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Eis uma obra fundamental e totalmente original

de investigação dos fenõmenos sociais. Situando-


se entre o ensaio e a narrativa para construir seus
modelos cognitivos lúcidos, Canetti organiza seu
trabalho de pesquisa por meio da fenomenologia
e da dialética dos símbolos. Esta metodologia
permite ao autor-vincular dados histõricos e
sociológicos com os resultados mais recentes da
investigação em psicopatologia.
Nasce assim uma nova disciplina, uma espécie
de Antropologia Patológica, que, ao estudar a
interação entre a massa e o poder, revela as
anomalias patológicas do ser humano em sua
totalidade biopsíquica.
Entretanto, o autor não se detém no simples
diagnóstico. A Antropologia Patológica, o estudo
da patologia social e cultural, o conduz,
contrapondo as constantes do comportamento
coletivo com as expressões do poder, a
estabelecer as própriaS bases de uma
terapêutica. Como na psicanálise, a revelação
da natureza da enfermidade com a indicação
precisa dos centros infecciosos, a tomada de
consciência das próprias raízes do mal, são fatos
que na realidade predispõem à cura.
~-27. .01

Cód. 7-02-04-060
Editara Universidade de Brasília / MELHORAMENTOS
MASSA E PODER
Ao receber o Prêmio Nobel de
Literatura, Canetti não era consi-
derado um azarão, pois, ao lon-
MASSA E PODER
go de muitos anos, ele construiu
uma sólida reputação literária,
baseada em dois livros muito só-
lidos e incomuns; o próprio Auto
de Fé, um embasamento para
chegar a sua obra maior Massa
e Poder, na qual tenta uma aná-
lise imaginária mais sistemática
das multidões como um fenôme-
no e dos efeitos de massa nas
sensações do cotidiano.
Não há dúvida de que Canetti
com esta obra enriqueceu so-
bremaneira nosso conhecimen-
to dos processos de massa e po-
der. Ele olha para os fenômenos
como se estes ainda não estives-
sem enevoados por qualquer
teoria, não organizados para fá-
cil acolhimento. A obra de Ca-
netti, escrita numa linguagem
,alara, objetiva e forte deve mui-
to às disciplinas científicas e a
um conhecimento envolvente
de culturas estranhas, especial-
mente das "primitivas", que en-
contraram acolhida com ele.
Canetti está lá, onde a antropo-
logia, a sociologia e a psicolo-
gia nascem e se fecundam reci-
procamente.
Elias Canetti

MASSA E PODER
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CONSELHO DIRETOR
Abílio Machado Filho Tradução de
Amadeu Cury
Aristides Azevedo Pacheco Leão Rodolfo Krestan
Isaac Kerstenetzky
José Carlos de Almeida Azevedo
José Carlos Vieira de Figueiredo
José Ephim Mindlín
José Vieira de Vasconcellos
Reitor: José Carlos de Almeida Azevedo
Vice-Reitor: Luiz Octávio Moraes de Sousa Carmo

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA


CONSELHO EDITORIAL
Afonso Arinos de Melo Franco
Antônio Paim
Arnaldo Machado Camargo Filho
Cândido Mendes de Almeida
Carlos Castello Branco
Geraldo Severo de Souza Ávila
Heitor Aquino Ferreira
Hélio Jaguaribe
Josaphat Marinho
José Francisco Paes Landim
José Honório Rodrigues
Miguel Reale
Octaciano Nogueira
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Vamireh Chacon de Albuquerque Nascimento
Vicente de Paulo Barretto
Presidente: Carlos Henrique Cardim EditoraUniversidade de Brasília / MELHOMMERTOS
CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação SUMÁRIO
Câmara Brasileira do Livro, SP

Canetti, Elias, 1905-


C225m Massa e poder / Elias Canetti ; tradução de Rodolfo
Krestan. — São Paulo Melhoramentos ; [Brasília] : Ed.
Universidade de Brasília, 1983.
(Hoje e amanhã) A MASSA
1. Comportamento de massa 2. Poder (Ciências so- Inversão do temor de ser tocado 11
ciais) 3. Psicologia social 4. Sociedade de massa I. Título. Massa aberta e fechada 12
A descarga 14
Impulso de destruição 16
CDD-301.155 O estouro 18
83-0424 -301.181 O sentimento de perseguição 21
Domesticação das massas nas religiões universais 22
Pânico 25
índices para catálogo sistemático:
A massa como anel 27
1. Comportamento de massa : Psicologia social 301.181 As propriedades da massa 28
2. Massa : Comportamento : Psicologia social 301.181 Ritmo 30
3. Massas : Sociologia 301.181
Poder : Psicologia social 301.155 Estancamento 35
4.
Lentidão ou a distância da meta 40
As massas invisíveis 43
Classificação segundo o efeito dominante 49
Massas de perseguição 50
Massas de fuga 55
Massas de proibição 58
Título do original em língua alemã: MASSE UND MACHT Massas de inversão 61
1960 claassen Verlag GmbH, Düsseldorf
Massas festivas 65
A massa dupla: homens e mulheres.
Todos os direitos reservados
Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel Vivos e mortos 66
Caixa Postal 8120, São Paulo A massa dupla: a guerra 72
Cristais de massa • 78
Composto pela Artestilo Compositora Gráfica Ltda. Símbolos de massa 80
Impressão e acabamento em oficinas próprias

Edição: 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 A MALTA
Ano: 1986 85 84 83
Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-04-060 Malta e maltas 101
A malta de caça 106
A malta de guerra 108
A malta de lamentação 113
A malta de multiplicação 171
1, A comunhão 123
DO PINHEIRO AO LIVRO, UMA REALIZAÇA0 MELHORAMENTOS A malta interna e a malta silenciosa 125
5
A determinação das maltas. Aversão dos chefes pelos sobreviventes
Sua constância histórica 127 Soberanos e sucessores 269
Maltas nas lendas históricas dos arandas 129 As formas de sobrevivência 273
Formações de homens entre os arandas „ ... 133 O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos 278
Os mortos como sobreviventes 291
Epidemias 303
MALTA E RELIGIÃO A respeito da sensação de cemitério 306
A respeito da imortalidade 308
A inversão das maltas 139
Selva e caça entre os leles de Kasai 140
Os despojos de guerra entre os jívaros 145 ELEMENTOS DE PODER
As danças da chuva dos índios pueblos 149
Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo 151 Força e poder 313
Força e rapidez 315
O islamismo como religião de guerra 155
Pergunta e resposta 317
Religiões de lamentação 157
O segredo 323
A festa do muharram entre os xiitas 160 330
Sentenciar e julgar
Catolicismo e massa 170 O poder do perdão. A graça 332
O fogo sagrado de Jerusalém ..... 174

A ORDEM
MASSA E HISTÓRIA
A ordem: fuga e aguilhão 337
Símbolos de massa das nações 185 A domesticação da ordem 341
A Alemanha de Versalhes 197 Contragolpe e medo de mandar 342
Inflação e massa 201 A ordem a muitos 344
A essência do sistema parlamentar 207 Espera de ordens 346
Divisão e multiplicação. Socialismo e produção 209 Espera de ordens dos peregrinos em Arafat 349
A autodestruição dos xosas 212 Aguilhão-ordem e disciplina 350
Ordem. Cavalo. Flecha 352
Castrações religiosas: os skoptsys 355
AS ENTRANHAS DO PODER Negativismo e esquizofrenia 358
A inversão 361
Tomar e incorporar A dissolução do aguilhão 364
223
Ordem e execução. O verdugo satisfeito 367
A mão 233
Ordem e responsabilidade 369
Sobre a psicologia do ato de comer 242

A METAMORFOSE
O SOBREVIVENTE
Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos 375
O sobrevivente 251 Metamorfose de fuga. Histeria, mania e melancolia 381
Sobrevivência e invulnerabilidade 252 Automultiplicação e auto-ingestão. A figura dupla
Sobreviver como paixão 254 do totem 387
O poderoso como sobrevivente 256 Massa e metamorfose no delirium tremens 399
A salvação de Flávio Josefo 260 Imitação e simulação 412
6 7
O personagem e a máscara . . . 416
A desconversão 421
Proibições de metamorfose 422
Escravidão ........... , . . 427

ASPECTOS DO PODER

-As posições do homem: o que elas contêm de poder 431


O maestro 439 A MASSA
Glória 442
A ordenação do tempo 443
A corte 445
O trono crescente do imperador de Bizâncio 446
Idéias de grandeza dos paralíticos 447

PODERIO E PARANÓIA

Reis africanos 457


O sultão de Delhi: Muhammad Tughlak 471
O caso Schreber. Primeira parte 483
O caso Schreber. Segunda parte 499

Epílogo 515

Notas 523

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Inversão do temor de ser tocado

Não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado
pelo desconhecido. Ele quer saber quem o está agarrando; ele
o quer reconhecer ou, pelo menos, classificar. O homem sempre
evita o contato com o estranho. De noite ou em locais escuros
o terror diante de um contato inesperado pode converter-se
em pânico. Nem mesmo a roupa oferece segurança suficiente;
é fácil rasgá-la, é fácil chegar até a carne nua, lisa e indefesa
do agredido .
Todas as distâncias que o homem criou em torno de si
surgiram a partir deste temor de ser tocado. As pessoas se
fecham em suas casas nas quais ninguém pode entrar, e so-
mente dentro delas é que elas se sentem relativamente seguras.
O medo do ladrão não diz respeito apenas às suas intenções de
assalto, mas também a um temor de ser tocado por um ataque
repentino e inesperado vindo das trevas. A mão, transformada
em garra, sempre volta a ser utilizada como símbolo deste
medo. Uma boa parte deste contexto foi incluída no duplo
sentido da palavra "agarrar". Tanto o contato mais inofensivo
como o ataque mais perigoso estão incluídos neste termo, e
sempre existe uma certa influência do segundo sentido sobre
o primeiro. O substantivo "agressão" passou a designar uni-
camente o sentido pejorativo do termo,
Esta aversão em relação ao contato não nos abandona
quando nos misturamos com outras pessoas, A maneira como
nos movimentamos na rua, entre muitas pessoas, em restau-
rantes, trens e ônibus, é determinada por este medo. Mesmo
quando nos encontramos muito próximos de outras pessoas,
quando podemos contemplá-las e estudá-las detalhadamente,
evitamos, na medida do possível, entrar em contato com elas.
Quando agimos de outra maneira, isto ocorre apenas porque a
outra pessoa nos agrada e então a aproximação parte de nós
mesmos.
A rapidez com que nos desculpamos quando, involunta-
riamente, entramos em contato com alguém, a ansiedade com
a qual se esperam estas desculpas, a reação violenta e às vezes
agressiva quando o pedido de desculpas não é feito, a anti-
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palia e o ódio que sentimos em relação ao "malfeitor", mesmo pergunta; no entanto, mesmo assim, têm pressa de chegar
quando não existe maneira de se ter certeza de que ele real- lá onde se encontra a maioria. Existe uma espécie de decisão
mente o é -- toda esta confusão de reações psíquicas relativas nos seus movimentos que se diferencia consideravelmente da
ao ser tocado pelo estranho, em sua extrema instabilidade e manifestação de uma curiosidade comum. Pensa-se que o mo-
irritabilidade, demonstra que se trata de algo muito profundo vimento de uns contagia os outros, mas não é apenas isto:
que nos mantém em posição de alerta e nos deixa suscetíveis eles têm todos uma meta. E antes de encontrarem palavras
a um processo que jamais abandona o homem depois que ele apropriadas para descrever isto, a meta passa a ser a zona de
estabeleceu os limites de sua pessoa. Até mesmo o sono, que maior densidade, o lugar onde se reúne o maior número de
nos torna muito mais indefesos, é extremamente fácil de ser pessoas.
perturbado por este tipo de temor. É preciso dizer mais algumas coisas a respeito desta forma
Somente quando imerso na massa é que o homem pode extrema da espontaneidade da massa. Lá onde ela se origina,
escapar deste temor em relação ao contato. Esta é a única no seu próprio núcleo, ela não é tão espontânea quanto parece.
situação na qual o temor se transforma no seu oposto. Para Mas no restante, se deixarmos de lado as cinco, dez ou doze
isto é necessária uma massa densa, na qual um corpo se estreita pessoas a partir das quais ela se originou, a espontaneidade
contra outro corpo, densa também na sua constituição anímica, realmente existe. E a partir do momento em que ela se torna
ou seja, quando já não se presta mais atenção a quem "se consistente, existe o desejo de aumentar esta consistência. A
aperta" contra a gente. Assim que uma pessoa se abandona à ânsia do crescimento é a primeira e principal característica da
massa, ela deixa de temer o seu contato. Neste caso ideal, massa. Ela quer incluir todos os que estão, de alguma forma,
todos são iguais entre si. Nenhuma diferença conta, nem mesmo ao seu alcance. Todo e qualquer ser com forma humana pode
a dos sexos. Qualquer pessoa que se aperte contra nós, torna-se tomar parte dela. A massa natural é a massa aberta: seu cresci-
idêntica a nós mesmos. Nós a sentimos, da mesma forma como mento não tem limites prefixados. Ela não reconhece casas,
sentimos a nós mesmos. De repente, tudo acontece como que portas ou fechaduras; todos os que relutam em se incluir nela
dentro de um só corpo. Talvez este seja um dos motivos pelos tornam-se suspeitos. O termo "aberta" deve ser compreen-
quais a massa procura se apertar tão densamente: ela quer se dido aqui num sentido amplo: a massa é aberta em todas as
livrar da maneira mais completa possível do temor do contato partes e em todas as direções. A massa aberta existe enquanto
de cada um dos seus indivíduos componentes. Quanto maior cresce, Sua desintegração tem início no instante em que deixa
for a veemência com a qual os homens se apertam, tanto maior de crescer,
é a certeza de que eles não se temem entre si. Esta inversão do Pois com a mesma rapidez com a qual se formou, a massa
temor de ser tocado faz parte da massa. O alívio que se pro- também se desintegra. Nesta forma espontânea, ela é uma con-
paga dentro dela — e que será examinado dentro de outro figuração frágil, Sua abertura, que lhe possibilita o cresci-
contexto — alcança uma proporção impressionantemente ele- mento, é simultaneamente seu perigo. Dentro dela sempre
vada na sua densidade máxima. permanece vivo o pressentimento da desintegração que a amea-
ça, e da qual ela procura escapar através de um crescimento
acelerado, Enquanto pode, ela incorpora tudo; no entanto, por
Massa aberta e fechada incorporar tudo, ela é forçada a se desintegrar.
Em oposição à massa aberta, que pode crescer até o infi-
Uma aparição tão enigmática quanto universal é a da massa nito, que se encontra em todos os lugares e que justamente
que surge repentinamente onde antes não havia coisa algu- por este motivo reclama um interesse universal, existe a massa
ma. É possível que algumas pessoas tenham estado juntas, fechada,
umas cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado, nada Esta renuncia ao crescimento e estabelece como sua
era esperado. Repentinamente, tudo está cheio de gente. De meta principal a permanência. A característica que mais chama
todos os lados pessoas começam a afluir como se todas as a atenção nela é o limite. A massa fechada se estabelece; ela
ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que cria o seu lugar limitando-se; o espaço que ela irá preencher
aconteceu, sendo incapazes de responder a qualquer tipo de lhe é assinalado. Ela é comparável a um recipiente no qual
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se verte um liquido; sabe-se sempre quanto líquido pode ser qual ele encerra sua propriedade e sua própria pessoa, o posto
colocado dentro dele. Os acessos ao espaço são limitados; não que ele ocupa, o status que almeja, tudo isto serve para criar,
se pode ingressar nele de qualquer maneira, O limite é res- para fortalecer e para aumentar distâncias. A liberdade é tolhi-
peitado. Este limite pode ser feito de pedra, de paredes sóli- da no momento em que existe um movimento de maior pro-
das. É possível que haja a necessidade de um determinado fundidade em direção a outra pessoa. Impulsos e reações de-
ato de recepção; talvez seja preciso pagar uma determinada saparecem como água num deserto. Ninguém é capaz de chegar
quantia pelo ingresso. E quando o espaço está repleto com a às proximidades, às alturas de outra pessoa. Hierarquias fir-
densidade desejada, ninguém mais é admitido. Mesmo quando memente estabelecidas em todos os âmbitos da vida impedem
transborda, a parte principal continua sendo a massa densa a intenção de chegar até os superiores, de inclinar-se até os
dentro do espaço fechado; e os que permaneceram do lado de inferiores, a não ser em termos de aparências superficiais. Nas
fora não podem realmente fazer parte dela. diversas sociedades existentes, estas distâncias estão recipro-
O limite serve para impedir um aumento desordenado, camente equilibradas de maneira diferente. Em algumas delas,
mas também para dificultar e para retardar a desintegração. a ênfase é dada às diferenças de origem; em outras, às dife-
A massa ganha em estabilidade o que sacrifica em termos de renças de ocupação ou de propriedade.
possibilidade de crescimento. Ela se protege de influências Não é importante detalhar aqui todas as características
externas que poderiam ser-lhe hostis e perigosas. No entanto destas hierarquias. O importante é que elas existem por todos
ela conta de maneira toda especial com a repetição. Através os lados, que estão instaladas na consciência dos homens, e
da perspectiva de voltar a se reunir, a massa supera todas as que determinam de maneira decisiva o comportamento deles
vezes a sua própria dissolução. O edifício, o arcabouço espera em relação aos demais. A satisfação de se estar acima de outras
por ela, ele existe por causa dela, e enquanto ele existir a pessoas dentro de uma hierarquia não compensa a perda de
massa continuará se reunindo exatamente da mesma maneira, liberdade de movimentos. Nas suas distâncias, o homem se
O espaço continua existindo mesmo nos momentos de maré torna mais rígido e mais sombrio. Ele é obrigado a suportar
baixa e, pelo seu vazio, ele lembra o tempo da maré cheia. estas cargas e não avança, não progride. Ele se esquece de
que estas cargas foram criadas por ele mesmo e deseja liber-
tar-se delas. Mas como poderá libertar-se delas sozinho? Por
A descarga mais que faça para conseguir isto, por maior que seja sua
determinação neste sentido, ele continua situado entre os de-
O acontecimento mais importante que se desenrola no interior mais, que fazem seus esforços malograrem. Enquanto os
da massa é a descarga. Antes disto, a massa em si não chega demais se ativerem às suas distâncias, ele será incapaz de se
a existir realmente; é através da descarga que ela se integra aproximar deles.
de verdade, A descarga é o momento no qual todos os que Somente todos juntos são capazes de se libertar de suas
pertencem a ela se despojam de suas diferenças e sentem-se distâncias. E é exatamente isto o que acontece dentro de uma
iguais massa. Na descarga todas as separações são colocadas de lado
Entre estas diferenças devem ser consideradas principal- e todos se sentem iguais. Dentro desta densidade, como pra-
mente as de imposição externa: diferenças de status, de posi- ticamente não existe espaço entre as pessoas, os corpos se
ção e de propriedade. Os homens, como indivíduos, sempre pressionam uns contra os outros, e cada um fica tão próximo
têm consciência destas diferenças, que têm peso enorme, for- do outro como de si mesmo. O alívio que isto provoca é
çando-os a posições claramente separadas. O homem se situa impressionante. É em função deste momento feliz, no qual
com segurança num lugar determinado, mantendo-se distante ninguém é mais, ninguém é melhor do que os outros, que os
de tudo o que se aproxima dele com gestos judiciais eficazes. homens se transformam em massa.
Como um moinho de vento numa planície extensa, assim o No entanto o momento da descarga, tão desejado e tão
homem permanece em pé, expressivo e em movimento; até repleto de felicidade, comporta em si mesmo um perigo par-
o próximo moinho de vento não existe coisa alguma. Toda a ticular. Ele padece de uma ilusão básica: os homens que re-
vida, como ele a conhece, é definida por distâncias: a casa na pentinamente estão se sentindo iguais, não foram realmente
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tinuação. No entanto seria errôneo acreditar que a facilidade
igualados para sempre. Eles retornam às suas casas separadas de quebrar os objetos constitui o fato decisivo. Já foram ata-
e dormem nas suas próprias camas. Eles conservam suas pro- cadas esculturas feitas das pedras mais duras, que foram mu-
priedades; não renunciam aos seus nomes. Eles não repudiam tiladas e tornaram-se irreconhecíveis. Os cristãos destruíram
os seus familiares, nem tampouco escapam deles. Somente em as cabeças e os braços dos deuses gregos. Reformadores e
casos de transformações especiais e muito sérias é que os
revolucionários fizeram com que fossem baixadas dos seus
homens se libertam de velhos laços, contraindo novas ligações. pedestais imagens de santos, às vezes até de alturas conside-
E estas ligações que pela sua própria natureza são capazes de radas como um perigo mortal; e mais de uma vez a pedra que
admitir apenas um número limitado de membros e que devem se quis triturar era tão dura que foi impossível destroçá-la
assegurar sua própria existência mediante regras especiais e completamente.
rígidas, eu as denomino cristais de massa. Posteriormente tra- A destruição de imagens que representam alguma coisa
tarei demoradamente de suas funções. é a destruição de uma hierarquia que deixou de ser aceita.
A massa propriamente dita, porém, se desintegra. Ela Desta forma são atacadas as distâncias habituais, que estão à
sente que acabará por se desintegrar. E teme esta decomposi- vista de todos e que são válidas em todos os lugares. Sua
ção. Ela somente poderá subsistir se o processo da descarga dureza era a expressão de sua permanência; elas existiam,
tiver continuidade devido à chegada de novos elementos hu- eretas e imóveis, há muito tempo, desde sempre, e era impos-
manos. Somente o incremento da massa impedirá que seus sível aproximar-se delas com intenções de hostilidade. Mas
componentes tenham de submeter-se novamente às suas cargas agora elas estão caídas e destroçadas. A descarga se consumou
privadas.
através deste ato.
No entanto, não é sempre que se chega a este ponto. A
destruição do tipo mais comum, à qual nos referimos inicial-
Impulso de destruição mente, consiste somente num ataque a todos os limites. Portas
e janelas pertencem às casas, sendo ao mesmo tempo a parte
Fala-se freqüentemente a respeito do impulso de destruição mais delicada de sua limitação com o exterior. Uma vez des-
da massa; esta é a primeira de suas características, que salta troçadas as portas e as janelas, a casa perdeu sua individuali-
aos olhos e é impossível negar que se encontra em toda parte, dade. Agora, qualquer pessoa pode entrar nesta casa segundo
em todos os países e dentro das mais variadas culturas. Apesar sua própria vontade; nada e ninguém se encontra protegido
de se tratar de uma realidade comprovável e que é geralmente dentro dela. De maneira geral, acredita-se que nestas casas
desaprovada, ela jamais chega a ser satisfatoriamente explicada. estejam abrigados os homens que pretendem se excluir da
De preferência, a massa destrói casas e coisas. Como massa, os seus inimigos. Agora, tudo o que os separava da massa
muitas vezes se trata de objetos frágeis, como cristais, espelhos, foi destruído. Entre eles e a massa já não existe coisa alguma.
vasilhames, quadros e louças, existe uma tendência a se acre- Estes homens podem sair e juntar-se a ela. Podem ser pro-
ditar que seria justamente esta fragilidade das coisas que incita curados e apanhados.
a massa à destruição. É bem verdade que o ruído produzido No entanto, existe mais do que isto. O próprio indivíduo
pela destruição, o barulho das vidraças se partindo fornece tem a sensação de que dentro da massa ele consegue ultrapas-
uma contribuição importante ao encanto da coisa toda: são sar os limites de sua própria pessoa. Ele se sente aliviado, já
os vigorosos vagidos de uma nova criatura, os gritos de um que todas as distâncias que o voltavam para si mesmo e que
recém-nascido. O fato de eles serem tão facilmente provocados o encerravam em si mesmo foram abolidas. Ao eliminar estas
aumenta sua popularidade; tudo grita em uníssono e esse ba- cargas da distância, ele se sente livre e sua liberdade o impele
rulho equivale ao aplauso das coisas. Uma necessidade parti- à ultrapassagem destas fronteiras. E o que acontece com ele
cular desse tipo de barulho parece existir no início dos acon- deve acontecer também com os outros, e ele espera a mesma
tecimentos, quando a massa ainda está sendo formada por um coisa por parte dessas outras pessoas. Ele se irrita com o fato
número bastante reduzido de elementos, e quando ainda não de que um recipiente de barro seja formado apenas por limites.
aconteceu quase nada. O barulho promete o reforço desejado Numa casa desagradam-lhe as portas fechadas. Ritos e cerimô-
e funciona como um presságio feliz de que haverá uma con-
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nias, tudo o que serve para conservar as distâncias, são coisas convencido de boa fé de que o importante era o próprio sermão,
que o ameaçam e que lhe são insuportáveis. Haverá uma inten- ter-se-ia mostrado surpreendido e talvez até bastante indignado
ção posterior de conduzir a massa fragmentada para estes reci- se alguém lhe explicasse que o que lhe causava satisfação era
pientes pré-moldados. A massa odeia suas futuras prisões, que o grande número de ouvintes e não o sermão propriamente
sempre foram suas prisões. Para a massa nua tudo tem a apa- dito. Todas as cerimônias e as regras características de institui-
rência da Bastilha. ções deste tipo procuram, no fundo, interceptar a massa: mais
O mais impressionante de todos os meios de destruição vale uma igreja segura e repleta de fiéis do que o mundo in-
é o fogo. Ele é visível a grandes distâncias e serve para atrair certo na sua totalidade. Com a regularidade da ida à igreja,
outras pessoas. Ele destrói de maneira irremediável. Depois com a repetição familiar e exata dos rituais exatos, garante-se
de um incêndio, nada volta a ser como era antes. A massa à massa algo assim como uma vivência domesticada de si mes-
que incendeia julga-se irresistível. Tudo vai se incorporando ma. A realização destas cerimônias em tempos estabelecidos
a ela enquanto o fogo avança. Tudo o que lhe for inimigo é acaba se convertendo no sucedâneo de necessidades de índole
destruído pelo fogo. Como se verá mais tarde, o fogo é o sím- mais dura e violenta
bolo mais vigoroso que existe para a massa. E depois de toda É possível que organizações deste tipo tivessem sido su-
a destruição, o fogo, exatamente como a própria massa, está ficientes, se o número de pessoas tivesse permanecido mais ou
fadado a se extinguir. menos estável. Porém as cidades cresceram sem parar; o au-
mento populacional dos últimos cem anos ocorreu com uma
velocidade crescente. Isto também criou todos os estímulos
O estouro necessários para a formação de massas novas e maiores, e nada,
nem mesmo uma liderança mais experiente e sofisticada, teria
A massa aberta é a massa propriamente dita que se abandona sido capaz de evitar este fato em tais circunstâncias.
livremente ao seu impulso natural de crescimento. Uma mas- Todas as sublevações contra um cerimonial tradicional
sa aberta não tem uma sensação ou uma visão clara da magni- de que nos fala a história da religião têm sempre como obje-
tude que pode chegar a alcançar. Ela não se prende a uma tivo acabar com a limitação da massa que, finalmente, quer
construção que lhe seja conhecida e que haja necessidade voltar a sentir seu próprio crescimento Tome-se como exem-
de preencher. Sua medida fixa não está estabelecida; ela quer plo o Sermão da Montanha do Novo Testamento: ele ocorre
crescer até o infinito, e para isto o de que necessita são quan- ao ar livre, pode ser ouvido por milhares de pessoas e, não
tidades cada vez maiores de pessoas. É neste estado primitivo resta a menor dúvida quanto a isto, é dirigido contra a
que a massa chama mais a atenção. No entanto ela conserva manipulação das cerimônias limitadas do templo oficial. Pen-
algo de excepcional em si, e o fato de ela sempre acabar se se-se na tendência do cristianismo paulino de evadir-se dos
desintegrando faz com que nunca seja levada totalmente a limites nacionais e tribais do judaísmo para converter-se numa
sério. É possível que ela tivesse continuado a ser encarada fé universal para todos os homens. Pense-se no desprezo exis-
com pouca seriedade, se o enorme aumento populacional re- tente dentro do budismo em relação ao sistema de castas,
gistrado em toda parte e o crescimento acelerado das cida- vigente na época, na índia.
des — dois fatos que caracterizam nossos tempos modernos -- Também a história interna das diversas religiões mun-
não tivessem fornecido oportunidades cada vez mais freqüen- diais é rica em acontecimentos de conteúdo semelhante. Tem-
tes para a sua formação. plo, casta e igreja sempre são limites por demais estreitos. As
As massas fechadas do passado, a respeito das quais cruzadas levam a formações de massas de uma tal magnitude
ainda falaremos de maneira mais detalhada, tinham todas se que nenhum edifício eclesiástico da época poderia congregar.
transformado em instituições familiares, O estado peculiar no Cidades inteiras se transformam mais tarde em espectadores
qual entravam freqüentemente os seus participantes parecia dos flagelantes e estes ampliam sua fama transferindo-se de
ser algo natural; a reunião sempre era realizada com um fim cidade para cidade. Ainda no séc. XVIII, Wesley constrói seu
determinado — religioso, festivo ou bélico — e esta meta movimento sobre sermões pronunciados ao ar livre. Ele tinha
parecia santificar aquele estado. Quem assistisse a um sermão, uma grande consciência do significado das suas enormes mas-
18 19
sas de ouvintes, chegando inclusive a mencionar várias vezes força e em intensidade, tanto maiores possibilidades terão de
em seus diários estimativas de quantas pessoas o teriam ouvido sobrevivência através do confronto.
num determinado dia. O estouro para fora dos locais fechados
habituais tem sentido cada vez que a massa deseja recuperar
o seu antigo prazer pelo crescimento repentino, rápido e ili- O sentimento de perseguição
mitado.
Portanto, estouro é a denominação que eu dou à repen- Entre as características que mais chamam a atenção na vida
tina transição de uma massa fechada para uma massa aberta. da massa, existe uma que se poderia definir como um certo sen-
Este processo é bastante freqüente; no entanto, ele não deve timento de perseguição, uma sensibilidade peculiar e uma irri-
ser compreendido num sentido excessivamente espacial. Muitas tabilidade furiosa em relação aos inimigos assinalados como
vezes, tem-se a impressão de que uma massa não cabe mais tais de uma vez por todas. Estes inimigos podem se comportar
nos limites de um espaço dentro do qual estava bem guar- da maneira como quiserem — podem proceder com dureza ou
dada, e que ela se estende pela praça e pelas ruas de uma com amabilidade, podem mostrar-se compreensivos ou frios,
cidade, onde, atraindo tudo e sendo exposta a tudo, ela se duros ou brandos; todas as suas atitudes sempre serão interpre-
movimenta livremente. No entanto, mais importante do que tadas como se se originassem de uma maldade constante, de um
este processo externo é o processo interno que lhe é corres- posicionamento negativo em relação à massa, de uma intenção
pondente: a insatisfação do número dos participantes em re- preconcebida de destruir a massa de maneira declarada ou não.
lação à limitação, a determinação repentina de atrair, o desejo Para explicar este sentimento de inimizade e de persegui-
passional de alcançar todos. ção, precisamos partir novamente de um fato básico: a massa,
A partir da Revolução Francesa estes estouros foram uma vez formada, quer crescer rapidamente. É difícil fazer uma
adquirindo uma forma que consideramos moderna. Talvez devi- imagem exagerada da força e da imperturbabilidade com a qual
do ao fato de a massa ter-se libertado a tal ponto das religiões ela se estende. Enquanto ela sente que está crescendo — por
tradicionais, isto nos tenha facilitado considerá-la desde então exemplo, em situações revolucionárias que começam com mas-
de maneira nua, por assim dizer, biologicamente, sem todas as sas pouco numerosas mas de elevada tensão — ela sente como
injeções de sentidos e de metas transcendentes que antes po- limitação toda e qualquer coisa que se opuser ao seu cresci-
diam tingir nossos julgamentos. A história dos últimos cento mento. Ela pode ser dispersada pela polícia, mas isto terá um
e cinqüenta anos registrou uma multiplicação acelerada de efeito meramente temporário — é o equivalente a uma mão
estouros deste tipo; até mesmo as guerras estão incluídas, uma que passa em meio a uma nuvem de mosquitos. No entanto ela
vez que se tornaram guerras de massa. A massa já não se também pode ser atacada a partir do seu próprio interior, dado
conforma com condições e promessas piedosas; ela quer expe- que se concorde com as exigências que levaram à sua formação.
rimentar por si mesma o sentimento supremo de sua potência Os mais fracos então se afastam dela; outros, que estavam em
e de sua paixão selvagens e, para alcançar esta meta, torna vias de se juntar a ela, voltam do meio do caminho.
sempre a se utilizar de todas as situações e exigências sociais O ataque exterior à massa somente pode fortalecê-la. Ela
que lhe apareçam. volta a ficar coesa com uma intensidade maior depois de fisica-
É importante estabelecer em primeiro lugar que a massa mente separada. O ataque de dentro, no entanto, é o que apre-
nunca se sente saciada. Enquanto existir um homem que não senta perigos verdadeiros. Uma greve que tenha conquistado
esteja incluído nela, ela demonstrará apetite. Ninguém pode algumas vantagens começa a desintegrar-se de forma visível. O
afirmar com certeza que ela continuaria apresentando este ape- ataque de dentro apela às características individuais. Este ataque
tite, se alguma vez realmente conseguisse absorver todos os é considerado pela massa como um suborno, algo "imoral",
homens, mas é muito provável que sim. Suas tentativas de uma vez que é contrário à sua convicção clara e transparente.
perdurar têm, no fundo, algo de impotência. O único caminho Todo indivíduo que pertence a uma determinada massa leva
no qual ela tem possibilidades de sobreviver consiste na for- dentro de si um pequeno traidor que quer comer, beber, amar
mação de massas duplas, ou seja, que depois uma massa possa e ser deixado em paz. Enquanto satisfizer estas suas necessi-
se medir com outra. E quanto mais elas se aproximarem em dades de maneira paralela e sem fazer muito alarde delas, ele
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terá permissão para continuar. Porém, assim que ele se fizer e conquistar todos os que possam ser alcançados e conquistados.
notado, começará a ser temido e odiado; fica publicamente no- Elas aspiram a uma massa universal; a uma massa que dependa
tório que deu ouvidos às tentações do inimigo. de cada uma das almas e na qual todas as almas lhe pertençam.
A massa sempre é semelhante a uma fortaleza sitiada, mas Porém a luta que são obrigadas a travar as leva pouco a pouco
sitiada de maneira dupla: ela tem um inimigo do outro lado a uma espécie de respeito encoberto pelos adversárias, cujas
das muralhas, e tem um outro inimigo no seu próprio porão. instituições já existem. Elas percebem que é difícil conseguir
Durante a luta, ela atrai partidários em números cada vez maio- manter-se. Cada vez vão lhe parecendo mais importantes as
res. Diante de todos os portões reúnem-se seus novos amigos instituições que lhes assegurem solidariedade e permanência.
que pedem passagem com golpes decididos e impetuosos. Em Estimuladas pelas instituições dos seus adversários, fazem
momentos favoráveis, esta petição costuma ser aceita; mas tam- tudo para introduzir novas instituições; e, quando o conseguem,
bém existem os que preferem escalar as muralhas. A cidade com o passar do tempo estas acabam se transformando no as-
fica cada vez mais e mais repleta de lutadores; mas cada um sunto principal. O próprio peso das instituições, que passam
deles traz consigo o seu próprio pequeno e invisível traidor, então a ter uma vida própria, vai aplacando pouco a pouco o
que se esconde rapidamente dentro de algum porão. O estado ímpeto da finalidade inicial. As igrejas são construídas de
de sítio consiste na tentativa de impedir o acesso dos novos maneira a acolherem os fiéis que já existem. Elas somente são
convertidos. Para os inimigos que estão do lado de fora, as ampliadas com reservas e cautelas, e somente quando existe
muralhas são mais importantes do que para os sitiados. São os uma verdadeira necessidade de que isso seja feito. Existe uma
sitiadores que sempre reforçam as muralhas, dando-lhes alturas tendência acentuada para reunir os fiéis em unidades que
mais elevadas. Eles procuram subornar os recém-convertidos e, sejam separadas entre si. Justamente porque agora eles chega-
quando não conseguem dissuadi-los totalmente, procuram pelo ram a ser tantos, a tendência à desintegração é muito grande
menos dar uma carga suficiente de hostilidade ao pequeno trai- — um perigo que deve ser enfrentado permanentemente.
dor que sempre os acompanha no seu caminho. Por assim dizer, as religiões universais históricas têm
O sentimento de perseguição da massa nada mais é do que dentro do próprio sangue um sentimento de desconfiança em
este sentimento de ameaça dupla. Os sitiadores cercam cada relação à perfídia das massas. Suas próprias tradições, que têm
vez com mais força os muros externos; simultaneamente, os um caráter obrigatório, lhes mostram o quão rápida e inespe-
porões ficam cada vez mais minados por dentro. As ações do radamente elas cresceram. Suas próprias histórias de conver-
inimigo são abertas e visíveis quando ele trabalha nas muralhas; sões em massa lhes parecem ser milagrosas e realmente o são.
mas são ocultas e traiçoeiras quando ocorrem nos porões. Nos movimentos de apostasia, que as igrejas temem e perse-
Entretanto, a utilização de imagens deste tipo somente nos guem, este mesmo tipo de milagre se volta contra elas, e os
proporciona uma parte da verdade. Os que chegam de fora, os ferimentos que lhes são infligidos na própria carne são dolo-
que querem ingressar na cidade, não são apenas novos partidá- rosos e inesquecíveis. Estes dois fatos, o rápido crescimento
rios, reforços e apoio; eles também funcionam como alimento nos seus primórdios e as apostasias não menos rápidas mais
da massa. Uma massa que não aumenta de tamanho está em tarde, mantêm sempre viva sua desconfiança em relação à
estado de jejum; as religiões sempre souberam aproveitar com massa.
1
maestria este argumento. Veremos em seguida como as gran- 1 O que elas desejam em substituição à massa é um obe-
des religiões conservam suas massas sem que o processo de diente rebanho. É bastante habitual encarar os fiéis como se
crescimento seja demasiado agudo ou violento . fossem cordeiros, elogiando sua obediência. Elas renunciam
por completo à tendência essencial da massa, ou seja, ao cres-
cimento rápido. Conformam-se com uma ficção passageira de
Domesticação das massas nas religiões universais igualdade entre os fiéis que, sem dúvida alguma, jamais chega
a ser completamente real; contentam-se com uma determinada
As religiões com pretensões universais, quando são mun- densidade, que é mantida dentro de limites moderados e com
dialmente reconhecidas, logo modificam a tônica utilizada para uma forte direção. A meta, de preferência, é colocada numa
alcançar suas metas. No começo, o que lhes importa é alcançar grande distância, num além para o qual as pessoas não devem
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se transferir imediatamente, uma vez que ainda estão vivas, Pânico
e que deve ser merecido por meio de muitos esforços e sub-
missões. Gradativamente a direção vai se transformando no Como já foi dito freqüentemente, o pânico num teatro é
que existe de mais importante. Quanto mais distante estiver uma desintegração da massa. Quanto mais unidos tenham es-
a meta, tanto maior é sua possibilidade de permanência. No tado os espectadores pela representação, quanto mais fechado
lugar daquele princípio de crescimento, aparentemente impres- seja o formato do teatro que os mantém exteriormente unidos,
cindível, é colocada uma coisa completamente diferente: a tanto mais violenta será esta desintegração.
repetição. Porém também pode acontecer que, somente pela repre-
Os fiéis são reunidos em determinados espaços e em de- sentação, não se tenha formado tipo algum de massa autên-
terminados momentos; mediante atividades sempre idênticas, tica. Muitas vezes o público não se sente cativado e perma-
eles adquirem um estado semelhante ao da massa, que os im- nece junto apenas por já estar ali. O que a obra não conseguiu
pressiona sem no entanto chegar a ser perigoso, e ao qual eles é produzido instantaneamente por um incêndio. O fogo é tão
se acostumam. O sentimento de sua unidade lhes é ministrado perigoso para os homens como para os animais e constitui
em doses. Da exatidão destas doses depende a subsistência da o mais intenso e antigo símbolo de massa. A percepção do
igreja. fogo leva a limites insuspeitados quaisquer sentimentos de
Onde quer que os homens se tenham acostumado a esta massa que tenham existido entre os espectadores. Diante do
vivência repetida com precisão e limitada com exatidão dentro perigo comum e inequívoco aparece um medo comum a todos.
de suas igrejas ou templos, não podem mais prescindir dela. Assim, durante um curto espaço de tempo, existe no público
uma massa de verdade. Se não estivessem dentro de um tea-
Mantêm com respeito a ela uma dependência como se fosse
tro, seria possível fugir em conjunto como uma manada de
uma espécie de alimento essencial para tudo o que significa
animais em perigo e, mediante movimentos sincronizados, au-
vida para eles. Uma proibição inesperada do seu culto, a re-
pressão da sua religião por um decreto estatal são coisas que mentar ainda mais a energia da fuga. Um terror ativo de massa
deste tipo é a grande vivência coletiva de todos os animais
não podem ocorrer sem conseqüências. A perturbação da sua
que vivem em bandos e que, como bons corredores, costumam
economia de massa cuidadosamente equilibrada deve levar, de-
salvar-se em conjunto.
pois de algum tempo, ao estouro de uma massa aberta. Esta
No teatro porém a massa deve desintegrar-se da maneira
apresenta então todas aquelas características elementares que
mais violenta possível. As portas permitem a passagem de
já vimos anteriormente. Ela se expande com rapidez. Implanta poucas pessoas de cada vez. A energia da fuga se transforma
uma igualdade real e não fictícia. Procura densidades novas e por si mesma numa energia de revide. Entre as fileiras dos
agora muito mais intensas. Abandona momentaneamente aque- assentos pode passar apenas uma única pessoa e cada um está
la meta distante e difícil de ser alcançada, para a qual foi meticulosamente separado do seu vizinho; cada pessoa está
educada, e fixa-se numa meta aqui, imediatamente próxima sentada sozinha, cada qual ocupa o seu próprio lugar. A dis-
à vida concreta. tância até a porta é diferente para cada uma das pessoas. O
Todas as religiões repentinamente proibidas se vingam teatro normal procura fazer as pessoas sentarem-se deixando-
através de uma espécie de secularização: num estouro inespe- lhes apenas a liberdade das mãos e das vozes. O movimento
rado de selvageria, o caráter de sua fé se modifica completa- das pernas lhes é limitado o mais possível.
mente, sem que elas mesmas consigam compreender a natu- A ordem repentina de fuga que é ditada pelo fogo se vê
reza desta modificação. Elas acreditam que se trata da fé imediatamente confrontada pela impossibilidade de um mo-
antiga e acham apenas que estão se segurando com maior vimento comum. A porta pela qual cada indivíduo deve pas-
intensidade às suas mais profundas convicções. No entanto, sar, que ele vê, na qual ele se vê nitidamente recortado contra
na verdade, elas se transformaram em coisa completamente todas as demais pessoas, passa a ser uma espécie de moldura
diferente, com um sentimento agudo e singular de massa aber- de uma imagem que logo o domina. E desta forma a massa,
ta que agora são, e que não querem deixar de ser por preço ainda em seu apogeu, é forçada a se desintegrar violentamente.
nenhum. Este processo torna-se evidente nas mais violentas tendências
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individuais: cada um empurra, golpeia e pisoteia em torno de
bolo de massa entrou na economia psíquica dos indivíduos e
si, num verdadeiro frenesi.
forma uma parte inseparável dela. Aquele pisotear frenético de
Quanto mais se luta "pela própria vida", tanto mais evi-
seres humanos que é observado com tanta freqüência em casos
dente se torna a luta contra os outros que atrapalham de de pânico, e que parece ser tão absurdo, nada mais é do que
todos os lados. Ali estão eles de pé feito cadeiras, feito balaus-
o pisotear para apagar o fogo.
tradas, feito portas fechadas, com a diferença de que atacam
O pânico como desintegração somente pode ser evitado
violentamente. Empurram de um lado para o outro, para
prolongando-se o estado original do medo unitário da massa.
onde lhes apraz, ou melhor, para onde eles mesmos são em-
Isto pode ser provocado, por exemplo, numa igreja que esteja
purrados. Mulheres, crianças e pessoas idosas não são poupa-
das; nenhuma destas pessoas é diferenciada da categoria de ameaçada: numa situação de medo comunitário reza-se a um
homens adultos. Faz parte da constituição da massa que todos Deus comum a todos, em cujas mãos está o poder de extinguir
sejam iguais; e mesmo que alguém já não se sinta como o fogo por meio de um milagre.
parte da massa, ela continua a envolvê-lo totalmente. O pâni-
co é uma desintegração da massa dentro da massa. O indiví-
duo quer sair do seu interior e escapar de uma massa que A massa como anel
está ameaçada na sua forma de todo. No entanto, como ainda
se encontra fisicamente mergulhado, imerso dentro dela, pre- Encontramos um tipo de massa duplamente fechada no
cisa lutar contra ela, pois entregar-se, deixar-se levar, signifi- caso do circo. Vale a pena estudá-lo em relação a esta sua
caria sua perdição, já que a própria massa está ameaçada. Num qualidade peculiar.
momento destes não é possível acentuar-se suficientemente a O circo é bem delimitado exteriormente. Em geral ele é
própria individualidade. Golpes e empurrões têm sua réplica visível a uma grande distância. Sua localização na cidade, o
em outros golpes e empurrões. Quanto mais golpes a pessoa espaço que ocupa são conhecidos por todas as pessoas. Sabe-
distribuir, quanto mais golpes receber, tanto mais claramente se sempre onde ele se encontra, mesmo quando não se está
se sentirá ela mesma, tanto mais nítidos se tornarão seus pensando nele. Os ruídos que saem dele chegam a atingir luga-
próprios limites. res muito distantes. Uma boa parte da vida que transcorre
É curioso observar até que ponto a massa assume, para dentro dele acaba se comunicando à cidade circundante.
quem está lutando dentro dela, o caráter do próprio togo. Ela Porém, por mais excitantes que sejam estas comunicações,
nasceu pela visão súbita de uma chama ou por um grito de não é possível entrar nele sem algumas dificuldades. O número
"fogo!"; ela joga com o indivíduo que tenta escapar como de lugares no circo é limitado. Sua densidade tem um limite
se fosse formada de labaredas também. As pessoas que o indi- fixo. Os assentos estão dispostos de tal maneira que as pes-
víduo empurra são, para ele, objetos ardentes, seu contato soas não se apertem de maneira excessiva. Pretende-se que as
está carregado de hostilidade e cada parte do seu corpo que pessoas dentro dele tenham uma certa comodidade; todos de-
entra em contato com os outros lhe causa sustos. Qualquer vem ter uma boa visão, cada qual do seu lugar, sem que se
pessoa que se coloque em seu caminho está contagiada por atrapalhem uns aos outros.
esta intenção hostil e generalizada do fogo; a maneira como Em relação ao lado externo, contra a cidade, o circo re-
ele se propaga, como avança pouco a pouco em torno dos presenta uma muralha inanimada. Em relação ao lado interno,
indivíduos, e como finalmente os rodeia completamente, se ele ergue uma muralha de homens. Todos os presentes viram
assemelha muito ao comportamento da massa que os ameaça suas costas para a cidade. Eles se desprenderam da ordem da
por todos os lados. Seus movimentos imprevisíveis, o gesto cidade, de suas paredes, de suas ruas. Durante sua permanên-
de um braço, de um punho ou de uma perna são como as la- cia no circo não lhes importa o que acontece na cidade. As
baredas do fogo, que podem aparecer repentinamente de qual- pessoas deixam para trás a vida dos seus relacionamentos, de
quer lugar. O fogo, como o incêndio de um bosque ou de uma suas regras, de seus usos e costumes. Sua permanência em con-
estepe, é uma massa hostil, podendo chegar a despertar um junto em grande número está garantida apenas por um deter-
sentimento deste tipo em qualquer pessoa. O fogo como sím- minado espaço de tempo; a excitação lhes foi prometida, po-
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rém sob uma condição muito especial: a massa deve descar- diretamente como um estado de igualdade absoluta. Uma ca-
regar-se para dentro. beça é urna cabeça, um braço é um braço, as diferenças entre
As filas são escalonadas de baixo para cima para garantir eles carecem de importância. É justamente por causa desta igual-
que todos possam ver o que está ocorrendo embaixo. No en- dade que as pessoas se transformam em massa. Tudo o que
tanto isto tem como conseqüência que a massa está sentada poderia desviar deste intento é deixado de lado. Todas as exi-
perante si mesma. Cada um tem mil corpos e mil cabeças ins- gências de justiça, todas as teorias de igualdade extraem sua
taladas à sua frente. Enquanto ele estiver lá, todos também energia, em última instância, desta vivência de igualdade que
estarão. O que provoca a excitação neste espectador também cada qual conhece à sua maneira a partir da massa.
excita os demais, e ele o percebe. Os demais estão sentados a 3 — A massa ama a densidade. Não existe uma densi-
alguma distância dele; os detalhes, que em outras ocasiões dade que seja densa demais. Nada deve interpor-se, nada deve
servem para distinguir e individualizar as pessoas, se perdem. ficar vacilando; na medida do possível, tudo deve ser ela mes-
Todos se tornam muito parecidos, todos se comportam de ma. A sensação de densidade máxima ocorre no momento da
maneira semelhante. O indivíduo percebe nos demais apenas descarga. Urna dia será possível medir-se e determinar com
as coisas que ele mesmo está sentindo naquele instante. A mais exatidão esta densidade.
excitação visível dos demais aumenta a excitação que ele mes- 4 — A massa necessita de uma direção. Ela está em
mo sente. movimento e se movimenta em direção a algum lugar. A di-
A massa que se exibe desta forma não é interrompida reção, que é comum a todos os componentes, intensifica o
em lugar algum. O anel que ela forma é fechado. Nada escapa sentimento de igualdade. Uma meta, que está fora de cada
dela. O anel formado por rostos fascinados e superpostos um e que é coincidente em todos, submerge as metas privadas,
possui alguma coisa de curiosamente homogêneo. Este anel desiguais, que seriam a morte da massa. Para esta subsistir,
inclui e contém tudo o que ocorre abaixo dele. Nenhum dos a meta é indispensável. O temor da desintegração, que sempre
seus membros integrantes o deixa escapar, nenhum quer par- está vivo dentro dela, faz com que seja possível orientá-la em
tir dali. Cada falha neste anel poderia evocar a desintegração, direção a quaisquer objetivos. A massa existe enquanto tenha
a separação posterior. Mas não existe falha alguma: esta uma meta não alcançada. Mas ainda há nela outra tendência
massa é fechada em relação ao lado externo e também em si, ao movimento que leva a formações novas e superiores. Fre-
ou seja, é duplamente fechada. qüentemente é impossível prever a natureza destas formações.

