrar dela. Nisto
segurança e à ordem. O objetivo é saber quão perigoso cada la
chegou a Dama do Meio-Dia e lhe fez perguntas. Por mais que
um pode chegar a ser e permitir a captura imediata daquele de lhe respondesse, ela sempre fazia novas perguntas. Quando
que realmente se tornou perigoso. A primeira pergunta que o sino anunciou uma hora da tarde, seu coração parou de bater.
se formula oficialmente a uma pessoa é a respeito do seu nome ; A Dama do Meio-Dia o tinha interrogado até a morte."
a segunda se refere ao seu local de residência, seu endereço.
São, como já sabemos, as duas perguntas mais antigas: a de
identidade e a de lugar. A profissão, em seguida, revela sua
atividade; a partir dela e da idade conclui-se sua influência e O segredo
seu prestígio: como pode ser manipulado? Seu estado civil
O segredo está no núcleo do poder. O ato de se ocultar
indica a propriedade humana mais imediata, seja marido, espo-
por sua natureza é algo secreto. A criatura se esconde ou se
sa ou filho. Origem e nacionalidade dão uma referência a res-
mimetiza e não se dá a conhecer por nenhum movimento. Toda
peito de suas possíveis opiniões; nesta nossa época de nacio-
nalismos fanáticos, estes dados definem melhor a pessoa do criatura que se está ocultando desaparece, envolve-se no se-
que a religião, que já perdeu sua importância. Com isto tudo gredo como se este fosse uma segunda pele e permanece du-
— juntamente com uma fotografia e uma assinatura — já rante longo período de tempo ao seu abrigo. Uma concatena-
são muitos os elementos que ficam estabelecidos.. ção peculiar de impaciência e de paciência caracteriza a cria-
As respostas a estas perguntas são aceitas. Provisoriamente tura nesse estado. Quanto mais ela permanece assim, tanto
elas não são colocadas em dúvida. Somente no interrogatório, mais intensa se faz a esperança de conseguir um êxito repen-
dirigido a um fim determinado, é que a pergunta fica carre- tino. Para que ela afinal consiga algo, a paciência deve crescer
gada de desconfiança. Neste caso se estabelece um sistema de ao infinito. Caso ela acabe demasiadamente cedo, tudo terá
perguntas que serve de controle para as respostas; em si, qual- sido em vão, e a criatura precisa, sob o peso da decepção, re-
quer uma delas poderia ser falsa. O interrogado se encontra começar tudo novamente.
em relação de inimizade com o interrogador. Sendo muito mais O agarrar em si é algo que se manifesta publicamente,
fraco, ele somente consegue escapar se convencer o outro de inclusive porque se quer incrementar seu efeito pelo terror;
que não é um inimigo. mas, assim que a ingestão tem início, tudo volta a ocorrer na
Nos interrogatórios judiciais, o ato de perguntar estabe- obscuridade. A boca é obscura e tenebrosos são o estômago e
lece retroativamente uma onisciência do interrogador como as entranhas. Ninguém sabe e ninguém medita sobre o que
poderoso. Os caminhos que foram percorridos, os lugares que sucede interminavelmente em seu interior. Deste processo
foram visitados, as horas que foram vividas, coisas que en- primordial da assimilação, a maior parte permanece secreta.
quanto ocorriam pareciam ser livres e não controladas, repen- O processo começa ativamente, com o segredo que a própria
tinamente são colocadas sob suspeita. Todos os caminhos devem criatura cria ao esconder-se; termina de forma desconhecida e
ser novamente percorridos, todos os locais voltam a ser visi- passiva na escuridão misteriosa do corpo. Somente o instante
tados até que reste o menos possível daquela liberdade antiga de agarrar é que ilumina bruscamente as sombras como um
e usufruída. O juiz precisa saber de muitas coisas antes de relâmpago
poder julgar. Seu poder está baseado principalmente na onis- mais
ciência. Para adquiri-la, ele tem o direito de formular qualquer interior do corpo. Um curandeiro, cuja ação depende do seu
pergunta: "Onde você estava?" "Quando esteve lá?" "O que conhecimento a respeito dos fenômenos do corpo, antes de
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exercer sua profissão deve submeter seu corpo a operações a magia em atos individuais. Mas rechaçar o mal é algo que
muito estranhas. apenas os curandeiros conseguem. Graças à sua iniciação e à
Entre os arandas, na Austrália, um homem que deseja ser sua prática, eles estão protegidos de outra maneira. Alguns fei-
consagrado como curandeiro instala-se diante da caverna na ticeiros muito velhos são capazes de atrair o mal sobre grupos
qual residem os espíritos. Ali primeiramente lhe perfuram a inteiros de homens. Existem portanto como que três graus de
língua. Ele fica completamente só e um dos elementos de sua aumento de poder. Quem consegue fazer com que muitas pes-
iniciação é o terror que lhe inspiram os espíritos. A coragem soas adoeçam simultaneamente é evidentemente o mais po-
de permanecer em solidão, principalmente num local onde a deroso.
solidão é especialmente perigosa, parece ser um dos requisitos Muito temido é o poder mágico dos estrangeiros que
para exercer essa vocação. Mais tarde, segundo ele acredita, vivem em locais distantes. Eles são mais temidos porque os
morrerá por um golpe de lança que lhe atravessa a cabeça de antídotos contra seus feitiços não são tão bem conhecidos como
orelha a orelha e os espíritos o deitarão dentro da caverna, os antídotos para os próprios feitiços. Além do mais, desa-
onde irão morar juntos durante algum tempo numa espécie de parece toda a responsabilidade por feitiços que se perpetuam
além. Para o nosso mundo ele está inconsciente, mas no outro sempre dentro do próprio grupo.
mundo lhe são extraídos os órgãos internos, em troca dos quais Na defesa contra o mal, no tratamento das enfermidades,
recebe outros órgãos novos. É de supor-se que estes sejam o poder do curandeiro é considerado benéfico. Mas, ao lado
melhores do que os órgãos usuais, que sejam invulneráveis ou disso, existe a prática do mal em grande escala. Nada de ruim
menos expostos a intervenções mágicas. Desta maneira o curan- acontece por si mesmo; tudo é sempre provocado por um ho-
deiro se fortalece em sua profissão, mas este fortalecimento mem ou por um espírito mal-intencionado. Qualquer coisa
é de dentro para fora; seu novo poder tem início a partir das que para nós seria chamada de causa, para eles é culpa. Toda
entranhas. Ele teve de morrer antes de poder começar a agir, morte é um assassinato e como assassinato deve ser vingada.
mas sua morte serve para a penetração total do seu corpo. Seu A semelhança com o mundo do paranóico é surpreendente
segredo é conhecido apenas por ele e pelos espíritos; este se- sob todos os aspectos. Nos dois capítulos a respeito do caso
gredo jaz dentro do seu corpo. Schreber, incluídos no final deste livro, daremos indicações
Uma característica curiosa é que a indumentária do mago mais precisas a este respeito. Até mesmo o ataque contra os
inclui numerosos pequenos cristais. Ele os carrega consigo no órgãos internos é narrado lá em detalhes; depois de sua des-
corpo e são indispensáveis para sua profissão; em todos os truição total, depois de demorados períodos de dores, eles se
tratamentos ocorre uma ativa manipulação dessas pedrinhas. renovam e se tornam invulneráveis.
Às vezes é o próprio mago que distribui algumas delas, outras O caráter duplo do segredo é mantido em todas as formas
vezes ele as extrai das partes doentes do enfermo. Partículas superiores de poder. Do curandeiro primitivo ao paranóico
sólidas, estranhas ao corpo do doente, causaram a doença. É existe apenas um passo. E não é maior a distância de ambos
como se fosse uma curiosa moeda da enfermidade cuja cotação em relação ao detentor do poder, cuja evolução histórica é
somente é conhecida pelos magos. ilustrada por muitos exemplos bastante conhecidos.
Excetuando-se este tratamento muito íntimo do doente, Aqui o segredo se expressa excepcionalmente de forma
a magia sempre é praticada à distância. Prepara-se em segredo ativa. O detentor do poder, que dele se vale, o conhece muito
uma série de pontiagudas varinhas mágicas que são arremes- bem e sabe apreciá-lo devidamente segundo sua importância
sadas depois, de uma grande distância, na direção da vítima cada caso. Sabe o que deve ser ocultado quando ele quer
desprevenida, sobre a qual haverá de cair o efeito terrível do alcançar alguma coisa, e sabe também qual de seus ajudantes
feitiço. Aqui se aproveita do segredo do ato de acuar. Peque- deve
emcae o ato de ocultar. Ele tem muitos segredos,
nas lanças são jogadas com más intenções; às vezes elas se já que desejamuit
para coisas, e os combina num sistema no qual
muitas
tornam visíveis no céu como cometas. O ato propriamente eles se preservam reciprocamente. A um ele confia uma coisa
dito é breve, mas o efeito pode se fazer esperar durante algum e confia outra coisa a outro, certificando-se de que eles jamais
tempo. irão comunicar-se si.
Todo aranda tem a possibilidade de fazer mal mediante Todo aquele que sabe de alguma coisa é vigiado por ou-
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tro, o qual porém jamais fica sabendo o que é que na verdade curava guardar seus segredos até mesmo de si próprio. Seu
ele está vigiando no outro. Ele deve registrar cada palavra e caráter consciente e ativo lhe escapa, ele se sente impulsionado
cada movimento da pessoa cuja vigilância lhe foi confiada; man- em direção àquela forma passiva de segredo que se carrega
tendo informado o seu senhor a respeito de tudo isso, ele lhe dentro das trevas da própria caverna corporal; que se conserva
transmite uma imagem da atitude mental do vigiado. Mas o lá onde jamais se pode conhecer; e que se acaba por esquecer.
próprio vigilante é vigiado por sua vez, e o relato do outro "É um direito dos reis guardar seus segredos diante do
serve para corrigir o seu. Desta forma, o soberano está sempre pai, da mãe, dos irmãos, das esposas e dos amigos". Esta afir-
a par da confiabilidade das pessoas nas quais depositou seus mação está no Livro da Coroa, obra árabe que contém muitas
segredos, dos responsáveis pela sua segurança, e está em con- tradições antigas da corte dos Sassânidas.
dições de apreciar qual destes recipientes se encontra tão cheio O rei persa Cósroes II, o Vitorioso, inventou métodos
que poderia transbordar. Somente ele possui a chave para todo muito especiais para testar a discrição das pessoas que ele que-
este sistema de segredos. Ele se sente ameaçado quando confia ria utilizar. Quando sabia que duas pessoas do seu ambiente
totalmente noutra pessoa. estavam ligadas por uma estreita amizade e que concordavam
Uma das características do poder é a distribuição desi- entre si em todos os pontos, ele se fechava com uma dessas
gual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite pessoas e lhe confiava um segredo relacionado com o amigo.
que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado Comunicava-lhe que tinha tomado a decisão de mandar exe-
de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas cutar o outro, e proibia-lhe com ameaças de castigo de revelar
intenções. esse segredo à parte interessada. A partir de então, passava a
Um caso clássico de impenetrabilidade deste tipo foi o de observar o comportamento do ameaçado em suas idas e vin-
Filippo Maria, o ultimo dos Visconti. Seu ducado de Milão das peló palácio, a expressão de seu rosto e sua atitude quando
era uma grande potência na Itália do séc. XV. Ninguém igua- estava diante dele. Se constatava que sua conduta em nada
lava sua capacidade de dissimular sua intimidade mais recôn- tinha se modificado, sabia que ele não tinha revelado seu se-
dita. Nunca dizia abertamente o que queria; ocultava tudo por gredo. Depositava então sua confiança nele, tratando-o com
detrás de uma maneira peculiar de expressar-se. Quando dei- consideração particular, elevando sua posição e fazendo com
xava de apreciar alguma pessoa, ele continuava a elogiá-la; que sentisse seu favor. Mais tarde, quando estava a sós com
quando distinguia algum cidadão com honras e presentes, ele ele, lhe dizia: "Eu tinha a intenção de mandar justiçar aquele
o acusava de rispidez ou de estupidez e fazia com que esse homem devido a certas informações que me chegaram a seu
indivíduo sentisse não ser digno de sua sorte. Se desejava ter respeito; entretanto, averiguações mais precisas revelaram que
alguém perto de si, ele o atraía durante algum tempo até que era falso tudo o que se dizia".
nutrisse esperanças, e depois se esquecia dele. Quando o in- Quando porém percebia que o ameaçado demonstrava te-
teressado acreditava ter sido esquecido, ele o chamava nova- mor, mantendo-se afastado e virando o rosto para outro lado,
mente para seu lado. Se concedia uma graça a alguém cujos compreendia que seu segredo tinha sido traído. Então Cósroes
méritos reconhecia, interrogava com curiosa astúcia outras pes- fazia o traidor cair em desgraça, degradava-o e o tratava com
soas, como se nada soubesse do favor concedido. De maneira dureza. Ao outro, porém, informava que apenas tinha querido
geral, ele concedia algo diferente do que lhe tinha sido pedi- provar seu amigo confiando-lhe um segredo. Assim apenas con-
do, e sempre em desacordo com o que os outros desejavam. fiava na discrição de um cortesão forçando-o a trair mortal-
Quando queria oferecer um presente ou uma distinção a alguém, mente seu melhor amigo. Dessa forma ele se assegurava a maior
costumava interrogar essa pessoa dias antes a respeito dos as- discrição possível. "Quem não está apto a servir ao rei", dizia
suntos mais indiferentes, de maneira que ela não podia adi- ele, "carece também de valor para si mesmo, e de quem carece
vinhar suas intenções. Além disso, para não revelar a ninguém de valor para si mesmo não se pode tirar proveito".
suas intenções mais íntimas, lamentava freqüentemente a ou- O poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Signi-
torga de graças que ele mesmo tinha concedido, ou a execução fica que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos exter-
de penas de morte que ele mesmo tinha determinado. nos que nos induzem a falar. Não se responde a coisa alguma,
Neste último caso, tem-se a impressão de que ele pro- como se não fôssemos interrogados. Não se deixa perceber se
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algo nos agrada ou não. A pessoa se mostra muda sem ter formas mais livres de governo — como se elas não pudessem
emudecido. Porém escuta. Em sua concepção extrema, a funcionar seriamente — estão vinculados à sua falta de aspec-
virtude estóica da impassibilidade deveria conduzir ao silêncio. tos secretos. Os debates no parlamento são travados entre cen-
O silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que tenas de homens; seu sentido está enraizado justamente no fato
não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, de serem públicos. Opiniões opostas são expostas e confron-
faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. tadas. A curiosidade profissional da imprensa, o interesse do
Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e mundo financeiro levam freqüentemente às indiscrições.
também mais precioso. O silêncio não serve apenas para pro- O indivíduo isolado, acredita-se, ou um grupo muito pe-
teger esta coisa, mas também para concentrá-la. Um homem queno em torno dele são capazes de preservar um segredo.
que silencia muito sempre dá a impressão de ser mais con- Parece ser mais seguro que as discussões sejam realizadas em
centrado. Supõe-se que saiba muito, uma vez que cala muito. grupos muito pequenos, formados em vista da manutenção do
Supõe-se que pense muito em seu segredo, porque se encontra segredo; grupos que tenham imposto as mais severas penalida-
com ele sempre que julga necessário protegê-lo. des à traição. O melhor, porém, seria que a decisão dependesse
O que cala não deve portanto esquecer seu segredo. Ele de um único indivíduo. Pois esta pessoa não poderia saber de
é respeitado mais, à medida que o segredo mais arde dentro antemão qual seria sua decisão antes de tomá-la e, uma vez
dele, à medida que aumenta mais dentro dele sem que ele o tomada, como ordem ela encontra uma rápida execução.
revele. Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras
O silêncio isola: quem cala está mais solitário do que os deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do
que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos.
Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em
O silêncio atua contra a metamorfose. Quem se retirou palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo,
para seu posto de guarda interno não pode afastar-se dele. nada acontece que não se saiba de antemão. Tem-se a impres-
Quem cala pode dissimular, mas de maneira rígida. Ele pode são de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na
usar uma determinada máscara, mas de uma forma rígida. verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo.
A fluidez da metamorfose lhe é proibida. Seu efeito é dema- Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas
siadamente incerto, não se pode prever aonde se chegará caso sejam impostas com violência e em segredo. Parece ser uma
a pessoa se abandonar a esta fluidez. Cala-se em todos os espécie de destino servil, de índole muito peculiar, já que não
lugares onde a pessoa não quer se transformar. No emudecer se é nada, ir parar dentro do ventre de um poderoso. Não se
desaparecem todos os motivos para a metamorfose. Por meio sabe o que realmente está acontecendo, não se sabe quando irá
da fala trama-se tudo entre os homens; no silêncio tudo se acontecer; é possível que outros tenham precedência para entrar
torna rígido. no monstro. Espera-se de forma submissa, temendo e desejando
O que cala tem a vantagem de que suas palavras são mais ser a vítima escolhida. Nesta atitude é possível ver uma apo-
esperadas. Dá-se um peso maior a elas. Elas são concisas e teose do segredo. Todo o restante é subordinado à sua glori-
isoladas, aproximando-se assim da ordem, ficação. Não importa tanto o que acontece, desde que aconteça
A relação de diferença artificial de espécie entre quem com a força repentina e ardente de um vulcão, inesperado e
ordena e quem deve obedecer significa que estas pessoas não irresistível.
têm uma linguagem comum. Elas não falam entre si; é como Mas todos os segredos concentrados de um lado apenas e
se não pudessem fazê-lo. A ficção de que somente são capazes numa única mão acabam necessariamente sendo fatais: para o
de compreender-se através da ordem é mantida em todas as seu depositário, o que em si não teria muita importância, mas
circunstâncias. Desta maneira, os mandatários, dentro da esfera igualmente para todos os afetados, e isto é tremendamente im-
de sua função, calam. Por este motivo se costuma esperar que portante. Todo segredo sempre é explosivo, aumentando sua
os silenciosos, quando por fim resolvem falar, digam palavras potência graças ao próprio calor interno. O juramento é o seu
que são como ordens. selo; e é também o ponto onde ele se torna a abrir.
A dúvida, o desprezo que se manifesta em relação às Até que ponto um segredo pode vir a ser perigoso é algo
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que apenas hoje conseguimos conhecer inteiramente. Em diver- senta valores opostos, é considerada como natural e necessária.
sas esferas, que eram independentes entre si apenas na aparên- Tudo o que é bom existe para que se destaque do que é mau.
cia, ele foi se carregando com um poder cada vez maior. O E nós mesmos decidimos o que pertence a um campo ou a
ditador por excelência, contra o qual o mundo unido realizou outro.
a guerra, mal tinha acabado de morrer quando o segredo rea- O que assumimos desta forma é o poder do juiz. Porque
pareceu sob a forma da bomba atômica, mais perigoso do que é apenas aparentemente que o juiz se encontra entre os dois
nunca, crescendo rapidamente em suas devastações. campos, no limite que separa o bom do mau. De qualquer
Por concentração de um segredo entende-se a relação exis- forma, ele se conta entre os bons; a legitimação do seu cargo
tente entre o número dos que são afetados por ele e o número repousa, em grande parte, no fato de ele pertencer inabala-
dos que o guardam. Por esta definição é fácil compreender
velmente ao campo do que é bom, como se tivesse nascido ali.
que nossos modernos segredos tecnológicos são os mais con-
centrados e os mais perigosos que já existiram. Eles afetam Ele sentencia, por assim dizer, constantemente. Sua sentença
é lei. São coisas muito determinadas aquelas sobre as quais ele
todos, mas apenas um número muito reduzido sabe algo a res- deve proferir suas sentenças; seu amplo conhecimento a res-
peito deles, e de cinco ou dez homens depende a decisão de peito do que é ruim e do que é bom se origina a partir de sua
eles serem ou não utilizados.
prolongada experiência. Mas também aqueles que não são juí-
zes, aos quais ninguém encarregou destas funções e aos quais
ninguém em plena posse de suas faculdades mentais encarre-
Sentenciar e julgar garia delas, se permitem interminavelmente proferir sentenças
em todos os campos. Não se pressupõe qualquer conhecimento
É recomendável partir de um fenômeno que é familiar a do assunto para isso; os que evitam proferir julgamentos, por
todos nós: o prazer de julgar. "Um péssimo livro", diz alguém,
terem vergonha de fazê-lo, podem ser contados pelos dedos.
ou "um quadro medíocre", dando a impressão de que tem algo
objetivo a dizer. Toda a sua expressão revela que está dizendo A enfermidade do sentenciar é uma das mais difundidas
aquilo com gosto, com prazer. Mas a forma da declaração en- entre os homens, e praticamente todos nós somos atacados por
gana e logo passa ã ser interpretada como de índole pessoal. ela. Procuremos descobrir a raiz disto.
"Um mau poeta" ou "um mau pintor", acrescenta-se em se- O homem tem uma profunda necessidade de voltar sem-
guida, e isto soa como se se tivesse dito "um mau homem". pre a classificar todas as pessoas que possa imaginar. Dividindo
Sempre temos oportunidade de surpreender conhecidos, des- o número vago e amorfo dos existentes em dois grupos e colo-
conhecidos e até a nós mesmos neste processo de julgar. O pra- cando-os um diante do outro, ele lhes atribui algo semelhante
zer que uma sentença negativa proporciona é sempre incon- à densidade. Ele os concentra como se tivessem de lutar entre
fundível. si; ele os radicaliza e os enche de inimizade. Da maneira como
Trata-se de uma alegria dura e cruel que não se deixa os imagina, da maneira como os quer, eles têm necessariamen-
perturbar por coisa alguma. A sentença somente é uma sen- te de ficar uns contra os outros. A separação entre "bom" e
tença quando é emitida com segurança atemorizante. Ela igno- "mau" é um método antiqüíssimo de classificação dualista, que
ra a bondade, da mesma forma como ignora a prudência. A no entanto nunca é inteiramente conceitual e que nunca é to-
sentença é rapidamente encontrada; e combina perfeitamente talmente pacífica. Ela implica a existência de tensão entre os
com sua essência que ela seja formada sem reflexões. A paixão dois lados, e é importante que a sentença crie e renove esta
que ela revela deve-se à sua rapidez. A sentença incondicional tensão.
e a sentença dada às pressas espelham-se com prazer no rosto É a tendência à formação hostil de maltas que está na base
de quem as profere. deste processo. Em última instância, ela deve levar à formação
E em que consiste este prazer? Afasta-se algo de si, em- de maltas de guerra. Estendendo-se a todos os campos e a todas
purra-se algo para um grupo inferior, o que pressupõe que nós as atividades da vida, ela se dilui. Mas mesmo quando ela se
mesmos pertencemos a um grupo melhor. Nós nos elevamos desenvolve de forma pacífica, mesmo quando parece ser liqui-
rebaixando os outros. A existência da dualidade, que repre- dada em uma ou duas palavras da sentença, esta inclinação de
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levar a situação mais além, até o embate ativo e sangrento modelo elevado para todos os detentores do poder. Foi Ele
de duas maltas, sempre está presente como forma embrionária. também quem instituiu o complexo relacionamento de perdões;
Qualquer pessoa, nos mil relacionamentos de sua vida, quem se submete a Ele é recebido novamente em sua graça.
pertence desta forma a inúmeros grupos de "bons", que se Mas Ele analisa detalhadamente a conduta do seu servo e, dada
opõem a um número igualmente enorme de grupos de "maus". sua onisciência, é bastante fácil para Ele perceber até que ponto
Depende apenas das circunstâncias o fato de este ou aquele estão tentando enganá-lo.
grupo se exacerbar, se transformar em malta e se lançar sobre Não pode haver a menor dúvida de que muitas proibições
a malta inimiga. existem apenas para sustentar o poder dos que podem punir
Sentenças aparentemente pacíficas transformam-se em sen- ou perdoar as transgressões. A graça é um ato muito elevado e
tenças de morte contra o inimigo. Os limites dos bons ficam concentrado de poder, pois pressupõe a condenação; sem que
então precisamente delimitados e coitado do mau que ousar esta tenha ocorrido previamente, é impossível que aconteça o
ultrapassá-los! Ele nada tem a procurar entre os bons e deve ato da graça. Na graça também existe uma escolha. Não é cos-
ser aniquilado. tume indultar senão um número determinado e restrito de
condenados. Quem castiga tomará cuidado para não ser exces-
sivamente clemente; mesmo quando aparenta demência, quando
O poder do perdão. A graça se comporta como se a dureza da execução contrariasse sua
natureza mais íntima, ele se sentirá na necessidade de recorrer
O poder do perdão é um poder que cada um se reserva e a ela pelo sagrado dever de castigar. Mas deixa sempre aberto
todos o possuem. Seria curioso reconstruir uma vida segundo o caminho da graça, quer ele mesmo decida usá-la em casos
os atos de perdão que uma pessoa se permitiu. O homem de especiais, quer a recomende a uma instância superior encarre-
estrutura paranóica é aquele que dificilmente ou nunca conse- gada da sentença.
gue perdoar; ele avalia atentamente; nunca se esquece de nada O crescimento do poder culmina lá onde o indulto se ve-
onde existe algo para ser perdoado; arma-se de pretextos para rifica no último momento possível. Quando a morte que se
não perdoar. A principal resistência na vida de indivíduos decretou está para ser executada, no patíbulo da forca ou
desta espécie se dirige contra toda e qualquer forma de perdão. diante do pelotão de fuzilamento, o indulto aparece como sendo
Mesmo quando conseguem chegar ao poder, e para merecerem uma nova vida. O limite do poder está no fato de ele não poder
sua afirmação nele são obrigados a outorgar o perdão, isto realmente fazer com que os mortos retornem à vida; no entan-
ocorre apenas de forma aparente. O poderoso nunca consegue to, no ato longamente prolongado da graça, o poderoso se
perdoar realmente. Todo e qualquer ato de hostilidade perma- sente freqüentemente como se tivesse conseguido ultrapassar
nece rigorosamente registrado: apenas fica encoberto e guar- este limite.
dado em reserva. Muitas vezes o perdão é concedido em troca
de uma submissão verdadeira; os atos de generosidade dos
poderosos sempre têm este sentido. Eles desejam tanto a sub-
missão de tudo o que encontram que freqüentemente estão
dispostos a pagar um preço excessivamente elevado por ela.
O impotente, para quem o detentor do poder é descomu-
nalmente forte, não vê quanto é importante para este a sub-
missão completa de todos. Se ele tem alguma sensibilidade,
apenas conseguirá apreciar o aumento do poder tomando por
base seu peso efetivo, mas nunca será capaz de apreciar o que
significa para o rei resplandecente a genuflexão do último, do
mais esquecido e miserável de seus súditos. O interesse que o
Deus da Bíblia tem por cada uma das pessoas, a constância e
a preocupação com que cuida de cada alma devem servir de
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A ORDEM
ordem: fuga e aguilhão
A
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pode ser decomposta. É necessário decompô-la, caso contrário ,, ue haja uma oportunidade; a nova situação na qual esta or-
jamais conseguiremos compreendê-la realmente. dem se desprende deve assemelhar-se à situação antiga na qual
Toda ordem consta de um impulso e de um aguilhão. O ecebida. A reconstrução destas situações primordiais, mas
foi r
impulso força o receptor à execução, de um modo adequado de maneira inversa, é uma das grandes fontes de energia psí-
ao conteúdo da ordem. O aguilhão permanece dentro de quem quica do homem. O incentivo, a "espora", como se diz, para
executa a ordem. Quando as ordens funcionam normalmente, conseguir alcançar isto ou aquilo é o impulso mais profundo
como se espera delas, nada se vê deste aguilhão. Ele é secreto, para desfazer-se de ordens recebidas no passado.
não se suspeita de sua existência; talvez se manifeste, leve- Somente a ordem executada é que deixa o seu aguilhão
mente perceptível, numa pequena resistência antes de a ordem cravado em quem a cumpriu. Quem evita as ordens também
ser obedecida. não precisa armazená-las. O homem "livre" é somente aquele
Mas o aguilhão penetra fundo no homem que cumpriu que aprendeu a se desviar das ordens, e não aquele que somen-
uma ordem e permanece lá dentro,) inalterável. Entre todas as te mais tarde consegue se libertar delas, Mas quem necessita
configurações psíquicas não existe,qualquer outra coisa que seja de mais tempo para esta libertação, ou quem não é capaz disso,
menos mutável. O conteúdo da ordem mantém-se conservado sem dúvida alguma é a pessoa mais carente de liberdade.
no aguilhão; sua força, seu alcance, suas limitações, tudo foi Nenhum homem imparcial considera como uma carência
prefigurado para sempre no momento em que a ordem foi dada. de liberdade obedecer a seus próprios impulsos. Mesmo quan-
Podem-se passar anos ou décadas sem que esta parte aprofun- do estes impulsos se tornam mais fortes e sua satisfação leva
dada e armazenada da ordem (sua réplica em ponto pequeno) às mais perigosas complicações, o indivíduo tem a impressão
apareça novamente. Mas é importante saber que ordem alguma de que está agindo a partir de sí mesmo. Mas, quando ele se
se perde; ela nunca se acaba realmente com sua execução — opõe dentro de si à ordem que lhe foi dada de fora para dentro
ela é armazenada para sempre. e que ele foi obrigado a executar, então fala-se de pressão, e
Os receptores de ordens mais afetados são as crianças. a pessoa se reserva o direito de reversão ou de rebelião.
Parece um milagre que elas não sucumbam debaixo do peso
de tantas ordens, que elas consigam sobreviver aos mandos e
desmandos de seus educadores. O fato de elas, com a mesma A domesticação da ordem
crueldade de seus educadores, transmitirem posteriormente tudo
isso aos seus próprios filhos é algo tão natural quanto mastigar A ordem de fuga, que contém uma ameaça de morte, supõe
e falar. Mas o que sempre causará surpresa é que elas tenham uma grande diferença de poder entre os participantes. Quem
mantido intactas as ordens desde a mais tenra infância; estas coloca outro em fuga poderia matá-lo. Na natureza esta situa-
ordens estão à disposição assim que a próxima geração ofereça ção fundamental se deve ao fato de que muitas espécies ani-
suas vítimas. Nenhuma ordem foi modificada no menor deta- mais se alimentam de outros animais. É de outras espécies que
lhe sequer; ela poderia ter sido dada uma hora atrás apenas, elas vivem. Por este motivo, a maior parte dos animais se sente
mas na verdade ela foi dada há vinte, trinta ou mais anos. ameaçada por outros de. outra espécie, recebendo deles, estra-
A força com que a criança recebe ordens, a tenacidade e fide- nhos e inimigos, a ordem de fuga.
lidade com que as guarda dentro de si não são um mérito indi- Mas o que nós na vida comum chamamos ordem se de-
vidual. Inteligência ou talento especial nada têm a ver com isso. senvolve entre os homens: o senhor manda no seu escravo, a
Toda a criança, até mesmo a mais comum, não perde nem mãe manda no seu filho. A ordem, tal como nós a conhecemos,
perdoa nenhuma das ordens com as quais foi maltratada. evoluiu afastando-se de sua origem biológica: da ordem de
É mais fácil que se modifique o aspecto de um homem, fuga. Ela se domesticou. Ela é empregada nas relações sociais
as características pelas quais os outros o reconhecem — a pos- em geral, mas também na mais íntima convivência humana.
tura da cabeça, a expressão da boca, o modo de olhar —, do Ela é bastante diferente do que descrevemos como ordem de
que a imagem da ordem que permaneceu dentro dele como fuga. O senhor chama o escravo e este se aproxima, mesmo
um aguilhão e que foi armazenada de maneira inalterável. Inal- sabendo que irá receber uma ordem. A mãe chama seu filho e
terada, a ordem volta a ser expulsa, mas para isto é preciso não é sempre que este escapa. Apesar de ela sobrecarregá-lo
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com ordens de todos os tipos, de maneira geral mantém-se o permanece cravada em quem foi atingido; este pre-
A ordem xtraí-1a e atirá-la por sua vez para livrar-se de sua ameaça.
carinho. O filho permanece na sua proximidade, vem correndo
em direção a ela. O mesmo também é válido para o cachorro : cisa eerdade o processo da transmissão de ordens se desenvolve
ele sempre permanece nas proximidades do seu dono, e ven Na v destinatário extraísse a ordem de si mesmo, rete-
Como s- o
correndo assim que ouve o assobio. seu próprio arco e voltasse a disparar outra vez a mesma
sasse a qual foi. atingido. A ferida no seu próprio corpo
Como se chegou a esta domesticação da ordem? O que
tornou inócua a ameaça de morte? A explicação desta evolu- porém uma cicatriz. Cada cicatriz tem uma his-
ção está no fato de que em cada um destes casos pratica-se laerrcaiha,,adéecioaxmando deixada por uma determinada flecha.
sftó marca
uma espécie de suborno. O senhor dá a comida ao seu cão ou Mas o mandatário que dispara a flecha percebe um ligei-
ao seu escravo, a mãe alimenta seu filho. A criatura em estado ao fazê-lo. O próprio efeito, por assim dizer, o
ro contragolpe
de submissão está acostumada a receber seu alimento apenas contragolpe psíquico, ele o sente quando percebe que atingiu
de uma única mão. O escravo ou o cão recebem seu alimento o alvo. Neste ponto termina a analogia com a flecha física.
exclusivamente do seu dono; nenhuma outra pessoa tem obri- Mas é muito mais importante observar as marcas que o disparo
gação de fazê-lo; na verdade nenhuma outra pessoa deve ali- bem-sucedido deixa no atirador contente.
mentá-los. A relação de propriedade consiste em parte em que A satisfação pelas ordens cumpridas, ou seja, pelas ordens
todo e qualquer alimento chegue a eles apenas pelas mãos do dadas com êxito, engana em grande parte sobre o que acontece
dono. A criança, porém, ainda não é capaz de se alimentar sozi- com o atirador. Existe sempre como que a percepção de um
nha. Desde o seu primeiro momento de vida ela depende do contragolpe; o que a pessoa fez fica também estampado nela,
peito materno. não apenas na vítima. Muitos contragolpes se acumulam dando
Entre a entrega do alimento e a ordem criou-se uma es- origem ao medo. Trata-se de um tipo especial de medo aquele
treita relação. Muito claramente esta relação aparece na prática que resulta da freqüente repetição de ordens; por este motivo
do adestramento de animais. Quando o animal fez o que devia prefiro denominá-lo o medo de mandar. Ele é menor na pessoa
fazer, recebe uma guloseima da mão do domador. A domesti- que apenas transmite ordens. É tanto maior quanto mais perto
cação da ordem a transforma numa promessa de alimento. Em esteja quem dá as ordens da fonte de mando propriamente
vez de ameaçar com a morte e de provocar a fuga, promete-se dita.
o que toda criatura deseja em primeiro lugar, e cumpre-se es- Não é difícil compreender como se produz este medo de
tritamente a promessa feita. Em vez de servir de alimento ao mandar. Um disparo que mata um ser isolado não deixa após
seu dono, em vez de ser devorada, a criatura à qual se dá este si perigo algum. O morto já não nos pode causar mal algum.
tipo de ordem recebe o que comer. Uma ordem que ameaça de morte, mas que 'apesar disso não
Esta desnaturação da ordem de fuga biológica educa ho- mata, deixa a recordação da ameaça. Algumas ameaças se per-
mens e animais para uma espécie de cativeiro voluntário, do dem e outras atingem o alvo; são justamente estas que jamais
qual existerrn todos os tipos de intensidade e de nuanças. En- são esquecidas. Quem fugiu perante a ameaça ou quem cedeu
tretanto isto não modifica inteiramente a essência da ordem. a ela certamente irá se vingar. Pessoas nestas situações sem-
Ela passa a ser atenuada, mas existem sanções expressas em pre se vingam quando chega o momento adequado e aquele de
casos de desobediência; estas sanções podem ser muito severas quem partiu a ameaça tem plena consciência disso; ele precisa
e a mais severa de todas é a sanção primitiva, ou seja, a morte. fazer tudo o que lhe for possível para impedir que ocorra uma
inversão dos papéis.
Há um sentimento de perigo que consiste em saber que
Contragolpe e medo de mandar todo aquele a quem se deram ordens, a quem se ameaçou de
morte, vive e se recorda; nesse perigo se sentiria alguém, se
Uma ordem é como uma flecha. Ela é disparada e acerta. O todos os que foram ameaçados de morte se unissem contra ele.
mandatário faz pontaria antes de dispará-la. Ele irá acertar Trata-se de um sentimento profundamente motivado, que no
um alvo muito determinado com sua ordem; e a flecha tam- entanto é impreciso porque nunca se sabe quando os ameaça-
bém sempre tem uma direção que foi previamente escolhida. dos passarão da lembrança para a ação. Este torturante, ines-
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gotável e ilimitado sentimento de perigo eu defino como medo A massa, em estado de medo, quer permanecer junta. No
de mandar. auge do seu perigo ela se sente protegida apenas quando sente
Ele é tanto maior quanto mais elevada for a posição da a proximidade dos outros. Ela é massa principalmente pela
pessoa. Na fonte da ordem, na pessoa que dá as ordens a direção comum da fuga. Um animal que escapa e que se loco-
partir de si mesma, que não as recebe de qualquer outra pes- move numa direção própria está mais exposto do que os de-
soa, que por assim dizer gera as próprias ordens, a concen- mais. Além disso ele sente o perigo com maior intensidade
tração do medo de mandar alcança sua densidade máxima. porque está só: seu medo é muito maior. A direção comum
Esse medo pode permanecer durante muito tempo domesti- dos animais que fogem poderia ser chamada sua "convicção";
cado e oculto nos detentores do poder. Ele pode ir aumen- o que os mantém unidos os empurra para a frente com maior
tando no decorrer da vida de um governante, e manifestar-se vigor. Eles não sentem pânico enquanto não estejam abando-
numa espécie de delírio cesarista. nados,enquanto cada animal ao lado faça a mesma coisa e
esteja realizando exatamente os mesmos movimentos. Esta fuga
em massa, pelo movimento paralelo das patas, dos pescoços
A ordem a muitos e das cabeças, assemelha-se ao que, entre os seres humanos, eu
chamaria de massa palpitante ou rítmica.
É preciso distinguir entre a ordem dada a um indivíduo e a Entretanto, assim que os animais estão cercados, a ima-
que é dada simultaneamente a muitos. gem se modifica. Uma direção comum de fuga já não é mais
Já na origem biológica da ordem existe essa diferença. possível. A fuga em massa se transforma agora em pânico:
Alguns animais vivem isolados e recebem a ameaça dos seus cada animal procura salvar-se a si próprio e atrapalha o outro.
inimigos de forma individual. Outros vivem em bandos e são O anel em torno deles se contrai sempre mais. No massacre
ameaçados coletivamente. No primeiro caso o animal foge ou que agora tem início, um animal é inimigo do outro, uma vez
se esconde sozinho. No segundó caso foge o bando todo. Um que todos se bloqueiam mutuamente o caminho da salvação.
animal que normalmente vive em bandos, mas que por ca- Mas voltemos à ordem propriamente dita. A ordem dada
sualidade é surpreendido sozinho pelo inimigo, procura fugir a indivíduos, dissemos, é diferente da ordem dada a muitos.
e reintegrar-se no bando. A fuga individual e a fuga em massa Antes de fundamentar esta frase, é recomendável falar a res-
são diferentes a partir da própria base. O medo em massa de peito de sua exceção mais importante.
um bando que foge é o mais antigo e, seria possível dizer, o Um acúmulo artificial de muitos é o que se dá no exér-
mais familiar de todos os estados de massa que se conhecem. cito. Nele anulam-se as espécies diferentes de ordens; justa-
É muito provável que a partir desse medo de massa tenha mente isto constitui sua essência. Que a ordem se dirija a
se derivado o sacrifício. Um leão que está perseguindo um indivíduos, sejam poucos ou muitos, aqui não faz diferença.
bando de gazelas, todas fugindo juntas com medo dele, cessa Um exército existe somente se a ordem é equivalente e cons-
sua perseguição assim que consegue agarrar um dos animais. tante. Ela vem de cima e permanece estritamente isolada. Desta
Este animal é sua oferenda no sentido mais amplo da palavra. forma o exército nunca pode ser uma massa.
Ele proporciona tranqüilidade aos demais companheiros do Porque na massa a ordem se expande horizontalmente
bando. Assim que o leão obtém o que quer e os demais ani- entre seus membros. No começo é possível que ela alcance um
mais percebem que isso acontece, o medo diminui. Da fuga indivíduo isolado, vinda de cima. Porém, como existem outros
de massa, eles tornam a entrar no estado normal do bando: iguais a ele a seu redor, ela se transmite também a eles. No
cada animal pasta livremente e faz o que deseja. Se as gazelas seu medo, o indivíduo se aproxima mais dessas pessoas. Ime-
tivessem religião, se o leão fosse o deus delas, elas poderiam, diatamente os demais passam a ser contagiados. Primeiro
para saciar sua avidez, entregar-lhe por iniciativa própria uma alguns se colocam em movimento; pouco depois outros se-
gazela. Exatamente isto é o que acontece entre os homens: a guem esse exemplo, e logo todos estão se movimentando. Pela
partir do estado de medo de massa, deriva-se entre eles o sa- expansão instantânea da mesma ordem, essas pessoas se trans-
crifício religioso. Graças a ele detêm-se a perseguição e a fome formaram em massa. Agora todos fogem juntos.
do poder perigoso durante um certo tempo. Uma vez que a ordem é imediatamente difundida, ela não
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rivremen
deixa aguilhão ou espinho. Não existe tempo para que isso todas as demais ações, que os demais homens executam
aconteça; o que se teria convertido num elemento permanente te (ou assim pensam), o deixa ávidÕ das ações que
é imediatamente dissolvido. A ordem dada à massa não deixa de executar.
aguilhão. A ameaça, que leva à fuga em massa, se dissolve tos
precisamente nessa fuga. A sentinela, que permanece imóvel durante horas em seu
o melhor exemplo da constituição psíquica do sol,
É a situação de ordem isolada exclusivamente que nos posto, a não pode se afastar, não pode adormecer, não pode
do. ElEla
leva à formação do aguilhão-ordem. A ameaça, que comporta
se movimentar, a não ser que lhe tenham sido prescritos certos
uma ordem dada a um ser singular, não pode dissolver-se com- movimentos, fixados nos menores detalhes. Seu serviço pro-
pletamente. Qualquer pessoa que tenha cumprido uma ordem ríamente dito é a resistência a qualquer tentação de abando-
sozinha conserva sua resistência como aguilhão, como espinho
Pna r seu posto, seja qual for a forma sob a qual esta tentação
dentro de si, um duro cristal de rancor. Somente consegue des- possa aparecer. Esse negativismo do soldado, como poderia
fazer-se dele, dando ela mesma uma ordem idêntica. Seu agui- ser definido, é sua espinha dorsal. Todos os motivos habituais
lhão nada mais é do que o retrato fiel e oculto da ordem que
de ação, como os desejos, o temor, a inquietude, que consti-
recebeu e que não pôde transmitir no mesmo momento. So- tuem a essência da vida do homem, são reprimidos dentro
mente na forma desse retrato fiel é que a pessoa consegue dele. E ele os combate melhor quando nem sequer chega a
libertar-se do aguilhão.
confessá-los.
Uma ordem dada a muitos tem portanto um caráter muito Todo ato que ele então realmente executa deve estar san-
peculiar. Sua meta é transformar uma maioria numa massa cionado por uma ordem. Como é muito difícil para um homem
e, à medida que consegue fazer isso, não dá origem ao
não fazer coisa alguma, acumula-se dentro dele uma grande
medo. A "palavra de ordem" de um orador que impõe uma expectativa pelo que lhe é permitido empreender. O desejo de
direção aos homens reunidos tem exatamente esta função, e ação se represa e cresce até atingir proporções desmedidas.
pode ser considerada como uma ordem dada a muitos. Do Mas, como antes da ação existe uma ordem, a expectativa se
ponto de vista da massa, que gostaria de se formar rapida- volta para esta: o bom soldado está sempre em estado de
mente e manter-se como unidade, essas palavras de ordem são consciente espera de ordens. Esta espera é ampliada de todas
úteis e indispensáveis. A arte do orador consiste em conseguir as formas possíveis pela educação; ela se manifesta claramente
resumir e expressar vigorosamente tudo o que deseja em pa- nas posturas e nas fórmulas militares. O momento vital na
lavras de ordem que ajudam a constituição e a manutenção da existência do soldado é o da posição de atenção diante de seu
massa. Ele gera a massa e a mantém viva através de uma ordem superior. Num estado de tensão e de receptividade máximas,
superior. Depois de ter conseguido isso, não tem muita impor- ele se coloca diante do superior e a fórmula que pronuncia
tância o que ele realmente irá exigir dela. O orador pode insul- — "Às suas ordens!" — expressa com grande precisão do
tar e ameaçar um aglomerado de indivíduos isolados da ma- que se trata.
neira mais terrível; mesmo assim eles o amarão, se dessa ma- A educação do soldado começa no momento em que lhe
neira ele conseguir formá-los como massa. são proibidas muito mais coisas do que aos demais homens.
Para as menores transgressões existem castigos severos. A es-
fera do proibido, com a qual já está familiarizado desde criança,
Espera de ordens se amplia até atingir o gigantesco para o soldado. Muros e
mais muros são construídos em torno dele; muros que são ilu-
O soldado em serviço apenas cumpre ordens. É possível que minados para ele, e que dão a impressão de crescer diante dele.
tenha vontade de fazer isto ou aquilo, mas como é soldado Sua altura e severidade se igualam à sua claridade. Constante-
isso não conta. Ele não pode encontrar-se diante de encruzi- mente fala-se a respeito desses muros; o soldado não pode
lhadas; e mesmo que se encontrasse não seria ele quem iria alegar desconhecê-los. Começa então a se movimentar como se
decidir qual dos caminhos tomar. Sua vida ativa está restrin- eles estivessem sempre ao seu redor. O aspecto anguloso do
gida por todos os lados. Ele faz o que todos os demais sol- soldado é como um eco, em seu corpo, da dureza e da lisura
dados fazem com ele; e faz o que lhe é ordenado. A eliminação desses muros ; ele adquire algo de uma figura estereométrica.
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É um prisioneiro que se adaptou aos seus muros; um prisio- A pessoa que deve dar ordens num exército deve poder
neiro que está satisfeito; que se defende tão pouco contra a rqanter-se livre de toda e qualquer massa — fora dele, dentro
situação em que se encontra quanto os muros que o moldam. ele.
- Ela aprendeu isso tendo sido educada para esperar ordens.
Enquanto outros prisioneiros vivem apenas de uma única idéia
(como conseguir saltar ou perfurar seus muros), o soldado os
aceita como uma nova natureza, como um ambiente natural Espera de ordens dos peregrinos em Arafat
ao qual se adapta, no qual ele mesmo acaba se transformando.
Somente quem incorporou dentro de si, desta maneira o momento mais importante durante a peregrinação a Meca,
intensa, a medida plena das proibições, quem através dos afa-
zeres de todos os dias — e isto dia após dia — demonstrou a culminação propriamente dita, é o wukzif ou o "ficar parado
em Arafat", a estação antes de Alá, a algumas horas de dis•
que sabe se esquivar da maneira mais precisa de todas as coisas tância de Meca. Uma multidão enorme de peregrinos — às
que são proibidas é que passa realmente a ser soldado. Para vezes seiscentos ou setecentos mil homens — acampa num
ele, a ordem tem um valor superior. É como a saída de uma vale rodeado de penhascos áridos e estende-se em direção ao
fortaleza, dentro da qual se tenha permanecido durante tempo Monte da Comiseração, situado no centro desse vale. Um pre-
demasiado. A ordem o atinge como um raio que o lança contra gador se encontra no local onde em outros tempos esteve o
os muros do que é proibido; como um raio que mata apenas profeta, e pronuncia um sermão solene.
esporadicamente. Neste enorme deserto monótono das coisas A multidão lhe responde com o grito: "Labbeika ya Rabbi,
proibidas que se estende por todos os lados em torno dele, a
labbeika! Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos tuas
ordem acontece como uma redenção: a figura estereométrica se ordens!" Este grito é repetido durante o dia todo de forma
anima e se coloca em movimento ao ouvir a voz de comando. incessante e vai aumentando até a demência. Então, numa es-
Faz parte da formação do soldado que ele aprenda a re- pécie de repentino medo de massa — chamado ifadha ou
ceber ordens de duas maneiras; sozinho ou na companhia de "rio" —, todos fogem juntos como possessos de Arafat em
outros. Os exercícios o habituaram a movimentos que são exe- direção à localidade vizinha de Mozdalifa, onde passam a noite,
cutados juntamente com os demais; todos devem realizá-los de indo no dia seguinte para Mina. Todos correm numa terrível
maneira absolutamente idêntica. Trata-se de uma espécie de confusão, empurrando-se e pisoteando-se uns aos outros; esta
precisão que se aprende melhor pela imitação dos demais do correria geralmente custa a vida de vários peregrinos. Uma vez
que sozinho. Desta forma o indivíduo torna-se igual aos outros; em Mina são sacrificados muitos animais, cuja carne é consu-
estabelece-se uma igualdade que eventualmente pode ser uti- mida imediatamente por todos. O solo fica empapado de san-
lizada para transformar a divisão do exército em massa. Nor- gue e encontram-se restos de animais por todos os lados.
malmente, porém, deseja-se exatamente o contrário: igualar o A parada em Arafat é o momento no qual a espera de
mais possível os soldados, sem que eles se transformem em ordens das massas de crentes alcança sua intensidade máxima.
massa. A fórmula concisa repetida milhares de vezes, "Aguardamos
Quando estão juntos como unidade, eles reagem a todas tuas ordens, Senhor! Aguardamos tuas ordens", expressa isto
as ordens dadas em conjunto. No entanto, deve continuar exis- com muita clareza. O Islamismo, a submissão estão reduzidos
tindo a possibilidade de separá-los: um, dois, três homens, aqui ao seu denominador mínimo, um estado no qual os ho-
metade deles, quantos o comandante desejar. O fato de eles mens pensam apenas nas ordens do Senhor e clamam por elas
marcharem juntos deve ser exterior; a divisibilidade da divisão com toda a violência imaginável. O medo súbito que se pro-
constitui sua utilidade. A ordem deve sempre poder atingir o duz a um determinado sinal e que provoca uma fuga em massa
número que se quiser: um, vinte ou a divisão inteira. Sua efi- sem paralelo tem uma explicação: o antigo caráter da ordem,
ciência não pode depender da quantidade dos que são atingidos. que é uma ordem de fuga, irrompe sem que os crentes possam
É a mesma ordem, pouco importando que seja apenas um quem saber por que isso acontece. A intensidade de sua expectativa
a recebe ou todos. Esta natureza invariável da ordem é da como massa aumenta ao máximo o efeito da ordem divina, até
maior importância: ela a subtrai de todas as influências da que se converte no que toda ordem originalmente é: uma
massa. ordem de fuga. A ordem de Deus coloca os homens em fuga.
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A continuação desta fuga no dia seguinte, depois de terem Pode parecer estranho que se qualifique como secreta
passado a noite em Mozdalifa, demonstra que o efeito da tuna coisa tão conhecida como a promoção. Mas a promoção
ordem ainda não se esgotou. .oenas é a expressão pública de uma coisa muito mais pro-
Segundo a concepção islâmica, é a ordem imediata de .f-uri-ida que permanece secreta, porque na maneira de sua função
Deus que traz a morte aos homens. Eles procuram escapar é• pouco comi,reendida• A promoção é a expressão do que existe
desta morte e a transferem para os animais que são sacrifica. aguilhão-ordem.
de oculto no
dos em Mina, ponto final dessa fuga. Os animais tomam aqui É evidente que esses aguilhões devem acumular-se de
o lugar dos homens, substituição corrente em muitas religiões ; maneira francamente monstruosa no soldado. Tudo o que ele
basta lembrar, por exemplo, o sacrifício de Abraão. Desta ma- faz, é obedecendo a uma ordem; ele não faz outra coisa, não
neira os homens escapam do banho de sangue que Deus lhes deve fazer outra coisa; é exatamente isto que a disciplina de-
destinou. Eles se submeteram às ordens Dele, tanto que fugi- clarada exige deles. Seus próprios impulsos espontâneos são
ram de sua presença, não o privando sequer do sangue: o solo reprimidos. Ele engole ordens e mais ordens e, como quer que
finalmente fica encharcado com o sangue dos animais sacrifi- ele se sinta durante essas ações, jamais pode cansar-se delas.
cados em massa. Para cada ordem que ele executa — e executa todas as ordens
Não existe nenhum outro costume religioso que torne tão que recebe — fica um aguilhão, um espinho, dentro dele.
evidente a natureza íntima da ordem como a parada em Arafat, A saturação desses aguilhões dentro dele é um processo
o wukuf e a fuga em massa que ocorre logo em seguida, o rápido. Se ele está servindo como soldado raso, no mais baixo
ifadha. No Islamismo, onde o mandamento religioso ainda degrau da hierarquia militar, lhe é negada toda e qualquer
possui muito do caráter imediato da própria ordem, a espera oportunidade para se desfazer dos seus aguilhões, pois ele
de ordens e a própria ordem de forma geral se revelam da próprio não pode dar ordem alguma. Somente pode fazer o
maneira mais pura possível no wukuf e no ifadha. que lhe é ordenado. Obedece e vai se tornando cada vez mais
rígido em sua obediência.
Uma mudança nesse estado, que possui algo de violento,
Aguilhão-ordem e disciplina somente é possível mediante uma promoção. Assim que ele
é promovido, deve começar a dar ordens também, e fazendo
A disciplina constitui a essência do exército. Mas trata-se de isso começa a livrar-se de uma parte dos seus aguilhões. Sua
uma disciplina dupla: uma declarada e outra secreta. A dis- situação — se bem que de maneira muito restrita — se inver-
ciplina declarada é a ordem: já se mostrou como o estreita- teu. Ele deve exigir coisas que anteriormente foram exigidas
mento da fonte de ordens conduz à formação de uma criatura dele próprio. O modelo da situação permaneceu exatamente o
extremamente curiosa, mais figura estereométrica do que cria- mesmo; somente sua posição é que se modificou dentro dele.
tura humana propriamente dita: o soldado. O que mais o ca- Seus aguilhões aparecem agora como ordens. O que antes lhe
racteriza é o fato de viver sempre em estado de espera de era ordenado por seu superior imediato, ele próprio começa a
ordens. Este estado marca sua atitude e sua estatura; o soldado ordenar. Não depende dos seus caprichos a libertação dos seus
que sai deste estado já não está mais a serviço — simplesmente aguilhões, mas ele é colocado numa posição que é ideal para
é uma pessoa que usa uniforme para combinar com as apa- que isso aconteça: deve dar ordens. Cada posição permaneceu
rências. A constituição do soldado é reconhecível por todas as exatamente a mesma, cada palavra continua sendo exatamente
pessoas, ela não poderia ser mais pública do que é. a mesma. Outros ficam parados diante dele, exatamente na
Mas esta disciplina declarada não é tudo. Com ela existe mesma posição que ele assumia anteriormente. Dele se ouve
outra a respeito da qual o soldado não fala, e que ele nem a mesma fórmula que ele ouvia antes, com o mesmo tom de
deveria mostrar: uma disciplina secreta. Para certos tipos mais voz, carregada com a mesma energia. A identidade da situa-
obtusos é possível que esta outra disciplina se torne consciente ção tem algo de macabro: é como se ela tivesse sido inventada
apenas algumas vezes. Mas na maioria dos soldados, principal- unicamente para satisfazer seus aguilhões-ordens. Com o que
mente em nosso tempo, ela sempre está desperta, se bem que antes o atingia, ele passa agora a atingir outros.
de maneira oculta. Trata-se da disciplina da promoção. Mas, embora ele agora tenha chegado a um nível onde
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seus antigos aguilhões-ordens podem manifestar-se embora
— por assim dizer — se exija agora que eles falem, ele coo_ quee se formou entre eles uma relação inteiramente
soar
aedip submissão de uma intimidade que não é possível
tinua recebendo ordens de cima. O processo então se torna ...c
duplo: ao mesmo tempo que ele se desfaz dos seus antigos r—rraalinente•
po distância física que normalmente existe entre quem
aguilhões-ordens, vão se acumulando novos aguilhões dentro A
dele. Agora são um pouco mais fáceis de serem suportados do _da e quem obedece, e também entre o dono e o seu ca-
que antes, pois o processo da promoção que foi iniciado lhe rro, por exemplo, deixa de existir neste caso. É o corpo do
confere asas: a esperança fundamentada de que ele irá conse- leiro que transmite as indicações ao corpo do cavalo. O
cava de comando reduz-se a um mínimo. Os aspectos dis-
guir livrar-se também desses novos aguilhões. espaço
tantes, estranhos, vagos, que pertencem ao caráter original da
Resumindo este processo, podemos dizer o seguinte: a m, desaparecem. A ordem neste caso é domesticada de
disciplina declarada do exército se expressa na emissão atual orde
neira muito especial; um novo agente se introduziu na
de ordens; a disciplina secreta consiste na utilização dos agui- ma
história das relações entre as criaturas: a cavalgadura; o ser-
lhões-ordens que foram armazenados.
vidor sobre o qual o dono se assenta, o servidor que está
exposto ao peso físico do dono e que cede a cada pressão do
Ordem. Cavalo. Flecha seu corpo.
Como o repercute esta relação com o cavalo sobre o exer-
cício de comando do cavaleiro? É preciso notar, em primeiro
Na história dos mongóis chama a atenção a estrita e original lugar, que o cavaleiro tem a possibilidade de transmitir ao seu
relação existente entre ordem, cavalo e flecha. Nesta relação
cavalo as ordens que recebe de um superior. A meta que lhe
podemos ver a razão principal do aumento súbito e repentino
é fixada, ele não a alcança correndo pessoalmente em sua
do poder deles. Uma análise desta relação é indispensável e
será tentada aqui em rápidas palavras. direção; ele transmite ao seu cavalo a ordem de chegar até lá.
Uma vez que isto ocorre de imediato, ele não mantém em si
A ordem, como sabemos, deriva biologicamente da ordem
o aguilhão desta ordem. Ele evita isso pela transmissão da
de fuga. O cavalo — como todos os demais animais ungulados
que se assemelham a ele — foi adaptado durante toda sua his- ordem ao seu cavalo. A limitação específica de liberdade que
tória a esta fuga; seria possível até mesmo afirmar que sua pró- esta ordem lhe teria ocasionado escapa-lhe antes mesmo de ele
pria finalidade era a fuga. Ele sempre viveu em manadas e estas ter a oportunidade de senti-la de fato. Quanto mais rapidamente
manadas estavam acostumadas a fugir em conjunto. A ordem ele realiza seu encargo, quanto mais depressa montar, quanto
para isto lhes era dada pelos perigosos animais de presas que mais depressa cavalgar, tanto menor será o aguilhão que irá
pretendiam tirar-lhes a vida. A fuga de massa passou a ser permanecer nele. A arte propriamente dita destes cavaleiros,
uma de suas experiências mais freqüentes e como que uma quando reveste o caráter militar, consiste no fato de eles serem
característica natural dos cavalos. Quando o perigo passa, ou capazes de adestrar uma massa muito maior de receptores de
quando eles acreditam que o perigo tenha passado, retomam ordens, aos quais transmitem sem demora tudo o que eles pró-
sua despreocupada vida gregária, onde cada um faz o que lhe prios receberam de cima.
agrada. A organização militar dos mongóis possuía uma disciplina
O homem que se apoderou do cavalo, que o domesticou, especialmente rígida. Aos povos que eles atacaram e que foram
forma uma nova unidade com ele. O mesmo homem aprendeu forçados à submissão, e que tinham oportunidade de observá-los
uma série de procedimentos que podem ser considerados como mais detalhadamente, esta disciplina parecia ser o que de mais
ordens. Alguns destes procedimentos são constituídos por sons; surpreendente e severo jamais tinham visto. Fossem eles per-
em sua maioria, porém, são formados por movimentos bastante sas,árabes ou chineses, russos, húngaros ou os monges fran-
determinados de pressão e de tração que transmitem ao ca- oiscaooques chegaram até lá como embaixadores do papa, a
valo a vontade do cavaleiro. O cavalo compreende os impulsos todos era igualmente incompreensível que seres humanos pu-
da vontade do cavaleiro e obedece a eles. Entre os povos de dessem obedecer de maneira tão incondicional. Esta disciplina
cavaleiros, o cavalo é tão necessário e tão familiar ao seu era suportada com facilidade pelos mongóis (ou tártaros, como
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freqüentemente eram chamados) porque a parte deste povo matam em movimento, a partir do dorso de um
que realmente arcava com o peso principal eram os cavalos. çàvaio. bservamos que toda ordem, desde sua origem bioló-
Crianças pequenas de dois ou três anos de idade já eram já o
colocadas sobre o dorso de um cavalo para aprenderem a mon- gica, leva acoplada uma sentença de morte. Quem não foge é
tar. Já mencionamos que, na primeira fase da educação de uma atingido. Quem é atingido é destroçado.
criança, ela é literalmente crivada de aguilhões-ordens. Princi- Entre os mongóis a ordem manteve o seu caráter de sen-
palmente pela mãe, desde muito cedo e de muito perto, mas tenç de morte em grau muito mais elevado. Eles matam ho-
a
também pelo pai, mais tarde e a uma distância maior, e por ens como se fossem animais. Matar é sua terceira natureza,
m
qualquer pessoa encarregada de sua educação. Na prática, qual- do mesma forma que cavalgar é a segunda.
quer pessoa adulta ou de idade maior que esteja em contato Suas matanças de seres humanos se assemelham muito às
com a criança não se cansa de sobrecarregá-la com determina. suas caçadas de animais. Quando não estão em guerra, vão à
são as caçadas. Eles devem ter ficado
ções, ordens e proibições. Desde cedo vão se acumulando na caça; suas manobras
criança todos os tipos de aguilhões; são eles que se transfor- altamente assombrados quando, no decorrer de suas vastas
marão posteriormente nas coerções e coações de sua vida, for- expedições de conquistas, encontraram budistas e cristãos, cujos
çando-a a procurar outras criaturas nas quais possa desfazer-se sacerdotes lhes falavam a respeito do valor especial de toda
espécie de vida. Um contraste maior dificilmente pode ter
dos seus aguilhões. Sua existência se transforma numa aven-
tura de procurar livrar-se desses aguilhões, sem saber por que existido: os mestres da ordem pura, que a encarnam por
instinto, se encontram com aqueles que por meio de sua reli-
comete esta ou aquela ação inexplicável, por que estabelece esta
gião a querem enfraquecer ou modificar a ponto de perder
ou aquela relação aparentemente absurda.
suas características letais, transformando-a em algo humano.
A criança mongol que aprende a cavalgar tão cedo tem
portanto, em comparação 'às crianças de culturas sedentárias e
superiores, uma liberdade de tipo muito particular. Assim que
Castrações religiosas: os skoptsys
ela passa a entender de cavalos, pode transmitir a estes tudo
o que lhe for ordenado. Desde muito cedo esta criança se livra
Sabe-se de alguns cultos religiosos que são celebrados com
dos aguilhões que — em medida muito menor — também
tanta intensidade que acabam induzindo à prática de castra-
pertencem à sua educação. O cavalo faz o que a criança deseja,
ções. Na Antiguidade, os sacerdotes da Grande Mãe Cibele
muito antes que o faça qualquer outra pessoa. Essa criança se
eram conhecidos por esse motivo. Existiram milhares deles que
habitua a tal obediência, e assim vive mais aliviada; mais
num ataque de frenesi se castraram em homenagem à sua
tarde, porém, exigirá da pessoa por ela subjugada o mesmo deusa. Em Comana, nas imediações do Ponto, onde se erguia
tipo de comportamento, ou seja, uma submissão física de na- um célebre santuário dedicado à deusa, dez mil seres humanos
tureza absoluta. estavam a seu serviço nessas condições. Não eram apenas ho-
A esta relação — de importância decisiva para o exercí- mens que se consagravam dessa forma. Mulheres que queriam
cio do comando — entre o homem e o cavalo, acrescenta-se expressar sua veneração emputavam os seios e se incorporavam
em segundo lugar para os mongóis o significado da flecha. à corte da deusa. Em sua obra Sobre a Deusa Síria, Luciano
Ela é a réplica exata da ordem primordial, não domesticada. narra como os fiéis caem em delírio durante uma reunião e
A flecha é hostil, sua finalidade é matar. Ela atravessa como um deles, cuja vez havia chegado, se castra. É um sacri-
em linha reta uma grande distância. É preciso esquivar-se dela. fício que ele oferece à deusa para demonstrar-lhe de uma vez
Quem não o consegue, perece; a flecha fica cravada nele. É por todas o quanto a ama e que nenhum outro amor terá lugar
possível extraí-la mas, mesmo que ela não se quebre, sempre em sua vida.
deixa uma ferida. (Existem alguns relatos a respeito de feri- A mesma prática se conhece também em relação à seita
mentos causados por flechas na História Secreta dos Mongóis.) russa dos skoptsys, as "pombas brancas", cujo fundador, Sili-
O número de flechas que se pode disparar é ilimitado; a flecha vanov, causou nos tempos da imperatriz Catarina II a maior
é a arma principal dos mongóis. Elas matam à distância; mas das sensações devido ao êxito de suas pregações. Sob sua
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influência, centenas, talvez milhares de homens se castra. lio fim se apresente diante do inimigo, mesmo quando este
ram, e mulheres amputaram os seios como prova de sua ele
aincaça de morte. O fato de ele próprio tentar matá-lo não é
fé. É impossível supor que exista alguma conexão histórica portante do que sua resistência; sem esta, ele jamais
entre estas duas configurações religiosas. Esta última seita se reais im
seria capaz de realizar seu intento.
originou a partir do Cristianismo russo, cerca de 1500 anos O soldado, exatamente como o skoptsy, se oferece como
depois de terem terminado os excessos dos sacerdotes frígio- vítima. Ambos têm esperança de sobreviver, mas contam com
sírios.
Os skoptsys se distinguem pela concentração sobre um a possibilidade de serem feridos, com a dor, o sangue e a
escasso número de mandamentos e de proibições e também mutilação. Pela batalha o soldado espera tornar-se vencedor.
por constituírem pequenos grupos de prosélitos que se co- pela castração o skoptsy se transforma em anjo e tem direito
nhecem muito bem entre si. Concentrada ao máximo está tam- ao céu, no qual a partir desse momento ele já passa a viver.
Mas trata-se dentro desta disciplina de uma ordem se-
bém sua disciplina — o reconhecimento e a adoração de um
Cristo vivo entre eles. creta, e assim ela somente é comparável à situação na qual se
encontra quem está sob comando militar e que deve executar
Eles temem a distração causada pelos livros e quase não sozinho uma ordem secreta, sem que ninguém saiba do assunto.
lêem. Na Bíblia são poucas as passagens que significam alguma Para atingir esta finalidade ele não pode ser reconhecível pelo
coisa para eles. uniforme, devendo portanto disfarçar-se. O uniforme do
Sua vida comunitária é muito densa, protegida por diver- skoptsy, aquilo que o iguala aos demais aos quais pertence, é
sas maneiras mediante juramentos sagrados. O segredo de- sua castração, e esta por sua própria natureza permanece sem-
sempenha para eles um papel extraordinário e decisivo. Sua pre secreta, não podendo jamais ser revelada.
atividade cultural se desenvolve principalmente à noite, isolada Seria possível dizer, portanto, que o skoptsy se assemelha
e oculta do mundo exterior. O centro de sua vida reside na- a um membro daquela temida seita dos assassins, ao qual um
quilo que eles devem guardar da maneira mais secreta: a cas- superior ordenou um assassinato de que ninguém jamais terá
tração, que eles chamam branqueamento. conhecimento. Mesmo quando a execução é levada a termo,
Mediante esta operação eles devem transformar-se em pessoa alguma ficará sabendo como foi realizada. A vítima pode
anjos puros e brancos. E passam a viver já na terra como se ser atingida e o assassino capturado depois do ato; mesmo
estivessem no céu. A complicada veneração que têm uns em assim jamais se esclarecerá o procedimento propriamente dito.
relação aos outros, suas reverências e adorações, seus elogios A ordem neste caso é uma sentença de morte e está desta
mútuos são semelhantes àqueles que os anjos deveriam ter forma muito próxima de sua origem biológica. O emissário é
entre si.
enviado a uma morte certa, mas isto não é levado em consi-
A mutilação à qual devem submeter-se tem o caráter deração, pois sua morte, que ele aceita voluntariamente, é
rígido de uma ordem. Trata-se de uma ordem que vem de usada para se atingir outra pessoa, a vítima escolhida. A ordem
cima; eles a extraíram de certas frases de Cristo nos Evange- se amplia transformando-se numa dupla sentença de morte:
lhos e também de uma frase dita por Deus a Isaías. uma delas não é formulada, apesar de se contar com ela; a
Eles recebem esta ordem com uma força tremenda e é outra é apontada com consciência clara e plena. O aguilhão,
com esta mesma força que devem transmiti-la. A teoria do que pereceria com o subordinado, é desta forma utilizado antes
aguilhão pode muito bem ser aplicada a eles. A ordem neste de desaparecer.
caso é executada no próprio receptor. Faça ele o que fizer, o Os mongóis têm uma expressão muito gráfica para de-
que realmente deve fazer é castrar-se. signar este matar precipitado, antes de a própria pessoa ser
Para esclarecer as coisas, será necessário revisar uma série morta. Os heróis, em sua História Secreta, dizem de um ini-
de ordens de índole especial. migo que querem matar no último instante antes de morrer:
Considerando que se trata de ordens que são dadas den- "Eu o levarei comigo como travesseiro".
tro do âmbito de uma disciplina rígida, elas podem ser compa- Mas, se com esta consideração a respeito dos assassins
radas às ordens militares. Também o soldado é educado para nós conseguimos nos aproximar da situação do skoptsy, mesmo
expor-se ao perigo. Todo o seu treinamento serve para que assim ainda não conseguimos apreendê-la com precisão. Pois
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o skoptsy é obrigado a atingir ou a mutilar sua própria pessoa, para nenhuma outra coisa; excetuando-se esses
A ordem que ele aceitou somente pode ser executada em si sensibilidade não sente mais coisa alguma.
mesmo, e somente executando esta ordem é que ele se trans- aguilhões,defesa
ele cm relação a novas ordens se converte então
forma num membro efetivo do seu exército secreto. Sua ão vital. Ele procura não ouvi-las, para não ter de
Não podemos deixar-nos confundir neste diagnóstico pelo numa quest . Quando é obrigado a ouvi-las, não as compreende,
itá-ias
fato de que a castração na maioria das vezes é realizada por delas de maneira ostensiva, fazendo o contrário
outras pessoas. Seu sentido reside no fato de que é o próprio adesviando-se ordenado. Quando lhe dizem para avançar, retro-
é
indivíduo quem se oferece voluntariamente à castração. Uma do que lhe lhe dizem para retroceder, avança. Não se pode
cede. Quando
vez que ele se declarou disposto a permitir que isso aconteça, dizer que ele seja livre em relação à ordem. Trata-se de uma
perde importância o como é feito. Posteriormente ele irá que- reação desastrada ou até mesmo impotente, pois de certa forma
rer transmitir isso de todas as maneiras; seu aguilhão para ela é também determinada pelo conteúdo da ordem. É esta
tanto permanece sempre igual, uma vez que ele recebeu a reação que a psiquiatria designa como negativismo; ele de-
ordem a partir de fora para dentro. sempenha um papel especialmente importante entre os es-
Mesmo se, como é de se supor, houve uma primeira pes- quizofrênicos.
soa que começou a efetuar a operação em si mesma, ela tam- Nos esquizofrênicos o que mais chama a atenção é a ca-
bém agiu em função de uma suposta ordem celeste. Ela está rência de contato. Eles estão muito mais isolados do que os
firmemente convencida disto. As passagens bíblicas que utiliza demais. Freqüentemente dão a impressão de estarem enrije-
para converter outras pessoas são as que a levaram à conver- cidos dentro de si mesmos; é como se não existisse nenhum
são; ela transmite exatamente o que recebeu. tipo de relação entre eles e os demais; como se nada entendes-
O aguilhão adquire neste caso a forma visível de uma sem; como se nada quisessem entender. Sua obstinação é
cicatriz física. Ela é menos secreta do que o aguilhão habitual como a das estátuas de pedra. Não existe uma posição na qual
eles não possam enrijecer. No entanto estas mesmas pessoas,
da ordem. No entanto, ela permanece secreta diante de todos
os que não pertencem à seita. noutras fases de sua enfermidade, se comportam repentina-
mente de maneira diametralmente oposta. Mostram-se de uma
sugestionabilidade que assume proporções fantásticas. Fazem
tudo o que lhes é ensinado ou que se pede a eles com tal rapi-
Negativismo e esquizofrenia dez, com tal perfeição que é como se nós mesmos estivéssemos
dentro deles, fazendo as coisas por eles. Trata-se de ataques
Um ser humano pode esquivar-se de ordens não lhes dando de servilismo que lhes acontecem repentinamente. "A escra-
ouvidos; pode esquivar-se deixando de executá-las. O aguilhão vidão da sugestão", como foi definido por um deles. De es-
— e nunca se insistirá demais neste ponto -- somente aparece tátuas passam a ser zelosos escravos do dever, e levam ao
com a execução de ordens. É a própria ação realizada sob extremo, de um modo que às vezes parece ridículo, qualquer
pressão alheia, de fora para dentro, o que leva o homem à coisa que se lhes peça.
formação de aguilhões. A ordem que é levada à ação estampa O contraste entre estas duas atitudes é tão grande que se
sua forma exata no executante; da força com que é dada, de torna difícil compreendê-lo; mas se por um momento nos abs-
sua aparência, de sua superioridade e de seu conteúdo depen- trairmos da maneira como estas atitudes se apresentam dentro
dem a profundidade e a dureza com que ela pode estampar-se. deles, se os contemplarmos, por assim dizer, de fora para den-
Ela sempre permanece como algo isolado, e desta forma é ine- tro, não se pode negar que ambos os estados são bastante
vitável que todo homem finalmente acumule uma porção de conhecidos também na vida dos seres "normais". A diferença
aguilhões, tão isolados como o foram as ordens recebidas. Sua é que, neste caso, esses estados servem a um determinado fim
capacidade de aderência nos homens é surpreendente, nada e dão a impressão de ser menos exagerados.
penetra tão profundamente neles e nada chega a ser tão indis- O soldado que não dá atenção a qualquer estímulo exter-
solúvel. É possível que chegue um momento no qual um no, que permanece rígido, parado onde foi colocado, que não
indivíduo esteja tão repleto de aguilhões que já não tenha abandona seu posto, a quem ninguém pode induzir a fazer algo
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que normalmente faria e que já fez com muito agrado, esse tâncias obrigadas foi narrada e designada como descarga. Para
soldado corretamente treinado para seu serviço encontra-se complementar podemos acrescentar que os aguilhões-ordens
artificialmente num estado de negativismo. É verdade que em que estão acumulados em cada indivíduo fazem parte destas
determinadas circunstâncias ele também pode agir, mas única distâncias obrigadas. Na massa todos os seres individuais são
e exclusivamente por ordens de seu superior. Ele foi adestrado iguais entre si, nenhum tem o direito de mandar nos outros;
neste negativismo para agir apenas sob determinadas ordens. também seria possível dizer que todos mandam em todos. Não
Trata-se de um negativismo que se deixa manipular, pois está só não se formam novos aguilhões: o indivíduo se desfaz ao
no arbítrio e no poder do superior levá-lo ao estado extremo mesmo tempo de todos os antigos. Por assim dizer ele esca-
oposto. Assim que a autoridade competente ordena algo ao puliu de casa e deixou seus aguilhões para trás, no sótão, onde
soldado, ele se comporta com o mesmo zelo e com o mesmo jazem amontoados. Este sair de tudo o que faz suas rígidas
servilismo do esquizofrênico em sua fase oposta. uniões, seus limites e cargas é o motivo principal do senti-
É necessário acrescentar que o soldado sabe muito bem mento de elevação, quase de euforia, que o homem sente
por que age dessa maneira. Ele obedece porque se encontra dentro da massa. Em parte alguma ele se sente mais livre, e,
sob ameaça de morte. Num capítulo anterior já descrevemos se ele deseja tão ardentemente continuar sendo massa, isto se
como ele se habitua pouco a pouco a este estado, chegando no deve ao fato de saber o que irá acontecer depois. Quando ele
fim a adaptar-se a ele de dentro para fora. Deve realçar-se retornar a si, quando voltar para sua casa, voltará a encon-
apenas uma coisa: a inconfundível semelhança externa que trar-se com tudo isso: limites, cargas e aguilhões.
existe entre o soldado em serviço e o esquizofrênico. O esquizofrênico que está tão sobrecarregado de aguilhões
Mas uma idéia bastante distinta se impõe aqui e ela me a ponto de ficar por momentos paralisado por causa deles,
parece importante. O esquizofrênico, no seu estado de extrema sucumbe à ilusão do estado oposto: o estado de massa. En-
sugestionabilidade, comporta-se como membro de uma massa. quanto ele se encontra na massa não sente seus aguilhões. Ele
Ele é igualmente impressionável, cede de igual maneira a todo saiu — pelo menos assim pensa — de si mesmo, e embora isso
e qualquer estímulo externo. Somente não percebemos que aconteça de maneira insegura e duvidosa, ele parece extrair
ele poderia estar neste estado porque está sozinho. Como não daí um alívio temporário para o seu tormento; sente-se como
vemos massa alguma em torno dele, não nos ocorre supor que se estivesse novamente relacionado com os demais. O valor
ele — do seu próprio ponto de vista — se sente como se a desta redenção, é claro, é apenas ilusório. Justamente onde
ela pertencesse: ele é um pedaço desprendido de massa. Esta inicia sua libertação o esperam novas e mais intensas coerções.
afirmação somente pode ser demonstrada se entrarmos nas Mas a natureza completa da esquizofrenia não é o assunto que
representações internas dos próprios enfermos. Inumeráveis desejamos estudar aqui. Basta lembrarmo-nos de um fato: nin-
são os exemplos que podem ser citados. Uma mulher declara guém necessita mais da massa do que o esquizofrênico, tão
ter "todos os seres humanos no seu ventre". Outra "ouvia os repleto de aguilhões-ordens que se sente asfixiado por eles.
mosquitos conversando". Um homem escutou "729 mil mo- Incapaz de encontrar a massa fora, ele se abandona a ela
ças", outro "as vozes sussurrantes de toda a humanidade". dentro de si.
Nas representações dos esquizofrênicos aparecem — por trás
de disfarces múltiplos — todas as espécies de massa que exis-
tem; seria até mesmo possível começar a estudar a massa a A inversão
partir deste ponto de vista. A meta de um trabalho especial
será reunir e revisar as representações de massa dos esquizo- "Pois o alimento que o homem comer neste mundo há de
frênicos. Sua classificação irá mostrar a grandiosa integridade comer ele no outro". Esta frase enigmática e inquietante se
e amplitude existente nelas. encontra no Shatapatha-Brahmana, um dos antigos tratados de
Vale a pena perguntar por que os dois estados opostos sacrifício dos hindus. Mais inquietante ainda é o relato que
que mencionamos aqui são necessários para o esquizofrênico. aparece neste mesmo tratado. Trata-se da excursão do vidente
Para compreendê-los é preciso lembrar o que ocorre com um Bhrigu ao além.
indivíduo, assim que ele entra na massa. A liberação das dis- Bhrigu, um santo, era filho do deus Varuna; ele tinha
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adquirido uma grande sabedoria brâmane e isto lhe tinha su- mesma história de Bhrigu é contada de forma algo diferente.
bido à cabeça. Tornou-se arrogante e colocou-se acima do Ele não percorre as várias direções cardeais, mas vai de um
próprio deus seu pai. Este lhe quis demonstrar o quão pouco mundo para outro. Em vez das quatro cenas que foram narra-
sabia e lhe recomendou visitar, uma depois da outra, as dife- das, existem apenas três. Primeiro Bhrigu vê árvores, que
rentes regiões celestes: Leste, Sul, Oeste e Norte. Deveria assumiram formas humanas no além, e agora cortam homens
prestar o máximo de atenção a tudo quanto visse e, no regresso, em pedaços e os devoram. Depois Bhrigu vê um homem que
contar-lhe tudo o que tinha presenciado. devora outro que grita. A este respeito dá-se uma explicação:
"Primeiro, ou seja, no Leste, Bhrigu viu homens que 4,0 gado que foi sacrificado e comido aqui assumiu no além
arrancavam a machadadas os membros de outros homens, um uma figura humana e agora faz ao homem o que este lhe fez
depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto per- antes". Finalmente ele vê um homem devorando outro que
tence a você, isto pertence a mim'. Quando Bhrigu viu isso não diz coisa alguma. O arroz e a cevada assumiram forma
ficou espantado e as pessoas que esquartejavam os outros lhe humana e retribuem agora o que sofreram antes.
deram como explicação o fato de que as vítimas tinham feito Também aqui são indicados determinados sacrifícios.
o mesmo com eles no mundo dos vivos e que eles agora nada Quem os realiza corretamente escapa do destino de ser devo-
mais faziam do que proceder da mesma forma. rado no além pelas árvores, pelo gado ou pelo arroz e a cevada.
"Depois disso Bhrigu iniciou sua viagem para o Sul, e lá Mas o que aqui nos interessa não são os antídotos contra o
viu homens que cortavam os membros de outros homens, um destino. O importante é a idéia popular que se oculta por trás
depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto per- do disfarce sacerdotal. O que fazemos aqui nos é feito no
tence a você, isto pertence a mim'. Quando perguntou o mo- além. Não são instituídos servidores especiais de justiça para
tivo, Bhrigu tornou a ouvir a mesma resposta: os que agora executar este castigo; pelo contrário, cada qual castiga seu
estavam sendo cortados tinham feito a mesma coisa no outro próprio inimigo. Também não se trata de ações quaisquer, mas
mundo com os que agora os cortavam. No Oeste, depois disso, sim do próprio ato de comer. "Assim como neste mundo os
Bhrigu viu pessoas que, caladas, devoravam outras pessoas, as homens comem animais e os consomem, da mesma forma, os
quais, também caladas, se deixavam devorar. Exatamente desta animais no outro mundo comem os homens e os consomem".
forma eles tinham se comportado no outro mundo com os que Esta frase de um outro Brahmana, semelhante ao que
os devoravam. No Norte, viu novamente homens que aos colocamos no início deste capítulo, encontra uma estranha con-
gritos devoravam outros homens que também gritavam, exata- firmação no Código de Manu. Lá explica-se que não é pecado
mente com estes tinham feito com aqueles no outro mundo. comer carne, porque este é o comportamento natural das cria-
"Depois do seu retorno, Bhrigu foi convidado por seu turas. Mas promete-se uma recompensa especial a quem se
pai Varuna a recitar sua lição como um aluno na escola. Mas abstiver da carne. A palavra em sânscrito para designar a
Bhrigu disse: 'O que devo dizer? Não existe lição alguma!' carne, mamsa, se explica pela decomposição de suas sílabas:
Ele tinha visto coisas por demais pavorosas e tudo lhe pa- mam significa "a mim", sa significa "ele"; mamsa quer dizer
recia sem sentido. "a mim-ele"; "a mim" "ele" lá no além irá comer, ele cuja
"Então Varuna soube que Bhrigu tinha visto essas coisas carne eu comi aqui; isto é o que os sábios explicam como a
e lhe explicou: 'Os homens do Leste, que arrancavam com "carnalidade da carne". Nisto consiste a natureza-carne da
machados os membros de outros, eram árvores. Os homens do carne; este é o verdadeiro sentido da palavra carne.
Sul, que cortavam os membros de outros, eram bois e vacas. A inversão é reduzida aqui à mais concisa de todas as
Os homens do Oeste, que calados devoravam homens calados, fórmulas, e é captada na imagem da carne. Eu a como, ela me
eram ervas. Os homens do Norte, que gritando devoravam come. A segunda parte, a conseqüência do que eu fiz, é então
outros homens, eram as águas'." precisamente a palavra que designa a carne. O animal que nós
Para todos estes casos ele conhecia um remédio. Mediante comemos lembra-se de quem o comeu. A morte não acabou com
determinados sacrifícios, que indicou ao filho, podiam evi- al. Sua alma continua vivendo, e no além ela se trans-
tar-se as conseqüências, no além, das próprias ações. formaem homem. Este aguarda então pacientemente a morte
Noutro tratado de sacrifícios, o Jaiminiya-Brahmana, a es
deteseau devorador. Assim que este morre e chega ao além, a
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situação primitiva se inverte, transformando-se no oposto. A vezes, é sua absoluta imutabilidade. Ele permanece isolado do
vítima encontra seu devorador, agarra-o, corta-o e come-o.
A relação que tudo isso tem com nossa concepção da restante do homem como um corpo estranho em sua carne.
Por maior que seja a profundeza alcançada, por mais camu-
ordem e do aguilhão é evidente. Entretanto tudo foi levado
flada que seja sua existência, ele sempre causa desagrado ao
a tais extremos, tudo se transforma em algo tão concreto que seu possuidor. Permanece suspenso dentro dele de maneira
se começa a ter medo. Em vez de acontecer nesta vida, a in-
misteriosa, aprisionado numa espécie de país estrangeiro.
versão ocorre no outro mundo. Em vez da ordem, que apenas
O próprio aguilhão quer ir embora, mas tem dificuldade
ameaça com a morte e que assim consegue por extorsão todos
os tipos de serviço, trata-se realmente de morte em sua forma em desprender-se. Não é possível livrar-se dele de qualquer
maneira. A força com a qual ele se liberta deve ser idêntica à
mais extrema, na qual o morto é devorado.
força com a qual penetrou. De uma ordem reduzida, ele pre-
Segundo nossa maneira de ver, que já não encara seria-
mente a existência no além, o aguilhão que a ameaça de morte cisa transformar-se novamente numa ordem completa. Para a
aquisição desta força é necessária uma inversão da situação
provoca continua existindo enquanto a vítima vive. Se ela
original: sua exata recomposição é indispensável. É como se o
irá conseguir uma inversão é sempre algo duvidoso; de qual-
aguilhão contivesse sua própria recordação e esta recordação
quer forma a vítima tentará consegui-la. Finalmente, o homem
constasse de uma só coisa; como se ficasse à espreita durante
é governado por seus aguilhões, sua fisionomia interna é de-
terminada por eles; conseguindo ou não libertar-se deles, eles meses, anos, décadas, até o regresso à situação antiga. É impres-
são o seu destino. Segundo a concepção hindu, para a qual cindível que ele a reconheça, pois ele consta apenas dela; ela
é a única coisa que ele é capaz de reconhecer. Repentinamente
o além é uma premissa segura, o aguilhão como núcleo duro
tudo volta a ser igual ao que era antes, mas os papéis estão
da alma continua existindo no além, mesmo depois da morte;
a inversão ocorre de qualquer maneira, ela se converte na ati- invertidos. Neste instante ele aproveita a ocasião e se lança
vidade propriamente dita da existência no além. Faz-se exata- com todo o vigor sobre sua vítima: a inversão finalmente
mente o que nos foi feito, e somos nós mesmos que o fazemos. aconteceu.