As propriedades da massa Cada uma destas quatro propriedades que foram determi-
nadas podem estar presentes em maior ou menor medida.
Antes de tentarmos uma divisão da massa, vale a pena Conforme focalizarmos uma ou outra, chegaremos a uma divi-
resumir rapidamente as suas principais propriedades. Quatro são diferente das massas. •
características devem ser destacadas: Já falamos a respeito de massas abertas e fechadas e tam-
1 — A massa sempre quer crescer. Seu crescimento não bém explicamos que esta divisão se refere ao seu crescimento.
tem limites impostos pela natureza. Onde tais limites são cria- Enquanto não houver obstáculos ao seu crescimento, a massa
dos artificialmente, ou seja, em todas as instituições que são é aberta; ela é fechada, assim que existirem quaisquer limita-
utilizadas para a conservação de massas fechadas, sempre exis- ções ao seu crescimento.
te a possibilidade de um estouro, que de fato ocorre às vezes. Outra divisão, a respeito da qual ainda falaremos bas-
Não existem disposições que possam evitar o crescimento da tante, é a que existe entre massas rítmicas e estancadas. Esta
massa de uma vez por todas e que sejam realmente seguras. divisão se refere às duas propriedades principais seguintes: a
2 — No interior da massa reina a igualdade. Trata-se de igualdade e a densidade, mas vistas em conjunto.
uma igualdade absoluta e indiscutível, que jamais é colocada A massa estancada vive em função de sua descarga. Po-
em dúvida pela própria massa. Ela possui uma importância rém ela se sente segura desta descarga e a posterga. Ela deseja
tão fundamental que seria possível definir o estado da massa um período relativamente prolongado de densidade para pre-