O fato de a mudança de aparência não constituir um obs- Este caso, que poderia ser chamado puro, não é no entan-
táculo parece ser uma característica especial. Já não é o animal to o único possível. Uma ordem pode ser repetida freqüente-
que comemos que nos agarra no além e que nos retalha: é um mente pelo mesmo indivíduo à mesma vítima, de maneira que
homem com a alma desse animal. Externamente a criatura se uma ou outra vez se formam aguilhões da mesma espécie.
modificou completamente, mas o aguilhão continua sendo inva- Estes aguilhões idênticos não permanecem isolados, eles devem
riavelmente o mesmo. Nas visões de horror que são presen- relacionar-se entre si. Esta nova configuração aumenta a olhos
ciadas por Bhrigu em sua viagem, o aguilhão aparece como o vistos, e não pode mais ser esquecida por quem a possui. Ela
tema principal da alma; seria inclusive possível dizer que esta sempre chama a atenção, ela sempre é pesada; por assim dizer,
é formada inteiramente por aguilhões. A essência propriamente ela fica acima da superfície da água.
dita do aguilhão, do qual tanto se falou nesta análise da ordem, Porém, a mesma ordem também pode ser dada e repetida
sua absoluta imutabilidade e a precisão da inversão à qual ele por diferentes indivíduos. Se isto acontece com muita freqüên-
aspira encontram nesta crença hindu do devorado que deve cia e numa sucessão implacável, o aguilhão perde sua forma
devorar por sua vez sua expressão mais conclusiva. pura e se desenvolve até se tornar — dificilmente se poderia
chamar isto de outra maneira — um monstro mortalmente
perigoso. Ele assume proporções enormes e se converte no
A dissolução do aguilhão conteúdo principal do seu possuidor. Sempre consciente dele,
este o carrega consigo e tenta eliminá-lo em todas as oportuni-
O aguilhão se forma durante a execução da ordem. Ele se des- dades. Inúmeras situações lhe parecem então idênticas à ori-
prende desta e se grava com a figura exata da ordem no exe- ginal; parecem-lhe apropriadas para a inversão. No entanto
cutante. Ele é pequeno, oculto e desconhecido; sua proprie- elas não o são, uma vez que, devido à repetição e ao entrecru-
dade mais essencial, a respeito da qual já falamos repetidas zamento, tudo se tornou impreciso; podemos dizer que a chave
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da situação original foi perdida. Uma recordação se colocou nativo, eles eliminam agora as distâncias: penetram no palá-
por cima de outra, como um aguilhão sobre o outro. Sua mas- es era proibido. Examinam o que ele contém: salões,
ci que lh móveis. A fuga, que as ordens reais antes provo-
moradores,
sa já não pode ser decomposta em suas partes constituintes.
eles, se inverte em familiaridade íntima. Se por temor o
Por mais que se tente, tudo continua como antes, e sozinha cavam n
a pessoa jamais conseguirá libertar-se de sua carga. rei permite esta aproximação, é possível que as coisas não ul-
A ênfase, neste caso, está na palavra "sozinha". Pois existe trapassem este ponto, mas não por muito tempo. O processo
uma libertação de todos os aguilhões, inclusive dos mais mons- geral de uma libertação de aguilhões, uma vez iniciado, prosse-
truosos, mas esta libertação está na massa. Diversas vezes já gue de forma inabalável. É preciso pensar em tudo o que foi
mencionamos aqui a massa de inversão, mas não era possível feito para manter em obediência os seres humanos, e em tudo
elucidar sua essência propriamente dita, antes de termos ana- o que durante longos anos se acumulou dentro deles sob a
lisado o modo como funciona a ordem. forma de aguilhões.
A massa de inversão é formada por muitos para, em con- A ameaça propriamente dita aos súditos, ameaça que pen-
junto, livrarem-se de aguilhões-ordens aos quais estão indivi- dia interminavelmente sobre suas cabeças, era a ameaça de
dualmente entregues sem esperança. Um grande número de morte. Por meio de execuções ela era renovada de tempos em
homens se une e se volta contra outro grupo, no qual vêem tempos, demonstrando sua seriedade de maneira inequívoca.
os causadores de todas as ordens que foram obrigados a su- De uma única maneira esta ameaça pode ser completamente
portar durante tanto tempo. Se eles por acaso forem soldados, compensada: o rei, que mandava cortar cabeças, deve ser deca-
qualquer oficial poderá ocupar o papel daqueles sob cujas or- pitado também. Com isto, o supremo, o mais amplo de todos
dens se encontravam. Se forem trabalhadores, qualquer em- os aguilhões, o que em sua aparência engloba todos os demais,
presário pode substituir os patrões para os quais trabalhavam. é retirado dos que eram obrigados a suportá-lo coletivamente.
Nesses momentos classes e castas se transformam em realidade, Nem sempre se pode compreender o sentido da inversão
elas passam a ser verdadeiras; seus componentes se compor- de forma tão nítida, e nem sempre ela culmina com tanta per-
tam como se fossem todos iguais. A classe inferior que se
feição. Quando a revolta não é bem-sucedida e os homens não
sublevou forma uma massa coesa em todos os pontos; a supe-
conseguem livrar-se realmente de seus aguilhões, mesmo assim
rior, cercada pela maioria, constitui uma série de maltas me-
eles guardam agora a lembrança do tempo em que foram mas-
drosas e interessadas apenas na fuga.
sa. Durante esse estado, pelo menos, estiveram livres dos agui-
Nos que agora pertencem à massa, cada aguilhão em sepa-
rado, complexo e cristalizado após muitas e diversas ocasiões, lhões e sempre irão se recordar dele com nostalgia.
encontra uma série de possíveis origens de uma só vez. Os
agredidos estão ali diante deles, isolados ou lado a lado, e pa-
recem saber muito bem por que sentem medo. Não é necessá- Ordem e execução. O verdugo satisfeito
rio que sejam os causadores reais deste ou daquele aguilhão;
sejam ou não causadores, estão no lugar deles e são tratados Até aqui nesta análise omitimos conscientemente um caso. A
com toda a seriedade como tais. A inversão, que aqui é dirigida ordem se explica como ameaça de morte; dissemos também
simultaneamente contra muitos, dissolve até os mais pesados que ela é derivada da ordem de fuga. A ordem domesticada,
de todos os aguilhões. tal como nós a conhecemos, relaciona a ameaça com uma re-
No caso mais concentrado desta espécie, quando se vai compensa; a alimentação atenua o efeito da ameaça, mas nada
contra uma única cabeça, um rei por exemplo, o que a massa muda em seu caráter. A ameaça nunca é esquecida. Em sua
sente é a maior clareza. A única fonte de todas as ordens era forma original ela permanece para sempre, até que se apre-
o rei; seus dignitários e a nobreza eram apenas elementos para sente uma oportunidade para que a pessoa afetada se desfaça
a transmissão e para a aplicação dessas ordens. Os indivíduos dela, transferindo-a para outros.
que formam a massa sublevada foram mantidos durante longos A ordem porém também pode ser um encargo de matar;
anos à distância por meio de ameaças e em estado de obediên- neste caso, ela leva à execução. Aqui realmente ocorre o que,
cia por meio de proibições. Numa espécie de movimento re- nos demais casos somente é ameaçado. Mas o que acontece e
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dividido entre dois homens. Um recebe a ordem, o outro é
quietante. O horror que desperta nos outros, ele não o sente
executado. dentro de si. É importante ver claramente este aspecto: os
O verdugo está, como todos os que se submetem a uma matadores oficiais estão tanto mais satisfeitos dentro de si
ordem, sob ameaça de morte. Mas ele se livra dessa ameaça mesmos quanto mais numerosas forem as ordens que levem
matando. Ele transfere imediatamente o que poderia lhe suce- diretamente à morte. Mesmo para o carcereiro, o dever é mais
der e, desta forma, antecipa a sanção extrema que pesa sobre duro do que para o verdugo.
ele. Disseram-lhe: você precisa matar, e ele mata. Ele não está É verdade que a sociedade faz com que ele pague a satis-
em condições de se defender contra tal ordem; ela lhe é dada fação que seu ofício lhe dá com uma espécie de proscrição.
por alguém cujo poder superior ele reconhece. Tudo precisa Mas, em si, nem mesmo isto está acompanhado de uma des-
acontecer rapidamente; em geral acontece logo em seguida. vantagem para ele. Ele sobrevive, "sem ter culpa disso", a cada
Não há tempo suficiente para a formação de um aguilhão. uma de suas vítimas. Uma parte do prestígio do sobrevivente
Mas, mesmo que houvesse tempo, não existe motivo para recai sobre ele, um mero instrumento, e compensa total-
a formação de um aguilhão. Porque o verdugo transmite o que mente aquela proscrição. Ele é capaz de encontrar uma esposa,
recebe. Ele nada tem a temer, uma vez que nada permanece tem filhos, leva uma vida familiar.
dentro dele. Neste caso, e somente neste, a equação da ordem
se resolve sem deixar saldo algum. Sua natureza mais profunda
e a ação que esta ordem provoca são idênticas. Tudo foi prepa- Ordem e responsabilidade
rado para que a execução seja viável; nada pode atrapalhar; é
improvável que a vítima consiga escapar. O verdugo tem cons- Sabe-se que homens que atuam sob ordens são capazes dos
ciência de todas estas circunstâncias desde o começo. Ele pode atos mais atrozes. Quando a fonte da ordem é sepultada e eles
aguardar a ordem com calma; tem confiança. Sabe que com são obrigados a voltar os olhos para seus atos, eles próprios
sua execução nada irá se modificar dentro dele. Por assim di- não se reconhecem. Dizem: isso eu não fiz. E nem sempre têm
zer, ele passa incólume pela situação toda, permanecendo com- consciência de que estão mentindo. Quando se vêem acusados
pletamente intato em relação a ela. Dentre todos os homens o por testemunhas e começam a vacilar, mesmo assim continuam
verdugo é o mais satisfeito, o mais carente de aguilhões. afirmando: eu não sou assim, eu jamais poderia ter feito isso.
Trata-se de uma situação monstruosa, que nunca foi se- Procuram os vestígios do ato dentro de si e não conseguem en-
riamente enfocada. Ela somente pode ser compreendida quan- contrá-los. Causa surpresa ver que eles conseguiram ficar tão
do levamos em consideração a verdadeira natureza da ordem. intactos. A vida que levam mais tarde realmente é outra e de
A ordem existe apenas como conseqüência da ameaça de mor- maneira alguma está manchada pelo ato. Eles não se sentem cul-
te; é desta que ela extrai toda a sua força. O excedente desta pados e de nada se arrependem. O ato simplesmente não pe-
força, que é inegável, explica a formação do aguilhão. Porém netrou neles.
as ordens que levam a morte a sério, que procuram, e que São homens que, sob outros aspectos, estão muito bem
realmente a provocam, são as que menos vestígios deixam em capacitados para avaliar suas ações. O que fazem por iniciativa
quem as recebe. própria deixa neles os vestígios que são de se esperar. Eles
O verdugo é um homem que é ameaçado de morte para se envergonhariam de matar uma criatura desconhecida e inde-
que mate. Ele só pode matar os que deve matar. Se ele se fesa que não os tivesse provocado. Sentiriam nojo de torturar
ativer estritamente às ordens recebidas, nada pode lhe aconte- qualquer pessoa. Eles não são melhores, mas também não são
cer. Certamente na execução ele também irá incluir algo do piores do que as pessoas em cujo meio convivem. Muitos que
que lhe foi ameaçado em outras oportunidades. É de supor os conhecem no cotidiano estariam dispostos a jurar que eles
que acrescente às suas execuções um pouco dos aguilhões de estão sendo acusados injustamente.
origem totalmente diferente que se foram acumulando dentro Quando depois desfila o longo cortejo das testemunhas,
dele. Mas de mais importância continua sendo o mecanismo do das vítimas que sabem muito bem do que estão falando, quan-
seu encargo propriamente dito. Matando, ele mesmo se liberta do essas vítimas, uma após outra, reconhecem o autor e fazem
da morte. Para ele tudo isto é um negócio limpo e nada ín- com que cada detalhe do seu comportamento lhe volte à me-
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mória, todas as dúvidas se tornam absurdas, e nós nos depara- pois de uma longa história, é o elemento singular mais peri-
mos com um enigma para o qual não existe solução. goso da convivência entre os homens. É preciso ter a coragem
Para nós isto já não é mais um enigma, uma vez que co- de se opor a ela e de abalar seu poder. É preciso encontrar
nhecemos a natureza da ordem. Para cada ordem que o autor meios e para manter-se livre dela a maior parte do
executou, restou dentro dele um aguilhão. Mas este é tão es- e
ser humano. Não se deve permitir que ela produza mais do
tranho como era a própria ordem no momento em que ela que pequenos arranhões na pele. Seus aguilhões devem trans-
lhe foi dada. Por mais tempo que um aguilhão permaneça formar-se em meros espinhos que possam ser eliminados com
aderente ao homem, ele nunca é assimilado; ele continua sendo um simples gesto.
um corpo estranho. Embora seja possível, conforme foi dito
em outra passagem, que vários aguilhões se reúnam e conti-
nuem crescendo até dar lugar a uma nova formação monstruo-
sa no afetado, eles sempre permanecem nitidamente diferen-
ciados do que os circunda. O aguilhão é um intruso, um fo-
rasteiro que jamais se naturaliza. É algo indesejável e seu por-
tador quer desfazer-se dele. O aguilhão é exatamente o que se
praticou; como se sabe, ele tem a aparência exata da ordem.
Como instância estranha ele continua vivendo dentro do des-
tinatário e lhe tira todo e qualquer sentimento de culpa. O
autor não se acusa a si mesmo mas sim o aguilhão, a instância
estranha, o verdadeiro autor, por assim dizer, que ele sempre
carrega consigo. Quanto mais estranha tiver sido a ordem, tanto
menor é a culpa que se sente por causa dela, tanto mais niti-
damente separada ela continua existindo como aguilhão. Ele
passa a ser a testemunha perpétua de que não se cometeu isto
ou aquilo. A pessoa se sente vítima, ela própria, do aguilhão
e não consegue ter qualquer sentimento pela vítima verdadeira.
É certo pois que os homens que agiram sob ordens se
consideram completamente inocentes. Caso estejam em con-
dições de enfrentar sua situação, podem sentir uma espécie de
surpresa por terem estado alguma vez tão completamente sob
o regime de violência das ordens. Mas mesmo este impulso
esclarecedor carece de valor, uma vez que se torna presente
apenas demasiado tarde, quando tudo já passou. O que acon-
teceu pode voltar a acontecer, e nenhuma defesa contra situa-
ções novas que se assemelhem á anterior como um cabelo a
outro chega a se desenvolver neles. Eles continuam entregues
indefesos ã ordem, apenas vagamente conscientes de sua peri-
culosidade. No caso mais claro, que felizmente é pouco fre-
qüente, eles transformam a ordem numa fatalidade e passam
a sentir-se orgulhosos de que esta fatalidade se tenha utilizado
cegamente deles, como se fosse necessário um caráter espe-
cialmente varonil para entregar-se a esse tipo de cegueira.
De qualquer ângulo que possa ser contemplada, a ordem,
na forma compacta e completa que apresenta atualmente de-
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A METANIORFOSE
Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos
ou seja, nos animais que eles foram durante a fuga. uma dsenta as partes, que representa o mestre, persegue a outra, que
o rapaz; este sempre se salva no último instante
A limitação a uma única metamorfose animal mostra a r epre
ma caçada louca e atribulada,
essência destes ancestrais dos totens. Em outro contexto fala-se pela metamorfoisdeo. rantaat-userezdae daa metamorfose. Os locais va-
detalhadamente a respeito destas figuras duplas. Aqui basta iedvamente quanto as figuras.
enfatizar que a metamorfose a que eles se submetem e cuja riam
Passando à metamorfose de fuga circular, lembramos da
execução lhes é possível para sempre, produziu-se inicialmente
ritaaeonetelráaspdsica de Proteu, que é mencionada na Odisséia.
jussttóam
fú
pela fuga. Proteu, um sábio ancião do mar, é o senhor das focas e, como
Um caso linear muito rico em conteúdo é o conto geor- elas, sobe à terra uma vez por dia. Primeiro vão as focas, de-
giano intitulado O Mestre e Seu Discípulo. O mestre malvado, pois ele. Ele conta todas elas com cuidado, e logo em seguida
que é o próprio diabo, recebeu o rapaz como aprendiz e lhe se deita entre elas. Menelau, voltando de Tróia, foi jogado por
ensinou todos os tipos de bruxarias. Mas não quer mais dei- ventos adversos contra o litoral do Egito onde vive Proteu,
xá-lo em liberdade, servindo-se dele para seus serviços. O rapaz e não consegue sair dali com seus companheiros. Passaram-se
escapa, mas volta a ser agarrado e é preso num estábulo escuro já alguns anos e ele está desesperado. Então a filha de Proteu
pelo mestre. Lá ele reflete sobre a libertação e nada lhe ocor- se compadece dele e lhe diz o que deve fazer para apoderar-se
re; o tempo passa e ele fica cada vez mais triste. de seu pai, que é capaz de prever o futuro, e obrigá-lo a falar.
Um dia percebe um raio de sol no estábulo. Investigando, Ela fornece peles de focas a Menelau e a dois dos seus com-
encontra uma fenda na porta pela qual penetrava o raio de panheiros, cava buracos na praia para escondê-los, e os cobre
sol. Rapidamente ele se transforma num rato e escapa através com as peles de focas. Com paciência, apesar do mau cheiro,
da abertura. O mestre percebe que ele escapou; transforma-se eles esperam ali até que chegue o bando de focas, entre as
num gato e corre atrás do fugitivo. quais permanecem depois deitados com o inofensivo disfarce.
Tem início agora uma louca série de metamorfoses. O gato Proteu sai do mar, conta o seu bando e, tranqüilizado, deita-se
já está abrindo a boca para matar o rato, quando este se trans- para dormir no meio dele. Chegou para Menelau e seus com-
forma num peixe e salta na água. O mestre se transforma ime- panheiros o momento esperado; eles agarram o velho enquanto
diatamente numa rede e persegue o peixe. Quando está quase dorme e não o soltam mais. Este procura livrar-se de todas as
conseguindo pegá-lo, o peixe se transforma num faisão. O maneiras, transformando-se numa porção de coisas; primeiro
mestre, agora como falcão, dá prosseguimento à caça. O fai- num leão com uma juba imensa, depois numa cobra; mas eles
são já está quase sentindo as garras do seu antagonista quando, o seguram. Transforma-se num leopardo e num poderoso ja-
transformado em maçã vermelha, se deixa cair no colo do rei. vali, mas eles o seguram. Transforma-se em água e depois
O mestre se transforma em faca, e o rei repentinamente a tem numa árvore frondosa, mas eles não o soltam. Ele tenta todas
na mão. O rei faz menção de usar a faca para cortar a maçã, as transformações, mas continua firmemente preso por eles.
mas esta já não está mais lá, tendo sido substituída por um Finalmente ele se cansa. Volta a tomar sua própria figura, a de
punhado de milho. Diante deste milho está agora uma galinha Proteu, velho do mar, e lhes pergunta o que querem e lhes dá
com seus pintinhos — é o mestre. Os pintinhos comem os as explicações desejadas.
grãos até restar um só. Este, no último instante, se transforma Vê-se por que este tipo de metamorfose de fuga pode ser
numa agulha. A galinha e os pintinhos se transformam então denominado circular. Tudo acontece num único lugar. Cada
num fio de linha enfiado no fundo da agulha. Então a agulha metamorfose é uma tentativa para evadir-se em outra figura
se inflama e o fio queima. O mestre está morto. A agulha se ou, por assim dizer, em outra direção. Todas essas tentativas
transforma outra vez no rapaz, que então retorna para casa são inúteis e Proteu continua preso por Menelau e seus com-
onde fica vivendo com seu pai. panheiros. Não se pode falar de uma caça: ela já terminou; a
A série de metamorfoses duplas neste caso é a seguinte: presa está segura e as transformações são uma série de ten-
rato e gato, peixe e rede, faisão e falcão, maçã e faca, milho tativas sempre frustradas de fuga do prisioneiro. Este, final-
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mente, é obrigado a resignar-se a seu destino e a fazer o que se convertecentro e in a tal ponto que já não se movimenta
dele se espera. r_se mão de todo e qualquer movimento, como se
Por fim, eu gostaria de recordar aqui a história de Peleu ata. Abre tivesse ocorrido, e a outra pessoa se
•m almente a morte já
e Tétis que, como pais de Aquiles, alcançaram uma grand e É fácil compreender como teria sido útil para Tétis e
afasta, de se fazerem passar por mortos,
celebridade. Peleu é mortal; Tétis é uma deusa que resiste a para Proteu este
uma relação com ele, já que ele não parece ser digno dela. Ele u esre Tétis não teria sido amada e Proteu
caso inão Fossem
a surpreende dormindo numa caverna, agarra-a e não a solta sido obrigado a revelar o futuro. Mas ambos eram
não teria sido como tais, imortais. Por mais perfeita que tivesse
mais. Ela tenta, como Proteu, todos os tipos de metamorfose. deuses e,
Transforma-se em fogo e em água, em leão e em cobra. Mas sido a simulação, sua morte teria sido a única coisa na qual
ele não a solta. Ela se transforma num monstruoso e viscoso nguém jamais teria acreditado.
polvo e o salpica com sua tinta. De nada lhe serve. É forçada ni A forma circular da metamorfose de fuga é portanto a
a se entregar e posteriormente, após algumas tentativas para que dá sua coloração característica à histeria. Ela também ex-
se desfazer da descendência dele, torna-se mãe de Aquiles. plica a riqueza das metamorfoses de fenômenos de natureza
Neste caso, as metamorfoses tentadas por Tétis são muito fenômenos de natureza religiosa tão patentes nesta
parecidas com as de Proteu; a semelhança reside também na a em Qualquer forma de apreensão pode incitar à fuga
enrófetircmidade.
situação: uma captura e um agressor que a agarra e não a e a intenção da fuga pode ser impossível, se quem aprisiona a
solta. Cada uma dessas metamorfoses é uma tentativa de es- outra pessoa tem forças suficientes para não soltá-la,
capar numa nova direção. Por assim dizer, ela dá voltas para Uma imagem oposta à transformação de fuga ocorre nos
encontrar um lugar por onde possa fugir. Mas em ponto algum ataques dos xamãs. Também eles se mantêm fixos no mesmo
consegue abrir uma brecha; permanece prisioneira, e finalmente lugar durante a sessão toda. Estão rodeados por um círculo de
se entrega no centro de todas as metamorfoses, já na figura homens que os observam. O que quer que aconteça ao espí-
da própria deusa. rito de cada um deles, seu corpo visível permanecerá onde
No fundo, portanto, a história de Tétis nada acrescenta está. Às vezes eles se fazem amarrar, com medo de que seu
à de Proteu. Ela foi citada pelas suas nuanças eróticas. Ela lem- corpo se afaste juntamente com o espírito. O elemento circular
bra os ataques de um tipo de enfermidade que é freqüente e está portanto muito acentuado, tanto pela necessidade de per-
universalmente conhecida: a histeria. Os grandes ataques desta manecer aderente ao seu centro terreno, centro de ação, como
enfermidade nada mais são do que uma série de violentas me- pela presença de um círculo de adeptos. As metamorfoses su-
tamorfoses de fuga. A mulher atingida se sente presa por uma cedem-se rapidamente e alcançam uma grande intensidade e
potência superior que não a solta mais. Pode ser um homem, freqüência. No entanto — e esta é a diferença essencial em
do qual queira escapar, um homem que a amou e possuiu, ou relação ao ataque histérico usual — elas não devem servir à
um homem como Peleu, que irá logo possuí-la. Pode ser um fuga. O xamã, por meio de suas transformações, procura espí-
sacerdote que mantém a doente presa em nome de um deus; ritos auxiliares que lhe obedeçam. Ele mesmo os agarra e os
pode ser um espírito ou o próprio deus. Em todos os casos, é obriga a ajudá-lo nos seus empreendimentos. O xamã é ativo,
importante que a vítima sinta a proximidade física de um po- suas metamorfoses servem para o aumento do próprio poder
der superior, sua apreensão imediata por ele. Tudo o que ela e não para a fuga diante de outros que sejam mais poderosos
faz, principalmente cada transformação que empreende, está cal- do que ele. Nas viagens que seu espírito empreende enquanto
culada para conseguir vencer esta apreensão. A riqueza das seu corpo aparentemente jaz inconsciente, ele visita os mundos
metamorfoses que tenta a todo momento, das quais muitas mais distantes do céu e dos infernos. Voa e sobe tão alto quanto
apenas se manifestam em seus começos, é surpreendente. Uma quiser; bate as asas como um pássaro. Mergulha e afunda até
das mais freqüentes é a transformação em morto; trata-se de as profundidades que quiser, chegando ao fundo do mar, e força
uma metamorfose comprovada há muito tempo e que é co- a entrada na casa de uma deusa a quem deseje formular uma
nhecida em muitos animais. Tem-se a esperança de ser consi- súplica urgente que lhe vem do coração. Ele sempre regressa
derado morto. O indivíduo se finge de morto e o inimigo se ao centro, onde seus adeptos aguardam temerosos sua mensa-
afasta. Esta transformação é a mais central de todas; a pessoa gem. Pode acontecer também que alguma vez, em algum lugar,
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ele seja colocado em fuga e se veja obrigado a escapar mediante tentou fazer foi inútil. Ela está entregue a seu destino
tentou
uma transformação; de maneira geral, sua ação tende à ampli o que corno presa. Encontra-se numa fase descendente: presa,
vê
tude e ao domínio e o parentesco com os casos de Proteu e e se carniça ou excremento. Os processos de depreciação,
de Tétis reside apenas na natureza circular de suas metamor rebaixam cada vez mais a própria pessoa, se expressam na
que transferida de sentimento de culpa. Uma culpa, origi-
forma
foses acumuladas.
Vale a pena voltarmos agora à forma linear, tal como a ,significava que se estava em poder de outra pes-
nariamente
conhecemos no conto georgiano do mestre e do seu discípulo soa. Quer uma pessoa se sinta culpada, quer se sinta presa, no
Lembramos que o mestre se transformou em gato para agarrar fundo é a mesma coisa. O melancólico não quer comer, e como
o discípulo que conseguira escapar como rato. Mais tarde o motivo para esta negativa ele pode afirmar que não merece
Na verdade ele não quer comer porque acredita que
mestre se transforma em rede, falcão, faca e galinha com pin- comer.
tinhos. Cada uma de suas metamorfoses serve para um novo ele mesmo está sendo comido. Quando nós o obrigamos a
gênero de caça. Do ponto de vista do mestre, trata-se de uma comer, estamos fazendo com que ele se lembre disso: sua boca
rápida sucessão de metamorfoses agressivas, de uma mudança se volta contra ele próprio; é como se colocássemos um espe-
não apenas de gênero, mas também dos espaços da caça. O lho na sua frente. Neste espelho, ele vê uma boca e vê que
caráter descontínuo e amplo dos acontecimentos, em combi- ela está comendo. Mas o que está sendo comido é ele mesmo.
nação com a intenção perigosa que os origina, tem um paren- O terrível castigo por se ter sempre comido está presente e é
tesco patente com os fenômenos de uma outra enfermidade psí- inescapável. No fundo trata-se aqui da última metamorfose,
quica: a mania. As metamorfoses do maníaco têm uma enorme daquela que está no final de todas as fugas: a metamorfose
versatilidade. Elas têm o que existe de linear e de vago no naquilo que é comido. E, para evitar esta metamorfose, todo
caçador, bem como o que existe de descontínuo em suas metas ser vivo foge, de qualquer forma que lhe seja possível.
mutantes quando não conseguiu o que desejava, mas não aban-
dona sua caça. Têm o que existe de exaltado e alegre em seu
estado de ânimo, que — aonde quer que ele vá parar — per- Automultiplícação e auto-ingestão. A figura
manece sempre tenso e orientado. O discípulo do conto repre- dupla do totem
senta a presa mutante, que pode ser tudo, mas que no fundo
é sempre a mesma coisa, ou seja, a presa. A mania é um paro- Dos mitos que o jovem Strehlow recolheu entre os arandas
xismo do "conseguir uma presa". O que lhe importa é desco- setentrionais da Austrália central, há dois que chamam nossa
brir, caçar e agarrar. A ingestão da presa não é tão importante atenção de forma especial. O primeiro, o mito bandicoot ou
na mania. A caça do mestre assume seu caráter completo so- dos ratos marsupiais, diz o seguinte:
mente a partir do momento em que o discípulo escapa do está- "No começo, tudo jazia em eterna escuridão. A noite pe-
bulo escuro. Ela estaria terminada e com ela também, por as- sava sobre a Terra como uma espessura impenetrável. O an-
sim dizer, a crise maníaca teria passado, assim que o mestre o cestral — seu nome era Karora — dormia na noite perpétua
tivesse outra vez bem seguro dentro do seu estábulo. na parte mais baixa do charco de Ilbalintja. Mas ainda não ha-
Foi no estábulo que encontramos pela primeira vez o dis- via água dentro dele; tudo era apenas solo seco. A terra sobre
cípulo. "Meditava sobre sua libertação e nada lhe ocorria, o ele estava vermelha de tantas flores e todos os tipos de grama
tempo passava e ele ficava cada vez mais triste". Aqui de- formavam uma espécie de tapete; uma grande haste balançava
paramos com o começo do estado que é o oposto da mania, sobre ele no alto. Essa haste tinha brotado no meio do campo
ou seja, a melancolia. Pode ser oportuno, já que falamos mui de flores cor de púrpura que cresciam no charco de Ilbalintja.
to a respeito da mania, dizer também algumas coisas a respei- junto à sua base descansava a cabeça do próprio Karora. A
to do estado de melancolia. partir deste ponto a haste se levantava contra o céu, como se
Ela tem início quando as metamorfoses de fuga chegaram fosse tocar sua abóbada. Essa haste era uma criatura viva, re-
ao fim e se dá conta de que todas elas foram inúteis. Na coberta de uma pele lisa como a pele de um homem.
melancolia, a pessoa é que foi alcançada e agarrada. Já não " Acabza deKa ror ajazia junto à base da grande haste;
assim jazia i deo come .
pode mais escapar. Já não se transforma em outra coisa. Tudo ço
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"Karora pensava e vontades e desejos lhe passavam pela ximidades. O filho os traz de volta ao pai, que os cozinha no
cabeça. Repentinamente os bandicoots lhe saíram do umbigo e do pelo sol como já tinha feito antes e divide a
das axilas. Romperam a crosta que o cobria e saltaram para solo ealcia com o filho. A noite se aproxima e ambos não
a vida. carne cozidaadormecer. Nesta noite mais dois filhos nascem das
"Então começou a clarear. De todos os lados, os homen s ta rdam em ai Estes, manhã seguinte, são chamados à vida
axilas do p •
viam como aparecia uma nova luz: o sol mesmo começou a m grito sonoro e vibrante, como já acontecera antes.
mediante 1-1m
"Este processo se repete por muitos dias e noites. Os fi-
levantar-se e inundou tudo com sua luz. Então o ancestral pen-
sou em levantar-se, agora que o sol subia mais alto. Rompeu ncarregam da caça e o pai, todas as noites, traz ao
lhos se em número crescente de filhos — em algumas noites
a crosta que o recobria e o buraco aberto que deixou atrás mundo ua nascer até cinqüenta. Mas o final não se faz esperar
de si se converteu no charco Ilbalintja e se encheu com o sumo chegam
escuro e doce dos botões de madressilva. O ancestral se le- uito. Não demora muito tempo para que pai e filhos tenham
m
vantou e sentiu fome, já que forças mágicas tinham emanado devorado todos os bandicoots que originariamente tinham saí-
do seu corpo. do do corpo de Karora. Apertado pela fome, o pai envia seus
"Ele ainda se sentia aturdido; lentamente suas pálpebras filhos a uma caça de três dias. Eles atravessam a grande pla-
começaram a se mover; depois ele as abriu um pouco. Em seu nície. Durante longas horas procuram as presas no meio do
atordoamento tateia em volta de si. Por todos os lados, à sua pasto alto e branco, na penumbra dos bosques quase ilimita-
volta, percebe uma massa de bandicoots que se movimenta, dos. Mas em nenhum lugar existem bandicoots e eles são
Agora ele já está mais firme sobre seus pés. Pensa, sente dese- obrigados a voltar.
jos. Em sua grande fome, agarra dois filhotes de bandicoots e "É o terceiro dia. Os filhos estão a caminho de volta, es-
os cozinha a pouca distância, perto do lugar onde está o sol, no fomeados e cansados, em grande silêncio. De repente, um ruído
calcinante solo ardente que foi aquecido pelo sol. Somente os atinge-lhes os ouvidos; um som como que de um bumerangue
dedos do sol lhe fornecem o fogo e a cinza quente. girando no ar. Escutam; começam a procurar o homem que o
"Assim que fica saciado, seus pensamentos se dirigem está usando. Procuram, procuram e procuram. Com seus ca-
a alguém que possa ajudá-lo. Mas agora a noite se aproxima; jados espetam todos os ninhos e refúgios dos bandicoots. De
repente, salta algo escuro e peludo e desaparece. Um grito
o sol esconde seu rosto com um véu de cordas de cabelos,
ecoa: 'Ali corre um wallaby das colinas de areia'. Eles lançam
cobre seu corpo com pendentes de corda de cabelos e desapa-
seus bastões naquela direção e lhe quebram uma perna. E então
rece diante dos olhos dos homens. Karora adormece, os braços
ouvem as palavras de uma canção que vem do animal ferido:
esticados de ambos os lados.
"Enquanto dorme, debaixo de sua axila surge algo com `Eu, Tjenterama, agora estou coxo.
forma de um bumerangue. Toma a forma de um homem e Sim, coxo, e a púrpura eterna escorre de mim.
cresce numa noite até ser um jovem adulto: é o seu filho pri- Eu sou um homem como vocês. Não sou um bandicoot.'
mogênito. Nesta noite Karora acorda, por sentir algo pesado "Com estas palavras o coxo Tjenterama se afasta man-
pressionando seu braço: vê então seu filho primogênito a seu cando..
lado, com a cabeça repousando sobre seu ombro. "Os estupefatos irmãos prosseguem seu caminho em di-
"Clareia. Karora se levanta. Solta um grito sonoro, vi- reção ao pai. Logo vêem que ele se aproxima. Ele os conduz
brante; o filho, por causa disso, desperta para a vida. Levan- de volta ao charco. Estão sentados ao redor dele em círculos,
ta-se; dança a dança cerimonial em torno do pai que está sen- um círculo em torno do outro, como ondas na água que foi
tado, enfeitado com todas as insígnias de sangue e de plumas. posta em movimento. E então chega a grande maré do doce
O filho tropeça, ele ainda não está bem desperto. O pai começa mel dos botões de madressilva do leste e os inunda; ela os
a tremer violentamente com o tronco e com o peito. Então o carrega de volta ao charco Ilbalintja.
filho coloca suas mãos sobre ele. A primeira cerimônia chegou O velhoKarora permanece ali. Seus filhos, porém, são
ao fim. levados
‘ mais além pela corrente, por debaixo da terra, até um
"O filho é então enviado pelo pai para matar alguns lugar na espessura. Lá encontram Tjenterama, ao qual, sem
bandicoots. Estes brincam pacificamente nas sombras das pro- sabe,
r ueb m a perna com seus bastões. Ele se transforma
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num grande chefe. Karora continua dormindo seu sono eterno
no fundo do charco Ilbalintja." bastões num gesto de desprezo e nada disseram. O forasteiro
O segundo é o mito Lukara: então ficou ofendido. Num gesto de grande audácia, agarrou
o pacote dos irmãos Lukara e saiu correndo com ele, antes que
"No muito famoso Lukara, às margens do grande olho 1 ±.os irmãos o pudessem impedir.
•
d'água, nos primeiros começos, um velho jazia em sono pro- "Horrorizados, eles retornaram até onde se encontrava
fundo ao pé de um arbusto de larvas witchetty. Eternidades u pai. Antes mesmo que chegassem, ele já tinha sentido a
se
tinham passado sobre ele; ele tinha permanecido imperturbado perda do pacote das larvas. No momento em que o ladrão
como um homem num interminável estado de semi-sono. Desde roubou as larvas, o pai tinha sentido uma dor aguda no corpo.
o começo ele não se havia movido, não fizera um único movi- Então, lentamente, ele se ergueu e com passos vacilantes se-
mento; tinha permanecido sempre reclinado sobre seu braço guiu o ladrão. Mas como não lhe foi possível diminuir a dis-
direito. Eternidades tinham passado sobre ele em seu sono per- tância entre eles, o ladrão levou as larvas para a distante
pétuo. Mboringka. O pai então caiu por terra e seu corpo se trans-
"Quando balançou a cabeça em seu sono eterno, as larvas formou numa churinga viva, uma pedra comemorativa sagrada.
brancas se arrastaram sobre ele. Elas sempre tinham estado Os filhos também se transformaram todos em churingas; e o
sobre seu corpo. O velho não se movia e também não acor- pacote com as larvas roubadas também se transformou numa
dava. Ele jazia ali em sono profundo. As larvas se moviam so- churinga."
bre todo o seu corpo como um enxame de formigas, e de vez Estes dois mitos tratam de dois ancestrais bem diferen-
em quando o velho afastava suavemente algumas delas, sem tes: um é o do pai dos bandicoots ou ratos marsupiais, o outro
despertar do sono. Mas elas voltavam arrastando-se sobre o é o do pai das larvas witchetty. Ambos são importantes totens
corpo dele; elas penetraram nele. Mas ele não acordava. Eter- para os arandas. Até o dia em que estas lendas foram recolhi-
nidades continuaram passando. das, estes totens existiam e suas cerimônias eram celebradas.
"Então, certa noite, enquanto o velho dormia reclinado Eu gostaria de destacar algumas características que chamam a
sobre seu braço direito, alguma coisa caiu de sua axila direita, atenção e que são comuns a ambos os mitos.
alguma coisa que tinha a forma de uma larva witchetty. Caiu Karora, o pai dos bandicoots, passa primeiro um longo
no solo, tomou forma humana e cresceu rapidamente. Quando tempo sozinho. Ele jaz em eterna escuridão e dorme sob unia
a manhã chegou, o velho abriu os olhos e olhou atônito para crosta no fundo do charco. Não está consciente e ainda não
seu filho primogênito." fez coisa alguma. De repente, gera-se a partir do seu corpo uma
O mito continua relatando como um grande enxame de verdadeira multidão de ratos marsupiais. Eles saem do seu
filhos varões "nasceram" de maneira idêntica. O pai não se umbigo e de suas axilas. O sol aparece e sua luz o incita a
movimentava. O único sinal de vida que dava era abrir os romper a crosta. Ele sente fome, mas está atordoado. Neste
olhos às vezes. Até mesmo recusava todos os alimentos que estado de atordoamento, ele tateia em seu redor e a primeira
seus filhos lhe ofereciam. Os filhos, entretanto, se dedicaram coisa que sente é uma massa viva de ratos marsupiais que o
com afinco à tarefa de desenterrar as larvas witchetty das raí- rodeia por todos afi lados.
zes dos arbustos vizinhos. Eles as assavam e comiam. Às vezes No outro mito, o pai das larvas, cujo nome não é referido,
eles mesmos sentiam o desejo de voltar a transformar-se em jaz ao pé de um arbusto e dorme. Ele dorme há uma eterni-
larvas. Então cantavam uma fórmula mágica, se transformavam dade. Sobre seu corpo arrastam-se as larvas brancas. Elas se
em larvas e voltavam a entrar nas raízes dos arbustos. De lá encontram por todas as partes como formigas. Aqui e ali, sem
voltavam a sair à superfície e retomavam novamente a forma acordar, ele suavemente afasta algumas de si. Elas se arrastam
humana.
novamente e penetram no seu corpo. Ele continua dormindo
"Então chega um forasteiro, um homem como eles, mas no meio deste monte em ebulição.
vindo do distante Mboringka. Ele vê as larvas gordas dos irmãos Ambos os mitos principiam com o sono. Em ambos a
Lukara e sente vontade de comê-las. Em troca ele lhes oferece primeira relação com outras criaturas tem o caráter de um sen-
suas próprias larvas que eram compridas, magras e miseráveis. timento de massa. É o sentimento de massa mais denso e
Os irmãos Lukara empurraram o pacote dessas larvas com seus imediato: o da pele. Um deles percebe os ratos marsupiais
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quando, em estado semidesperto, tateia pela primeira vez em rirmo repetindo-se durante muitas noites. Cada vez são mais
torno de si. O outro sente as larvas sobre a pele ainda em filhos que nascem; em algumas noites o pai chega a ter cin-
estado de sono e as afasta, mas sem desfazer-se delas. Elas qüenta novos filhos. Todo este processo também pode ser de-
regressam e penetram no seu corpo. signado no sentido mais restrito da palavra, como sendo a
Esta sensação de estar coberto por enxames descomunais „,,tomultipheaçao de Karora.
de pequenos insetos, que são sentidos em todas as partes do — Algo muito semelhante ocorre no segundo mito. O velho
corpo, naturalmente é conhecida por todos Não se trata de continua dormindo, reclinado sobre seu braço direito; repen-
uma sensação agradável. Ela aparece freqüentemente em aluci- inamente, certa noite, cai de sua axila direita algo que tem a
nações, por exemplo no delirium tremens. Quando não são tf o
rma de uma larva witchetty. Cai no solo, assume a forma
insetos, são ratos ou ratazanas. O formigamento ou o roer da humana e cresce rapidamente. Quando amanhece, o velho abre
pele são atribuídos à atividade de insetos ou de pequenos roe- os olhos e vê, assombrado, seu filho primogênito. O processo
dores. No próximo capítulo trataremos disto com maiores torna a se repetir e um grande número de "homens-larvas"
detalhes: a expressão "sentimento de massa da pele" será ex- nasce de maneira idêntica. É importante assinalar desde já que
plicada e justificada então. Mas resta chamar a atenção para estes homens podem transformar-se quando quiserem numa
uma importante diferença entre estes e aqueles casos. Nos mitos determinada espécie de larvas e depois retornar ao seu estado
dos arandas esta sensação é agradável. O que o ancestral sente de homens.
aqui é algo que se origina a partir dele mesmo, não alguma Em ambos os mitos trata-se portanto da automultiplica-
coisa hostil que o ataca de fora para dentro. ção e em ambos trata-se também de um nascimento duplo.
No primeiro mito narra-se como os ratos marsupiais ou Duas espécies distintas de criaturas se originam a partir de
bandicoots saem do umbigo ou das axilas do ancestral. Antes um mesmo ancestral. O pai dos ratos marsupiais dá origem
eles estavam contidos dentro dele próprio. Este pai é um ser primeiro aos bandicoots, e logo em seguida a um grande núme-
extremamente curioso: seria possível designá-lo como mãe de ro de homens. Ambos se originam da mesma maneira. Eles
massas. Inúmeras coisas brotam simultaneamente do seu corpo, devem considerar-se como parentes muito próximos, uma vez
de partes que não são habitualmente destinadas ao nascimento. que têm o mesmo paí. Têm o mesmo nome: bandicoot. Como
Ele se assemelha a uma rainha de térmitas; porém a uma rainha nome de um totem significa que todo homem que pertence a
que extrai seus ovos de partes muito diferentes do seu corpo. esse grupo é um irmão mais jovem dos ratos marsupiais que
No segundo mito, é dito que as larvas sempre estiveram sobre nasceram antes dele,
ele. Não se menciona — por enquanto — que elas tenham Exatamente o mesmo vale para o ancestral das larvas
saído do corpo do próprio ancestral; apenas estão sobre ele witchetty. Por um lado, ele é pai das larvas e, por outro, tam-
ou penetram nele. Entretanto no transcorrer do mito aparecem bém dos homens, Os homens são os irmãos mais jovens das
características que nos levam a supor que as larvas primitiva- larvas. Todos juntos são a encarnação visível da fertilidade do
mente se tenham originado dele; que ele próprio é inteira- grande ancestral do respectivo totem. Strehlow, a quem se
mente formado por elas. deve um grande reconhecimento por ter recolhido estes impor-
Os nascimentos dos quais se fala aqui não são apenas no- tantes mitos, encontrou uma expressão feliz para isso. "O an-
táveis por ocorrerem a partir de um pai e por se tratar de cestral", diz ele, "representa a soma total da essência viva das
grandes massas, mas também porque o que nasce é algo bas- larvas witchetty, tanto das larvas animais como das humanas,
tante distinto do original. contempladas como um todo. Cada célula, poder-se-ia dizer,
Depois de Karora, o pai dos ratos marsupiais, ter saciado do corpo do ancestral original é um animal vivo ou um ser
sua fome, cai a noite e ele volta a dormir. Debaixo de sua humano vivo. Se o ancestral é um 'homem-larvas witchetty',
axila surge um bumerangue. Ele toma a forma de um homem então cada célula do seu corpo é potencialmente ou uma larva
e cresce; no decorrer de uma só noite torna-se um jovem. witchet ty viva s9arada, ou um ser humano separado do totem-
Karora sente a carga de algo pesado sobre seu braço. Desperta: larvas witehett y
a seu lado está deitado seu filho primogênito. Na noite se- Este aspecto duplo do totem manifesta-se com clareza
guinte, nascem-lhe dois filhos das axilas. Esta situação con- especial no fato de os filhos humanos às vezes terem o desejo
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de voltar a ser larvas. Então eles recitam uma fórmula mágica, alimentação. O processo da incorporação de alimentos se en-
transformam-se em larvas e rastejam de volta às raízes dos contra predeterminado pelo da metamorfose. A direção dos
arbustos onde comumente vivem estas larvas. De lá, elas podem dois processos é a mesma, eles coincidem inteiramente. Para
é como se ele se alimentasse de si mesmo.
voltar a sair e retomar, se quiserem, a figura humana. As figu- o antepassado,
ras separadas permanecem perfeitamente claras, são larvas ou Vamos observar estes fatos com uma atenção maior. De-
homens, mas podem transformar-se umas nos outros e vice- pois que Karora trouxe os bandicoots ao mundo e o sol come-
versa. A restrição a esta determinada metamorfose, pois em si çou a brilhar, ele rompe a crosta que o recobre, ergue-se e
seriam possíveis infinitas outras, é o que define a natureza do sente fome. Por causa desta fome ele tateia em torno de si,
totem. O ancestral que as gerou somente tem a ver com estas apesar de ainda estar meio atordoado; é justamente neste mo-
mento que sente por todos os lados a massa viva dos ratos
duas espécies de criaturas e não com qualquer outra coisa. Ele
representa seu parentesco remoto com exclusão de qualquer marsupiais. Agora ele fica mais firme sobre suas pernas. Ele
pensa e tem desejos. Na sua enorme fome, agarra dois ratos
outro que possa existir no mundo. Seus filhos sentem o desejo
de optar ora por uma ora por outra figura. Pela aplicação da marsupiais e os cozinha um pouco mais além, lá onde o sol
esquentou o chão até deixá-lo incandescente. Depois disso, e
fórmula mágica, eles podem ceder a este desejo e praticar esta
somente depois disso, ele pensa em alguém que possa ajudá-lo.
metamorfose que lhes é inata.
Os ratos marsupiais que ele sente como massa em torno
Não se pode enfatizar suficientemente o significado desta
de si saíram dele próprio, são partes do seu corpo, carne de
figura dupla do totem. A própria metamorfose, mas uma me-
sua carne. Por causa da fome, ele os sente como alimento.
tamorfose muito determinada, é fixada na figura do totem e
transferida aos descendentes. Em cerimônias importantes que Agarra dois deles, que aliás são designados como filhotes, e os
servem para a multiplicação do totem, isso é representado de cozinha. É como se tivesse devorado, ainda jovens, dois dos
forma dramática. Isto significa que sempre se representa tam- seus próprios filhos.
bém a metamorfose que este totem encarna em si. O desejo Na noite seguinte ele traz ao mundo o seu filho primo-
das larvas de transformar-se em homens — e o dos homens, gênito humano. De madrugada ele lhe instila vida através da-
em larvas — foi sendo transmitido pelos ancestrais aos mem- quele grito sonoro e vibrante e faz com que ele se levante.
bros vivos do clã-totem, que consideram um dever sagrado Eles celebram uma cerimônia em conjunto, na qual se esta-
entregar-se a esse desejo em suas cerimônias dramáticas. Porém, belece sua relação de pai e filho. Imediatamente o pai o envia
para que o rito de multiplicação dê certo, é necessário que essa para matar ratos marsupiais. São seus outros filhos, nascidos
determinada metamorfose seja representada de forma correta, antes, e estão brincando pacificamente à sombra nas proximi-
sempre da mesma maneira. Cada participante sabe quem tem dades. O filho leva o rato que matou para onde se encontra
diante de si ou quem essa pessoa está representando quando o pai. Este o cozinha ao sol como no dia anterior e divide a
são representados acontecimentos da vida das larvas. Ele tem carne cozida com o filho. O que o filho come agora é a carne
o nome dessas larvas, mas também pode transformar-se nelas. dos seus irmãos e, na verdade, também a de seu pai. O pró-
Enquanto tiver o nome delas, estará praticando a antiga me- prio pai lhe ensina a matar os ratos e lhe mostra como eles
tamorfose. Seu valor para ele é imensamente grande: a multi- devem ser cozidos. É o primeiro alimento do filho, como tam-
plicação das larvas depende dele, mas também sua própria bém foi o primeiro alimento do pai. Não se fala de qualquer
multiplicação, porque uma é inseparável da outra; a vida do outra alimentação na lenda toda.
seu clã está determinada em todas as direções pela manuten- Durante a noite seguinte, Karora traz ao mundo dois no-
ção desta transformação. vos filhos humanos. Ao amanhecer eles são chamados à vida,
Outro aspecto muito importante destas lendas refere-se e agora os três juntos são enviados à caça dos ratos marsupiais.
ao que poderia ser chamado de auto-ingestão. O ancestral dos Trazem o botim de volta, o pai cozinha a carne e a divide com
ratos marsupiais e seus filhos alimentam-se dos ratos marsu- eles. O número dos filhos aumenta; todas as noites chegam
piais, os filhos do ancestral-larva alimentam-se de larvas É ao mundo mais filhos humanos; em uma única noite nascem
como se não existisse nenhum outro alimento, ou pelo menos Cinqüenta deles. Todos são enviados à caça. Mas, enquanto os
como se eles não estivessem interessados em nenhuma outra filhos humanos aumentam cada vez mais, Karora não produz
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mais ratos marsupiais. Estes apareceram apenas no começo, t dessas larvas e nenhum outro alimento é men-
todos de uma só vez. Finalmente, todos foram devorados; o alimentam-se
pai e seus filhos, em conjunto, os comeram todos. cionado. a auto-ingestão é própria dos filhos. O velho
Neste caso,r as larvas, sentindo-se pai delas, sua própria
Agora eles têm fome. O pai envia os filhos para longe,
para uma caçada de três dias. Por onde quer que andem, pro- se nega a commais fácil esta auto-ingestão é para os filhos.
mau to
carne. Muito
curam pacientemente apenas ratos marsupiais, mas não con- impressão de que neles a metamorfose e a alimenta-
Tem-se
seguem encontrá-los. No caminho de retorno ferem na perna
ção estreitamente ligadas. É como se o seu desejo de
uma criatura que eles tomaram por um animal. Imediata- do fato de comê-las com tanto
converter em larvas nascesse
mente ouvem esta criatura cantando: "Sou um homem como do Eles as assam e comem; depois eles
agrado. Eles as procuram,
vocês. Não sou um bandicoot". Depois, mancando, a criatura esmos se transformam em larvas. Após algum tempo arras- arras-
m
se afasta. Os irmãos (que agora já devem ser muitos) retor- tam-se para a superfície, onde reassumem a forma humana.
nam ao lugar onde se encontrava o pai. A caçada chegou ao Então, quando comem as larvas, é como se estivessem comen-
fim. do a si próprios.
O pai, portanto, primeiro trouxe ao mundo um determi- Aos dois casos de auto-ingestão, o do pai bandicoot e o
nado alimento para si e para seus filhos posteriores; esse ali- dos filhos-larvas, agrega-se um terceiro, que se afasta um
mento são justamente os ratos marsupiais. Trata-se de um ato pouco dos dois primeiros. Ele pertence a uma terceira lenda
único, que não se repete no decorrer da lenda. Depois chegam que é apresentada de forma muito resumida por Strehlow.
paulatinamente ao mundo todos os filhos humanos que, junto Trata-se da história de outro ancestral-larva, o de Mbo-
com o pai, comem esse alimento até não restar mais nada. O ringka. Ele sai regularmente para roubar e matar homens-larvas,
pai não lhes ensinou caçar outra coisa, ele não lhes indica que são seus próprios filhos. A respeito destes, diz-se expres-
qualquer outra coisa. Tem-se a impressão de que ele quer ali- samente que têm forma humana. Ele os assa e come com de-
mentá-los apenas com sua própria carne, com os ratos marsu- leite; ele gosta de sua carne doce. Um dia, a carne de suas
piais que saíram dele próprio. Em seu modo de agir omitindo entranhas se transforma em larvas. Estas consomem o pai de
todo o resto, ele parece querer isolar seus filhos e colocá-los dentro para fora e assim, no final, o pai acaba sendo devorado
contra todos os demais; nisto existe algo semelhante ao ciúme. pelos filhos que ele mesmo matou.
Não aparece qualquer outro ser na lenda, a não ser no final a Este caso de auto-ingestão conduz assim a um curioso
criatura cuja perna eles ferem, um homem como eles, aliás ele acréscimo. O comido come por sua vez. O paí come seus filhos
próprio um grande ancestral, ao qual mais tarde rendem e estes mesmos filhos o comem, quando ele já os está dige-
homenagem. rindo. O canibalismo é duplo e recíproco. Mas o mais sur-
Na segunda história, que trata do pai das larvas, a rela- preendente é que a resposta venha a partir de dentro, a partir
ção entre descendência e alimento é parecida, mas não é intei- das entranhas do pai. Para que isto seja possível é necessária
ramente idêntica. O primeiro filho cai como larva da axila uma metamorfose dos filhos comidos. Ele os come como ho-
paterna e assume a forma humana assim que toca o solo. O mens; eles comem o pai como larvas ou vermes. Trata-se de
pai não se move, permanece totalmente quieto. Ele nada exige um caso extremo e, à sua maneira, muito completo. Caniba-
do filho e nada lhe ensina. Muitos filhos continuam nascendo lismo e metamorfose celebram aqui sua mais estreita aliança.
de maneira idêntica; a única coisa que o pai faz é abrir os O alimento permanece vivo até o final, e ele mesmo come
olhos e contemplar seus filhos. Nega-se a aceitar alimento deles. COT/1 prazer. Sua metamorfose em larvas no estômago do pai
Estes entretanto, se dedicam com interesse a desenterrar as é uma espécie de reanimação. Esta porém serve para satis-
larvas das raízes dos arbustos próximos; eles as assam e co- fazer o desejo pela carne do pai.
mem. O curioso é que eles às vezes sentem o desejo de trans- As metamorfoses que unem o homem com os animais
formar-se na mesma espécie de larva da qual se alimentam. que ele come são fortes como correntes. Sem transformar-se
Quando isto acontece, arrastam-se de volta às raízes dos arbus- em animais, o homem jamais teria aprendido a comê-los. Cada
tos e vivem lá como as larvas. Eles são ora uma coisa, ora um destes mitos contém urna experiência essencial: a obtenção
outra; ora são homens, ora são larvas; mas, quando homens, de determinada espécie animal que serve de alimento; sua gê-
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nese pela metamorfose; sua ingestão e a transformação de perseguiraim e caçaram de forma tão eficiente que não se podia
seus restos em nova vida. A recordação de como se obteve o „ruutrar mais nenhum bandicoot a uma distância de três dias
alimento, ou seja, precisamente por metamorfose, está contida 5;-carninhada. Nestes momentos de fome teria sido necessário
ainda em comunhões sacras posteriores. A carne, que se des-
fruta em conjunto, não é o que representa; ela está em lugar produzir novos bandicoots. A auto-ingestão tinha ido dema-
siadamente longe; todos os irmãos mais velhos, os primeiros
de outra carne e se converte nela no momento em que é de Karora, tinham sido devorados. Nesse momento teria
comida. f ilhos
importante que a auto-ingestão voltasse a ser substituída
É importante observar que a auto-ingestão da qual se auto multiplicação com que tudo tinha começado.
S
pela aiu
i n
fala aqui, apesar de ser comum nas lendas a respeito da ori- É exatamente esta transformação que ocorre hoje em dia
gem dos arandas, não o é em suas vidas diárias. O comporta-
mento real dos membros de um clã-totem em relação ao animal nos atuais ritos para a multiplicação dos animais totêmicos.
Está-se tão estreitamente aparentado com o animal totêmico
do qual têm o nome é completamente diferente do que apa-
que já não se consegue separar muito bem a sua multiplicação
rece nas lendas de suas origens. Na verdade os membros de
da própria. Uma parte essencial e repetida sempre nos ritos
um clã nunca se alimentam do seu totem. Estão proibidos de é a representação dos ancestrais que foram ambas as coisas,
matar ou de comer esse animal; devem considerá-lo como seu ora homens ora animais. Por sua própria vontade eles se trans-
irmão mais velho. Somente durante as cerimônias que servem formam um no outro; e somente será possível representá-los
para a multiplicação do totem, durante as quais se represen- se se dominar esta metamorfose. Os ancestrais aparecem como
tam os antigos mitos e certos membros do clã aparecem como as figuras duplas das quais falamos acima. A metamorfose é a
sendo seus próprios ancestrais, é-lhes feita a solene entrega de parte essencial da representação. Desde que ela seja efetuada
um pedaço da carne do seu totem. Eles são informados de que corretamente, o parentesco 'continua bem fundamentado e po-
devem servir-se apenas de um pouco dessa carne. Ela lhes está de-se assim forçar o animal, que se é, à multiplicação.
proibida como alimento habitual; e, se um desses animais cair
em suas mãos, eles não devem derramar seu sangue. Devem
entregá-lo aos membros de sua família, ou a bandos que per- Massa e metamorfose no delirium tremens
tençam a outros totens; estes podem comê-lo.
No período que se segue ao tempo mítico dos ancestrais,
As alucinações dos alcoólatras oferecem uma oportunidade
que do ponto de vista dos arandas pode ser considerado como para estudarmos a massa tal como ela se apresenta na imagi-
a era presente, a auto-ingestão foi substituída portanto por um nação do indivíduo. Certamente trata-se aqui de sintomas de
outro princípio: o da proibição. Não se comem os próprios intoxicação, mas esses sintomas são acessíveis a qualquer um;
parentes mais próximos entre os animais, da mesma forma dentro de certos limites, eles podem ser provocados de forma
que não se comem outros seres humanos. O período do cani- experimental. Seu caráter geral é inegável: homens de origens
balismo-totem — pois assim poderia ser designado o ato de e predisposições muito diferentes têm, em suas alucinações,
ingerir a carne dos próprios totens — passou. Permite-se que características elementares comuns. Seus pontos máximos em
os membros de um outro clã comam os parentes mais próxi- termos de acúmulo e de intensidade são alcançados no delirium
mos que um indivíduo tem entre os animais; os membros desse tremens. Seu exame é frutífero em dois sentidos. Os fenôme-
outro clã, por sua vez, devem aceitar que seus parentes animais nos -de metamorfose e de massa estão entrelaçados de maneira
sejam devorados por outras pessoas. É muito mais do que uma peculiar no delírio; em nenhum outro caso é mais difícil sepa-
simples concessão. Mediante esta autorização, permite-se que rá-los do que neste. No delírio aprende-se tanto sobre a me-
o próprio animal-totem se multiplique. Os ritos desta multi- tamorfose como sobre a massa; e ficamos — depois de muitas
plicação foram transmitidos e confiados a uma pessoa; seu — com a convicção de que seria mais correto não
dever é colocá-los em prática. Os animais muito caçados têm estabelecer separação alguma ou apenas o menor número pos-
tendência a emigrar ou a se tornarem mais escassos. Basta sív e l, entre ambas as coisas.,
oisas:
lembrar a primeira lenda, na qual todos os bandicoots dos Para dar uma idéia da natureza destas alucinações, come-
arredores desapareceram; os incontáveis filhos de Karora os çaremos reproduzindo a descrição de Krãpelin, e logo em se-
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guida a de Bleuler. O enfoque de ambos não é exatamente o c) enfermo está totalmente incapacitado para qualquer
,,
mesmo; o que coincide em ambos terá um valor tanto maior ocupação realmente ordeda; ele passa a ficar completa ele mente
de demonstração para as nossas finalidades. fado pelas suas ilusões. São raras as vezes que as
"Entre as percepções enganadoras do delirium tremens",
diz Krãpelin, "costumam predominar as da visão. As ilusões Zxrea perpassar simplesmente diante dos seus olhos; na maioria
das vezes, elas lhe provocam reações veementes. Ele não fica
são na maior parte das vezes de grande nitidez sensorial, mais ç a, força o caminho até a porta, pois o momento de sua
raramente crepusculares, indeterminadas; com freqüência são nacarn- está iminente e todos já se encontram à espera dele.
amedrontadoras e têm conteúdo desagradável. São considera- 1e se diverte com os animais curiosos, retrocede tremendo
E
diante dos pássaros em vôo, procura afastar os vermes do
das pelos enfermos às vezes como realidades, às vezes como
simulacros artificiais — lanterna mágica, cinema — que ser- chão, pisotear os animais; enlouquecido persegue as pulgas,
vem para diverti-los ou para assustá-los. Com freqüência, são recolhe o dinheiro esparramado por todos os lados, procura
vistos em massa objetos menores e maiores: pó, copos, moe- omper os fios que o envolvem; salta com esforço penoso sobre
r
das, flocos, garrafas, barras. Quase sempre as imagens da visão osfios de arame estendidos acima do solo.
mostram uma mobilidade mais ou menos vivaz; também "No delírio do alcoólatra", diz Krâpelin em outra pas-
ocorrem casos de visão dupla. Esta instabilidade das percep- sagem resumindo o assunto, "chama a atenção o caráter de
ções enganosas serve, talvez, para explicar a freqüência com massa das alucinações de igual espécie e sua movimentação
que são vistos animais que deslizam ou se movem furtiva- múltipla e vivaz, sua emergência, sua diminuição e seu desa-
mente. Eles se amontoam entre as pernas, zunem pelo ar, re- pareci m ento .
cobrem a comida; tudo está repleto de aranhas "de asas dou- A descrição do delirium tremens feita por Bleuler não é
radas", bichinhos, percevejos, cobras, vermes com longos menos impressionante.
espinhos, ratos, cães, feras... Grandes quantidades de pessoas "Em primeiro plano destacam-se alucinações de matizes
se precipitam sobre os enfermos, cavaleiros hostis, até mesmo particulares: afetam primordialmente a visão e o tato. As
`sobre pernas de pau', policiais; ou então passam desfilando em visões são múltiplas, móveis, na maior parte das vezes inco-
grandes formações, fantasticamente agrupadas, diante dos doen- lores e tendem à redução. As alucinações visuais e tácteis têm
tes; ameaçadoras figuras fantasmagóricas isoladas, aleijados, além disso, freqüentemente, a aparência de arames, fios, jorros
anõezinhos, diabos, 'rufiões de fogo', fantasmas enfiam a cabeça de água e de outros objetos grandes e finos. Visões elemen-
pela porta, arrastam-se por debaixo dos móveis, sobem pelas tares, como faíscas e sombras, são freqüentes. Nas alucinações
escadas até os pontos mais elevados. Mais raras são as moças auditivas, o que o doente ouve na maior parte das vezes é
sorridentes e bem-arrumadas ou os acontecimentos escabrosos, música — freqüentemente de ritmo marcado e vigoroso —,
brincadeiras carnavalescas, representações de teatro... o que é muito raro em outras psicoses. No decorrer da enfer-
" ...Diversas e estranhas sensações sobre a pele provo- midade, os pacientes podem estabelecer relações com centenas
cam no enfermo a idéia de que formigas, sapos, aranhas cami- de pessoas imaginárias, todas mudas...
nham sobre ele. O doente se sente envolto por fios delga- "Os objetos pequenos, móveis e múltiplos aparecem nor-
dos, salpicado de água, mordido, picado, alvejado. Ele recolhe malmente sob a forma de pequenos animais, como camundon-
dinheiro que vê jogado em torno de si e o sente nitidamente gos ou insetos. Estas são também as alucinações mais freqüen-
na mão, mas logo em seguida esse dinheiro escorre entre seus tes dos bêbados; mesmo assim, porém, não são raras as visões
dedos como se fosse mercúrio. Tudo o que ele toca desaparece, de animais das mais variadas espécies: porcos, cavalos, leões,
contrai-se ou cresce até se tornar monstruoso, para logo em camelos podem surgir reduzidos ou em tamanho natural; às
seguida voltar a diminuir, para rolar para a distância, para vezes aparecem também animais completamente inexistentes,
escorrer... em combinações inteiramente fantásticas. Com bastante fre-
"Os pequenos nós e as irregularidades do tecido são con- qüência ouvi a descrição de todos os tipos de casais de animais,
siderados como pulgas nos lençóis da cama; os riscos existen- normalmente de grandes dimensões, mas reduzidos então ao
tes sobre a mesa se transformam em agulhas; nas paredes tamanho de gatos e desfilando sobre uma tábua pregada à
abrem-se portas secretas... parede — uma tábua imaginária —, o que proporciona grande
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do efeito Liliput; só que aqui Gulliver não cresceu, apenas foi
de parte eles se transformaram em símbolos de massa. É muito
transportado para um mundo muito mais denso e repleto, mas possível que tenham sido eles que levaram o homem a pensar
também muito mais fluido. grandes; seus primeiros "milhares" e
Esta mudança de proporções não é tão surpreendente <e m massas realmentee g sido insetos.
como parece ser à primeira vista. Basta pensar no tamanho " talvez tenham
o poder e a imagem que o homem tem cie si mesmo já
reduzido e na enorme quantidade das células que constituem nii
crescido forma gigantesca quando descobriu a exis-
o corpo humano. São células de espécie muito distinta e estão tt'émri clihaões
v:a dos bacilos. de O contraste passou a ser então incompara-
em contato permanente entre si. São atacadas por bacilos e por lmente maior: o homem se considerava superior; como indi-
outras criaturas minúsculas que se estabelecem em massa vlduo ele se via isolado, separado dos seus semelhantes. Os
dentro delas. Estes bacilos estão sempre ativos à sua maneira, ' porém eram muito menores que os insetos, não eram
pois estão vivos. Não se pode rechaçar a suspeita de que um s a olho nu, e se multiplicavam ainda mais depressa. Ao
obscuro sentimento destas relações primitivas do corpo en- vbiaseíivleois maior e isolado se apresentou então uma massa maior
contre expressão nas alucinações dos alcoólatras. Durante o homem É difícil exagerar o significado
delírio eles estão desvinculados em grande parte do seu am- de criaturas de tamanho ínfimo.
desta idéia. Seu desenvolvimento pertence aos mitos centrais
biente, entregues por inteiro a si próprios ou tomados pelas da história do espírito. É o modelo propriamente dito da dinâ-
mais estranhas sensações. Os sentimentos dissociativos do mica do poder. O homem decidiu considerar como insetos tudo
corpo são conhecidos com exatidão a partir de outras enfer-
midades. A tendência tenaz do delírio,para o que é concreto e o que se opusesse a ele. Desta forma ele viu e tratou todos os
animais que não lhe eram úteis. Assim o detentor do poder,
pequeno, que no delírio da cocaína se transforma em "mi-
que degrada os homens até transformá-los em animais, que
croscopicamente" pequeno, tem alguma coisa da dissociação aprende a dominá-los apenas porque os considera como de
do corpo em suas células. espécie inferior, degrada ao nível de insetos tudo o que não
O aspecto cinematográfico das alucinações, como vemos, seja apropriado para ser dominado, e extermina essa massa aos
acentua-se freqüentemente. Gostaríamos de acrescentar alguma milhões.
coisa sobre o conteúdo destas projeções: são as relações e os Como terceiro aspecto importante das alucinações dos
acontecimentos do seu corpo, traduzidos para o mundo imagi- alcoólatras poderíamos dizer alguma coisa a respeito da natu-
nativo familiar, que o alcoólatra contempla em seu delírio, e reza de suas metamorfoses. Elas sempre se desenvolvem no
entre eles principalmente os que estão em relação com o que exterior do doente; mesmo quando ele as vivencia como reali-
existe de massa em sua própria estrutura corporal. Trata-se dade, não chegam a transformá-lo. O que mais lhe agrada é
apenas de uma suposição. No entanto não será ocioso recordar observá-las a uma certa distância. Quando elas não o ameaçam
que em determinados períodos toda a vida do homem "gi- e ele não se sente forçado a tomar uma posição em relação a
gante", com suas características, com toda a sua massa heredi- elas, o doente se alegra e se diverte com a fluidez e a ligeireza
tária, está concentrada em células individuais que aparecem em das coisas que ele está vivenciando. Mas freqüentemente elas
massa: a fauna seminal do esperma. alcançam uma intensidade que se lhe torna impossível qual-
Porém, independentemente do crédito que se dê a esta quer vislumbre de equilíbrio aparente; quando tudo treme e
interpretação, a situação básica do delírio como tal, a situação se dilui interminavelmente, é natural que ele próprio se sinta
do grande solitário que se vê diante de um número incalculá- pouco à vontade. Notam-se dois tipos de metamorfoses que
vel de agressores muito pequenos, existe e foi exacerbada de têm caráter muito diferente. O primeiro tipo é de massas que
maneira altamente significativa na história da humanidade. se transformam em outras massas. As formigas podem se trans-
Ela começa com um sentimento peculiar em relação aos insetos, formar em besouros e besouros em moedas; ao recolher essas
pelos quais todos os mamíferos, para falar apenas destes, são moedas, elas voltam a fluir como gotas de mercúrio. Mais
torturados. Sejam eles mosquitos ou piolhos, gafanhotos ou adiante trataremos deste caso, no qual um múltiplo se trans-
formigas, a imaginação do homem sempre se preocupou com forma noutro múltiplo.
eles. Sua periculosidade consistiu sempre na sua massa e na O outro tipo de metamorfose é o que conduz a formações
maneira repentina com a qual essas massas aparecem. Em gran-
híbridas e monstruosas: um ser singular se une a outro ser
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singular e disso resulta algo de novo, como se eles tivessem procissão delib eraram ent_ão se devi a m dar-lhe da 1h e
sido fotografados superpostos. Nos pares de animais que pas- participantes da e d eviam ma t á lo ; a p ro r i e t á r i da
boa surraou s p
sam em desfile mencionados anteriormente, aparecem "às vezes apenas uma . primeira alternativa, com a condição de que
pela
era
também animais que nem existem, nas mais fantásticas com- `Coroa'alojasse para sempre na casa dela. Ele porém queria ir
binações": criaturas monstruosas e disformes que lembram a ele se porque não lhe davam cerveja; chegou por fim um
Tentação de Santo Antão de Grünewald, ou os seres com boraa
para libertá-lo; o proprietário da 'Coroa' disparou um
os quais Hieronymus Bosch povoou suas pinturas. l
esci ontra
p o policial e foi levado à prisão.
Para chegar a impressões mais exatas será necessário c toda a comunidade protestante estava
abordar um ou dois casos de delirium tremens dentro dos seus tiro ,‘Ein outra noite
igreja durante uma cerimônia; o centro das atenções era
respectivos contextos. Somente então se verá realmente quem na estudante, que antes do início do serviço religioso oferecia
se transforma em quê, e talvez então venha a ser possível enun- umm outros cinqüenta companheiros uma espécie de espetáculo
ciar algumas hipóteses a respeito do como e do por que isto eo
sobre pequenos cavalos. Mais tarde o doente percebia
sucede. O decurso completo de um delírio, conforme se reco- de circo
como sua esposa se retirava com um parente para um banco
nhecerá principalmente no segundo exemplo, também permite da igreja; em seguida, escondido atrás do órgão em companhia
uma compreensão mais profunda da natureza dos fenômenos de uma irmã de caridade, observava como eles profanavam o
de massa. antuário. Logo depois ele estava preso dentro da igreja; mas
O primeiro caso é o de um dono de bar e restaurante que s
o vidraceiro serrou um buraco numa das janelas para que, pelo
foi tratado por Krãpelin. O conteúdo do seu delírio, que teve menos, pudessem lhe passar cerveja. Quando quis se vestir,
a duração de uns seis dias, é em resumo o seguinte: todas as mangas e aberturas de suas vestes estavam costuradas;
"Ele tinha a impressão de que era o 'Dia de Papus', quan- os bolsos estavam soltos e descosturados; ao tomar banho, o
do o diabo anda solto pelo mundo. De repente batia com a doente se viu rodeado por sete lebres imersas na água, que o
cabeça numa coluna de mármore, queria esquivar-se dela, mas salpicavam constantemente e o mordiscavam."
a rua toda era atravessada por uma poderosa placa de már- O novo ambiente, real, do qual o enfermo durante o de-
more; quando quis voltar, havia outra placa atrás dele. Amea- lírio nada sabe, e contra o qual ele bate a cabeça, é constituído
çadoras, as duas placas desabaram sobre ele. Dois personagens de mármore. Em seu mundo alucinado, ele gosta de se ver
sinistros o transportaram numa carroça até a pousada 'O Boi', entre muitos, e especificamente como objeto eleito e ameaçado.
e o estenderam sobre seu leito de morte. Um mestre de ceri- Sobre seu leito de morte no "O Boi", ele é privado pouco a
mônias enviava, usando uma tesoura incandescente, raios quen- pouco de sua força vital. É como uma longa execução poster-
tes contra sua boca, de maneira que sua força vital pouco a gada que ele utiliza para reunir em torno de si espectadores,
pouco o foi abandonando. Atendendo a seus pedidos, foi-lhe mantidos ali por meio de exortações piedosas. Em lugar de
dado um copo de vinho tinto; o copo seguinte lhe foi negado todos os seus apetites individuais aparece a sede; no além ele
com sorrisos maldosos pelo próprio Satanás. Depois, com todo vivencia o conhecido suplício de Tântalo. Suas três filhas, que
tipo de exortações piedosas, ele se despediu dos presentes e foram colocadas a seu lado como cadáveres, revivem como ele
morreu; ao mesmo tempo foram colocados a seu lado os cadá- na manhã seguinte, mas sob a forma de lebres brancas. Isso
veres de suas três filhas. No além, ele passou a ser castigado representa a inocência delas, mas também traduz os remorsos
de acordo com seus pecados na terra; sentia constantemente de consciência que ele sente por elas e que roem seu coração
uma sede horrível, mas cada vez que conseguia alcançar o jarro de beberrão.
ou o copo, estes desapareciam em sua mão. A procissão dos católicos é o primeiro acontecimento de
"Na manhã seguinte ele estava novamente vivo no es- massa propriamente dita. Ele é obrigado a participar, mas sem
quife, no 'O Boi'; as meninas também, mas em forma de lebres juntar-se realmente à massa, permanecendo num aposento ao
brancas. Havia uma procissão de católicos; ele tinha de cola- lado; lá estão espalhados inúmeros óculos de ouro sobre o
borar com ela, enquanto se entoavam litanias na sala da chão; estes substituem a massa dos participantes da procissão.
`Coroa', esmagando um sem-número de óculos de ouro espa- Ao esmagar cada par de óculos, ouve-se um tiro — é possível
lhados pelo chão; cada vez que fazia isso ouvia-se um tiro. Os que sejam salvas para aumentar a alegria da festa. Mas na sua
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obstinada maldade, ele se sente como se matasse a tiros os ntasmagóricas... As paredes de ambos os lados eram
fit5 fa
católicos. Os participantes da procissão, que descobrem suas milhares de pequenos barcos; seus ocupantes eram
intenções, formam uma espécie de assembléia que delibera um mar come mulheres, todos nus, que se abandonavam ao prazer
l
homens
sobre seu castigo. É a continuação da situação do leito de panhando o compasso da música; após cada orgasmo uma
morte; um grupo de pessoas, maior desta vez, está em torno acomn
figura apunhalava o casal pelas costas com uma lança compri-
dele, julgando-o. Seria de supor que ele não sinta grande estima da, e o mar tingia-se de sangue, mas chegavam constantemente
pelos católicos; mas a comunidade protestante, que se reúne novos bandos... Um trem de passageiros, do qual desciam
na noite seguinte para uma cerimônia, não é tratada por ele muitas pessoas. Entre estas, ouvi as vozes de meu pai e de
com respeito muito maior: ele a relaciona com um espetáculo minha irmã K., que tinham vindo para me libertar. Eu per-
circense. Aqui existe um exemplo notável de transição de uma cebia perfeitamente como eles conversavam entre si. Depois
massa pata outra. A paróquia se transforma num circo. O estu- vi minha irmã cochichando com uma velha; gritei com todas
dante, que talvez esteja ocupando o lugar do sacerdote, tem as minhas forças para que ela viesse libertar-me. Ela respon-
nada menos que cinqüenta companheiros; os cavalos, como deu também gritando que o faria, mas a velha não a deixava,
era de se esperar, diminuíram de tamanho; é possível que o assegurando-lhe que isso mergulharia a casa toda na desgraça
doente sinta o golpe dos seus cascos. e que a mim nada sucederia... Entre lágrimas e orações espe-
É muito característica, para a tendência de uma atitude rei pela morte. Reinava também um silêncio de morte e bandos
contemplativa durante o delírio, a maneira como observa a de figuras fantasmagóricas me rodeavam. . . Finalmente chegou
esposa em seu deslize conjugal. Curiosa aparece também a rela- um dos espíritos e colocou, a uma certa distância, seu relógio
ção com suas roupas; também elas se transformam: as mangas diante dos olhos, enquanto me dava a entender que ainda não
e aberturas estão fechadas e costuradas, os bolsos descostura- eram três horas, e que portanto não acharia nenhuma das
dos; transformaram-se em monstruosidades; suas diversas par- figuras...
tes perderam a finalidade. Um zoológico de peças de roupas "Depois disto houve longas negociações entre os parentes
transformadas seria perfeitamente possível no delírio, e não do paciente que queriam comprar seu resgate, primeiro com
estaria muito distante dos animais. As sete lebres no banho, somas pequenas, depois com somas mais elevadas. Outras vozes
finalmente, têm no total uma boa quantidade de dentes e se deliberavam a maneira pela qual poderiam eliminar o paciente.
encarregam de atormentar a pele do enfermo. Então os parentes foram atraídos para umas escadarias e lan-
O segundo caso, que eu gostaria de citar aqui dentro de çados ao fosso do castelo, onde se puseram a gritar angustia-
um contexto mais amplo, foi tratado por Bleuler. O doente, dos. A mulher do carcereiro veio, cortou pedaço por pedaço
um esquizofrênico, descreveu suas vivências durante um ataque a carne do paciente, começando pelos pés até chegar ao peito;
de delirium tremens em trinta e seis páginas. Seria possível assou estes pedaços e os comeu. Sobre as feridas dele, espa-
levantar uma objeção e dizer que o exemplo de um paciente lhou sal. O paciente foi içado, num andaime que balançava
tão "anormal" não é típico. Entretanto parece-me, pelo con- fortemente, aos diversos céus, até o oitavo, passando por coros
trário, que justamente a partir deste caso é possível apren- de trombetas, que proclamavam o seu nome. Finalmente, de-
der-se muito a respeito das representações de massa no delírio. vido a um engano qualquer, ele foi transferido de volta para
As alucinações são um pouco mais coerentes, as metamorfoses a terra ... Havia gente sentada em torno de uma mesa, co-
se tornaram mais tranquilas; o total, para dizer a verdade, tem mendo e bebendo coisas do mais delicioso aroma; mas quando
o caráter de uma criação poética. Até mesmo no pequeno as pessoas lhe passavam um copo, este se desvanecia; ele
resumo que apresentamos em seguida consegue-se perceber um sofria grande sede. Depois teve de ficar contando e fazendo
pouco disto. cálculos em voz alta durante horas. Num pequeno frasco lhe
"O que repentinamente tive de ver ali fez com que meus ofereciam néctar celestial; mas, quando queria bebê-lo, o frasco
cabelos ficassem de pé . . . Bosques, rios, mares com as figuras se quebrava e o conteúdo lhe escorria entre os dentes como
animais e humanas mais horríveis que qualquer pessoa jamais fios viscosos. Mais tarde ocorreu uma grande batalha entre
tenha visto, passavam sibilando sem parar, alternando com seus torturadores e seus parentes; ele nada viu desta batalha,
oficinas de todas as profissões, onde trabalhavam terríveis fign- mas ouvia muito bem os golpes e os gemidos."
408 409
Os "bosques, rios e mares" que aparecem aqui nos são juntos• o movimento que iniciam quando descem do trem e
familiares como símbolos de massa. Mas, como se ainda esti- a última etapa da viagem, o trajeto que os conduz
percorrem
vessem em seu processo de metamorfose em símbolos, ainda ída da estação — um lugar neutro —, é a extinção dessa
à sa
não foram totalmente desligados das massas, em cujo lugar massa atenuada, um trecho de marcha coletiva sobre a pla-
com tanta freqüência aparecem. Estão animados por todas "as
taforma.
Para o espectador o esvaziar-se de um trem imediata-
figuras animais e humanas mais horríveis que qualquer pessoa
jamais tenha visto". A formação de novas criaturas por combi- mente depois de ele ter visto tantas pessoas desconhecidas
nação de outras preexistentes em número tão elevado é obra encostadas às janelas e às portas tem um efeito de massa de
da metamorfose. O próprio paciente não é incluído na trans- natureza distinta da que é percebida pelo próprio viajante. O
formação; com grande rapidez porém se mistura e se trans- que interessa é encontrar entre todos esses rostos desconheci-
forma o próprio mundo. Mas todas estas novas criaturas exis- dos um ou dois rostos familiares, justamente aqueles pelos
tem em grandes massas para ele. É notável que ele faça se quais se está esperando. O "trem de passageiros do qual des-
alternarem as unidades familiares de bosque, rio e mar, nas cem muitas pessoas", combina portanto muito bem com os
quais a vida aparece de maneira natural, com "oficinas de delírios de contemplação de que estamos tratando aqui. Cabe
todas as profissões". A produção é portanto equiparada à ainda acrescentar que se imagina esta cena numa grande estação
metamorfose, uma concepção que certos povos primitivos com- para a qual convergem muitas linhas.
partilham com este paciente. As profissões estão separadas A palavra "morte", um pouco depois, conduz a "silêncio
como criaturas de diferentes espécies, mas o que elas produzem de morte". Porém, se para nós isto significa apenas um silêncio
aponta em direção à massa e tem-se a sensação de que elas especialmente profundo, para o doente os "mortos" se des-
propriamente existem apenas para criar massas de coisas da prendem da palavra e o rodeiam em bandos como figuras
maneira mais rápida possível. Trata-se de processos de trabalho espectrais.
como abstrações e de seus resultados, executados por aquelas No seu caminho para os céus, aos quais é içado, ele passa
complicadas figuras fantasmagóricas. ao lado de coros de trombetas que anunciam a sua glória. Nada
Depois as paredes retornam de novo como um mar po- caracteriza melhor a essência da glória. Quem ambiciona a
voado por milhares de pequenos barcos em vez das "figuras glória deseja exatamente isto: coros de criaturas, de preferên-
animais e humanas". Lá existem homens e mulheres, todos cia seres humanos, que nada mais façam além de proclamar
despidos, iguais em sua nudez — excetuando-se as diferenças seu nome. Também este tipo de massa tem algo de atenuado.
sexuais — e também iguais em sua dependência do compasso O coro, uma vez formado, permanece no seu lugar e, por mais
musical. A massa, da qual se trata aqui, é a dos pares e a do ruidoso que seja, não se aproxima da pessoa, apenas a chama
acasalamento. Como pares são apunhalados, o sangue de todos e proclama seu nome.
eles cai no mar e o tinge de vermelho. Mas continuam che- Durante todo este relato desenrola-se um conflito entre
gando novos grupos de pares. dois grupos inimigos. De um lado estão os familiares do doente
O "trem de passageiros do qual descem muitas pessoas" que querem resgatá-lo; do outro estão seus inimigos que gos-
requer uma explicação algo mais detalhada. O que se imagina tariam de eliminá-lo. Ele é o objeto que se disputa; ou, mais
num trem são muitas pessoas juntas, que percorrem um longo exatamente, seu corpo é disputado. Tudo começa com grandes
trajeto numa mesma direção; pessoas separadas entre si, é negociações, de somas pequenas passa-se para somas maiores;
claro, pelos compartimentos, mas em circunstâncias que não ele vai subindo cada vez mais na estima dos seus familiares.
lhes permitem afastar-se voluntariamente umas das outras, a Os do seu partido são atraídos para o fosso de um castelo, de
não ser nas estações. Ao chegarem alcançam a meta que lhes onde chegam seus gritos angustiados; já tratamos do monte
era comum, mesmo que tenham iniciado a viagem em lugares de moribundos e de mortos quando examinamos a guerra.
muito diferentes. Nos instantes anteriores à chegada, ficam Como prisioneiro, o doente é comido e torturado de maneira
de pé, saem ao corredor e se instalam junto às janelas. Então canibalesca. A oposição entre seus torturadores e seus parentes
se observa nesses viajantes uma forma muito tênue de excita- provoca também uma grande batalha. Ele a ouve; ouve nova-
ção de massa, como se todos estivessem cruzando uma meta mente o gemer dos feridos. Este delirio contém portanto, acima
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de todas as demais coisas, a massa dupla que nos é familiar e ser obervado principalmente nos macacos, Justa-
que ePodf lidades da imitação impede o seu aprofundamento.
sua descarga na guerra. As fases concretas do processo que ment a aci
culmina na batalha lembram pelos seus detalhes a forma de — A metamorfose é como um corpo em comparação com a
conduzir a guerra entre os povos primitivos. que é bidimensional. Uma forma de transição entre
imitação
Poder-se-ia dizer que neste caso não falta praticamente imitação e a metamorfose, que conscientemente pára no meio
nenhum fenômeno de massa. Não é freqüente que eles se en- do caminho, é a simulação.
contrem reunidos em tal concentração e com tanta nitidez. A aproximação amigável com intenção hostil — coisa
comum em todas as formas superiores de poder — é um
primeiro e importante tipo de metamorfose. É superficial e se
Imitação e simulação refere apenas à aparência exterior: à pele, aos chifres, à voz,
ao modo de andar. Debaixo disso tudo, intocável, com intenção
As palavras "imitação" e "metamorfose" freqüentemente mortal que por nada pode ser influenciada, está o caçador.
Esta extrema separação entre o interior e o exterior, que não
são empregadas sem discriminação e com pouca clareza para
poderiam ser mais diferentes, alcançou sua perfeição máxima
designar os mesmos fenômenos. Todavia é recomendável fazer na máscara. O caçador tem domínio total sobre si mesmo e
uma distinção entre elas. Elas não significam de forma alguma leva uma arma na mão. Mas ele também domina a figura do
a mesma coisa, e sua cuidadosa separação pode contribuir para animal que está representando. Em cada instante ele possui
a elucidação do processo propriamente dito da metamorfose. um domínio completo sobre si e sobre o animal. Ele é, por
A imitação é algo externo; pressupõe que se tenha diante assim dizer, simultaneamente duas criaturas e as mantém até
dos olhos alguma coisa cujos movimentos são copiados. Quan- alcançar sua meta. O fluxo das transformações das quais seria
do se trata de sons, a imitação significa apenas que estamos capaz foi interrompido: ele se encontra em dois lugares rigi-
reproduzindo exatamente os mesmos sons. Sobre a disposição damente circunscritos, um dentro do outro, este claramente
interna de quem faz a imitação, nada se diz. Macacos e papa- separado daquele. E é essencial que o interior permaneça
gaios imitam, e é de supor que ao fazerem isso eles não se estritamente oculto atrás do exterior. O amigável-inofensivo
modificam de forma alguma. Poder-se-ia dizer que eles não está fora, o hostil-mortal está dentro. O mortal somente é
sabem o que imitam; nunca o viveram de dentro para fora. revelado pelo ato definitivo.