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parar-se para o momento da descarga. Seria quase possível pessoal ou do ânimo de cada um. Mas as pessoas também
dizer que ela se esquenta em sua densidade, postergando o podem caminhar mais depressa ou mais devagar, podem cor-
mais possível a descarga. O processo da massa, neste caso, rer, estancar de repente ou começar a saltar.
não começa com a igualdade, mas sim com a densidade. A O homem sempre prestou atenção aos passos dos outros
igualdade se torna, neste caso, a meta principal da massa, na homens; ele sempre teve mais consciência dos passos alheios
qual ela finalmente desemboca; todo grito comum, toda exte- do que dos próprios. Também os animais tinham um passo
riorização comum expressam então de uma maneira válida esta familiar. Muitos deles possuíam ritmos mais ricos e percep-
igualdade. tíveis do que os dos homens. Os animais providos de cascos, ao
Na massa rítmica, muito pelo contrário, a densidade e a fugir, faziam um barulho como o de um regimento formado
igualdade coincidem desde o princípio. Aqui, tudo depende apenas por tambores. O conhecimento mais antigo do homem
do movimento. Todos os estímulos corporais que irão se pro- dizia respeito aos animais que o rodeavam, que o ameaçavam
duzir estão predeterminados e se transmitem através da dança. e que ele caçava. Ele aprendeu a conhecê-los pelo ritmo dos
Esquivando-se e reaproximando-se, a densidade é modificada seus movimentos. A forma mais primitiva de escrita que ele
de uma forma consciente. Por uma representação de densi- aprendeu a decifrar foi a das pegadas — era uma espécie de
dade e de igualdade, o sentimento de massa é provocado ar- notação musical rítmica que sempre existiu; ela se imprimia
tificialmente. Estas configurações rítmicas nascem com muita automaticamente no solo mole, e o homem que a lia a asso-
rapidez e é apenas a fadiga física que lhes determina um fim. ciava aos ruídos inerentes à sua formação.
A dupla seguinte de conceitos, os de massa lenta e rápida, Muitas destas pegadas apareciam em grandes quantidades
refere-se exclusivamente à natureza de sua meta. As massas e muito próximas umas das outras. Os homens, que original
que chamam a atenção, ou seja, as que geralmente são assunto mente viviam em pequenos bandos, podiam assim tomar cons-
de conversa, e que formam uma parte tão importante da nossa ciência, pela tranqüila observação destas pegadas, do contraste
vida moderna, as massas políticas, esportivas, bélicas, com as existente entre o pequeno número de seu bando e a enorme
quais entramos em contato diário, são todas massas rápidas. quantidade de algumas manadas. Os homens estavam sempre
Completamente diferentes delas são as massas religiosas do com fome e sempre caçando; quanto maior a possibilidade
além ou dos peregrinos; nestas, a meta se encontra na dis- de caça, tanto melhor para eles. Mas eles mesmos também
tância, o caminho é demorado e a verdadeira constituição da queriam ser mais. O sentimento do homem em relação à sua
massa é postergada para algum país muito distante ou para própria multiplicação sempre foi muito intenso. Este senti-
um reino existente nos céus. Destas massas lentas, na verdade, mento não se restringe, de forma alguma, apenas àquilo que
vemos apenas os afluentes, porque os seus estados finais, tão se costuma designar, insatisfatoriamente, como tendência à
almejados, são invisíveis e inalcançáveis para os que não são reprodução. Os homens queriam ser mais naquele exato mo-
crentes. A massa lenta se reúne com lentidão e se considera mento, naquele exato local. A grande quantidade da manada
como algo permanente numa distância extremamente remota. a que estavam dando caça e sua própria quantidade que dese-
Todas estas formas, cuja substância foi apenas ligeira- javam aumentar estavam vinculadas de maneira especial ria
mente esboçada aqui, exigem considerações mais detalhadas. sua maneira de sentir as coisas. Eles expressavam tudo isto
num determinado estado de excitação comum que eu chamo
de massa rítmica ou palpitante.
Ritmo O meio encontrado para isto foi, em primeiro lugar, o
ritmo dos próprios pés. Onde muitos andam, outros andam
O ritmo, originalmente, é um ritmo dos pés. Todo ser conosco. Os passos somados rapidamente a outros passos si-
humano caminha, e como ele caminha sobre duas pernas, gol- mulam um maior número de participantes Eles não se movem
peando alternadamente o chão com os pés, isto produz, inde- do lugar onde estão; em sua dança, permanecem sempre no
pendentemente de sua vontade, um ruído rítmico. Os dois pés mesmo lugar. Seus passos não se apagam; eles se repetem e
nunca pisam no chão com a mesma intensidade. A diferença persistem durante multo tempo, sempre com a mesma inten-
entre eles pode ser maior ou menor, dependendo da disposição sidade e animação. Suprem com intensidade o que lhes falta
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em número. Quando pisam com maior intensidade, o ruído é tremidade de lanças e pedaços de paus. As mulheres jovens,
mais forte. Eles exercem sobre todos os homens das proxi- até mesmo as esposas do chefe, participavam da dança com o
midades uma força de atração que não diminui enquanto a busto descoberto.
dança não é interrompida. Todo ser vivo que se encontra ao "O compasso do canto que acompanhava a dança era
alcance do ruído se une a eles, permanecendo unido. O natural observado com muito rigor. A mobilidade das pessoas era es-
seria que se fossem unindo quantidades cada vez maiores de pantosa. De repente saltavam verticalmente do solo, todos ao
homens. Mas como depois de pouco tempo não há mais quem mesmo tempo, como se todos os bailarinos estivessem anima-
se possa unir a eles, eles precisam, a partir dos seus números dos por uma única vontade. Ao mesmo tempo brandiam suas
reduzidos, simular este aumento desejado. Movimentam-se armas e deformavam o rosto e com as grandes cabeleiras, usa-
como se a quantidade aumentasse cada vez mais. Sua excitação das tanto pelos homens como pelas mulheres, assemelhavam-se
vai aumentando até entrar num estado de loucura. a um exército de górgonas. Ao cair, batiam simultaneamente
De que maneira, porém, eles conseguem suprir o que não com ambos os pés no chão. Este salto era repetido com fre-
podem alcançar em termos de números crescentes? É muito qüência e cada vez mais depressa.
importante, por exemplo, que cada um deles faça a mesma "Os traços do rosto eram distorcidos de todas as ma-
coisa. Cada um deles pisoteia e o faz exatamente da mesma neiras possíveis aos músculos de um rosto humano; e cada
forma. Cada um balança os braços e agita a cabeça. A equi- nova careta era pontualmente adotada por todos os partici-
valência dos participantes se ramifica na equivalência dos seus pantes. Quando um deles contraía o rosto fortemente, como
membros. Tudo o que é móvel num ser humano adquire uma se estivesse num torniquete, todos o imitavam imediatamente.
espécie de vida própria; cada perna, cada braço passam a Eles giravam os olhos de um lado para outro; às vezes ape-
viver sozinhos. Os vários membros passam todos a coincidir. nas o branco dos olhos ficava visível, e tinha-se a impressão
Ficam muito próximos uns dos outros; freqüentemente des- de que iam saltar para fora da órbita. A boca era esticada até
cansam uns sobre os outros. À sua equivalência junta-se desta perto das orelhas. Simultaneamente todos esticavam as línguas
forma sua densidade; densidade e igualdade passam a ser uma para fora da boca; jamais um europeu seria capaz de imitar
única coisa. Finalmente, está dançando uma única criatura gestos desse tipo; eram gestos que mostravam um apren-
equipada com cinqüenta cabeças, cem pernas e cem braços, dizado longo e precoce. Seus rostos ofereciam um aspecto tão
sendo que todos atuam da mesma maneira ou com a mesma espantoso que era um alívio desviar os olhos.
intenção. Na sua excitação máxima, estes homens se sentem "Cada parte de seus corpos estava em ação, separada-
realmente como uma unidade, e é apenas o esgotamento físico mente; os dedos. dos pés, os dedos das mãos, os olhos, as
que os derruba. línguas, bem como os braços e as pernas. Com a mão espal-
Todas as massas palpitantes têm — justamente devido a mada eles se golpeavam às vezes no lado esquerdo do peito,
este ritmo que predomina nelas — algo de parecido. O relato às vezes nas coxas. O barulho do canto era ensurdecedor;
seguinte, que serve apenas para ilustrar uma destas danças, mais de trezentas e cinqüenta pessoas participavam da dança.
é originário do primeiro terço do século passado. Ele diz res- Pode-se imaginar o efeito que ela devia produzir em tempo
peito à haka dos maoris -- uma tribo da Nova Zelândia — de guerra; como servia para aumentar a coragem e como
que originalmente era uma dança de guerra. levava a um ponto ainda mais elevado a aversão recíproca
"Os maoris se dispõem numa fileira alongada, com uma entre dois grupos diferentes."
profundidade de quatro homens. A dança chamada haka de- O girar dos olhos e o esticar da língua são sinais de tei-
veria encher de espanto e de medo qualquer pessoa que a mosia e de desafio. No entanto, se bem que a guerra de ma-
presenciasse pela primeira vez. Toda a sociedade, homens e neira geral seja uma coisa dos homens, e em especial dos
mulheres, pessoas livres e escravos, se misturavam sem consi- homens livres, todos se entregavam à excitação da haka. Neste
deração à posição hierárquica que cada grupo ocupava na caso a massa desconhece todas as divisões de sexo, de idade e
comunidade. Os homens ficavam totalmente nus, excetuan- de hierarquia social: todos agiam da mesma maneira. O que
do-se apenas uma cartucheira que lhes pendia da cintura. Todos porém diferencia fortemente esta dança de outras de intenções
estavam armados com fuzis ou com baionetas, fixadas na ex- semelhantes é uma ramificação particularmente extrema da
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igualdade. É como se cada corpo se descompusesse em todas Estancamento
as suas partes isoladas, não somente em pernas e braços como
freqüentemente acontece, mas também em dedos, artelhos, A massa contida é compacta; nela não existe a possibili-
línguas e olhos, e repentinamente todas as línguas se unem e dade de um movimento verdadeiramente livre. Seu estado pos-
fazem a mesma coisa no mesmo instante. Logo em seguida é sui algo de passivo; a massa contida espera. Espera por uma
a vez dos artelhos e dos olhos executarem exatamente o mesmo cabeça que lhe será mostrada, ou por palavras, ou está con-
movimento. As pessoas em cada uma de suas menores partes templando um combate. Neste caso importa principalmente
são tomadas por esta sensação de igualdade, que passa a ser a densidade: a pressão, que se sente por todos os lados, tam-
representada numa ação que a aumenta ainda mais de forma bém pode servir aos afetados como medida para a força da
violenta. A visão de trezentas e cinqüenta pessoas que saltam formação, da qual eles agora fazem parte. Quanto maior for o
simultaneamente, que esticam simultaneamente a língua, que número de pessoas participantes, tanto maior se torna esta
rolam simultaneamente os olhos deve criar uma sensação in- pressão. Os pés não têm para onde ír, os braços estão compri-
superável de unidade. A densidade não é apenas uma densi- midos; livres permanecem apenas as cabeças para ver e ouvir;
dade das pessoas, mas sim de todos os seus membros, de suas os corpos transmitem os estímulos diretamente uns aos outros.
partes componentes em separado. Seria possível pensar que Entra-se em contato com vários homens simultaneamente, com
os dedos e as línguas, mesmo se não pertencessem às pessoas, o próprio corpo. Sabe-se que são vários homens, mas, como
seriam capazes de se reunir e de lutar por conta própria. O eles também estão unidos, eles são considerados como uma
ritmo da haka destaca isoladamente cada uma destas igual- unidade. Este tipo de densidade não tem pressa; sua influência
dades. Juntas e em sua escalada, elas são irresistíveis. é constante por uma duração determinada; ela também é
Porque tudo isto acontece sob a condição de que seja amorfa, não se submetendo a nenhum ritmo familiar e ensaia-
visto: o inimigo está acompanhando, olhando para o que acon- do. Durante muito tempo não acontece nada; porém os desejos
tece. A intensidade da ameaça comum é que caracteriza a haka. de ação se reprimem e se rompem finalmente com uma violên-
Mas como a dança já existia, ela acabou se transformando em cia tanto maior.
algo mais. Ela é ensaiada desde a infância, possui várias for- A paciência da massa contida talvez não seja tão surpreen-
mas diferentes, e é apresentada em todos os tipos de ocasiões. dente se levarmos em consideração o significado que este sen-
Muitos viajantes já foram recepcionados amistosamente com a timento de densidade tem para ela. Quanto mais densa for,
apresentação desta dança. O relato citado, aliás, diz respeito tanto maior será o número de pessoas atraídas. Com sua den-
a uma ocasião deste tipo. Quando uma tropa amiga se une a sidade ela mede sua magnitude, mas a densidade também é o
outra, ambas se saúdam com uma haka; e isto é feito com estímulo máximo para um crescimento posterior. A massa mais
tanta seriedade que qualquer espectador desprevenido passa densa cresce mais depressa. O ato de se conter antes da des-
a temer o início dos combates a qualquer instante. Durante carga é uma exibição desta densidade. Quanto mais ela se con-
os funerais de um grande chefe, depois dos momentos da mais tém, tanto maior é o tempo durante o qual ela sente e mostra
intensa lamentação e de automutilação que são costumeiros sua densidade.
entre os maoris, depois de uma ceia festiva e abundante, re- Do ponto de vista dos indivíduos que formam uma mas-
pentinamente todos se erguem num salto, pegam suas armas sa, o momento da contensão é como um momento de admira-
e adotam a formação de uma haka. ção; são colocados de lado as armas e os aguilhões com os quais
Nesta dança, da qual todos podem participar, a tribo em geral as pessoas se defendem tão bem umas das outras; as
toda se sente como massa. Eles se utilizam desta dança quando pessoas se tocam e, por isso mesmo, não se sentem coibidas;
sentem necessidade de serem massa e de aparecerem como os toques deixam de ser toques, o temor recíproco deixa de
tal diante de outras pessoas. Na perfeição rítmica alcançada existir. Antes de sair em qualquer direção que seja, as pessoas
por esta dança, ela certamente atinge sua finalidade. Graças querem ter certeza de que permanecem unidas. Trata-se de um
à haka, a unidade dos maorís nunca chega a ser seriamente crescer em conjunto, para o qual se requer tranqüilidade. A
ameaçada de dentro para fora. massa contida não tem certeza absoluta quanto à sua unidade,
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e por este motivo se mantém tranqüila durante o maior pe- acontecer que provocam manifestações ruidosas. A voz é ouvida
ríodo possível de tempo. com freqüência e em ocasiões distintas. Da desintegração final
Mas esta paciência tem seus limites, Uma descarga, fi- se aboliu uma parte de seu caráter doloroso graças à predeter-
nalmente, acaba se tornando indispensável; sem ela não é minação da duração. Por outro lado, o derrotado terá a opor-
possível sequer afirmar que a massa chegou a existir. O grito tunidade de uma revanche e a situação não ficou encerrada
que era habitual antigamente nas execuções públicas, quando a definitivamente. Aqui a massa realmente pode se tornar am-
cabeça do malfeitor era erguida e apresentada pelo carrasco, pla; ela pode primeiro congregar-se nas entradas e depois con-
ou o grito que conhecemos atualmente em espetáculos espor- ter-se nos assentos; ela grita de uma forma que está ao alcance
tivos representam a voz da massa. Sua espontaneidade é da de todos, quando chega o momento exato para isso; e, mesmo
maior importância. Os gritos ensaiados e repetidos em intervalos quando tudo termina, ela fica almejando outras oportunidades
regulares ainda não são um sinal de que a massa conseguiu semelhantes.
atingir uma vida própria. Eles podem conduzir a isso, mas Massas contidas de natureza muito mais passiva se formam
são exteriores como os exercícios táticos de uma divisão mili- nos teatros. O caso ideal é quando se representa diante de
tar. Por outro lado o grito espontâneo, que a massa não pode uma casa cheia. O número desejado de espectadores é dado
prever com exatidão, é inequívoco; seu efeito costuma ser desde o início., Eles se reúnem por própria conta e, excetuan-
imprevisível. Ele pode expressar sentimentos de qualquer es- do-se pequenos congestionamentos diante das bilheterias, as
pécie; freqüentemente é menos importante o tipo de sentimento pessoas encontram sozinhas seus caminhos para dentro da sala.
expresso do que sua força e densidade, bem como a liberdade Tudo está prefixado: a peça apresentada, os atores, a hora de
na sua seqüência. Estes são os elementos que dão à massa o começar e os espectadores instalados em seus lugares. Os atra-
seu espaço espiritual. sados são recebidos com um leve descontentamento. Como um
Mas eles podem ser tão violentos e concentrados que dis- rebanho disposto a pastar, as pessoas permanecem ali sentadas,
solvem instantaneamente a massa, As execuções públicas pro- tranqüilas, e com uma paciência infinita. No entanto cada um
vocam este resultado; só é possível acabar uma vez com a vida está muito consciente de sua existência separada; pagou seu
de uma mesma vítima. E, quando se trata de uma pessoa que ingresso e está consciente de quem se instalou a seu lado. Antes
sempre foi considerada invulnerável, até o final a massa duvida do início do espetáculo, o espectador contempla com calma
que sua vida tenha terminado. A dúvida, que neste caso se aquela série de cabeças reunidas; elas lhe despertam um senti-
origina do motivo, aumenta a contensão natural da massa. O mento agradável de densidade, mas não demasiadamente in-
efeito será tanto mais agudo e cortante ao se avistar a cabeça tenso. Em si, a igualdade existente entre os espectadores con-
decepada. O grito que se segue será terrível, mas será também siste apenas no fato de que todos se submetem aos mesmos
o último grito desta massa tão absolutamente determinada. estímulos vindos do palco. Mas suas reações espontâneas diante
É possível dizer-se que, neste caso, a massa paga o excesso de da representação estão limitadas. Até mesmo o aplauso tem
expectativa estancada, que desfruta de uma maneira mais inten- seus momentos predeterminados, e na maior parte das vezes
sa, com sua própria morte instantãnea. as pessoas aplaudem apenas nos momentos em que devem
Nossos modernos espetáculos esportivos são mais funcio- aplaudir. É apenas pela intensidade dos aplausos que se pode
nais. Os espectadores podem permanecer sentados; a paciência julgar até que ponto a massa foi formada; a intensidade é o
coletiva se torna visível em toda a sua clareza. Todos têm a único parâmetro conhecido, e é aplicado também pelos atores.
liberdade de sapatear, mas não se movem de seus lugares. No teatro o estancamento se tornou um rito a tal ponto
Têm a liberdade de aplaudir com as mãos. Está prevista uma que pode ser sentido externamente, como uma leve pressão
determinada duração para o espetáculo, e normalmente não há exterior que não chega ao fundo das pessoas e que, de qual-
motivos para reduzi-la; pelo menos durante este tempo as pes- quer modo, apenas lhes proporciona o sentimento de alguma
soas permanecem juntas. E durante este tempo uma série de forma tênue de unidade interna. Porém não se deve esquecer
acontecimentos pode ocorrer. Não é possível saber de antemão quão grande e comum é a expectativa com que aguardam sen-
de que lado e quando será marcado um- gol; além disso, à tadas e que esta expectativa perdura durante toda a represen-
margem destes acontecimentos centrais, muitos outros podem tação. Somente raras vezes as pessoas deixam o teatro antes
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do final; mesmo quando estão decepcionadas, as pessoas agüen- Talvez o caso mais impressionante seja a famosa Parada
tam; isto significa, portanto, que durante este tempo as pes- de Arafat, o ponto culminante da peregrinação a Meca. Na
soas se mantêm unidas. planície de Arafat, a algumas horas de distância de Meca,
O contraste entre o silêncio do auditório e as manifesta- reúnem-se num dia determinado e estabelecido ritualmente de
ções sonoras do aparelho que atua sobre as pessoas é ainda 600 a 700 mil peregrinos. Eles se agrupam num grande cír-
mais perceptível em concertos. Aqui, tudo se baseia na total culo em torno do Monte da Misericórdia, uma colina que se
ausência de perturbações. Qualquer movimento é indesejável, ergue no meio desta planície. Por volta das 2 h da tarde,
todos os ruídos são execráveis. Ao passo que a música que é quando o calor está no seu ponto mais intenso, os peregrinos
apresentada vive, em boa parte, em função do seu ritmo, ne- tomam suas posições e permanecem ali de pé até o pôr-do-sol,
nhum efeito rítmico por parte do auditório pode ser notado. de cabeça descoberta e trajando a túnica branca típica. Com
Os efeitos provocados pela música de maneira contínua e mu- atenção apaixonada escutam as frases do pregador, instalado
tável são do tipo mais diverso e intenso possível. Está excluída no alto da colina. Seu sermão é um elogio ininterrupto a
a possibilidade de que a maioria dos presentes não os sinta, e Deus. Os peregrinos respondem com uma fórmula que é repe-
é impossível que não os sinta simultaneamente. No entanto, tida mil vezes. "Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos
todas as reações exteriores são omitidas. As pessoas ficam sen tuas ordens!" Alguns soluçam de excitação, outros golpeiam
tadas imóveis, como se não ouvissem coisa alguma. É evidente o próprio peito. Alguns desmaiam devido ao terrível calor.
que neste caso foi necessária uma educação prolongada e arti- Porém é essencial que eles permaneçam durante todas essas
ficial para o estancamento, a cujos resultados nós já nos acos- horas na planície sagrada sob um calor incandescente. No mo-
tumamos. Pois, julgando-se com objetividade, existem poucos mento em que o sol se põe, é dado o sinal da partida.
fenômenos na nossa vida cultural que sejam tão surpreenden- Os processos restantes, que pertencem ao que de mais
tes como o público de concertos. As pessoas que permitem que enigmático se conhece em costumes religiosos, serão tratados e
a música atue naturalmente dentro delas se comportam de interpretados posteriormente noutro contexto. Aqui apenas
forma muito diferente; e pessoas que jamais tiveram oportu- nos interessa esse momento de contensão, que tem duração
nidade de ouvir música, quando vivem uma tal situação pela de várias horas. Centenas de milhares de homens em excitação
primeira vez podem deixar-se cair na mais irrefreável agitação. crescente permanecem na planície de Arafat e não podem
Quando os aborígines da Tasmânia ouviram pela primeira vez abandonar essa posição diante de Alá, aconteça o que acon-
a Marselhesa, tocada por marinheiros desembarcados lá, deram tecer. Juntos tomam posição e juntos recebem o sinal da par-
expressão à sua satisfação com estranhas contorções do corpo tida. O sermão os incentiva e eles incentivam a si próprios
e com os gestos mais assombrosos, provocando gargalhadas por meio de gritos. Na fórmula que empregam está contido
nos marinheiros. Um jovem entusiasmado puxava os cabelos, o termo "aguardar", que sempre se repete. O sol, que se mo-
coçava a cabeça com as duas mãos e dava grandes gritos. vimenta com lentidão imperceptível, submerge tudo na mesma
Apesar de tudo conservou-se nos nossos concertos uma luz deslumbrante, no mesmo ardor; seria possível falar até de
pequena dose de descarga física. O aplauso representa a gra- uma encarnação do estancamento.
tidão aos intérpretes; trata-se do intercâmbio de um ruído Entre as massas religiosas ocorrem todos os tipos de gra-
breve e caótico por outro prolongado e bem organizado. duações de imobilidade e de silêncio, mas o grau mais elevado
Quando os aplausos não existem em absoluto, quando as pes- de passividade que se pode alcançar é o imposto à massa de
soas se separam silenciosas tal como quando estavam sentadas, fora para dentro .de maneira violenta. Na batalha duas massas
sente-se por inteiro a esfera do reconhecimento religioso. se encontram, cada uma querendo ser mais forte que a outra.
É daí que deriva originalmente o silêncio do concerto. O Por meio de gritos de combate procuram provar a si mesmos
estar de pé juntos diante de Deus é um exercício muito difun- e ao inimigo que realmente são os mais fortes. A meta do
dido em algumas religiões. Isto se caracteriza pelos mesmos combate é emudecer o outro lado. Quando todos os inimigos
sintomas de contensão que já conhecemos nas massas secula- estiverem derrotados, sua potente voz que era temida com
res e que podem provocar descargas igualmente repentinas e razão emudeceu para sempre. A massa mais silenciosa é a dos
intensas. inimigos mortos. Quanto mais perigosa ela tenha sido, tanto
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maior é a alegria de vê-la imóvel e reunida num monte. Tra- Ele sempre consegue o resultado desejado, por si mesmo ou
ta-se de um vício peculiar sentir os inimigos tão indefesos graças aos inimigos pelos quais eles se sentem ameaçados. A
quanto um monte de mortos. Isso porque como monte eles história da marcha, que dura quarenta anos, contém muitas
se arremessaram uns contra os outros, como monte gritaram formações isoladas de massa de natureza súbita e aguda, a
uns contra os outros. Essa massa silenciada dos mortos não respeito das quais teremos ocasião de falar mais adiante com
era considerada anteriormente como morta. Supunha-se que maior profundidade; porém todas elas estão subordinadas à
em outra parte continuariam vivendo à sua maneira todos idéia mais ampla de uma massa lenta única que se movimenta
juntos, e no fundo deveria ser uma vida semelhante à conhe- em direção à meta, à terra que lhes foi prometida. Os adultos
cida. Os inimigos que jaziam como cadáveres representavam envelhecem e morrem, nascem e crescem novas crianças, mas
assim para o observador o caso extremo de uma massa contida. apesar de os indivíduos não serem os mesmos, o grupo, como
Em lugar dos inimigos abatidos, podem ser considerados conjunto, continua o mesmo. Ele não é integrado por novos
todos os mortos que jazem na terra comum aguardando a grupos. Desde o começo está estabelecido quem pertence a
ressurreição. Cada um que morre e é enterrado aumenta ele e tem direito à Terra da Promissão. Como esta massa não
o número deles; todos os que já viveram alguma vez perten- pode crescer de forma brusca, durante toda a sua marcha ela
cem ao grupo que assim vai aumentando seu número. A terra se atém a uma única pergunta central: como conseguir que
que os une é sua densidade e desta forma se tem a sensação não se desintegre?
de que estão muito próximos uns aos outros apesar de estarem Uma segunda forma de massa lenta poderia ser compa-
enterrados isoladamente. E assim permanecem por tempo inde- rada melhor a um sistema fluvial. Ele começa com riachos que
finido até o dia do juízo final. Sua vida é interrompida até o vão se unindo pouco a pouco; no rio que se forma desembocam
momento da ressurreição, e esse instante coincide com o de outros rios de ambas as margens; tudo se transforma, desde
sua reunião perante Deus que os julgará. Por enquanto, nada que haja território suficiente para isso, numa grande corrente,
acontece; jazem como massa, como massa tornam a erguer-se. cuja meta é o mar. A peregrinação anual a Meca talvez seja
Para a realidade e o significado da massa contida não existe o exemplo mais impressionante dessa forma de massa lenta.
demonstração mais grandiosa que o desenvolvimento desta Das partes mais distantes do mundo islâmico partem cara-
concepção de ressurreição e juízo final, vanas de peregrinos, todas elas em direção a Meca. Algumas
começam muito pequenas; outras, equipadas com todo o luxo
dos príncipes, são desde o princípio o orgulho dos países onde
Lentidão ou a distância da meta tiveram origem. Porém, no decorrer de sua marcha, todas se
encontram com outras caravanas que têm a mesma meta, e
À massa lenta pertence a distância da meta. Avança-se com assim vão aumentando cada vez mais; nas proximidades da
grande tenacidade em direção a uma meta que é imóvel e no meta final, elas se transformam em poderosas correntes. Meca
caminho é preciso que todos permaneçam juntos. O caminho é o seu mar, lugar onde desembocam.
é longo, os obstáculos desconhecidos, os perigos ameaçam de Cada peregrino pode dedicar muito tempo ao cultivo de
todos os lados, Não é permitida uma descarga antes que se vivências de tipo comum que nada têm a ver com o sentido
alcance a meta. da viagem em si. Cada dia se transforma numa luta constante.
A massa lenta tem a forma de um comboio. Desde o prin- É necessário discutir o tempo todo, às vezes com muitos ris-
cípio ela pode ser formada por todos os que pertencem a ela, cos, pois habitualmente as pessoas são pobres e precisam preo-
como foi o caso da saída dos filhos de Israel do Egito. Sua cupar-se com o alimento e a bebida. A vida destes homens está
meta é a Terra Prometida e eles formam uma massa enquanto muito mais exposta a perigos do que em casa. Não são perigos
acreditam nessa meta. A história da sua marcha é a história que .se refiram necessariamente ao seu empreendimento. Desta
dessa fé. Freqüentemente as dificuldades são tão grandes que maneira, esses peregrinos permanecem amplamente como indi-
começam a duvidar. Sofrem fome ou sede, e quando murmuram víduos que, separados, vivem para si mesmos como se não
se vêem ameaçados pela desintegração. Constantemente o ho- fizessem parte de uma massa. Porém desde que perseverem
mem que os conduz se esforça para restabelecer a fé de todos. em sua meta, o que ocorre na maior parte das vezes, eles são
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sempre parte de uma massa lenta que perdura — não importa processos de massa. As metas devem ganhar significado na
de que maneira se comportem em relação a ela — e perdurará distância, as mais próximas devem perder cada vez mais seu
até que a meta seja alcançada. peso e parecer finalmente como carentes de valor. A descarga
Uma terceira forma de massa é encontrada em todas as terrena nunca é de grande duração; somente o que foi trans-
formações que se referem a uma meta invisível e inalcançável ferido para o além tem permanência.
nesta vida. O além, no qual os bem-aventurados esperam por Desta forma a meta e a descarga coincidem; a meta porém
todos os que ganharam um lugar lá, é uma meta bem articula- é invulnerável. Como a Terra Prometida aqui na terra pode
da e propriedade exclusiva dos que crêem. Eles a vêem de ser ocupada e devastada pelos inimigos, o povo ao qual ela
maneira clara e exata diante de si, e não precisam conformar-se foi prometida pode ser desalojado dela. Meca foi conquistada
com um símbolo vago que a substitua, A vida é como um e saqueada pelos carmatas, que levaram consigo a pedra sa-
caminho de peregrinação até lá e entre esse além e eles está grada da Kaaba. Durante muitos anos não foi possível realizar
apenas a morte. O caminho não está determinado detalhada- peregrinação alguma.
mente, e é difícil percebê-lo pelos aspectos visuais. Muitos se O além, no entanto, com seus bem-aventurados, está a
extraviam e o perdem de vista. De qualquer forma, a espe- salvo de todas as devastações deste tipo. Ele vive somente da
rança do além influi tanto na vida dos crentes que temos o fé e somente através dela pode-se chegar até ele. A desintegra-
direito de falar de uma massa lenta à qual pertencem todos
ção da massa lenta do Cristianismo começou no momento em
os adeptos de uma crença. Como eles não se conhecem uns aos que a fé nesse além começou a se decompor.
outros, vivendo dispersos em muitas cidades e países, o aspecto
anônimo dessa massa é o que causa mais impressão.
Qual porém é o aspecto dentro dela, e o que mais a dife-
rencia das formas rápidas? As massas invisíveis
A descarga não ocorre na massa lenta, Seria possível dizer
que esta é a sua principal característica e assim, em vez de Em qualquer parte habitada da Terra encontramos a idéia dos
lentas, seria possível falar de massas sem descarga. Porém é mortos invisíveis. Seria possível até dizer que ela é a idéia mais
preferível a primeira designação, pois não se pode renunciar antiga da humanidade. Certamente não existe nenhum grupo,
inteiramente à descarga. Na representação de um estado final, tribo ou povo que não se preocupe seriamente com seus mor-
ela sempre está contida. Ela está deslocada a uma grande dis- tos. O ser humano era possuído por eles; eles tinham uma
tância. Lá onde está a meta também se encontra a descarga. tremenda importância para ele e sua influência sobre os vivos
Uma intensa visão dela sempre existe, sua certeza está no fim. era parte essencial da própria vida.
Na massa lenta procura-se retardar o processo que conduz à Eles eram imaginados todos juntos, como os vivos hoje,
descarga, colocá-lo a longo prazo. As grandes religiões revela- e era habitual reconhecê-los. "Os antigos bechuanas, da mesma
ram notável maestria neste processo de aproximação da meta forma que os demais nativos do sul da África, acreditavam que
com lentidão. A elas importa conservar os adeptos que foram o espaço deles estava povoado pelos espíritos de seus ances-
conquistados. Para conservá-los e para conquistar novos adep- trais. Terra, ar e céu estavam repletos de espíritos que tinham
tos é preciso que se reúnam de tempos em tempos. Se durante poder de exercer influências maléficas sobre os vivos." "Os
essas assembléias se chegou alguma vez a descargas violentas, polokis, povo do Congo, acreditam estar rodeados por espíritos
elas devem ser repetidas e, na medida do possível, superadas que a todo. momento procuram fazer-lhes mal, que a todas as
em intensidade; pelo menos é imprescindível uma repetição horas do dia e da noite procuram prejudicá-los. Rios e riachos
regular das descargas, caso não se queira perder a unidade dos estão povoados pelos espíritos de seus ancestrais. O bosque
crentes. O que acontece nesse tipo de serviço religioso, que e a selva virgem também estão cheios de espíritos. Eles podem
ocorre em massas rítmicas, não é controlável a maiores distân- tornar-se perigosos para os viajantes surpreendidos pela noite.
cias. O problema central das religiões universais é o domínio Ninguém é suficientemente corajoso para cruzar à noite a flo-
sobre seus fiéis em extensas regiões da Terra. Esse domínio resta que separa uma aldeia da outra. Nem sequer a perspec-
somente é possível mediante um retardamento consciente dos tiva de uma grande recompensa consegue convencê-los a fazer
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isso. A resposta a tais propostas sempre é: existem espíritos ouvir como os exércitos avançam uns contra os outros para
em demasia na floresta." depois recuarem e tornarem a avançar. Depois de uma batalha,
Acredita-se comumente que os mortos morem juntos num o sangue deles tinge as pedras e os rochedos de vermelho. A
país distante, debaixo da terra, numa ilha ou numa casa celeste. palavra ghairm significa "grito", "chamada", e sluagh-ghairm
Uma canção dos pigmeus do Gabão diz: era o grito de guerra dos mortos. Mais tarde se transformou
"As portas da caverna estão fechadas. Os espíritos dos no termo slogan. Os gritos de combate das nossas massas mo-
mortos se reúnem lá aos bandos como um enxame de moscas dernas derivam daqueles dos exércitos de mortos das terras
que dançam ao entardecer. Um enxame de moscas que dançam montanhosas. Dois povos nórdicos que vivem em locais muito
ao entardecer, quando a noite caiu, quando o sol desapareceu, distantes — os lapões da Europa, e os tlingits do Alasca —
um enxame de moscas: movimentos de folhas mortas numa têm a mesma idéia a respeito da aurora boreal como batalha.
forte tempestade". "Os lapões-kolta acreditam ver na aurora boreal os tombados
Mas não é suficiente que os mortos se tornem cada vez na guerra que, como espíritos, continuam combatendo entre
mais numerosos e que um sentimento de densidade se torne si no ar. Os lapões russos vêem na aurora boreal os espíritos
predominante. Eles também estão em movimento e procuram dos mortos. Eles habitam uma casa onde às vezes se reúnem;
empreendimentos conjuntos. Eles são invisíveis para a maioria lá eles se matam entre si e o chão se cobre de sangue. A aurora
das pessoas, mas existem homens com dons especiais, os boreal indica que as almas dos mortos vão dar início às suas
xamãs, que sabem conjurá-los e que podem submetê-los à batalhas. Entre os tlingits do Alasca todos os que morrem de
condição de seus servidores. Entre os chukches, da Sibéria, doença e não na guerra vão para o inferno. Somente os guer-
"um bom xamã possui legiões inteiras de espíritos auxi- reiros valentes, mortos em batalha, estão no céu. Este se abre
liares e quando ele convoca todos, eles chegam em quantida- de vez em quando para acolher novos espíritos. Ao xamã os
des tão grandes que rodeiam a pequena tenda onde ocorre o espíritos aparecem sempre como guerreiros inteiramente arma-
esconjuro, como uma parede de todos os lados". dos. Estas almas dos extintos aparecem freqüentemente como
Os xamãs dizem o que vêem "com uma voz que treme de aurora boreal, principalmente como labaredas com formato
emoção. O xamã grita através do iglu: de flechas em movimento constante, que às vezes passam umas
`O espaço celeste está repleto de seres nus, que chegam junto às outras ou trocam de lugar, o que lembra muito a
voando pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas, maneira de combater dos pingüins. Uma intensa aurora boreal
que vão voando e incitam as tormentas e as nevadas. anuncia, acredita-se, um grande derramamento de sangue, por-
Ouçam os silvos. É como o bater de asas de grandes pás- que os guerreiros mortos estão desejando novos companheiros".
saros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a fuga Segundo as crenças dos germanos, um enorme número
das pessoas nuas! Os espíritos do ar sopram a tormenta, os de guerreiros se encontra reunido no valhalla. Todos os ho-
espíritos do ar derramam a neve sobre a Terra' ". mens que desde o começo do mundo morreram em batalhas
Esta imagem grandiosa de espíritos nus em fuga faz parte chegaram ao valhalla. Sua quantidade cresce cada vez mais,
das crenças dos esquimós. pois as guerras não têm fim. Lá eles se alimentam e bebem,
Alguns povos imaginam os seus mortos, ou uma certa e seus alimentos e suas bebidas são renovados constantemente.
parte deles, como exércitos combatentes. Entre os celtas da Todas as manhãs eles empunham suas armas e partem para o
região montanhosa escocesa, o exército dos mortos é designado combate. Neste jogo eles se matam, mas tornam a se erguer,
por uma palavra especial: sluagh. Esta palavra poderia ser pois não se trata de uma morte verdadeira. Através de seis-
traduzida por "multidão de espíritos". O exército de espíritos centos e quarenta portões eles voltam a entrar no valhalla em
voa em grandes nuvens que vão e voltam — como os estor- colunas de oitocentos homens.
ninhos sobre a terra. Eles sempre retornam aos locais dos seus Porém não são apenas os espíritos dos mortos que os
pecados terrestres. Com suas infalíveis flechas envenenadas, seres vivos imaginam invisíveis em grande quantidade. "De-
matam gatos, cachorros, ovelhas e bovinos dos seres humanos. pende apenas do homem — afirma antigo texto judaico —
Travam batalhas no ar exatamente como os seres humanos e é preciso ter muito presente que nenhum espaço livre existe
fazem sobre a terra. Em noites claras e geladas pode-se ver e entre o céu e a terra, que tudo está repleto de bandos e multi-
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dões. Uma parte delas é pura, cheia de graça e doçura; outra Houve estimativas mais precisas quanto ao seu número. Entre
parte, porém, são seres impuros, predadores e atormentadores. estas conheço duas que diferem muito entre si: uma afirma
Todos voam no ar de um lado para outro: alguns querem a existirem 44,635,569 e a outra 11 bilhões.
paz, outros buscam a guerra; alguns estabelecem o bem, outros Contrastando muito com o que acabamos de referir, en-
provocam o mal; alguns trazem vida, outros a morte." contramos a idéia que cada um faz dos anjos e dos bem-aven-
Na religião dos antigos persas os demônios formam um turados, Entre eles tudo é calma, nada se deseja conseguir,
exército especial que possui um comando supremo próprio, A pois já se chegou à meta. Mas também eles estão reunidos em
respeito do número incontável desses demônios encontra-se no exércitos celestiais, "uni sem-número de anjos, patriarcas, pro-
livro sagrado Zend-Avessa a seguinte fórmula; "Milhares e fetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens e outros justos",
milhares de demônios. Dezenas de milhares e dezenas de mi- Dispostos em grandes círculos, eles estão em torno de seu
lhares são suas miríadas incontáveis". Senhor, como os súditos de uma corte se voltam para o rei.
Na Idade Média cristã havia sérias preocupações quanto Uma cabeça junto a outra, baseiam sua bem-aventurança na
ao número de diabos. No Diálogo sobre os Milagres, de Caesa- proximidade do Senhor. Eles foram aceitos para sempre a seu
rius de Heisterbach, informa-se que em determinada ocasião lado; assumem sua contemplação e não a deixarão jamais. Isto
eles invadiram a tal ponto o coro de uma igreja que pertur- é a unica coisa que ainda fazem, e a fazem em comum.
baram o canto dos monges; estes tinham iniciado o terceiro O espírito dos crentes está povoado de tais idéias de
salmo: "Senhor, quão numerosos são nossos inimigos". Os massas invisíveis, Tanto os mortos como os santos são imagi-
diabos começaram a voar de um lado para outro no coro, e se nados em grandes multidões concentradas. Seria possível dizer
misturaram aos monges que esqueceram completamente o que que as religiões começam com estas massas invisíveis. Sua
estavam cantando e, na confusão, os de um lado procuravam sedimentação é distinta; em cada crença existe um equilíbrio
abafar com gritos a voz dos do outro lado. Se tantos diabos particular para elas. Seria possível e muito desejável fazer uma
se reúnem num lugar para perturbar uma única missa, quantos classificação das religiões segundo a maneira como manipulam
não haveria então na Terra toda! Mas o Evangelho, segundo suas massas invisíveis. As religiões superiores, entre as quais
Caesarius, confirma que uma legião deles entrou num único se incluem as que conseguiram vigência geral, nos mostram uma
ser humano. grande segurança e clareza neste sentido. Às massas invisíveis,
Um sacerdote malvado, no seu leito de morte, disse a que são mantidas vivas em seus sermões, unem-se os temores
uma parenta que estava junto dele: "Você está vendo aquele e os desejos dos homens. Esses invisíveis formam o sangue da
grande celeiro na nossa frente? Debaixo de seu teto existem fé. Na medida em que vão perdendo sua força, a fé enfraquece,
tantos fios de palha quantos diabos estão agora em torno de mas continuamente novas multidões ocupam o lugar das
mim". Eles esperam ali pela alma do sacerdote para conduzi-Ia anteriores.
ao castigo. Mas eles também fazem suas tentativas ao lado do De urna destas massas — que talvez seja a mais impor-
leito de morte das pessoas piedosas. Durante o enterro de uma tante — não se falou ainda. É a única que também para nós,
bondosa abadessa, havia mais diabos reunidos em torno dela homens de hoje, apesar de sua invisibilidade, nos parece na-
do que folhas nas árvores de uma grande floresta. Ao redor tural. Trata-se da descendência. Um homem é capaz de conhe-
de um abade moribundo seu número era superior ao dos cer duas ou talvez três gerações. Mas na sua infinidade a des-
grãos de areia na beira do mar. Esses dados são provenientes cendência não é visível para ninguém. Sabe-se que ela tende
de um diabo que esteve lá pessoalmente e que transmitiu a a aumentar, primeiro lentamente, depois com aceleração cada
informação a um cavalheiro que conversou com ele. Ele não vez maior. Tribos e povos inteiros remontam a um único pa-
escondeu sua decepção pelos esforços vãos que fizeram, e con- triarca, e das promessas que foram feitas a ele é óbvio que
fessou que já por ocasião da morte de Cristo estivera sentado ele deseja bons descendentes, mas sobretudo em grande quan-
sob um braço da cruz. tidade: numerosos como as estrelas dos céus e como a areia
Como se vê, a insistência desses diabos é tão grande do mar. No Shi-King, cancioneiro clássico dos chineses, encon-
quanto sua quantidade. Quando o abade cisterciense Richalm tramos um poema no qual a descendência é comparada a uma
fechava os olhos, via-os tão densos como o pó ao seu redor. nuvem de gafanhotos:
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As asas dos gafanhotos dizem: Puxe, puxe! contidos, por exemplo, na obra de Caesaríus de Heisterbach.
Oh, oxalá teus filhos e teus netos Desde então eles abriram mão de todas as suas características
Estejam ali em incontável exército! que podiam lembrar a figura humana e diminuíram ainda mais
de tamanho. De forma muito diferente e em quantidade inco-
As asas dos gafanhotos dizem: Ate, ate! mensuravelmente maior, eles tornaram a aparecer no séc. XIX
Oh, oxalá teus filhos e teus netos como bacilos. Em vez de atacarem a alma, o objetivo deles
Se sucedam em linhas e sem fim! é o corpo humano, para o qual podem se tornar muito peri-
gosos. São poucas as pessoas que já usaram um microscópio
As asas dos gafanhotos dizem: Une, une! para vê-los. Porém todos os que ouviram falar a seu respeito
Oh, oxalá teus filhos e teus netos têm consciência de sua presença e se esforçam ao máximo para
Sejam para sempre uma unidade! não entrar em contato com eles; mas, graças à sua invisibili-
dade, trata-se de um esforço um tanto quanto vago. Com sua
periculosidade e com suas quantidades enormes concentradas
O grande número, a não-interrupção da sucessão — ou em espaço muito pequeno, eles sem dúvida tomaram a posição
seja, uma espécie de densidade não influenciada pelo tempo — anteriormente ocupada pelos diabos.
e a unidade são os três desejos expressos neste caso para a Uma massa invisível que sempre existiu, mas que apenas
descendência. A nuvem de gafanhotos como símbolo da massa se reconheceu como tal quando apareceu o microscópio, é a
de descendentes é especialmente impressionante, porque os do esperma Duzentos milhões destes animaizinhos espermá-
insetos aqui não são mencionados como bichos daninhos, mas ticos se colocam em movimento simultaneamente. Eles são
sim por causa do vigor da sua multiplicação, que é conside- iguais entre si e estão reunidos em enorme densidade. Todos
rada como exemplar. têm uma meta e, excetuando-se apenas um, os demais perecem
O sentimento da descendência continua tão vivo como no caminho. Pode-se objetar que não são seres humanos e que
sempre esteve. Mas a idéia de massa se desligou da idéia da fundamentalmente, neste sentido, não se deveria falar de uma
descendência, e foi transferida à humanidade futura no seu massa como as descritas anteriormente. Porém esta objeção
conjunto total. Para a maioria de nós os exércitos dos mortos não nos oferece a chave do assunto. Cada um destes animai-
se transformaram numa superstição vazia, no entanto consi- zinhos espermáticos leva consigo tudo o que se conserva dos
dera-se uma atitude nobre e de maneira alguma ociosa preo- ancestrais. Ele contém os ancestrais; ele é os ancestrais. É uma
cupar-se com a massa dos que ainda não nasceram, desejando- tremenda surpresa voltar a encontrá-los aqui, entre uma exis-
lhes o bem e preparando para eles uma vida melhor e mais tência humana e a próxima, sob forma totalmente diferente:
justa. Dentro da inquietação comum a respeito do futuro da todos eles incluídos em uma criatura minúscula e invisível e
Terra, este sentimento em relação aos não-nascidos é da maior esta criatura repetida em números tão incomensuráveis.
importância. Graças à repugnância que sentimos quanto à sua
eliminação, pode ser que a idéia que fazemos do que eles
poderão vir a sofrer, se levarmos adiante as possibilidades bé- Classificação segundo o efeito dominante
licas do momento, conduza, mais do que todos os outros temo-
res privados, à supressão destas guerras e da guerra em geral. As massas que conhecemos estão dominadas pelos mais diver-
Se considerarmos ainda o destino das massas invisíveis sos sentimentos. Ainda não se falou a respeito do tipo destes
das quais estamos falando, pode-se afirmar que algumas desa- sentimentos. A primeira intenção da investigação era de se
pareceram em grande parte, outras por completo. A estas fazer uma classificação segundo princípios formais. O fato de
últimas pertencem os diabos, em sua forma familiar, que, ape- a massa ser aberta ou fechada, lenta ou rápida, invisível ou
sar das quantidades referidas, já não são encontrados em lugar visível nos díz muito pouco do que elas sentem, do seu
algum. No entanto, eles deixaram seus vestígios. Quanto ao conteúdo.
seu tamanho diminuto, poderíamos citar vários testemunhos Este conteúdo, sem dúvida, nunca aparece em estado puro.
surpreendentes da época de seu maior florescimento, como os Já se conhecem as ocasiões em que a massa passa por uma
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série de sentimentos que se sucedem rapidamente. Os homens pertencessem a uma só criatura. Mas os braços que acertam
podem passar horas e horas no teatro e as vivências que ali têm mais valor e mais peso. A meta é tudo. A vítima é a meta,
têm no seu conjunto são dos tipos mais variados. No concerto mas também é o ponto da maior densidade: ela reúne as ações
suas emoções estão ainda mais desprendidas da ocasião do que de todos em si mesma. Meta e densidade coincidem.
no teatro; pode-se dizer que neste caso elas alcançam o seu Um motivo importante para o rápido crescimento da
nível extremo de variedade. No entanto, essas ocasiões são massa de perseguição é a ausência de perigo do empreendi-
artificiais; sua riqueza é o produto final de culturas evoluídas mento. Não existe perigo, pois a superioridade do lado da
e complexas. Seu efeito é comedido. Os extremos se anulam massa é total. A vítima nada pode fazer. Ela foge ou morre.
uns aos outros. Estas disposições servem de maneira geral para Ela não pode golpear; em sua impotência ela é apenas vítima.
um apaziguamento e uma diminuição de paixões, às quais Mas ela também foi entregue à sua perdição. Está destinada,
apenas os seres humanos se sentem entregues. pela sua morte ninguém precisa temer uma sanção. O assassi-
As principais formas afetivas da massa remontam porém nato permitido substitui todos os assassinatos dos quais as
a épocas muito anteriores. Elas aparecem muito cedo, sua his- pessoas se devem abster, e cuja execução poderia provocar
tória é tão antiga quanto a própria humanidade e duas delas duras penas. Um assassinato sem risco, permitido, recomen-
são mais antigas ainda. Cada uma delas se caracteriza por uma dado, compartilhado com muitos outros constitui uma sensa-
coloração uniforme: uma única paixão principal a domina. De- ção irresistível para a grande maioria dos homens. Quanto a
pois de terem sido delineadas com clareza, é impossível voltar isso cabe dizer que a ameaça de morte que pende sobre todos
a confundi-las entre si. os homens e que sob diferentes disfarces está sempre ativa,
A seguir faremos a distinção de cinco tipos de massa ainda que a defrontemos continuamente, torna necessária uma
segundo seu conteúdo afetivo. A de perseguição e a de fuga derivação da morte para os outros. A formação das massas de
são as duas massas mais antigas. Elas ocorrem tanto entre os perseguição corresponde a esta necessidade.
animais como entre os homens e é provável que sua formação É uma empresa tão fácil e que se desenvolve com tanta
entre os homens se tenha baseado sempre nos modelos ani- rapidez que é preciso apressar-se para chegar a tempo. A pressa,
mais. As massas de proibição, de inversão e a festiva são a euforia e a segurança de uma massa como esta têm algo de
especificamente humanas. Uma descrição destas cinco espécies inquietante. É a excitação de cegos que estão mais cegos
principais é indispensável, e sua interpretação pode ter um quando de repente acreditam ver. A massa vai ao sacrifício
alcance considerável. e à execução para desfazer-se de uma vez por todas da morte
de todos aqueles que a constituem. O que realmente ocorre
é o contrário do que se esperava. Pela execução, mas somente
Massas de perseguição depois de ela ter ocorrido, a massa se sente mais ameaçada do
que nunca pela morte. Ela se desintegra e se dispersa numa
A massa de perseguição se forma tendo como finalidade a espécie de fuga. Quanto mais elevada for a categoria da vítima,
obtenção de uma meta de maneira rápida. Esta meta é conhe- maior é o seu medo. Ela somente pode manter-se coesa, se
cida e está caracterizada de maneira precisa; ela também está uma série de efeitos idênticos se sucederem com grande
próxima. Esta massa está disposta a matar e sabe também rapidez.
quem será morto. Com uma determinação sem igual, ela avan- A massa de perseguição é muito antiga; ela remonta à
ça em direção à meta; é impossível impedir que ela a alcance. unidade dinâmica mais primitiva que se conhece entre os ho-
Basta dar a conhecer esta meta, basta comunicar quem deve bens: a malta de caça. A respeito das maltas, que são peque-
morrer, para que a massa se forme. A concentração para matar nas e que além disso se diferenciam muito das massas, fala-
é de índole particular e não há nenhuma que a supere em remos mais detalhadamente em outro lugar. Aqui trataremos
intensidade. Todos querem participar dela, todos golpeiam. apenas de algumas ocasiões gerais que dão motivo à formação
Para poder desferir o seu golpe, cada um se aproxima o mais de massas de perseguição.
possível da vítima. Quando não podem golpear, querem ver Entre os tipos de morte que uma horda ou um povo
como fazem os demais. Todos os braços avançam como se impõe ao indivíduo, podemos distinguir duas formas princi-
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pais; uma é a expulsão. O indivíduo é abandonado, exposto carregado de tudo e teria apedrejado Cristo. O julgamento, que
indefeso às feras ou à morte por inanição. O grupo a que antes normalmente é realizado diante de um grupo limitado de ho-
pertencia nada mais tem a ver com ele; não é permitido aco- mens, representa a grande multidão que em seguida presencia
lhê-lo e todos estão proibidos de lhe oferecer alimentos. Toda a execução. A sentença de morte que, pronunciada em nome
a comunidade se contaminaria com ele e se tornaria culpada. da Justiça, soa abstrata e irreal, converte-se em algo claro
Essa solidão, em sua forma mais rigorosa, é aqui o castigo quando é executada diante da multidão, porque é precisa-
extremo: a separação do grupo a que pertencia, a qual — prin- mente ela que faz justiça e a publicidade da justiça é uma
cipalmente em relacionamentos primitivos — muito poucos referência à massa.
são capazes de suportar. Uma derivação deste isolamento é a Na Idade Média as execuções são realizadas com pompa
entrega ao inimigo. Quando se trata de homens, e quando solene e da maneira mais lenta possível. Ocorrem casos em que
é efetuada sem combate, ela se torna particularmente cruel e a vítima profere discursos edificantes aos espectadores. Em seu
humilhante, como uma morte dupla. último momento, ela se preocupa com a sorte da massa e lhe
A outra forma é a de matar coletivamente. O condenado aconselha a não fazer o que ela mesma fez. A vítima mostra
é conduzido a um campo aberto e apedrejado. Todos partici- aonde se chega com uma vida como a sua. A massa sente-se
pam desta morte; atingido pelas pedras de todos, o culpado muito lisonjeada por esta preocupação e pode dar à vítima uma