Assim, eles também podem saltar de uma para outra coisa, Esta duplicidade é a forma extrema do que vulgarmente
sem que a seqüência tenha a menor importância para eles. Uma se chama simulação. Tomada ao pé da letra, a palavra não
certa falta de insistência facilita a imitação. De maneira geral poderia ser mais gráfica do que é. No entanto ela tem sido
ela se refere a um aspecto isolado. Como por sua natureza é aplicada a tantos fenômenos de natureza mais fraca que acabou
um aspecto que impressiona, a imitação simula freqüentemente perdendo uma boa parte de sua força. Eu gostaria de voltar a
uma capacidade de "caracterização" que na realidade não existe. restringi-la ao seu sentido menos amplo e defino como simu-
Uma pessoa pode ser reconhecida por determinadas fór- lação a figura amiga, por trás da qual se oculta outra, a
mulas que utiliza constantemente, e um papagaio que a imite inimiga.
pode, exteriormente, lembrar essa pessoa. Mas essas fórmulas "Um lavadeiro possuía um burro capaz de transportar
não precisam necessariamente ser características da pessoa. cargas extraordinárias. Para alimentá-lo, o lavadeiro o cobria
Podem ser determinadas frases que ela utiliza apenas para o com uma pele de tigre e, quando caía a noite, conduzia-o aos
papagaio. Neste caso o papagaio imita algo que carece inteira- trigais alheios, onde o burro comia quanto queria, porque nin-
mente de importância e ninguém que não esteja devidamente guém se atrevia a ir até onde ele estava e expulsá-lo de lá,
informado reconheceria a pessoa ern questão através de sua pois todos os tomavam por um tigre. Uma vez, porém, um
imitação. guarda de campo ficou à sua espreita. Ele tinha coberto seu
A imitação, resumindo, nada mais é do que um primeirís- corpo com um manto cor de terra e estava com o arco prepa-
simo princípio de metamorfose que é imediatamente abando- rado para matar a fera. Quando o burro o viu de longe tomou-
nado. Ela pode acontecer em rápida sucessão de objetos, fato se de amores por ele, acreditando que o homem fosse uma
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fêmea de sua própria espécie. Por isso zurrou e correu em morto pelo guarda dos campos. Em vez de atuar como presa,
direção dele. O guardião do campo reconheceu o burro pela que um tigre devoraria com prazer, o guarda, sem suspeitar
voz e o matou." disso, atuou como fêmea de burro. Em vez do amor que pro-
Este conto indiano conhecido como Asno na pele do curava , o burro encontrou a morte.
tigre contém em poucas frases um pequeno manual de simu-
A história está construída com uma série de enganos. Si-
lação. Ninguém até hoje conseguiu dizer mais coisas a respeito mula ndo-se uma criatura que não se é, procura-se enganar
dela num espaço tão pequeno. É forçoso reconhecer que se outras criaturas. A ação resulta do fato de as simulações atua-
trata aqui de sua aplicação e não de suas origens. Mas algumas
rem de maneira diferente da pretendida. É somente o homem
destas aplicações não estão distantes das origens. que aplica a simulação de maneira consciente. Ele mesmo pode
O conto começa com a profissão do lavadeiro, isto é, dissimular-se como guarda, pode disfarçar-se em outra criatura,
aquele que lava peças de roupa; estas são a segunda pele do como o lavadeiro fez com seu burro. O animal somente pode
homem. Ele é um lavadeiro trabalhador e encontrou um bur- servir de vítima passiva para a simulação. A separação do
ro que lhe transportava as cargas. É de supor que o burro homem e do animal nesta história é completa. Os tempos mí-
sirva para a entrega da roupa que o seu dono lavou. Entre as ticos em que não era possível separá-los uns dos outros —
peles que o lavadeiro manipulou em sua profissão é possível quando os homens agiam como animais verdadeiros e quando
que houvesse também uma pele de tigre, da qual trata a his- os animais falavam com os homens — passaram. O homem
tória. aprendeu — justamente por meio de suas aventuras míticas
O burro que trabalha tão bem está sempre com fome e como animal — a utilizar quase todos os animais da maneira
necessita de muito alimento. Seu dono o cobre com a pele que lhe é mais conveniente. Suas metamorfoses passaram a ser
de tigre e o conduz aos trigais alheios. Lá ele pode comer à simulações. Nas máscaras e nas peles com as quais ele se cobre,
vontade; as pessoas o temem, pois o tomam por um tigre de continua muito consciente dos seus objetivos, continua sendo
verdade. A criatura inofensiva está coberta aqui com a pele ele mesmo, o senhor dos animais. Aos que ele não consegue
de um animal muito perigoso. Mas o burro não sabe o que submeter, venera, como no caso do tigre. Todavia os mais
está acontecendo. O terror que ele inspira não pode ser com- valorosos tentam dominar também estes outros animais, jus-
preendido por ele. Ele come à vontade e ninguém o perturba. tamente pela simulação; e é possível imaginar que o guarda
Os homens, que não têm coragem de se aproximar, não podem dos campos teria conseguido, por meio do seu ardil, abater
saber o que ele faz ali. Seu temor diante de um ser mais pode- um tigre de verdade.
roso tem algo de uma crédula veneração. Seu temor os impede Certamente é surpreendente que uma história tão curta
de descobrir o tigre-burro. Eles se mantêm afastados dele e seja capaz de expressar tantas relações essenciais. Também não
ele, enquanto permanecer calado, pode continuar comendo. Eis, deixa de ser significativo que a história comece com um la-
porém, que aparece um guarda dos campos, que não é um vadeiro: ele manipula vestes que são, poder-se-ia dizer, os
homem como os demais; ele tem a coragem do caçador e leva últimos e inanimados derivados da pele; nos mitos, por meio
em suas mãos um arco para abater o tigre. Ele se esconde de- do ato de vestir roupas, muitas vezes são operadas metamorfo-
baixo de um abrigo cor de terra, que talvez seja até mesmo ses. A pele de tigre, que o lavadeiro utiliza para o seu ardil,
a pele de um burro; de qualquer maneira ele quer que o su- anima as roupas inofensivas que ele costuma manipular.
posto tigre o tome por um burro. Sua simulação é a da cria- A simulação, esta versão restrita da metamorfose, é a úni-
tura perigosa que se faz passar por inofensiva. Os primeiros ca utilizada até hoje pelo detentor do poder. O poderoso não
caçadores do mundo já se utilizavam deste ardil para se apro- pode ir além em suas transformações. Ele continua sendo ele
ximarem da presa. mesmo, enquanto tiver consciência de sua intenção hostil in-
O divertido da história está no fato de que o burro, ape- terna. Ele está restrito a metamorfoses que mantenham sempre
sar de se alimentar bem, se sente só. Quando vê alguma coisa e totalmente intacto esse núcleo interior, sua figura verdadei-
à distância que lhe lembre um outro burro, pretende que seja ra. É possível que às vezes ele considere útil ocultar o terror
uma fêmea de sua espécie. Ele zurra e corre em direção à que emana de sua figura verdadeira. Para isso ele pode utili-
suposta fêmea. Pela voz ele se dá a conhecer como burro e é zar-se de diversas máscaras. Mas sempre irá utilizá-las de ma-
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neira provisória, e elas jamais irão conseguir alterar um pouco xação de determinadas metamorfoses. O personagem
sequer sua figura interior, que é sua natureza, quequa
a fi
l, por assim dizer, a pessoa se fixa, que se transforma
no qual,
tradição que transmite vida, que se representa inúmeras
O personagem e a máscara vezes, do qual se fala nas fábulas em todas as ocasiões, não é
n-
o que hoje chamaríamos uma espécie animal, um canguru, um
avestruz, mas sim duas coisas ao mesmo tempo: um canguru
O estado final da metamorfose é o personagem. Uma de suas se confunde com um homem, um homem que se trans-
características é não permitir uma transformação posterior. O que quando quer num avestruz.
forma
personagem está delimitado e é claro em todas as suas carac- O processo da metamorfose se transforma assim no per-
terísticas. Não é natural, mas sim uma criação do homem. Ele s onagem mais antigo. Da multiplicidade de inúmeras e inces-
representa uma salvação na incessante fluidez da metamorfose. santes metamorfoses, que são todas possíveis, desprende-se uma
Ele não pode ser confundido com o que a ciência moderna determinada que se fixa em personagem. O mesmo processo
define como um gênero ou uma espécie. da metamorfose, ou melhor, um desses processos, é estabele-
Chega-se mais perto de sua essência pensando nos perso- cido, e com isso, em comparação com os demais que foram
nagens divinos das religiões mais antigas. Vale a pena contem- excluídos, ele recebe um valor especial. Esta figura dupla, que
plar neste sentido alguns dos deuses egípcios. A deusa Sekhmet contém e confirma a metamorfose do homem em canguru e do
é uma mulher com cabeça de leoa, Anúbis é um homem com canguru em homem, que permanece para sempre idêntica a
cabeça de chacal, Thot um homem com cabeça de íbis. A deusa si mesma, é o primeiro e o mais antigo personagem, o perso-
Hathor tem cabeça de vaca, o deus Hórus a de um falcão. nagem original.
Estes personagens, em sua forma determinada, imutável, que Poder-se-ia dizer que ainda é um personagem livre. Seus
é uma forma dupla de animal-homem, dominaram durante mi- dois aspectos são equivalentes. Nenhum deles é colocado diante
lênios as idéias religiosas dos egípcios. Nesta forma eles se do outro, nenhum é ocultado atrás do outro. Ele remonta à
encontraram retratados por toda parte, nesta forma foram ado- noite dos tempos, mas no seu efeito pleno de sentido ele está
rados. Sua constância é surpreendente; no entanto, muito tem- sempre presente. Existe um acesso a ele; mediante a repre-
po antes de se desenvolverem os rígidos sistemas religiosos sentação dos mitos aos quais pertence, toma-se parte nele.
desta espécie, as configurações duplas de animais-homens eram Também para nós é importante lançar luz sobre esta es-
comuns e correntes entre inúmeros povos da Terra que não pécie mais antiga de personagem. É importante compreender
mantinham nenhum tipo de relação entre si. que o personagem começa com algo que não é nada simples,
Os ancestrais míticos dos australianos são homem e ani- que nos parece complexo e que, ao contrário do que entende-
mal ao mesmo tempo; às vezes até mesmo homem e planta. mos hoje por personagem, expressa o processo de uma meta-
Estes personagens são conhecidos como totens: existe um to- morfose simultaneamente com o seu resultado .
tem canguru, um totem bandicoot, um totem avestruz. Cada A máscara distingue-se por sua rigidez de todas as demais
um deles é caracterizado pelo fato de ser homem e animal ao fases finais da metamorfose. Em lugar de uma mímica que
mesmo tempo; ele funciona corno homem e como um animal jamais se aquieta, que se encontra em movimentação constante,
bem determinado e é considerado como ancestral de ambos. aparece o oposto dela, uma rigidez completa e constância. É
Como devem ser interpretados estes personagens arcaicos? principalmente na mímica que se expressa a incessante dispo-
O que é que eles realmente representam? Para compreendê-los sição de metamorfose do homem. Ele, entre todas as criaturas,
é preciso lembrar que são considerados como habitantes do possui de longe a mímica mais rica; também é ele quem tem
tempo mítico primordial, um tempo em que a metamorfose a vida mais rica de metamorfoses. É incrível o que no decorrer
era um dom universal das criaturas e acontecia constantemente. de uma única hora se passa no rosto de um homem. Se dispu-
Já destacamos muitas vezes a fluidez desse mundo. A pessoa séssemos do tempo necessário para contemplar com maior va-
podia transformar-se em todos os tipos de coisas; mas também gar todos os impulsos e estados de ânimo que perpassam por
tinha-se o poder de transformar os demais. Desta fluência uni- um rosto, ficaríamos surpresos com os incontáveis núcleos de
versal destacam-se personagens isolados que não são mais do metamorfose que ali poderíamos reconhecer e selecionar.
416 417
O costume não tem o mesmo enfoque em todos os lu- Nos casos estritos, plenamente configurados, dos quais
gares quanto ao jogo livre do rosto. Em algumas civilizações tért•
estamos falando aqui, ou seja, onde a máscara é levada a sério,
a liberdade do rosto é restrita em grande medida, É conside- deve ficar sabendo quem está por trás dela. Ela expres-
rado como impróprio mostrar imediatamente dor ou conten- .to mas o que ela oculta é muito mais. É uma separa-
tamento; os sentimentos são trancados dentro da pessoa e o sa minse
carregada de um conteúdo perigoso, que não deve ser
cão:
ção:
rosto permanece totalmente impassível. O motivo mais pro- 'onhecido,
c com o qual uma relação de familiaridade não é
fundo deste enfoque é a constante exigência de autonomia do ela se oxima muito de onde estamos mas perma-
aproxima
os s
homem. Ninguém tem permissão de penetrar no outro. O nece, justamente nessa proximidade, nitidamente separada de
homem deve ter a força de estar consigo mesmo; o homem
nós. í vEvele ameaça com o segredo que se acumula por trás dela.
deve ter a força de permanecer igual a si mesmo. Uma coisa
rn a l:z que uma leitura fluida como a de um rosto não é
completa a outra. Porque é a influência de um homem sobre possível neste caso, supõe-se e teme-se o desconhecido que
outro que provoca intermináveis e fugazes metamorfoses. Estas existe por trás da máscara.
se expressam pela gesticulação e pela mímica; onde ambas são Trata-se, na esfera visual, da mesma experiência que todos
malvistas, toda a metamorfose é dificultada e finalmente acaba conhecem a partir da esfera acústica. Chega-se a um país cujo
sendo totalmente impedida. idioma nos é totalmente desconhecido. Estamos rodeados de
Um pouco de conhecimento da rígida essência desta an- pessoas que falam conosco. Quanto menos se entende, tanto
tinaturalidade "estóica" nos leva rapidamente a conhecer o mais se supõe. E supõem-se apenas coisas desconhecidas.
sentido da máscara em geral: é um estado final. A fluida su- Teme-se a inimizade. Mas ficamos incrédulos e até mesmo um
cessão de metamorfoses não esclarecidas, semiterminadas, cuja pouco decepcionados quando as palavras do idioma estranho
maravilhosa expressão é o rosto humano natural, acaba desem. nos são traduzidas para uma língua familiar. Como são inofen-
bocando na máscara; termina nela. Quando ela está presente, sivas! Nada têm de perigoso! Todo idioma inteiramente estra-
nada do que principia é revelado, nada que ainda seja um nho é uma máscara acústica; assim que passamos a entendê-lo,
núcleo amorfo e inconsciente. A máscara é clara; ela expressa converte-se num rosto decifrável, que logo depois se torna
algo muito determinado, nem mais nem menos. A máscara é íntimo.
rígida: o determinado não se modifica. A máscara é portanto isso que não se transforma, incon-
É verdade que por trás desta máscara pode existir outra. fundível e duradouro, algo permanente no jogo sempre mu-
Nada impede que o ator use uma máscara por debaixo de tante da transformação. Seu efeito límpido depende de que ela
outra. Conhecem-se máscaras duplas de vários povos; abre-se oculte tudo o que existe por trás dela. Sua perfeição reside no
uma e debaixo dela aparece outra. Mas também esta é uma más- fato de ela ser exclusivamente o que é, e de que tudo o que
cara, um estado final próprio. É um salto que conduz de uma está por trás dela se torna irreconhecível. Quanto mais clara
à outra. Qualquer coisa que existisse entre os dois pontos está ela for, tanto mais obscuro fica tudo o que está atrás dela.
excluída; não existe uma transição atenuante como a que ocor- Ninguém sabe o que poderia irromper de trás da máscara. A
reria no rosto de um ser humano. O novo, o outro, repentina- tensão entre a rigidez da aparência e o mistério por trás dela
mente está aí. Ele é tão claro e rígido como o anterior. De pode chegar a alcançar uma dimensão monstruosa. Esta tensão
máscara em máscara tudo é possível, mas somente mediante o é o motivo propriamente dito do que existe de ameaçador na
salto de máscara, de uma maneira única, idêntica e concentrada. máscara. "Eu sou exatamente o que você está vendo", diz a
O efeito da máscara é principalmente para fora. Ela cria máscara, "e tudo o que você teme atrás de mim". Ela fascina,
um personagem. A máscara é intocável e estabelece uma dis- ao mesmo tempo que impõe distância. Ninguém ousa colocar
tância entre o espectador e ela. Pode, por exemplo, num baile, a mão nela. O ato de arrancar a máscara de outra pessoa é
aproximar-se mais do espectador. Mas este, por si, deve per- punido com sentença de morte. Durante o seu período de ati-
manecer onde está. A rigidez da forma transforma-se também vidade, ela é intocável, invulnerável, sagrada. O que existe de
numa rigidez de distância: o fato de ela não se modificar no certeza na máscara, sua facilidade de compreensão, está carre-
menor detalhe sequer é o que ela tem de mais fascinante. gado também de incerteza. Seu poder repousa no fato de ela
Porque imediatamente por trás da máscara começa o mis- ser conhecida com precisão, mas sem que jamais se saiba o que
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contém. Ela é conhecida apenas por fora; por assim dizer, 11111111" perturbador de sua metamorfose. Ele deve tomar todo
', Iftnite
apenas de frente. cuidado para não perdê-la. Ela não pode cair, não pode abrir-
Mas, quando durante determinadas cerimônias a máscara desta forma ele está cheio de preocupações com o que pode
se; desta
se comporta exatamente como de costume e de acordo com a acontecer a ela. Assim a própria máscara continua permane-
expectativa, ela também pode funcionar de forma tranqüiliza- cendo fora de sua metamorfose, como uma arma ou um ins-
dora. Pois ela se interpõe entre o que é perigoso, e que está trumento que deve ser manipulado. Sua pessoa normal a ma-
atrás dela, e o espectador. Desta forma, desde que seja mane- ne ja, enquanto como ator ele se transforma nela. Ele é portanto
jada corretamente, cla pode conjurar o perigo que o ameaça. dois, e deve permanecer sendo dois durante toda a duração
Pode armazenar o perigo em si e conservá-lo armazenado. So- de sua função.
mente irá permitir que este perigo ameace na medida em que
isto corresponda a sua figura. É possível comportar-se corre-
tamente em relação a ela assim que se estabelece uma relação A desconversão
com ela. É um personagem com um comportamento próprio.
Quando se aprende isto, quando se conhece isto, quando se O detentor do poder, consciente de sua disposição hostil in-
sabe a distância que ela exige de nós, ela nos protege contra terna, não pode enganar todos pela simulação. Existem ou-
o perigo que está contido dentro dela. tros que ambicionam o poder como ele próprio, que não o
Sobre este efeito da máscara que chegou a ser persona- reconhecem e que se consideram rivais seus. Em relação a
gem haveria muita coisa a ser dita: com ela começa e com ela estes, ele está sempre em posição de alerta; eles podem tornar-
vive e morre o drama. Mas aqui somente nos interessa a pró- se perigosos. Está sempre à espera do momento certo para
pria máscara. É necessário ver o que existe do outro lado, "lhes arrancar a máscara do rosto". Por trás dela se torna
pois ela não tem apenas um efeito para fora, dirigido para os então visível a verdadeira intenção deles que ele tão bem co-
que desconhecem seu conteúdo; ela também é usada por sua nhece por experiência própria. Se os desmascarar, poderá tor-
vez por homens que estão dentro dela. ná-los inofensivos. Poderá, se isto convier aos seus fins, pou-
Estes são muito conscientes de si mesmos. Mas a tarefa par-lhes a vida. Porém, tomará cuidado para que isto não
deles é a de representar a máscara e manter-se durante esta resulte em nova dissimulação, e irá mantê-los vigiados em sua
representação dentro de determinados limites: justamente da- figura autêntica.
queles que correspondem à máscara. As metamorfoses que ele mesmo não impõe aos outros
A máscara é colocada, é externa. Como configuração ma- lhe são pouco confortáveis. Ele pode nomear pessoas que lhe
terial, ela está nitidamente separada de quem a usa. Ele a sente são úteis para cargos mais elevados. Mas a metamorfose social
em sí como algo estranho, nunca pode percebê-la por dentro, que ele provoca desta maneira deve estar estritamente limita-
como seu próprio corpo. Ela o incomoda, ela o constringe. da, deve ser imutável e deve encontrar-se totalmente em suas
Enquanto ele a estiver representando, sempre será duas coi- mãos. Mediante nomeações e destituições ele estabelece a si-
sas: ele mesmo e ela. Quanto mais vezes ele a tiver usado, tuação, e ninguém pode arriscar-se a um salto por conta própria.
quanto melhor a conhecer, tanto mais encarnará ele próprio o O detentor do poder trava uma luta incessante contra as
personagem da máscara. Mas apesar disso uma parte de sua metamorfoses espontâneas e incontroladas. O desmascaramen-
pessoa permanecerá separada dela: a parte que teme o desco- to, meio de que ele se vale nesta luta, é diametralmente oposto
brimento; a parte que sabe que está propagando um temor que ao processo da metamorfose e pode ser definido como descon-
não lhe corresponde. O mistério que representa para os que versão. O processo já é conhecido pelo leitor. Menelau fez uma
estão fora deve ter o seu efeito sobre ele, que está dentro: não desconversão de Proteu, não se deixando espantar por nenhu-
é, como se poderia supor, o mesmo efeito. Eles temem o que ma de suas figuras e sujeitando-o até que ele voltou a ser
não conhecem; ele teme o desmascaramento. É justamente este proteu
temor que não permite que ele se abandone de todo. Sua meta- Pertence à essência da desconversão que sempre se saiba
morfose pode ir muito longe, mas ela jamais é completa. A com exatidão o que será encontrado depois. O que é esperado
máscara, que lhe poderia ser arrancada do rosto, representa o é que primeiro se nos torna consciente; com terrível segurança
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avança-se em direção a isso, desprezando-se todas as metamor- Nas cerimônias totem dos arandas somente possui o di-
foses que se vão revelando como artificialidade pretensiosa e to de participar quem pertence ao totem. A metamorfose
enganadora. Pode-se fazer isto numa única ocasião como Me- rei figura
nelau, ao qual interessava a sabedoria de Proteu. Ou pode-se prerrogativa que corresponde apenas a determinadas pes-
também fazer isto freqüentemente, e por fim pode-se transfor- as. Sem um direito a ela ninguém pode apropriar-se da meta-
so
morfose, que é transmitida como um bem imóvel. Está tão
mar esse jogo numa paixão.
A desconversão acumulada conduz a uma redução do bem protegida como as palavras e os sons dos cânticos sagra-
mundo. A riqueza de suas formas de aparição de nada vale, dos que lhe pertencem. Justamente a exatidão na qual se
toda a multiplicidade é suspeita. Todas as folhas são iguais e desenvolveu esta figura dupla, sua clara determinação e deli-
secam; todos os raios se extinguem numa noite de hostilidade. mitação, torna fácil protegê-la. A proibição de sua apropriação
Numa enfermidade mental tão estreitamente aparentada é rigorosamente respeitada; ela é reforçada por uma sanção re-
com o poder que poderia ser considerada como seu gêmeo, a ligiosa total. Somente após longas e complexas cerimônias de
desconversão deu início a uma espécie de tirania. A paranóia iniciação é que um jovem é recebido no grupo daqueles aos
se destaca principalmente por duas características. Uma é desig- quais, em determinadas ocasiões, esta transformação é permi-
nada pela psiquiatria como dissimulação. Nada mais é do que tida. Para as mulheres e para as crianças a proibição se man-
a simulação no exato sentido em que aqui utilizamos esta ex- tém incondicional e permanente Para os iniciados de outros
pressão. Os paranóicos podem simular tão bem que de muitos totens, às vezes, como expressão de uma cortesia especial, a
deles jamais se chega a saber totalmente até que ponto são proibição é levantada. Mas estas são ocasiões únicas e, depois
paranóicos. A outra característica é um desmascaramento inces- que passam, a antiga proibição continua valendo com a mesma
sante de inimigos. Eles se encontram por toda parte, usando os severidade de antes.
disfarces mais pacíficos e inócuos, mas o paranóico, que possui Existe um grande salto desta religião para a religião cristã,
o dom de adivinhar as intenções, sabe com exatidão o que na qual o personagem do diabo está proibido para todos igual-
existe por trás das coisas. Ele lhes arranca a máscara do rosto mente. Sua periculosidade é afirmada de todas as maneiras; em
e descobre-se que, no fundo, trata-se sempre do mesmo inimigo. centenas de histórias de alerta narra-se o que acontece a quem
O paranóico está totalmente entregue à desconversão como se relaciona com ele. Os tormentos eternos das almas destas
nenhum outro homem, e nisto ele se mostra um detentor enri- pessoas no inferno foram pintados com todos os detalhes e
jecido de poder. A posição que ele acredita ocupar, o signifi- serviram de ameaça. A intensidade desta proibição é mons-
cado que se atribui aos olhos dos demais, certamente são fic- truosa; ela é mais vigorosa onde os homens sentem a compul-
tícios; mesmo assim ele os defenderá mediante uma aplicação são de agir contra ela. As histórias de pessoas possuídas que
ininterrupta do processo duplo e relacionado de simulação e repentinamente começaram a agir como o próprio diabo, ou
desmascaramento. até mesmo como vários diabos, são bem conhecidas. Existem
Um estudo válido da desconversão somente é possível autobiografias de pessoas desse tipo, uma das mais célebres
dentro do contexto de um caso concreto e individual de para- é a da abadessa Jeanne des Anges, do convento das ursulinas
nóia. Este estudo se encontra nos últimos capítulos deste livro, de Loudun, e a do Pe. Surin, que devia exorcizá-la, quando o
que tratam do "caso Schreber". diabo entrou no seu próprio corpo. Neste caso, indivíduos
consagrados ao serviço especial de Deus, aos quais a simples
aproximação do diabo — para não falar da transformação
Proibições de metamorfose nele — era proibida em grau ainda maior do que aos leigos
comuns, são possuídos por ele: a metamorfose proibida os
Um fenômeno social e religioso de maior peso é a metamorfose subjugou por completo. Dificilmente estaremos errando se atri-
proibida. Ela praticamente nunca foi estudada seriamente, e buirmos a força com a qual a metamorfose aparece à intensi-
muito menos chegou a ser compreendida. Também nossa ten- dade da proibição à qual ela estava submetida.
tativa de aproximação que apresentamos em seguida nada mais O aspecto sexual da proibição da metamorfose se torna
é que um primeiro tatear a este respeito. mais nítido numa análise da bruxaria. O pecado propriamente
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dito das bruxas é sua união sexual com o diabo. Não importa " o de temor e de obediência mediante a utilização de más-
o que mais elas façam; sua existência secreta sempre desem- 1111‘
caras terríveis e de sons lúgubres.
boca em orgias das quais o diabo participa. Elas são bruxas É no sistema de castas que a separação das classes se
por se terem relacionado sexualmente com ele; uma parte anifesta com a máxima rigidez. Neste caso, o fato de se
m
essencial da metamorfose delas consiste no fato de pertence- pertencer a uma determinada casta exclui totalmente qualquer
rem sexualmente ao diabo. tipo de transformação social. A pessoa se isola da maneira mais
A idéia de uma metamorfose pelo coito é antiguíssima.
rigorosa possível, tanto para cima como para baixo. Todo e
Considerando-se que toda criatura, de maneira geral, somente qualquer contato com um inferior é estritamente proibido. As
mantém relações sexuais com criaturas do gênero oposto de pessoas se casam apenas entre si; elas são obrigadas a ter todas
sua própria espécie, é facilmente imaginável que um afastamen- uma mesma profissão. Portanto, nem sequer é possível trans-
to desta regra seja considerado uma metamorfose, Neste caso formar-se numa criatura de outro nível social mediante o pró-
teríamos de considerar já as leis matrimoniais mais antigas prio trabalho. A conseqüência deste sistema é surpreendente.
como uma forma de proibição de metamorfose, ou seja, uma Um estudo exato a este respeito já permitiria o reconhecimento
proibição de todas as transformações, excluindo-se apenas as de todos os inícios de transformações sociais. Uma vez que
permitidas e desejáveis, que eram bem determinadas e estabe- todos devem ser evitados, eles são registrados, descritos e ex-
lecidas. Esta forma sexual da metamorfose deveria ser inves- plorados cuidadosamente. De um sistema completo de proibi-
tigada de maneira mais detalhada. Tenho a impressão de que ções seria possível derivar com precisão — desde que ele fosse
isto conduziria a conclusões de suma importância. invertido — o que se considera como a transformação de uma
É possível que as mais importantes de todas as proibições classe na classe superior. Um "ensaio sobre as castas" a partir
de metamorfose sejam as sociais. Toda hierarquia somente é deste ponto de vista da transformação é algo imprescindível,
possível se pressupusermos certas proibições que tornem impos- mas que ainda está para ser feito.
sível que membros de uma certa classe se sintam nivelados ou Uma forma isolada da proibição de metamorfose, ou seja,
iguais aos membros de uma classe superior. Já nas classes a que se refere a uma pessoa isolada que se acha no ápice de
etárias dos povos primitivos é preciso prestar atenção a estas uma sociedade, encontra-se nas formas primitivas do reino.
proibições. As separações, uma vez feitas, se acentuam de Chama a atenção o fato de que as duas formas mais desenvol-
forma cada vez mais rigorosa. A ascensão de uma classe infe- vidas do detentor do poder que se conheciam na humanidade
rior é dificultada de todas as maneiras possíveis. Ela somente antiga diferenciam-se justamente pelo seu posicionamento opos-
se torna viável mediante iniciações especiais e estas são con- to em relação à metamorfose.
sideradas, isso sim, como metamorfoses no sentido próprio da Num dos pólos está o mestre das metamorfoses, capaz de
palavra. Freqüentemente imagina-se a ascensão de tal forma adotar qualquer figi. ra quando quiser, seja de animais, de espí-
que é preciso morrer na classe inferior, para depois voltar à ritos de animais ou de espíritos de mortos. O mais truculento,
vida na classe superior. A própria morte é colocada entre uma que engana todos os demais por suas metamorfoses, é um per
e outra classe; trata-se de um limite muito sério. A metamor- sonagem estimado que pertence aos mitos indígenas norte-ame-
fose passa a ser um caminho muito longo e perigoso. É preciso ricanos. Seu poder baseia-se nas inúmeras figuras que ele é
superar todos os tipos de provas e de horrores; não é feita capaz de adotar. A maneira como ele desaparece surpreende;
concessão alguma ao candidato. Mas tudo o que o jovem so- ele agarra de maneira inesperada e somente se deixa agarrar de
freu, ele poderá — quando pertencer à classe superior — tal maneira que lhe seja possível soltar-se outra vez. O meio
devolver aos noviços que forem examinados por ele. A idéia principal que ele utiliza para levar a cabo todas as suas assom-
da classe superior adquiriu desta forma um caráter de estrita brosas façanhas é novamente a metamorfose.
separação, com uma vida própria com a qual se relaciona o O mestre das metamorfoses alcança o seu verdadeiro po-
conhecimento de cantos sagrados e de mitos, às vezes até mes- der como xamã. Em sua sessão estática ele invoca espíritos aos
mo o conhecimento de um idioma próprio. Os que pertencem quais submete, dos quais fala a língua, nos quais se converte e
às classes inferiores, como as mulheres, que estão inteiramente aos quais pode dar ordens como se fosse um deles. Torna-se
excluídas de todas as classes superiores, são mantidos num es- pássaro quando empreende a viagem para o céu, e como animal
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marinho mergulha até o fundo do mar. Tudo lhe é possível; o ;mutáveis. El e sentia no seu corpo presenças estranhas —
paroxismo que alcança resulta da sucessão acelerada e acrescida tTasta lembrar, neste contexto, os pequenos golpes dos bos-
de metamorfoses que o agitam até escolher entre elas o de que ' "anoss —, sentia-se em poder delas, e devia até transfor-
necessita para seus fins. ,1
mar-se nelas; elas lhe eram impostas de fora para dentro,
O mestre das metamorfoses é o transformador máximo, e mesmo quando sua fome já tinha sido aplacada graças a seu
se ele for comparado com a figura do rei sacral, que é subme- mesmo quando já estava satisfeito e em calma. Estas
talento,
tido a centenas de restrições, que deve permanecer sempre no presenças estranhas eram puro movimento, como era fluidez
mesmo lugar, sendo sempre igual a si mesmo, do qual ninguém o seu sentimento mais pessoal, seu ego mais íntimo. Tudo isto
pode se aproximar e que freqüentemente nem sequer pode ser rinha necessariamente de despertar nele um desejo pela per-
visto, percebemos que a diferença, quando colocada no deno- manência e pela duração, que somente poderia ser satisfeito
minador mais simples, não consiste senão numa oposição de por meio das proibições de metamorfoses.
atitudes em relação à metamorfose. No xamã a metamorfose Somos levados a pensar, a este propósito, no sistema de
é intensificada ao extremo e é aproveitada até o fim; no rei pedras dos australianos. Toda façanha ou aventura, toda mi-
ela é proibida e evitada até que se enrijece inteiramente. Este gração e destino dos ancestrais se incorporam à paisagem,
deve permanecer sempre tão igual a si mesmo que nem sequer transformando-se em monumentos sólidos e imutáveis. Quase
deveria envelhecer. Como homem sempre da mesma idade, deve não existe um rochedo que não represente alguma criatura que
permanecer em sua maturidade, em sua força e em sua saúde, alguma vez viveu ali e realizou coisas grandiosas. Às caracte-
e quando mostra os primeiros sinais de velhice, cabelos brancos rísticas externas e monumentais da paisagem, que permanecem
ou decréscimo de sua força viril, freqüentemente é morto.
imóveis, acrescentam-se as pedras menores que as pessoas pos-
O que há de estático neste tipo humano, ao qual é proi-
suem e que são guardadas em lugares sagrados. Cada uma
bida a própria transformação, mesmo que dele emanem cons-
destas pedras é transmitida de uma geração a outra. Cada uma
tantemente ordens que modificam sem cessar todos os demais,
entrou na essência do poder, e a idéia que o homem moderno delas significa algo muito determinado: seu sentido ou sua
tem do poder foi determinada de forma decisiva por essa rea- lenda estão ligados a ela; ela é a expressão visível dessa lenda.
lidade. Aquele que não se transforma está fixo numa determi- Enquanto a pedra se mantiver igual, a lenda também não se
nada altura, num determinado lugar, precisamente delimitado modifica. Nesta concentração sobre o permanente da pedra, o
e invariável. Não deve descer de sua altura, não pode sair ao que também não nos é desconhecido, parece-me estar contido
encontro de ninguém, ele "nada se permite", mas pode fazer o mesmo desejo profundo, a mesma necessidade que conduzi-
com que outros subam, nomeando-os para este ou para aquele ram a todos os tipos de proibições de metamorfoses.
cargo. Pode transformar os demais erguendo-os ou rebaixan-
do-os. O que não pode acontecer com ele, ele pode fazer aos
outros. Carente de metamorfoses, ele transforma os demais Escravidão
segundo os seus caprichos.
Esta enumeração rápida e fugaz de algumas formas de O escravo é propriedade à maneira de um animal e não à ma-
proibições de metamorfoses, que ainda deverá ser mais apro- neira de uma coisa inanimada. Sua liberdade de movimento
fundada, levanta a pergunta do que é que se pretende real- lembra a de um animal que tem permissão para pastar e para
mente por esta proibição, quais são os motivos pelos quais fundar algo semelhante a uma família.
sempre se torna a recorrer a ela, qual é a necessidade profunda O caráter propriamente dito da coisa é sua impenetrabili-
que impele os homens a impô-la a si mesmos e aos seus seme- dade. Ela pode ser golpeada e empurrada mas não pode arma-
lhantes. Precisamos nos aproximar desta questão com o máxi- zenar ordens. A definição jurídica do escravo como coisa e
mo de cautela. propriedade é portanto enganadora. Ele é animal e propriedade.
Parece que foi justamente o talento do homem para a Ë melhor comparar o escravo isolado com um cachorro. O cão
metamorfose, a fluidez crescente de sua natureza, que o deixou cativo foi separado do seu bando, foi singularizado. Ele se en-
intranqüilo e fez com que ele apelasse para barreiras sólidas e contra sob as ordens do seu dono. Abandona suas próprias
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iniciativas à medida que elas se opõem a estas ordens, e em
troca disso é alimentado pelo seu dono.
Os alimentos e as ordens têm, portanto, para o cão como
para o escravo, uma só fonte: o dono. E neste sentido sua
comparação com o estado das crianças não é totalmente inade-
quada. Mas o que os distingue essencialmente destas está re-
lacionado com a economia da metamorfose. A criança se exer-
cita em todas as metamorfoses de que poderia vir a necessitar
mais tarde. Seus pais a ajudam em seus exercícios e a estimu- ASPECTOS DO PODER
lam a renovar seus jogos. A criança cresce em direções múlti-
plas e, quando consegue dominar suas metamorfoses, como re-
compensa é recebida num nível superior.
Entre os escravos ocorre o contrário. Assim como o dono
não permite que seu cão cace o que quiser, restringindo o
âmbito dessa caça de acordo com sua vontade superior, assim
também não permite ao escravo sucessivas metamorfoses. O
escravo não deve fazer isto, não deve fazer aquilo; determinadas
ocupações, porém, devem ser repetidas e, quanto mais monó-
tonas elas forem, tanto mais o dono insistirá em que sejam
realizadas. A divisão de trabalho não é perigosa para a econo-
mia da metamorfose do homem enquanto ele possa executar
diversas ocupações. Porém se for restrito a uma única ocupação,
tendo de extrair dela o máximo no menor espaço de tempo
possível, ou seja, tendo de ser produtivo, ele se transforma na-
quilo que com toda a propriedade merece o nome de escravo.
Desde o começo devem ter existido dois tipos muito dis-
tintos de escravos: uns isolados, sozinhos, presos como cães
domésticos ao seu dono, outros juntos como manadas no cam-
po. Estas manadas devem ser consideradas como o tipo de
escravidão mais antigo.
O desejo de transformar homens em animais é o impulso
mais potente da escravidão. Não se pode superestimar a ener-
gia deste desejo, nem tampouco a do oposto: converter animais
em seres humanos. A este último desejo devem sua existência
grandiosas criações espirituais, como a doutrina da metempsi-
cose e o darwinismo, e também certas diversões populares,
como a exibição de animais amestrados.
Quando os homens conseguiram reunir tantos escravos
como animais em manadas, estavam lançadas as bases do Esta-
do e do uso e abuso do poder; e não há dúvida de que o
desejo de manter o povo inteiro como escravo ou como gado
torna-se mais forte no governante à medida que seu povo é
formado por um maior número de pessoas.
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Ar posições do homem: o que elas contêm de poder
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completo de artilharia de campo. Ele se ofereceu para trans- estivesse livre e realmente tivesse dinheiro, ele compraria
ferir a clínica para um lugar mais elevado, no alto de uma as essas coisas. Não se pode dizer porém que ele as acumu-
montanha".
jria. Sem dúvida ele lidaria com essas coisas com tanta pro-
Vamos agora estabelecer algo semelhante a uma ordem digalidade como com o dinheiro; ele as presentearia a todos os
provisória nesta confusão colorida. Por um lado existe o que
tipos de pessoas. A conservação lhe interessa tão pouco quanto
poderia ser chamado de tendência à altura: ele quer erguer a posse. Ele vê as coisas que quer comprar como montes diante
uma catedral que supere em altura a de Colônia, e quer tam- de si, mas apenas enquanto ele não as possui. A fluidez da
bém transferir a clínica para o topo de uma montanha. Esta propriedade lhe importa muito mais do que a própria proprie-
altura que ele procura também o beneficia. Transposta para dade. Seu gesto, que parece ser duplo, no fundo é único:
as circunstâncias de hierarquia humana, isto se expressa na trata-se de recolher e de jogar de mãos cheias. É um gesto de
nobreza do seu avô; ele mesmo é um conde; na hierarquia grandeza.
militar é um general. O Kaiser se interessa por ele e está Passemos agora a um segundo caso. Díz respeito a outro
inclinado a conceder-lhe condecorações; ele presenteia o Kaiser comerciante, aliás da mesma idade, cuja forma de paralisia é
com todo um regimento. Nisto tudo está implícito que ele
muito mais agitada. Com ele tudo também começou com gran-
quer chegar a ser ainda mais elevado que o próprio Kaiser. des projetos. De repente, sem ter meios para isso, resolveu
O mesmo impulso também está presente na esfera espi- comprar um estabelecimento de banhos por 35.000 marcos e
ritual: como gênio fala todos os idiomas do mundo, como se encomendou 14.000 marcos de champanha e 16.000 marcos
os idiomas fossem uma espécie de súditos do gênio; e os poetas de vinho branco para instalar um restaurante. Na clínica ele
mais famosos que ele conhece — Goethe, Schiller e Heine — fala sem cessar:
serão superados por ele. Tem-se a impressão de que nesta ten- "Ele quer se tornar maior e pesar 200 kg; manda que
dência à altura não lhe importa permanecer lá em cima, mas lhe coloquem barras de ferro dentro dos braços e carrega con-
sim chegar rapidamente lá em cima. Muitas vezes é preciso decorações que pesam 100 kg; mantém relações com cinqüenta
subir depressa; toda oportunidade é apropriada para isso. negras que ele produz com uma máquina de ferro e terá para
Mostra-se que o que até então era considerado como o mais sempre quarenta e dois anos de idade; casa-se com uma condes-
alto, é fácil de ser superado. Estabelecem-se novos recordes de sa de dezesseis anos que tem uma fortuna de 600 milhões e que
altura. Não se pode ignorar a suspeita de que nestes recordes obteve do papa a Rosa da Virtude. Possui cavalos que não
de altura se trata propriamente de recordes de crescimento. comem aveia, além de cem palácios de ouro com cisnes e
Uma segunda tendência, igualmente patente, é a da aqui- baleias do material com que são feitas as cotas de malha à
sição. Fala-se de uma fábrica de papel e de um comércio de prova de balas; fez grandes invenções; construiu um palácio
madeiras, de uma grande horticultura, de vinhedos e cavalos. de 100 milhões para o Kaiser, que ele trata por tu; recebeu
Mas a maneira com a qual é recebida a sugestão de uma criação cento e vinte e quatro condecorações do arquiduque e pre-
de aves revela que a aquisição tem características bastante senteia qualquer pobre diabo com meio milhão. Junto a isto
arcaicas. Trata-se de uma multiplicação de todos os tipos de existem idéias de perseguição. Já tentaram assassiná-lo cinco
coisas, principalmente das coisas vivas que gostam de se mul- vezes; todas as noites chupam-lhe dois baldes de sangue do
tiplicar. Perus, galinhas-d'angola, pavões, pombas, gansos, traseiro; por este motivo mandará decapitar os enfermeiros,
faisões — tudo isto é enumerado separadamente, como espé- deixá-los-á serem estraçalhados por cães, irá construir uma
cie, e em cada um dos casos está inerente a idéia de que através guilhotina a vapor."
da criação a espécie pode multiplicar-se de forma incomensu- Neste caso tudo é muito mais cru e mais nítido; trata-se
rável. A aquisição neste caso é o que era originariamente: uma da nudez do crescimento, do próprio crescimento que pode
influência sobre as massas naturais para que elas se multipli- ser medido pelo seu peso de 200 kg. Trata-se de força; ele
quem, o que posteriormente acaba nos beneficiando. manda colocar barras de ferro nos seus braços. Trata-se da
Em terceiro lugar existe uma tendência à dilapidação, ao mais potente e indestrutível distinção: condecorações de ferro
esbanjamento. O doente encomenda tudo o que é oferecido COM 100 kg de peso; e ele é suficientemente forte para poder
nos anúncios dos jornais: alimentos, mansões, roupas, móveis. carregá-las. Trata-se de potência e de paralisação do tempo:
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para suas cinqüenta negras ele terá sempre quarenta e dois dicional qualidade dos reis que tão bem conhecemos pelos
anos. A mais virtuosa e rica, a mais jovem das noivas é acei-
contos e pela história: a prodigalidade. De um rei negro da
tável para ele. Para seus cavalos a aveia não é suficiente. Os África Ocidental do séc. XIV, conta-se que numa peregrinação
cisnes nos seus cem palácios de ouro parecem ser também
mulheres e, de qualquer forma, são um contraste com as suas a Meca comprou toda a cidade do Cairo, proeza que nunca
foi esquecida. A ostentação do adquirir ainda hoje está ampla-
negras; as baleias ele também as possuí por serem as maiores mente difundida, não menos do que a ostentação do esbanjar.
criaturas existentes. Ele também se preocupa com sua invul-
Aos tão questionados reis do dinheiro dos nossos tempos, de
nerabilidade. Fala — se bem que em relação às baleias — de
todas as manifestações de grandeza nada mais lhes é realmente
cotas de malha à prova de balas, mas fala muito também de permitido além da exibição gigantesca de suas doações públi-
metais em geral. Cem milhões, sobre os quais domina, custa
cas. Nosso doente esbanja palácios de 100 milhões e encontra
o palácio para o Kaiser, e graças a estes 100 milhões eles se
tratam por tu. Pobres diabos existem aos milhões, e cada um no Kaiser um cliente interessado.
Suas idéias de grandeza certamente se modificam muito,
é como que uma metade; provavelmente é isto que o leva a
mas não se tem a impressão de que ele se transforme por causa
presenteá-los com meio milhão cada um. Em sua elevada po-
delas. Ele continua sempre igual, mesmo quando pesa 200 kg,
sição, ele está exposto naturalmente a todos os tipos de per-
quando se casa com uma virtuosa condessa de dezesseis anos
seguição. Uma única tentativa de assassinato não pode ser o
ou quando trata o Kaiser por tu. Pelo contrário, tudo o que
suficiente para uma personalidade tão importante. Está em seu
se aproxima dele de fora para dentro é utilizado para ele
direito decapitar os enfermeiros que chupam seu sangue (por
mesmo. Ele é o ponto fixo e central do universo; ele o con-
trás, para expressar a baixa posição deles) e mandar que sejam
quista comendo e crescendo, mas sem jamais se transformar
despedaçados por cães. Porém, mais rápida do que a antiquada
em outra coisa. O aspecto descontínuo de suas idéias lhe for-
malta de cães é a guilhotina a vapor, que ele constrói para
nece alimento; a variedade e a alternância desses alimentos
suas execuções de massa.
certamente lhe são importantes, pois ele quer crescer de todas
Quanto mais cara é alguma coisa, quanto mais elevado
as maneiras imagináveis, mas tudo não passa de uma diferença
seu preço, quanto mais se fala de milhares e milhões, tanto
mais ele se sente atraído por essa coisa. O dinheiro volta a de alimentos. Seu colorido engana; trata-se do colorido do ape-
ter o seu antigo caráter de massa. Ele aumenta de uma só vez tite e nada mais.
e com a máxima aceleração, chega-se rapidamente ao milhão; A multiplicidade de suas idéias de grandeza somente é
uma vez alcançado este nível, os milhões passam a desempe- possível porque nenhuma se detém. Basta que uma destas
nhar o papel principal. O significado da palavra possui algo idéias surja para ser realizada. É natural mudar de meta, quan-
de brilhante, de mutável, ela se refere tanto aos homens como do as metas são conseguidas tão rapidamente. Como porém se
às unidades monetárias. A propriedade mais importante da explica que o doente não sinta resistência alguma em relação
massa, sua tendência para o crescimento, foi comunicada tam- às suas idéias? Qualquer coisa que uma palavra contenha no
bém ao dinheiro. O grande dispõe a seu bel prazer de milhões. sentido de poder e riqueza, ou de possibilidade de expansão
própria, basta que lhe seja lançada e ele acredita já ter alcan-
Como no caso anterior, aquisição e esbanjamento são o
çado todo o seu conteúdo. Esta facilidade parece estar rela-
aspecto duplo de um único movimento; comprar e presentear
cionada com o fato de ele sentir sempre a massa ao seu lado.
são, como todo o resto, apenas meios para a sua expansão.
Em cada um dos seus disfarces a massa existe para ele, quer
Poder-se-ia designar isto, para fazer diferença com relação à
se trate dos 600 milhões do dote, dos cem palácios de ouro ou
tendência para as alturas, como um crescimento em extensão.
das cinqüenta negras que ele produz com uma máquina de
Para ele não existem diferenças entre comprar e presentear;
ferro. Mesmo quando alguma coisa lhe é desagradável, como
com seu dinheiro em massa ele recobre os objetos até incluí-los os enfermeiros, logo ele tem à disposição uma malta de cães
em si mesmo; com o dinheiro e os objetos ele recobre os que, a uma ordem sua, se lançam sobre eles para despedaçá-los.
homens, até conquistá-los para si. Mas quando pensa em decapitações, inventa imediatamente
De forma ingênua, e justamente por isso de forma espe- uma guilhotina a vapor que se encarrega disso de maneira ma-
cialmente convincente, voltamos a encontrar aqui aquela tra- ciça. A massa sempre está atrás dele, nunca contra ele, e se
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alguma vez, excepcionalmente, ela é contra ele, então essa
massa é formada por decapitados.
No caso anterior vimos como todos os empreendimentos
frutificavam para o doente, principalmente as iniciativas agrí-
colas. Todos os tipos de aves esperavam apenas pela oportu-
nidade de se multiplicarem para ele; e quando ele queria
favorecer a biblioteca da instituição, apareciam imediatamente
diante dele mil volumes. Para comprar e presentear, ambos
têm à sua disposição todos os milhares e milhões imagináveis. PODERIO E PARANÓIA
É importante chamar a atenção para este comportamento
positivo da massa em relação ao paralítico com idéias de gran-
deza. A massa nunca se opõe a ele; ela é a matéria dócil pro-
priamente dita para os seus planos, e qualquer coisa que passa
pela cabeça dele é realizada pela massa. Ele jamais seria capaz
de querer demais, porque o crescimento dela é tão ilimitado
quanto o seu. Ela é de uma lealdade incondicional para com
ele; de uma lealdade que nenhum governante jamais conheceu
por parte dos seus súditos. Veremos mais tarde que a massa
no paranóico tem nuanças muito diferentes, ou seja, caracte-
rísticas de hostilidade. Por este motivo as idéias de grandeza
entre os paranóicos são muito mais polêmicas e mostram uma
tendência para se tornarem cada vez mais rígidas. Quando a
massa de tendências hostis se mostra mais forte, estas idéias
se transformam em idéias de perseguição.
Resumindo o que aprendemos pela análise das idéias de
grandeza dos paralíticos, podemos concluir que se trata de
continuar crescendo sempre e de voltar a crescer em duas
direções; uma é a direção da própria pessoa: ela quer ficar
maior e mais pesada fisicamente e não pode dar-se por satis-
feita com o término do crescimento físico. Todas as espécies
de força que fazem parte de sua individualidade devem crescer
com ela. A segunda direção é a dos milhões, à qual pode per-
tencer tudo o que tenha uma tendência para multiplicar-se
repentinamente — como a própria massa. Estes milhões fluem
pelas mãos do grande, em todas as direções, segundo seu de-
sejo e vontade, obedecendo apenas a ele.
Na grandeza com a qual os homens sonham, alia-se o sen-
timento de crescimento biológico individual com o sentimento
de crescimento brusco, que caracteriza a massa. A massa, neste
caso, é o fator subordinado, sua índole não conta, não tem
importância, e cada um dos seus substitutos pode servir para
um mesmo fim.
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Reis africanos
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jado. Entrou em negociações com ele; embaixadas iam e vinham. • neiros lhe sejam apresentados diariamente: como candi-
Nas cartas enviadas ao califa, ele se entregava a lisonjas tão mos à execução, eles são sua propriedade mais preciosa. No
Prisi°
excessivas que o historiador Barani, que já devia estar acostu- decorrer do seu governo de vinte e seis anos, os montes de
mado a muitas coisas, não se atreveu a repeti-las. Muhammad, cadáveres se espalham por todas as províncias de seu império.
juntamente com seus mais elevados dignitários e teólogos, diri- Epidemias e surtos de fome aparecem para ajudá-lo na tarefa
giu-se para as portas da cidade a fim de receber o emissário de matar. Ele se irrita com a inevitável diminuição dos impos-
que o califa lhe tinha enviado; depois o escoltou descalço tos . Mas, enquanto aumenta o número de suas vítimas, nada
durante um certo trecho. Ordenou que seu nome fosse reti- consegue abalar seriamente sua autoconsciência.
rado de todas as moedas e substituído pelo nome do califa. Para manter concentrada a energia de suas ordens, que
Nas orações de sexta-feira e dos dias festivos, o nome do califa nada mais são senão sentenças de morte, procura uma instân-
era citado. Mas Muhammad não ficou satisfeito com isso. cia suprema que lhe assegure isso. Deus, em quem acredita
Todos os reis anteriores, que não tinham sido confirmados como todo maometano piedoso, não lhe é suficiente. Procura
pelos califas, foram suprimidos da oração e seus governos fo- sua investidura por parte do representante legal de Deus.
ram declarados nulos a posteriori. Sobre os edifícios mais altos Muhammad Tughlak foi defendido pelos historiadores mo-
foi inscrito o nome do califa; nenhum outro nome podia apare- dernos da índia. O poder jamais careceu de quem lhe fizesse
cer junto dele. Num diploma solene, que após uma correspon- elogios. Os historiadores, profissionalmente possuídos pelo po-
dência de muitos anos chegou do Egito, Muhammad foi no- der, costumam justificar tudo pela época, atrás da qual, como
meado com todas as formalidades representante do califa para conhecedores, eles podem ocultar-se com facilidade, ou pela
a índia. Este documento causou tamanha felicidade a Muham- necessidade, que nas mãos deles assume a forma que lhes é
mad que ele ordenou aos poetas de sua corte que o traduzissem mais conveniente.
em versos artificiosos. Interpretações deste tipo também valem para casos que
De resto ele permaneceu o mesmo até o final. Sua seve- nos são bem mais próximos do que o de Muhammad Tughlak.
ridade crescia com seus fracassos. Ele não pereceu nas mãos Assim, pode ser de utilidade preventiva descobrir os processos
de um assassino. Após vinte e seis anos de governo, morreu de poder num homem que, para sorte do mundo, só os possuía
vitimado por uma febre contraída numa de suas expedições em seus delírios.
punitivas.
Muhammad Tughlak é o caso mais puro de um detentor
de poder paranóico. Os elementos exóticos de sua existência O caso Schreber. Primeira parte
fazem com que ela se torne especialmente instrutiva para um
europeu. Nele tudo se destaca, tudo sobressai. A coerência Seria difícil imaginar um documento mais abundante e mais
estrita de sua natureza é evidente, fecundo do que as Memórias de Schreber, antigo presidente do
Quatro massas atuam sobre seu espírito: seu exército, Senado de Dresden, Ele era um homem culto e inteligente;
seu dinheiro, seus -adáveres, e a sua corte, da qual depende a sua profissão o preparara para fazer formulações claras. Tinha
capital. Ele as manipula incessantemente. Uma aumenta às passado sete anos como paranóico internado em várias clínicas,
custas da outra. Com a ruína dos exércitos enormes, esgota-se quando tomou a decisão de colocar por escrito com todos os
o tesouro. Manda para o exílio todos os habitantes de sua detalhes o que ao mundo pareceria o seu sistema de delírio.
capital. Nesta grande cidade ele permanece sozinho e satisfeito. Suas Memórias de Um Neuropata transformaram-se num livro.
Do terraço de seu palácio contempla a metrópole vazia: ele Ele estava tão firmemente convencido da exatidão e do signi-
teve oportunidade para gozar plenamente a felicidade do so- ficado de sua religião autocriada que assim que recebeu alta
brevivente. mandou publicar seu texto. Seus recursos lingüísticos parecem
Qualquer que seja a ação que empreenda, ele sabe sem- feitos sob medida para representar tão peculiar formação de
pre conservar uma de suas massas. Não deixa de matar em idéias ; graças a eles apreende o estritamente necessário para
circunstância alguma. Uma instituição permanente é o monte que nada de essencial permaneça obscuro. Defende uma causa
de cadáveres diante do seu palácio. Faz com que todos os e, felizmente, não é poeta: desta maneira é possível acompa-
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nhá-lo por toda parte sem que haja necessidade de proteger-se as outras pessoas. Ele deseja estar contido nela, fixado por
dele. ela A imutabilidade e a duração das constelações, como são
Eu gostaria de destacar algumas das características mais con hecidas há milênios, podem também ter exercido uma atra-
notórias de seu sistema da forma mais breve possível. Na ção especial sobre ele. Uma "localização" entre elas era uma
minha opinião este caso permite uma grande compreensão da localização para a eternidade.
natureza da paranóia. Se outros que examinarem este mesmo Este sentimento de posição do paranóico é de significado
documento chegarem a outros resultados, isto servirá apenas ssencial: trata-se sempre de defender e de assegurar uma po-
e
como prova da riqueza destas Memórias. sição exaltada. Também no caso do poderoso, considerada a
A pretensão de Schreber torna-se mais nítida lá onde ele natureza do poder, não pode ser diferente: o sentimento sub-
aparentemente se limita. "Eu também sou apenas um homem", jetivo que ele tem em relação à sua posição em nada se dife-
diz ele no início, "e por isto também estou sujeito aos limites rencia do sentimento do paranóico. Quem pode rodeia-se de
do conhecimento humano", Porém não existe a menor dúvida soldados e se encerra em fortalezas. Schreber, que se sente
para ele de que conseguiu aproximar-se infinitamente mais da ameaçado de muitas maneiras, fixa-se nas estrelas. Pois, con-
verdade do que todos os demais homens. Depois, ele passa forme se verá, o mundo está transtornado. Para tornar com-
imediatamente para a eternidade. O pensamento da eternidade preensíveis estes perigos, é preciso dizer alguma coisa a res-
permeia todo o seu livro, significando mais para ele do que peito da população do mundo dele.
para o homem comum. Ele a entende e a encara não apenas Schreber acha que a alma humana está contida nos nervos
como algo que lhe corresponde, mas também que lhe pertence. do corpo. Enquanto o homem vive, ele é corpo e alma simul-
Ele se move em gigantescos espaços de tempo: suas experiên- taneamente. Porém, quando morre, os nervos continuam exis-
cias se estendem por séculos. Ele tem a impressão de que "noi• tindo como alma. Deus é sempre apenas nervos, nunca corpo.
tes isoladas tenham durado séculos, de maneira que dentro É semelhante, portanto, à alma humana, mas infinitamente su-
deste espaço de tempo poderiam ter ocorrido as mais profun- perior a ela porque o número de nervos de Deus é ilimitado e
das modificações da humanidade, da própria Terra, e de todo eles são eternos. Os nervos de Deus têm a propriedade de
o sistema solar". No espaço cósmico ele se sente tão em casa transformar-se em raios, como os do Sol e das estrelas, por
como na eternidade. Exercem especial fascínio sobre ele algu- exemplo. Deus gosta do mundo que criou; todavia Ele não
mas constelações e estrelas isoladas: Cassiopéia, Vega, Capela, intervém diretamente em seus destinos. Depois da criação Ele
as Plêiades. Fala a respeito delas como se fossem paradas de se retirou do mundo, e na maior parte dos casos permanece
ônibus logo depois da próxima esquina. Todavia ele tem plena à distância. É que Deus não pode aproximar-se demais dos
consciência da distância real que as separa da Terra. Possui homens, pois os nervos dos vivos têm uma tal força de atra-
conhecimentos astronômicos e não diminui o mundo. Pelo con- ção que Ele não poderia mais desprender-se deles e se veria
trário, tem-se a impressão de que os corpos celestes o atraem ameaçado em sua própria existência. Por isso Ele está sempre
justamente por estarem tão distantes. A grandeza do espaço em guarda contra os vivos e, se alguma vez se deixa atrair por
o seduz; quer ser tão vasto quanto este e estender-se inteira- uma oração intensa ou por um poeta, logo se retira da maneira
mente sobre ele. mais rápida possível, antes que seja demasiado tarde.
Mas não se tem a impressão de que ele se importe com o "Um relacionamento regular de Deus com as almas huma-
processo de crescimento; é mais um estender-se do que um nas somente ocorre após a morte. Deus pode aproximar-se
crescer; ele quer a amplidão para fortalecer-se e para manter-se dos cadáveres sem perigo, para retirar seus nervos do corpo e
nela. A posição como tal é o que lhe importa e ela nunca pode para despertá-los para uma nova vida celestial." Mas antes os
ser suficientemente grande e eterna. O princípio supremo que nervos humanos precisam ser revistos e purificados para este
vale para ele é a ordem cósmica. Ele a coloca acima de Deus; fim. Deus somente podia usar nervos humanos puros, pois era
quando Deus tenta agir contra ela, Ele se vê em dificuldades. destino deles serem integrados nele e converter-se por fim "em
Schreber fala freqüentemente do seu próprio corpo humano vestíbulos do céu, em partes constitutivas dele próprio". Um
como se se tratasse de um corpo celeste. A ordem do sistema complicado processo de purificação era portanto necessário,
planetário o mantém tão entretido como a ordem familiar entre- e nem mesmo Schreber é capaz de descrevê-lo com detalhes.
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MU.
Depois que as almas tinham passado por este processo e subido Flechsig. Depois de uni ano recebeu alta e pôde retomar suas
ao céu, esqueciam aos poucos quem tinham sido na terra; mas atividades profissionais. Na ocasião Schreber ficara muito agra-
nem todas se esqueciam com a mesma rapidez. Homens emi- decido ao psiquiatra; mais agradecida ainda ficou sua esposa
nentes, como Goethe ou Bismarck, conservavam sua auto- "que no Prof. Flechsig venerava francamente aquele que lhe
consciência talvez durante séculos; mas ninguém, nem mesmo tinha devolvido o marido, e que por este motivo, durante anos,
as pessoas mais importantes, a conservava para sempre. Isto manteve uma fotografia dele sobre sua mesa de trabalho".
porque finalmente "era destino de todas as almas amalgama- Schreber passou então oito anos sadios, felizes e de muito
rem-se em unidades superiores, fundidas com outras almas, e trabalho ao lado da mulher. Durante todo este tempo teve
com isto sentirem-se apenas como partes constitutivas de Deus, muitas oportunidades de ver o retrato de Flechsig sobre a mesa
ou seja, como 'vestíbulos do céu' ". de trabalho de sua esposa, e isto deve tê-lo preocupado muito
A fusão das almas numa massa é aqui a suprema bem- sem que soubesse bem por quê. Quando tornou a adoecer,
aventurança. Vêm-nos à lembrança algumas representações da procurou-se — compreensivelmente — o mesmo Flechsig, que
iconografia cristã: anjos e santos, todos apertados lado a lado já tinha obtido tão bons resultados anteriormente; percebeu-
feito nuvens, às vezes como nuvens de verdade, nas quais ape- se então que o personagem do psiquiatra tinha aumentado no
nas olhando-se com muita atenção percebem-se as cabeças indi- espírito de Schreber até alcançar dimensões muito perigosas.
viduais. Esta imagem é tão difundida que já não pensamos em É possível que Schreber, que como juiz possuía uma certa
seu significado. Expressa que a bem-aventurança não consiste autoridade, tivesse nutrido um rancor secreto em relação a
unicamente na proximidade de Deus, mas também na maneira ele por ter estado durante um ano inteiro em seu poder. Con-
compacta de se estar junto dos que nos são iguais. Com a de- venceu-se de que Flechsig praticava um assassinato ou se-
signação "vestíbulos do céu" realiza-se a tentativa de tornar qüestro de sua alma. A idéia de que era possível apoderar-se
ainda mais densa a consistência desta massa de almas bem- da alma de outro era antiguíssima e muito difundida. Era desta
aventuradas. Realmente elas foram amalgamadas em "unida- maneira que uma pessoa conseguia apropriar-se das forças es-
des superiores". pirituais do afetado ou conseguia uma vida mais longa para si
Deus não entende muito a respeito dos homens vivos. mesmo. Por ambição ou por desejo de dominar, Flechsig teria
Em partes posteriores das Memórias Schreber várias vezes o feito uma conspiração com Deus e procurado convencê-lo de
repreende por sua incapacidade de compreender o homem vivo, que não podia realmente depender da alma de um Schreber.
e particularmente por não ser capaz de julgar corretamente É possível que se tenha tratado inclusive de uma rivalidade
sua atividade pensante. Ele fala da cegueira de Deus, que teria mais antiga entre as famílias Schreber e Flechsig. Um dos
como base sua ignorância a respeito da natureza humana. E Flechsig poderia ter tido repentinamente a sensação de que
isto porque Ele estaria acostumado a lidar apenas com cadá- um membro da família Schreber conseguira uma posição me-
veres e a evitar uma aproximação excessiva dos seres humanos lhor do que a sua. Por isto instigou uma conspiração com ele-
vivos. O eterno amor divino, no fundo, existiria apenas em mentos do reino de Deus pretendendo, por exemplo, que aos
relação à criação na sua totalidade. Deus não é um ser com a Schreber fossem negadas determinadas profissões que pode-
perfeição absoluta que lhe é atribuída pela maior parte das riam levar a relações mais íntimas com Deus. Uma destas pro-
religiões. Caso contrário Ele não se teria deixado induzir à fissões era a de neurologista; considerando-se o significado
conspiração contra os inocentes, que é o núcleo propriamente dos nervos como substância formadora de Deus e de todas as
dito da enfermidade de Schreber. Porque na "maravilhosa demais almas, era evidente quanto poder se encontrava nas
construção" do mundo, tal como acabou de ser descrita, apa- mãos de um neurologista. Assim, nenhum Schreber era psi-
receu repentinamente uma fissura, Sobre o reino de Deus foi quiatra, mas sim um Flechsig; o caminho para o seqüestro de
declarada uma grave crise relacionada com o destino pessoal almas estava aberto para os conspiradores; Schreber encon-
de Schreber. trava-se em poder do assassino de sua alma.
Trata-se nada menos que de um caso de assassinato de Talvez seja útil referir-nos aqui ao significado que as
alma. Schreber já tinha estado doente uma vez, e se havia con- Conspirações têm para o paranóico. As conspirações ou con-
fiado então aos cuidados de um psiquiatra de Leipzig, o Prof. jurações estão para ele na ordem do dia; é quase impossível
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não se encontrar nele alguma coisa que não se pareça com isso, de nomes que mantinham relações comigo como almas. Todas
ainda que remotamente. O paranóico se sente cercado. Seu estas almas falavam comigo como 'vozes', cada uma delas sem
inimigo principal jamais se contentará com atacá-lo sozinho, nada saber a respeito da presença das outras. Todos poderão
Sempre procurará atiçar contra ele uma malta odiosa, soltando-a facilmente imaginar o barulho desesperador que se formou por
no momento exato. Os membros da malta a princípio se man-
causa disto em minha cabeça . . ,
têm ocultos, podem estar por toda parte. Fingem ser inofensi- "Como conseqüência do meu nervosismo cada vez maior e
vos e inocentes, como se não soubessem o que estão esprei- da força de atração aumentada ainda mais por este motivo, um
tando. Mas a penetrante força mental do paranóico consegue número cada vez maior de almas mortas se sentia atraído por
desmascará-los. Onde quer que ele coloque a mão, sempre con- mim, para logo em seguida dissipar-se sobre minha cabeça ou
segue encontrar um conjurado. Sempre, mesmo que não ladre, dentro do meu corpo. Em numerosas ocasiões o processo termi-
a malta está presente; sua disposição é inalterável. Uma vez nava com as almas, como os chamados 'homenzinhos' — minús-
conquistados pelo inimigo, continuam sendo o que são, seus culas figuras de forma humana mas medindo apenas alguns milí-
cães fielmente devotados. Ele pode tratá-los como quiser. Man- metros —, tendo uma breve existência sobre minha cabeça, e
tém-nos sujeitos à corrente de sua maldade, mesmo à distância. logo em seguida desaparecendo completamente... Em numero-
Dirige-os como bem entende, e de preferência escolhe os que sas ocasiões eles me diziam os nomes das estrelas ou das cons-
atacam simultaneamente por todos os lados e com grande supe- telações estelares de onde procediam ou `das quais depen-
rioridade em relação ao afetado. diam'... Havia noites em que as almas gotejavam como 'ho-
Uma vez montada esta conspiração contra Schreber, como menzinhos' às centenas ou aos milhares sobre minha cabeça.
se desenvolveu concretamente o combate contra ele? Quais Eu sempre procurava impedir a aproximação delas porque to-
eram os objetivos dos conjurados e que medidas foram adota- das as vezes, depois dos acontecimentos anteriores, eu tinha
das por eles para consegui-los? O objetivo mais importante — a consciência do aumento da incomensurável força de atração
embora não o único —, do qual não quiseram abrir mão du- dos meus nervos, enquanto as almas sempre consideravam
rante anos, era a destruição do seu intelecto. Queriam trans- totalmente incrível uma força de atração tão ameaçadora.
formá-lo num imbecil. A enfermidade dos seus nervos deveria "No idioma das almas eu era chamado 'o visionário', ou
ser levada a um tal extremo que parecesse definitivamente seja, um homem que vê espíritos, que tem relações com espí-
incurável. O que poderia ferir mais profundamente um homem ritos ou com almas de pessoas mortas. De fato, desde que o
de sua mentalidade? Sua enfermidade começou com uma in- mundo é mundo, não deve ter existido um caso como o meu,
sônia angustiante. Qualquer coisa que se fizesse era inútil. em que um homem tenha entrado em relação constante não
Desde o começo, acredita Schreber, existiu a intenção de im-
apenas com almas singulares de mortos, mas com a totalidade
pedir que ele dormisse e de causar, mediante a insônia, seu das almas e com a onipotência do próprio Deus."
colapso espiritual. Para isso foram descarregados sobre ele O caráter de massa destes acontecimentos é evidente para
inúmeros raios. A princípio eles se originavam no Prof. Flechsig;
Schreber. O cosmos, até as estrelas mais remotas, está povoado
mas depois as almas dos defuntos que ainda não tinham fina- por almas de finados. Todas têm seu lugar determinado, onde
lizado seu processo de purificação, "almas provadas", como moram: alguma estrela bem conhecida. Repentinamente, de-
são chamadas por Schreber, em medida crescente começaram vido à sua enfermidade, ele passa a ser o ponto central. Ape-
a interessar-se também e penetraram nele como raios. O pró- sar de suas advertências, elas se apertam contra ele. Sua atra-
prio Deus participava deste influxo. Todos esses raios passaram ção se torna irresistível. Seria possível dizer que ele as reúne
então a falar com ele, mas de maneira imperceptível aos de- como massa em torno de si e, considerando-se que — como
mais. Era como uma espécie de oração que se recita em si- ele enfatiza - se trata da totalidade das almas, elas represen-
lêncio, sem pronunciar as palavras em voz alta. A penosa dife- tam a maior massa imaginável. Mas elas não permanecem
rença era que as palavras de uma oração assim dependem da simplesmente como massa reunidas em torno dele, como por
própria vontade, ao passo que os raios que lhe eram impostos exemplo, um "povo" em torno do seu führer. Pelo contrário,
de fora para dentro diziam o que eles queriam. com elas acontece imediatamente o que aos povos que se
"Eu poderia mencionar aqui centenas ou até milhares amontoam em torno dos seus líderes ocorre apenas no trans-
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correr dos anos: nele, elas se tornam cada vez menores. Assim foi mencionado, o sentimento do catastrófico que está
que elas o alcançam, começam a encolher a toda velocidade ní'-
inculado a tudo isso, uma ameaça à ordem universal que
até alcançarem o tamanho de alguns milímetros, e a verdadeira d'eriva justamente desta inesperada atração em rápido aumento.
relação entre eles aparece assim da maneira mais convincente : Nas Memórias existem numerosos testemunhos deste sen-
ele, em comparação com elas, é um gigante; elas, como cria- timento. As visões de fim do mundo de Schreber têm algo de
turas minúsculas, se agitam em torno dele. Mas isto também gra ndioso; citaremos aqui por enquanto uma passagem direta-
não lhe basta: o grande homem as devora. Literalmente elas mente vinculada à sua atração sobre as almas As almas, que
se incorporam a ele, para logo em seguida desaparecerem com- goteja m sobre ele em massa a partir das estrelas, colocam em
pletamente. Seu efeito sobre elas é demolidor. Ele as atrai e pe rigo, devido ao seu comportamento, os corpos celestes de
as reúne, ele as miniaturiza e as consome. Tudo o que elas onde se originam. Parece que as estrelas constam especifica-
eram favorece agora o seu próprio corpo. Não que elas te- mente destas almas; quando estas se afastam em grande quan-
nham vindo para lhe fazer algum bem. Sua intenção era espe- tidade, para chegar até onde Schreber se encontra, tudo se
cificamente hostil; inicialmente elas tinham sido enviadas para dissolve.
transtornar sua razão e para causar sua perdição. Mas foi jus- "De todas as partes chegavam notícias desastrosas, infor-
tamente diante deste perigo que ele cresceu. Agora que ele mando que agora também tinha sido abandonada esta ou aquela
sabe como domá-las, sente-se muito orgulhoso em relação ao estrela, esta ou aquela constelação. Dizia-se que também Vênus
seu grande poder de atração. estava inundada, ou que fora necessário desarticular todo o
primeira vista, Schreber, na esfera do seu delírio, pode- sistema solar, ou então que Cassiopéia — a constelação toda —
ria parecer um personagem dos tempos passados, quando teve de ser fundida num único sol, e que talvez apenas as
a crença nos espíritos era generalizada e as almas dos mortos Plêiades ainda poderiam ser salvas."
zumbiam como insetos em torno das orelhas dos vivos. É como A preocupação de Schreber pela duração dos corpos ce-
se ele exercesse a profissão de um xamã que conhece da maneira lestes era porém apenas um aspecto do seu estado de espírito
mais exata possível o mundo dos espíritos, que sabe colocar-se catastrófico. Muito mais significativo era outro fato, com o
em contato direto com eles e que os obriga a servir a todos os qual teve início sua enfermidade. Não se referia às almas dos
tipos de metas e objetivos humanos. Ele até gosta de ser mortos com as quais, como já sabemos, ele se encontrava em
chamado de "visionário". Mas o poder de um xamã está longe contato ininterrupto, mas sim aos seus semelhantes. Estes já
de chegar ao ponto do poder de Schreber. O xamã tem, às não existiam mais: toda a humanidade tinha sucumbido. Schre-
vezes, os espíritos dentro de si, mas eles não se dissolvem lá, ber se considerava o único real sobrevivente. Ele acreditava
eles sempre conservam sua existência separada, e é ponto que as poucas figuras humanas que ele continuava vendo —
pacífico que ele sempre tem de libertá-los. Dentro de Schre- seu médico, os enfermeiros do estabelecimento ou outros pa-
ber, no entanto, eles se amalgamam e desaparecem como se cientes, por exemplo — eram simples aparências. Eram "ho-
nunca tivessem existido por conta própria. Seu delírio, sob o mens rapidamente esboçados", que somente lhe eram simu-
disfarce de uma concepção antiquada do mundo, que pressupõe lados para deixá-lo confuso. Vinham como sombras ou como
a existência dos espíritos, é na realidade o modelo exato do imagens e se dissolviam outra vez; ele naturalmente não as
poder político, que se nutre da massa e que é composto por levava a sério. Todos os verdadeiros homens tinham sucum-
ela. Qualquer tentativa de análise conceituai do poder será bido. O único que continuava vivo era ele. Este fato não lhe
mais pobre do que a clareza da visão de Schreber. Todos os foi revelado por visões isoladas, não era substituído por opi-
elementos das circunstâncias reais estão nela: a intensa e con- niões opostas; ele esteve firmemente convencido disso durante
tínua atração sobre os indivíduos que irão se reunir numa anos. Todas as suas visões de fim do mundo estavam impreg-
massa, sua intenção duvidosa, sua domesticação, sua miniatu- nadas desta crença.
rização, o fato de se amalgamarem no poderoso que representa Ele achava possível que toda a instituição de Flechsig, e
o poder político em sua pessoa, em seu corpo, sua grandeza talvez a cidade de Leipzig com ela, tivesse sido "arrancada"
que desta maneira deve renovar-se interminavelmente, e, final- da Terra e transferida para qualquer outro corpo celeste. As
mente, um último e muito importante aspecto que até agora vozes que falavam com ele lhe perguntavam às vezes se Leipzig
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continuava de pé. Numa de suas visões foi conduzido num q uer ser o único ainda de pé, com vida, em meio a um gigan-
elevador para as profundezas da Terra, Desta maneira viveu tesco campo de cadáveres, e este campo de cadáveres inclui
todos os períodos geológicos, até que repentinamente se en- todos os demais seres humanos. Nisto ele não se mostra ape-
controu em um bosque de carvão-de-pedra. Abandonando tem- nas como paranóico; é a tendência mais profunda de todo
porariamente o veículo, perambulou como se estivesse num ce- poderoso "ideal" ser o último a permanecer com vida. O po-
mitério, cruzando os locais onde jazia a população de Leipzig, deroso envia os demais à morte para que ele mesmo seja per-
encontrando até mesmo o túmulo de sua própria esposa. Cabe doado pela morte: ele a desvia de si. A morte dos demais não
observar que sua esposa continuava viva e o visitou repetidas lhe é apenas indiferente; tudo o impele a provocá-la de ma-
vezes na instituição onde ele estava internado. neira maciça. Ele apela para este expediente radical princi-
Schreber imaginava de diversas maneiras como teria ocor- palmente quando seu domínio sobre os vivos é questionado.
rido o desaparecimento da humanidade. Pensava numa dimi- Quando ele se sente ameaçado, sua paixão de ver todos mor-
nuição do calor solar devido a um maior distanciamento do Sol, tos diante de si dificilmente será refreada por considerações
com o conseqüente congelamento generalizado. Pensava em racionais.
terremotos: comunicaram-lhe que o grande terremoto de Lis- poder-se-ia objetar que este enfoque "político" do caso
boa havia sido relacionado com o caso de um visionário, bas- Schreber é impróprio e um tanto fora de propósito, que suas
tante semelhante ao seu. A notícia da aparição de um mago, visões apocalípticas são de natureza religiosa; que ele não pre-
justamente o Prof. Flechsig, no mundo moderno, e o repentino tende conseguir domínio algum sobre os vivos; que o poder
desaparecimento de Schreber, uma personalidade bastante co- de um visionário, por sua própria natureza, é algo diferente.
nhecida em círculos amplos, teriam provocado pavor e espanto Uma vez que seu delírio tem início com a idéia de que todos
entre os homens, destruindo as bases da religião. Um nervosis- os homens estão mortos e já sucumbiram, dificilmente seria
mo e uma imoralidade generalizadas ter-se-iam expandido e possível atribuir-lhe algum interesse temporal.
epidemias devastadoras teriam irrompido sobre a humanidade. O erro desta objeção será demonstrado logo mais adiante.
Falava-se de lepra e de peste, duas enfermidades que pratica- Encontraremos em Schreber um sistema político que parece
mente não existiam mais na Europa. No seu próprio corpo aterradoramente familiar para nós. Mas, antes de mostrarmos
ele percebeu sintomas de peste, que aparecia sob diferentes isto, seria apropriado dizer algumas coisas a respeito da sua
formas. Havia a peste azul, a parda, a branca e a negra. concepção do governo divino.
Mas, enquanto os demais homens sucumbiam a todas estas Foi Deus mesmo, acha ele, "quem determinou a linha
terríveis epidemias, Schreber era curado graças aos raios be- normativa completa da política adotada contra mim ... Deus
néficos. Era necessário fazer uma distinção entre duas espécies estaria a qualquer momento em condições de aniquilar um
diferentes de raios: os raios "mutiladores" e os "benéficos". homem que lhe fosse incômodo, por meio de uma doença
Os primeiros estavam carregados de venenos de cadáveres e de mortal ou de um raio. Quando ocorria alguma colisão dos
outras matérias em estado de putrefação; introduziam um vírus interesses de Deus com os de homens isolados ou de grupos
no corpo ou provocavam outros efeitos destruidores dentro da humanidade, talvez até mesmo de toda a população de um
dele. Os raios "benéficos" ou puros, porém, remediavam os planeta, devia nascer em Deus, como em qualquer outro ser
danos causados pelos raios "mutiladores", animado, o instinto de autoconservação. Basta lembrar de
Não se tem a impressão de que estas catástrofes tenham Sodoma e Gonaorra ... Seria impensável que Deus negasse a
irrompido sobre a humanidade contra a vontade de Schreber. qualquer homem individual a medida de bem-aventurança que
Pelo contrário, ele parece sentir uma certa satisfação diante lhe corresponde, uma vez que toda a multiplicação dos 'vestí-
do fato de que as perseguições que lhe eram movidas pelo bulos do céu' servia exclusivamente para aumentar seu próprio
Prof. Flechsig tenham conduzido a conseqüências tão mons- poder e para reforçar as defesas contra os perigos resultantes
truosas. A humanidade inteira é castigada e exterminada por- da aproximação em relação à humanidade. Uma colisão entre os
que ousou ficar contra ele. Somente ele é protegido pelos raios interesses de Deus e os dos homens não podia ocorrer sob a
"benéficos" contra os efeitos das epidemias. Schreber resta condição prévia de um comportamento conforme a ordem do
como único sobrevivente porque ele próprio assim o quer. Ele universo dos homens". Que, apesar disso, tivesse ocorrido com
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ele tal colisão de interesses, era um caso único na história uni- leito por Deus, de cuja língua ele se servia preferencialmente.
versal; um caso que, sem dúvida, jamais voltaria a ocorrer. No decorrer da história, uns após os outros — como povos
Ele fala a respeito do "restabelecimento da autocracia de Deus mais eficientes no campo moral —, teriam sido eleitos por Deus
sobre o céu"; de uma "espécie de cooperativa federada da alma os antigos judeus, depois os persas antigos, depois os greco-
de Flechsig com partes de Deus", que dirigia sua vanguarda romanos, e finalmente os alemães.
hostil contra ele; a metamorfose da situação entre os partidos Este povo eleito, os alemães, naturalmente está ameaçado
criada desta forma teria se conservado no essencial até o dia por múltiplos perigos. Em primeiro lugar, pelas manobras dos
de hoje. Ele menciona "as forças colossais do lado da onipo- católicos. Recordem-se aquelas centenas ou até milhares de
tência de Deus" e a "resistência inútil" do seu lado. Expressa nomes que ele poderia citar de almas que, como raios, manti-
a suposição de "que a atribuição de poderes do Prof. Flechsig, nham relações com ele e que, todas elas, falavam com ele. Em
como administrador de uma província de Deus, deve ter se muitos dos portadores destes nomes achava-se em primeiro
estendido até a América". O mesmo pareceria ser válido tam- plano o interesse religioso. Especificamente, havia entre eles
bém em relação à Inglaterra. É mencionado um outro neuro- muitos católicos que esperavam um aumento do Catolicismo,
logista que "parecia ser uma espécie de administrador dos in- uma conversão ao Catolicismo, principalmente da Saxônia e de
teresses divinos para uma outra província de Deus, especifica- Leipzig; entre eles estavam o pároco St. de Leipzig, "quatorze
mente para os territórios eslavos da Áustria". Entre este outro católicos de Leipzig" (provavelmente alguma associação cató-
médico e o Prof. Flechsig tinha começado uma luta pela su- lica), o padre jesuíta S. de Dresden, os cardeais Rampolla,
premacia. Galimberti e Casati, e o próprio papa; finalmente numerosos
Destas citações, extraídas de diversas partes das Mernó monges e freiras; em determinada ocasião, entraram de uma
rias, resulta uma imagem extremamente clara de Deus; ele só vez duzentos e quarenta monges beneditinos, conduzidos por
nada mais é do que o detentor do poder. Seu reino tem pro- um padre "como almas na minha cabeça para encontrarem lá
víncias e partidos. Os interesses de Deus, como são designados dentro sua perdição". Entre as almas, porém, encontrava-se
de maneira concisa e cortante, tendem a um aumento do po- também um neurologista vienense, um judeu batizado e esla-
der. Este, e apenas este, é o motivo pelo qual ele não nega a vófilo, que por meio de Schreber pretendia eslavizar a Alema-
homem algum a medida de bem-aventurança que lhe corres- nha, e ao mesmo tempo estabelecer o domínio do Judaísmo.
ponde. Os homens incômodos são eliminados do caminho. A Como se vê, o catolicismo se apresenta aqui de maneira
impressão é de que este Deus está de guarda, como uma aranha, muito completa: aparecem não apenas simples crentes, que em
no centro da teia de sua política. Dali não é grande o salto para Leipzig se reúnem em associações ominosas, mas também toda
a política do próprio Schreber. a hierarquia eclesiástica. Menciona-se um padre jesuíta e com
Talvez seja importante informar que Schreber foi educa- isto se evoca todo o perigo vinculado ao nome dos jesuítas.
do na velha tradição política da Saxônia e que via com descon- Como supremos dignitários eclesiásticos aparecem três cardeais
fiança todos os esforços proselitistas católicos. Sua primeira com sonoros nomes italianos e o papa em pessoa. Monges e
declaração a respeito dos alemães vinculava-se à vitoriosa guer- freiras aparecem aos montes. Pululam como insetos no edifí-
ra de 1870-71. cio em que Schreber vive. Numa visão, que eu não citei, apare-
Ele recebera insinuações bastante corretas de que o rigo- ce-lhe a ala feminina da clínica neurológica da universidade
roso inverno de 1870-71 teria sido decidido por Deus para transformada num convento de freiras; outra vez, numa capela
inclinar a sorte da guerra para o lado dos alemães. Mas Deus católica. Nos aposentos situados debaixo do telhado do esta-
também tinha uma fraqueza pelo idioma dos alemães. Durante belecimento estão sentadas irmãs de caridade. O mais impres-
o período de purificação, as almas aprendem a "língua básica", sionante é a procissão dos duzentos e quarenta monges benedi-
falada pelo próprio Deus: um alemão arcaico, porém muito tinos conduzidos por um padre. Nenhuma forma de represen-
vigoroso. Isto não significava que a bem-aventurança estivesse tação é mais adequada ao Catolicismo do que a procissão. O
destinada apenas aos alemães. Mas, fosse como fosse, os ale- grupo fechado de monges representa, como cristal de massa,
mães seriam nos tempos modernos — desde a Reforma, tal- a totalidade dos católicos. A imagem da procissão incita nos
vez já desde os tempos das migrações dos povos — o povo espectadores a fé latente, e eles sentem repentinamente o de-
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sejo de agregar-se a ela. Assim, o cortejo aumenta pela adesão ecessário procurar desde já um último asilo junto aos
seria n
de todos aqueles na frente dos quais a procissão passa; na iov os não-arianos."
realidade este cortejo deveria tornar-se infinito. Engolindo toda r A "época sagrada" de Schreber cai no ano de 1894. Ele
esta procissão, Schreber simbolicamente dá o golpe de mise- tern uma tendência para indicar com exatidão lugares e datas.
ricórdia no Catolicismo. Para o "primeiro julgamento de Deus" ele fornece datas muito
Da agitada primeira época de sua enfermidade, que Schre- precisas. Seis anos mais tarde, em 1900, quando seu delírio
ber denomina época sagrada, destaca-se, pela sua intensidade, já tinha se decantado e fortalecido, ele começou a redação das
o período de uns quatorze dias, o período do primeiro julga- suas Memórias; em 1903, elas foram publicadas em forma de
mento de Deus. Trata-se de uma série de visões que se suce- livro. Não se pode negar que seu sistema político chegou a
deram dia e noite e que tinham como base uma "idéia geral obter grandes honras algumas décadas mais tarde. Numa versão
comum". O núcleo desta idéia era essencialmente político, mais brutal e menos "culta", ele se transformou no credo de
se bem que aguçado de forma messiânica. um grande povo. Sob a direção de um "príncipe mongol"
O conflito entre o Prof. Flechsig e Schreber levara a uma chegou à conquista do continente europeu e, por pouco, ao
crise perigosa para a existência do reino de Deus. Por este domínio do mundo inteiro. Com isto, as exigências de Schreber
motivo a povo alemão — em especial a Alemanha protestante foram reconhecidas a posteriori por seus desprevenidos discí-
— não podia mais manter-se na direção como povo eleito. pulos. De nós não se pode esperar a mesma coisa. No entanto,
Talvez até mesmo o povo alemão saísse de mãos vazias quando o fato incontestável de uma ampla coincidência dos dois siste-
mas deve ser considerado como justificativa para termos de-
fossem ocupadas outras esferas celestes — planetas habitados
dicado tanta atenção a um único caso de paranóia; ainda exis-
—, se não aparecesse um paladino por meio do qual pudesse
tem muitos outros aspectos a serem tratados.
demonstrar sua perpétua dignidade. Este paladino teria de ser
Em vários pontos Schreber certamente se adianta ao seu
ou o próprio Schreber, ou alguma outra personalidade. Aten-
século. Na época não era imaginável uma ocupação de plane-
dendo às instâncias das vozes, ele enunciou os nomes de alguns
tas habitados. Nenhum povo eleito se viu até agora prejudi-
homens de destaque que lhe pareciam ser apropriados para a cado neste empreendimento. Mas os católicos, os judeus e os
função de paladino nesse combate. À idéia básica do primeiro eslavos, ele já os antevia, da mesma forma pessoal que ao pa-
julgamento de Deus pertencia o avanço do Catolicismo, do Ju- ladino futuro — não identificado por ele —, como massas
daísmo e do Eslavismo. De influência essencial sobre Schreber hostis, e odiou-os por sua simples existência. Uma urgente
foram certas representações que se referiam a tudo o que ele tendência a aumentar lhes era inata como massas. Ninguém vê
chegaria a ser numa futura metempsicose. melhor as propriedades da massa do que o paranóico ou o
"Foram-me atribuídos sucessivamente os papéis . .. de poderoso, palavras que — como agora talvez já seja possível
um 'aluno jesuíta em Ossegg', de um 'burgomestre de Klattau', admitir — são equivalentes. Pois ele, para designar ambos
de uma 'jovem alsaciana que precisa defender sua honra de com um pronome no singular, somente se preocupa com as
estirpe contra um vitorioso oficial francês' e, por fim, 'de um massas que deseja atacar ou dominar e estas sempre têm, em
príncipe mongol'. Em todas estas previsões julguei reconhecer toda parte, a mesma face.
uma certa relação com o quadro de conjunto das demais vi- É impressionante a maneira como Schreber determina
sões A futura destinação de um aluno jesuíta em Ossegg, suas futuras existências. Das cinco que ele enumera apenas a
de um burgomestre em Klattau e de uma jovem alsacíana na primeira, ocorrida anteriormente, é de caráter apolítico. As
situação descrita acima, considerei-a como o vaticínio de que três seguintes o colocam no centro das posições disputadas com
o Protestantismo já teria sucumbido ou se submeteria ao Cato- mais violência; ele se infiltra como aluno entre os jesuítas;
licismo, da mesma forma que o povo alemão já sucumbira ou torna-se burgomestre de uma cidade situada na floresta da
sucumbiria em sua luta contra seus vizinhos latinos e eslavos; Boêmia, onde existem conflitos entre alemães e eslavos; trans-
a perspectiva de chegar a ser um príncipe mongol pareceu-me forma-se numa jovem alemã que procura defender a Alsácia
um anúncio de que, depois que todos os povos arianos se tives- contra um vitorioso oficial francês. Sua "honra de estirpe" se
sem mostrado inadequados como apoio para o reino de Deus, aproxima perigosamente da honra de raça dos seus sucessores.