é destruído. Ninguém assume o papel de executor. Toda a última satisfação: estar novamente entre eles como igual, ser
comunidade mata. As pedras estão no lugar da comunidade, um "bom" como eles, condenando junto a eles sua vida pas-
servem de lembrança da sua decisão e do seu ato. Em lugares sada. O arrependimento dos malfeitores ou dos infiéis diante
onde se perdeu o uso do apedrejamento, continua existindo da morte, que os eclesiásticos procuraram por todos os meios
essa inclinação para matar coletivamente. A morte pelo fogo sob o pretexto de salvar suas almas, também tem este sentido:
pode ser comparada a isso: o fogo atua no lugar da multidão converter a massa de perseguição numa futura massa festiva.
que desejou a morte do condenado. A vítima é alcançada pelas Cada qual deve sentir-se confirmado em suas boas intenções
chamas em todo o seu corpo; pode-se dizer que ela se vê e acreditar na recompensa futura.
atacada e morta por todas as partes. Nas religiões infernais Em tempos de revolução as execuções são aceleradas. O
se acrescenta algo mais: com a morte coletiva pelo fogo, que verdugo parisiense Samson se sente orgulhoso pelo fato de
é um símbolo para a massa, relaciona-se a idéia da expulsão, seus ajudantes não precisarem de mais de "um minuto por
ou seja, o inferno, a entrega nas mãos dos inimigos infernais. pessoa". Uma grande parte da excitação do estado de ânimo
As chamas do inferno chegam até a terra e acabam com o das massas em tais momentos deve ser atribuída à rápida su-
herege a que se destinam. A morte por flechadas, o fuzila- cessão de um sem-número de execuções. Para :a massa é impor-
mento de um condenado à morte por um pelotão de soldados tante que o verdugo lhes mostre a cabeça do justiçado. Este
têm um grupo executor cujos membros funcionam como dele- é o momento da descarga. Aquele a quem tenha pertencido a
gados da sociedade. No enterramento de homens em formi- cabeça está agora degradado; no curto instante em que fixa os
gueiros, prática conhecida na África e em outras regiões, de- olhos na massa é uma cabeça como todas as outras. É possível
lega-se às formigas, que substituem uma massa poderosa, esta que tenha estado sobre os ombros de um rei, porém, mediante
empresa vergonhosa. o fulminante processo da degradação, diante de todos ele se
Todas as formas de execução pública dependem do velho igualou aos demais. A massa que aqui está constituída por
exercício de matar coletivamente. O verdadeiro verdugo é a cabeças de olhares fixos alcança a sensação de sua igualdade
massa que se reúne em torno do cadafalso. Ela aprova o espe- num abrir e fechar de olhos quando, por sua vez, a cabeça
táculo; num impulso apaixonado, ela chega de lugares muito os olha fixamente. Quanto mais poderoso tenha sido o justi-
distantes para presenciá-lo do começo ao fim. Ela quer que a çado, quanto maior a distância que antes o separava da massa,
morte suceda e não vê com agrado que lhe arrebatem a vítima. tanto maior a excitação da descarga. Se ele era um rei ou um
O relato da condenação de Cristo aborda este fato na sua personagem poderoso, ocorre além disso a satisfação da inver-
essência. O "crucifica-o" parte da massa. Ela é o elemento são. O direito de uma justiça sangrenta, que foi seu privilégio
propriamente ativo; noutros tempos ela mesma teria se en- durante tanto tempo, foi exercido agora contra ele. Os que
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ele mandava matar, antes, o mataram agora. A importância de comportamento mais execrável e ao mesmo tempo mais
desta inversão hão pode ser considerada como excessivamente estável, Como nem sequer precisa se reunir, ela também evita
elevada: existe um tipo de massa que se forma por mera sua desintegração; e a repetição diária do jornal garante suas
inversão. distrações.
O efeito da apresentação da cabeça à multidão não se
esgota com a descarga. Reconhecendo-a com tremenda violên-
cia como uma das suas, caindo, por assim dizer, entre a mul- Massas de fuga
tidão e não sendo mais do que eles mesmos, igualando desSa
maneira todos, cada um se vê refletido nela. A cabeça cor- A massa de fuga se estabelece pela ameaça. É inerente a
tada é uma ameaça. Os olhos mortos olharam tão fixamente
ela que tudo fuja, que tudo seja arrastado. O perigo que
para a massa que esta agora não consegue se libertar deles.
ameaça um dos seus componentes é o mesmo para todos os
Como a cabeça pertence à massa, sua morte também a afeta:
demais. Ele se concentra sobre um determinado lugar. Não
assustada e influenciada de maneira misteriosa, a massa co-
faz diferenças. Pode ameaçar os habitantes de uma cidade, ou
meça a se desintegrar. Trata-se de uma espécie de fuga na
todos os que compartilhem da mesma fé, ou todos os que
qual agora se dispersa. falem um determinado idioma.
A desintegração da massa de perseguição que cobrou sua
Foge-se em conjunto, porque assim se foge melhor. A
vítima é particularmente acelerada. Os donos do poder são•
excitação é a mesma: a energia de uns é acrescentada à dos
muito conscientes disso. Eles lançam uma vítima à massa para
outros; os homens avançam unidos numa mesma direção. En-
deter seu crescimento. Muitas execuções políticas foram orde-
quanto estão juntos, sentem o perigo como que repartido entre
nadas com este fim exclusivo. Por outro lado, os porta-vozés
eles. Existe a idéia remota de que o perigo irá se abater sobre
dos partidos radicais freqüentemente não percebem que, ao
algum lugar. Enquanto o inimigo se apodera de um dos fugi-
alcançar sua meta (a execução pública de um inimigo perigoso),
se prejudicam mais do que ao partido inimigo. Pode acontecer tivos, os demais têm oportunidade de escapar. Os flancos da
fuga estão descobertos, mas como são muito extensos é inima-
que, após tal execução, a massa dos seus partidários se desfaça
ginável que o perigo possa atacar a todos de uma só vez. Entre
e que por muito tempo — talvez nunca mais — não consiga
reencontrar sua antiga força. Teremos ocasião de nos apro- Tantos, ninguém em particular supõe que será a vítima. Como
fundar mais nos motivos desta transformação, quando falar- o movimento único de todos tende à salvação, o indivíduo
mos das maltas e, em particular, das maltas de lamentação. sente grandes esperanças diante da possibilidade de alcançá-la.
A aversão ao matar coletivamente é de data muito re- O que mais chama a atenção na fuga de massa é a inten-
cente. Isto não deve ser supervalorizado. Ainda hoje todos sidade de sua direção. A massa, por assim dizer, se transformou
participam das execuções públicas através dos jornais. A dife- toda em direção com a finalidade de se afastar do perigo. Como
rença é que assim tudo é mais cômodo. Pode-se ficar tran- importa apenas a meta onde as pessoas se salvam, e o espaço
qüilamente instalado em sua própria casa e, entre cem detalhes existente até lá, as distâncias que antes existiam entre os ho-
relatados, pode-se gaStar mais tempo com os que nos excitam mens passam a ser irrelevantes. Criaturas muito diferentes e
de maneira especial. Quando tudo termina, o prazer não é opostas, que jamais se uniram, neste caso podem repentina-
estragado pelo mais leve vestígio de culpa. Não se é respon- mente encontrar-se lado a lado. No decorrer da fuga, não de-
sável nem pela condenação, nem pelas testemunhas, nem pelo saparecem as diferenças mas sim as distâncias entre elas. De
relato e nem mesmo pelo jornal que publicou este relato. todas as formas de massa, a de fuga é a mais abrangente. A
Porém agora se está muito mais informado do que em épocas imagem desigual que ela oferece não é resultado apenas da
anteriores, quando era necessário andar e ficar de pé durante participação de todos, deve-se também à velocidade muito dife-
horas, e quando se via pouca coisa. No público dos leitores dos rente que pode ser desenvolvida pelos homens em fuga. Entre
jornais se mantém viva uma massa de perseguição, moderada . eles existem jovens, velhos, fortes, fracos, mais ou menos car-
porém devido à distância dos acontecimentos; entretanto mais regados, Os diferentes aspectos desta imagem podem confun-
irresponsável, estaríamos tentados a dizer, e com uma forma dir um observador que esteja à margem. Mas eles são secun-
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dários e quando comparados com a força imensa da dire- massa torna a dissolver-se. O perigo porém também pode ser
ção -- carecem de qualquer significado. eliminado na sua própria fonte de origem. Declara-se um armis-
A energia da fuga se multiplica enquanto cada integrante tício e a cidade da qual se fugia deixa de estar ameaçada. Vol-
reconhece os demais: eles podem ser empurrados para a frente, ta-se isoladamente, apesar de todos terem fugido em conjunto,
mas não excluídos lateralmente. Porém no momento em que e tudo volta a ficar tão separado como estava antes da fuga.
se passa a depender apenas de si mesmo, e cada qual considera No entanto existe ainda uma terceira possibilidade, que pode
os que o rodeiam unicamente como obstáculos, a fuga em ser considerada o desaparecimento da fuga na areia. A meta
massa muda de caráter, transformando-se no seu oposto, o está excessivamente distante, o ambiente é hostil, as pessoas
pânico; uma luta de cada um contra todos os demais que sofrem fome, enfraquecem e se cansam. Ao invés de alguns,
estejam no seu caminho. Com mais freqüência se chega a uma são centenas e milhares que ficam para trás. Esta decompo-
inversão quando a direção da fuga é perturbada várias vezes. sição física começa lentamente, e o movimento original é man-
Basta bloquear o seu caminho, para que a massa se movimente tido durante um espaço de tempo infinitamente superior. Os
noutra direção. Quando seu caminho é bloqueado diversas homens continuam se arrastando, mesmo quando já desapare-
vezes, ela não sabe mais para onde se dirigir; neste momento ceram completamente todas as possibilidades imagináveis de
ela perde sua consistência. O perigo, que até então tinha um salvação. De todas as variantes de massa, a mais tenaz é a
efeito unificador e de incentivo, passa a caracterizar cada um da fuga; nela, os últimos componentes permanecem juntos até
como inimigo dos demais, e todos começam a tentar a própria o momento final.
salvação. Não são escassos os exemplos de fuga de massa. Nossa
A fuga de massa no entanto, ao contrário do pânico, era tornou-se muito rica neste sentido. Até os acontecimentos
extrai sua energia da coesão. Enquanto ela nao se deixa dis- da última guerra, todos pensariam primeiro no destino da
persar por coisa alguma, enquanto perdura sua continuidade
Grande Armée de Napoleão, por ocasião de sua retirada da
como uma poderosa corrente que não se divide, o medo que a
Rússia. Este é o caso mais grandioso: a composição deste exér-
impele também é suportável. Assim que ela começa a se mo-
cito por homens de tantos idiomas diferentes, o inverno terrí-
vimentar, uma espécie de euforia se apossa da fuga em massa:
vel, a enorme distância que a maioria deles foi obrigada a
a euforia do movimento em comum. Ninguém está mais
exposto do que os demais e, apesar de cada um dos participan- percorrer a pé... Esta retirada, que acabou degenerando numa
tes correr ou cavalgar no máximo de suas forças para se co- fuga de massa, é conhecida em todos os seus detalhes. A fuga
locar em segurança, cada qual tem sua posição dentro do de uma metrópole, nestas mesmas proporções, sem dúvida foi
conjunto, que pode ser reconhecido em meio à agitação ge- presenciada pela primeira vez quando os alemães se aproxima-
neralizada. ram de Paris em 1940. Este famoso "êxodo" não teve uma
No decorrer da fuga, que pode estender-se durante dias duração muito longa, já que logo em seguida foi assinado o
ou semanas, alguns ficam para trás, porque suas forças se armistício. Porém a intensidade e a magnitude deste movimento
esgotaram ou por terem sido alcançados pelo inimigo. O des- foram tais que o episódio se tornou para os franceses a prin-
tino que atingiu este indivíduo poupou os demais; ele passa cipal lembrança de massa da última guerra.
a ser um sacrificado ao perigo. Por mais importante que ele Não pretendemos acumular aqui toda uma série de exem-
tenha sido pessoalmente para cada um como co-fugitivo, na plos de épocas recentes. No entanto eles ainda estão vivos na
sua condição de caído ele se tornou ainda mais importante memória de todos. Vale a pena ressaltar que a fuga de massa
para todos. Sua sina confere novas forças aos que já estão sempre foi bem conhecida pelo homem, mesmo quando ele
enfraquecidos. Como ele era mais fraco do que os outros, o ainda vivia em grupos muito reduzidos. Ela já desempenhava
perigo o atingiu. O isolamento em que ele fica atrasando-se, um importante papel em sua imaginação, antes mesmo que
vislumbrado rapidamente pelos demais, enfatiza para os outros houvesse número suficiente para que ela pudesse ocorrer. Lem-
o valor da coesão. Não se pode enfatizar demais a importância bramos neste contexto a versão de um xamã esquimó:
do caído para a consistência da fuga. "O espaço celeste está repleto de seres nus que vêm
O fim natural da fuga é alcançar a meta. Na segurança, a voando pelo ar, Seres humanos, homens nus, mulheres nuas,
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que vão voando, provocando tempestades e nevascas. Ouçam entanto, segundo seu rendimento, os salários são distintos.
o ruído que provocam. É como o bater de asas de grandes Sua igualdade certamente não é muito profunda, e não basta
pássaros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a para provocar a formação da massa. Porém, quando se
fuga das pessoas nuas"! chega a uma greve, os trabalhadores se tornam iguais de
uma maneira Mais unificadora: na negativa de continuar
trabalhando. A proibição do trabalho gera uma atitude aguda
e resistente.
Massas de proibição
O momento da parada é um .grande momento, glorificado
em todos os hinos dos trabalhadores. Para isso contribui em
Uma espécie especial de massa forma-se através de uma proi- grande parte o sentimento de alívio com que é iniciada a greve
bição: muitos, em conjunto, não querem continuar fazendo o entre os trabalhadores. Sua igualdade fictícia, da qual tanto
que até então faziam como indivíduos. A proibição é repen- se fala mas que na verdade não vai além da utilização de suas
tina; ela é auto-imposta pelos próprios indivíduos. Pode tra- mãos, torna-se real. Enquanto trabalhavam tinham que fazer
tar-se de alguma proibição antiga que, por algum motivo, coisas dos tipos mais variados e tudo lhes era prescrito. Quando
tenha caído no esquecimento; ou então de alguma outra proi-
suspendem o trabalho, todos fazem a mesma coisa. É como
bição que é retomada de tempos em tempos. Mas também pode
se todos deixassem cair os braços no mesmo instante, como se
ser alguma proibição inteiramente nova. De qualquer forma,
agora todos tivessem de empregar suas forças em não voltar a
ela é imposta com grande força. Tem o caráter absoluto de
uma ordem, mas seu aspecto decisivo é o que tem de negativo, levantá-los, indiferentes à fome que possam sofrer seus fami-
liares. A suspensão do trabalho iguala os trabalhadores. Com-
Ela nunca vem de fora, ainda que assim pareça. Sempre surge
a partir de uma necessidade dos próprios afetados. Apenas a parada com o efeito deste instante, sua reivindicação concreta
proibição é pronunciada, a massa começa a se formar. Todos tem pouco peso. Pode ser que o objetivo da greve seja um
se negam a fazer o que o mundo exterior espera deles. O que aumento salarial e não resta a menor dúvida de que em fun-
até então faziam sem muito alarde, como se lhes fosse natural ção deste objetivo eles se sintam unidos. Porém somente isso
e fácil, repentinamente deixa de ser feito, não importa por que não bastaria para que formassem uma massa.
motivo. Na determinação de sua negativa pode-se reconhecer Os braços que caem têm um efeito contagioso sobre os
sua solidariedade. O próprio elemento negativo da proibição outros braços. O que eles não fazem comunica-se à sociedade
contagia a massa desde o instante do seu nascimento e con- toda, A greve se expande por "simpatia" e impede que outros,
que inicialmente não pensavam numa interrupção, continuem
tinua sendo, enquanto ela existir, sua característica principal.
desempenhando sua tarefa normal. 0 sentido da greve é que
Poderíamos portanto falar também de unia massa negativa. A
ninguém deve fazer coisa alguma enquanto os trabalhadores
resistência é o elemento que a caracteriza; a proibição repre-
insistirem em ficar parados; e quanto maior for o resultado
senta um limite e um dique; ninguém pode cruzar a fronteira,
alcançado por esta intenção, tanto maiores são as probabilida-
ninguém pode romper este dique. Quem cede e desobedece à
proibição é repudiado pelos demais. des de que eles vençam com a greve.
Nos nossos tempos o melhor exemplo de massa negativa Dentro da própria greve é importante que cada qual se
ou de proibição é a greve. Os trabalhadores estão habituados atenha à proibição. Chega-se espontaneamente à criação de
a desempenhar seu trabalho regularmente, em horas determi- uma organização a partir do interior da própria massa. Ela tem
nadas. Eles realizam tarefas dos mais diversos tipos; um faz a função de um estado que nasce com plena consciência de sua
isto, outro faz algo completamente diferente. Entretanto num existência fugaz, e que é regido apenas por um punhado de
mesmo horário todos se apresentam e num mesmo horário leis; estas, no entanto, são respeitadas da maneira mais rigo-
todos abandonam o lugar de trabalho. Eles são iguais em fun- rosa possível. Piquetes vigiam os acessos ao lócal de onde partiu
ção desse momento comum de apresentar-se e de retirar-se. a ação: o próprio lugar de trabalho passa a ser um terreno
A maioria deles realiza trabalhos manuais. Também estão pró- proibido. A proibição que pesa sobre os trabalhadores modi-
ximos num outro ponto: a remuneração do seu trabalho. No fica totalmente suas vidas diárias e lhes confere uma dignidade
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especial. A responsabilidade que cada um tem em relação à Massas de inversão
greve faz com que esta se torne um bem comum. É neste sen-
tido que a responsabilidade é protegida e considerada num "Meu querido, meu bom amigo, os lobos sempre comeram os
sentido mais elevado. No seu vazio e no seu silêncio existe cordeiros; será que desta vez os cordeiros comerão os lobos?"
algo de sacrossanto. Qualquer pessoa que se aproxime deve Esta frase encontra-se num carta que Madame Jullien escreveu
ser examinada quanto às suas convicções. Quem aparecer com a seu filho durante a Revolução Francesa. Ela contém, redu-
intenções profanas, quem quiser trabalhar, é considerado ini- zida a uma fórmula concisa, a essência da inversão. Até agora
migo ou traidor. alguns poucos lobos subjugaram muitos cordeiros. Chegou o
A organização se encarrega de uma distribuição justa de momento de os muitos cordeiros se voltarem contra os pou-
víveres ou de dinheiro. O disponível deve durar o mais pos- cos lobos. Sabe-se que os cordeiros não são carnívoros. Porém
sível. É importante que cada qual receba quantidades idênti- o que chama a atenção nesta frase está justamente na sua
cas. O mais forte nem pensará em receber mais; até mesmo o aparente falta de sentido. As revoluções são os tempos típicos
avarento se dá por satisfeito. Como geralmente existe multo da inversão. Os que durante tanto tempo permaneceram inde-
pouco para cada um, e como a distribuição é feita de maneira fesos repentinamente começam a mostrar os dentes. Seu
eqüitativa, já que é feita em público, este tipo de distribuição número deve compensar o que lhes falta em experiência e
contribui ainda mais para o orgulho que a massa sente pela maldade.
sua igualdade. Existe algo de muito sério e respeitável em A inversão pressupõe uma sociedade estratificada. A limi-
torno dessa organização. Não se pode deixar de pensar no tação de certas classes entre si, possuindo umas mais direitos
sentido da responsabilidade e na dignidade de uma formação que as outras, deve ter existido durante bastante tempo, deve
deste tipo, surgida espontaneamente de seu próprio meio, ter exercido suas influências na vida cotidiana dos homens
quando se fala da selvageria e do prazer destrutivo da massa. durante muitos anos, antes que surja a necessidade da inver-
Um estudo da massa de proibição é indispensável pelo fato são. O grupo superior tinha o direito de dar ordens ao inferior,
de mostrar aspectos muito característicos e até mesmo únicos. seja por ter chegado ao país por conquista colocando-se acima
Enquanto ela permanece fiel à sua essência, consegue evitar de seus habitantes, seja porque a estratificação ocorreu a partir
qualquer destruição. de acontecimentos no interior do próprio povo.
É verdade, sem dúvida, que não é fácil mantê-la neste Toda ordem deixa nos que são forçados a obedecer a ela
estágio. Quando as coisas não correm bem e a carência alcança um doloroso espinho. Quanto à natureza destes espinhos, que
proporções difíceis de suportar, e principalmente quando se são indestrutíveis, muita coisa será dita mais adiante. Homens
sente atacada ou sitiada, a massa negativa tende a converter-se que estão constantemente recebendo ordens e que se sentem re-
pletos destes espinhos possuem um forte impulso para se livrar
numa massa positiva ou ativa. Após um certo tempo é possível
dessa situação. Esta liberação pode ser alcançada de duas ma-
que os grevistas, que de maneira tão repentina proibiram ati-
neiras. Podem transmitir para outros as ordens que foram
vidade às suas mãos, tenham de fazer um grande esforço para recebidas de cima; para isso é necessário que haja inferiores
não usá-las de alguma forma. Basta que eles sintam que a que estejam dispostos a receber suas ordens. Mas também
unidade de sua resistência está ameaçada para que se mostrem podem devolver a seus superiores tudo o que durante muito
inclinados à destruição, antes de mais nada à destruição na tempo suportaram e sofreram por parte deles. Um indivíduo,
esfera das atividades às quais estavam acostumados. É justa- fraco e indefeso, terá pouquíssimas ocasiões de conseguir esta
mente aqui que começa a tarefa mais importante da organiza- oportunidade. Mas quando muitos se encontram numa massa,
ção; ela tem de manter puro o caráter da massa de proibição, pode acontecer o que lhes estava vedado num plano indivi-
e impedir toda e qualquer ação individual positiva. Da mesma dual. Juntos podem voltar-se contra aqueles que até então
forma ela deve reconhecer quando chega o momento de levan- lhes davam ordens. A situação revolucionária pode ser consi-
tar a proibição à qual a massa deve sua existência. Quando sua derada como o estado clássico de tal inversão. E a massa cuja
visão corresponde ao sentimento da massa, ao levantar a proi- descarga consiste principalmente numa liberação conjunta dos
bição ela deve determinar sua própria dissolução. "espinhos-ordens" deve ser designada como massa de inversão.
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A Queda da Bastilha é tida como o princípio da Revolu- possível libertar-se do seu espinho. A massa de inversão é
ção Francesa, que na verdade tinha começado antes com um um processo que ataca toda uma sociedade e, mesmo tendo
banho de sangue entre coelhos. Em maio de 1789 os Estados êxito imediato a princípio, somente chega ao final de maneira
Gerais se reuniram em Versalhes. Deliberaram a abolição dos lenta e difícil. A massa de perseguição existente na superfície
direitos feudais, entre os quais se contava o direito de caça é uma condição de processo rápido. A inversão lentamente
da nobreza. No dia 10 de junho, um mês antes da Queda da começa a aparecer a partir do que existe de mais profundo.
Bastilha, Camille Desmoulins, que participava como delegado Mas a inversão pode ser ainda muito mais lenta: ela pode
das reuniões, informa a seu pai numa carta: "Os bretões estão ser uma promessa de glória. "Os últimos serão os primeiros".
pondo em prática alguns artigos dos seus cadernos de reivindi- Entre as duas situações encontra-se a morte. No outro mundo
cações. Matam pombas e animais silvestres. Cinqüenta jovens as pessoas tornarão a viver. Quem foi o mais pobre aqui
participam aqui na região de uma devastação sem precedentes e nada fez de mal, valerá muito mais no outro mundo. Ele
entre lebres e coelhos. Dizem que caçam à vista dos guardas de continua existindo como ser novo em melhor situação. Ao
quatro a cinco mil animais na planície de Saint Germain". Os crente se promete a libertação de seus problemas. Entretanto,
cordeiros, antes de enfrentar os lobos, voltam-se contra as nada se diz a respeito das circunstâncias mais precisas desta
lebres. Antes da inversão, que é dirigida contra os próprios libertação; e mesmo que mais tarde todos estejam juntos no
superiores, as pessoas maltratam os que estão mais abaixo, os além, não se faz propriamente uma referência à massa como
animais de caça. substrato de uma inversão.
O acontecimento propriamente dito ocorre, portanto, no No centro deste tipo de promessa existe a idéia da res-
día da Bastilha. A cidade toda se abastece de armas. O levante surreição. Casos de ressurreição realizados por Cristo neste
dirige-se contra a justiça real, simbolizada pelo edifício ata- mundo são relatados nos Evangelhos. Os pregadores dos cé-
cado e tomado. São libertados os presos que podem então lebres Revivais dos países anglo-saxões utilizavam o efeito de
incorporar-se à massa. O governador responsável pela defesa morte e ressurreição de muitas maneiras. Os pecadores reuni-
da Bastilha e seus ajudantes são executados. Mas também dos eram ameaçados por eles com os mais espantosos castigos
ladrões são enforcados nos postes. A Bastilha é arrasada e não infernais e caíam num estado de indescritível temor. Viam
fica pedra sobre pedra. A justiça nos seus dois aspectos prin- um enorme lago de fogo e enxofre diante deles e a mão do
cipais — como sentença de morte e como indulto -- passa Todo-poderoso prestes a lançá-los no terrível abismo. Conta-se
às mãos do povo. A inversão, momentaneamente, consumou-se. a respeito de um destes pregadores que a violência de sua
Massas desse tipo formam-se nas mais diversas circuns- oratória era aumentada por suas repugnantes expressões fa-
tâncias: podem ser levantes de escravos contra seus senhores, ciais e por sua voz trovejante. As pessoas viajavam 60, 80,
de soldados contra seus oficiais, de gente de cor contra os 150 km para poder ouvir esses pregadores. Os homens tra-
brancos que estão instalados em seu meio. Trata-se sempre de ziam consigo suas famílias em carroças cobertas e vinham
um grupo de pessoas que durante muito tempo estiveram sob abastecidos de víveres e cobertores para vários dias. Por volta
o domínio de outros. Os insurgentes atuam sempre a partir do ano 1800, uma parte do Estado de Kentucky caiu num
de seus espinhos acumulados e sempre, portanto, tiveram que transe febril por causa desse tipo de assembléias. As reuniões
esperar bastante antes de poderem começar a agir. eram realizadas ao ar livre, pois não havia edifícios naquela
Entretanto, grande parte do que pode ser observado na época capazes de abrigar estas enormes massas. Vinte mil pes-
superfície das revoluções desenvolve-se, sem dúvida alguma, soas se reuniram em agosto de 1801 no Meeting de Cane
entre massas de perseguição. A caça é feita contra homens in- Ridge. Mais de cem anos depois as lembranças deste aconte-
dividuais; quando eles são alcançados, são mortos em conjunto cimento ainda se encontravam vivas no Kentucky.
por todos, sob forma de tribunal, ou até mesmo sem julga- Os espectadores eram aterrorizados pelos pregadores até
mento. Porém a revolução nunca consiste nisto. As massas de o ponto de caírem por terra e lá permanecerem imóveis como
perseguição, que atingem rapidamente seu fim natural, nunca mortos. Eles eram ameaçados com as ordens de Deus. Por
são suficientes. A inversão uma vez iniciada segue sempre em causa destas ordens eles se precipitavam na fuga, buscando
frente. Cada um procura chegar a uma situação na qual seja a salvação numa espécie de morte aparente. Esta era a inten-
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ção consciente e declarada do pregador, ele queria "derru- Este medo, aumentado pelo pregador de todas as formas pos-
bá-los". Tudo ocorria como num campo de batalha; à direita síveis, os leva ao estado de inconsciência. Eles se fingem de
e à esquerda caíam no chão filas inteiras de pessoas. Os pró- mortos como alguns animais que tentam fugir; porém seu
prios pregadores faziam a comparação com o campo de bata- terror é tão grande que no decorrer do processo perdem a
lha. Para a inversão moral que queriam provocar, eles acha- consciência. Quando voltam a si, declaram-se dispostos a sub-
vam muito apropriado fazer alusão a esta situação extrema. meter-se às ordens e às proibições divinas. Em troca disso, o
O êxito da pregação era medido pelo número de "derruba- temor, exacerbado ao máximo, diminui diante do castigo imi-
nente. Seria possível dizer que este processo é semelhante ao
dos". Uma testemunha ocular, que realizou uma contabilidade
exata, informa que no transcorrer do Meeting de vários dias, da domesticação: a pessoa se deixa domesticar pelo pregador
cerca de três mil pessoas caíram inertes ao chão, ou seja, quase para servir obedientemente a Deus.
a sexta parte de todos os presentes. Os que caíam eram trans- Este caso é diametralmente oposto ao de uma revolução
portados a uma sala de reuniões vizinha. Todo o tempo como foi interpretada acima. Lá tratava-se de uma libertação
metade do assoalho estava coberto por homens prostrados. de espinhos que iam sendo acumulados progressivamente pela
Muitos ficavam imóveis durante horas, incapazes de falar ou submissão a um senhor. Aqui trata-se de uma submissão nova
de se movimentar. Às vezes voltavam a si durante alguns mi- aos mandamentos de Deus; de uma disposição, portanto, a
nutos e com gemidos profundos, gritos penetrantes ou orações aceitar voluntariamente todos os espinhos que podem decorrer
piedosas davam a entender que continuavam vivos. Alguns disso. Comum a ambos os processos existe apenas o fato de
ficavam batendo com os calcanhares no chão. Outros grita- uma inversão e do cenário psíquico no qual ela ocorre: num e
vam como se estivessem à beira da morte e se agitavam como noutro caso, a massa.
peixes apanhados numa rede. Alguns ficavam rolando horas
a fio no chão. Havia outros que, repentinamente, saltavam
sobre os estrados dos oradores ou sobre os bancos e fugiam Massas festivas
em direção à floresta gritando: "Perdidos! Perdidos!".
Quando os caídos voltavam outra vez a si, eram outros Designarei um quinto tipo de massa como massa festiva.
homens. Levantavam-se e exclamavam: "Redenção!". Eles ti- Existem muitos suprimentos num espaço limitado, e todas
nham "renascido" e podiam agora dar início a uma vida boa as pessoas que se movimentam nesta área determinada podem
e pura. Tinham deixado para trás sua velha existência de participar da festa. Os produtos, de qualquer espécie, são ex-
pecadores. Porém a conversão somente era digna de crédito postos em grandes porções. Cem leitões estão dispostos em
quando precedida por uma espécie de morte. fila. Foram empilhadas montanhas de frutas. Em recipientes
Ocorriam também fenômenos de natureza menos extrema, enormes preparou-se a bebida predileta que aguarda os con-
mas que atuavam no mesmo sentido. E em certa ocasião todas sumidores. Existem coisas em quantidades maiores do que as
as pessoas concentradas romperam em pranto. Muitos foram que podem ser consumidas. E para consumi-las chegam grupos
acometidos por contrações convulsivas irresistíveis. Alguns, cada vez maiores de pessoas. Enquanto houver comida e be-
geralmente em grupos de quatro ou cinco, começaram a latir bida as pessoas se servem e tem-se a impressão de que os
como cachorros. Após alguns anos, quando a excitação adqui- suprimentos jamais chegarão ao fim. Existe um excesso de
riu uma forma mais tranqüila, primeiro alguns poucos e de- mulheres para os homens e um excesso de homens para as
pois toda a multidão eram possuídos por "riso sagrado". mulheres. Nada e ninguém ameaça, nada impele à fuga; a
Mas tudo o que ocorria, ocorria na massa. Poucas for- vida e o prazer estão assegurados enquanto durar a festa.
mas mais excitadas e mais tensas do que essa se tornaram Muitas proibições e separações foram suspensas; permitem-se
conhecidas. e favorecem-se as aproximações pessoais menos usuais. A
A inversão que enfocamos aqui é diferente da que acon- atmosfera para o indivíduo é de distensão e não de descarga.
tece nas revoluções. Trata-se da relação dos homens para com Não existe uma meta idêntica para todos e que todos devem
os mandamentos de Deus. Até agora eles tinham atuado contra alcançar unidos. A festa é a meta e ela foi conseguida. A den-
ele. Mas agora o terror dos seus castigos desabou sobre eles. sidade é muito grande; a igualdade, por outro lado, deve-se
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à situação e à alegria. As pessoas se movem entre as outras curiosidade e expectativa ou todo medo são dirigidos a uma
e não com as outras. As coísas que estão expostas, que se segunda aglomeração de seres humanos que estão separados
acumulam visualmente e que se consomem são uma parte essen- por uma distância clara. Quando eles são vistos de frente, seu
cial da densidade: seu núcleo. Primeiro se reúnem os objetos aspecto fascina; quando não são vistos, podem ser ouvidos.
e somente quando eles estão reunidos as pessoas são convo- Da ação ou da intenção do segundo grupo depende tudo o que
cadas para se reunir em torno deles. Podem transcorrer se faz. As atitudes contra eles influem sobre as atitudes que
anos até que haja tudo o que é necessário, e pode ser que temos para com os elementos do nosso próprio grupo. O con-
grandes privações tenham de ser suportadas para proporcionar fronto, que em ambos provoca um alerta especial, modifica a
esta abundância efêmera. Porém as pessoas vivem pensando natureza da concentração dentro de cada grupo. Enquanto
neste instante e o evocam conscientes de que é a meta. Pes- aquele grupo não se dispersa, este deve continuar unido. A
soas que em geral pouco se vêem foram solenemente convi- tensão existente entre ambos os grupos se traduz numa pres-
dadas e em grupo. A chegada dos diversos contingentes é são sobre os elementos de cada grupo. Quando se trata da
acentuada de maneira forte e aumenta consideravelmente a tensão de um jogo ritual, a pressão se manifesta com uma
alegria geral. espécie de pudor: faz-se tudo o que é possível para não dei-
Este estado provoca um sentimento geral de que graças xar descoberto o nosso lado perante o adversário. Porém, se
ao prazer comum desta festa será possível garantir numerosas os adversários ameaçam e se realmente a vida está em perigo,
festas posteriores. Com danças rituais e representações dra- a pressão se transforma na couraça de uma defesa decidida
máticas comemoram-se acontecimentos de natureza idêntica. e unida.
Sua tradição está incluída no presente desta festa. Pouco De qualquer forma, uma massa mantém a vida da outra,
importa que se celebrem os fundadores desses eventos, os heróis o que pressupõe que elas sejam mais ou menos equivalentes
culturais responsáveis por todas as maravilhas desfrutadas, os em termos de tamanho e de intensidade. Para manter-se como
antepassados ou, como em sociedades mais frias posteriores, massa não se pode ter um adversário demasiadamente supe-
apenas se homenageiem os ricos anfitriões; em qualquer um rior, ou pelo menos ele não deve ser considerado como sendo
destes casos parece estar garantida uma futura repetição de demasiadamente superior. Se se tiver a sensação de inferiori-
ocasiões similares. Uma festa provoca a outra e pela densidade dade diante do adversário, a massa procurará a salvação na
de objetos e de homens multiplica-se a vida. fuga e, caso esta pareça impossível, a massa se desintegrará
em pânico, cada qual fugindo individualmente. Porém não é
este o caso que nos interessa aqui. Para a constituição do
A massa dupla: homens e mulheres. sistema de duas massas, como também podemos denominá-lo,
ambos os lados devem ter um sentimento de equilíbrio de
Vivos e - mortos forças.
Se quisermos compreender a origem desse sistema, deve-
O mais seguro e freqüentemente o único meio de conser- mos partir de três oposições básicas. Elas aparecem sempre
var a massa é a existência de uma outra massa com a qual onde existem seres humanos e todas as sociedades conhecidas
a primeira se possa comparar. Seja que elas se enfrentem de eram muito conscientes de sua presença. A primeira oposição,
maneira lúdica e meçam forças, ou seja que se ameacem seria- e também a mais nítida, é a que existe entre homens e mu-
mente, a visão ou a representação intensa da segunda massa lheres; a segunda, entre os vivos e os mortos; a terceira, na
não permite que a primeira se desintegre. Enquanto as pernas qual se pensa quase exclusivamente hoje em dia quando se
se mantêm juntas umas às outras, os olhos estão fixos noutros fala de duas massas que se enfrentam, é a oposição entre o
olhos diante deles. Enquanto os braços se movimentam se- amigo e o inimigo.
guindo um ritmo comum, os ouvidos estão atentos ao grito Se considerarmos a primeira divisão, ou seja, a que separa
que aguardam do outro lado. homens e mulheres, não fica imediatamente evidente o que
Existe uma proximidade física em relação às outras pes- isto poderia ter a ver com a formação de massas especiais.
soas e age-se com elas numa unidade familiar e natural. Toda Homens e mulheres vivem juntos em famílias. Existirá possi-
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velmente uma divisão de trabalho, mas mal podemos imaginar atenção os ruídos feitos pelo grupo oposto. Eles usam as
que os grupos se enfrentem em classes separadas e excitadas. mesmas exclamações e com elas se exaltam até chegar a um'
É preciso voltar a relatos de condições de vida mais espontâ- estado de excitação de massa comum a ambos. As atividades
neas para se obter uma imagem diferente da forma desta opo- essenciais ocorrem entre os homens. Porém as mulheres com-
sição. partilham do desenvolvimento da massa. Vale a pena observar
Jean de Léry, jovem huguenote francês, foi testemunha, que elas, assim que ouvem os primeiros ruídos vindos da
em 1557, de uma grande festa entre os tupinambás do Brasil. casa dos homens, se reúnem num amontoado muito denso,
"Recebemos ordens para ficar na casa onde estavam as respondendo aos gritos selvagens que ouvem com intensidade
mulheres. Não sabíamos ainda o que iriam fazer, quando de cada vez maior. Elas estão repletas de medo por estarem fe-
repente começou um barulho bastante forte na casa onde se chadas — não podem sair por motivo algum — e, como não
encontravam os homens, a uma distância de uns trinta passos podem saber o que acontece entre os homens, sua excitação
de nós e das mulheres. O som se assemelhava a um murmúrio vai adotando um colorido especial. Elas saltam no sentido
de orações. vertical, como se pulassem para fora. As características histé-
"Quando as mulheres, cerca de duzentas, ouviram o ruí- ricas que o observador nota são típicas de uma fuga de massa
do, levantaram-se aguçando os ouvidos, juntando-se para for- impraticável. A tendência natural das mulheres seria fugir
mar um grupo bem unificado. Logo em seguida, os homens para onde estão os homens, mas como existe uma grave proi-
elevaram suas vozes. Percebemos com clareza que todos can- bição quanto a isso, elas fogem, por assim dizer, permanecendo
tavam em coro, repetindo muitas vezes uma interjeição com no mesmo lugar.
a qual pareciam se incentivar: 'He, he, he, he!'. Notáveis também são as sensações do próprio Jean de
"Ficamos muito espantados quando as mulheres respon- Léry. Ele compartilha da excitação das mulheres sem no en-
deram usando a mesma interjeição: 'He, he, he, he!'. Durante tanto pertencer realmente à massa que elas formam. Ele é um
mais de um quarto de hora choraram e gritaram de modo tão estranho e é um homem. Em meio a elas, mas delas separado,
alto que não sabíamos que expressão mostrar no rosto. ele deve temer a possibilidade de se tornar vítima dessa massa.
"Em meio ao choro, elas saltavam a grandes alturas, os Que a participação das mulheres à sua maneira não é in-
seios tremendo, com espuma em volta da boca. Algumas caí- diferente ao outro grupo salta à vista em outra passagem do
ram desmaiadas, como pessoas que sofrem de epilepsia. Tive relato. Os feiticeiros da tribo, ou "caraíbes", como os chama
a impressão de que o diabo entrara nelas, enlouquecendo-as Jean de Léry, proíbem terminantemente que as mulheres aban-
totalmente. Bem perto de onde estávamos era possível ouvir a donem sua casa. Mas lhes ordenam que ouçam com o máximo
algazarra das crianças fechadas num recinto separado. Apesar de atenção o canto dos homens.
de já estar convivendo há mais de meio ano com os selvagens, A influência das mulheres sobre o grupo dos seus ho-
e de me ter acostumado bastante a eles, eu me senti — não mens pode ser de importância também quando estão muito
quero ocultá-lo — cheio de pavor. Perguntei-me como ter- mais separados entre si. Para o êxito de expedições guerreiras,
minaria a situação e desejei estar de volta ao nosso forte." as mulheres às vezes contribuíram à sua maneira. Em seguida
Finalmente a algazarra diminui, as mulheres e as crianças daremos três exemplos — um da Ásia, outro da América e o
emudecem e Jean de Léry ouve os homens cantando maravi- último da África — de povos que nunca tiveram contato entre
lhosamente em coro. O canto é tão bonito que ele não resiste si e que com toda certeza jamais se influenciaram mutuamente.
à tentação de querer vê-los. As mulheres procuram retê-lo, Entre os kafirs de Hindukusch, as mulheres representam
pois conhecem a proibição e sabem que não podem ir até onde a dança guerreira, quando seus homens estão ausentes numa
estão os varões da tribo. No entanto, o francês consegue ir expedição. Assim elas enchem de vigor e coragem os guerrei-
até lá. Nada lhe acontece e juntamente com dois outros com- ros, e aumentam sua vigilância para que eles não se deixem
patriotas, ele participa da festa. surpreender pelo inimigo.
Homens e mulheres encontram-se portanto estritamente Entre os jívaros, da América do Sul, as mulheres se reú-
separados, em casas diferentes mas próximas. Os grupos não nem enquanto seus homens estão numa expedição de guerra,
podem ver-se um ao outro, mas cada qual escuta com grande noite após noite, numa determinada casa, executando uma
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dança especial. Elas usam maracás e conchas penduradas no é considerada como especialmente dolorosa pelos sobreviven-
corpo e entoam cantos de esconjuro. Acredita-se que essa dan- tes. Eles resistem da melhor maneira que lhes é possível, mas
ça guerreira das mulheres possui um poder peculiar: ela pro- sabem que sua resistência não lhes ajudará muito. A massa
tege seus pais, maridos e filhos das lanças e das balas do existente do outro lado é maior e mais forte e o homem em
inimigo, e dá também uma segurança efêmera ao inimigo, de questão é atraído por ela. Tudo o que é feito neste mundo
modo que este não perceba o perigo até que seja demasiado leva em consideração a noção da superioridade do além. É pre-
tarde. Os cantos também servem para impedir que os inimigos ciso evitar tudo o que irrite o outro lado, que tem influência
se vinguem no caso de uma derrota. sobre os vivos e que pode prejudicá-los em todos os sentidos.
Myrary chama-se, em Madagascar, uma antiga dança das Para alguns povos a massa dos mortos é o reservatório de onde
mulheres que somente deve ser executada no momento do surgem as almas dos recém-nascidos. Deles depende que as
combate. Quando uma batalha era anunciada, mensageiros mulheres tenham filhos. As vezes os espíritos se aproximam
especiais avisavam as mulheres. Estas, então, soltavam os ca- sob a forma de nuvem, trazendo a chuva. Eles podem impedir
belos, começavam a dança, estabelecendo desta maneira uma a existência das plantas e dos animais dos quais os vivos se
espécie de comunicação com os homens. Quando os alemães nutrem; eles podem fazer novas vítimas entre os vivos. O pró-
marcharam contra Paris em 1914, as mulheres de Tananarive, prio morto que somente entregamos após dura resistência, já
com a finalidade de proteger os soldados franceses, dançaram está disposto a participar do poderoso exército existente do
a myrary. Apesar da grande distância, isto parece ter tido um outro lado.
efeito prático. Morrer portanto é um combate, um combate entre dois
No mundo todo existem festas nas quais homens e mu- inimigos de força desigual. Os gritos que soltamos, os golpes
lheres dançam em grupos separados, se bem que visíveis um que infligimos a nós mesmos em meio ao luto e ao desespero
ao outro; geralmente ficam um diante do outro. Não é neces- talvez também sejam tidos como expressões desse combate.
sário descrevê-los, pois são universalmente conhecidos. Eu me O morto não deve acreditar que foi entregue sem resistência,
limitei a relatar apenas alguns casos mais extremos em que a que os daqui não combateram por ele.
separação, a distância e também a excitação são especialmente Trata-se de um combate muito peculiar. É um combate
notórias. Nestes casos podemos falar de uma massa dupla que perdido de antemão, sem que a coragem empregada tenha im-
está profundamente arraigada; ambas estão reciprocamente pre- portância. Desde o princípio foge-se do inimigo, e no fundo o
dispostas de maneira positiva. A excitação de uma serve para enfrentamos apenas para conservar as aparências com a espe-
favorecer o bem-estar e a prosperidade da outra. Homens e rança de derrotá-lo mediante uma escaramuça de retaguarda.
mulheres pertencem a um povo e dependem uns dos outros. O combate é simulado também como um último tributo pres-
Nas lendas das amazonas, que não se restringem apenas tado ao agonizante, que logo em seguida passará a engrossar
à antiguidade grega e das quais encontramos exemplos entre as fileiras do inimigo. Trata-se de conseguir que o morto que
os nativos da América do Sul, as mulheres se separavam para nos abandona fique bem disposto em relação a nós, ou pelo
sempre dos homens e os combatiam nas guerras como se fos- menos que ele não se volte demais contra os vivos, já que isto
sem um povo diferente. poderia estimular os inimigos potenciais a novos e perigosos
Mas antes de voltar à análise da guerra, onde a essência ataques.
perigosa e aparentemente inevitável da massa dupla encontrou O essencial neste tipo de combate entre os mortos e os
sua expressão mais forte, não podemos deixar de lado a anti- vivos é seu caráter intermitente. Nunca se sabe quando algo
guíssima oposição entre os vivos e os mortos. voltará a acontecer. É possível que nada ocorra durante muito
Em referência ao que ocorre em torno dos moribundos e tempo. Mas ninguém pode confiar nisso. Cada novo golpe
dos mortos, é importante a idéia de que no além atua uma chega de improviso e vem das trevas. Não há uma declaração
quantidade muito maior de espíritos, entre os quais o defunto de guerra. Depois de uma única morte, tudo pode terminar.
acabará sendo incluído. O lado dos vivos não entrega de bom Mas também é possível que o ataque continue, como sucede em
grado seus integrantes. Sua perda enfraquece os vivos e quan- tempos de pestes e epidemias. A retirada é contínua e a situa-
do se trata de um homem na plenitude de suas forças, a morte ção nunca termina completamente.
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Posteriormente falaremos a respeito da relação dos vivos no campo de batalha". Valr, no nórdico antigo, significa os
para com os mortos. Aqui quisemos enfocar apenas o problema "cadáveres do campo de batalha"; valhall nada mais é do que
de uma massa dupla, cujas partes mantêm uma relação recí- a "morada dos guerreiros caídos". Por derivação do antigo
proca e perpétua. termo alemão wal formou-se a palavra woul, que significa
A terceira forma de massa dupla é a da guerra. É ela que "derrota". No anglo-saxão, porém, a palavra correspondente,
atualmente mais nos interessa. Depois das experiências deste wol, significa "peste, enfermidade contagiosa". Comum a todos
século, daríamos qualquer coisa para compreendê-la e para estes termos, quer se trate de caídos no campo de batalha, de
acabar com ela. derrota, de peste ou de enfermidade contagiosa, é a idéia de
um monte de mortos.
Porém esta idéia não é apenas germânica. Ela é encon-
A massa dupla: a guerra trada no mundo inteiro. Numa visão do profeta Jeremias a
Terra toda aparece como um enorme campo de cadáveres em
Nas guerras o que importa é matar. "As fileiras do inimi- decomposição. "Os mortos do Senhor num mesmo tempo fica-
go foram dizimadas." Trata-se de matar aos montes. É preciso rão estendidos no solo de uma extremidade da Terra à outra;
acabar com a maior quantidade possível de inimigos; a perigosa eles não serão chorados, nem recolhidos, nem enterrados; de-
massa de adversários vivos deve ser transformada num monte verão jazer no campo e transformar-se em esterco."
de mortos. Vence aquele que mata mais inimigos. Na guerra O profeta Maomé tem um sentimento tão intenso em
se enfrenta uma massa crescente de vizinhos. Seu aumento é relação aos seus inimigos mortos que se dirige a eles numa
inquietante em si. Sua ameaça, que já está contida no mero espécie de pregação triunfal. Após a batalha de Bedr, o pri-
crescimento, desencadeia a própria massa agressiva, que força meiro grande triunfo sobre seus inimigos em Meca, "mandou
a guerra. Na sua condução, procura-se ser sempre superior, ou lançar os inimigos mortos numa cisterna. Somente um deles
seja, ter sempre em campo um grupo mais numeroso e apro- foi sepultado debaixo de terra e pedras, porque estava tão
veitar, em todos os sentidos, a fraqueza do adversário antes inchado que não era possível tirar-lhe a couraça; apenas este
que ele possa aumentar numericamente. A forma de conduzir foi excluído, ficando fora. Quando os demais já tinham sido
a guerra é portanto, em detalhe, a imagem exata do que ocorre lançados à cisterna, Maomé se colocou diante dela e exclamou:
no plano geral: pretende-se ser a maior massa de vivos. Do `Oh, homens da cisterna! A promessa do vosso senhor se
lado adversário deve ficar o monte maior de mortos. Nesta cumpriu? A promessa do meu Senhor estava correta!'. E seus
concorrência das massas de crescimento se encontra o motivo companheiros disseram: 'Oh, enviado de Deus! São apenas ca-
de fundo essencial, poderíamos até dizer, o motivo básico dáveres'!. E Maomé replicou: 'Eles sabem, mesmo assim, que
mais profundo das guerras. Em vez de mortos também se a promessa do Senhor se realizou".
podem fazer escravos, principalmente mulheres e crianças, que Desta maneira ele reuniu os que anteriormente não que-
servem exatamente para multiplicar a massa da própria tribo. riam ouvir suas palavras; na cisterna eles estão bem guardados
Porém a guerra nunca é uma verdadeira guerra quando não e intimamente unidos. Não conheço exemplo mais penetrante
tem primeiro como objetivo um monte de inimigos mortos. que defina esta classe de vida e o caráter de massa que se
Todas as palavras familiares para designar feitos bélicos, atribui ao monte de inimigos mortos. Eles já não ameaçam,
tanto nas línguas antigas como nas novas, expressam exata- porém é possível ameaçá-los. Com eles pode-se exercer impu-
mente esta relação. Fala-se de "matança" e de "carnificina". nemente qualquer ato pérfido. Tenham eles sentimento ou não,
Grandes quantidades de sangue tingem os rios de vermelho. supõe-se que o tenham para enfatizar o próprio triunfo. Eles
O inimigo é abatido no campo até o último homem. Cada um estão reunidos na cisterna de tal maneira que nenhum se po-
se bate "até o último homem". Não existe perdão. deria mover. Caso um deles despertasse, teria apenas mortos
No entanto é importante notar que também o monte de ao seu redor. Seus próprios companheiros o privariam do ar
mortos é considerado como unidade e algumas línguas pos- necessário para respirar; o mundo ao qual regressaria estaria
suem palavras especiais para designá-la. A palavra alemã wal- formado de mortos, de cadáveres das pessoas que lhe eram
statt contém a antiga raiz wal, que significa "os que ficaram mais próximas.
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Entre os povos da Antiguidade, os egípcios não eram con- de suas vestes brancas que modificam a cor do campo — a
siderados grandes guerreiros; a energia do seu Velho Império frase mais terrível, definitiva, do resultado de uma batalha.
era canalizada mais para a construção das pirâmides do que Porém este resultado somente pode ser visto pelos com-
para as conquistas. Apesar disso, eles também realizaram ex- batentes. A batalha foi travada à distância e o povo que per-
pedições bélicas. O relato seguinte foi feito por Une, um juiz manece na pátria também gostaria de ter algo do monte de
superior que seu rei Pepy nomeou comandante contra os be- inimigos mortos. Usando a imaginação lhes é proporcionada
duínos. Em seu túmulo, Une nos dá informações a respeito de esta satisfação. O filho e sucessor de Ramsés II, Merenptah,
sua vida: nos diz como ganhou uma grande batalha contra os líbios. Todo
o acampamento deles, com todos os seus tesouros e com os
Este exército foi feliz e despedaçou o país dos beduínos. parentes de seu príncipe, caiu nas mãos dos egípcios; depois do
Este exército foi feliz e destruiu o país dos beduínos. saque, ele foi incendiado; 9.376 prisioneiros completavam o
Este exército foi feliz e derrubou suas torres, saque. Mas isto ainda não era suficiente; para que o povo to-
Este exército foi feliz e cortou suas figueiras e videiras. masse conhecimento do número de mortos, cortaram-se os ór-
Este exército foi feliz e incendiou todas as suas aldeias. gãos sexuais dos caídos; aos circuncidados cortavam-se as mãos,
Este exército foi feliz e matou dezenas de milhares de sol- e todo este carregamento foi transportado por burros. Mais
tarde, Ramsés III teve de combater novamente os líbios. Neste
dados.
Este exército foi feliz e trouxe prisioneiros em grande caso o número de troféus se elevou a 12.535. É evidente que
estes carregamentos macabros nada mais são que um monte
quantidade.
reduzido dos inimigos mortos, transportável e visível, para o
povo todo. Cada um dos caídos contribui com uma parte do
A forte imagem da destruição atinge o ponto culminante
seu corpo para o monte global; e é importante que todos os
no verso que nos informa a respeito das dezenas de milhares troféus se assemelhem.
de soldados mortos. No decorrer do Novo Império os egípcios
Outros povos se interessavam mais por cabeças. Os assí-
realizaram, se bem que não durante muito tempo, uma polí- rios estabeleciam um preço pela cabeça de cada inimigo; cada
tica sistematicamente agressiva. Ramsés II mantém prolonga- soldado procurava reunir o maior número possível delas. Num
das guerras contra os hititas. Num hino de louvor diz-se o se- relevo da época do rei Assurbanipal, podemos ver uma cena
guinte sobre ele: na qual os escribas estão de pé em suas grandes tendas, ano-
"Ele que pisoteia o país dos hititas, convertendo-o num tando a quantidade das cabeças decepadas. Cada soldado traz
monte de cadáveres, como Sekhmet quando almeja a peste». suas cabeças, joga-as sobre um monte comum, dá o seu nome
Já em sua história mitológica a deusa Sekhmet, com cabeça de e o da sua divisão e se retira. Os reis assírios sentiam grande
leão, havia provocado entre os homens rebeldes um terrível paixão por esses montes de cabeças. Quando estavam junto ao
banho de sangue. Ela continua como deusa da guerra e do exército, presidiam a entrega dos troféus e entregavam pes-
massacre. O autor do hino de louvor, porém, reúne a imagem soalmente os prêmios correspondentes aos soldados. Quando
do monte de cadáveres dos hititas com a das vítimas de uma se encontravam distantes do campo de batalha, ordenavam que
epidemia; um relacionamento que para nós não é novidade. o monte de cabeças fosse levado até eles; caso isto fosse im-
Em sua célebre crônica sobre a batalha de Kadesh, trava- possível, conformavam-se apenas com as cabeças dos coman-
da contra os hititas, Ramsés II narra como foi separado de dantes inimigos.
suas tropas e como, graças a uma força e a uma coragem ex- O objetivo imediato e muito concreto da guerra é por-
cepcionais, conseguiu vencer a batalha. Seus soldados "desco- tanto visível. Não é necessário procurar mais ilustrações para
briram que todos os povos nos quais penetrei jaziam no pró- isto. A história é pródiga destes exemplos. As vezes tem-se a
prio sangue com todos os melhores combatentes dos hititas e impressão de que ela se preocupa sobretudo com estes casos
com os filhos e irmãos de seu soberano. Eu fiz com que o e que graças apenas a um esforço contínuo e repetido conse-
campo de Kadesh se tornasse branco, não sendo possível pi- guiu dedicar-se também a outros eventos da humanidade.
sá-lo devido à quantidade". É a quantidade dos cadáveres e Se considerarmos ambos os lados combatentes, a guerra
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oferece a imagem de duas massas duplamente entrelaçadas. isto eu mesmo posso ser morto". Porém, para começar uma
Um exército do maior tamanho possível procura produzir o guerra, para que ocorra o seu estalo, para que apareça uma
maior monte possível de inimigos mortos. Exatamente o mes- consciência guerreira entre o próprio povo, concorda-se apenas
mo é válido também para o lado oposto. O entrelaçamento é com a primeira parte da frase. Mesmo que sejamos os agresso-
resultado do fato de que cada participante de uma guerra per- res, sempre tentaremos criar a ficção de estarmos ameaçados.
tence sempre simultaneamente a duas massas: para o seu pró- A ameaça consiste no fato de que alguém se arvora no
prio povo ele pertence ao número dos guerreiros vivos; para direito de matar outra pessoa. Cada um dos que formam um
os adversários, pertence a um número de mortos potenciais determinado lado se encontra sob a mesma ameaça: ela iguala
e desejáveis. todos, a ameaça é dirigida a cada um. A partir de um dado
Para manter o espírito bélico num nível elevado, é neces- momento, que para todos é o mesmo, ou seja, o da prepara-
sário afirmar constantemente a própria força, ou seja, men- ção da guerra, pode acontecer a mesma coisa a todos. O exter-
cionar o número de guerreiros existentes no próprio exército mínio físico do qual as pessoas habitualmente se sentem pro-
e também a quantidade de inimigos mortos. Desde os tempos tegidas pela própria sociedade, justamente por pertencerem
mais remotos as crônicas de guerra se caracterizam por esta a ela, está agora muito próximo. Decretou-se a um só tempo
dupla estatística: tantos soldados nossos participaram, tantos a mais terrível ameaça para todos os que fazem parte de um
inimigos foram mortos. Existe uma grande tendência para exa- mesmo povo. Mil pessoas, cada uma das quais foi informada
geros, principalmente no que diz respeito ao número de ini- no mesmo instante da proximidade de sua morte, reúnem-se
migos mortos. para desviar o perigo. Procuram atrair rapidamente todos os
Enquanto durar a guerra jamais se admitirá que o número que podem ser afetados pela mesma ameaça; reúnem-se em
de inimigos vivos seja excessivo. Mesmo quando se sabe disso, grande densidade, e para sua defesa submetem-se a uma direção
o fato não é comentado; procura-se minimizar este inconve- comum de ação.
niente mediante a distribuição das tropas em combate. Con- Os afetados de ambos os lados em geral se reúnem bas-
forme já observamos, tudo é feito para conseguir, por meio de tante depressa, fisicamente ou no plano das idéias e sentimen-
trocas e de mobilidade constante das divisões do exército, uma
tos. O estouro de uma guerra é, antes de mais nada, o estouro
superioridade no terreno. Somente depois da guerra é que se
de duas massas. Assim que elas se formam, a suprema intenção
mencionam as baixas sofridas.
de cada uma delas é manter-se como convicção e como ação.
As guerras podem durar muito tempo; elas continuam
Renunciar a elas equivaleria a abandonar a própria vida. A
sendo travadas, mesmo quando já estão perdidas; isso está re-
lacionado com a mais profunda tendência da massa: manter-se massa guerreira atua sempre como se tudo o que está fora dela
em estado agudo, não se desintegrar, continuar sendo massa. fosse morte. E o indivíduo, por mais guerras a que tenha so-
Este sentimento às vezes é tão forte que se prefere sucumbir brevivido, voltará a sucumbir a esta mesma ilusão numa nova
em conjunto a reconhecer a derrota e com ela viver a decom- ocasião, sem opor resistência. A morte, que na realidade sempre
posição da própria massa. ameaça cada um, deve ser anunciada como sentença coletiva
Mas como ocorre a formação da massa bélica? O que é para que seja enfrentada de forma ativa. Existem, por assim
que cria num determinado momento esta incrível coesão? O dizer, épocas declaradas de morte nas quais ela se volta contra
que induz o homem repentinamente a arriscar tanto e tudo? um determinado grupo escolhido arbitrariamente. "Agora é
Este processo ainda é tão enigmático que deve ser abordado contra todos os franceses", ou "agora é contra todos os ale-
com bastante cautela. mães". O entusiasmo com o qual os seres humanos recebem
Trata-se de uma empresa surpreendente. Chega-se à con- semelhante declaração tem sua raiz na covardia do indivíduo
clusão de que se está ameaçado de extermínio físico e em relação à morte. Ninguém deseja enfrentá-la sozinho. É
proclama-se esta ameaça publicamente diante do mundo todo. mais fácil fazê-lo a dois, quando dois inimigos executam a sen-
"Eu posso ser morto", diz-se, e por dentro pensa-se: "porque tença reciprocamente; e já não se trata da mesma morte, quan-
quero matar este ou aquele". A ênfase certamente deveria ser do milhares caminham juntos ao seu encontro. O pior que
dada à segunda frase: "Eu quero matar este ou aquele e por Pode acontecer aos homens numa guerra é que morram juntos;
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isto os livra da morte individual, que é o que temem acima de orquestra, mas é importante que se manifestem como uma
tudo. totalidade. Quem os vê ou os vir deve sentir, antes de mais
No entanto eles não acreditam que o pior venha a acon- nada, que eles jamais se desintegrarão. Sua vida fora do cristal
tecer. Eles vêem uma possibilidade de desviar e de evitar a não conta. Mesmo quando se trata de uma profissão, como é o
sentença coletiva que foi decretada contra eles. Seu pára-mortes caso de um músico de orquestra, nunca se pensa em sua exis-
é o inimigo; e tudo o que têm a fazer é agir antes dele. É. tência privada: eles são a orquestra. Em outros casos eles estão
preciso apenas ser suficientemente rápido e não vacilar um uniformizados e é somente assim que os vemos juntos. Eles se
instante sequer diante da morte. O inimigo vem como se convertem em homens muito diferentes quando deixam o uni-
tivesse sido chamado, pois foi ele quem pronunciou a sen- forme. Soldados e monges podem ser considerados como a forma
tença, quem disse "morte!" em primeiro lugar. Sobre ele mais importante desta espécie. Neste caso, o uniforme expressa
recai o que ele mesmo dirigiu contra os outros. É sempre o que os integrantes do cristal moram juntos; mesmo quando
inimigo quem começou. Se ele não foi o primeiro a declará-lo, aparecem separados, pensa-se sempre na sólida unidade à qual
pelo menos já o planejava, e se não o planejava, já tinha pensa- pertencem: o convento ou a divisão de exército.
do nisso; e se ainda não tinha pensado, iria pensar dentro de A clareza, o isolamento e a constância do cristal formam
pouco tempo. A morte como desejo existe por toda parte, e não um contraste agudo e inquietante em relação aos agitados fe-
é preciso ir muito a fundo no ser humano para encontrá-la. nômenos da própria massa. O processo de crescimento rápido
A notável e inconfundível alta tensão, característica de e controlado e a ameaça de desintegração, que confere à massa
todos os acontecimentos bélicos, tem duas causas: querer adian- sua inquietude particular, não estão ativos dentro do cristal.
tar-se à massa e atuar na massa. Sem este último elemento não Mesmo nos momentos de maior agitação, ele sempre se des-
se tem a menor perspectiva de êxito no primeiro. Enquanto taca da massa. Qualquer que seja a massa à qual dê origem, e
durar a guerra é preciso que se permaneça como massa; a por mais que pareça misturar-se com ela, jamais perderá total-
guerra chega ao seu fim quando isto não acontece. A pers- mente o sentimento de sua singularidade, e após a desintegra-
pectiva de certa esperança de vida que se oferece à massa tem ção da massa voltará a reunir-se imediatamente.
contribuído muito para o apreço em que se têm as guerras. A massa fechada não se distingue do cristal apenas por
Pode-se demonstrar que sua densidade e sua duração nos tem- sua maior magnitude, mas também por possuir um sentimento
pos modernos estão relacionados com as massas duplas, multo mais espontâneo de si mesma, e por não poder permitir-se uma
maiores, que se vêem tomadas pela convicção bélica. séria distribuição de funções. A massa nada tem em comum
com o cristal a não ser sua limitação e sua repetição regular.
Porém no cristal tudo é limite; todos os que o integram estão
Cristais de massa constituídos como limite. Para a massa fechada, pelo contrário,
coloca-se um limite fora, talvez na forma e no tamanho do
Por cristais de massa eu designo pequenos e rígidos grupos edifício em que ela se reúne. Dentro deste limite, o lugar em
de homens, fixamente limitados e de grande constância, que que cada um de seus integrantes se encontra com os demais
servem para desencadear massas. É importante que esses permanece fluido e por isso a qualquer momento são possíveis
grupos sejam facilmente controláveis, que possam ser abran- surpresas, atitudes imprevistas e mutáveis. Sempre, também
gidos de uma só vez. Sua unidade é muito mais importante que nesta constituição limitada, a massa fechada pode alcançar um
seu tamanho. Sua função deve ser familiar. É preciso saber grau de densidade e de intensidade que leva ao seu estalo. O
para que existem. Uma dúvida quanto à sua função os privaria cristal de massa, porém, é totalmente estático. Suas atividades
de todo sentido; o melhor é que sempre se mantenham iguais estão prefixadas. Ele é muito consciente de cada manifestação
a si mesmos. Eles não podem ser confundidos. Um uniforme ou movimento.
ou um determinado local de ação é. muito conveniente. Também a permanência histórica do cristal de massa é
O cristal de massa é duradouro. Nunca varia de tamanho. surpreendente. Apesar de se produzirem formas novas, as an-
Seus integrantes aprenderam o que fazer ou que convicção tigas continuam sempre existindo de maneira obstinada e para-
devem ter. Eles podem ter funções distribuídas como uma lela. É possível que, por alguns momentos, elas passem a um
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segundo plano, perdendo algo de sua nitidez e do seu caráter los de massa, pelo contrário, nunca são formados por seres
indispensável. As massas que lhe pertenciam talvez tenham
humanos, sendo apenas percebidos como massa.
sido extintas ou totalmente reprimidas. Como grupos inofen-
A análise detalhada destes símbolos pode à primeira vista
sivos, sem qualquer influência sobre o exterior, os cristais
parecer imprópria em relação ao tema. Porém veremos que
continuam vivendo então para si mesmos. Pequenos grupos desta maneira podemos focalizar a massa propriamente dita de
de comunidades religiosas resistem em países que mudaram de uma forma nova e frutífera. Examinando os seus símbolos,
crença. No momento em que se tornam necessários, voltam lançaremos sobre a massa uma luz nova e não seria inteligente
com segurança, em número proporcional ao das massas que deixar de aproveitar a oportunidade.
tenham surgido e cujo incitamento e desencadeamento possam
ser oportunos. Todos os rígidos grupos "desativados" podem
ser reassumidos e reativados. Eles podem voltar a ser utiliza. O fogo
dos como cristais de massa com pequenas modificações em sua
constituição. Praticamente não existe nenhuma grande mu- Quanto ao fogo, pode-se dizer de antemão que ele se asse-
dança política que não se lembre de antigos grupos destrona- melha em todas as partes: quer seja pequeno ou grande, quer
dos, usando-os, reformando-os com tal intensidade que pos- apareça aqui ou lá, quer tenha grande ou pequena duração,
sam dar a impressão de algo completamente novo e perigosa- para nossa imaginação ele tem algo de igual que independe de
mente ativo. suas contingências. A imagem do fogo nos parece uma marca
Posteriormente veremos como funcionam os cristais de vibrante, inextinguível e determinada.
massa nos seus detalhes. De que maneira eles desencadeiam as O fogo se propaga, é contagioso e insaciável. A violência
massas somente pode ser demonstrado mediante casos concre- com que devasta bosques, estepes e cidades inteiras forma
tos. Os cristais são formados de maneira diversa, por isto dão uma de suas características mais impressionantes. Antes do
origem a massas muito distintas entre si. No decorrer deste princípio do incêndio uma árvore estava junto de outra árvore,
trabalho — de maneira quase imperceptível — entraremos uma casa junto de outra casa, cada qual separada da outra,
em contato com uma série deles. independente. Não resta a menor dúvida de que o que se
encontrava isolado é unido pelo fogo num tempo mínimo. Os
objetos isolados e diferenciáveis se fundem com as próprias
Símbolos de massa chamas. Eles se igualam até o ponto de desaparecerem com-
pletamente: casas, criaturas, tudo é devastado pelo fogo. Ele
Símbolos de massa é o nome que dou às unidades coletivas é contagioso: a pouca resistência às chamas sempre é algo
que não estão formadas por seres humanos, mas que no assombroso. Quanto mais vida tenha alguma coisa, tanto menos
entanto são compreendidas como massas. Unidades deste tipo pode defender-se do fogo; somente o que existe de mais ina-
nimado — os minerais — consegue resistir ao fogo. Sua célebre
são o trigo e a floresta, a chuva, o vento, a areia, o mar e o
falta de misericórdia não conhece limites. Ele quer abranger
fogo. Cada um destes fenômenos contém em si características
tudo, alcançar tudo.
essenciais da massa. Mesmo não sendo constituídos por seres
O fogo pode ocorrer em todos os lugares. Ninguém se
humanos, estes fenômenos lembram a massa e a representam
surpreende com o fato de ocorrer um incêndio aqui ou ali;
em mitos e sonhos, em conversações e em cantos, sempre existe sempre um potencial de fogo em todos os lados. Este
simbolicamente.
surgir de improviso, porém, é sempre impressionante e será
Convém separar estes símbolos dos cristais de forma investigado na procura das causas. Como freqüentemente estas
clara e inequívoca. Os cristais de massa se apresentam como
causas não podem ser encontradas, isto contribui para o sen-
um grupo de homens que chamam a atenção' pela sua coesão
timento reverente vinculado à idéia do fogo. Ele possui uma
e pela sua unidade. Os cristais são concebidos e vivem como
onipresença oculta que pode manifestar-se a qualquer mo-
unidades, mas também são formados por homens que atuam
mento e em qualquer lugar.
realmente: soldados, monges, toda uma orquestra. Os símbo-
O fogo é múltiplo. Não somente temos consciência de que
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existe fogo em inúmeros lugares, mas também de que o fogo Ela pode ser contida e domada. Ela prbcura um inimigo. Ela
em si mesmo é múltiplo: fala-se de chamas e de labaredas. se apaga tão rapidamente como aparece, freqüentemente de
Nos Vedas o fogo é designado como "o Agni uno, o múltiplo modo igualmente inexplicável; e, obviamente, possui a sua
inflamado". própria vida inquieta e violenta. Estas semelhanças entre o
O fogo é destrutivo; ele pode ser combatido e domado; fogo e a massa levaram à sua íntima interpenetração. Ambos
ele se extingue. Ele tem um rival elementar, a água, que o se confundem, podendo aquele assumir o lugar desta. Entre os
enfrenta sob a forma de rios e de chuvas. Este rival sempre símbolos de massa que sempre estiveram ativos na história da
existiu, e com todas as suas diversas qualidades é igual ao humanidade, o fogo é um dos mais importantes e mutáveis.
fogo. A inimizade entre eles é proverbial, "água e fogo" é a É necessário abordar algumas dessas relações entre fogo e
expressão para a inimizade da mais extrema e inconciliável massa.
espécie. Nas mais antigas concepções do fim do mundo, sempre Entre as características mais perigosas da massa, que sem-
é um ou o outro que se torna vencedor. O dilúvio universal pre são destacadas, a que mais chama a atenção é a tendência
faz com que toda a vida pereça na água. A conflagração mun- a incêndios criminosos. Esta tendência tem uma importante
dial destrói o mundo pelo fogo. Às vezes aparecem ambos, raiz no incêndio de florestas. A floresta, que também é um
mutuamente se influenciando, numa mesma mitologia. Mas o antiguíssimo símbolo de massa, muitas vezes é incendiada pelos
homem aprendeu a dominar o fogo na sua existência temporal. seres humanos com a finalidade de criar espaço para que eles
Além de conseguir utilizar sempre algum tipo de água contra possam se estabelecer. Existem bons motivos para se supor
ele, o homem também mantém o fogo dividido. Em fogões e que os homens aprenderam a manipular o fogo pelos incêndios
fornalhas ele é mantido prisioneiro. O homem alimenta o fogo das florestas. Entre floresta e fogo existe uma relação pré-
como se alimenta um animal; ele pode causar sua morte por
histórica. Os campos de cultivo se localizam sempre onde antes
inanição; pode sufocá-lo. E com isto já insinuamos a última
existiam florestas e quando surge a necessidade de os campos
propriedade do fogo: ele é tratado como se tivesse vida pró-
serem ampliados, é sempre preciso destruir novas partes da
pria. Ele tem uma vida inquieta e se apaga. Quando o asfi-
xiamos completamente aqui, ele mesmo assim continua viven- floresta.
do em outros lugares. Se reunirmos estas características isoladas Os animais fogem da floresta incendiada. O terror de
do fogo, teremos uma imagem surpreendente: ele é igual a si massa é a reação natural, e seria possível até mesmo dizer a
mesmo em toda parte; propaga-se com rapidez; é contagioso reação eterna, dos animais perante os grandes incêndios; em
e insaciável; pode originar-se em qualquer lugar e o faz rapi- outros tempos, esta também foi a reação do homem. Este, no
damente; é múltiplo; é destrutivo; tem um inimigo; apaga-se; entanto, apoderou-se do fogo e agora o tem em suas mãos, não
age como se vivesse, e por este motivo é tratado como se trata precisando temê-lo. Ao antigo temor o ser humano sobrepôs
um ser vivo. Todas estas propriedades são também proprieda- seu novo poder e ambos, fogo e homem, formam agora uma
des da massa; dificilmente seria possível fazer um resumo mais surpreendente aliança.
exato dos seus atributos. Voltemos ao que já foi dito: a massa, A massa, que antes punha-se a correr diante do fogo,
em todas as suas partes, é igual a si mesma; nas épocas e nas agora se sente intensamente atraída por ele. Conhece-se o efeito
culturas mais diversas, entre homens de todas as procedências, mágico que os incêndios têm sobre os homens de todas as
idiomas e tipos de educação ela é essencialmente a mesma. categorias. Eles não se conformam com os fogões e fornalhas
Nos lugares onde aparece, ela se amplia com maior violência. que cada grupo estabelecido mantém para seu uso privado;
Poucos conseguem resistir ao seu contágio, ela quer continuar querem um fogo visível a grande distância, junto ao qual todos
crescendo sempre, a partir do seu interior, ela não tem limites se possam reunir. Uma curiosa inversão do velho temor de
fixados de antemão; ela pode constituir-se em todos os lugares massa lhes ordena que se precipitem ao local do incêndio
onde haja homens reunidos e sua espontaneidade e rapidez são somente quando ele for suficientemente grande; lá eles sen-
inquietantes. Ela é múltipla, mas forma uma unidade; é cons- tem algo do magnífico calor que antes os unia. Em tempos de
tituída por um sem-número de seres humanos e nunca se sabe paz, muitas vezes eles são obrigados a abrir mão por longos
exatamente quantos são eles. A massa pode ser destrutiva. Períodos desta vivência. Faz parte dos mais fortes instintos da
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massa, assim que ela se forma, criar o fogo para si mesma, e cinzas ardentes até que o sol se levante recebendo deles o fogo,
utilizar sua atração para o próprio crescimento. o mesmo sol do qual haviam recebido o fogo no anoitecer do
Todo homem leva dentro de seu bolso um pequeno ves- dia anterior.
tígio destas importantes relações antigas: a caixa de fósforos. Aqui, portanto, o fogo ainda é uma massa viva. Assim
Ela representa, de maneira uniforme, uma floresta de troncos como outros índios durante a dança se transformam em bú-
isolados, cada qual equipado com uma cabeça inflamável. Seria falos, estes assumem o fogo. Posteriormente o fogo vivo no
possível acender vários deles, ou até todos, provocando assim qual se transformam os navajos converte-se num simples sím-
artificialmente um incêndio de floresta. O indivíduo pode sen- bolo de massa.
tir-se tentado a fazer isto, mas geralmente não o faz, porque a É possível encontrar para cada símbolo de massa que se
expressão minúscula deste ato estaria totalmente privada de reconhece a massa concreta da qual ele se alimenta. Aqui não
seu antigo esplendor. nos referimos apenas a hipóteses. A tendência do homem a
Porém a atração que o fogo exerce pode ir ainda mais converter-se em fogo, a reativar este antigo símbolo, também
longe. Os homens não se limitam a correr até ele e rodeá-lo; é forte em culturas posteriores mais complexas. Cidades sitia-
existem antigos costumes com os quais eles expressam sua das que já não têm mais esperança de socorro freqüentemente
identificação com o fogo. Um dos mais belos exemplos disto se incendeiam. Reis com toda a sua corte, encurralados e sem
é a famosa dança do fogo dos índios navajos. esperança de salvação, incineram-se. Exemplos disso encontra-
"Os navajos do Novo México preparam uma gigantesca mos tanto nas antigas culturas do Mediterrâneo como entre
fogueira em torno da qual dançam a noite toda. No período os hindus e os chineses. A Idade Média, que acredita no fogo
entre o pôr-do-sol e o amanhecer são representados onze atos do inferno, se contenta com hereges isolados, que ardem em
determinados. Assim que o disco do sol desaparece no hori- lugar do público todo reunido; este, por assim dizer, envia
zonte, os organizadores entram dançando freneticamente na seus representantes ao inferno, certificando-se de que ardem
clareira. Eles estão quase nus e com os corpos pintados; dei- também na realidade. Uma análise do significado que o fogo
xam seus longos cabelos soltos para que se movimentem livre- assumiu nas diversas religiões seria do maior interesse. Porém
mente. Trazem consigo bastões de dança enfeitados com plu- esta análise somente teria valor se fosse realmente exaustiva
mas na extremidade; dando saltos selvagens, eles se aproximam e por esse motivo deve ficar para mais tarde.
das altas labaredas. Estes índios dançam em atitude desajeita- Entretanto parece-nos válido mencionar já aqui o signi-
da, meio agachados, meio rastejando. Na verdade, o fogo é ficado que os atos incendiários impulsivos têm para o indi-
tão quente que os atores precisam rastejar no chão para po- víduo que os comete; o indivíduo que está realmente isolado
der se aproximar dele. Eles querem incendiar as plumas que e que não pertence ao círculo de uma convicção religiosa ou
enfeitam as extremidades de seus bastões. Um disco, que re- política.
presenta o sol, é erguido e em torno dele tem prosseguimento Kriibelin narra o caso de uma mulher solitária, de meia-
a dança selvagem. Cada vez que o disco desce e torna a ser idade, que em sua vida provocara cerca de vinte incêndios, os
erguido, tem início uma nova dança. Quando já está quase primeiros ainda em sua infância. Ela é acusada seis vezes de
amanhecendo, as cerimônias sagradas se aproximam do final. incêndio intencional e passa mais de vinte e quatro anos numa
Homens pintados de branco avançam e acendem pedaços de penitenciária. "Se ao menos isto ou aquilo se queimasse", diz
cascas nas últimas brasas da fogueira; depois voltam a saltar ela em sua idéia fixa. Principalmente quando tem fósforos na
numa caçada selvagem em torno do fogo, jogando fagulhas, bolsa, ela se sente impulsionada por um ímpeto invisível. A
fumaça e chamas sobre todo o corpo. Eles chegam a saltar até única coisa que lhe importa é contemplar o fogo. Mas ela tam-
mesmo dentro das brasas, confiando na argila branca que os bém gosta de confessar seus feitos e o faz com muitos deta-
deve proteger de queimaduras mais sérias." lhes. Desde muito jovem ela deve ter experimentado o valor
Eles dançam no fogo, eles se convertem em fogo. Seus do fogo como meio de atrair as pessoas. Provavelmente a
movimentos são os das chamas. O que eles seguram em suas aglomeração em torno de um incêndio foi sua primeira impres-
mãos e incendeiam deve causar a impressão de que eles mesmos são de massa. O fogo pôde então facilmente ocupar o lugar
estão ardendo. No final dispersam as últimas fagulhas das da própria massa. Ela é impelida em direção de sua culpa e a
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assumir esta culpa pela sensação de que todos olham para pertence ao mar: são as gotas. Elas estão isoladas, são apenas
ela. É isto que ela deseja e através disto ela própria se trans- gotas; quando não estão coesas entre si, seu pequeno tamanho
forma no fogo que é contemplado. Sua relação com o ato e seu isolamento têm algo de impotência. São quase nada e
incendiário tem portanto um caráter duplo. Por um lado ela despertam um sentimento de compaixão no observador. Basta
quer ser parte da massa, que observa fixamente o fogo. Ele mergulhar a mão na água, erguê-la e observar as gotas que,
está nos olhos de todos ao mesmo tempo, reunindo estes olhos fracas, escorrem dela. A compaixão que se sente por elas pode
através de uma violenta compulsão. Ela não tem a menor opor- ser comparada à que é provocada em nós pelos homens sem
tunidade de ingressar numa massa, e menos ainda durante os esperança, pelos marginalizados. As gotas somente voltam a
intermináveis períodos de cárcere, por causa de seus miseráveis contar quando não podem mais ser contadas, quando voltam
antecedentes que a isolaram desde muito pequena. Depois, a formar um amálgama com o todo.
quando este primeiro incidente do incêndio se encerra e a massa O mar possui uma voz, que é extremamente mutável e
ameaça escapar das mãos dela, ela a mantém em vida, trans- que se escuta sempre. Trata-se de uma voz que soa como mil
formando-se ela mesma em fogo. Isto acontece da maneira vozes. Muitas nuanças podem ser ouvidas nela: paciência, dor,
mais simples: ela confessa o ato incendiário. Quanto mais de- cólera. Porém, o que mais impressiona nesta voz é a sua tena-
talhada seja sua confissão, quanto mais ela tenha a dizer a este cidade. O mar nunca adormece. Ele é ouvido o tempo todo:
respeito, tanto maior será o período durante o qual ela é de noite, de dia, durante anos, decênios; sabe-se que ele já
observada com atenção, justamente porque ela mesma é o fogo. podia ser ouvido há séculos atrás. Tanto no seu ímpeto como
Casos deste tipo não são tão raros como se pensa. Mesmo na sua rebeldia, ele lembra uma única criatura que compar-
não sendo sempre tão extremos, eles nos fornecem, do ponto tilha destas características com ele: a massa. Porém ele tem a
de vista do indivíduo isolado, a prova irrefutável da relação constância que falta a esta. Ele não desaparece de tempos em
existente entre a massa e o fogo. tempos; ele está sempre presente. O desejo máximo e nunca
alcançado da massa, ou seja, o desejo de perdurar, é represen-
tado pelo mar como algo já conseguido.
O mar O mar engloba tudo e jamais atinge um ponto de satu-
ração. Todos os rios, as correntes fluviais, ªs nuvens e as
O mar é múltiplo, está em movimento e possui uma densa demais águas da Terra poderiam ser despejados no mar, sem
coesão. O múltiplo nele são as ondas que o constituem. Elas que seu tamanho aumentasse perceptivelmente; ele não se
são incontáveis; qualquer pessoa que esteja no mar, encon- modificaria e teríamos sempre a sensação de que se trata
tra-se rodeada de ondas por todos os lados. O caráter uni- sempre do mesmo mar. Ele é tão grande que pode servir de
forme do seu movimento não exclui diferenças de tamanho modelo à massa que deseja tornar-se cada vez maior. A mas-
entre elas. Elas jamais estão numa calma total. O vento, que sa gostaria de se tornar grande como o mar, e para atingir
vem de fora, determina sua direção; as ondas rolam ora num, isto ela procura atrair quantidades cada vez maiores de ho-
ora noutro sentido, seguindo as ordens dele. A densa coesão mens. Na palavra oceano o mar encontrou algo semelhante
das ondas expressa também o que sentem os homens que à sua mais festiva e solene dignidade. O oceano é universal;
fazem parte de uma massa: flexibilidade em relação aos de- ele chega a todas as partes, banha todas as terras; é sobre
mais, como se um determinado indivíduo fosse os demais, ele que, nas concepções antigas, flutua a Terra. Se o mar não
como se já não fosse mais limitado por si mesmo, como se se fosse insaciável, a massa não teria uma imagem para sua pró-
tratasse de uma dependência da qual não existe maneira de pria insaciabilidade. Ela não poderia se conscientizar de ma-
escapar e, justamente, em contrapartida, aparece uma sensação neira tão clara de seu próprio impulso mais profundo e obs-
de força, um ímpeto que é dado por todos em conjunto. A curo, a necessidade de atrair números cada vez maiores de
índole peculiar desta coesão entre os homens é desconhecida. componentes. No entanto o oceano, que naturalmente se en-
O mar também não consegue explicá-la, expressando-a porém contra diante dos olhos da massa, lhe confere um direito
muito bem. mítico à sua indomável aspiração de universalidade.
No entanto, além das ondas, existe outro múltiplo que Apesar do mar ser mutável nos seus caprichos, podendo
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apaziguar e ameaçar, podendo irromper em tormentas, ele a direção da queda; todas as demais têm, comparadas com
está sempre presente. Sabe-se onde ele se encontra; sua loca- ela, algo de derivado, de secundário. A queda é o que mais
lização tem algo de aberto, de descoberto. Ele não nasce re- se teme desde os tempos mais remotos, e contra o que nos equi-
pentinamente onde antes não havia coisa alguma. Ele não pamos durante toda a vida. Aprende-se a procurar uma pro-
possui a característica misteriosa e repentina do fogo, que teção para a queda; fracassar neste sentido a partir de uma
ataca a partir do nada, feito um animal selvagem e que, como certa idade é algo ridículo ou perigoso. A chuva é, ao contrá-
tal, pode surgir de qualquer parte. O mar é encontrado ape- rio do ser humano, aquilo que deve cair. Nada cai com tanta
nas nos lugares onde sabemos com certeza que ele está. freqüência e em tal quantidade quanto a chuva. É possível
No entanto não se pode afirmar que ele careça de mis- que o número de gotas retire da queda uma parte de seu peso
tério. Seu mistério não reside na característica do repentino, e de sua dureza. Ouve-se quando elas batem no chão e este é
mas sim no seu conteúdo. A vida da massa, da qual ele está um ruído agradável. Sentimos as gotas na pele e esta sensação
repleto, faz parte tão intrínseca dele como a sua constância. é agradável. É possível que não deixe de ser importante o fato
Desta maneira a grandiosidade desta formação é realçada ainda de que pelo menos três sentidos participem da vivência da
mais pela idéia do seu conteúdo: todos os vegetais e animais chuva: visão, audição e tato. Todos esses sentidos compreen-
que ele contém em quantidades imensas. dem a chuva como algo múltiplo. É fácil proteger-se contra
O mar não tem limites internos e não está dividido em ela. Poucas vezes chega a ser realmente ameaçadora e na maior
pequenos povos e territórios. Ele tem apenas um idioma, que parte das vezes envolve o ser humano de maneira tensa e
é o mesmo em todas as partes. Não existe, por assim dizer, agradável.
homem algum que possa ser excluído dele. Ele é por demais Sentimos a queda de todas as gotas como algo uniforme.
abrangente para que possa corresponder a alguma das massas O paralelismo dos traços, a uniformidade do ruído, a mesma
que conhecemos. Mas ele é o modelo de uma humanidade sa- sensação de umidade que cada gota provoca na pele — tudo
ciada em si mesma, na qual desemboca toda a vida e que isso contribui para acentuar ainda mais a impressão de igual-
tudo contém. dade das gotas.
A chuva pode ser mais intensa ou mais leve, sua densi-
dade é variável. O número de suas gotas está sujeito a gran-
A chuva des flutuações. Nunca se espera um aumento cada vez maior;
pelo contrário, sabemos que tudo terá um fim e que este fim
Em todas as partes e principalmente lá onde é escassa, a significa que as gotas irão sumir no solo sem deixar rastro.
chuva, antes de cair, é percebida como unidade. Ela se aproxi- Como símbolo de massa, a chuva não caracteriza o cresci-
ma em forma de nuvem e primeiro cobre o céu, que escurece mento frenético e imperturbável que é representado pelo fogo.
antes de chover; tudo fica cinzento. É possível que se possua Ela não tem a constância e apenas ocasionalmente tem a carac-
uma consciência mais unificada daquele instante em que a terística inesgotável do mar. A chuva é a massa no instante
chuva parece segura que do próprio sucesso, pois freqüen- de sua descarga, e por isso caracteriza também sua desinte-
temente podemos desejá-la com grande intensidade, pode gração. As nuvens das quais elas se originam desaparecem com
transformar-se numa questão vital o fato de chover. Nem sem- a chuva; as gotas caem porque já não podem mais permanecer
pre é fácil fazer com que isto aconteça, e ajuda-se a situação juntas e não se sabe se elas posteriormente voltarão a se reu-
com feitiços; existem métodos numerosos e muito diversos nir nem como farão isso.
para atraí-la.
A chuva cai sob a forma de muitas gotas. Elas são visí-
veis e são vistas todas movimentando-se na mesma direção. O rio
Em todos os idiomas diz-se que a chuva cai. A chuva é vista
como muitos traços paralelos; devido ao número das gotas que O que mais chama a atenção no rio é sua direção. Ele se
caem, acentua-se a unidade de sua direção. Não existe direção movimenta entre margens estáticas, nas quais é visível a sua
capaz de causar uma maior impressão ao ser humano do que passagem incessante. A ausência de repouso de suas massas de
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água, que se sucedem de forma ininterrupta enquanto o rio contém muitos elementos diversos em si, e o que transporta é
é um rio, o caráter decidido da sua direção geral, mesmo po- mais importante e determinante para seu aspecto do que o que
dendo variar em casos isolados, sua decisão de caminhar para está incluído no mar e que desaparece debaixo de sua enorme
o mar, sua incorporação de outros rios menores, tudo isto lhe superfície.
confere um inegável caráter de massa. Desta forma o rio se Unindo todos esses fatores, poderíamos considerar o rio
transforma também em um de seus símbolos, porém não tanto como símbolo de massa apenas limitadamente. Ele o é de ma-
da massa em si, mas sim das formas singulares de sua mani- neira muito diferente da do fogo, do mar, da floresta ou do
festação. A limitação da largura, do que não pode aumentar de trigo. Ele é símbolo de um estado ainda dominado, antes do
maneira contínua e repentina, faz com que o rio, como sím- estalo e antes da descarga; representa mais sua ameaça do que
bolo de massa, tenha sempre algo de provisório. Ele repre- sua realidade: é o símbolo da massa lenta.
senta as procissões: os homens que observam das calçadas da
rua são como as árvores nas margens, o sólido encerra o que
é fluido. As manifestações em grandes cidades têm uni caráter A floresta
semelhante ao do rio. Dos diferentes bairros chegam os afluen-
tes até que se forme a corrente principal propriamente dita. A floresta está acima dos seres humanos. Ela pode ser
Os rios são principalmente um símbolo para o tempo em que espessa e com uma abundante vegetação rasteira; é possível
se forma a massa, o tempo em que ela ainda não alcançou o que seja difícil penetrar nela, e mais difícil ainda avançar den-
que chegará a ser. Ao rio falta a universalidade do mar e a tro dela. Porém sua densidade propriamente dita, aquilo que
força de propagação do fogo. Porém, por outro lado, sua dire- realmente a constitui, sua folhagem, está em cima. Ë a folha-
ção é levada ao extremo e, como cada vez existe mais água, gem de cada um dos troncos, que se entrelaça e forma um teto
ele se transforma, por assim dizer, desde o começo, numa di- contínuo; é a folhagem que retém quase toda a luz lançando
reção que parece inesgotável e que talvez seja levada mais a uma sombra extensa e conjunta.
sério em sua origem do que em sua meta. O homem, vertical como uma árvore, alinha-se entre as
O rio é a massa em sua vaidade, a massa que se exibe. demais árvores. Porém elas são muito mais altas do que ele
O elemento de exibição não é menos significativo que o de e, para vê-las, ele precisa levantar os olhos. Não existe outro
direção. Sem margens não existe rio. A fileira dupla da vege- fenômeno natural no seu ambiente que esteja acima dele de
tação é como a dos homens. O rio, poderíamos dizer, possui maneira tão permanente e ao mesmo tempo tão próxima e tão
uma pele que quer ser vista. Todas as formações de caráter múltipla. As nuvens passam, a chuva some e as estrelas estão
fluvial — como procissões e manifestações — mostram a distantes. De todos esses fenômenos, que em sua multiplici-
maior parte possível de sua superfície: elas se esticam o mais dade atuam de cima para baixo, nenhum possui a proximidade
que podem, exibindo-se ao maior número possível de especta- permanente da floresta. A altura das árvores é alcançável. É
dores. Elas querem ser admiradas ou temidas. Sua meta ime- possível subir nelas para colher os frutos; quando isso acon-
diata não é realmente importante, importante é o tamanho do tece, é possível dizer que já se viveu lá em cima.
espaço que as separa dos espectadores, o comprimento das ruas A direção que atrai os olhos do homem é a de sua própria
pelas quais elas se estendem. Quanto à densidade, não transformação: a floresta cresce constántemente de baixo para
existe um caráter decisivo entre os participantes. Ele é maior cima. A igualdade dos troncos é aproximada, sendo também,
entre os espectadores e se estabelece uma densidade especial na verdade, uma igualdade de direção. Quem está na floresta
entre os participantes e os espectadores. Existe algo de aproxi- sente-se protegido; ele não está na parte superior onde a flo-
mação amorosa entre duas criaturas muito compridas, uma das resta continua crescendo, e também não está no local de sua
quais mantém a outra prisioneira, permitindo que ela deslize maior densidade. Justamente esta densidade é sua proteção
lenta e ternamente ao longo de si própria. O crescimento ocor- e a proteção está lá em cima. E assim a floresta se converteu
re a partir da vertente, porém através de afluentes estrita- num modelo de recolhimento. Ela obriga o homem a levantar
mente predeterminados no espaço. os olhos, agradecido pela sua proteção superior, O levantar
A igualdade das gotas é subentendida no rio. Porém ele dos olhos ao longo de tantos troncos se transforma num olhar
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mais elevado. A floresta antecipa o sentimento de igreja, o de rência. Seu ritmo, quando é agitado pelo vento, é semelhante
estar diante de Deus entre colunas e pilastras. Sua expressão ao de uma simples dança.
mais regular, e portanto mais perfeita, é a curvatura da cúpula, A igualdade do homem perante a morte é vista com
todos os troncos entrelaçados formando uma unidade suprema agrado na imagem do trigo. No entanto, como este cai sempre
e inseparável. em conjunto, ele provoca a imagem de um tipo muito preciso
Outro e não menos importante aspecto da floresta é a sua de morte: a morte coletiva na batalha, quando são extermina-
imobilidade múltipla. Cada um dos troncos está enraizado e das fileiras inteiras de soldados; o trigal é como o campo de
não cede diante de ameaça alguma. Sua resistência é absoluta, batalha.
nunca cedendo seu lugar. O tronco pode ser cortado, mas não A flexibilidade se converte em submissão; ela tem algo
movido. Assim, a floresta se converteu num símbolo do exér- de uma reunião de súditos fiéis que jamais seriam capazes de
cito: um exército em formação, um exército que não foge em conceber um pensamento de resistência. Levemente estreme-
circunstância alguma; que se deixa despedaçar até o último cidos pelo sentimento de obediência, receptivos a qualquer
homem antes de ceder um único palmo de terreno. ordem, permanecem assim. Quando o inimigo se abate sobre
eles, são pisoteados sem piedade.
A origem do trigo a partir de um amontoado de semen-
O trigo tes é tão importante e característica como os montes de grãos,
que são o resultado final. Pouco importa se o resultado da
Sob mais de um aspecto o trigo é uma floresta reduzida. colheita for sete ou cem vezes maior, os montes de grãos que
Ele cresce onde antes estava a floresta, mesmo nunca chegando vão sendo armazenados são sempre um múltiplo do monte
a alcançar a altura dela. O trigal pertence inteiramente ao ho que lhes deu origem. Crescendo e ficando unido, o trigo se
mem e é uma obra dele. É ele quem o semeia, é ele quem o multiplicou. É nesta multiplicação que está a sua bênção.
ceifa; nos antigos rituais, o homem realiza cerimônias para que
ele cresça melhor. Ele é flexível como os pastos, exposto à
influência de todos os ventos. Todos os talos cedem juntos ao O vento
impulso do vento, o trigal todo se inclina de uma só vez. Du-
rante tempestades ele é abatido inteiramente e permanece caído Sua intensidade varia, e com ela a sua voz. Ele pode ge-
durante longo espaço de tempo. No entanto ele possui a mis- mer ou uivar, pode ser forte ou fraco, e existem poucas notas
teriosa capacidade de voltar a se erguer outra vez e, desde que que ele não possa alcançar. Desta maneira, ele age como algo
não tenha sido seriamente afetado, não demora muito para vivo, mesmo muito tempo depois de outros fenômenos natu-
retomar sua antiga posição. As espigas crescidas são como ca- rais terem perdido sua característica de coisa viva para os seres
beças pesadas; elas se inclinam afirmativas em nossa direção humanos. Além da voz, o que mais chama a atenção nele é a
ou se viram, dependendo de onde sopre o vento. direção. Para caracterizá-lo, é importante saber de onde sopra.
Normalmente a altura do trigo é inferior à do ser huma- Como estamos inteiramente rodeados pelo ar, os golpes que
no. No entanto, de qualquer forma, ele, o homem, continua recebemos do vento são sentidos de uma maneira multo física;
sendo senhor do trigo, mesmo quando este cresce acima de sentimos que estamos totalmente dentro do vento, ele tem
sua cabeça. O trigo é cortado em conjunto, da mesma forma algo de unificador; na tempestade ele gira tudo o que encon-
que cresceu e foi semeado em conjunto. Até os restos que o ser tra diante de si.
humano não aproveita para sí mesmo permanecem sempre jun- Ele é invisível, mas o movimento que confere às nuvens
tos. Mas muito mais coletivo é o destino do trigo que é semea- e às ondas, às folhas e às plantas, dá-lhe uma presença que
do, cortado e colhido, batido e armazenado. Enquanto cresce, se faz sentir de múltiplas maneiras. Nos hinos dos Vedas, os
ele permanece enraizado; não pode se afastar dos outros talos. deuses da tormenta, os maruts, aparecem sempre no plural.
O que acontece, acontece a todos. Ele possui uma grande den- Deles existem três vezes sete ou três vezes sessenta. Eles são
sidade, e sua altura não é muito diferente da dos homens; no irmãos da mesma idade, moram no mesmo lugar e nasceram
seu conjunto, ele sempre tem mais ou menos a mesma apa- no mesmo local. Seu barulho é o trovão e o choro do vento.
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Eles sacodem as montanhas, derrubam as árvores e engolem, A relação do homem com a areia do deserto prepara al-
como elefantes selvagens, as florestas. Freqüentemente tam- gumas de suas atitudes posteriores: a luta que ele tem de tra-
bém são chamados de "cantores": o canto do vento. Eles são var com força crescente contra numerosos inimigos muito pe-
poderosos, iracundos e terríveis como leões, mas também são quenos. A areia é seca e esta sua característica foi transferida
travessos e gostam de brincar como as crianças e os bezerros. para os gafanhotos. O homem que cultiva as plantas teme os
A antiguíssima identificação da respiração e do vento de- gafanhotos como teme a areia, porque o que eles deixam atrás
monstra a maneira concentrada como o sentimos. Ele possui de si após sua passagem é um deserto.
a densidade da respiração. Mas, justamente em sua invisibili- Surpreende o fato de a areia ter podido transformar-se
dade, ele se torna apropriado para simbolizar massas invisí- num símbolo da descendência. Mas o fato, que conhecemos tão
veis. Desta forma, ele é atribuído aos espíritos (como uma bem pela Bíblia, demonstra quão intenso é o desejo da multi-
tormenta se aproxima feito um exército selvagem), ou podem plicação. Aqui o enfoque não é dado apenas à qualidade. É
ser espíritos em fuga, como os da visão do xamã esquimó. certo que se deseja para si mesmo um grande número de filhos
As bandeiras são o vento que se torna visível. Elas são fortes e virtuosos, mas para um futuro mais distante, como
como pedaços cortados de nuvens, mais próximos e mais co- soma da vida de várias gerações, queremos uma massa de des-
loridos, pertencem aos homens e têm uma forma permanente. cendentes que seja a mais extensa possível, e ao mesmo tempo
Elas chamam a atenção pelo seu movimento. Os povos, como a mais numerosa, incontável; e a massa mais numerosa que se
se fossem capazes de dividir o vento, valem-se das bandeiras conhece é a da areia. Num símbolo semelhante adotado pelos
para demonstrar publicamente que o ar existente acima deles chineses, é enfatizado o fato de que pouco importa a valori-
lhes pertence. zação individual dos descendentes. Lá os descendentes são
identificados com um enxame de gafanhotos, cuja imensidade
numérica, solidariedade e não-interrupção se transmitem à des-
A areia cendência.
Outro símbolo que a Bíblia também emprega para com-
Das propriedades da areia, que são importantes dentro parar a descendência são as estrelas. Também aqui trata-se
deste contexto, é preciso destacar principalmente duas. Temos principalmente da quantidade; elas são incontáveis; obviamen-
por um lado a sua pequenez, a igualdade entre todas as suas te não se trata da qualidade de determinadas estrelas isoladas
partes. Tudo isto forma uma única característica, pois os grãos e mais destacáveis. Mas o mais importante é o fato de elas
de areia somente são percebidos em conjunto devido ao seu permanecerem para sempre. As estrelas nunca passam, estão
diminuto tamanho. Por outro lado, temos o infinito da areia. sempre presentes.
Ela não pode ser avaliada, sempre existe mais areia do que se
pode abranger com a vista. Quando ela aparece em montes
pequenos, não se dá atenção a ela. Realmente ela é notória Os montes
apenas onde é incontável, como na praia e no deserto. O mo-
vimento incessante da areia tem como conseqüência que ela é Os homens reuniram em um mesmo grupo todos os mon-
colocada mais ou menos a meio-termo entre os símbolos de tes que têm alguma importância para eles. A unidade do
massa líquidos e os sólidos. Ela forma ondas como o mar, pode monte formado por frutas ou grãos é o resultado de uma ati-
subir no ar como nuvem; a poeira é uma areia ainda mais fina. vidade. Muitas mãos participaram da colheita; esta depende
Uma característica significativa é a ameaça da areia, a maneira de uma determinada época do ano, e tem portanto uma impor-
como ela se opõe ao homem isolado como algo agressivo e tância primordial, ou seja, ela determina a mais antiga divisão
hostil. O deserto inanimado, uniforme e colossal, enfrenta o do ano. Os homens exprimem com festas sua alegria em relação
homem com um poder quase insuperável: ele é formado por ao monte que conseguiram formar. Eles expõem estes montes
inúmeras partículas da mesma espécie. Ele sufoca o homem com muito orgulho. Freqüentemente as festas são realizadas
exatamente como o mar, mas de maneira muito mais traiçoeira, em torno destes montes.
porque leva mais tempo. As coisas reunidas são todas de uma mesma natureza;
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de homens que os construíram, tanto mais profunda a im-
um determinado tipo de fruta, um determinado tipo de grão.
pressão que produzem nas gerações posteriores. Eles repre-
As coisas reunidas são amontoadas na maior densidade possí-
sentam o esforço mítico de muitos, dos quais nada resta a
vel. Quanto maior a quantidade e a densidade, tanto melhor.
Um monte significa que se tem muito à disposição, não preci- não ser esse monumento indestrutível.
sando mais trazer as coisas de longe. O tamanho do monte é
importante. As pessoas se orgulham dele; somente quando ele
tem um tamanho suficiente é que pode perdurar por muito O tesouro
tempo e ser de utilidade para todos. Desde que as pessoas
Também o tesouro, como todos os montes, foi acumulado.
se acostumem à formação do monte, este jamais será dema-
siadamente grande. Elas se recordam principalmente dos anos Mas em vez das frutas e dos grãos eles têm como unidades
que lhes trouxeram as maiores bênçãos. Nos anais estes anos formadoras elementos que não podem servir de alimento e
são anotados como os mais felizes. As colheitas competem que não são perecíveis. Importante é o valor especial destas
entre si de ano para ano, ou de local para local. Pouco importa unidades e somente a confiança na durabilidade deste valor
que os montes pertençam a uma comunidade ou a um indi- incentiva a formação do tesouro. Ele é um monte que deve
víduo; de qualquer forma eles servem de modelo e garantem permanecer intato e que deve crescer. Quando pertence a um
poderoso, ele seduz outros poderosos a tentativas de roubos.
segurança.
É verdade que estes montes são consumidos, em alguns O prestígio que ele confere a seu proprietário coloca este
em perigo. Lutas e guerras se originaram pela conquista de
lugares, de maneira muito rápida, em ocasiões especiais. Outras
tesouros e muitas pessoas poderiam ter vivido mais tempo se
vezes são consumidos lentamente, de acordo com a necessi-
dade. Sua constância é limitada, sua diminuição faz parte da possuíssem tesouros menores. Por este motivo ele forçosa-
idéia que se tem do monte desde o início. Sua reconstituição mente é guardado em segredo. A característica peculiar do
depende do ritmo das estações do ano ou das chuvas. Todas as tesouro reside conseqüentemente na tensão entre o brilho que
colheitas formam montes rítmicos e a realização das festas ele deve difundir e o segredo que o protege.
é determinada a partir deste ritmo. O prazer voluptuoso do número que cresce repentina-
mente se desenvolveu em sua forma mais perceptível no te-
souro. Todas as demais contagens que buscam resultados cada
Montes de pedra vez mais elevados — as de gado e de homens, por exemplo
— não podem alcançar a mesma concentração dos elementos
Mas existem também montes completamente diferentes, que contados. A imagem do dono que conta secretamente seu te-
não são comestíveis. Montes de pedra são formados porque é souro está tão profundamente gravada no espírito do homem
muito difícil desmontá-los novamente. Eles são construídos como a esperança do tesouro que é descoberto de maneira
para durarem muito tempo, uma espécie de eternidade. Eles repentina: ele está tão bem escondido que já não pertence
não devem diminuir jamais, devem continuar sendo o que são. mais a ninguém, seu esconderijo acabou sendo esquecido. Exér-
Não são transferidos para os estômagos e ninguém vive dentro citos bem disciplinados foram atacados e sucumbiram devido
deles. Na sua forma mais antiga, cada pedra representa o a esta súbita avidez de tesouros; muitos triunfos acabaram
homem que a levou para o monte. Posteriormente aumenta o sendo transformados em derrotas. A transformação de um
tamanho e o peso das partes que constituem esses montes, e exército num bando de homens à procura de tesouros, antes
eles somente podem ser formados graças aos esforços de muitos. mesmo de participarem de uma batalha, é narrada por Plutarco
em sua obra Vida de Pompeu.
Sem contar o significado destes montes, eles sempre contêm
em si os esforços concentrados de inúmeros e árduos cami- "Pompeu mal acabara de atracar sua frota nas proximi-
nhos. Muitas vezes a forma como eles foram construídos é dades de Cartago, quando sete mil homens dos inimigos passa-
um enigma. Quanto menos se compreende sua presença, quanto ram para seu lado; ele mesmo trouxera seis legiões completas
para a África. Ocorreu então um curioso incidente. Alguns
mais distante seja a procedência da pedra e quanto mais longos
soldados encontraram casualmente um tesouro e obtiveram
os caminhos percorridos, tanto maior deve ter sido o número
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uma soma considerável de dinheiro. Quando isto se tornou
conhecido, todos os demais soldados tiveram a idéia de que
a região deveria estar repleta de riquezas que os cartagineses
teriam enterrado anteriormente, em seus tempos de infortúnio.
Durante muitos dias Pompeu nada pôde fazer com seus sol-
dados, que se preocupavam apenas com a procura de tesouros.
Rindo, ele passeava e observava os milhares de homens que
cavavam e reviravam o solo. Finalmente eles se cansaram da
busca e pediram a Pompeu que os conduzisse para onde A MALTA
quisesse, uma vez que já estavam suficientemente castigados
pela sua tolice."
Ao lado destes montes que se tornam irresistíveis por esta-
rem ocultos, existem outros que são reunidos de forma pública,
como uma espécie de imposto voluntário, na esperança de
serem concedidos posteriormente a um só ou a um pequeno
grupo de indivíduos afortunados. Todas as formas de loterias
devem ser incluídas nesta categoria; elas são formações rápidas
de tesouros: sabe-se que logo depois de verificado o resultado,
serão entregues ao feliz contemplado. Quanto menor for o
número dos ganhadores, ou seja, quanto maior for o tesouro,
tanto maior será sua atração.
A cobiça que une os homens nestas ocasiões pressupõe
uma confiança absoluta na unidade do tesouro. Dificilmente
se conseguirá fazer uma imagem exagerada da força desta
confiança. O homem se identifica com seu dinheiro. Uma
dúvida a respeito de seu valor o ofende; um abalo no seu
valor faz com que se abale também a confiança que ele tem
em si mesmo. Na desvalorização de sua unidade monetária se
atinge o próprio homem, que é diminuído. Quando a veloci-
dade deste processo aumenta, quando se chega ao caso de uma
inflação, os homens despojados se agrupam em formações que
se identificam inteiramente com as massas de fuga. Quanto
mais os homens perdem, tanto mais eles se identificam com
seu destino. O que em alguns privilegiados que estão em condi-
ções de salvar alguma coisa para si mesmos, parece pânico, trans-
forma-se para todos os demais que foram despojados de seu
dinheiro, e que portanto são iguais na pobreza, numa fuga
de massa. As conseqüências deste fenômeno que principalmente
no nosso século teve um alcance histórico imprevisível serão
tratadas em outro capítulo.