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A mais reveladora, todavia, é sem dúvida a sua quinta encar- O caso Schreber. Segunda parte
nação como príncipe mongol. A explicação que dá para ela
assemelha-se muito a uma desculpa. Ele se envergonha desta
A conspiração que se tinha formado contra Schreber não estava
existência "não-ariana", e a justifica com o fato de os povos dirigida apenas ao assassinato de sua alma e à destruição do
arianos terem fracassado. Na verdade ele não imagina qualquer
seu intelecto. Pensava-se também em fazer outra coisa com
outro príncipe mongol além de Gengis Khan. As pirâmides de ele, algo quase tão detestável: transformar seu corpo no de
crânios dos mongóis o fascinam, seu amor pelos campos de uma mulher. Como mulher, abusariam dele e "depois me dei-
cadáveres não é desconhecido do leitor. Ele aprova esta ma- xariam jogado de lado, para perecer, entregue assim à decom-
neira manifesta e milionária de exterminar os inimigos. Quem posição". A idéia de sua transformação em mulher o ocupou
extermina todos os seus inimigos deixa de tê-los e desfruta incessantemente durante os anos de sua enfermidade. Ele sentia
do espetáculo oferecido pelos seus montões indefesos. Schreber, serem enviados para seu corpo nervos femininos, em forma de
ao que parece, se viu regressando a estas quatro existências raios, que lentamente iam predominando.
de uma só vez. Seu maior êxito foi obtido como príncipe No início de sua enfermidade, Schreber tentou acabar com
mongol. a própria vida de todas as maneiras possíveis para escapar de
Deste exame mais demorado de um delírio paranóico, por tão espantosa degradação. Cada banho que ele tomava era li-
enquanto resultou com certeza uma coisa: o religioso se inter- gado a fantasias de morte por afogamento. Exigia que lhe
penetra aqui com o político; são inseparáveis: redentores do trouxessem veneno. Mas o desespero de Schreber em relação
mundo, são uma única pessoa. A ambição do poder é o núcleo às intenções de transformá-lo numa mulher não durou muito
de tudo. A paranóia é, no sentido literal da palavra, uma en- tempo. Pouco a pouco foi surgindo nele a convicção de que
fermidade do poder. Um estudo desta enfermidade, em todos justamente desta maneira seria capaz de garantir a existência
os seus aspectos, mostra a natureza do poder com uma inte- da humanidade. É que, devido a terríveis catástrofes, todos os
gridade e uma clareza que não se consegue alcançar de outra homens tinham sucumbido. Ele, o único que restava, como
maneira. Não devemos nos deixar ofuscar pelo fato de que, mulher seria capaz de trazer ao mundo uma nova linhagem.
num caso como o de Schreber, o doente não tenha realizado a Para ele, apenas Deus era aceitável como pai de seus futuros
monstruosa ambição que o consome. Outros conseguiram. Al- filhos. Ele precisava conquistar o amor de Deus. Unir-se a
guns destes puderam apagar habilmente as pegadas de sua as- Deus era uma grande honra; fazer-se cada vez mais mulher para
censão e manter oculto seu sistema perfeitamente desenvolvido. ele, arrumar-se sedutoramente para ele, atraí-lo com todos os
Alguns tiveram menos sorte, ou talvez não tenham tido todo requintes femininos já não parecia ser para ele, o barbudo ex-
o tempo necessário. Neste caso, como aliás em tudo, o êxito presidente do Senado, algo escandalizante ou degradante. Des-
depende exclusivamente de casualidades. A reconstrução destas sa maneira também seria possível fazer frente à conspiração
casualidades, simulando-se uma legitimidade, é o que chama- de Flechsig. Ganhava-se o favor de Deus; o Todo-poderoso,
mos de história. Para cada grande nome da história poderiam que se sentia cada vez mais atraído pela bonita fêmea Schre-
figurar, individualmente, outros cem. Tanto o talento como ber, caía numa certa dependência em relação a ela. Por estes
a maldade estão amplamente repartidos pela humanidade. Todos meios, que poderiam parecer chocantes, Schreber realmente
sentem apetite e estão, como reis, de pé sobre intermináveis conseguiu ligar Deus à sua própria pessoa. Não sem uma certa
campos de cadáveres de animais. Um exame consciencioso do resistência, Deus acabou se submetendo a este destino um
poder deve prescindir por completo do êxito como critério tanto desprezível. Constantemente ele torna a se afastar de
básico. Tanto suas propriedades como suas aberrações devem Schreber; por certo sua vontade seria a de se livrar inteira-
ser cuidadosamente reunidas e comparadas. Um doente men- mente dele. Mas o poder de atração de Schreber já se tornara
tal que, expulso, indefeso e desprezado, passou seus dias ve- grande demas. i
getando numa clínica, pode, pelos conhecimentos que propor- Encontramos declarações que se referem a este tema espa-
ciona, ser muito mais significativo do que Hitler ou Napoleão, lhadas por todo o texto das Memórias. A primeira vista talvez
e iluminar a humanidade a respeito de sua maldição e de seus esejatentado a considerar a idéia da transformação de Schre-
senhores. bernuma mul her como o núcleo mítico do seu delírio. Obvia-
se
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mente foi justamente este ponto que provocou o maior inte- tais? O que era que eles diziam quando falavam, o que era
resse por ele. Tentou-se reduzir este aspecto isolado, e depois realmente atacado por eles? Vale a pena aprofundar-se mais
a paranóia como um todo, a tendências homossexuais repri- um pouco neste processo. Schreber se defendeu com a maior
midas. Dificilmente seria possível cometer um erro maior. Tudo tenacidade dos seus inimigos. A descrição que ele oferece deles
pode ser causa de uma paranóia; o essencial porém é a estru- e de sua defesa é a mais completa que se possa imaginar. É pre-
tura e a população do delírio. Os fenômenos do poder no ciso destacá-la do contexto do mundo autocriado do seu "de-
delírio sempre têm um significado decisivo. Mesmo no caso lírio", como se costuma dizer segundo as velhas convicções, e
Schreber, no qual talvez haja muitos elementos favoráveis à transpô-la para a nossa linguagem mais simples. Infelizmente
citada interpretação, uma análise mais exata desse aspecto — não é possível impedir que o texto perca um pouco de sua
que não pretendemos fazer aqui — provocaria sérias dúvidas. peculiaridade.
Mas, mesmo se considerarmos fora de dúvida a tendência ho- A este propósito se deve citar em primeiro lugar sua
mossexual de Schreber, muito mais importante parece a utili- coerção para pensar, como ele próprio se exprime. Existe calma
zação específica que ela encontra no seu sistema. Schreber nele apenas quando fala em voz alta; então, tudo em torno
sempre considerou como centro do seu sistema o ataque contra dele fica em silêncio mortal, e ele tem a impressão de se mo-
seu intelecto. Todo o seu pensamento e sua ação tinham por vimentar entre cadáveres ambulantes. Todas as demais pessoas,
finalidade combater este ataque. Para desarmar Deus, ele pacientes ou enfermeiros, parecem ter perdido totalmente a
quis transformar-se em mulher: seu ser-fêmea era uma lisonja capacidade de falar, nem que seja apenas uma única palavra.
e uma submissão a Deus. Assim como os outros se ajoelhavam Assim que ele passa da fala para o silêncio, as vozes se anun-
diante do Todo-poderoso, ele próprio se ofereceu para o pra- ciam dentro dele e o obrigam a uma incansável atividade pen-
zer. Para atraí-lo para seu lado, para apoderar-se dele, sedu- sante.
ziu-o sob falsas aparências. E segura-o por todos os meios pos- A intenção delas é a de lhe roubarem o sono e o repouso.
síveis. Falam com ele de forma incessante; é impossível não ouvi-las
"Trata-se de um assunto que, além de não ter analogia ou ignorá-las. Ele fica entregue a tudo o que elas dizem e é
na experiência humana, não foi sequer previsto na própria obrigado a se preocupar profundamente com isso. As vozes
ordem universal. Quem, numa tal relação, gostaria de estender- têm métodos distintos que elas aplicam de forma alternada.
se por insustentáveis suposições para o futuro? Para mim, a Um dos métodos prediletos era a pergunta direta: "No que
única coisa segura é que jamais se conseguirá chegar a esta des- você está pensando agora?" Ele não tinha vontade de res-
truição do meu intelecto pretendida por Deus. Quanto a este ponder a esta pergunta. Mas elas respondiam por ele dizendo,
ponto tenho certeza absoluta há anos, e com isto afastei de por exemplo: "Ele deveria estar pensando na ordem univer-
mim o perigo principal que pareceu ameaçar-me durante o sal!" Ele se ressentia de tais respostas, qualificando-as de "fal-
primeiro ano da minha enfermidade." sificações de idéias". Não se contentavam de interrogá-lo ape-
Estas frases encontram-se no último capítulo das Memó- nas de forma inquisitorial, queriam também obrigá-lo a uma
rias. Com sua redação parece ter ocorrido um apaziguamento determinada ordem de idéias. Essas perguntas, que procura-
essencial em Schreber. O fato de ele ter terminado seu texto, vam desvendar seus segredos, provocavam sua oposição; quan-
de ter permitido que outras pessoas lessem o manuscrito, dei- to mais as respostas que seus pensamentos lhe impunham!
xando-se impressionar por ele, devolveu-lhe definitivamente Perguntas e ordens (ou indicações) eram igualmente uma in-
a fé no seu próprio intelecto. Restava-lhe apenas passar a um tervenção em sua liberdade pessoal. Como instrumentos do
contra-ataque, tornar seu sistema acessível ao mundo inteiro poder, ambas são bem conhecidas; como juiz, ele mesmo as
mediante a impressão de suas Memórias e, como sem dúvida tinha manipulado exaustivamente.
era sua esperança, convencê-lo das coisas em que ele acreditava. As provas que Schreber era obrigado a suportar eram va-
De que maneira se conduziu a luta contra o intelecto de riadas e imaginativas. Ele era interrogado, pensamentos lhe
Schreber? Que ele era atacado por inúmeros "raios" falantes, eram impostos, confeccionava-se um catecismo com suas pró-
já se sabe. No entanto, o que era concretamente que os raios prias frases e palavras, controlava-se cada um dos seus pensa-
inimigos queriam destruir em suas capacidades e certezas men- mentos e não se deixava nenhum deles despercebido, cada
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palavra era examinada para descobrir o que significava para
ele. Sua carência de segredos diante das vozes era completa. ensação pela iniqüidade contra ele praticada". Às frases come-
adas, "jogadas" dentro dos seus nervos, pertencem freqüen-
Tudo era revisto, tudo era exposto à luz. Ele era o objeto de ç
temente conjunções ou locuções adverbiais que expressam uma
um poder interessado na onisciência. Mas apesar de ter que relação de causalidade: "por que só", "por que então", "por
suportar tantas provações, ele nunca se deu por vencido. Uma que". "por que eu", "a não ser que". Como acontece com as
de suas formas de defesa era o exercício de sua própria onis- demais frases, ele é obrigado a completar estas sentenças, e
ciência. Ele provava a si mesmo quanto era bom o funciona-
dessa forma elas também exercem uma coerção sobre ele.
mento de sua memória: decorava poesias, contava em voz alta "Mas me forçam a meditar sobre muitas coisas pelas
em francês, enumerava todas as províncias russas e os depar- quais o ser humano normalmente passa sem prestar atenção,
tamentos da França.
Com a conservação do seu intelecto, ele se referia prin- e por isso contribuíram para aprofundar meu pensamento."
Schreber está plenamente de acordo com sua mania de
cipalmente à invulnerabilidade do conteúdo de sua memória; o ndamentação, que lhe dá muita alegria; ele encontra argu-
mais importante era a capacidade de manter incólumes as fu
mentos plausíveis para justificá-la. Somente o ato original da
palavras. Não existem ruídos que não sejam vozes; o mundo criação ele deixa para Deus. Todas as outras coisas que existem
está repleto de palavras. Trens, pássaros e máquinas falam. no mundo ele as ata com uma corrente de motivos forjada
Quando ele se cala, as palavras se originam imediatamente nos por ele mesmo, e assim se apropria delas.
outros. Entre as palavras não existe coisa alguma. O descanso, Mas a mania de fundamentação nem sempre é tão razoá-
ao qual ele se refere, que ele tanto deseja, nada mais seria além vel. Schreber se encontra com um homem que já viu freqüen-
de uma liberdade de palavras. Mas esta liberdade não existe em temente, e o reconhece à primeira vista como o "Sr. Schneí-
lugar algum. Qualquer coisa que acontece lhe é comunicada der". É um homem que não dissimula; inofensivo, ele é exata-
imediatamente por palavras. Tanto os raios mutiladores como mente como todos o conhecem. Para Schreber, porém, este
os benéficos têm capacidade para falar e, como ele, são obri- simples ato de reconhecimento não é suficiente. Ele queria
gados a se utilizar dessa capacidade. "Não se esqueça de que que houvesse algo mais por trás disso, e sente dificuldade em
os raios devem falar!" É impossível exagerar o significado das se conformar com o fato de que não há mais coisa alguma
palavras para o paranóico. Estão por todos os lados como inse- a descobrir no Sr. Schneider. Schreber está acostumado a
tos nocivos, sempre em estado de alerta. Elas se reúnem numa desmascarar, onde não existe nada a ser desmascarado, fal-
ordem universal que não exclui coisa alguma. A tendência mais ta-lhe chão debaixo dos pés. O ato do desmascaramento tem
extrema da paranóia talvez seja a de apreender por completo o para o paranóico — e não apenas para ele — um significado
mundo pelas palavras, como se a linguagem fosse um punho fundamental. Disto também deriva a mania da causalidade;
fechado e o mundo estivesse dentro dele. inicialmente, todos os motivos eram procurados nas pessoas.
Trata-se de um punho fechado que nunca mais torna a É oportuno examinarmos aqui com maiores detalhes o des-
se abrir. Mas como consegue fechar-se? Aqui é necessário Mascaramento, que já foi mencionado em outros capítulos.
recorrer a uma mania de causalidade, que se coloca como fim A tendência para descobrir repentinamente entre os muitos
em si mesma e que neste grau é encontrada apenas nos filóso- rostos desconhecidos, talvez na rua, um que nos parece conhe-
fos. Nada acontece sem que haja uma causa, basta perguntar-se cido, certamente é familiar a todos os seres humanos. E fre-
por ela. Sempre se encontra uma causa. Tudo o que é desco- qüentemente acontece um equívoco; o suposto conhecido se
nhecido acaba reduzindo-se a algo conhecido. O estranho que aproxima ou nós mesmos vamos em sua direção: é alguém que
se aproxima é desmascarado como propriedade secreta. Por jamais vimos em toda a nossa vida. Ninguém se preocupa
trás da máscara do novo existe sempre algo de velho; basta muito com este equívoco. Qualquer traço casualmente pare-
agarrar sem medo esta máscara e arrancá-la. Fundamentar se cido, a postura da cabeça, a maneira de caminhar, os cabelos,
torna uma paixão que é exercitada a respeito de tudo. Schre- tudo foi motivo de confusão e também serve para eliminá-la.
ber vê claramente este aspecto da sua coerção para pensar. Mas existem períodos nos quais estas confusões se acumulam.
Enquanto se lamenta amargamente dos fenômenos antes rela- Urna pessoa bem determinada aparece-nos por toda parte.
tados, vê nesta mania de fundamentação "uma espécie de com- Ela está parada diante de locais onde queremos entrar, ou em
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esquinas movimentadas. Aparece várias vezes por dia; natural- final nestes acontecimentos breves e animados. "Desmascararl",
mente trata-se de alguém que nos preocupa, de uma pessoa ordenamos, e cada qual aparece como realmente é. A partir
que amamos ou, com mais freqüência, que odiamos. Nós deste momento é proibido continuar com as transformações.
sabemos que esta pessoa mudou de cidade, que está do outro A representação terminou. As máscaras foram arrancadas. Este
lado do oceano; mesmo assim acreditamos reconhecê-la. O erro processo de retrocesso da desconversão quase nunca é inteira-
se repete e nós perseveramos nele. É evidente que queremos mente puro porque, de maneira geral, está sempre tingido por
encontrar essa pessoa através dos outros rostos. Vemos esses expectativas de hostilidade. As máscaras quiseram enganar o
rostos como uma ilusão que nos oculta o verdadeiro. Muitos parano'ico. Sua metamorfose não foi desinteressada. Sobretudo
podem prestar-se a esta ilusão; atrás de todos eles supõe-se importava-lhes o segredo. No que elas se converteram, o que
estar a pessoa que se procura. Existe uma urgência neste pro- tinham de representar é bem mais secundário; o principal era
cesso que não nos dá sossego: cem rostos são desmascarados que em caso algum fossem reconhecíveis. A contra-ação do
para que atrás deles apareça o :único que importa. Se tivés- ameaçado ao arrancar as máscaras é tão brutal e odiosa, tão
semos de assinalar a principal diferença entre este e os outros violenta e impressionante, que com demasiada facilidade se
cem, teríamos de dizer: os outros cem são desconhecidos e esquece a metamorfose precedente.
este nos é familiar. É como se somente pudéssemos reconhe- As Memórias de Schreber nos levam, neste sentido, muito
cer o familiar. Mas, como ele se esconde, somos forçados a perto do núcleo do assunto. Schreber se recorda da primeira
procurá-lo no desconhecido. época, quando tudo ainda era fluido. No primeiro ano de sua
No paranóico este fenômeno se concentra e se torna mais enfermidade, na "época sagrada", passou uma ou duas sema-
agudo. O paranóico sofre de uma atrofia da metamorfose que nas numa pequena clínica particular, que era definida pelas
parte de sua própria pessoa — absolutamente imutável -- - e vozes como "cozinha do diabo". Foi, como ele mesmo diz, o
que a partir deste ponto recobre todo o restante do mundo. "tempo do mais louco excesso de prodígios". O que ele viveu
Inclusive, ele costuma ver coisas que realmente são distintas ali de metamorfoses e de desmascaramentos, muito antes de o
como se fossem a mesma coisa. Ele torna a reencontrar seu seu delírio enrijecer e assentar, é a melhor ilustração de tudo
inimigo nas mais diferentes figuras. Em qualquer lugar onde o que foi exposto acima.
ele arranque uma máscara, sempre aparece seu inimigo. Por "Durante o dia, em geral eu ficava no salão comum da
causa do segredo que supõe existir por trás de tudo, por causa clínica, onde havia um perpétuo entrar e sair dos demais supos-
do desmascaramento, tudo se torna máscara para ele. Ele não tos pacientes do estabelecimento. Do meu controle especial
se deixa enganar; ele é quem percebe isso tudo; o tudo é parecia estar encarregado um guarda no qual, graças a uma
apenas um. Com a crescente rigidez do seu sistema, o mundo semelhança talvez fortuita, pensei reconhecer o ordenança da
vai ficando cada vez mais pobre em personagens reconhecidos; Audiência Territorial, que durante minha atividade profissio-
sobra apenas o que pertence ao drama do seu delírio. Tudo é nal em Dresden costumava trazer as atas para a minha casa.
sondável da mesma maneira e tudo é sondado até o final. Além do mais ele tinha o costume de vestir, de vez em quando,
Finalmente nada mais resta a não ser ele próprio e o que ele minhas próprias roupas. Como suposto diretor médico da insti-
domina. tuição aparecia às vezes — geralmente durante as horas da
No seu nível mais profundo trata-se aqui do inverso da tarde — um cavalheiro que por sua vez me lembrava o Dr.
metamorfose. O processo do desmascaramento também poderia O., que eu tinha consultado em Dresden... No jardim do
ser definido como desconversão. Algo é reconduzido, de manei- estabelecimento pisei apenas uma única vez para dar um pas-
ra forçada, a si mesmo, a uma determinada posição, a uma seio. Na ocasião vi algumas senhoras, entre as quais a esposa
determinada postura que se deseja, que se considera como a do pastor W. de Fr. e minha própria mãe, bem como alguns
sua própria postura autêntica. Começa se como espectador; senhores, entre os quais o procurador judicial K., de Dresden;
parte-se da observação dos demais que se transformam uns em este porém com a cabeça aumentada de maneira disforme. Eu
outros. É possível que se assista durante algum tempo a esta Poderia ter considerado o aparecimento de tais semelhanças
mascarada; mas não a aprovamos, não encontramos prazer como compreensível, caso se tratasse de dois ou três casos;
nela. Repentinamente dizemos: "Basta1", e colocamos um ponto mas eram quase todos os pacientes da instituição, ou seja,
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várias dúzias de pessoas, que usavam as fisionomias de perso-
nagens que eu tinha conhecido". Como pacientes via "puras
figuras fantásticas, entre elas alguns personagens chamuscados,
usando roupas de linho... Eles apareciam na entrada do salão,
velados, um após o outro, sem fazer o menor ruído e sem,
F
s
Neste relato existem coisas que chamam bastante a aten-
Olo, Schreber vê mais pessoas do que as que realmente pode-
ria m existir; todos são levados a um curral. Com elas ele se
ente, como é sugerido pela escolha de suas palavras, rebaixado
ao nível de um animal; é o que nele mais se aproxima de
segundo parecia, se notarem. Constatei diversas vezes que vivência de massa. Mas nem no "curral" dos pacientes
alguns deles, durante sua permanência no salão, trocavam suas Schreber chega a se abrir de verdade. Ele observa atentamente
cabeças, ou seja, sem abandonar o salão, repentinamente pas- jogo das metamorfoses, com olho crítico certamente, mas
seavam com outra cabeça, :Ião com hostilidade. Até os alimentos e as peças de roupa se
c
"O número de pacientes que avistei no curral" — era transformam. O que mais o preocupa são os seus reconheci-
assim que ele designava um pátio onde ia para respirar ar
mentos. Cada um que aparece na sua frente é, na realidade,
puro — "e no salão, de maneira simultânea ou sucessiva, não
alguma .outra pessoa que ele antes conhecia bem. Ele se encar-
tinha qualquer relação com o tamanho dos recintos da insti-
tuição. Segundo minha convicção, era impossível que as qua- rega de que nada seja verdadeiramente desconhecido. Mas todos
estes desmascaramentos têm ainda um caráter relativamente
renta ou cinqüenta pessoas que eram levadas comigo ao curral
e que, ao ouvirem o sinal de retorno, se apertavam outra vez pacato. Com ódio ele se refere apenas ao enfermeiro-chefe,
numa passagem que não citamos aqui. Ele reconhece muitas
em direção à porta da casa pudessem todas encontrar aloja-
mento ali para a noite. .. O andar térreo, na maior parte das pessoas, todas bastante diversificadas; ainda não aparece uma
vezes, pululava de figuras humanas." visão estreita e exclusiva. Em vez de se desmascararem, as
Entre as figuras do curral ele se recorda de um primo de pessoas trocam de cabeças; seria difícil conceber-se uma forma
sua esposa, que tinha se suicidado com um tiro, em 1887, e mais divertida e generosa de desmascaramento.
o promotor geral B., que sempre assumia uma atitude devota, Mas as aventuras de Schreber poucas vezes tinham este
como se estivesse rezando, permanecendo imóvel nesta posi- caráter malicioso e libertador. Um tipo muito diferente de
ção. Outras pessoas que ele reconhece são: um conselheiro visões que ele teve freqüentemente em sua "época sagrada"
privado, um presidente do Senado, outro conselheiro da conduz, segundo acredito, diretamente à situação original da
Audiência Territorial, um advogado de Leipzig que tinha sido paranóia.
seu amigo na juventude, seu sobrinho Fritz e uma conhecida A sensação de estar cercado por uma malta de inimigos,
de um verão passado em Warnemünde. Da janela de onde se que estão todos interessados no que se faz, é um sentimento
avistava o caminho de acesso à instituição, reconheceu certa básico da paranóia. Ela se expressa da maneira mais pura nas
vez a figura do seu sogro. visões de olhos: vêem-se olhos por toda parte, por todos os
"Aconteceu repetidas vezes que eu vi uma quantidade de lados; estes olhos não se interessam por qualquer outra coisa
pessoas — certa ocasião inclusive senhoras — que depois de além da nossa pessoa, e fazem isto com um empenho por
terem cruzado o salão entravam nos aposentos ao lado, de demais ameaçador. As criaturas às quais pertencem esses olhos
onde devem depois ter desaparecido. Diversas vezes ouvi têm a intenção de vingar-se de nós. Durante muito tempo
também um estertor particular que estava relacionado com a fizemos com que elas sentissem o nosso poder; se forem
dissolução dos 'homens fugazmente esboçados'. animais, eles foram caçados da maneira mais implacável, estão
"Não só as figuras humanas mas também os objetos inani- ameaçados de extinção e conseqüentemente, de maneira inespe-
mados eram motivo de prodígio. Por mais cético que eu agora rada, levantam-se agora contra nós. Esta situação original da
procure ser ao examinar minhas lembranças, não posso apagar paranóia é encontrada de forma conclusiva e inequívoca nas
de minha memória a impressão que me ficou de certos fenô- lendas de caça de muitos povos.
menos como, por exemplo, a transformação das maneiras de Nem sempre esses animais conservam a figura de presa
vestir dos seres humanos que eu via e do próprio conteúdo do que têm para o homem. Convertem-se em criaturas mais peri-
meu prato durante as refeições (assim um assado de porco se gosas que o homem sempre temeu. Aproximando-se dele,
transformava em assado de vitela, ou vice-versa)." enchendo seus aposentos, ocupando sua cama, aumentam-lhe o
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terror ao máximo. O próprio Schreber se sentia acossado por estrutura da paranóia não poderia ser captado de forma mais
ursos à noite. a.
Freqüentemente abandonava a cama e sentava-se no assoa- A relação complicada e ambígua de Schreber para com
lho. As mãos, que ele apoiava no chão atrás das costas, eram- Deus, a "política de almas" da qual ele se sentia vítima, não
lhe erguidas a uma altura considerável por figuras com apa- o impediu de experimentar a onipotência, por assim dizer de
rência de ursos - - ursos negros. Ele via outros ursos negros, fora e unitariamente, como esplendor. Durante todos os anos
maiores e menores, sentados ao redor dele, todos com olhos de sua enfermidade, ele teve esta vivência apenas durante
ardentes. Os lençóis de sua cama se transformavam em "ursos pouquíssimos dias e noites consecutivos; ele tinha plena cons-
brancos". Ao anoitecer — ainda estava desperto — apareciam ciência do aspecto raro e precioso deste acontecimento.
gatos com olhos incandescentes sobre as árvores do jardim da Deus apareceu numa única noite. A brilhante imagem dos
instituição. seus raios — enquanto Schreber estava deitado na cama acor-
Mas a coisa não parou nessas maltas animais. O principal dado — se tornou visível ao seu olhar espiritual. Ao mesmo
inimigo de Schreber, o psiquiatra Flechsig, tinha uma maneira tempo, ouviu a linguagem divina. Não como um tênue sussur-
particularmente pérfida e perigosa de formar maltas celestiais ro; sua potente voz de baixo ressoou diante das janelas do
contra ele. Tratava-se de um fenômeno peculiar que Schreber quarto.
chamava de divisão de almas. No dia seguinte Schreber viu Deus com seus olhos físi-
A alma de Flechsig se subdividiu até ocupar toda a abó- cos. Era o sol, mas não como aparece normalmente e sim
bada celeste com suas partes, de forma que os raios divinos banhado por um mar de raios de fulgor prateado, que cobria
encontravam resistência por todos os lados. Toda a abóbada uma sexta ou oitava parte do céu. A visão tinha uma magni-
celeste parecia estar recoberta de nervos que ofereciam um ficência e uma grandiosidade tamanhas que ele teve medo de
obstáculo mecânico aos raios divinos; era impossível ultra- continuar olhando, e procurava afastar o olhar da aparição. E
passar esses nervos. Eles se assemelhavam a uma fortaleza este sol radiante falou com ele.
sitiada, protegida contra o ataque do inimigo por muralhas Durante certo tempo, Schreber visualizou não apenas em
e fossos. A alma de Flechsig tinha se subdividido para este Deus mas também em si mesmo esse esplendor; não havia
fim num grande número de partes; durante algum tempo eram nada de estranho nisso, considerando-se sua importância e sua
de quarenta a sessenta partes, entre as quais muitas bastante estreita relação com Deus. "Freqüentemente, e como conse-
pequenas. qüência de uma afluência em massa de raios, minha cabeça
Parece que depois também outras "almas provadas" parecia estar rodeada por um halo de luz, semelhante à auréo-
começaram a se dividir segundo o exemplo de Flechsig; elas la de Cristo tal como é representada nos quadros, só que incom-
se faziam cada vez mais numerosas e, como é de esperar de paravelmente mais rica e brilhante: a assim chamada coroa
verdadeiras maltas, já viviam apenas para as emboscadas e os radiosa."
assaltos. Grande parte delas tinha se preocupado apenas com Mas este aspecto sagrado do poder foi descrito por
realizar movimentos de envolvimento, manobra cujo objetivo Schreber de um modo ainda mais intenso. Alcançou a pleni-
consistia em atacar por trás os raios divinos que avançavam tude no seu período de imobilidade, que abordaremos agora.
ingenuamente e forçá-los à rendição. O grande número destas A vida exterior que levava nesta época era sobremaneira
"partes de almas provadas" finalmente chegou a ser incômodo monótona. Duas vezes por dia dava um passeio pelo jardim.
até mesmo para a onipotência de Deus. Depois que Schreber Fora isso, permanecia imóvel durante o dia todo, sentado na
já tinha conseguido atrair uma boa parte delas, foi organizada cadeira diante de sua mesa, sem ir sequer até a janela. Também
certo dia uma grande razzia de almas pela onipotência de Deus. no jardim, ele preferia permanecer sentado sempre no mesmo
É possível que na sua "divisão de almas" Schreber tenha lugar. Ele considerava esta passividade absoluta como um
visualizado a multiplicação de células por divisão, que certa- compromisso religioso.
mente lhe era conhecida. O emprego dos montões de maltas As vozes é que lhe tinham provocado esta idéia. "Nem
celestes assim resultantes é um dos aspectos mais caracterís- o menor movimento", tinham-lhe dito elas em várias ocasiões.
ticos do seu delírio. O significado das maltas inimigas na Para si mesmo ele explicava este pedido, achando que Deus
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não sabia lidar com as pessoas vivas, uma vez que somente
pereliçar raios divinos, ele o compartilha com inúmeras cultu-
estava acostumado a lidar com cadáveres. E assim lhe foi apre-
ras espalhadas pelo mundo inteiro, nas quais se cristalizou
sentada a monstruosa exigência de se comportar constante- urna concepção sagrada do poder. Ele próprio se considera
mente como um cadáver.
Esta imobilidade era uma questão de autoconservação, comoo um recipiente no qual vai se juntando, pouco a pouco,
toda a essência divina. Qualquer movimento, por menor que
mas também uma obrigação em relação a Deus: servia para seja , pode ter como conseqüência o derramamento de parte
libertá-lo da situação de aperto na qual tinha sido colocado dela. Por este motivo Schreber deve permanecer imóvel. O
pelas "almas provadas". "Eu tinha chegado à convicção de que poderoso retém o poder do qual está investido, seja porque
as perdas de raios aumentavam quando eu mesmo me deslo- o sente como substância impessoal que poderia acabar, seja
cava com freqüência; também quando passava uma corrente porque uma instância superior espera dele este comportamento
de ar pelo meu quarto. Considerando-se o temor sagrado que
aberrante, como uma espécie de ato de veneração. Ele irá ficar
na época eu ainda sentia em relação aos raios divinos e a enrijecido lentamente na postura que lhe parecer mais favorável
incerteza de que realmente existisse uma eternidade, ou de que para a conservação de sua preciosa substância; todo e qualquer
os raios pudessem acabar de repente, considerei como meu desvio desta postura é perigoso e deve enchê-lo de preocupa-
dever opor-me a toda a dilapidação de raios no que depen-
ção. Evitando cuidadosamente estes desvios, ele garante sua
desse de mim." Era mais fácil atrair as almas provadas e fazer existência. Algumas destas posturas em sua uniformidade
com que elas se dissolvessem completamente em seu corpo, através de séculos chegaram a ser modelos. A estrutura polí-
mantendo-se neste estado permanente de repouso. Somente tica de muitos povos tem seu núcleo na postura rígida e exata-
assim era possível restabelecer a autocracia de Deus no céu. mente prescrita de um único indivíduo.
De maneira que ele acabou impondo a si mesmo o incrível Também Schreber cuidou de um povo, que apesar de não
sacrifício de privar-se durante semanas e meses de todo e considerá-lo como rei, achava que ele era uma espécie de
qualquer movimento físico. Já que a dissolução das almas patrono nacional. Em algum corpo celeste distante tinha-se
provadas ocorria com maior probabilidade durante o sono, de realizado uma tentativa de criação de uma nova humanidade
noite ele nem sequer ousava mudar de posição na cama. de "espírito schreberista". Estes homens novos eram, fisica-
Esta rigidez de Schreber durante um período de semanas mente, de porte muito menor do que o dos nossos homens
e meses é uma das coisas mais surpreendentes que ele conta. terrestres. Mas eles já tinham alcançado um nível cultural
Sua explicação para isso é dupla. Que pelo amor de Deus ele considerável e criavam também, proporcionalmente à sua menor
fosse obrigado a permanecer imóvel como um cadáver, soa aos estatura física, uma espécie bovina menor. O próprio Schreber
nossos ouvidos ainda mais estranho do que é. E isto se deve convertera-se, como "patrono nacional", num objeto de vene-
principalmente a nossa atitude puritana em relação ao cadáver. ração divina, de maneira que sua postura física seria de algum
Nossos costumes exigem que um cadáver seja afastado rapi- significado para sua fé.
damente. Não se faz muita coisa com ele; sabemos que apo- A natureza de determinada postura, que deve ser enten-
drece rapidamente e de forma alguma nos sentimos compeli- dida de maneira muito concreta e física, aparece aqui com
dos a fazer qualquer coisa para evitar isso. Nós o arrumamos grande clareza. Estes homens não foram apenas criados da
apenas um pouco, o exibimos durante pouco tempo e tornamos substância de Schreber: da sua postura também depende a fé
impossível qualquer acesso posterior a ele. Por mais faustosa deles.
que seja uma cerimônia funerária, o cadáver mal aparece; tra- Conforme já foi visto, o intelecto de Schreber teve de
ta-se da celebração do seu ocultamento e de sua subtração. correr os perigos mais refinados durante o transcorrer de sua
Para compreender Schreber é necessário pensar nas múmias enfermidade. Mas também todas as intervenções dirigidas
dos egípcios, entre os quais o cadáver é conservado, cuidado contra seu corpo escapam de qualquer descrição. Quase nenhu-
e admirado. Por amor a Deus, Schreber se comportou durante ma parte do seu corpo ficou a salvo. Os raios não se esque-
meses como uma múmia, não como um cadáver; sua própria ciam de coisa alguma, nada lhes passava despercebido; literal-
definição neste caso não é totalmente correta. mente, sempre chegava a vez de cada uma das partes do seu
O segundo motivo de sua imobilidade, o temor de des- corpo. Os efeitos de suas intervenções apareciam de maneira
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tão repentina e surpreendente que somente podiam ser consi tempo em alguma ocupação; quando andava procuravam fazer
derados como milagres. com que ele se deitasse, e quando estava deitado procuravam
Havia por um lado os fenômenos vinculados com a inten- brigá-lo a levantar-se novamente. "Os raios não pareciam
ção de transformá-lo em mulher. Estes ele os aceitou e não o
compreender que um homem que existe concretamente precisa
opôs qualquer resistência em relação a eles. Mas, além disso, estar em algum lugar."
é quase inacreditável tudo o que lhe aconteceu. Colocaram Destes fenômenos talvez valha a pena sublinhar uma carac-
um verme nos seus pulmões. Os ossos de suas costelas foram rística que todos têm em comum: trata-se de uma penetra-
te
temporariamente esmagados. No lugar do seu estômago sadio, O princípio físico da impenetrabilidade dos corpos aqui
ção.
aquele neurologista vienense enxertou-lhe no ventre um "estô- ão tem vigência. Da mesma forma que Schreber quer difun-
n
mago judeu" de má qualidade. Os destinos de seu estômago dir-se por todos os lugares, penetrando em linha reta até o
eram, por si mesmos, muito variáveis. Freqüentemente foi obri- seio da Terra, assim também tudo se difunde em linha reta
gado a viver totalmente sem estômago; chegou a explicar ao
por meio dele, realizando suas travessuras com ele e dentro
enfermeiro que não podia se alimentar pois não possuía estô-
mago. Quando apesar disto comia, o alimento caía em sua dele. Freqüentemente, ele fala a seu próprio respeito como
cavidade abdominal e nas coxas. Porém ele acabou se acostu- se fosse um corpo celeste; no entanto, nem mesmo o seu pró-
mando a esse estado e mais tarde passou a comer com entu- prio corpo humano lhe está assegurado. O tempo durante o
siasmo, sem qualquer problema, apesar de não possuir estô- qual ele se difunde, durante o qual anuncia suas pretensões,
mago. O esôfago e os intestinos muitas vezes estavam rompi- parece ser também o tempo propriamente dito de sua pene-
dos ou tinham desaparecido. Mais de uma vez engoliu, enquan- trabilidade. Tamanho e perseguição estão intimamente ligados
to comia, partes de sua laringe. nele, ambos se manifestam em seu corpo.
Por meio de "homenzinhos" que lhe foram colocados Entretanto, uma vez que apesar de todos os ataques ele
nos pés, tentou-se bombear para fora sua medula espinal, de continuava vivendo, passou a ter a convicção de que os raios
maneira que durante seus passeios pelo jardim ela se evapo- também o curavam. Todas as substâncias impuras do seu corpo
rasse sob a forma de pequenas nuvens através de sua boca. eram reabsorvidas pelos raios. Fora-lhe permitido comer mes-
Freqüentemente ele tinha a sensação de que a parte superior mo sem estômago, com entusiasmo e sem problemas. Por meio
de sua caixa craniana tinha ficado mais fina. Quando tocava dos raios formaram-se os germes das doenças dentro dele,
piano ou escrevia, tentavam paralisar-lhe os dedos. Algumas mas pelos mesmos raios eles eram eliminados.
almas assumiam a forma de minúsculas figuras humanas, com Desta forma concebe-se a suspeita de que todos os ata-
poucos milímetros de altura, e se divertiam à custa dele nas ques contra seu corpo tinham por finalidade mostrar sua in-
mais diversas partes do seu corpo, algumas vezes no interior, vulnerabilidade. Seu corpo devia demonstrar-lhe o quanto ele
outras vezes sobre a superfície exterior. Algumas destas figu- era capaz de resistir. Quanto mais prejudicado e abalado esti-
ras se ocupavam em abrir e fechar-lhe os olhos, ou ficavam vesse, tanto mais firme acabaria ficando.
sobre seus olhos, entre as sobrancelhas, de onde, usando fios Schreber começou a duvidar de que fosse realmente mor-
finíssimos como teias de aranha, puxavam suas pálpebras para tal. O que era o veneno mais potente comparado com os tor-
cima e para baixo. Nesta época sempre havia um grande núme- mentos que já tinha suportado? Se caísse na água e se afogas-
ro de "homenzinhos" que se reuniam sobre sua cabeça. Eles se, provavelmente lhe fariam uma reanimação e lhe estimula-
passeavam por toda a cabeça, correndo curiosos para todos os riam a atividade cardíaca e a circulação do sangue. Se metesse
lugares onde pudessem contemplar novos estragos. Chegavam uma bala de revólver na própria cabeça, os órgãos internos e
até mesmo a participar de suas refeições, guardando uma minús- os ossos destruídos poderiam ser reconstruídos outra vez. Afi-
cula porção dos alimentos que ele saboreava. nal de contas, ele tinha vivido durante um longo tempo sem
Roendo de forma dolorosa os ossos da região dos seus órgãos de importância vital. E tudo voltara a crescer dentro
calcanhares e do seu traseiro, procuravam tornar-lhe impossí- dele. Tampouco as enfermidades naturais poderiam chegar a
vel toda uma série de coisas: caminhar, ficar de pé, sentar-se ser perigosas para ele. Depois de muitos tormentos dolorosos
e deitar-se. Nunca permitiam que ele permanecesse muito e de inúmeras dúvidas, aquele intenso desejo de invulnerabi-
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lidade tinha se transformado para ele numa conquista indis-
cutível.
No decorrer deste ensaio demonstramos como o desejo
de invulnerabilidade e a mania de sobreviver confluem. Tam-
bém neste sentido o paranóico mostra ser a réplica exata do
poderoso. A diferença entre ambos é apenas sua situação no
mundo exterior. Em sua estrutura interna, eles são a mesma
coisa. É possível que se considere o paranóico mais impressio-
nante, porque ele se basta a si mesmo, e não se deixa comover EPÍLOGO
pelo fracasso exterior. A opinião do mundo não vale nada
para ele, seu delírio se ergue sozinho contra toda a humanidade.