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Malta e maltas

Tanto os cristais de massa como a massa, no sentido moderno


dado a esta palavra, derivam de uma unidade mais antiga, na
qual ainda coincidem; esta unidade mais antiga é a malta.
Em bandos, de número reduzido, que vagueiam em pequenos
grupos de dez ou vinte homens, ela é a forma de excitação
conjunta que encontramos em todos os lugares.
Uma característica da malta é o fato de ela não poder
crescer. Na vasta e ampla desolação que a rodeia não existem
homens que possam integrá-la. A malta consiste em um grupo
de homens excitados que nada desejam com maior veemência
do que ser mais. Qualquer coisa que eles empreendem em
conjunto, quer saiam para a caça ou para a guerra, sempre
alcançariam melhores resultados se fossem mais numerosos.
Para um grupo integrado por tão poucos membros, qualquer
indivíduo que se reúna a eles se transforma no incremento
insubstituível, patente e importante. A força que este novo
elemento traria consigo representaria uma décima ou vigésima
parte da força total. O lugar que ele ocuparia seria devida-
mente apreciado por todos. Ele contaria muito dentro da
economia global do grupo; tanto quanto pouquíssimos de nós
podem hoje contar.
Na malta que se forma de tempos em tempos a partir de
um grupo e que expressa com densidade máxima seu senti-
mento de unidade, o indivíduo nunca pode perder-se tão com-
pletamente como um homem moderno numa massa qualquer.
Constantemente, nas constelações mutantes da malta, em suas
danças e empreendimentos, ele se encontrará à margem dela.
Ele estará dentro dela e logo em seguida estará à sua margem;
estará à margem e logo depois dentro dela. Quando a malta
forma um círculo em torno do fogo, cada um poderá ter vizi-
nhos à direita e à esquerda, mas as costas ficam descobertas;
as costas estão nuas e entregues ao desconhecido. A densidade
interior da malta sempre possui algo simulado: é possível
que eles se apertem estreitamente e que mediante movimentos
rítmicos tradicionais pretendam ser muitos. Mas não o são,
eles são poucos; o que lhes falta de densidade real suprem
pela intensidade.
101
Das quatro propriedades essenciais da massa, conforme já Aqui, a tudo o que costuma ser designado por tribo,.
sabemos, duas são fictícias na malta, ou seja, elas são dese- linhagem ou clã, se opõe deliberadamente uma outra unidade:
jadas e representadas com a maior ênfase; as outras duas a da malta. Esses conceitos sociológicos, por mais importantes
existem com intensidade muito maior na realidade. Cresci- que sejam, têm todos algo de estático. A malta, pelo contrário,
mento e densidade são as propriedades fictícias; igualdade é uma unidade de ação e aparece de uma maneira concreta.
e direção são as que existem. A primeira coisa que chama a Dela deve partir quem queira explorar as origens do compor-
atenção na malta é o caráter imperturbável de sua direção. tamento das massas. É a forma mais antiga e limitada dos
A igualdade se expressa no fato de estarem todos possuídos homens; e ela já existia antes que houvesse massas humanas
pela mesma meta: talvez a visão de um animal que que- no sentido moderno desta palavra. Ela se manifesta de manei-
rem abater. ras muito diversas, e é sempre claramente definível. Sua ativi-
A malta é limitada de várias maneiras. Além de ela ser dade, ao longo de milhares de décadas, é tão intensiva que
formada relativamente por poucos elementos (dez, vinte, e deixou marcas por toda parte; e mesmo na nossa época, de
algumas vezes um pouco mais), estas poucas pessoas se conhe- caráter tão diferente, ainda se encontram vivas muitas confi-
cem muito bem entre si. Elas sempre viveram juntas, encon- gurações que derivam diretamente dela.
tram-se diariamente, aprenderam a se avaliar com toda a preci- A malta sempre aparece sob quatro formas ou funções
são em numerosos empreendimentos coletivos. A malta dificil- diferentes. Todas elas são fluidas e passa-se com facilidade
mente pode ter um aumento inesperado; são poucos os homens de uma para a outra, mas é importante, antes de mais nada,
que vivem em tais condições e além disso estão muito dis- determinar aquilo em que elas se diferenciam. A malta mais
persos. Mas como ela é formada por conhecidos, num ponto natural e autêntica é aquela da qual deriva nossa palavra:
ela é superior à massa que pode crescer até o infinito: a malta, a de caça. Ela se forma em todos os lugares, quando se trata
apesar de às vezes ser dispersada por circunstâncias adversas, de ir contra um animal perigoso ou muito forte que um indi-
sempre volta a se reunir. Ela pode contar com sua perma- víduo dificilmente conseguirá dominar sozinho; ela se forma
nência; sua duração está garantida enquanto seus integrantes também quando se vê uma presa da qual se quer perder o
estejam vivos. A malta pode desenvolver determinados ritos menos possível. O tamanho do animal abatido, seja ele um
e cerimônias; os que irão executá-los aparecerão, pode-se con- elefante ou uma baleia, mesmo quando foi atingido por vários
fiar neles. Eles sabem a quem pertencem, eles não se deixam indivíduos, importa que ele somente pode ser apresado e com-
atrair por outros. Tentações deste tipo são raras, tão raras partilhado por muitas pessoas reunidas. A malta de caça passa
que não pode aparecer totalmente o hábito de sucumbir a elas. assim a um estado de partilha; às vezes aparece apenas este
Porém quando, apesar de tudo, as maltas crescem, esse último, mas como ambos estes aspectos estão sempre estrei-
crescimento é quantitativo e está sujeito ao consentimento tamente relacionados, devem ser examinados em conjunto. O
recíproco dos participantes. Uma malta que se formou a partir objeto de ambos é a presa, e somente ela com seu comporta-
de um segundo grupo pode encontrar-se com a primeira e, mento, sua condição específica — viva ou morta —, determina
quando não ocorre um combate entre elas, pode acontecer que com precisão o comportamento da malta que se forma em
se juntem para executar empresas transitórias. Mas a consciên- função dela.
cia separada dos dois grupos se conservará sempre; é possível A segunda forma de malta, que tem muito em comum
que no entusiasmo da atividade comum esta consciência desa- com a malta de caça e que está ligada a ela sob muitos aspec-
pareça por um curto período, mas nunca por muito tempo. tos, é a malta de guerra. Esta pressupõe uma segunda malta
Na distribuição das honras ou em outras cerimônias, ela segu- de homens que se ataca, que possui uma vivência própria,
ramente torna a aparecer. Mais forte que o sentimento que mesmo que no momento nem sequer exista. Na sua forma
uma pessoa tem como ser individual quando não está agindo mais precoce ela freqüentemente persegue uma única vítima,
em sua malta, continua sendo o sentimento da própria malta. da qual precisa vingar-se. Na determinação do que deve ser
Este sentimento quântico da malta é decisivo num determi- morto, este tipo de malta se aproxima muito do tipo de caça.
nado nível de convivência humana, e não pode ser abalado por A terceira forma é a malta de lamentação. Ela se forma
coisa alguma. quando um dos seus membros é arrebatado pela morte. O
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grupo, que é pequeno e que acusa toda e qualquer perda como desde muito cedo. Sua presença como animal mítico entre
insubstituível, nesta ocasião se reúne em malta. É possível que tantos povos, as diversas concepções do lobisomem, as histó-
para ela o importante seja tentar reter o moribundo; arran- rias de homens que, disfarçados em lobos, assaltam e roubam,
car-lhe toda a força vital que possa incorporar a si mesma, todas as lendas a respeito da origem de crianças que são
antes que ele desapareça totalmente; é possível que sua fina- criadas por lobos, tudo isto comprova a proximidade que
lidade seja a de apaziguar a alma do morto, para que não se sempre existiu entre o lobo e o homem.
torne inimiga dos que permanecem vivos. De qualquer maneira, A malta de caça, pela qual se compreende hoje uma
uma ação lhes parece ser necessária e em parte alguma existem matilha de cães adestrados para a caça conjunta, é o vestígio
homens que renunciem completamente a ela. vivo desta velha vinculação. Os homens aprenderam dos lobos;
Em quarto lugar reúno uma multiplicidade de fenômenos em algumas danças, por assim dizer, eles treinavam "ser lobo".
que, apesar de sua diversidade, têm uma coisa em comum: Naturalmente também outros animais contribuíram em parte
a intenção de multiplicação. As maltas de multiplicação se para o desenvolvimento de faculdades análogas entre os povos
formam porque o próprio grupo, ou as criaturas às quais está caçadores. Eu emprego a palavra "malta" para os homens por-
ligado, animais ou plantas, devem ser mais. Freqüentemente que é a que melhor caracteriza a harmonia do movimento
essas maltas são representadas em forma de danças, às quais apressado e a meta concreta que é perseguida. A malta quer
se atribui um determinado sentido mítico. Também elas são uma presa; quer o seu sangue e a sua morte. Ela tem de ir
conhecidas em todos os lugares onde vivem juntos seres huma- ao seu encalço de maneira rápida e sem desvios, com astúcia
nos. Elas aparecem sempre que o grupo não está satisfeito e constância para alcançá-la, e se incentiva com seus próprios
com o seu próprio tamanho. Uma das propriedades essenciais latidos. O significado deste ruído, no qual se confundem as
da massa moderna, a compulsão do aumento, se manifesta por- vozes dos vários animais, não deve ser subestimado. Ele pode
tanto já muito cedo nas maltas, que ainda não podem crescer decrescer e voltar a ser mais alto, porém é imperturbável e
totalmente. Determinados ritos e cerimônias servem para forçar contém em si toda a agressão. A presa, finalmente acossada e
esse crescimento; podemos ter opiniões variadas quanto à efi- derrubada, é devorada por todos. Habitualmente existe o "cos-
ciência desses métodos, mas é possível que, no decorrer do tume" de deixar para cada um dos participantes alguma coisa
tempo, eles acabaram levando à formação de grandes massas. do que foi abatido; até para a malta de partilha já é possível
Uma análise detalhada destas quatro diferentes formas encontrar os primeiros rudimentos entre os animais. Emprego
de malta leva a resultados surpreendentes. Elas têm a tendên- este termo também para as outras três formas básicas mencio-
cia de se transformar uma nas outras, e nada está Mais repleto nadas, embora nesses casos dificilmente se possa falar de mo-
de conseqüências do que a passagem de um tipo de malta delos animais; não consegui encontrar uma palavra que expres-
para outro. A instabilidade da massa já é encontrada nestas sasse melhor o que existe de concreto, de direcional e de
formações pequenas e aparentemente mais sólidas. Suas trans- intensivo nesses acontecimentos.
formações, freqüentemente, são ocasião de estranhos fenôme- Também a história justifica um emprego neste sentido.
nos religiosos. Mostraremos como maltas de caça podem se Ela é derivada do latim médio movita, que significa "movi-
transformar em maltas de lamentação e como em torno desta mento". O francês antigo meute, que se originou daí, tem um
transformação se formam mitos e cultos particulares. Os lamen- duplo sentido: pode significar "levante", "levantamento", mas
tadores desejam então não ter assumido jamais o papel de também "partida de caça". O elemento humano aqui ainda
caçadores, e a vítima que eles lamentam serve agora para aparece com força num primeiro plano. A palavra antiga desig-
redimi-los do pecado de sangue da caça. na exatamente o que se quer expressar neste caso; é justa-
A escolha do termo "malta" para esta forma mais antiga mente este significado duplo que nos interessa. O uso limi-
e mais limitada de massa serve também para lembrar que sua tado ao conceito de "matilha de cães de caça" aparece bem
aparição entre os homens se deve a um modelo animal: a mais tarde, e em alemão apenas a partir de meados do séc.
manada de animais que caçam em conjunto. Os lobos, que o XVIII, ao passo que palavras como "amotinador" e "motim",
homem conhecia bem e que no transcorrer de milênios foram derivadas da antiga palavra francesa, aparecem já por volta
educados para se tornarem cães, lhes causaram forte impressão de 1500,
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A malta de caça presentes se forma o grupo de todos aqueles aos quais cabe
alguma coisa dos despojos. Seriam capazes de cravar seus dentes
A malta de caça se movimenta com todos os meios que no animal, como se fossem lobos; no entanto, a devoração
tem à sua disposição em direção a algo vivo que deve ser que as alcatéias de lobos iniciam quando o corpo ainda está
incorporado. Sua meta mais próxima portanto sempre se traduz com vida é postergada pelos homens para um momento poste-
no ato de abater. Alcançar e cercar são seus principais meios. rior. A partilha porém ocorre sem disputas, obedecendo a
Persegue-se um único animal grande ou muitos que se encon- determinadas regras.
tram em fuga de massa. Seja o despojo conseguido grande ou numeroso, desde
A presa está sempre em movimento e é caçada. Tudo
que tenha sido alcançado por toda a malta a partilha dos
depende dos movimentos rápidos da malta, que precisa correr frutos conseguidos é inevitável. O processo que agora se inicia
mais que o animal para deixá-lo esgotado. Quando se trata de é diametralmente oposto ao da formação da malta. Agora,
muitos animais e quando se consegue cercá-los, a fuga em cada um dos participantes deseja algo para si, e gostaria de
massa da presa se transforma em pânico: cada um dos animais receber a maior quantidade possível. Se a partilha não esti-.
perseguidos procura então escapar do círculo formado pelos vesse regulamentada com exatidão, se não existisse uma espécie
inimigos utilizando-se de seus próprios meios. de lei consuetudinária para realizá-la e homens experientes que
A caça se estende por um espaço vasto e variado. No caso velassem pelo cumprimento desta lei, a expedição terminaria
de caça ao animal isolado, a malta se mantém enquanto o em matança e massacre. A lei da partilha é a mais antiga
animal acossado defende sua própria pele. A excitação aumenta
das leis.
durante a caça e é exteriorizada pelos gritos que os caçadores
soltam uns para os outros de forma a aumentar sua sede de Existem duas versões fundamentalmente diferentes: se-
sangue. gundo úma delas, a partilha se reduz exclusivamente ao círculo
A concentração sobre um objeto que está sempre em dos caçadores; segundo a outra, também são integrados os
movimento, que é perdido de vista mas que volta a aparecer, homens que não participaram da malta dé caça e as mulheres.
que se perde com freqüência e que deve ser novamente pro- O supervisor da partilha, que precisa cuidar para que ela seja
curado, que nunca está totalmente livre das intenções mortais realizada em ordem, originalmente não tira qualquer tipo de
dos perseguidores, que se mantém num interminável estado vantagem desta sua posição. Pode até -mesmo acontecer, como
de terror — esta concentração é sentida por todos juntos. no caso da pesca da baleia entre alguns esquimós, que em
Cada um dos participantes tem o mesmo objeto diante dos função da honra do seu posto ele renuncie a tudo. O senti-
olhos, e cada um deles se movimenta em direção a este objeto. mento comunitário da partilha pode ir muito longe: entre os
A separação entre a malta e o seu objeto, que diminui pouco coriacos da Sibéria, o verdadeiro caçador convida todos a se
a pouco, diminui para cada um dos seus integrantes. A caçada servirem dos seus despojos, contentando-se com o resto que
toda possui um ritmo cardíaco comum e mortal. Este ritmo lhe é deixado.
se mantém durante um longo tempo, através de paisagens dife- A lei da partilha é bastante complexa e variável. A parte
rentes, vai se intensificando à medida que diminui a distância de honra da presa nem sempre corresponde a quem lhe tenha
em relação ao animal. Quando este é alcançado, quando ele é dado o golpe mortal. Às vezes o direito a esta parte pertence
encontrado, todos têm oportunidade de matá-lo e todos tentam a quem avistou o animal em primeiro lugar. Mas também quem
fazê-lo. Sobre uma única criatura podem concentrar-se as lanças apenas de muito longe foi testemunha da morte pode ter
e as flechas de todos. Estas lanças e flechas são o prolonga- direito a parte dos despojos. Neste caso os espectadores são
mento dos olhares ávidos lançados durante a caçada. considerados cúmplices do ato, são co-responsáveis por ele e
Todo o estado deste tipo tem o seu fim natural. A meta podem gozar dos seus frutos. Menciono esta disposição extre-
que a malta se propôs é clara e nítida, e clara e nítida é ma e não muito freqüente para mostrar quão forte é o senti-
também a transformação da malta quando a meta é alcançada. mento de unidade irradiado pela malta de caça. Qualquer que
O frenesi diminui no momento da morte. Todos ficam de pé seja a maneira adotada para regulamentar a partilha, os dois
em torno da vítima caída, todos repentinamente calados. Dos atos decisivos são considerados o avistar e o matar a presa.
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A malta de guerra dos quais era baixo, gordo, mas homem muito valente, e o
outro era o seu irmão. Também estava com eles o velho cacique,
A diferença essencial entre a malta de guerra e a de caça o pai de Manikuza. Entre a sua gente estava ainda um homem
consiste na disposição dupla da malta de guerra. Enquanto um pequeno e muito valente de uma tribo parente, os arekunas.
bando excitado estiver caçando um único homem, para cas- Manikuza mandou que preparassem uma massa fermentada de
tigá-lo, trata-se de uma formação análoga à malta de caça. kashiri, cinco grandes cabaças cheias, Depois mandou que
Caso este homem pertença a um outro grupo que não deseja preparassem seis barcas, Os pischaukos viviam nas montanhas.
perdê-lo, não demora muito para que uma malta seja obrigada Os taulipangues levaram duas mulheres que deviam colocar fogo
a enfrentar a outra. Os inimigos não são muito diferentes dentro das casas. Eles foram para lá, não sei por qual dos
entre si. São seres humanos, homens, guerreiros. Na forma rios. Eles quase não comiam, nada de pimenta, nenhum peixe
primitiva da condução da guerra, os dois são tão parecidos grande, nenhum animal de caça; comeram apenas peixes pe-
que se tem dificuldade em distinguir quem é quem. Eles têm quenos até o final da guerra. Levaram também tinta e argila
a mesma forma de lançar-se uns sobre os outros, seus arma- branca para se pintarem.
mentos são mais ou menos idênticos. Ambos os lados soltam "Chegaram perto de onde moravam os pischaukos. Mani-
gritos selvagens e ameaçadores. Ambos têm a mesma intenção kuza enviou cinco homens até a casa dos pischaukos para
em relação ao outro. A malta de caça, pelo contrário, é unila- descobrir se todos estavam lá. Todos estavam lá. Era uma casa
teral: os animais contra os quais ela ataca não têm intenção de grande com muita gente, rodeada por uma cerca circular. Os
cercar ou caçar os homens. Eles estão em fuga, e se às vezes se cinco homens regressaram e informaram isto ao cacique. Neste
defendem isto ocorre no momento em que se quer matá-los. momento, o velho e os três caciques sopraram sobre a massa
Geralmente neste momento eles já não se encontram mais em fermentada de kashiri. Também sopraram sobre a tinta e a ar-
boas condições para se defender contra o homem. gila branca e sobre os tacapes de guerra. Os velhos tinham
O decisivo e realmente característico da malta de guerra apenas arcos e flechas com pontas de ferro, faltavam-lhes armas
é que temos agora duas maltas movidas exatamente pela mes- de fogo. Os outros tinham escopetas e escumilha de chumbo.
ma intenção. A dicotomia é total e absoluta enquanto se trata Cada um deles tinha um saco de escumilha e seis cartuchos de
do estado de guerra. Porém, para compreender qual é exata- pólvora. Também estas coisas foram sopradas (insufladas de
mente a intenção recíproca, basta ler com atenção o relato poder mágico). Depois eles se pintaram com listras vermelhas
seguinte. Trata-se do relato da expedição de uma tribo sul-ame- e brancas: começando pela testa, uma listra vermelha em cima
ricana, os taulipangues, contra seus inimigos, os pischaukos. de uma listra branca abaixo, cobrindo o rosto todo. Sobre o
Este relato foi feito pessoalmente por um dos homens tauli- peito pintaram três listras, alternadamente, vermelho .na parte
pangue e contém tudo o que se deve saber a respeito da malta superior e branco na inferior; fizeram a mesma coisa com os
de guerra. O narrador está entusiasmado com a empresa; ele a braços para que os guerreiros pudessem se reconhecer entre
narra de dentro para fora, de dentro do seu bando, com uma si. Também as mulheres se pintaram da mesma forma. E então
espécie de crueza, de nudez, que é tão verídica quanto repug- Manikuza ordenou que se acrescentasse água à massa de kashiri.
nante e que dificilmente encontra paralelo. "Os exploradores tinham dito que havia muitas pessoas
"No começo havia amizade entre os taulipangues e os pis- nas casas. Era uma casa muito grande e mais três menores,
chaukos. Depois começaram as brigas por causa das mulheres. situadas um pouco ao lado. Os pischaukos eram muito mais
Primeiro os pischaukos assassinaram alguns taulipangues isola- numerosos do que os taulipangues, que eram apenas quinze,
dos, que eram atacados na floresta. Depois eles mataram um ' além de um arekuna. Depois eles beberam o kashiri, cada um
jovem taulípangue e uma mulher e, finalmente, três taulipan- uma cabaça cheia; kashiri suficiente para conseguir muita cora-
gues na floresta. Desta forma, os píschaukos queriam acabar, gem. Então Manikuza disse: 'Este irá atirar primeiro. Enquanto
pouco a pouco, com toda a tribo dos taulipangues. ele estiver carregando de novo sua escopeta, o outro atirará.
"Neste momento, Maníkuza, cacique de guerra dos tau- Sempre um depois do outro'. Ele dividiu os seus homens em
lipangues reuniu toda a sua gente. Os taulipangues tinham três três destacamentos de cinco homens cada um, fazendo com que
chefes: Manikuza, o cacique supremo, e dois subcaciques, um circundassem toda a paliçada que rodeava a casa. Depois disse:
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`Não disparem qualquer tiro inútil. Quando um homem cair, dispararam contra eles, mas não conseguiram acertar nenhum.
deixem-no caído e atirem sobre os outros que ainda estiverem Então Manikuza matou o cacique dos pischaukos. O subcacique
de pé'. matou o subcacique dos pischaukos. Seu irmão e o arekuna
"Depois disto, eles avançaram em três destacamentos se- matavam com muita rapidez e derrubaram muitos inimigos.
parados; as mulheres iam atrás com a§ cabaças cheias de bebi- Fugiram apenas duas virgens que ainda vivem no curso supe-
da. Chegaram ao limite da savana. Manikuza então disse: 'Que rior do rio, casadas com homens taulipangues. Os demais foram
vamos fazer agora? Eles são muitos. Talvez fosse melhor re- todos mortos. Em seguida colocaram fogo à casa. As crianças
tornar e ir buscar mais gente'. Mas o arekuna retrucou: 'Não. choravam. Então as crianças foram jogadas no fogo. Entre os
Vamos em frente. Quando eu avanço rodeado por muitas ou- mortos ficara vivo um pischauko. Ele tinha se manchado com-
. tras pessoas, simplesmente não encontro a quem possa matar'. pletamente com sangue, e se deitara entre os mortos para que
(Ou seja: Todas essas pessoas aí ainda não são suficientes para os inimigos acreditassem que ele também estava morto. Os
o meu tacape, pois eu mato muito depressa.) E Manikuza taulipangues então pegaram todos os pischaukos e lhes cortaram
respondeu: 'Adiante! Adiante! Adiante!' Ele incentivou a to- o corpo em dois pedaços com um facão. Descobriram o ho-
dos. Eles se aproximaram da casa. Já era noite. Dentro da mem que ainda estava vivo, agarraram-no e mataram-no. De-
casa estava um feiticeiro, que naquele momento soprava sobre pois pegaram o cacique morto dos pischaukos, amarraram-no
um doente. E ele disse: 'Vem gente', avisando dessa forma com os braços levantados numa árvore e dispararam o restante
os moradores da casa. O dono da casa, o cacique dos pischau- de sua munição sobre ele, até que seu corpo se desfez em pe-
kos, respondeu: 'Que venham. Eu sei quem são. É Manikuza. daços. Em seguida eles pegaram uma mulher morta. Com os
Mas ele não voltará a sair daqui'. O feiticeiro continuou adver- dedos, Manikuza abriu o órgão genital dela e disse a Ewama:
tindo: 'Eles já estão aqui'. E o cacique então disse: 'É Mani- `Veja isto, é bom para você entrar!'
kuza. Ele não voltará. Sua vida terminará aqui'. "Os demais pischaukos que estavam nas outras três ca-
"Nesse momento Manikuza cortou o cipó que amarrava sas menores se separaram na fuga e se dispersaram pelas mon-
a paliçada; em seguida as mulheres entraram e botaram fogo tanhas da região. Por lá ainda vivem hoje, inimigos mortais
à casa; uma na entrada e outra na saída. Havia muitas pessoas das demais tribos e assassinos às escondidas, que atacam prin-
dentro da casa. Depois as duas mulheres saíram novamente do cipalmente os taulipangues.
"O velho cacique dos taulipangues foi enterrado ali mes-
local cercado pela paliçada. O fogo tomou conta da casa. Um
mo. Apenas dois outros guerreiros estavam levemente feridos
velho subiu na casa para tentar apagar o fogo. Muitas pessoas
no ventre por disparos de chumbo. Então eles retornaram para
começaram a sair da casa; elas atiravam muito com seus ri- suas casas, gritando `Hai-hai-hai-hai-hai!' Quando chegaram às
fles, mas atiravam a esmo, sem fazer pontaria, porque nada suas casas, encontraram os banquinhos que já tinham sido pre-
podiam ver; elas pretendiam apenas assustar os inimigos. O parados para eles."
velho cacique dos taulipangues quis acertar um pischauko com
A disputa, no princípio, está relacionada com as mulheres.
uma flecha, mas não acertou. O pischauko estava dentro do
Indivíduos isolados são mortos. Menciona-se apenas os que os
seu buraco na terra. Quando o velho estava preparando sua outros mataram. A partir deste momento, reina a crença ina-
segunda flecha, o pischauko o derrubou com sua escopeta.
Manikuza viu que seu pai estava morto. Aí os guerreiros co- balável de que os inimigos querem acabar com toda a tribo
meçaram a disparar muito. Eles tinham cercado toda a casa dos taulipangues. O cacique conhece perfeitamente a sua gente,
e os pischaukos não tinham saída, não tinham para onde que é reunida imediatamente; não são muitos, apenas dezes-
escapar. seis, contando-se o homem pertencente à tribo parente, e todos
"Então avançou um guerreiro taulipangue chamado Ewa- sabem o que devem esperar uns dos outros em situações de
ma. Atrás dele ia um subcacique; atrás deste, seu irmão; atrás combate. Jejua-se severamente, as pessoas são obrigadas a se
deste, Manikuza, o cacique de guerra, e finalmente o arekuna. alimentar de peixes muito pequenos. Com a massa fermentada
Os demais ficaram do lado de fora para matar todos os pischau- preparou-se uma bebida forte. Antes do combate, bebe-se "para
kos que quisessem escapar. Os outros cinco avançaram entre adquirir valor". Com as cores, pinta-se uma espécie de uni-
os inimigos e os derrubaram com seus tacapes. Os pischaukos forme, "para que os guerreiros possam se reconhecer uns aos
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outros". Todos os objetos que se consideram relacionados
sas vizinhas menores fogem para as montanhas e continuam
com a guerra — principalmente as armas — são "soprados". vivendo lá como "assassinos às escondidas".
Desta maneira lhes é insuflado um poder mágico e ficam ben- Dificilmente há qualquer coisa a ser acrescentada a esta
zidos. descrição da malta de guerra. Entre inúmeros relatos semelhan-
Assim que eles chegam às proximidades do acampamento tes, este é o mais real em toda sua crueza. Ele não contém
inimigo, exploradores são enviados para comprovar que todos nada que seja desnecessário, nada que tenha sido corrigido
se encontram lá reunidos. Todos estão presentes. Quer-se que pelo narrador.
todos estejam reunidos para que todos possam ser extermina- Os dezesseis homens que partiram não regressam com os
dos ao mesmo tempo. Trata-se de uma casa grande com mui- despojos de guerra; em nada foram enriquecidos pela vitória.
tas pessoas, uma superioridade perigosa. Os dezesseis têm ra- Nenhuma mulher, nenhuma criança foi deixada com vida. Seu
zão em procurar a coragem na bebida. O cacique transmite objetivo era o extermínio da malta inimiga de maneira que
suas instruções como se fosse um oficial. No entanto, chegando nada, literalmente nada, sobrasse dela. Com prazer narram-se
perto da casa inimiga, ele sente sua responsabilidade. "São as próprias façanhas. Os outros eram, e continuam sendo, os
muitos", diz ele, e hesita. Não seria melhor voltar atrás e
assassinos.
procurar reforços? Mas em sua tropa encontra-se um homem
para o qual nunca existem inimigos suficientes para matar.
Sua determinação contagia o cacique e este dá a ordem: A malta de lamentação
"Avante!"
É noite, mas as pessoas dentro da casa estão despertas. A descrição mais impressionante que conheço de uma mal-
Um feiticeiro, mais desconfiado do que os demais, aguça os ta de lamentação é proveniente dos warramungas da Austrália
sentidos e percebe o perigo. "Vem gente", diz ele; e logo de- Central.
pois: "Eles estão aqui!" O cacique sabe muito bem de quem "Mesmo antes de o homem moribundo ter exalado seu
se trata. Ele tem um inimigo e está seguro da sua inimizade. último suspiro, começaram as lamentações e as mutilações in-
Porém também está certo de que o inimigo está vindo apenas tencionais. Assim que se soube que o fim estava próximo, todos
para perder a própria vida. "Não sairá daqui. Aqui ele ter- os homens correram rapidamente ao local. Algumas mulheres
minará sua vida!" A cegueira do que irá morrer é tão notável que se tinham reunido, vindas de todas as direções, jaziam
quanto a hesitação do que irá atacar. O ameaçado nada faz: a prostradas sobre o corpo do moribundo, enquanto outras per-
desgraça se abate sobre ele. maneciam de pé ou de joelhos nas proximidades, cravando as
Pouco depois a casa está ardendo; foram as mulheres que pontas agudas dos seus bastões tumulares no crânio; o sangue
lhe atearam fogo e os seus moradores saem para fora. Eles não escorria pelos seus rostos, enquanto simultaneamente emitiam
conseguem ver quem atira do escuro em direção a eles; pelo um pranto ininterrupto de lamentação. Muitos homens que
contrário, eles mesmos se tornam excelentes alvos. Os inimigos acorreram ao local jogaram-se em desolada desordem sobre
penetram no local e atacam os ocupantes com seus tacapes. aquele que lá estava deitado; as mulheres se levantavam e lhes
A história de como eles sucumbem é concluída em algumas abriam espaço, até que finalmente nada mais se via além de
poucas frases. Não se trata aqui de um combate, mas sim de uma confusa massa de corpos nus. De repente chegou com
um extermínio total. As crianças chorando são atiradas ao gritos estridentes um homem que brandia uma faca de pedra.
fogo. Os mortos são despedaçados, um depois do outro. Um Quando se aproximou do local, fez cortes com a faCa nos pró-
sobrevivente, que se lambuza de sangue e se mistura aos mor- prias coxas atravessando os músculos, de modo que não pôde
tos na esperança de escapar, compartilha do destino dos de- mais ficar de pé e caiu sobre a massa de corpos em convulsão.
mais. O cacique morto é amarrado a uma árvore e as armas Sua mãe, suas esposas e irmãs o arrancaram da confusão e
são disparadas contra ele despedaçando-lhe o corpo. A viola- aplicaram a boca às feridas abertas, enquanto ele, esgotado e
ção de uma mulher morta é o clímax horripilante. Tudo perece indefeso, jazia no solo. Pouco a pouco, a massa de corpos es-
inteiramente no fogo. curos foi se desenrolando, permitindo a visão do infeliz doente,
Os poucos que se salvaram e que se encontravam nas ca- que era o objeto, ou melhor, a vítima desta bem-intencionada
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demonstração de afeto e de pena. Se antes ele já estava doente, todos juntos têm algo para ser lamentado. O frenesi do la-
agora passava bem pior, quando os amigos o abandonaram; era
mento, sua duração, o fato de ele ser retomado no dia seguinte
evidente que não lhe restava muito tempo de vida. O pranto no novo acampamento, o assombroso ritmo que vai aumentan-
e as lamentações continuavam. O sol se pôs e o acampamento do e que, mesmo após um esgotamento completo, torna a
ficou escuro. Naquela mesma noite o homem morreu. Então
o pranto pôde ser ouvido com mais intensidade ainda do que recomeçar, já seriam provas suficientes de que neste caso se
trata, antes de mais nada, da excitação do lamento coletivo.
antes. Homens e mulheres, em um frenesi provocado pela Basta o conhecimento deste único caso, característico dos abo-
amargura, se jogavam de um lado para outro, ferindo-se com rígines australianos, para compreender por que esta excitação
facas e lanças pontiagudas, enquanto as mulheres se batiam é definida como típica de uma malta e por que parece ser
com maças na cabeça; ninguém se defendia dos cortes ou dos indispensável introduzir a denominação especial de malta de
golpes. lamentação para designá-la.
"Uma hora mais tarde, uma procissão fúnebre colocou-se Tudo principia com a notícia de que a morte está pró-
em movimento à luz de tochas. Levaram o cadáver até um
xima. Os homens se precipitam apressadamente e se encontram
bosque distante cerca de 2 km e ali o colocaram sobre uma com as mulheres que já estão presentes. As parentes mais pró-
plataforma de galhos construída numa seringueira de pouca ximas jazem amontoadas sobre o enfermo. É importante que
altura. Quando o dia seguinte amanheceu, não havia mais um a lamentação não se inicie apenas depois de ocorrida a morte,
único sinal de vida no acampamento onde o homem tinha mas sim imediatamente após se constatar a gravidade do estado
morrido. Todos tinham transferido suas miseráveis choupanas do enfermo. Assim que se acredita que ele vai morrer, as pes-
para um lugar mais distante, deixando em total desolação o soas já não podem mais conter o lamento. A malta se solta,
local onde ocorrera a morte. Porque ninguém desejava encon- ela estava à espera dessa oportunidade e já não deixa mais
trar-se com o fantasma do defunto, que sem dúvida ficaria va- sua vítima escapar. A força tremenda com a qual ela se lança
gando pelas imediações, e muito menos ainda com o espírito sobre seu objeto, praticamente sela o seu destino. É difícil
do homem vivo que tinha provocado a morte com feitiços, e imaginar que uma pessoa seriamente enferma, após ter sido
que certamente voltaria sob a forma de algum animal ao local submetida a este tratamento, fosse capaz de se recuperar dele.
do crime para deleitar-se com seu triunfo. Debaixo do pranto desenfreado dos homens, ela é praticamente
"No novo acampamento, por todos os lados havia homens sufocada; pode-se supor que ela às vezes acaba realmente su-
prostrados no chão, com feridas abertas nas coxas; feridas que focada neste processo; de qualquer forma, isto serve para
eles mesmos tinham causado em seus corpos. Eles tinham cum- acelerar sua morte. A exigência generalizada em nossa cultura
prido seu dever para com o morto e carregariam até o fim de de que se deve deixar os seres humanos morrer em paz, seria
suas vidas as cicatrizes nas coxas como uma espécie de dis- algo completamente incompreensível para estas pessoas entre-
tintivo de honra. Em um deles viam-se os sinais de até vinte gues a sua excitação.
e três ferimentos provocados no decorrer do tempo. Neste ín- Qual é o significado deste monte que se forma sobre o
terim, as mulheres, cumprindo suas obrigações, tinham reto- doente, deste emaranhado de corpos que evidentemente pare-
mado as lamentações. Quarenta ou cinqüenta delas, divididas cem lutar para poder se aproximar mais dele? Dizem que
em grupos de cinco ou seis e com os braços entrelaçados, cho- as mulheres que chegam primeiro a estes lugares abrem cami-
ravam e gritavam num estado de loucura; enquanto isto, algu- nho e cedem seus postos para os homens, como se estes, ou
mas, consideradas as parentes mais próximas, machucavam as pelo menos alguns deles, tivessem o direito de se aproximar
próprias cabeças com varas pontiagudas e as viúvas iam ainda mais. Sejam quais forem as interpretações que os aborígi-
mais além, chamuscando as feridas em suas cabeças com brasas. nes dêem para a formação desse tumulto, o que na realidade
Deste relato, e de muitos outros semelhantes que podería- ocorre é que o monte de corpos incorpora mais uma vez seu
mos apresentar, uma coisa se torna imediatamente clara: tra- objeto de maneira total.
ta-se da própria excitação. Várias intenções participam do A proximidade física dos que pertencem à malta, sua
sucedido e será necessário estudá-las uma a uma. Porém, o densidade, não poderia ser levada mais além. Eles se tornam
essencial é a excitação como tal, um estado de coisas no qual uma mesma coisa com o enfermo. Ele pertence a eles, eles o
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retêm entre si. Já que ele mesmo não consegue mais se levan- como nós a conhecemos e já explicamos noutro lugar. A malta
tar, não podendo estar entre eles, eles se deitam junto dele. perdura mais pela destruição de tudo aquilo em que ela se
Todos os que acreditam ter direito sobre a pessoa em questão completa; e a separação da época em que conheceu e sofreu a
lutam pelo privilégio de permanecer no monte, em cujo centro a meaçadora desgraça é mais aguda. Tudo recomeça outra vez
está o doente. É como se quisessem morrer com ele: as feridas e começa justamente no vigoroso estado da excitação coletiva.
que causam em si mesmos, o ato de se lançarem sobre o monte É importante fixar finalmente as duas tendências de mo-
e, quando isto não é possível, em qualquer outro lugar, os vimento que são essenciais para o desenrolar da malta de la-
desfalecimentos dos automutilados, tudo serve para demonstrar mentação. A primeira é o impetuoso movimento em direção
quão sério é tudo isto para eles. Talvez também seja correto ao moribundo, e a formação de um monte de duplo sentido
dizer que eles querem ser iguais a ele. Mas eles não têm a em torno do enfermo que se encontra entre a vida e a morte.
verdadeira intenção de se matar. O que deve continuar exis- O segundo movimento é a fuga aterrorizada para afastar-se do
tindo é o monte ao qual ele pertence, e pelo comportamento morto; para afastar-se dele e de tudo o que possa ter sido to-
que adotam isto é facilitado. Neste processo de igualação com cado por ele.
o moribundo consiste a essência da malta de lamentação, en-
quanto a morte ainda não ocorreu.
Mas também faz parte dela a repugnância em relação ao A malta de multiplicação
morto, assim que o doente deixou de viver, A transformação
dos esforços violentos para conter e reter o moribundo em Pode-se contemplar a vida de qualquer povo em estado
uma aterrorizada atitude de repulsa e de isolamento do morto natural; por toda parte encontramos imediatamente, conforme
é que forma a tensão propriamente dita da malta de lamenta- os acontecimentos concentrados de sua existência, as maltas de
ção. Na mesma noite o cadáver é rapidamente afastado. São caça, de guerra ou de lamentação. O transcorrer destas três
destruídos todos os vestígios de sua existência: seus utensílios, espécies de maltas é claro; todas elas possuem algo de elemen-
sua choupana, tudo o que lhe pertencia em vida. Até mesmo o tar. Onde uma ou outra destas formações tenha sido relegada
acampamento no qual ele tinha vivido com os demais é arra- a um segundo plano, encontramos mesmo assim vestígios que
sado e queimado. Repentinamente ele se transformou num demonstram sua presença e sua importância no passado.
inimigo. Tornou-se perigoso por ter abandonado os demais. Descobrimos uma formação mais complexa na malta de
Poderia ter inveja dos vivos e vingar-se deles por estar morto. multiplicação. Ela é de enorme importância porque foi o im-
Nem os sinais de afeto e nem mesmo a densidade corporal fo- pulso que levou à propagação do ser humano. Ela conquistou
ram capazes de retê-lo. O rancor pelo morto o transforma num a Terra para ele e o conduziu ao aparecimento de civilizações
inimigo; mediante mil artimanhas ele poderá introduzir-se cada vez mais ricas. Sua eficiência nunca foi compreendida no
entre os vivos que agora necessitam de igual quantidade de seu alcance total porque o conceito de reprodução se modi-
meios para defender-se dele. ficou e obscureceu os processos propriamente ditos da multi-
No novo acampamento prossegue a lamentação. A exci- plicação. Desde o princípio ela só se torna compreensível para
tação, que dava ao grupo o impetuoso sentimento de sua nós em relação aos processos de metamorfose.
unidade, não é abandonada imediatamente. As mulheres ao Os primeiros homens, que se movimentam em número
que parece conseguem ir mais longe neste sentido; pelo menos reduzido por amplas e freqüentemente desertas paragens, en-
elas demonstram mais persistência nesta lamentação. Existe frentam um número muito superior de animais. É possível
muita cólera nesta automutilação; uma cólera em relação à que nem todos sejam hostis; a maioria deles não é perigosa para
impotência diante da morte; é como se a pessoa se castigasse o homem, mas muitos aparecem em quantidades incríveis. Um
pela morte. Também seria possível pensar que o indivíduo rebanho de búfalos ou de antílopes, cardumes de peixes ou de
quer manifestar no seu próprio corpo o dano que a perda so- lagostas, enxames de abelhas ou de formigas — comparando-se
frida causou ao grupo todo. Porém a destruição também é o seu número com o dos homens, este se torna insignificante.
dirigida contra o próprio acampamento, por mais miserável que Isto porque a descendência do homem é escassa. Os des-
seja, e neste sentido ela lembra a fobia destrutiva da massa cendentes aparecem um a um e leva muito tempo para que
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eles apareçam. O desejo de mais, de. aumentar o número das
pessoas às quais se pertence, deve ter sido sempre profundo deve ser procurada por toda parte e aparece naturalmente
e urgente. Este desejo aumentava constantemente; cada vez que onde é esperada. Mas ela também tem os seus esconderijos, e
uma malta se formava era necessário fortalecer o impulso para aparece repentinamente onde menos se supõe poder encontrá-la.
aumentar ainda mais o número de seus componentes. Uma O homem a princípio não pensou em sua própria multi-
malta de caça que fosse maior estava em condições de cercar plicação de forma isolada da das demais criaturas. Seu desejo
um maior número de animais selvagens. Nem sempre era pos- de multiplicar-se estende-se a tudo que o cerca. Da mesma forma
sível confiar nos animais selvagens; repentinamente eles apa- que ele se sente impelido a ampliar sua própria horda atra-
reciam em grande número, e se houvesse mais caçadores maio- vés de uma produção abundante de crianças, ele também quer
res seriam as presas, os despojos. Na guerra queria-se ser mais mais caça e frutos, mais rebanhos e trigo, e maiores quantida-
forte do que a horda de inimigos: teve-se sempre consciência des de tudo o que serve para sua alimentação. Para que ele
do perigo inerente a um número reduzido. Cada morte preci- prospere e se multiplique, é necessário que exista tudo o
sava ser lamentada, principalmente quando se tratava de um que necessita para sua existência.
homem experiente e ativo; nestes casos a morte se transfor- Onde a chuva é escassa, ele se concentra em atrair a água.
mava numa perda decisiva. A fraqueza do homem era o seu O elemento que todas as criaturas mais necessitam, como
número reduzido. ele mesmo, é a água. Por isto, em muitas regiões da Terra, os
Mas também é certo que os animais perigosos freqüente- ritos de chuva e de multiplicação aparecem de forma unifica-
mente viviam isolados ou em pequenos grupos como o próprio da. Seja que os homens dancem pessoalmente na chuva, como
ocorre entre os índios pueblos, ou seja que rodeiem sedentos o
homem. Como eles, o homem também era uma fera bravia,
feiticeiro enquanto este faz esconjuros para chamar a chuva,
mas uma que nunca desejava estar só. Ele gostaria de viver
em alcatéias como os lobos, porém estes se davam por satisfei- em todos os casos deste tipo eles se constituem como malta de
tos, o que não acontecia com o homem. Durante o enorme multiplicação.
período de tempo em que ele viveu em pequenos grupos, in- Para reconhecer o relacionamento íntimo existente entre
corporou a si — por metamorfose, por assim dizer — todos os a multiplicação e a metamorfose é necessário aprofundar-se nos
animais que conhecia. Neste mesmo exercício da metamorfose ritos dos australianos. Eles foram descritos há mais de meio
é que ele realmente acabou se transformando em homem; ela século por vários exploradores da maneira mais precisa possível.
era o seu talento e o seu prazer mais característicos. Durante Os ancestrais, de que tratam as lendas a respeito da ori-
suas primeiras metamorfoses em outros animais, ele represen- gem dos australianos, são seres estranhos, criaturas duplas,
parte homem, parte animal; com precisão maior, poderíamos
tava e dançava imitando as várias espécies que apareciam em
dizer que são ambas as coisas. Foram eles que introduziram as
grande número. Quanto mais perfeita era sua representação
cerimônias, e estas são celebradas porque os ancestrais assim o
destas criaturas, tanto mais intensamente ele percebia a mag- ordenaram. Chama a atenção o fato de terem juntado o homem
nitude do seu número. Ele percebia o que era ser muitos e com uma espécie animal ou vegetal muito determinada. Assim,
depois sempre voltava a tomar consciência do seu isolamento o ancestral-canguru é simultaneamente canguru e homem; o
como homem, em pequenos grupos. ancestral-avestruz é simultaneamente homem e avestruz. Nunca
Não pode haver dúvidas de que o homem, assim que pas- ocorre que um ancestral represente dois animais diferentes.
sou a ser tal, quis ser mais. Todas as suas formas de crença, O homem sempre está presente, sendo por assim dizer uma
seus mitos, ritos e cerimônias estão repletos deste desejo. Os metade; mas a outra metade é sempre um determinado animal.
exemplos são numerosos e alguns deles serão encontrados no Entretanto, não se pode insistir demais no fato de que ambas
decorrer desta pesquisa. Considerando-se que tudo o que tende as coisas existam simultaneamente num única figura. As ca-
à multiplicação está dotado de uma violência extremamente racterísticas das duas coisas estão misturadas da maneira mais
elementar, pode ser surpreendente que no princípio deste ca- ingênua e mais impressionante possível para a nossa sensibi-
pítulo se tenha enfatizado a complexidade da malta de multi- lidade.
plicação. Um pouco de reflexão será suficiente para mostrar É evidente que os ancestrais não representam outra coisa
porque ela faz sua aparição de tantas formas diferentes. Ela senão os resultados de metamorfoses. O homem que conseguiu
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sempre sentir-se como canguru e ver-se como tal, transfor- e que desejasse consegui-las na maior quantidade possível.
mou-se no totem-canguru. Esta determinada transformação, que Também alguns insetos, que para nós são desprezíveis mas que
foi praticada e utilizada freqüentemente, adquiriu o caráter de o a ustraliano considera como iguarias, determinados tipos de
uma conquista, e foi transmitida em mitos que podiam ser re- larvas, de térmitas e de gafanhotos, aparecem como totens.
presentados dramaticamente, de geração em geração. Mas que se pode dizer quando encontramos pessoas que con-
O ancestral dos cangurus, dos quais se estava rodeado, sideram como seu totem escorpiões, piolhos, moscas ou mos-
passou a ser simultaneamente o ancestral daquele grupo de quitos? Neste caso é impossível falar de utilidade no sentido
homens que se denominavam canguru. A metamorfose que se comum da palavra; estas criaturas são pragas tanto para o
encontra na origem desta dupla descendência era representada australiano como para nós. Somente a quantidade monstruosa
em ocasiões coletivas. Uma ou duas pessoas faziam o papel de destes seres é que pode atraí-lo, e quando ele estabelece um
canguru, enquanto as demais participavam como espectadores parentesco com eles o que lhe importa é garantir este número
da metamorfose transmitida. Numa apresentação posterior, eles para si mesmo. O homem que descende do totem-mosquito
mesmos podiam dançar o canguru, que era seu ancestral. O quer que seu pessoal se torne tão numeroso quanto os mos-
prazer desta metamorfose, o peso especial que adquiriu com quitos.
o passar do tempo, seu valor para as novas gerações de homens, Não quero encerrar esta referência provisória e muito su-
expressava-se nos ritos sagrados durante os quais era praticada. mária às figuras duplas australianas, sem mencionar uma outra
A transformação conseguida e bem-sucedida chegou a ser uma espécie de totem que se encontra entre elas. Ficaremos sur-
espécie de dom. Ela era tratada com o mesmo cuidado com presos com a lista seguinte que o leitor já conhece. Entre os
que se trata o tesouro de palavras de uma língua, ou com que totens australianos existem nuvens, chuva e vento, pasto, pasto
se trata aquele outro tesouro que nós caracterizamos e repu- em chamas, fogo, o mar, a areia e as estrelas. É a lista dos sím-
tamos como material: armas, jóias e determinados utensílios bolos naturais de massa que já foram estudados em profundi-
sacros. dade. Não seria possível oferecer melhor demonstração de sua
Esta metamorfose que como tradição bem guardada, como antiguidade e de seu significado do que sua existência entre
totem, designava o parentesco de determinados homens com os totens australianos.
os cangurus, significava também um vínculo com o seu número. Mas seria errôneo supor que as maltas de multiplicação
Este número sempre foi superior ao dos homens; seu aumento estão sempre relacionadas com totens e que sempre permane-
era desejável, pois estava relacionado com o dos homens. cem tanto tempo como entre os australianos. Existem esque-
Quando eles se multiplicavam, também se multiplicava o nú- mas de natureza mais simples e mais densa, nos quais se trata
mero dos homens. A multiplicação do animal-totem era idên- de uma atração instantânea e imediata dos animais desejados.
tica à multiplicação dos próprios homens. Eles pressupõem a existência de grandes manadas. O relato
Não é possível exagerar a força deste relacionamento en- da famosa dança dos búfalos dos mandans, tribo indígena da
tre metamorfose e multiplicação: as duas coisas sempre apa- América do Norte, foi escrito na primeira metade do século
recem unidas. Assim que uma metamorfose é fixada e cultivada passado.
na sua figura exata como tradição, ela assegura a multiplica- "Os búfalos se reúnem ocasionalmente em massas enor-
ção de ambas as criaturas que se tornaram inseparáveis e indi- mes e vagueiam em todas as direções do país, de leste para
visíveis. Uma destas criaturas sempre é o homem. Em cada oeste ou de norte para sul, a grandes distâncias, para onde
totem ele assegura para si a multiplicação de um outro animal. seus caprichos os levam. Quando isto acontece, os mandans
A tribo, que é formada por vários totens, apropriou-se da mul- ficam sem ter o que comer. Eles são uma tribo pequena e,
tiplicação de todos eles. devido aos inimigos mais fortes que querem lhes tirar a vida,
A grande maioria dos totens australianos são animais, mas não se atrevem a afastar-se de suas casas. Desta forma eles
também existem plantas, e como geralmente se trata de plan- podem ser vítimas de morte por inanição. Numa crise deste
tas que o homem ingere, nunca ninguém se surpreendeu de tipo, cada qual pega sua máscara de sua tenda; uma máscara
forma especial com os ritos relativos à sua multiplicação. Pa- sempre preparada para uma tal situação: trata-se da pele de
recia natural que o homem se interessasse por ameixas e nozes uma cabeça de búfalo com os chifres característicos. Tem início
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a dança dos búfalos, para que 'venham os búfalos'. É preciso da morte continua sendo búfalo. Ele é transportado e esquar-
seduzir a manada, convencê-la a mudar de direção, a caminhar tejado pelos caçadores. Primeiro ele foi "manada", depois
rumo à aldeia dos mandans. termina como presa.
"A dança é realizada em praça pública no centro da aldeia. A idéia de que a malta pode por melo de uma dança
Cerca de dez ou quinze mandans participam dela, cada qual veemente e constante atrair a manada dos búfalos verdadeiros
com uma cabeça de búfalo sobre a própria cabeça, e seguran- pressupõe uma série de coisas. Os mandans sabem, por expe-
do na mão o arco ou a lança, a arma com a qual prefere matar riência própria, que a massa cresce e atrai para seu círculo todos
os búfalos. os que são da mesma espécie e que se encontrem nas proximi-
"A dança sempre surte o efeito desejado, ela não cessa dades. Onde quer que haja muitos búfalos reunidos, outros se
nunca, continuando dia e noite até que 'venham os búfalos'. unem a eles. Mas eles também sabem que a excitação da dança
Tambores são tocados, matracas acionadas, canções entoadas aumenta a intensidade de uma malta. Sua força depende di-
e gritos proferidos incessantemente. Os espectadores perma- retamente da veemência do seu movimento rítmico. O que lhe
necem de pé, com máscaras nas cabeças e armas na mão, pron- falta em número, a malta pode conseguir pela veemência.
tos para substituir qualquer dançarino que fique cansado e Os búfalos, cuja aparência e cujos movimentos se conhe-
que saia do círculo. cem tão bem, são como os homens, pois gostam de dançar e
"Durante todo este tempo de excitação geral, existem se deixam atrair para um festejo pelos inimigos disfarçados.
vigias instalados nas colinas que rodeiam a aldeia e, quando A dança é contínua porque deve atuar em longas distâncias.
eles percebem a aproximação de búfalos, fazem o sinal com- Os búfalos que a sentem em algum lugar qualquer, por mais
binado, que é visto e compreendido imediatamente pela tribo distantes que estejam, como atração da malta, cedem diante
toda. Existem danças que duram duas ou três semanas inin- dela enquanto se mantiver viva como dança. Se a dança deixas-
terruptamente, até o momento feliz da aparição dos búfalos. se de ser contínua, já não representaria uma malta, e os bú-
Elas nunca falham e a elas é atribuído o fato de os búfalos falos, que talvez se encontrassem ainda muito distantes, pode-
voltarem. riam partir em direção a outros lugares. Manadas existem por
"Normalmente há uma tira de pele presa à máscara; esta toda parte e alguma delas poderia distrair a atenção dos bú-
tira tem o comprimento do animal, incluindo a cauda; ela fica falos. Os dançarinos devem constituir uma atração mais forte.
sobre o dorso do dançarino, arrastando-se pelo chão. Quem se Como malta de multiplicação, que não cede um instante sequer
cansa, anuncia isto inclinando-se inteiramente para a frente e em sua excitação, eles são mais fortes do que qualquer manada
aproximando seu corpo do chão; então, algum outro aponta solta e atraem esta de maneira irresistível.
seu arco para ele e o atinge com uma flecha sem ponta e ele
cai como um búfalo. Os circundantes o agarram, puxando-o
pelos pés para fora do círculo e movimentam suas facas sobre A comunhão
ele. Depois dos gestos característicos da retirada da pele e do
esquartejamento, eles o deixam ir e seu lugar é imediatamente Um ato de multiplicação de tipo particular é a refeição
ocupado por outro, que de máscara sobre a cabeça entra dan- em comum. Num rito determinado, cada um dos participantes
çando no círculo. Desta forma a dança pode prosseguir facil- recebe um pedaço do animal abatido. É comido por todos o
mente noite e dia, até que se alcance o efeito desejado e os que por todos foi conseguido. Partes de um mesmo animal são
`búfalos venham'." incorporadas à malta inteira. Alguma coisa de um único corpo
Os dançarinos representam simultaneamente búfalos e ca- passa para todos eles. Eles agarram, mordem, mastigam, engo-
çadores. Pela indumentária, eles são búfalos; mas arco, flechas lem a. mesma coisa. Todos os que saborearam a coisa estão
e lanças os caracterizam como caçadores. Enquanto um partici- agora relacionados por meio deste animal: ele está contido em
pante está dançando, deve ser visto como búfalo e ele também todos eles juntos.
se comporta como tal. Quando se cansa, é um búfalo cansado. Este rito da incorporação em comum é a comunhão. Ela
Não pode deixar a manada sem ter sido abatido. Ele cai atin- recebe um sentido particular: deve ser realizada de tal manei-
gido por uma flecha e não por causa do cansaço. Até na agonia ra que o animal que é saboreado se sinta honrado. Ele deve
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regressar e trazer consigo muitos dos seus irmãos. Os ossos riores na meta essencial; mas, em lugar do animal, saboreia-se
não são quebrados, são cuidadosamente guardados. Se tudo o corpo de um deus e sua ressurreição é considerada pelos
for feito da maneira correta, eles se recobrirão novamente crentes como referente a eles mesmos.
de carne; o animal se levantará e se deixará caçar novamente. Deste aspecto da comunhão falaremos mais tarde, quando
Se a coisa for feita de maneira errada e o animal se sentir tratarmos do tema das religiões de lamentação. O que nos in-
ofendido, ele se retrairá. Foge com todos os seus irmãos e não teressa aqui é a passagem da malta de caça para a de multipli-
volta a ser visto; como resultado, os homens padecem de fome. cação: uma determinada espécie de alimentação assegura a
Em determinadas festas consegue-se que o animal que é multiplicação do alimento. A princípio este era representado
saboreado esteja presente. Assim, entre alguns povos siberia- como algo vivo. Mostra-se aqui a tendência de guardar a pre-
nos, o urso é tratado como hóspede durante a refeição em que ciosa substância psíquica da malta, situando-a em algo novo.
ele próprio é comido. Homenageia-se este hóspede oferecen- Seja qual for esta substância — e talvez seja até discutível a
do-lhe os melhores pedaços do seu próprio corpo. Encontram- utilização do termo "substância" — tudo é feito para impedir
se palavras convincentes e solenes para ele; pede-se a ele que que ela se decomponha e se disperse.
interceda junto a seus irmãos. Quando se consegue ganhar sua O relacionamento entre a alimentação comum e a multi-
amizade, ele até se deixa caçar com boa vontade. Comunhões plicação do alimento pode ser imediato, mesmo sem que exista
deste tipo podem levar a uma ampliação da malta de caça. o elemento da reanimação e da ressurreição. Basta lembrar os
As mulheres e todos os demais homens que não participaram milagres do Novo Testamento, onde com cinco pães e dois
da expedição de caça tomam então parte nela. Mas ela tam- peixes são alimentadas milhares de pessoas com fome.
bém pode restringir-se a um pequeno grupo que corresponde
ao grupo dos próprios caçadores. O acontecimento interno,
no que se refere ao caráter da malta, é sempre o mesmo: a A malta interna e a malta silenciosa
malta de caça passa a ser uma malta de multiplicação. Uma
determinada caçada foi bem-sucedida, saboreia-se a presa con- As quatro formas básicas das maltas podem ser agrupadas
seguida, mas no momento solene da comunhão os participan- de muitas outras maneiras. Pode-se fazer uma distinção entre
tes têm presente a idéia de todas as caçadas futuras. A imagem maltas internas e externas.
da massa invisível desses animais que se desejam flutua diante A malta externa, que é a mais notória, e conseqüentemente
da vista de todos os que participam da refeição, e todos se a mais fácil de ser caracterizada, movimenta-se na direção de
esforçam ao máximo para transformá-la em realidade. uma meta que está situada no exterior. Ela se estende por um
Esta primitiva comunhão dos caçadores se mantinha, mes- longo caminho e seus movimentos, quando comparados com
mo quando se tratava de desejos de tipos completamente di- os da vida normal, são intensificados. Tanto as maltas de caça
versos. Podiam ser lavradores preocupados com a multiplica- como as de guerra pertencem a esta categoria. Os animais que
ção do seu trigo, do seu pão de todos os dias; mesmo assim se caçam devem ser encontrados e alcançados. O inimigo que
eles saboreavam em comum e com solenidade o corpo de um se quer combater precisa ser procurado. Por maior que seja a
animal, como nos antigos tempos em que eram exclusivamente excitação que se consegue durante uma dança de caça ou de
caçadores. guerra num determinado lugar, a atividade propriamente dita
Nas religiões superiores, um novo elemento intervém na da malta externa tende sempre a uma meta distante.
comunhão: o pensamento de uma multiplicação dos crentes. A malta interna possui algo concêntrico. Ela se forma em
Se a comunhão permanecer intata, se ela se desenrolar de torno de um morto que deve ser sepultado. Sua tendência
maneira correta, a fé se propagará cada vez mais, e mais adep- implica reter alguma coisa, não alcançá-la. A lamentação
tos irão se reunir. No entanto, como se sabe, de significado por um morto enfatiza por todas as maneiras o quanto ele
muito maior é a promessa da reanimação e da ressurreição. pertence aos que estão reunidos em redor do seu cadáver. Seu
O animal, que os caçadores saboreavam cerimoniosamente, vol- caminho em direção ao que é remoto ele o toma sozinho.
taria a viver, ressuscitaria e se deixaria caçar outra vez. A pro- Trata-se de um caminho perigoso e aterrorizante, que leva até
vocação desta ressuscitação se transforma nas religiões supe- onde os demais mortos o esperam e acolhem. Como o morto
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não se deixa reter, é — por assim dizer — desincorporado. dem caracterizar esta classe de malta. Faz parte dela que sua
Os que o lamentam representam, enquanto malta, algo como meta seja algo distante, que não pode ser realizado imediata-
um corpo unido, do qual o cadáver somente é retirado com mente.
muita pena. Também a malta de multiplicação é uma malta É esta espécie de esperança e de silêncio que passou a
interna. Um grupo de homens dançantes se forma num centro fazer parte das religiões do além. Existem homens que passam
ao qual deve unir-se, de fora para dentro, algo que ainda é a vida inteira esperando por uma existência melhor no além.
invisível. Mais homens devem unir-se aos que estão presentes, Mas o exemplo mais claro de uma malta silenciosa continua
mais animais aos que se caçam ou criam, mais frutos aos que sendo a comunhão. O processo da incorporação, para ser per-
se colhem. O sentimento dominante é uma fé no já-estar-pre- feito, exige um silêncio concentrado e paciência. A reverência
sente de todos os seres que devem juntar-se às unidades visí- pelo sacro-significativo que se encontra dentro de cada um
veis. Eles estão presentes em alguma parte e é preciso apenas exige por um momento um comportamento tranqüilo e digno.
atraí-los. Tende-se a celebrar as cerimônias onde se supõe que
existam, invisíveis, muitos destes seres.
Uma passagem significativa de uma malta externa para A determinação das maltas. Sua constância histórica
uma interna temos na comunhão. Pela incorporação de um
determinado animal que foi abatido na caçada, pela solene Conhece-se o morto que é pranteado. Somente os que con-
consciência de que algo do animal existe dentro de todos os viveram com ele ou que sabem perfeitamente quem ele é
participantes, assim que estes saboreiam sua carne, interiori- têm o direito de juntar-se à malta de lamentação. A dor aumen-
za-se a malta. Nesta disposição, ela pode agora aguardar sua ta na medida da intimidade que se tinha com ele. Os que
reanimação e, principalmente, sua multiplicação. melhor o conheciam o lamentam com maior veemência. O má-
Uma outra maneira de classificação é a distinção entre ximo da lamentação pertence à mãe, de cujo ventre ele saiu.
maltas silenciosas e ruidosas. Basta lembrar quão ruidoso é o Não se usa luto por um forasteiro. Desde a origem, a malta
lamento. Ele não teria sentido se não se fizesse notar com a de lamentação não se forma em torno de qualquer um.
maior veemência possível. Assim que o ruído termina inteira- Esta determinação em relação ao seu objeto caracteriza
mente, assim que deixa de ser captado ou aumentado de algu- sem dúvida todas as maltas. Mas os participantes de uma malta
ma outra forma, a malta de lamentação se separa e cada qual não apenas se conhecem bem entre si, eles também conhecem
continua vivendo por si só. Pela sua própria natureza, a caça sua meta a ser atingida. Quando estão caçando, sabem o que
e a guerra são ruidosas. Se por, uma razão estratégica qualquer estão perseguindo. Quando organizam uma guerra, conhecem
o silêncio pode se tornar necessário durante algum tempo, o muito bem o inimigo. Na lamentação, sua dor é dirigida a um
ponto culminante da ação em contrapartida será ainda mais rui- morto muito conhecido. Nos ritos de multiplicação, sabem exa-
doso. Os latidos dos cães, as exortações dos caçadores que pro- tamente o que se deve multiplicar.
curam aumentar sua excitação e sua sede de sangue pertencem A malta tem uma determinação implacável e feroz. Mas
em todos os lugares aos momentos decisivos da caça. Mas na esta determinação também contém um elemento de familiari-
guerra sempre foram indispensáveis a intensidade do desafio dade. Não se pode negar aos caçadores primitivos uma ternura
e a ameaça do inimigo. Os gritos de matança e o fragor das peculiar em relação à sua presa. Durante a lamentação e du-
batalhas soam na história, e sem o estrondo das explosões a rante a multiplicação, esta intimidade terna é natural. Mas,
guerra também é impensável nos nossos tempos. mesmo sobre o inimigo, às vezes recai um pouco desse interesse
A malta silenciosa é a da esperança. Ela tem paciência. íntimo no momento em que ele já não é mais temido.
Uma paciência que se torna particularmente notória quando a As metas que uma malta determina para si são sempre as
malta se reúne. Ela ocorre sempre onde a meta da malta não mesmas. Uma repetitividade que vai até o infinito, própria de
pode ser alcançada por uma intervenção rápida e excitada. todos os processos vitais do homem, caracteriza também suas
Talvez a palavra "silenciosa" seja um pouco equívoca, e a de- maltas. A determinação e a repetição levaram aqui a formações
nominação malta de esperança fosse mais clara. Pois todas as de tremenda constância. É esta constância, o fato de estarem
atividades possíveis como cânticos, esconjuros e sacrifícios po- as maltas sempre dispostas e disponíveis, que possibilita sua

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utilização em civilizações mais complexas. Sempre que se trata mais forte. Caso ela tenha consentido, isto se deve ao fato de
de provocar a rápida aparição de massas, elas são utilizadas ter sido enganada por ele. A idéia desta superioridade é o mais
constantemente como cristais de massa. insuportável para eles e os obriga a se juntarem contra ele.
Mas também muito do que existe de arcaico na vida das Como animal feroz — ele atacou uma mulher — ele é acos-
nossas culturas modernas se expressa sob a forma de maltas. sado e morto por todos. O assassinato dele lhes parece permi-
A nostalgia por uma existência simples ou natural, por um tido e necessário, proporcionando-lhes uma franca satisfação.
desprendimento das crescentes pressões e coerções do nosso
tempo, tem exatamente este conteúdo: o desejo de uma vida
em maltas isoladas. Caça à raposa na Inglaterra, viagens tran- Maltas nas lendas históricas dos arandas
soceânicas em pequenas embarcações com tripulação reduzida,
retiros espirituais em conventos, expedições a países desconhe- Como se desenha a malta na mente dos aborígines aus-
cidos, até mesmo o sonho de viver com poucas pessoas numa tralianos? Duas lendas ancestrais dos arandas apresentam uma
natureza paradisíaca, onde tudo por assim dizer se multiplica imagem clara a este respeito. A primeira trata de Ungutnika,
por conta própria, sem exigir o mínimo esforço por parte dos célebre canguru dos míticos tempos primordiais. Relata-se o
homens — comum a todas estas situações arcaicas é a idéia seguinte a respeito de suas aventuras com os cães selvagens:
de um número reduzido de pessoas que se conhecem bem entre "Ele ainda não era adulto, era um animal pequeno quan-
si e que participam de um empreendimento claro e preciso, do partiu em peregrinação. Depois de ter viajado umas três
com grande determinação ou delimitação. milhas, mais ou menos, chegou a uma planície aberta onde viu
Ainda hoje podemos encontrar uma forma descarada da uma malta de cães selvagens. Estavam deitados perto de sua
malta em todo ato de justiça de linchamento. A expressão é mãe, que era muito grande. Ele brincou por ali e examinou os
tão descarada como o próprio ato, pois trata-se de uma supres- cães selvagens; neste momento eles o perceberam e começaram
são da justiça. O acusado é considerado indigno dela. Ele deve a dar-lhe caça. Ele saltava tão depressa quanto possível para
sucumbir como um animal, sem as formalidades habituais entre escapar, mas eles o alcançaram numa outra planície. Rasgaram-
os homens. Sua diferença na aparência e no comportamento, lhe o ventre e comeram primeiro seu fígado, depois lhe arran-
o abismo que no sentimento dos assassinos existe entre eles e caram a pele, jogando-a de lado, e lhe arrancaram toda a carne
sua vítima, facilita-lhes tratá-la como uni animal. Quanto mais dos ossos. Assim que terminaram, voltaram a deitar-se outra
ela escapa deles pela fuga, tanto maior é o prazer com que vez.
eles se transformam em malta. Um homem com todas as suas "Mas Ungutnika não estava completamente destruído,
forças, capaz de correr bem, proporciona-lhes a oportunidade uma vez que sua pele e seus ossos ainda restavam. Diante dos
de uma caçada que eles aceitam com prazer. Por sua natureza olhos dos cães, a pele se moveu e se colocou sobre os ossos.
esta caçada não pode ser muito freqüente e é possível que este Ele ergueu-se novamente e fugiu correndo. Os cães o segui-
aspecto a torne ainda mais excitante. As crueldades que os as- ram e o alcançaram desta vez perto de Ulima, uma colina. Uli-
sassinos se permitem em relação à vítima talvez se expliquem ma significa fígado e tem este nome porque desta vez eles não
com o fato de eles não poderem devorar sua presa. Provavel- comeram o seu fígado, preferindo jogá-lo fora; e o seu fígado
mente eles se consideram seres humanos por não fincarem seus se transformou numa colina escura que assinala este lugar. O
dentes na vítima. que já tinha acontecido antes voltou a acontecer e Ungutnika,
A acusação de índole sexual, da qual freqüentemente esta que voltou a ser o que era, correu desta vez até Pulpunja. Esta
malta toma seu ponto de partida, transforma a vítima num palavra designa um ruído peculiar que é emitido por pequenos
ser perigoso. Imagina-se com detalhes o crime real ou suposto. morcegos. Neste lugar, Ungutnika se virou para trás e fez este
A vinculação de um homem negro com uma mulher branca, a ruído para assustar os cães e para zombar deles. Ele foi agar-
imagem da intimidade corporal entre eles sublinham, aos olhos rado outra vez e despedaçado, mas, para assombro dos seus
dos vingadores, a diferença que existe entre os dois. A mulher perseguidores, mais uma vez voltou a ficar inteiro. Ele então
fica cada vez mais branca, ao passo que o homem se torna correu até Undiara com os cães atrás de si. Quando atingiu
cada vez mais negro. Ela é inocente, pois como homem ele é um lugar perto de uma fonte, eles o alcançaram e o comeram.
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Cortaram sua cauda e a enterraram ali, onde em forma de pedra tencem ao mesmo totem, se bem que a um subgrupo diferente.
continua existindo até hoje. Chama-se churinga-cauda-de-can- Os homens perguntam ao caçador: "Você tem lanças gran-
guru; durante as cerimônias de multiplicação ela é desenterra- des?" e ele responde: "Não, apenas pequenas". E o caçador
da, mostrada a todos e limpa com esmero". acrescenta: "E vocês têm lanças grandes?" Eles dizem: "Não,
Quatro vezes o canguru é caçado pela malta de cães sel- a penas pequenas". Aí o caçador diz: "Coloquem suas lanças
vagens. É morto, despedaçado e devorado. Nas três primeiras no chão". E eles respondem: "Bem, mas coloque as suas tam-
vezes sua pele e seus ossos permanecem intatos. Enquanto bém no chão". As lanças são jogadas no chão e todos os ho-
estão inteiros, ele pode voltar a se incorporar e seu corpo volta mens, agora unidos, partem contra o animal. O primeiro ca-
a movimentar-se; os cães o caçam outra vez. Portanto, um mes- çador conserva apenas um escudo e a sua churinga — pedra
mo animal é comido quatro vezes. A carne, depois de devora- sagrada — na mão.
da, volta a existir. De um canguru formaram-se quatro, mas "O canguru era muito forte e afastou os homens de si
mesmo assim ele continua sendo sempre o mesmo animal. com golpes. Então todos saltaram sobre o animal e o caçador,
A caçada também é sempre idêntica, modificando-se ape- que ficou por baixo no monte, foi pisoteado até morrer. O can-
nas os locais dos maravilhosos acontecimentos, que ficam para guru também parecia estar morto. Eles enterraram o caçador
sempre assinalados na paisagem. O morto não cede; volta a com seu escudo e sua churinga e levaram o corpo do animal
viver e caçoa da malta que não pára de se assombrar. Mas a consigo para Undiara. Ele não estava realmente morto, mas
malta também não cede: ela precisa matar a presa, mesmo morreu pouco depois e foi colocado numa caverna. Não foi
quando já foi devorada. A determinação da malta e a repetiti- comido. Lá, onde estava o corpo do animal, formou-se um
vidade de suas ações não poderiam ser concebidas de maneira banco de pedra na caverna e depois de sua morte seu espírito
mais clara ou mais simples. entrou nele. Pouco depois morreram também os homens e os
A multiplicação é atingida aqui por uma espécie de re-res- seus espíritos foram morar num charco situado ao lado. A tra-
surreição. O animal não é adulto e não produziu filhotes; em dição diz que, em épocas posteriores, cangurus em grandes
vez disto, ele quadruplicou a si próprio. Como se vê, a multipli- quantidades foram a esta caverna e penetraram por ali na ter-
cação e a reprodução estão longe de serem coisas idênticas. A ra; também os seus espíritos passaram a morar na pedra."
partir da carne e dos ossos, ele se reincorpora diante dos olhos Neste caso, a caça individual passa a ser a caça de toda
dos seus perseguidores e os incita à caça. a malta. O animal é atacado sem armas. Querem sepultá-lo de-
A cauda que é sepultada permanece como pedra; é mo- baixo de um monte de homens. O peso dos caçadores unidos
numento e testemunho deste milagre. A força desta ressurrei- conseguirá sufocá-lo. O animal é muito forte e dá golpes em
ção quádrupla está agora nela, e quando ela é bem tratada, torno de si; a situação não é fácil para os homens que têm
como ocorre durante as cerimônias, sempre volta a ajudar na dificuldades em dominá-lo. No ardor do combate, o primeiro
multiplicação. caçador fica embaixo do monte e, no lugar do canguru, é pi-
A segunda lenda principia com a caça que é feita por um soteado até a morte. Ele é enterrado com seu escudo e com a
único homem contra um canguru grande e muito forte. Ele o churinga sagrada.
viu e quer matá-lo e comê-lo. Segue-o por longas distâncias A história de uma malta de caça que sai à procura de um
numa caçada demorada; eles acampam em muitos lugares, man- determinado animal e, devido a um erro, em vez do animal
tendo sempre uma determinada distância entre si. Em todos acaba matando o mais proeminente dos caçadores, está difun-
os locais por onde o animal passa, deixa marcas na paisagem. dida pela Terra toda. Ela termina com a lamentação pelo mor-
Num determinado local ele ouve um ruído e se coloca de pé to: a malta de caça passa a ser uma malta de lamentação. Esta
nas patas traseiras; uma pedra de 8 m de altura ainda hoje o transformação forma o núcleo de muitas religiões importantes
representa desta forma nesse lugar. Mais tarde ele escava o e amplamente difundidas. Também neste caso, nesta lenda dos
chão à procura de água; também esta nascente continua exis- arandas, fala-se a respeito do enterro da vítima. Escudo e chu-
tindo ainda hoje. ringa são enterrados com ela e a simples menção da churinga,
Mas por fim o animal se sente extremamente cansado e que é considerada sagrada, dá ao acontecimento um certo toque
se deita. O caçador encontra um grupo de homens que per- solene.
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O próprio animal, que somente morre depois, é sepul- joga sobre um moribundo, apertando-se contra ele por todos
tado em outro lugar. Sua caverna se transforma num san- os lados. Esta situação, que já mencionamos, é particularmente
tuário para os cangurus. No decorrer dos períodos posterio- interessante: ela representa uma transição para monte de mo-
res, grande número de cangurus vão até a pedra e penetram ribundos e de mortos de que ainda falaremos várias vezes
nela. Undiara, este é o nome do local, acaba se transforman- neste livro. Alguns casos destes densos montes australianos
do num local sagrado, onde os membros do totem-canguru serão tratados no próximo capítulo. Aqui basta mencionar que
celebram suas cerimônias. Estas servem para a multiplicação
o monte denso de vivos, formado intencional e violentamente,
deste animal e, desde que sejam realizadas com perfeição, não é menos importante do que o monte de mortos. Se este
haverá sempre cangurus em número sufícente pelos arredores. último parece ser mais familiar para nós, isto se deve apenas
Vale a pena observar como nesta lenda foram apresen- ao fato de ele ter assumido dimensões colossais no decorrer
tados dois acontecimentos básicos religiosos inteiramente da história. Normalmente se diria que os homens estão reuni-
distintos entre si. O primeiro contém, como já foi dito, a dos em grande número apenas depois de mortos. Mas o monte
transformação da malta de caça em malta de lamentação; o de vivos nos é igualmente conhecido: em seu núcleo, a massa
segundo, que ocorre na caverna, representa a transformação não é outra coisa.
da malta de caça em malta de multiplicação. Para os australia-
nos, o segundo acontecimento tem um significado muito maior,
colocando-se no centro do seu culto. Formações de homens entre os arandas
O fato de eles aparecerem um ao lado do outro depõe a
favor de uma tese fundamental deste ensaio. Cada uma das As duas lendas ancestrais que foram mencionadas acima estão
quatro espécies básicas de malta existe desde o princípio e contidas no livro que Spencer e Gillen escreveram a respeito
em todos os lugares onde haja homens. Assim são sempre pos- da tribo dos arandas (que eles preferem chamar de "aruntas").
síveis as transformações de um em outro tipo de malta. De- A maior parte desta obra famosa é dedicada à descrição de
pendendo da ênfase dada a esta ou àquela transformação, ori- suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia dar uma idéia
ginam-se formas religiosas básicas. Como os dois grupos mais exagerada de sua multiplicidade. Especialmente notória é a
importantes distingo as religiões de lamentação e as religiões riqueza de formações físicas realizadas pelos participantes no
de multiplicação. Porém também existem, conforme veremos decorrer das cerimônias. Em parte são formações que conhe-
mais adiante, religiões de caça e de guerra. cemos intimamente, uma vez que mantiveram seu significado
Um vestígio de acontecimentos bélicos está presente até até nossos dias; em parte porém são formações que nos causam
mesmo na lenda mencionada. A conversa a respeito das lanças, espanto devido à sua estranheza extrema. As mais importantes
mantida entre o primeiro caçador e o grupo de homens que serão mencionadas rapidamente,
ele encontra no caminho, refere-se às possibilidades bélicas. Em todos os empreendimentos secretos que se realizam
Quando eles jogam no chão todas as lanças que possuem, em silêncio, é freqüente a fila indiana. Em fila indiana partem
estão renunciando a um combate. Somente depois disto é que os homens para buscar suas churingas sagradas, que são es-
atacam unidos o canguru. condidas em cavernas ou em outros lugares. Eles caminham
Aqui encontramos o segundo ponto que me parece ser cerca de uma hora ou mais antes de alcançar sua meta; os
digno de nota nesta lenda: o monte de homens que se lança jovens que são levados nestas expedições são proibidos de for-
sobre o canguru. Uma massa coesa de corpos humanos deve mular perguntas. Se o homem mais idoso, sob cujas ordens
sufocar o animal. Entre os australianos fala-se freqüentemente eles estão, lhes quer explicar qualquer coisa — digamos a
a respeito de tais montes de corpos humanos. Encontramos respeito de determinadas formações na paisagem relacionadas
estes montes constantemente em suas cerimônias. Num deter- C0111 as lendas dos ancestrais — ele o faz usando uma lingua-
minado momento, nas cerimônias de circuncisão dos jovens, o gem mímica.
candidato se deita no chão e um certo número de homens se Nas cerimônias propriamente ditas aparece habitualmente
deita sobre ele, de maneira que ele se vê obrigado a suportar um número multo reduzido de intérpretes, disfarçados de an-
o peso de todos. Em algumas tribos um grupo de homens se cestrais de um totem que atua por meio deles. Geralmente
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são dois ou três, às vezes apenas um. Os jovens formam um quentes, mas naturalmente não uns sobre os outros. As provas
círculo, dançando em torno deles, emitindo determinados gri- de fogo se desenrolam de maneiras muito variadas; uma delas
tos. Este rodar em círculo é uma formação muito freqüente, é realizada da seguinte maneira: os jovens se dirigem ao outro
que sempre volta a ser mencionada. lado do leito do rio, onde as mulheres os esperam em dois
Numa outra ocasião, durante as cerimônias do engwura, grupos. As mulheres avançam na direção deles e os cobrem
que são o acontecimento mais importante e solene na vida da com uma chuva de ramos em chamas. Em outra ocasião, a
tribo, os jovens se deitam enfileirados sobre tini montículo longa fila dos jovens se coloca diante da fila formada pelas
alongado e permanecem assim ligados ao chão, em silêncio, mulheres e pelas crianças. As mulheres dançam e os homens
durante horas a fio. Este estender-se em fileira no chão repe- lançam com toda a força que lhes é possível ramos incendiados
te-se freqüentemente e numa ocasião chegou a ter uma duração por cima de suas cabeças.
de oito horas, das nove da noite até as cinco da manhã. Numa cerimônia de circuncisão, seis homens que se dei-
Impressionante também é uma outra formação muito mais tam juntos no chão formam uma mesa. O noviço se deita
densa. Os homens chegam bem perto uns dos outros, formando sobre eles e é operado nesse local. O "deitar-se sobre o no-
um monte; os velhos ficam de pé no centro, os jovens na parte viço", que faz parte da mesma cerimônia, já foi mencionado
externa. Esta figura em forma de disco, na qual todos os par- no capítulo anterior.
ticipantes estão estreitamente comprimidos uns contra os Se procurarmos um sentido para estas formações, talvez
outros, gira durante umas duas horas numa dança circular, du- seja possível dizer o seguinte:
rante a qual se canta o tempo todo. Depois todos se sentam A fila indiana simboliza a migração. Seu significado na
com a mesma formação, de maneira que o monte continua tão tradição da tribo é fundamental. Freqüentemente se diz que
compacto como quando estavam de pé, e continuam cantando os antepassados migraram para baixo da terra. É como se,
durante mais umas duas horas. andando um atrás do outro, os jovens tivessem de pisar nas
As vezes os homens formam duas fileiras, uma diante da pegadas dos seus ancestrais. O tipo de sua movimentação e
outra, e cantam. Na cerimônia decisiva com a qual se conclui seu silêncio contêm o respeito em relação aos caminhos e às
a parte ritual do engwura, os jovens se formam em quadrilha e metas sagradas.
passam em companhia dos anciãos para o outro lado do leito O rodar ou dançar em círculo aparece como a proteção
do rio, onde as mulheres e as crianças esperam por eles. das representações que se desenrolam no seu centro. Elas são
Esta cerimônia é muito rica em detalhes; em nossa enu- defendidas de tudo o que não pertence ao círculo; elas são
meração, à qual importam apenas as formações, devemos aplaudidas, homenageadas e desta forma toma-se posse delas.
mencionar um monte no chão, que se forma com todos os O deitar-se numa fileira poderia ser símbolo da morte.
homens juntos. Os três anciãos que carregam um objeto espe- Os noviços permanecem neste estado absolutamente mudos, e
cialmente sagrado representando a bolsa na qual estavam con- durante muitas horas ninguém se move. Depois, repentina-
tidas as crianças dos tempos primordiais, caem no chão e mente, eles levantam com um salto e nascem outra vez para
cobrem com seus corpos esse objeto, que as mulheres e as a vida.
crianças estão proibidas de ver. Depois todos os demais ho- As duas fileiras colocadas frente a frente, que atuam numa
mens, mas principalmente os jovens para os quais a cerimônia e noutra direção, expressam a divisão em duas maltas inimi-
é realizada, se lançam sobre os três anciãos e todos jazem gas, onde o outro sexo substitui a malta inimiga. A quadrilha
juntos num desordenado monte no chão. Nada se distingue parece ser uma formação destinada à proteção por todos os
mais no grupo e apenas as cabeças dos três anciãos sobressaem lados; pressupõe-se que os homens estejam se movimentando
do monte. Durante algum tempo eles permanecem assim esten- num ambiente hostil. Esta formação é bastante conhecida na
didos e depois todos procuram se levantar e se individualizar história que está mais próxima de nós todos.
outra vez. A formação de tais montes no solo também ocorre Restam agora apenas as formações mais densas: o disco
em outras ocasiões, mas esta é a mais importante que os obser- dançante que está repleto de homens e o monte enredado no
vadores mencionam. solo. O disco, justamente pelo seu movimento, é o caso extre-
Nas provas de fogo, os jovens se deitam sobre as ramas mo de uma massa rítmica: uma massa que é tão densa e fechada
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quanto possível, dentro da qual não existe espaço algum, a
não ser para quem lhe pertença.
O monte no chão protege um segredo precioso. Indica
que se quer cobrir e reter algo com toda a força. Num monte
deste tipo também se envolve um moribundo e é desta ma-
neira que, imediatamente antes de sua morte, se rende a ele
uma última homenagem. É tão importante para os seus iguais
que, com ele no meio, este monte relembra o dos mortos.
MALTA E RELIGIÃO