"Tudo o que ocorre", diz Schreber, "refere-se a mim. Eu
me converti para Deus no homem absoluto ou no único ho-
mem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado
tudo o que ocorre e o qual por conseguinte, a partir do seu
próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas
a si mesmo."
A idéia de que todos os demais seres humanos teriam su-
cumbido, que efetivamente ele era o único homem e não ape-
nas o único que importava, o dominou, conforme se sabe,
durante vários anos. Somente pouco a pouco é que ele foi
cedendo a uma opinião mais mitigada. Do único homem vivo,
ele passou a ser o único homem que contava. Não se pode re-
chaçar a suposição de que por trás de cada paranóia, como por
trás de cada poder, existe a mesma tendência profunda: o
desejo de eliminar os demais do caminho para ser o único ou,
numa forma mais atenuada e mais freqüentemente admitida,
o desejo de servir-se dos demais para que com a ajuda deles
se chegue a ser o único.
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A dissolução do sobrevivente
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ativa. Se existe uma fé à qual aderem um depois do outro
todos os povos mais importantes da Terra, essa é a fé na pro-
dução, o furor moderno da multiplicação. Te rcebe-se que a tendência à multiplicação se tornou tão forte
que ultrapassou a tendência à guerra; esta parece ser apenas
algo que molesta, que atrapalha. A guerra, como meio de mul-
O aumento da produção tem como conseqüência que se tiplicação rápida, esgotou-se num estalo de caráter arcaico na
deseje um maior número de homens. Quanto mais se produz, Alemanha do nacional-socialismo e, espera-se, liquidou-se para
mais consumidores parecem necessários. A venda em si, se es- sempre.
tivesse inteiramente submetida à sua própria lei, procuraria Todos os países se mostram atualmente inclinados a pro-
alcançar todos os homens. Nisto ela se assemelha, se bem que teger melhor sua produção do que seus homens. Nada se jus-
apenas superficialmente, às religiões universais, que procuram tifica mais, nada tem mais assegurada a aprovação geral. Ainda
conquistar todas as almas. Todos os homens deveriam chegar neste nosso século serão produzidos mais bens do que os ne-
a uma espécie de igualdade ideal, ou seja, ser todos compra- cessários. Em lugar das guerras irão se firmar outros sistemas de
dores leais e bem-dispostos. Mas isto não bastaria, pois uma massas duplas. A experiência parlamentar demonstra que é pos-
vez que todos tivessem sido alcançados e todos tivessem com- sível excluir a morte da engrenagem das duas massas. Um rodí-
prado, a produção iria querer aumentar ainda mais. Sua se- zio pacífico e regulado na alternância do poder poderia ser esta-
gunda e mais profunda tendência dirige-se portanto a um au- belecido também entre as nações. O esporte como feito de mas-
mento do número de homens. A produção necessita de mais sa substituía, já em Roma, uma grande parte da guerra. Atual-
homens: através da multiplicação dos objetos retorna-se ao mente ele está em vias de readquirir — mas desta vez em es-
sentido original de toda a multiplicação, ou seja, à multiplica- cala mundial — a mesma importância. A guerra certamente irá
ção dos próprios homens. extinguir-se e o seu fím pode ser previsto para muito breve;
Em sua essência mais íntima a produção é pacífica. As apenas esqueceu-se de levar em consideração o sobrevivente.
diminuições causadas pela guerra e pela destruição lhe são Mas, em tudo isso, o que restou nas religiões de lamenta-
prejudiciais. Nisto o capitalismo e o socialismo não se diferen- ção? Nos incompreensíveis extremos de aniquilação e de pro-
ciam: são formas gêmeas em luta de uma mesma crença. A 'dução que caracterizam a primeira metade deste século, nesta
menina dos olhos de ambos é a produção. Ela se tornou um cegueira duplamente inexorável que atua ora numa ora noutra
assunto de coração em medida igual para ambos. Sua rivali- direção, as religiões de lamentação, na medida em que se con-
dade contribuiu para o êxito frenético da multiplicação. As servaram como organizações, oferecem a imagem do mais total
duas formas se parecem cada vez mais uma com a outra. desamparo. Titubeantes ou solícitas, elas dão, se bem que com
Nota-se nelas uma espécie de respeito mútuo sempre crescente. algumas exceções, suas bênçãos a tudo o que acontece.
Este se deve quase exclusivamente ao êxito de ambas na pro- Apesar disso, sua herança é bem maior do que se poderia
dução. Já não é verdade que uma forma queira destruir a pensar. A imagem desse Um, cuja morte os cristãos lamentam
outra; elas querem, isto sim, superar-se. há quase dois mil anos, penetrou na consciência de toda a
Existem atualmente vários centros enormes de multipli- humanidade, É um moribundo e não deve morrer. Com a
cação, muito eficientes e em rápida expansão. Eles estão re- secularização da Terra sua divindade perdeu o significado.
partidos por diversos idiomas e culturas; nenhum é suficien- Querendo-se ou não, Ele permaneceu como o ser humano sin-
temente forte para apropriar-se do poder. Nenhum ousa gular, sofredor e agonizante. Seus antecedentes divinos lhe
enfrentar, sozinho, os demais. Uma tendência à formação de conferiram dentro dessa humanidade terrena uma espécie de
enormes massas duplas salta aos olhos. Tomam como nome imortalidade histórica. Ela o fortaleceu e também fortaleceu
setores inteiros do mundo, Oriente e Ocidente. Englobam cada um que se vê nele. Não existe um único perseguido,
tantas coisas que é cada vez menos o que permanece fora de- sejam quais forem os motivos dos seus padecimentos, que em
las; o que fica de fora parece tornar-se impotente. A !--ígida alguma parte de sua alma não se veja como o Cristo. Inimigos
formação destas massas duplas, sua fascinação recíproca e o fato mortais, mesmo quando lutam por uma causa má e desumana,
de estarem armadas até os dentes e, brevemente, até a Lua des- assim que as coisas pioram sentem exatamente o mesmo. A
pertaram no mundo um terror apocalíptico: uma guerra entre imagem do sofredor que agoniza passará, de acordo com a se-
elas poderia levar ao extermínio da humanidade. No entanto qüência dos acontecimentos, de um para o outro, e o mais
518 519 •
fraco pode finalmente sentir-se como o melhor. Mas também o
mais fraco dos fracos, aquele que nunca teve um inimigo sério, cacife foi multiplicado; existem muito mais homens e todos
toma parte nesta imagem. Não deseja morrer por nada do estão mais perto uns dos outros. Os meios se multiplicaram por
mundo; a própria morte o transforma em algo especial. Cristo mil. A impotência da vítima, se bem que não sua submissão,
no fundo permaneceu a mesma.
lhe empresta a malta de lamentação. Em meio à fúria da mul-
Todo o terror diante de um poder sobrenatural, um poder
tiplicação, que também é a dos homens, o valor do indivíduo
não diminuiu, aumentou. Os acontecimentos do nosso século que desaba vingador e destrutivo sobre os homens, está con-
tido na imagem da "bomba". Mas o indivíduo pode manipulá-
parecem afirmar o contrário: mas nada se modificou na cons-
la. Ela está nas suas mãos. O detentor do poder pode desen-
ciência dos homens. Passando por um desvio pela sua alma,
cadear devastações que excedem todas as pragas de Deus reu-
o próprio homem, tal como vive aqui, foi incluído. O seu
nidas. O homem roubou seu próprio Deus. Apoderou-se dele
desejo de indestrutibilidade fdi justificado. Cada qual é para
e se apropriou de tudo o que havia de terror e fatalidade nele.
si mesmo um objeto digno de lamentação. Cada qual está
Os sonhos mais temerários dos poderosos de outros tem-
firmemente convencido de que não deve morrer. Neste ponto
pos, para os quais a sobrevivência se transformara em paixão
a herança cristã — e de maneira diferente também a herança e vício, parecem atualmente coisas mesquinhas. A história
budista — é indestrutível. adquire repentinamente, recapitulada a partir do nosso ponto
Mas o que se modificou radicalmente nesta época foi a de vista, um rosto inocente e inofensivo. Quanto tempo tudo
situação do sobrevivente. Seguramente foram poucos os que levava para ser feito antes e quão pouco havia para ser ani-
não sentiram uma profunda repugnância ao terminar a leitura quilado numa Terra desconhecida! Hoje, entre decisão e resul-
dos capítulos que tratavam do sobrevivente. A intenção era a tado não existe mais do que um instante. Gengis Khan! Ta-
de retirá-lo de todos os seus esconderijos e de representá-lo tal merlão! Hitler! . Comparados com nossas possibilidades,
como é e como sempre foi. Como herói era adorado, como nada mais são que aprendizes lamentáveis e simples amadores!
mandatário era obedecido: no fundo ele era sempre o mesmo. Existe alguma possibilidade de se reduzir o sobrevivente
Mesmo em nossa época, entre homens para os quais o conceito que cresceu até atingir estas monstruosas proporções? Esta é a
humanitário significa muito, ele obteve os seus triunfos mais pergunta maior e, poder-se-ia dizer, a única. A especialização e a
sinistros. Ele não se extinguiu e não se extinguirá enquanto mobilidade da vida moderna. fazem com que se torne enganosa a
não tivermos a força necessária para vê-lo com clareza, seja simplicidade, a concentração, desta pergunta fundamental. Por-
qual for seu disfarce, seja qual for sua glória, por mais radiante que a única solução que se oferece ao apaixonado impulso de
que ela seja. O sobrevivente é o mal original da humanidade, sobreviver — a solidão criadora que ganha a imortalidade —
sua maldição e talvez sua perdição. Será possível escapar dele por sua própria natureza é uma solução para poucos.
no último momento? Contra este perigo crescente que cada qual sente nos seus
Em nosso mundo moderno, a escalada de suas atividades próprios ossos, é preciso levar em consideração um segundo
é tão monstruosa que quase não temos coragem de contem- fato, um fato novo. O próprio sobrevivente tem medo. Sempre
plá-las de frente. Um único homem pode aniquilar, sem multo teve medo. Mas, juntamente com suas possibilidades, este medo
esforço, uma boa parte da humanidade. Para isso pode utilizar- cresceu de forma desmedida e insuportável. Seu triunfo poderá
se de processos técnicos que ele próprio não compreende. Pode ser coisa de minutos. Mas a Terra não é mais segura em parte
agir a partir de um ponto totalmente escondido; nem sequer é alguma, nem mesmo para ele. As novas armas podem atingir
necessário que se exponha a qualquer perigo para realizar seu qualquer lugar, de forma que também ele pode ser alcançado
gesto. O contraste entre sua individualidade e o número de em qualquer parte. Sua grandeza e sua vulnerabilidade estão
pessoas que ele pode aniquilar já não cabe mais numa imagem em conflito entre si. Ele mesmo se tornou excessivamente gran-
coerente. Atualmente uma pessoa pode sobreviver, de um golpe, de. Os poderosos atualmente tremem de maneira diferente por
a um número de homens que supera o total de várias gerações si mesmos: exatamente como tremem todos os demais homens.
anteriores. As receitas dos poderosos estão à disposição, não A antiga estrutura do poder, seu âmago — a conservação do
é difícil utilizar-se delas. Todas as descobertas e invenções os poderoso às custas de todos os demais —, foi levada ad absur-
favorecem, como se tivessem sido feitas apenas para eles. O dum, está totalmente em ruínas. O poder é maior, mas tam-
520 521.
bém é mais fugaz do que nunca. Todos sobreviverão ou nin- NOTAS
guém sobreviverá!
Mas, para encontrar o ponto fraco do sobrevivente, é •
preciso descobrir suas manipulações lá onde elas parecem ser TI Pág. 32 — A descrição de haka encontra-se em J. S. Polack, New
mais naturais. Seu crescimento é indiscutido e, por este motivo, Zealand. A narrative of traveis and adventure, London, 1838, vol. I,
especialmente perigoso na distribuição das ordens. Já demons- págs. 81.84.
Pág. 39 — A "Parada em Arafat" foi descrita várias vezes; a des-
tramos como a ordem, na sua forma domesticada e usual da crição mais detalhada encontra-se em Gaudefroy-Demombynes, Le Pèle-
convivência entre os homens, nada mais representa que uma ':. rinage à la Mekke, Paris, 1923, págs. 241-255.
sentença de morte suspensa. Sistemas eficazes e exacerbados Pág. 43 — Bechuana: Dornan, Pygmies and Bushmen of the Kala-
de tais ordens se introduziram por toda parte. Quem subiu hari, pág. 291.
demasiadamente rápido ao ponto mais elevado, ou quem de Pág. 43 — Boloki: Weeks, Among Congo Cannibals, pág. 261.
alguma forma conseguiu apropriar-se do poder supremo, pela Pág. 44 — Pigmeus do Gabão: a canção sobre a caverna dos mor-
tos foi extraída de Trilhes, Les Pygmées de la forêt équatoriale, Paris,
própria natureza de sua posição vive dominado pelo medo de
1931.
mandar e deve tentar libertar-se dele. A ameaça contínua, da Pág. 44 — Espíritos auxiliares dos xamãs dos chukches: Ohlmarks,
qual ele se vale e que constitui a essência propriamente dita Studien zum Problem des Schamanismus, pág. 176.
do sistema, se volta finalmente contra ele. Esteja ou não real- Pág. 44 — Visão do xamã dos esquimós: Rasmussens, Thulefahrt,
mente ameaçado por inimigos, ele sempre se sentirá ameaçado. Frankfurt, 1926, págs. 448-449.
Pág. 44 — Exércitos dos mortos da região montanhosa da Escócia-
A ameaça mais perigosa vem de sua própria gente, a quem
Carmichael, Carmina Gaidelica, vol. II, pág. 357.
sempre dá ordens, que está mais próxima dele, que o conhece Pág. 45 — A aurora boreal entre os lapões e os índios tlingits:
bem. O meio de libertar-se, ao qual não recorre sem vacilar, Hõfler, Kultische Geheimbünde der Germanen, Frankfurt, 1934, págs.
mas ao qual jamais chega a renunciar, é a ordem repentina 241-242.
de uma morte em massa. Ele dá início a uma nova guerra e Pág. 45 — A população do ar: Bin Gorion, Die Sagen der Juden,
tomo I. Von der Urzeit, pág. 348.
envia seus homens a lugares onde irão matar. Muitos deles Pág. 46 — O exército dos demônios entre os persas: Darmesteter,
poderão sucumbir nessa empresa. Ele não lamentará que isso The Zend-Avessa, Part II, pág. 49.
aconteça. Qualquer que seja a atitude que adote exteriormente, Pág. 46 — Caesarius von Heisterbach: uma tradução inglesa com-
sente uma necessidade profunda e secreta de que também as pleta do Dialogus Miraculorum apareceu com o título de The Dialogue
fileiras de seus próprios homens sejam dizimadas. Para a sua on Miracles, Editorial Routledge, Londres, 1929. Os fragmentos citados
libertação do medo de mandar é necessário que também mor- pertencem ao vol. I, págs. 322-323 e 328; vol. II, págs. 294-295.
Pág. 47 — Deus e sua corte: Caesarius, op. cit., vol. II, pág. 343.
ram muitos dos que combatem por ele. A floresta do seu medo Pág. 47 — Poema dos gafanhotos: Waley, The Book o/ Songs,
tornou-se espessa demais; é preciso cortar árvores para que London, 1937, pág. 173.
ele possa respirai-. Se vacilou durante tempo demais, deixa de Pág. 61 — Madame Jullien a seu filho: carta de 2 de agosto de
ver claramente e pode deteriorar muito sua própria posição. 1791, em Landauer, Brief e aus der Franzasischen Revolution, tomo I,
pág. 339.
Seu temor de mandar assume então proporções que conduzem
Pág. 62 — Camille Desmoulins a seu pai. Landauer, tomo 1, pág.
à catástrofe. Mas antes que a catástrofe atinja a ele mesmo, a 144.
seu próprio corpo que para ele encarna o mundo, ele conduz Pág. 63 — Revivais: boas informações a respeito dos Revivais, prin-
inúmeros outros à perdição. cipalmente na América, se encontram no livro de Davenport: Primitive
O sistema de ordens é universalmente admitido. Ele se Traits in Religious Revivais, New York 1905. Um dos pregadores mais
famosos narrou a história de sua própria vida: Peter Cartwright, The
solidificou da maneira mais nítida nos exércitos. Mas muitos Backwoods Preacher. An Autobiography, London, 1858.
outros âmbitos da vida civilizada estão dominados e marcados Pág. 63 — Castigos infernais: Davenport, op. cit., pág. 67.
pela ordem. A morte como ameaça é a moeda do poder. É Pág. 63 — Meeting de Cane Ridge: Davenport, op. cit., págs. 73-77.
fácil colocar aqui moeda sobre moeda e acumular grandes capi- Pág. 64 — Convulsões, latidos, riso sagrado: Davenport, op. cit.,
tais. Quem quiser reduzir o poder deve encarar a ordem, fren- págs. 78-81.
te a frente, sem temor, e encontrar os meios para despojá-la Pág. 65 — A descrição de uma festa entre os papuas em todas as
suas fases constitui o tema de um livro sumamente ágil de André Du-
do seu aguilhão. Peyrat: Jours de Fête chez les Papous, Paris, 1954.
522 523
Pág. 68 - Uma festa entre os tupinambás: Jean de Léry, Le voya- Pág. 130 - Malta de caça e canguru: Arunta, págs. 170-171.
ge au Brésil 1556-1558. Nova edição em 1927, Ed. Payot, Paris, págs. Pág. 132 - Deitar-se sobre o candidato: Arunta, págs. 192-193.
223-224. Pág. 133 - Spencer and Gillen, The Arunta. Fila indiana, pág.
Pág. 69 - Dança guerreira das mulheres entre os kafirs do Hindu- 160. Rodar em círculo, muito freqüente, por exemplo, pág. 273. Esten-
kush: Crooke, Things Indian, pág. 124. der-se em fileira, pág. 280, fig. 100. Disco dançante, págs. 261-262. Duas
Pág. 69 - Dança guerreira entre as mulheres dos jívaros: R. Kars- fileiras frente a frente, pág. 189. Quadrilha, pág. 278. Montão no solo,
ten, Blood Revenge, War and Victory Feasts among que Jibaro Indians págs. 286, 290, 292. Provas de fogo, pág. 294. Lançamento de ramos
of Eastern Ecuador, Washington, 1922, pág. 24. ardentes, págs. 279 e 289. Circuncisão, pág. 219.
Pág. 70 - Mirary em Madagascar: R. Decary, Moeurs et Coutumes Pág. 140 - Mary Douglas, The Leia of Kasai, in African Worlds,
des Malgaches, Paris, 1951, págs. 178-179. editado por Daryll Farde, Oxford University Press, 1954, págs. 1-26.
Pág. 73 - Jeremias: 25, 33. Pág. 141 - Prestígio da selva: M. Douglas in African Worlds,
Pág. 73 - A pregação de Maomé aos inimigos mortos: as tradi- pág. 4.
ções a respeito da vida de Maomé, segundo Ibn Ishak, apareceram na Pág. 143 - Caça conjunta: M. Douglas, ibid., págs. 15-16.
tradução alemã de Weil, em 1864. Este trabalho foi superado pela Pág. 147 - R. Karsten, Blood Revenge, War and Victory Feasts
moderna tradução inglesa de A, Guillaume, The Life of Muhammad. A among the Jibaro Indians of Eastern Ecuador, Washington, 1922. Um
translation of Ibn Ishaqs Sirat Rasul Allah, Oxford, 1955. Os relatos
estudo mais recente é o de M. W. Stirling, Historical and Ethnographi-
a respeito da pregação triunfal aos mortos se encontram nas páginas cal Material on the Jibaro Indians, Washington, 1938.
305-306.
Pág. 74 - O relato de Une: em Erman, Ãgypten und iigyptisches Pág. 149 - Ruth Benedict, Patterns of Culture, Houghton Mifflin,
Leben im Altertum, pág. 689. Boston, 1934, págs. 57-130.
Pág. 74 - Hino de louvor a Ramsés II: Erman, Die Literatur Pág. 150 - Conjuração da chuva: Urformen der Kultur, pág. 53.
der Agypter, pág. 324. Pág. 153 - Daomé: Dalzel, The History of Dahomey, 1793. Este
Pág. 74 - A batalha de Kadesh: Erman, Die Literatur der livro antigo de valor inestimável contém também a primeira descrição
Agypter, pág. 333. detalhada dos "Annual Customs", a festa anual; outras obras sobre o
Pág. 75 - A vitória de Merenptah sobre os líbios: Erman, Ãgypten Daomé: Burton, A Mission to Geleia, King of Dahomey, 2 vols., Lon-
und agyptisches Leben, pág. 710-711. don, 1864. Ellis, The Ewe-speaking Peoples of the Slave Coast of West
Pág. 75 - Ramsés III e os líbios: Erman, op. cit., pág. 711. Africa, 1890. Le Hérissé, L'Ancien Royaume du Dahomey, Paris, 1911.
Pág. 75 - Contagem de cabeças entre os assírios. O relevo da Herskovits, Dahomey, an Ancient West African Kingdom, 2 vols., New
época de Assurbanípal está reproduzido esquematicamente em G. Mas- York, 1938.
péro, Au Temps de Ramses et d'Assourbanipal, pág. 370. Pág. 156 - O peregrino espanhol Ibn Jubayr. The Traveis of Ibn
Pág. 81 - O fogo nos Vedas: H. Oldenberg, Die Religion des Jubayr. Translated by R. J. C. Broadhurst, Cape, London, 1952. Capa-
Veda, pág. 43. cidade de ampliação de Meca, pág. 174.
Pág. 84 - A dança do fogo dos índios navajos: Hambly, Tribal Pág. 157 - O profeta da luta e da guerra: Goldziher, Vorlesun-
Dancing and Social Development, London, 1926, págs. 338-339. gen über den Iriam, págs. 22 e 25. "Matem os infiéis": Cotão, 9, 5.
Pág. 85 - A incendiária: Krãpelin, Einführung in die psychiatri- Pág. 157 - Cibele transtornada: Luciano, Diálogo dos Deuses,
sche Klinik, tomo II, caso 62, págs. 235-240. diálogo 12, segundo a tradução alemã de Wieland.
Pág. 93 - Os deuses da tempestade nos Vedas: Macdonell: Hymns Pág. 158 - Lamento de Isis: Erman, Religion der Agypter,
from the Rigveda, págs. 56-57. pág. 39.
Pág. 97 - Plutarco: Vida de Pompeu, cap. II. Pág. 160 - Além das conferências de Goldziher a respeito do
Pág. 107 - A partilha do botim de caça. Veja É. Lot-Palck, Les Islamismo, foram consultadas para este capítulo as seguintes obras:
Rites de Chasse chez les peuples sibériens, Gallimard, Paris, 1953, págs. Gobineau, Religions et Philosophies dans l'Asie Centrale, 1865. Nova
179-183. edição: Paris, 1957. Donaldson, The Shiite Religion, London, 1933. Von
Pág. 108 - A expedição militar dos taulipangues contra os pishau- Grunebaum, Muhammadan Festivais, London, 1958. Virolleaud, Le
kos foi extraída de Koch-Grünberg: Vom Roroima zum Orinoco, vol. Théâtre Persian, Paris, 1950. Titayna, La Caravana des Morts, Paris,
III, Etnographie, págs. 102-105. i9 3 0.
Pág. 120 - Totens dos australianos. Além das obras antigas de Pág. 161 - Os padecimentos de Hussain: Donaldson, op. cit.,
Spencer Gillen e de C. Strehlow, têm importância especial em relação págs. 79-87.
a este tema os seguintes trabalhos: Elkin, The Australian Aborigines, Pág. 162 - Tribulações da estirpe do profeta: Goldziher, op. cit.,
1943, e Elkin, Studies in Australian Totemism, "The Oceania Mono- págs. 212-213.
graphs", N.° 2, 1933. Pág. 162 - Chorar por Hussain: Goldziher, op. cit., págs. 213-214.
Pág. 121 - Dança dos búfalos dos mandans: George Catlin, The Pág. 163 - O túmulo de Hussain em Kerbela: Donaldson, op.
North American Indians, vol. I, págs. 143-144. cit., págs. 88-100.
Pág. 129 - Ungutnika e os cães selvagens: Spencer and Gillen, Pág. 163 - A grande festa dos xiitas• Grunebaum, op. cit.,
The Arunta, pág. 169. págs. 85-94.
524 525
Pág. 165 — Dois tipos de confrarias: Gobineau, op. cit., págs. Pág. 269 — Conquista de Mukdal. Sewell, A Forgotten Empire,
334-338.
Pág. 166 — "O teatro está repleto": Gobineau, op. cit., págs. ri pág. 34.
Pág. 270 — Hakim: Wolff, Die Drusen und ihre Vorlaufer,
353-356. Leipzig, 1845, pág. 286.
Pág. 168 — "Vá e salve das chamas": Grunebaum, op. cit., pág. 94. Pág. 271 — Para uma breve sinopse da história dos imperadores
Pág. 168 — O "Dia do Sangue": Titayna, La Caravane des mongóis, veja Smith: The Oxford History of India, págs. 321-468.
Morts, págs. 110-113; citado por De Félice: Foules en Délire, págs Pág. 271 — O relato dos jesuítas a respeito do príncipe Salim,
170-171. extraído de Du Jarric, Akbar and the Jesuits, translated by C. H. Payne,
Pág. 174 — Stanley: Sinai and Palestina, págs. 354-358. Routledge, London, 1926, pág. 182.
Pág. 176 — Curzon: Visits to Monasteries in the Levant, págs. Pág. 272 — Shaka: a melhor descrição contemporânea de Shaka
230-250. é a do viajante inglês Henry Fínn. Seu diário, que já tinha sido utili-
Pág. 185 — Nesta seção foram agrupados alguns capítulos que, zado com bastante freqüência, apareceu quase cem anos mais tarde em
com uma única exceção, se referem a situações modernas. Seria pre- forma de livro: The Diary of Henry Francis Fynn, editado por Stuart
maturo fornecer aqui mais elementos: o leitor ainda não está familia- and D. Mck. Malcolm. Pietermaritzburg, Shuter and Shooter, 1950. A
rizado com as conclusões de partes posteriores do livro, dedicadas à única biografia moderna, valiosa, que além de todas as fontes escritas
investigação do poder. Portanto, haveria motivos para não se concordar também utiliza as tradições orais, pertence a Ritter, Shaka Zulu, Long.
com o título de "Massa e História", achando-se que ele é demasiada- mans Green, London, 1955.
mente amplo. A aplicação das conclusões obtidas a respeito da massa Pág. 277 — O século dos etruscos: A. Grenier: Les Religions
e da malta em relação aos movimentos históricos de épocas anteriores Êtrusque et Romaine, Paris, 1948, pág. 26.
fica reservada para uma publicação posterior que, em parte, já está
Pág. 278 — O mana nas Ilhas Marquesas: Handy, Polynesian Re-
escrita, e em parte está esboçada.
Pág. 212 — O relato que forneço a respeito dos acontecimentos ligion, pág. 31.
entre os xosas procede — um pouco simplificado — de Theal, History Pág. 279 — O matador entre os murngins: Warner, A Black Civi-
of South Africa, vol. III, págs. 198-207. O missionário alemão Kropf, lization, Harper and Brothers, 1958, págs. 163-165. Este livro, que foi
testemunha dos acontecimentos, narrou suas impressões num artigo lançado pela primeira vez em 1937, é a descrição mais completa e
breve, muito ilustrativo, mas de difícil acesso: Die Lügenpropheten des importante de uma tribo australiana que possuímos até hoje.
Kat fernlandes, Neue Missionsschriften, ed., n.° 11, Berlim, 1891. Em Pág. 281 — O herói nas Ilhas Fidji: Lorimer Fison, Tales from
seu livro Propheten in Afrika, Braunschweig, 1949, Katesa Schlosser Old Fidji, págs. 51-53, XXI.
deu uma rápida versão dos acontecimentos nas páginas 35-41. Ela cita Pág. 283 — Cobra-monstro e herói entre os uitotos: K. Th. Preuss,
as partes mais importantes do artigo de Kropf. A descrição moderna Religion und Mythologie der Uitoto, Gõttingen, 1921, págs. 220-229.
mais detalhada, com material novo, se encontra num livro de um escritor Pág. 286 — Um sobrevivente entre os taulipangues: Koch-Grün-
sul-africano de província que permaneceu desconhecido na Europa: berg, Indianermlirchen aus Südamerika, Jena, Diederichs, 1921, págs.
Burton, Sparks from the Borden Anvil, King Williams Town, 1950, 109-110.
págs. 1-102. Pág. 288 — A origem dos kutenais: Boas: Kutenai Tales, n.° 74,
Pág. 236 — Zuckerman: The Social Life of Monkeys and Apes, "The Great Epidemic", págs. 269-270, Washington, 1918.
Kegan Paul, London, 1932, págs. 57-58. Pág. 289 — Suicídio em massa entre os ba-ilas: Smith and Dele,
Pág. 237 — Zuckerman, págs. 268-269; págs. 300-304. The Ila-speaking Peoples of Northern Rhodesia, London, 1920, vol. I,
Pág. 254 — Gengis-Khan: segundo Wladimirzov, The Live o.t pág. 20.
Chingis-Khan, Routledge, London, 1930, pág. 168. Pág. 290 — Cabres e caraíbas: Humboldt, Reise in die Aquinoc-
Pág. 255 — César: Plutarco, Vida de César, cap. 15. tial-Gegenden des neuen Kontinents, vol. V, pág. 63.
Pág. 258 — O banquete fúnebre de Domiciano: Dio, História
Romana, Epítome do livro LXVII, cap. 9.
Pág. 260 — O relato se encontra em Flávio Josefo: História da
Guerra dos Judeus, livro III, cap. 8.
Pág. 264 — "No final restou justamente o próprio Josefo, diga-se
1 Pág. 292 — Morte de uma criança índia em Demerara: Roth, An
Inquiry finto the Animism and Folklore of the Guiana-Indians, Wash-
ington, 1915, pág. 155.
Pág. 294 — O culto dos ancestrais entre os zulus: o irmão vivo
e o irmão morto: Callaway, The Religious System of the Amazulu, 1870,
por feliz casualidade ou divina providência, com outro companheiro." págs. 146-159.
Na versão eslava da Guerra dos Judeus, que segundo a opinião de Pág. 299 — O médium do rei em Uganda: N. K. Chadwick,
alguns eruditos se apóia num texto grego mais antigo, em vez desta Poetry and Prophecy, Cambridge, 1942, págs. 36-38.
frase encontra-se outra mais realista: "Depois que ele ( Josefo) disse Pág. 300 — O culto dos ancestrais entre os chineses: Granet, La
isto, calculou astutamente os números e assim enganou a todos". Ve- Civilisation Chinoise, Paris, 1929, págs. 300-302. Henri Maspéro,
ja-se a nova tradução inglesa em Penguin Classics: Josephus: The La Chine Antique. Nova edição, Paris, 1955, págs. 146-155. Jeanne
Jewish War, translated por G. A. Williamson, pág. 403. Appendix:
Cuisinier, Sumangat. L'âme et son culte en Indochine et en Indonésie.
The Slavonic Addictions. Gallimard, Paris, 1951, págs. 74-85.
Pág. 269 — Muhammad Tuglak. Veja o capítulo posterior: "O Pág. 303 — A peste em Atenas: Tucídides, História da Guerra
Sultão de Delhi", do Peloponeso, II, págs. 47-54.
526 527
Pág. 315 - "O ancestral de Gengis-Khan era uni lobo cinzento concordar totalmente com a orientação de sua interpretação dos textos
eleito pelo destino, que foi engendrado pelo alto céu". Com esta frase hindus, e de chegar a conclusões diferentes, devo muito ao trabalho dele.
começa a História Secreta dos Mongóis, editada e traduzida para o Nas minhas citações do texto de Lommel deixei de lado tudo o que
alemão por Haenisch, Leipzig, 1948. considero supérfluo numa investigação da inversão neste contexto.
Pág. 315 - A alma do imperador romano sobe como águia ao Pág. 375 - Bleek and Lloyd, Specimens of Bushman Folklore,
céu. Veja a maravilhosa descrição da apoteose de um imperador roma. London, 1911. Bushman Presentiments, págs. 330-339.
no - neste caso, Septímio Severo - em Herodiano, História do Impé- Pág. 381 - Mito dos lorityas sobre os tukutitas: C. Strehlow,
rio Romano desde Marco Aurélio, livro IV, cap. 2. Die Aranda- und Loritya-Stümme in Zentral-Australien, II, págs. 2-3.
Pág. 315 - Temor das tempestades entre os mongóis, no diário Veja-se também Lévy-Bruhl, La Mythologie Primitive, Paris, 1935. Este
de viagem de Rubruk, Contemporaries of Marco Polo, editado por importante livro é sumamente sugestivo em muitos aspectos da me-
Komroff, London, 1928, pág. 91. tamorfose. Em geral ele se limita ao mundo mítico dos australianos e
Pág. 316 - Os fulguratores dos etruscos: A. Grenier, Les Reli- dos papuas, traz citações muito extensas das melhores obras sobre a
gions Etrusque et Romaine, págs. 18-19. região e deixa muitas questões a critério do próprio leitor. Pode ser
Pág. 316 - Poder e raio: Franz Kuhn, Altchinesische Staatswei- considerada a obra menos problemática de Lévy-Bruhl.
sheit, pág. 105. - Desaparecimento de Rômulo em meio a uma tem- Pág. 382 - O Mestre e Seu Discípulo: Dirr, Kaukasische Mãrchen,
pestade: Lívia, I, 16. - Túlio Hostílio morto por um raio: Lívio, I, Jena, 1922.
31. - Morte de um antigo rei de Alba Longa, Rômulo Sílvio, por um Pág. 383 - Proteu: Odisséia, IV, págs. 440-460.
raio: Lívio, I, 3. Pág. 384 - Histeria: Krãpelin, Psychiatrie, tomo IV, págs. 1547-
Pág. 320 - As primeiras perguntas de uma criança: Jespersen, 1706. Bleuler, Lehrbuch der Psychiatrie, págs. 392-401. ICretschmer,
Language, pág. 137. Ueber Hysterie, 1927.
Pág. 323 - A Dama do Meio-Dia pergunta até a morte: Wendi- Pág. 385 - Xamãs: Czaplicka, Aboriginal Siberia, 1914. Ohl-
sche Sagen, editadas por Sieber, Jena, 1925, pág. 17. marks, Studien zum Problem des Schamanismus, 1939. Eliade, Le Cha-
Pág. 324 - O curandeiro entre os arandas: Spencer and Gillen, manisme, 1951. Findeisen, Schamanentum, 1957.
The Arunta, vol. II, págs. 391-420. Pág. 386 - Mania e melancolia: Krãpelin, Psychiatrie, tomo III,
Pág. 326 - A impenetrabilidade do último Visconti: Decembrio, Das manisch-depressive Irresein, págs. 1183-1395. Bleuler, Lehrbuch
Vida de Filippo Maria Visconti, traduzido para o alemão por Funk, der Psychiatrie, págs. 330-351.
Jena, 1913, cap. 43, págs. 29-30. Pág. 387 - T. G. H. Strehlow, Aranda Traditians, Melbourne
Pág. 327 - A prova de discrição de Cósroes II: Le Livre de la University Press, 1947.
Couronne, attribué a Gahiz, traduit par Ch. Pellat, Paris, 1954, págs. Pág. 387 - O mito "bandicoot": Strehlow, op. cit., págs. 7.10.
118-120. Pág. 390 - O mito Lukara: Strehlow, op. cit., págs. 15-16.
Pág. 349 - Wukuf e ifadha. Veja o livro já citado de Gaude- Pág. 393 - "O ancestral como soma total da essência viva":
froy-Demombynes, Le Pèlerinage à la Mekke, Paris, 1923, págs. 235-303. Strehlow, op. cit., pág. 17.
Pág. 355 - Luciano, Sobre a deusa síria. Tradução alemã de Pág. 397 - O ancestral-larva de Mboringka: Strehlow, op. cit.,
Wieland, tomo IV das Obras Completas, Munique, 1911, págs. 376-377. pág. 12.
Pág. 355 - Skoptsy: a obra mais exaustiva, mas um pouco pe- Pág. 399 - Alucinações do delirium tremens: Krãpelin, Psychia-
sada, a respeito dos skoptsys é a de Grass: Die russischen Sekten. trie, tomo II, pág. 132. Bleuler, Lehrbuch der Psychiatrie, págs. 227-
Vol. II: Die weissen Tauben oder Skopzen, Leipzig, 1914. Grass tam- 228 e 233.
bém traduziu para o alemão o "Escrito sagrado e secreto dos skoptsys", Pág. 406 - O dono de restaurante: Krãpelin, Einführung in die
Leipzig, 1904. Uma obra mais recente e que contém excelente material Psychiatrische Klinik, tomo II, caso 43, págs. 157-161.
é: Rapaport: Introduction à la Psychopathologie Collective. La Sede Pág. 408 - Esquizofrênico delirante: Bleuler, Lehrbuch der Psy-
mystique des Skoptzy, Paris, 1948. chiatrie, págs. 234-235.
Pág. 357 - Assassinos: a bibliografia mais antiga sobre os assas- Pág. 413 - O asno na pele de tigre: Hertel, Indische Mãrchen,
sinos foi superada em boa parte pela obra crítica de Hodgson: The Diedrichs, Jena, 1921, págs. 61-62.
Order of Assassins, Haag, 1955. Pág. 446 - Liudprando de Cremona: O livro da vingança, livro
Pág. 359 - Escravidão da sugestão: Krãpelin, Psychiatrie, vol. VI, cap. 5.
III, pág. 723. Pág. 448 - Paralisia clássica: Krãpelin, Einführung in die Psy-
Pág. 360 - Os mosquitos falam etc.: todas as citações foram chiatrische Klinik, tomo II, caso 26, págs. 93-97.
extraídas de Krãpelin, Psychiatrie, vol. III, págs. 673-674. Pág. 451 - Paralisia agitada: Krãpelin, op. cit., caso 28, págs.
Pág. 361 - Num importante ensaio publicado em 1950 em Pai- 101-102.
deuma, vol. 4, com o título de "Bhrigu no além", Hermann Lommei Pág. 457 - Neste ponto foi consultada a obra Geschichte Afrikas
ofereceu um resumo desta expedição dos Shatapatha-Brahmana que de D. Westermann, Colônia, 1952, que contém uma quantidade de
utilizei acima. Lommel reuniu aqui todos os casos correspondentes da material realmente extraordinária.
literatura antiga da índia, completou-os com um suplemento no vol. 5 Pág. 457 - Morte e eleição de um novo rei no Gabão: Du
de Paideuma, em 1952, e relacionou-os com as concepções de outros Chaillu, Explorations and Adventures in Equatorial Africa, 1896, págs.
povos a respeito do "mundo invertido" dos mortos. Apesar de não 18-20.
528 529
Pág. 460 - O rei de Yukun: Meek, A Sudanese Kingdom, Kegan Pág. 472 - A história de Ziau-d din Barani se encontra no vol.
Paul, London, 1931, págs. 120-177, págs. 332-353. De forma mais_ su- III de Elliot and Dowson: The History of _índia as told by its own
cinta em Westermann, op. cit., págs. 149-150. Historians, 1867-1877. Agora apareceu em separata como Later Kings
Pág. 461 - Características dos reis africanos: Westermann, op. of Delhi, na editora S. Gupta, Calcutá. Muhamánad Tughlak é abordado
cit., págs. 34-43. nesta obra nas páginas 159-192.
Pág. 483 - Como exemplo de um defensor moderno do sultão
Pág. 463 - Imitação dos reis. Monomotapa: Westermann, op. cit.,
pode ser mencionado o historiador indiano Ishwari Prasad: Vinde du
págs. 413-414. Etiópia: Diodoro, III, 7. Estrabão, XVII, 2, 3, Darfur,
Traveis of an Arab Merchant in Soudan, Londres, 1854, pág. 78. Ugan- VHe Siècle (na coleção "Histoire du Monde"), Paris, 1930, págs. 270-
300. Ele o define como um "idealista infeliz" e "sem dúvida alguma,
da, Boní, China: Frazer, The Dying Coei, págs. 39-40.
a pessoa mais capaz da Idade Média".
Pág. 465 - O próprio rei determina a duração do seu reinado: Pág. 483 - Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, do Dr. Da-
Montei], Les Bambara du Ségou, Paris, 1924, pág. 305. niel Paul Schreber, Leipzig, 1903.
Pág. 465 - Eleição e surra de um rei entre os iorubas: Wester-
mann, op. cit., pág. 40; em Serra Leoa, ibidem, pág. 41.
Pág. 465 - Anarquia após a morte do rei: entre os mosis de
Wagadugu: Westermann, op. cit., pág. 185; em Ashanti, ibidem, pág. 222;
em Uganda: Roscoe, The Baganda, Londres, 1911, págs. 103-104.
Pág. 466 - Os estados himas se formaram por conquista no ter-
ritório da atual Uganda e ao sul deste país. Pastores guerreiros de pro-
cedência hamítica, conhecidos exatamente como os himas, tinham emi-
grado do norte e submeteram e transformaram em servos os negros ali
estabelecidos que se dedicavam à agricultura. Seus reinos pertencem
aos mais interessantes da África: distinguem-se por uma nítida dife-
rença entre a casta dos senhores e dos servos.
Pág. 466 - A sucessão em Ankolé: Oberg, The Kingdom of
Ankole in Uganda, em: Af rical Political Systems, editado por Fortes
and Evans-Pritchard, Oxford University Press, 1954, págs. 121-162. O
trecho sobre a sucessão, págs. 157-161. Menos conciso, mas digno de
ser lido, é o livro mais antigo de Roscoe, The Banyankole, Cambridge,
1923. Sobre a parte meridional dos estados himas, de Ruanda, existe
um excelente novo trabalho: Maquet: The Kingdom of Ruanda, em:
African Worlds, editado por Daryll Forde, págs. 164-189.
Pág. 467 - Sacrifício de um jovem príncipe na coroação do rei
de Kitara: Roscoe, The Bakitara, Cambridge, 1923, págs. 129-130.
Pág. 468 - O arco do rei de Kitara: Roscoe, The Bakitara, págs.
133-134.
Pág. 469 --- Uganda: tambores. Roscoe, The Baganda, pág. 188.
Pág. 469 - "Eu viverei mais que meus ancestrais". Roscoe, The
Baganda, pág. 194. Aprisionamento de dois passantes: Roscoe, ibidem,
pág. 197. Bode expiatório e guardião: Roscoe, ibidem, pág. 200.
Pág. 469 - Sacrifício duplo: um é morto, o outro perdoado. Ros-
coe, The Baganda, pág. 210.
Pág. 470 - "Agora você é Ata": Westermann, Geschichte Afrikas,
pág. 39.
Pág. 470 - O rei de Uganda come sozinho como um leão: Ros-
coe, The Baganda, pág. 207.
Pág. 471 - O cozinheiro alimenta o rei de Kitara: Roscoe, The
Bakitara, pág. 103.
Pág. 471 - Justiça sumária: Roscoe, The Bakitara, págs. 61 e 63.
Pág. 472 - Viagem do árabe Ibn Batuta através da índia e da
China. Adaptado por H. von Muzik, 1911. Ibn Batuta, Travels in
Asia and Africa 1325-1354, Translated and selected by J. A. R. Gibb,
Routledge, London, 1929. As citações correspondem a esta edição
inglesa.
530 .
53'•
Para desenvolver todo o tra-
balho de Massa e Poder, Canetti
levou 35 anos, e no parecer de
Arnold Toynbee "Canetti ofere-
ce realmente uma nova intros-
pecçào nas bases do convívio
humano. O que ele tema dizer a
respeito do homem e das atitu-
des das massas forma a base do
conhecimento abrangente da
sociedade humana em geral"
ka.
Capa de
99'29
Georg Reuthner