136
A inversão das maltas

Todas as formas de malta que foram descritas tendem a se


transformar umas nas outras. Por mais constante que a malta
seja em sua repetição, por pouco que se tenha modificado
quando reaparece, em seu decurso individual e único, ela sem-
pre tem algo de flutuante.
Já o simples fato de ter alcançado a meta que persegue
traz como conseqüência uma mudança inevitável em sua cons-
tituição. A caça em conjunto, tendo conseguido uma presa,
provoca uma partilha. Vitórias, excetuando-se os casos "puros"
em que se trata do extermínio do inimigo, sempre degeneram
em saques. O lamento conclui com a remoção do morto; assim
que ele é colocado no lugar onde se deseja, assim que as pes-
soas se sentem relativamente seguras em relação a ele, a exci-
tação da malta cede e ela se desagrega. Mas a relação com o
morto não está completamente esgotada. Supõe-se que ele
continue vivendo em alguma outra parte; para a obtenção de
ajuda ou de conselhos é possível que volte a ser citado entre
os vivos. Na evocação do seu morto a malta de lamentação,
por assim dizer, volta a se reconstituir, mas o objetivo do seu
comportamento é agora oposto ao primitivo. De uma maneira
qualquer, não importa qual, o morto que tinha sido afastado
é trazido de volta entre os seus. A dança dos búfalos executada
pelos mandans encerra-se com a chegada dos búfalos. A malta
de multiplicação que foi bem-sucedida passa a ser uma festa de
partilha.
Cada espécie de malta, como se vê, tem um negativo no
qual acaba se transformando. Mas além da transformação neste
negativo, que parece ser algo natural, existe um movimento
de índole completamente diferente: a transformação de dife-
rentes maltas, umas nas outras.
Neste sentido lembramos a lenda ancestral dos arandas.
Um forte canguru é pisoteado por muitos homens juntos até
morrer. Neste episódio o primeiro caçador perece vitimado
pelos seus próprios camaradas e é ritualmente enterrado por
eles: a malta de caça se converte numa malta de lamentação.
Do sentido da comunhão já se falou de maneira exaustiva: a
malta de caça se transforma numa de multiplicação. Uma outra
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transformação se situa no começo da guerra: um homem é religião de um povo africano. Não se sabe o que é mais admi-
morto, os membros de sua tribo o lamentam; logo em seguida rável em seu trabalho: se a clareza de suas observações, ou
formam uma tropa e partem para vingar seu morto na pessoa se a sinceridade e a imparcialidade do seu pensamento. A
do inimigo. A malta de lamentação passa a ser urna malta de melhor forma de agradecer-lhe é seguir seu trabalho ao pé da
guerra. letra.
A inversão das maltas é um processo que chama a aten- Os leles, povo de aproximadamente vinte mil pessoas,
ção. Ele se encontra por toda parte e pode ser investigado vivem no Congo, nas proximidades do rio Kasai. Suas aldeias
nas mais diversas esferas da atividade humana. Sem um co- se encontram estabelecidas na savana, em quadrados compac-
nhecimento preciso deste processo não existe fenômeno social, tos de vinte a cem choças, nunca muito distantes da selva.
seja qual for sua natureza, que possa ser completamente com- Seu alimento principal é o milho que cultivam na selva; todos
preendido. os anos eles abrem uma nova clareira para o milho e nunca
Algumas destas inversões se isolaram de contextos mais esperam mais do que uma colheita. Na mesma clareira crescem
amplos e se tornaram estáveis. Elas alcançaram seu sentido então palmeiras de ráfia, das quais se aproveita quase tudo.
especial e se converteram em rituais. São representadas sempre Das folhas novas obtém-se um material que os homens tecem
de maneira exatamente idêntica. São o conteúdo propriamente para fabricar esteiras de ráfia. Ao contrário do que ocorre
dito, o núcleo de qualquer crença significativa. Pela dinâmica com seus vizinhos, todos os homens leles sabem tecer. Peda-
das maltas e pela maneira especial como elas se interpenetram, ços quadrados de tecido de ráfia são utilizados como uma
explica-se a ascensão das religiões universais. espécie de moeda. Desta palmeira se obtém também um vinho
Não é possível apresentar aqui uma interpretação exaus- não-fermentado e bastante apreciado. Bananeiras e palmeiras,
tiva das religiões. Este será o assunto de outro trabalho. Em apesar de crescerem melhor na selva, também são plantadas
seguida examinaremos algumas formações sociais ou religiosas ao redor da aldeia; amendoins são cultivados apenas nesta zona.
em relação às maltas que nelas predominam. Veremos que Todos os demais bens apreciados são provenientes da selva:
existem religiões de caça e de guerra, de multiplicação e de água, lenha, sal, milho, mandioca, azeite, peixe e carne. Tanto
lamentação. Entre os leles do Congo Belga, a caça, apesar da os homens como as mulheres têm muitas tarefas a serem exe-
sua pouca produtividade, encontra-se no centro da vida social. cutadas na selva. Mas a cada três dias as mulheres são excluí-
Os jívaros do Equador vivem inteiramente para a guerra. Os das da selva. Suas provisões em alimentos, lenha e água devem
índios pueblos do sul dos Estados Unidos distinguem-se pela ser armazenadas no dia anterior. Entre os leles a selva é con-
escassa atividade de caça e de guerra e por uma surpreendente siderada como esfera do homem.
repressão do lamento: eles vivem inteiramente para uma mul- "O prestígio da selva é incomensurável. Os leles se refe-
tiplicação pacífica. rem a ela com um entusiasmo quase poético ... Freqüente-
Para a compreensão das religiões de lamentação, que em mente acentuam o contraste entre a selva e a aldeia. Durante
tempos históricos recobriram e reuniram a Terra, estudaremos o calor do dia, quando na aldeia poeirenta reina uma tempe-
o Cristianismo e uma variedade do Islão. Uma descrição do ratura desagradável, eles procuram com prazer refúgio na
muharram dos xiitas servirá para confirmar a posição central sombra fresca da selva. O trabalho aqui os fascina e lhes pro-
do lamento neste tipo de fé. O ultimo capítulo é dedicado à porciona alegria; o trabalho em outros lugares é uma calami-
descida do fogo sagrado da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro dade. 'O tempo', dizem eles, 'passa lentamente na aldeia, mas
de Jerusalém. É a festa da ressurreição na qual desemboca a depressa na selva.' Os homens se vangloriam de conseguir
lamentação cristã, sua justificação e seu sentido, trabalhar durante o dia todo na selva sem sentir fome, ao passo
que na aldeia estão sempre pensando em comer."
Mas a selva também é um lugar de perigo. Quem está
Selva e caça entre os leles de Kasai de luto ou quem teve um pesadelo não deve pisar nela. O
pesadelo é interpretado como uma advertência. Quem for à
Em um novo e profundo estudo, a antropóloga inglesa Mary selva no dia seguinte sofrerá alguma desgraça. Uma árvore lhe
Douglas conseguiu encontrar a unidade real entre a vida e a cairá sobre a cabeça, ele se cortará com uma faca, cairá do
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alto de uma palmeira. Um homem que não dá atenção à adver- podem causar muitas calamidades a uma aldeia. Os porcos
tência coloca em perigo apenas sua própria pessoa. Mas uma selvagens são considerados como os animais mais carregados
mulher que entre na selva em momentos proibidos põe em de poder supra-sensível, pois andam sempre pelos arroios e
perigo a aldeia inteira. pelos mananciais, locais prediletos dos espíritos. O javali
"Para o grande prestígio da selva parecem existir três é considerado como o cão dos espíritos; ele vive com eles e
motivos bem definidos: ela é a fonte de todas as coisas boas lhes obedece como um cachorro obedece ao caçador. Quando
e necessárias; dos alimentos, da bebida, da habitação e das um javali desobedece ao seu espírito é castigado por este, que
vestes; ela é a fonte dos medicamentos sagrados; e em terceiro. faz com que ele seja morto durante uma caçada por um homem,
lugar é o local da caça, que aos olhos deles representa a ativi- ao qual concede assim uma espécie de recompensa.
dade mais significativa de todas." Os espíritos exigem muitas coisas dos homens, principal-
Os leles têm uma verdadeira avidez pela carne. Consi- mente que reine paz na aldeia. "O sinal mais evidente de que
dera-se grave ofensa oferecer a um hóspede uma refeição de tudo está correndo bem na aldeia é uma caçada feliz. A pe-
alimentos apenas vegetais. Nas suas conversas a respeito de quena quantidade de carne que cada homem, cada mulher e
acontecimentos sociais, eles costumam deter-se com agrado na cada criança recebe quando se abate um porco selvagem não
quantidade e no tipo das carnes oferecidas. No entanto, mesmo é suficiente para explicar a alegria que continua se manifes-
assim, eles não criam cabras nem porcos como seus vizinhos tando semanas mais tarde nas conversas a respeito do aconte-
do sul. A mera idéia de comer animais que tenham crescido cimento. A caça é uma espécie de barômetro espiritual, cujos
na aldeia lhes é repugnante. Um bom alimento, segundo dizem, altos e baixos são cuidadosamente observados pela aldeia
deve ser proveniente da selva, onde é limpo e sadio, como o inteira."
javali e o antílope. Ratos e cães são impuros, haura; para de- Chama a atenção o fato de que parir crianças e caçar são
signá-los usam uma palavra que significa pus e excremento. atividades designadas sempre juntas, como se fossem funções
consideram igualmente impuros os porcos e as cabras, justa- análogas da mulher e do homem. "A aldeia está 'estragada' ",
mente por terem sido criados na aldeia. podem eles dizer, "a caça não teve sucesso, as mulheres estão
Sua avidez em relação à carne nunca os leva a comer estéreis, tudo está morrendo." Quando os leles estão satis-
alguma que não tenha sido conseguida na selva ou mediante feitos com o estado das coisas, eles dizem: "Nossa aldeia agora
a caça. Eles conhecem muito bem a criação de cães e, se qui- é boa e rica. Matamos três javalis, quatro mulheres concebe-
sessem, não lhes custaria muito manter algumas cabras. ram, todos estamos sadios e vigorosos".
"A separação das mulheres e dos homens, a divisão entre A atividade que goza do maior prestígio é a caça conjunta.
selva e aldeia, a dependência da aldeia em relação à selva são Esta, e não a caça privada de cada um, é que conta. "Homens
os elementos mais importantes e sempre repetidos em seu armados com arcos e flechas se colocam em círculo em torno
ritual." de uma parte da selva. Batedores com seus cães levantam a
A savana, que é árida e estéril, não tem prestígio; ela é caça. Jovens e velhos, que mal estão em condições de cami-
entregue inteiramente às mulheres e é considerada como uma nhar, procuram incorporar-se à caça. Os mais estimados são
esfera neutra entre a selva e a aldeia. os donos de cachorros; penosamente eles abrem caminho pela
Os leles acreditam num Deus que criou os homens e os vegetação, enquanto incitam e dirigem seus animais com gritos.
animais, os rios e todas as coisas. Também acreditam em espí- Os animais de caça, assustados, se precipitam contra as flechas
ritos aos quais temem e dos quais falam com muita prudência dos caçadores que estão à espera deles. Este parece ser o mé-
e reserva. Os espíritos nunca foram homens e nunca foram todo de caça mais eficiente na floresta espessa. Sua finalidade
vistos por homens. Quem visse um espírito ficaria cego e é surpreender os animais; os homens atiram rápido e a dis-
morreria completamente coberto de úlceras. Os espíritos vivem tâncias muito curtas.
nos locais mais profundos da selva, principalmente nos ma- "É assombrosa, num povo que tanto se orgulha de sua
nanciais das correntes de água. Eles dormem de dia e vagueiam caça, a carência generalizada de habilidades individuais. Um
à noite. Não morrem e jamais ficam doentes. Deles depende a homem que penetra na selva sempre leva consigo arco e flechas
sorte dos homens na caça e a fertilidade das mulheres. Eles para qualquer eventualidade, mas ele se utiliza de suas armas
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apenas contra pássaros ou esquilos, e jamais lhe ocorreria a é dado aos genitores, a paleta aos homens que carregaram o
possibilidade de atacar sozinho algum animal de maior porte. animal até a aldeia, o pescoço aos proprietários dos cães, o lom-
Ignoram todas as técnicas especializadas do caçador individual. bo, um quarto traseiro e um quarto dianteiro ao homem que
Não sabem espreitar animais nem imitar seus gritos; iscas e abateu o animal, e o estômago ao grupo dos ferreiros da aldeia
camuflagem são truques desconhecidos por eles. Poucas vezes que fabricaram as flechas usadas na caça.
alguém se embrenha sozinho nas profundezas da selva. Todos A articulação da sociedade lele se consolida, por assim
os seus interesses se concentram na caça em conjunto. É possível dizer, após cada caçada. Mas a excitação da malta de caça se
que um homem encontre na selva toda uma manada de porcos ampliou até converter-se num sentimento que apóia toda a
selvagens que esteja numa zona pantanosa; arrastando-se, ele comunidade. Podemos, sem contradizer a autora, falar a res-
pode aproximar-se tanto que consegue ouvir-lhes a respiração. peito de uma religião de caça, no sentido mais próprio da pa-
Porém, sem arriscar um único disparo, afasta-se novamente na lavra. De maneira tão convincente, excluindo-se todas as dúvi-
ponta dos pés e vai procurar os demais moradores da aldeia. das, nunca se tinha descrito uma religião de caça. Mas obtém-
"Na savana se caça apenas uma vez por ano, na época da se também uma valiosa idéia a respeito da transformação da
seca, quando se pode atear fogo ao pasto. Várias aldeias se selva em símbolo de massa. Tudo o que se considera de valor
unem então para cercar a paisagem em chamas. Os meninos está contido nesta selva, e o que é mais valioso é retirado em
contam com a possibilidade de conseguir assim suas primeiras conjunto de dentro dela. Os animais, que são o objeto da
presas. A carnificina, dizem, é atroz. É a única ocasião na qual malta de caça, moram dentro dela, mas também os temidos
a unidade de caça não é formada apenas pela população mas- espíritos que concedem seus animais aos homens.
culina de uma única aldeia; na caça na selva participam sempre
apenas os homens de uma mesma aldeia. Em última instância,
a aldeia forma uma unidade política e ritual por ser uma uni- Os despojos de guerra entre os jívaros
dade de caça. Não pode surpreender que os leles considerem
sua cultura em primeiro lugar como uma cultura de caça." O povo mais guerreiro da América do Sul são, atualmente, os
De importância especial é a partilha das presas. Ela está jívaros do Equador. É muito revelador examinar seus costu-
rigidamente regulamentada, de um modo que enfatiza o sen- mes e suas organizações em relação à guerra e aos despojos.
tido religioso da caça. Existem três sociedades culturais entre Neste caso não se pode falar de um excesso populacional.
os leles; cada uma tem direito a uma alimentação muito Eles não vão à guerra com a finalidade de conquistar novas
determinada, que é proibida aos que não pertençam a ela. A terras. Seu espaço vital é antes grande demais do que pequeno
primeira sociedade cultural é a dos genitores e é formada por demais. Num território com mais de 60.000 km2 vivem, talvez,
todos os homens que tenham gerado um menino. A eles cor- uns vinte mil jívaros. Eles também não conhecem aglomerados
responde o peito de todas as presas de caça e também a carne maiores; nem mesmo as aldeias gozam de prestígio entre eles.
de todos os animais jovens. Entre os genitores existem alguns Cada família ampliada vive numa casa própria, sob o comando
que geraram um menino e uma menina; deste grupo são esco- do homem mais idoso, que é o chefe supremo; a família mais
lhidos os membros da segunda sociedade, ainda mais exclusiva: próxima pode encontrar-se a alguns quilômetros de distância.
a dos homens-pangolim. Eles recebem esta denominação por- Não existe nenhuma organização política que os vincule entre
que somente eles têm direito à carne do pangolim, animal des- si. Na paz, cada um dos chefes de família é a instância suprema,
dentado semelhante ao tatu. A terceira sociedade é a dos e ninguém pode lhe ordenar coisa alguma. Se os jívaros não se
adivinhos. Estes recebem a cabeça e as entranhas do porco procurassem com intenções hostis nos imensos espaços de suas
selvagem. matas virgens, um grupo talvez jamais viesse a se encontrar
Nenhum animal de maior porte pode ser morto sem que — com outro.
juntamente com sua partilha — se transforme em objeto de um O laço que os mantém unidos é a vingança de sangue ou,
ato religioso. O mais importante de todos os animais é o porco propriamente, a morte. Para eles não existe morte natural;
selvagem, e sua divisão é realizada da seguinte maneira: depois quando um homem morre é porque um inimigo o enfeitiçou
de os adivinhos terem recebido a cabeça e as entranhas, o peito à distância. É dever dos seus parentes descobrir quem é o res-
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ponsável pela morte e vingar esta na pessoa do feiticeiro. Toda essência. É impossível abordar aqui todos os detalhes que
morte, portanto, é um assassinato e todo assassinato somente Karsten, no seu trabalho intitulado Vingança de sangue, guerra
pode ser vingado por um contra-assassinato. Porém, ao passo e festas triunfais entre os jívaros, descreveu com muita ampli-
que o feitiço de perigo mortal do inimigo é eficiente a longas tude. Será bastante mencionar uma de suas danças mais impor-
distâncias, a vingança física ou de sangue, que se tem a obri- tantes, na qual se evocam com extrema veemência, um depois
gação de executar, somente é possível pela procura. do outro, todos os animais que se caçam, e depois disto se
Os jívaros se procuram portanto uns aos outros para vin- fala do ato sexual do próprio homem, que serve para a mul-
gar-se e, neste sentido, a vingança de sangue pode ser conside- tiplicação do grupo.
rada como o seu laço social. Esta dança é a introdução propriamente dita da grande
A família que vive junta numa casa forma uma unidade festa. Homens e mulheres se colocam em círculo ao redor da
muito densa. O que um homem empreende, ele o empreende coluna central da-casa; dão-se as mãos e se movimentam len-
na companhia dos demais homens da casa. Para as expedições tamente em círculo, enquanto são gritados, como evocação, os
maiores, que são mais perigosas, os homens de várias casas nomes de todos os animais cuja carne é saboreada com prazer.
relativamente próximas se associam. Somente para realizar Em seguida acrescenta-se o nome de alguns objetos de que o
uma campanha de vingança séria, é que elegem um chefe índio necessita para seu uso doméstico e que são fabricados
supremo, um homem experiente, geralmente mais idoso, ao por ele mesmo. Após cada um destes nomes, exclama-se com
qual se submetem voluntariamente durante o tempo necessário voz alta e de forma violenta: "hei!"
para realizar a empresa pretendida.
A dança principia com assobios agudos. A evocação em-
Desta forma, a malta de guerra é propriamente a unidade
pregada é a seguinte:
dinâmica dos jívaros. Ao lado da unidade estática da família,
é a única que possui importância. Em torno da malta de guerra
formam-se todas as suas festas. Eles se reúnem uma semana
Hei, hei, hei!
antes de partir e voltam a se reunir numa série de grandes
O macaco barulhento, hei!
festas mais tarde, depois de voltarem triunfantes da expedição.
O vermelho, hei!
As expedições de guerra servem exclusivamente para a O macaco pardo, hei!
destruição. Todos os inimigos são mortos, excetuando-se algu-
O macaco negro, hei!
mas mulheres jovens, e talvez algumas crianças que são ado- O macaco capuchinho, hei!
tadas pela família. A propriedade do inimigo, que geralmente
O macaco cinzento, hei!
é escassa, seus animais domésticos, suas plantações e sua casa
O porco selvagem, hei!
são destruídos. A única coisa que se tem como objetivo é a
O papagaio verde, hei!
cabeça cortada do inimigo. Por esta, entretanto, tem-se uma
verdadeira paixão, e a meta suprema de todo guerreiro con- O de rabo grande, hei!
siste em regressar a casa com pelo menos uma cabeça. O porco caseiro, hei!
A cabeça é preparada de maneira especial, e é reduzida O gordo, hei!
ao tamanho aproximado de uma laranja. Passa então a ser Roupa de fêmea, hei!
chamada tsantsa. O proprietário de uma cabeça adquire, gra- Faixa, hei!
ças a ela, uma consideração especial. Depois de transcorrido Cesto, hei!
um certo tempo, um ou dois anos talvez, celebra-se uma gran-
de festa, no centro da qual está a cabeça devidamente prepa- Esta evocação perdura durante cerca de uma hora; os
rada. Para esta festa são convidados todos os amigos; come-se, dançarinos se movimentam ora para a direita, ora para a es-
bebe-se e dança-se muito; tudo o que ocorre já foi estabelecido querda. Cada vez que eles se detêm para mudar de direção,
cerimonialmente. Trata-se de uma festa de caráter obviamente emitem assobios estridentes e gritam "chi, chi, chi", como se
religioso, e uma observação atenta mostra que o desejo de com este grito quisessem manter a continuidade da evocação.
multiplicação e os meios de consegui-la constituem sua própria Parte do rito destina-se às mulheres e à sua fecundidade:
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Hei, hei, hei! todo está a cargo de uma malta de multiplicação. A malta de
Fêmea, hei! Fêmea, hei! guerra, quando teve sorte, desemboca finalmente na malta de
Coito, hei! multiplicação da festa, e a inversão de um tipo de malta em
Que a tsantsa nos conceda o coito! outro deve ser considerada como a dinâmica própria da reli-
Acasalar, hei! Acasalar, hei! gião dos jívaros.
Fêmea, hei! Fêmea, hei!
Que seja de verdade, hei!
Nós o fazemos assim, hei! As danças da chuva dos índios pueblos
Que seja bonito, hei!
Basta, hei! São danças de multiplicação, cuja finalidade é provocar o apa-
recimento da chuva. De alguma forma elas fazem a chuva
brotar a partir do solo. O pisar dos pés é como o cair das
No centro deste rito e de todos os demais atos da festa gotas. Se a chuva começa a cair durante a representação, eles
está tsantsa, a cabeça do inimigo conquistada e transformada continuam dançando nela. Um grupo de cerca de quarenta
em cabeça reduzida. Seu espírito sempre se mantém próximo homens se transforma em chuva por intermédio de movimentos
à cabeça, sendo altamente perigoso. Procura-se conquistá-lo de rítmicos.
todas as maneiras possíveis. Assim que se consegue dominar A chuva sempre foi o símbolo de massa mais importante
este espírito, ele pode ser de grande utilidade. Garante que dos índios pueblos. Ela sempre foi significativa também para
todos os porcos e galinhas que se possuem se multipliquem; os antepassados que podem ter vivido em outros lugares. Mas
graças a ele multiplicam-se também os tubérculos da mandioca. desde que eles passaram a habitar suas áridas mesetas, a impor-
Ele traz toda a prosperidade que se possa desejar em forma tância da chuva aumentou tanto que determina desde a base
de multiplicação. Mas não é fácil escravizá-lo completamente. a natureza de sua fé. O milho do qual se alimentam e a chuva
A princípio ele ainda está repleto de desejos de vingança, e é sem a qual o milho não cresce estão no núcleo de todas as
inimaginável tudo o que pode causar de ruim. Mas a quanti- suas cerimônias. Os numerosos meios mágicos, dos quais eles
dade de ritos e de observâncias dos quais se lança mão para se servem para conseguir a chuva, são resumidos e intensifica-
dominá-lo é surpreendente. A festa, que dura vários dias, é dos nas danças da chuva.
encerrada quando se consegue que a cabeça e o espírito que É preciso enfatizar que estas danças nada têm de selva-
lhe corresponde se coloquem inteiramente sob o domínio do gem; elas estão relacionadas com a própria natureza da chuva.
proprietário. Como a nuvem, na qual ela se aproxima, ela é uma unidade.
Se considerarmos a tsantsa do ponto de vista dos nossos Ela está alta e distante, branca e macia, e quando se apro-
costumes habituais de guerra, podemos dizer que ela ocupa o xima desperta sentimentos ternos nos homens. Mas assim
lugar daquilo que nós chamamos despojos. Vai-se à guerra que ela se descarrega também se desintegra; em gotas isoladas
para obter a cabeça; ela é o único despojo. No entanto, por ela chega aos homens e ao solo que a absorve. A dança, cuja
menor que seja este despojo, principalmente depois que foi finalidade é atrair a chuva por transformação nela, representa
reduzido ao tamanho de uma laranja, ele contém tudo o que também a fuga e a desintegração de uma massa, mais ainda
possa ser de importância. Esta cabeça consegue para seu pro- do que a sua formação. Os dançarinos desejam a nuvem, mas
prietário todas as multiplicações que ele possa desejar: a dos ela não deve ficar lá em cima; deve transbordar sobre os
animais e das plantas de que se vive, a dos objetos que se que estão embaixo. A nuvem é uma massa amiga, a tal ponto
fabricam e, finalmente, a das próprias pessoas. É um despojo que chega a ser comparada com os antepassados. Os mortos
terrivelmente concentrado e não basta obtê-lo; é preciso tam- retornam nas nuvens de chuva e trazem consigo as bênçãos.
bém, no decorrer de demoradas cerimônias, esforçar-se para No verão, quando à tarde aparecem nuvens de chuva no céu,
transformá-lo no que se quer que ele seja. Estas ações culmi- eles dizem às crianças: "Vejam, seus avós estão vindo". Com
nam na excitação conjunta da festa, principalmente nas suas isto eles se referem não apenas aos mortos desta família em
numerosas evocações e danças. A festa da tsantsa como um particular, mas de maneira geral a todos os antepassados.
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Mas os sacerdotes, no seu isolamento ritual, permanecem quisermos fazer uma espécie de série causal: antepassados,
sentados durante oito dias, imóveis e recolhidos dentro de si chuva, milho e crianças.
mesmos diante de seus altares, e fazem invocações para atrair Das quatro espécies de malta, duas delas (a malta de caça
a chuva: e a de guerra) desapareceram quase completamente. Existem
apenas alguns vestígios da caça aos coelhos. Existe ainda uma
Onde quer que se encontre vossa morada estável, sociedade de guerreiros, mas sua função é apenas de polícia,
De lá iniciareis o caminho para cá, e para a polícia, no sentido em que a entendemos, existem
Para encher as pequenas nuvens impelidas pelo vento, poucas ocasiões entre os índios pueblos. A malta de lamentação
Vossas finas tiras de nuvens foi restringida de maneira surpreendente. São executadas ape-
Com as águas cheias de vida. nas as cerimônias fúnebres indispensáveis e procura-se esque-
Enviareis, para que conosco permaneça, cer os mortos, como indivíduos, o mais rápido possível. Quatro
A vossa bela chuva que acaricia a terra, dias depois de a morte ter ocorrido, o sacerdote supremo acon-
Aqui em Itiwana, selha que os enlutados não pensem mais no morto. "Ele já
Residência de nossos pais, está morto há quatro anos!" O morte é relegada para o pas-
De nossas mães, sado e a dor é aplacada desta forma. Os índios pueblos não
Dos que antes de nós tiveram vida, têm maltas de lamentação: eles isolam a dor.
Com vossa enorme quantidade de água Resta-lhes apenas, como forma ativa e ricamente elabo-
Chegareis todos juntos. rada, a malta de multiplicação. Toda a ênfase da vida comu-
nitária é transferida para ela. Seria possível dizer que eles
O que se deseja é uma enorme quantidade de água. Mas vivem apenas para esta multiplicação, cujo caráter é exclusi-
esta quantidade, que se acumulou em nuvens, desintegra-se vamente positivo. Aquela cabeça de Jano que se conhece entre
em gotas. A ênfase das danças da chuva é dada à desintegra- tantos outros povos — multiplicação por um lado, diminuição
ção. É uma massa suave que se deseja, não um animal peri- do inimigo por outro — lhes é totalmente desconhecida. Eles
goso que se deve abater, ou um inimigo odioso que é necessário não se interessam pela guerra. A chuva e o milho os predispu-
combater. Ela é comparada à massa dos antepassados, que seram à doçura; sua vida depende inteiramente dos seus pró-
para eles são pacíficos e benevolentes. prios antepassados e das crianças.
A bênção que suas gotas trazem ao solo, leva logo em
seguida a uma outra massa, da qual eles se alimentam: o milho.
Como toda a colheita, ele significa um acúmulo em montes. Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo
É o processo exatamente inverso: a nuvem de chuva se de-
sintegra em gotas; o monte da colheita, por sua vez, é reunido A dinâmica interna (ou de malta) de guerra se apresenta da
com todas as suas espigas ou, melhor ainda, com todos os seus seguinte forma na sua origem: da malta de lamentação em
grãos. torno de um morto forma-se uma malta de guerra para vin-
gá-lo. E da malta de guerra que venceu forma-se a malta de
Com este alimento as pessoas se tornam fortes e as mu- multiplicação do triunfo.
lheres fecundas. A palavra "criança" aparece freqüentemente É o primeiro morto que contagia todos com a sensação
em suas orações. O sacerdote fala dos vivos da tribo como se de ameaça. O significado deste primeiro morto para atiçar
fossem crianças, mas ele também fala de todos os meninos e todas as guerras não pode ser suficientemente enfatizado. Os
meninas que ainda "têm diante de si o caminho da vida para detentores do poder que querem desencadear uma guerra sa-
ser trilhado". Eles são o que nós chamaríamos o futuro da bem muito bem que precisam conseguir ou inventar um pri-
tribo. Ele os vê, numa imagem mais precisa, como todos os meiro morto. Não se trata tanto do seu peso dentro do grupo.
que ainda têm diante de si o caminho da vida. Pode ser alguém que não possua nenhuma influência especial;
As massas essenciais na vida dos índios pueblos são, por- às vezes, é até mesmo um desconhecido. O que importa é a
tanto, os antepassados e as crianças, a chuva e o milho; ou se sua morte e nada mais; é preciso acreditar que o inimigo seja
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responsável por esta morte. Todos os motivos que podem ter se gosta, e cada um receberá sua parte. Isto tanto pode ocorrer
levado à sua morte são ocultados, excetuando-se um só: ele mediante a organização de grandes distribuições entre o povo,
pereceu como membro de um grupo ao qual se pertence. ou mediante a promessa de redução dos impostos, acompanha-
A malta de lamentação, rapidamente estabelecida, atua da de outras regalias. Não são apenas o ouro e os bens que
como cristal de massa; ela, por assim dizer, se abre: todos os fazem parte dos despojos de guerra; há também prisioneiros e
que se sentem ameaçados por esse mesmo motivo se unem. sua grande quantidade torna visível a diminuição do inimigo.
Sua mentalidade transforma-se numa de malta de guerra. Em sociedades que alcançaram um certo grau de civili-
A guerra, que para ser deflagrada se serviu de um ou de zação, as pessoas se contentam com esta exibição dos prisio-
alguns mortos, provoca um grande número de mortes. O neiros inimigos. Outras, que nos parecem mais bárbaras, exi-
lamento por estes outros mortos, quando se consegue o triunfo, gem mais: querem, justamente como congregados, como ele-
tem algo de muito moderado em comparação com o lamento mentos reunidos e já sem a sensação de ameaça imediata,
pelo primeiro morto. A vitória, que é compreendida como uma viver a diminuição do inimigo. Chega-se desta forma à exe-
diminuição decisiva, quando não como o extermínio dos inimi- cução pública de prisioneiros, que faz parte das festas de vitória
gos, reduz a importância do lamento pelos próprios mortos. de muitos povos guerreiros.
Eles foram enviados como uma patrulha avançada ao território Estas execuções adquiriram dimensões francamente fan-
dos mortos, para onde arrastaram inimigos em quantidade tásticas na capital do reino do Daomé. Lá existia a instituição
muito maior. Desta maneira eles conseguiram afastar o medo, de uma festa anual que perdurava durante vários dias: o rei
sem o que ninguém teria marchado para a guerra. oferecia ao seu povo um espetáculo sangrento em que cente-
O inimigo foí derrotado; a ameaça que uniu os homens nas de prisioneiros eram decapitados à vista de todos.
caiu no esquecimento e cada qual parte agora em busca dos O rei se instalava em seu trono sobre uma plataforma,
seus próprios interesses. A malta de guerra está em vias de se rodeado pelos seus dignitários. Abaixo dele encontrava-se o
desintegrar no saque, muito semelhante ao que ocorre com a povo, densamente reunido. A um sinal do rei, os carrascos
malta de caça no momento da partilha. Se a ameaça não chegou punham mãos à obra. As cabeças dos mortos eram lançadas
a ser realmente vivida de forma coletiva, foi exclusivamente a em um monte; vários destes montes ficavam à vista de todos.
perspectiva do saque a motivação que conseguiu levar os Havia desfiles pelas ruas ladeadas pelos corpos nus de pri-
homens à guerra. Neste caso é sempre necessário permitir que sioneiros enforcados. Para não ferir o sentimento de pudor
o saque se realize; um comandante militar dos velhos tempos das inúmeras esposas do rei, os prisioneiros tinham sido cas-
dificilmente se teria atrevido a negar este privilégio aos seus trados. No último dia da festa, a corte se reunia novamente
soldados. Mas o perigo de uma desintegração total da tropa sobre uma plataforma e se fazia a entrega de grandes presentes
pelo saque era tão grande que sempre se procurou conseguir ao povo: conchas que serviam como moedas eram lançadas ao
encontrar meios capazes de restabelecer o espírito bélico. O povo que lutava para consegui-las. Depois eram lançados
meio de maior êxito para isto foram as /estas de vitória. inimigos amarrados, que também eram decapitados. O povo
O confronto entre a diminuição do inimigo e a própria lutava pela posse do corpo e dizem que os homens, delirantes,
multiplicação é o sentido particular das festas de vitória. Reú- o devoravam. Pode-se falar neste caso de uma verdadeira co-
ne-se o povo todo: homens, mulheres e crianças. Os vencedores munhão no triunfo. Os seres humanos eram seguidos por ani-
aparecem nas mesmas formações em que partiram para o com- mais; o decisivo continuava sendo o inimigo.
bate. Desfilando diante do povo, eles conseguem contagiá-lo Existem relatos de testemunhas oculares européias destas
com o clima de vitória. Reúne-se cada vez mais gente até que, festas realizadas no séc. XVIII. Nesta época os representantes
finalmente, estão presentes todos os que podem abandonar das nações brancas tinham seus estabelecimentos no litoral; o
suas residências. objeto do seu comércio eram os escravos. Eles também viaja-
Mas os vencedores não se exibem sozinhos. Eles trouxe- vam para a capital do país, Abomei, para comprá-los do rei,
ram consigo muitos objetos e atuam como multiplicadores. que vendia parte de seus prisioneiros aos europeus. Suas expe-
Seus despojos são exibidos também para a população. Existe dições de guerra tinham exatamente esta finalidade e os euro-
uma grande abundância de tudo o que se necessita e de que peus daquele tempo toleravam com agrado esta situação. Eles
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consideravam bem menos agradável a obrigação de presenciar sim uma espécie de religião bélica estatal: sua meta está rela-
as horrorosas execuções de massa; mas sua presença fazia parte cionada com a mais rápida de todas as multiplicações.
do bom-tom, da etiqueta da corte. Eles procuravam convencer
o rei de que era preferível vender como escravos os prisionei-
ros destinados à execução. Agindo assim eles se sentiam hu- O Islamismo como religião de guerra
manos, e faziam bons negócios! Porém, para sua surpresa, às
vezes constatavam que o rei, apesar de sua cobiça, não estava Os fiéis maometanos se reúnem de quatro maneiras dife-
disposto a renunciar às suas vítimas. Em épocas em que havia rentes.
escassez de escravos e o comércio ia mal, eles se revoltavam 1 — Eles se reúnem várias vezes por dia para a oração,
contra a teimosia do rei. Não compreendiam que para ele à qual são convocados por uma voz que lhes vem do alto.
importava mais o poder do que as propriedades. O povo es- Trata-se neste caso de pequenos grupos rítmicos que podem
tava acostumado à exibição das vítimas; da demonstração da ser considerados como maltas de oração. Cada movimento está
grande diminuição dos inimigos dessa forma cruel e pública, prescrito de forma exata e é dominado por uma direção: a de
o povo extraía a certeza de sua própria multiplicação. Da Meca. Uma vez por semana, na oração de sexta-feira, estas
mesma demonstração também emanava de maneira imediata maltas se transformam em massas.
o poder do rei. O efeito causado pelo espetáculo era de natu- 2 — Eles se reúnem para a guerra santa contra os in-
reza dupla. Este era o método mais infalível de que dispunha fiéis.
o rei para convencer o povo de sua própria multiplicação sob 3 — Eles se reúnem em Meca durante a grande pere-
seu reinado, mantendo-o em estado de massa religiosamente grinação.
submissa. Mas o método servia também para manter desperto 4 — Eles se reúnem para o juízo final.
o terror em relação às ordens do rei. As execuções eram orde- No Islamismo, como em todas as religiões, as massas in-
nadas por ele pessoalmente. visíveis são as de maior importância. Porém, de forma mais
A maior cerimônia pública dos romanos era o triunfo. distinta do que nas demais religiões universais, existem aqui
Toda a cidade se reunia nele. Porém, quando o império chegou massas duplas invisíveis que se enfrentam.
ao apogeu do seu poder e deixou de sair constantemente para Assim que ressoa a trombeta do juízo final, todos os
realizar novas conquistas, institucionalizou-se a mesma vitória, mortos se erguem de seus túmulos, dirigindo-se rapidamente,
que passou a ser comemorada periodicamente em determinadas como se obedecessem a ordens militares, para o campo do
datas. Na arena lutava-se diante dos olhos do povo reunido, juízo. Lá eles se formam, diante de Deus, em dois poderosos
sem quaisquer conseqüências políticas e, certamente, não sem grupos separados entre si; de um lado permanecem os fiéis,
sentido, pois era uma forma de voltar a despertar o sentimento os infiéis ficam do outro lado, e cada um é julgado por Deus.
de vitória e de mantê-lo bem aceso. Os romanos, na sua qua- Todas as gerações dos homens se reúnem desta forma e
lidade de espectadores, já não lutavam mais eles mesmos; no cada um deles dá a impressão de ter sido sepultado na véspera.
entanto decidiam como massa quem era o vencedor e o acla- Nenhum tem a menor idéia dos períodos de tempo incomen-
mavam como nos velhos tempos. Era exclusivamente este sen- suráveis que podem ter decorrido enquanto jazia sepultado.
timento de vitória que lhes interessava. As próprias guerras, Na morte não há sonhos, e dela não se tem lembrança. Porém
que já não pareciam tão necessárias, perdiam sua importância o soar da trombeta é ouvido por todos e por cada um. "Nesse
diante da importância dada a estes acontecimentos. dia, os homens se erguerão aos bandos." O Corão está repleto
Entre povos históricos deste tipo, a guerra se converte de referências aos bandos que irão se erguer nesse dia, nesse
no meio mais claro da multiplicação. Seja porque por meio da grande momento. Esta é a idéia de massa mais englobante que
guerra se conseguem despojos dos quais se vive, seja porque um crente maometano pode ter. Ninguém é capaz de imaginar
desta maneira se obtêm escravos que trabalham para os ven- um número maior de seres humanos do que numa reunião de
cedores; qualquer outra forma mais paciente de multiplicação todos os que já tenham vivido, aglomerados num mesmo lugar.
é repelida e considerada como sendo desprezível. Forma-se as- Esta é a única massa que não cresce mais e é a que tem a
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maior densidade, pois cada um dos seus participantes, e todos O momento mais importante da peregrinação é o dia em
no mesmo local, se apresenta diante do seu juiz. que todos se reúnem na planície de Arafat: setecentos mil
No entanto, com todo o seu tamanho e sua densidade, des- homens devem ficar lá reunidos de pé. O que lhes falta em
de o princípio até o fim, esta massa permanece dividida em números para atingir esta quantidade é fornecido por anjos
duas. Cada qual sabe perfeitamente o que o espera: em uns há que se colocam, invisíveis, entre os homens.
esperança, terror em outros. "Haverá neste dia rostos radiantes, Porém, passados os dias de paz, a guerra santa volta a
risonhos, felizes; e haverá neste dia rostos cobertos de pó, co- exigir seu direito. "Maomé", diz um dos melhores conhecedo-
bertos de trevas; estes são os infiéis, os sacrílegos." Como se res do Islamismo, "é o profeta da luta e da guerra. .. O que
trata de uma sentença absolutamente justa — cada ação foi ele realizou primeiro em seu âmbito árabe legou-o por testa-
anotada por escrito e pode ser verificada — ninguém pode es- mento ao futuro de sua comunidade: a luta contra os infiéis,
capar da metade à qual pertence de direito. a expansão não tanto da fé mas sim de sua esfera de poder,
No Islamismo a divisão da massa em duas partá é incon- que é a esfera de poder de Alá. Aos paladinos do Islamismo
tornável: ela é formada pelo grupo de fiéis e pelo dos infiéis. o que mais importa em primeiro lugar não é tanto a conversão,
O destino de ambos, que permanecerão sempre separados, é mas sim a subjugação dos infiéis."
combater-se reciprocamente. A guerra santa é considerada como O Corão, o livro do profeta inspirado por Deus, não deixa
um dever sagrado, e desta maneira, já durante esta vida, em dúvidas a este respeito. "Quando os meses sagrados tiverem
cada batalha está prefigurada a massa dupla do juízo final — passado, matem os infiéis onde quer que eles estejam; pren-
se bem que de maneira menos global. dam-nos, ataquem-nos e preparem contra eles todos os tipos
Uma imagem totalmente diferente aparece diante dos olhos de emboscadas."
dos maometanos como um dever não menos sagrado. a peregri-
nação a Meca. Neste caso, trata-se de uma massa lenta, que se
forma paulatinamente pela somatória de fiéis vindos de todos Religiões de lamentação
os confins do mundo. Ela pode perdurar, dependendo da dis-
tância que o fiel é obrigado a percorrer até chegar a Meca, A terra toda está repleta de religiões de lamentação. No
semanas, meses ou até mesmo anos. O dever de realizar esta Cristianismo elas alcançaram uma espécie de validade univer-
viagem pelo menos uma vez no transcorrer da vida acaba ca- sal. A malta que as sustentava tem apenas uma curta duração.
racterizando toda a passagem terrena de um homem, Quem não O que foi que deu consistência às formas de fé que derivam
esteve nesta peregrinação não viveu realmente. Sua vivência da lamentação? O que lhes proporciona esta perseverança pe-
engloba, por assim dizer, todo o território coberto pela fé e culiar durante milênios?
leva todos a se reunirem e a se concentrarem no mesmo lugar A lenda em torno da qual elas se formam é a de um
onde esta fé se originou. Esta massa de peregrinos é pacífica. homem ou de um deus que pereceu injustamente. Sempre é a
Ela se dedica exclusivamente ao sucesso de sua meta. Sua ta- história de uma perseguição, seja ela uma caçada ou não. Tam-
refa não é a de subjugar infiéis; ela deve apenas chegar a um bém um processo injusto pode estar vinculado ao todo. Se for
lugar assinalado e deve ter estado lá. uma caçada, mata-se por descuido o principal dos caçadores em
Considera-se como um milagre muito especial o fato de lugar do animal perseguido. Pode ocorrer, numa reversão, que
que uma cidade do tamanho de Meca possa acolher estes in- o animal acossado ataque e fira o caçador com conseqüências
contáveis grupos de peregrinos. O peregrino espanhol Ibn Ju- mortais, como sucede na tradição de Adônis e do javali. Justa-
bayr, que chegou a Meca pelos fins do séc. XII e que deixou mente esta morte jamais deveria ter ocorrido e a dor provocada
uma descrição detalhada de sua viagem, acredita que nem por ela ultrapassa todas as medidas.
mesmo a maior cidade do mundo teria espaço para tanta gente. É possível que uma deusa ame e chore a vítima, como
Mas Meca teria sido abençoada com uma capacidade especial Afrodite em relação a Adônis. Na nomenclatura babilônica a
de ampliação para abrigar as massas; poder-se-ia compará-la a deusa se chama Ishtar, e Tammuz é o belo joven prematura-
um útero que, segundo a constituição do embrião nele con- mente morto. Entre os frígios, é a deusa-mãe Cibele que chora
tido, pode aumentar ou diminuir de tamanho, seu jovem amante Átis. "Ela está consideravelmente transtor-
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nada, atrela leões diante de seu carro, desloca-se por todo o
a la mentação começar em torno do moribundo. Os vivos pro-
monte Ida com os seus coribantes, que ela transtornou como a curam retê-lo consigo e o cobrem com seus próprios corpos.
si mesma, chorando seu Átis; um dos seus coribantes perfura Eles o acolhem no monte que formam, por todos os lados se
os próprios braços, outro perambula pelas montanhas com apertam contra ele, procurando impedir que se vá. Freqüente-
os cabelos soltos ao vento, um terceiro toca a corneta, outro mente se pede que retorne, mesmo depois da chegada da mor-
mais acima golpeia um tambor ou faz barulho batendo pedaços te e somente quando se tem certeza absoluta de que ele não
de metal; todo o monte Ida está revolto e em furor fanático." retornará
' mais é que principia a segunda fase, a da rejeição,
No Egito, é fsis quem perdeu seu esposo Osíris. Ela o do envio para o mundo dos mortos.
procura sem descansar; aflita percorre o país todo, e não pára Na malta de lamentação que estamos abordando, que se
antes de conseguir encontrá-lo: "Vem para tua casa", lamen- forma como lenda em torno de um morto de valor, o processo
ta-se ela, "vem para tua casa... não te vejo, e meu coração da morte é prolongado de todas as maneiras. Seus parentes ou
teme por ti e meus olhos te desejam. Vem para junto da- fiéis, que neste caso são a mesma coisa, se recusam a entre-
quela que te ama, que te ama, bem-aventurado! Vem para tua gá-lo. A primeira fase, a do querer reler, é a mais decisiva e
irmã, vem para tua esposa, tua esposa, tu, cujo coração parou. todo o peso cai sobre ela.
Vem para tua dona da casa. Eu sou tua irmã, nascida da mesma É a época em que todos correm para reunir-se, vindos de
mãe, não deves ficar distante de mim. Os deuses e os homens todos os lados, e todo aquele que queira lamentar-se é bem-
voltaram seus rostos em tua direção e juntos choram por ti, .. vindo. Nestes cultos religiosos a malta de lamentação se abre
Eu choro por ti e clamo por ti, e até no céu se ouve isto, mas e se amplia, formando uma massa que cresce de maneira irre-
tu não ouves minha voz, e eu sou tua irmã, que tu amavas primível. Isto ocorre nas festas pelo próprio morto, cuja pai-
na terra; tu não amavas nenhuma outra além de mim, meu xão é representada. Cidades inteiras se unem a estas festas e
irmão!" freqüentemente também numerosos grupos de peregrinos que
Mas também pode ocorrer — e este caso já é posterior chegam de lugares distantes. A malta de lamentação, entretan-
e não mais mítico — que um grupo de familiares e de discí- to, também pode abrir-se durante prolongados espaços de
pulos chore por ele, como por Jesus ou por Hussain, o neto tempo: o número dos fiéis se multiplica. Começa com uns pou-
do profeta, o mártir dos xiitas. cos seguidores que estão ao pé da cruz como núcleo do lamen-
A caça ou perseguição é representada com todos os deta- to. Na primeira festa de Pentecostes podem ter participado
lhes; trata-se de uma história exata, mantida como algo muito uns seiscentos cristãos; nos tempos do imperador Constantino,
pessoal; sempre corre sangue, mesmo na mais humana de todas eles já são dez milhões. Mas o núcleo da religião continuou
as paixões; nem mesmo na de Cristo abre-se mão do sangue sendo o mesmo, seu centro é a lamentação.
e das chagas. Cada uma das ações que formam a paixão é Por que tantos se unem ao lamento? Em que consiste
tida como injusta; quanto mais se afasta dos tempos míticos, sua atração? Em que o lamento ajuda as pessoas? Em todos
tanto mais existe a tendência em prolongar e em equipar a os que aderem ao lamento ocorre a mesma coisa: a malta de
paixão com inúmeras características humanas. A caçada ou a caça ou de perseguição se redime como malta de lamentação.
perseguição sempre é percebida do ponto de vista da vítima. Os homens viveram como perseguidores e, à sua maneira, con-
Em torno do seu fim forma-se uma malta de lamentação, tinuam sempre vivendo como perseguidores. Eles procuram a
mas seu lamento tem urna nota especial: um homem que carne alheia e cortam pedaços dela, alimentando-se do tormen-
morreu por amor dos homens que o choram. Ele era o salva- to das criaturas mais fracas. Nos seus olhos reflete-se o olhar
dor deles, talvez por ser um grande caçador, talvez por ter quebrado da vítima, e o último grito dela, com o qual se re-
outros méritos maiores, Seu valor é destacado de todas as gozijam, fica gravado de forma indelével em suas almas. Em sua
maneiras possíveis; ele é justamente aquele que não deveria grande maioria, talvez as pessoas nem desconfiem que simul-
estar morto. Sua morte não é aceita pelos que a lamentam. taneamente com seu próprio corpo estejam alimentando tam-
Todos querem tê-lo de volta, vivo, bém o que existe de tenebroso dentro delas. Mas a culpa e o
Na narração da malta de lamentação arcaica, como no medo vão aumentando nelas de maneira irreprimível, de ma-
caso australiano já citado, chamou-se a atenção para o fato de neira que, sem suspeitar, desejam a redenção. Por isso, aderem
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a um que morre por elas e, no lamento por ele, elas mesmas sua comunidade, que é chamado de imã. Sua posição é mais
se sentem como perseguidas. Não importa o que tenham feito, significativa do que a do papa. Ele é o portador da luz divina.
que mortes tenham ocasionado; pela duração deste instante, É infalível. Somente o fiel que se une ao seu imã pode ser
elas se colocam ao lado do padecimento. Trata-se de uma re- salvo. "Quem morre sem conhecer um verdadeiro imã do
pentina e transcendente mudança de partido, de lado. E isto seu tempo, tem a morte de um infiel."
as liberta da culpa acumulada de matar e do medo de que a O imã descende em linha direta do profeta. Ali, o genro
morte consiga atingir elas próprias. O que quer que tenham de Maomé, que se casou com sua filha Fátima, é considerado
causado a outras pessoas, neste momento outro alguém assume como o primeiro imã. O profeta confiou a Ali conhecimen-
tudo isso, e desde que o sigam fielmente e sem reservas, con- tos especiais que não deu aos demais companheiros e que vão
seguirão escapar — pelo menos assim esperam — da vingança. passando hereditariamente na família. Ali foi nomeado expres-
Constata-se assim que as religiões de lamentação são im- samente seu sucessor na vocação docente e no governo. Ele é
prescindíveis à harmonia espiritual dos homens, enquanto eles o escolhido por disposição do profeta; somente a ele pode ser
não forem capazes de renunciar à atividade de matar em maltas. dado o título "soberano dos verdadeiros crentes". Os filhos
Das religiões de lamentação que foram transmitidas até de Ali, Hassan e Hussain, herdaram depois a função dele: eram
nossos tempos e que merecem ser submetidas a uma análise os netos do profeta. Hassan foi o segundo imã e Hussain o
mais detalhada, a dos xiitas islâmicos é a mais reveladora. terceiro. Qualquer outro que se arrogasse um governo sobre os
Também seria correto relatar o culto de Tammuz ou o de Adô- crentes era um usurpador.
nis, o de Osíris ou o de Átis. Mas todos eles pertencem ao A história política do Islamismo após a morte de Maomé
passado; são conhecidos apenas pelos escritos cuneiformes e incentivou a formação de uma lenda em torno de Ali e dos seus
hieroglíficos, ou ainda pelas obras dos autores clássicos; pelo filhos. Ali não foi imediatamente eleito para o cargo de califa.
que, apesar de estas informações terem um valor incalculável, No decorrer dos primeiros vinte e quatro anos após a morte
parece mais conveniente tratar de uma fé que continua exis- de Maomé, três outros de seus companheiros de luta ocupa-
tindo ainda hoje e que, onde existe, atua de maneira aguda e ram sucessivamente esta dignidade máxima. Somente quando
sem atenuações. o terceiro deles morreu é que Ali chegou ao poder, mas gover-
A mais significativa de todas as religiões de lamentação nou por pouco tempo. Durante um serviço religioso de sexta-
é o Cristianismo. A respeito da sua forma católica ainda tere- feira na grande mesquita de Kufa, ele foi assassinado com
mos algumas coisas a dizer. Mas dos momentos concretos do uma espada envenenada por um oponente fanático. Hassan,
Cristianismo, dos momentos de verdadeira excitação de massas, seu filho mais velho, vendeu seus direitos por uma soma de
em vez de escolhermos um de lamentação autêntica, que se vários milhões de dirhams e se retirou para Medina, onde após
tornou bastante rara, descreveremos outro: a festa da Ressur- alguns anos morreu em conseqüência de uma vida extravagante.
reição na igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém. Os sofrimentos de Hussain, seu irmão mais jovem, torna-
A lamentação propriamente dita, como malta apaixonada ram-se o verdadeiro núcleo da fé dos xiitas. Ele era a imagem
que se abre para formar uma massa verdadeira, manifesta se oposta de Hassan; era um homem reservado e sério, que vivia
com ímpeto inesquecível na festa do muharram dos xiitas, retirado em Medina. Embora após a morte de seu irmão ele se
tenha tornado o chefe dos xiitas, durante muito tempo não
se meteu em atividades de cunho político. Mas quando o califa
A festa do muharram entre os xütas regente morreu em Damasco, e seu filho quis proclamar-se seu
sucessor, Hussain opôs-se-lhe à pretensão. Os habitantes da
Do Islamismo, que tem características inconfundíveis de turbulenta cidade de Kufa, no Iraque, escreveram a Hussain,
uma religião de guerra, gerou-se por divisão uma religião de convidando-o a ir até lá. Eles o queriam como califa, e quando
lamentação; a mais concentrada e extrema que se poderia en- assumisse o cargo todos o apoiariam. Ele então se pôs a cami-
contrar: a fé dos xiitas. É a religião oficial do Irã e do Iêmen. nho com sua família, com suas mulheres e filhos e com um
Ela também é amplamente difundida na índia e no Iraque. pequeno grupo de partidários. Era necessário percorrer um
Os xiitas acreditam num líder espiritual e temporal de longo caminho pelo deserto. Quando chegou nas imediações
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da cidade, esta já o tinha abandonado. O governador enviou continuaremos de luto por Hussain ... O luto por Hussain é
ao seu encontro um grande destacamento de cavaleiros, que o
o símbolo do Islamismo. Para um xiita é impossível não cho-
intimou à rendição. Hussain recusou render-se e eles lhe corta- rar. Seu coração é um túmulo vivo, o verdadeiro túmulo da
ram o acesso à água. Depois ele foi cercado com seu pequeno cabeça do mártir decapitado."
grupo. Na planície de Kerbela, no décimo dia do mês de A contemplação da pessoa e do destino de Hussain se
muharram, no ano 680, segundo nossa contagem de tempo, encontram emocionalmente no centro da fé. São a fonte prin-
Hussain com seus seguidores, que se defenderam valorosa- cipal de onde flui a experiência religiosa. Sua morte foi inter-
mente, foram atacados e mortos. Com ele caíram oitenta e sete pretada como auto-sacrifício voluntário através do seu sacrifí-
homens, e entre eles quase toda a sua família e a de seu irmão. cio é que os santos chegam ao paraíso. De início, a idéia de
Seu cadáver apresentava as marcas de trinta e três ferimentos um mediador era estranha aos Islamismo. Na religião xiita, ela
de lança e de trinta e quatro golpes de espada. O comandante se tornou predominante desde a morte de Hussain.
da tropa inimiga ordenou que seus subordinados cavalgassem O túmulo de Hussain na planície de Kerbela se converteu
sobre o cadáver de Hussain. O neto do profeta foi pisoteado muito rapidamente no local de peregrinação mais importante
pelos cascos dos cavalos. Sua cabeça foi cortada e enviada ao dos xiitas. Quatro mil anjos rodeiam o túmulo do neto do
califa de Damasco, que a golpeou com um bastão na boca. profeta, chorando por ele noite e dia. Eles vão ao encontro de
Um ancião, que tinha sido companheiro de Maomé e que es- cada peregrino até a fronteira, venha ele de onde vier. Quem
tava presente nesta ocasião, reprovou-lhe esse gesto: "Não use visita este sepulcro consegue as seguintes vantagens: o teto de
o seu bastão", disse ele, "eu vi a boca do profeta beijando sua casa jamais cairá sobre ele. Ele nunca se afogará. Não pe-
essa boca". recerá no fogo. Os animais selvagens não o atacarão. Além
As "tribulações da estirpe do profeta" se transformaram disso, quem rezar com fé verdadeira nesse sepulcro terá anos
no tema propriamente dito da literatura religiosa xiita. "Os adicionais de vida. Ganhará o mérito equivalente a mil pere-
verdadeiros membros deste grupo são reconhecidos pelos cor- grinações a Meca, a mil mortes por martírio, a mil dias de
pos enfraquecidos pelas privações, pelos lábios ressecados pela jejum, a mil libertações de escravos. Durante todo o ano se-
sede e pelos olhos marcados pelo choro incessante. O verda- guinte, nada poderão fazer contra ele os diabos e os maus espí-
deiro xiita é perseguido e desgraçado como a família, por cujo ritos. Caso morra, será enterrado por anjos, e no dia da ressur-
direito ele responde e padece. Quase podemos considerar como reição se erguerá juntamente com os crentes do imã Hussain,
profissão da família do profeta sofrer dificuldades e perse- que ele reconhecerá pela bandeira que o imã levará na mão.
guições." Este conduzirá os seus peregrinos de forma triunfal e direta
Desde o dia de luto em Kerbela, a história desta estirpe ao paraíso.
é uma sucessão contínua de sofrimentos e de tormentos. Seu Segundo uma outra tradição, todos os que são enterrados
relato em poesia e prosa é cultivado numa rica literatura de no sepulcro de um irmã não serão submetidos ao juízo no
martirológios; estes temas constituem o objeto das reuniões dia da ressurreição, por mais que tenham pecado; eles serão
dos xiitas durante o primeiro terço do mês de muharram, cujo lançados diretamente no paraíso, como que por uma lona de
décimo dia — ashura — é considerado como o aniversário da linho, e os anjos lhes apertarão a mão com satisfação.
tragédia de Kerbela. "Nossos dias de comemoração são nossas Por este motivo xiitas velhos se estabeleciam em Kerbela
reuniões fúnebres", conclui um poema, no qual um príncipe para lá morrerem. Outros, que sempre viveram a grande dis-
de orientação xiita celebra as muitas tribulações da família do tância da cidade santa, determinavam como última vontade
profeta. Chorar, lamentar-se e ficar de luto pelas desgraças e serem enterrados lá. Há séculos, intermináveis caravanas da
perseguições da família de Ali e do seu martírio é o assunto Pérsia e da índia deslocam-se para Kerbela transportando mor-
primordial dos verdadeiros fiéis. "Mais comovedor do que a tos; a cidade se transformou num único e gigantesco cemitério.
lágrima xiita", diz um provérbio árabe. "Chorar por Hussain", A grande festa dos xiitas, onde quer que eles vivam, são
diz um indiano moderno, que pertence a esta fé, "este é o os dias do mês de muharram, durante os quais Hussain sofreu
preço da nossa vida e da nossa alma; de outra maneira sería- sua paixão. Durante dez dias , toda a nação persa fica de
mos as mais ingratas de todas as criaturas. Mesmo no paraíso luto. O rei, os ministros, os funcionários vestem-se de negro
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ou de cinza. Soldados e condutores de caravanas andam de
camisa aberta ao peito, o que é considerado como grande sinal spectadores; homens ricos e de prestígio faziam questão de
servir pessoalmente até mesmo os espectadores mais andra-
de dor. No primeiro dia de muharram, que também assinala e
o início do ano novo, começa a festa. Do alto dos púlpitos de josos.
Gobineau descreve dois tipos de confrarias que intervêm
madeira narra-se a história da paixão de Hussain. Ela é des-
nesses acontecimentos. "Homens e meninos com archotes en-
crita com todo o luxo de detalhes, sem que nenhum episódio tram no teatro em procissão atrás de uma grande bandeira
seja omitido. Os ouvintes ficam profundamente comovidos. negra; cantando fazem uma volta completa. A noite podem-se
Seus gritos "Ó Hussain! Ó Hussain!" são acompanhados de ver estes bandos passando rapidamente pelas ruas, dirigindo-
gemidos e lágrimas. Este tipo de lamentação se prolonga du- se de um teatro para outro. Algumas crianças os precedem
rante o dia todo, e os pregadores se revezam em diferentes correndo e soltando gritos estridentes: "Ai, Hussain! Ai,
púlpitos. Durante os nove primeiros dias do muharram, grupos Akbar!" Os irmãos se instalam diante dos púlpitos dos pre-
de homens, com os peitos nus e pintados de vermelho ou ne- gadores, cantando e golpeando-se de maneira bizarra e selva-
gro, percorrem as ruas. Arrancam os próprios cabelos, provo- gem. Com a mão direita formam uma espécie de concha, ba-
cam ferimentos em si mesmos com a espada, arrastam pesadas tendo com violência e num determinado ritmo logo abaixo do
correntes ou representam danças selvagens. Chegam a ocorrer ombro esquerdo. Conseguem desta forma um ruído surdo que,
combates sangrentos com membros de outras seitas. quando produzido simultaneamente por muitas mãos, é audível
A celebração culmina no dia 10 de muharram com uma a grande distância e muito eficaz. Algumas vezes os golpes
grande procissão, que originalmente representava o enterro são pesados e lentos, produzindo um ritmo arrastado. Outras
de Hussain. Seu centro é formado pelo ataúde do imã, que são ligeiros e rápidos, excitando os assistentes. Quando as con-
é carregado por oito pessoas. Cerca de sessenta homens man- frarias começam esta atividade, logo começam a ser imitadas
chados de sangue marcham atrás do ataúde, entoando uma por todo o auditório. A um sinal do seu chefe supremo, todos
canção marcial. Eles são seguidos por um cavalo, o corcel de os irmãos começam a cantar, a golpear-se, a saltar no mesmo
guerra de Hussain. No final, costuma ir um grupo de aproxi- lugar, repetindo com voz entrecortada e rápida: `I-lassan! Hus-
madamente cinqüenta homens, que golpeiam ritmicamente dois sain!'
pedaços de madeira. O delírio que se apossa destas massas de "Uma confraria de outra índole é a dos flagelantes. Eles
lamentação durante as festas é quase inimaginável. Teremos se fazem acompanhar por música produzida por tamborins de
ocasião de comprovar isto ainda melhor um pouco mais adian- tamanhos diferentes. Andam com o peito e os pés nus e a
te, por uma narração vinda de Teerã. cabeça descoberta. São homens adultos; algumas vezes há tam-
As verdadeiras representações da paixão, nas quais se bém velhos e até mesmo jovens de doze a dezesseis anos. Car-
evocam dramaticamente os padecimentos de Hussain, somente regam correntes de ferro e agulhas pontiagudas. Alguns levam
se transformaram numa instituição permanente nos princípios discos de madeira. Entram no teatro em procissão e entoam,
do séc. XIX. Gobineau, que por volta dos meados do século de início bastante devagar, uma litania formada por apenas duas
passado residiu durante muito tempo na Pérsia, forneceu urna palavras `Hassan! Hussain!' Os tamborins os acompanham
apaixonante descrição destes acontecimentos. num ritmo cada vez mais rápido. Os que têm discos de
Os teatros eram doados por pessoas ricas; os gastos eram madeira batem uns contra os outros ritmicamente, e todos
considerados como obra multo meritória, com a qual o doador começam a dançar. Os espectadores os acompanham batendo
"construía para si um palácio no paraíso". Os maiores tinham no próprio peito. Depois de algum tempo os irmãos
capacidade para duas a três mil pessoas. Em Ispahan as cenas começam a se flagelar com suas correntes, primeiro lenta-
eram representadas diante de mais de vinte mil espectadores. mente e com uma cautela evidente; depois vão se ani-
O acesso era público; qualquer um podia entrar, tanto o men- mando e se golpeiam com mais força. Todos os que têm
digo esfarrapado como o mais rico dos senhores. As represen- agulhas as espetam nos braços e nas faces; escorre o sangue,
tações eram iniciadas às cinco horas da manhã. Antes da ence- a multidão se exalta e soluça, a excitação cresce. O chefe do
nação da paixão, durante muitas horas realizavam-se procis- grupo corre de um lado para outro entre as filas, estimulando
sões, danças, pregações e cantos. Refrescos eram servidos aos os fracos e segurando os braços dos que exageram em seu fre-
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nesi. Quando a excitação se torna excessiva, ele interrompe vimentos. Seus lábios iam perdendo a cor; quanto mais desco-
a música e suspende tudo. É difícil não se deixar influenciar rado ele ficava, mais se animava, gritando e golpeando-se como
por tal cena: sente-se empatia, compaixão e espanto, tudo ao numa bigorna. Continuou assim durante cerca de dez minutos.
mesmo tempo. Às vezes vêem-se flagelantes, no momento em Mas os dois soldados já não agüentavam mais; estavam cober-
que a dança termina, levantando os braços com as correntes tos de suor. O coro, assim que deixou de ser guiado e trans-
para o céu, exclamando com voz tão profunda e olhar tão forte portado pelas suas vozes firmes e potentes, começou a vacilar
e repleto de fé: `Ya Alá! ó Deus!' que todo o seu ser parece e a se confundir. Uma parte das vozes emudeceu e o negro,
estar transfigurado a ponto de provocar admiração em todos." como se agora lhe faltasse todo o apoio material, fechou os
Poder-se-ia classificar esses grupos como orquestras de olhos e tombou sobre o seu vizinho. Todos pareciam sentir
amargura; seu efeito é o de cristal de massa. A dor que oca- muita compaixão e grande respeito por ele. Puseram-lhe gelo
sionam a si mesmos é a dor de Hussain. Ao representá-la, ela sobre a cabeça e levaram-lhe água aos lábios. Mas ele estava
se transforma na dor de toda a comunidade. Pelos golpes des- desmaiado e somente voltou a si depois de algum tempo. Quan-
feridos contra o peito, que todos acabam imitando, origina-se do recuperou os sentidos, agradeceu de forma mansa e amável
uma massa rítmica. Ela é sustentada pelo sentimento da lamen- a todos os que o haviam ajudado.
tação. Hussain lhes foi arrebatado a todos, e ele pertence a "Assim que a calma se restabeleceu, subiu ao palco um
todos eles juntos. homem trajado de verde. Não havia nada de insólito na sua
Porém não são apenas os cristais das confrarias que de- pessoa; ele se parecia com um vendedor de artigos de um ba-
sencadeiam uma massa de lamentação entre os assistentes. zar. Este homem fez um sermão a respeito do paraíso, cuja
Também os pregadores e outras pessoas que aparecem de forma grandiosidade pintou com veemente eloqüência. Para entrar
isolada provocam este mesmo efeito. Basta ler o que Gobi- nele não bastava ler o Corão do profeta. 'Não basta fazer tudo
neau presenciou como testemunha ocular numa ocasião. o que recomenda este livro sagrado, não basta vir chorar no
"O teatro está completamente lotado. É fim de junho; teatro como vocês o fazem todos os dias. Vocês devem prati-
tem-se a sensação de sufocar debaixo da imensa tenda. A mul- car boas obras em nome de Hussain e por amor dele. Hussain
tidão toma refrescos. Um dervixe sobe ao palco e canta um é a porta do paraíso, Hussain é quem sustenta o mundo; é
hino que é acompanhado por golpes no peito. Sua voz não através de Hussain que ocorrem as bênçãos. Gritem: Hassan!
chega a ser precisamente arrebatadora; ele parece estar fati- Hussain!
gado. Não causa grande impacto; os cânticos tornam-se mais "A multidão toda gritou: 'Ó Hassan! Ó Hussain!'
lentos. O homem parece perceber isso; interrompe-se, desce "'Mais uma vez!'
do tablado e some. Volta a reinar silêncio. Nisto um soldado "`C) Hassan! Ó Hussain!'
grande e pesado, um turco, toma bruscamente a palavra com "'Roguem a Deus, para que ele sempre conserve vocês no
voz de trovão e vai dando palmadas cada vez mais fortes no amor a Hussain! Vamos, clamem a Deus!'
próprio peito. Outro soldado, também turco, mas de outro "A massa toda, com um único gesto, levanta os braços
regimento e tão esfarrapado quanto o primeiro, começa a res- para o alto e grita com voz surda e forte: `Ya Alá! Ó Deus!'."
ponder. Os golpes sobre o peito recomeçam com precisão. Du- A representação propriamente dita da paixão, que ocorre
rante vinte e cinco minutos a massa ofegante é arrebatada por depois desta longa e excitante introdução, consiste numa su-
estes dois homens e se golpeia a ponto de ficar com manchas cessão solta de quarenta a cinqüenta cenas. Todos os aconte-
visíveis. O canto monótono e perfeitamente compassado a cimentos são relatados pelo arcanjo Gabriel ao profeta ou pre-
embriaga. Todos se golpeiam da melhor forma que podem; vistos em sonhos, antes de desenrolar-se no cenário. Tudo o
produz-se um ruído surdo, profundo, regular, resoluto; mas que irá ocorrer já é conhecido dos espectadores; não se trata
para alguns isto não é suficiente. Um jovem negro, que parece de uma tensão dramática como a entendemos; trata-se, isto
um carregador de mercadorias, se levanta em meio à multidão sim, de uma participação total. Todos os padecimentos de
acocorada. Tira seu gorro e começa a cantar a plenos pulmões, Hussain, os suplícios de sua sede por lhe terem cortado o aces-
enquanto golpeia a cabeça com os dois punhos. Ele estava a so à água e os episódios da batalha e de sua morte são des-
dez passos de mim; eu podia acompanhar todos os seus mo- critos com um vigoroso realismo. Somente os imãs e os san-
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tos, os profetas e os anjos cantam. Personagens odiados como tinto da autopreservação, seus participantes vestem-se de for-
o califa Yazid, que ordenou a morte de Hussain, e o assassino ma normal.
Schamr, que lhe deu o golpe mortal, não podem cantar; eles "Faz-se um grande silêncio; centenas de homens de ca-
apenas declamam. Pode ocorrer que eles próprios fiquem co- misas brancas aproximam-se, tendo no rosto voltado para o
movidos com a monstruosidade dos seus atos. Nesse caso eles céu uma expressão de êxtase.
irrompem em lágrimas enquanto pronunciam suas palavras "Destes homens, muitos estarão mortos ao entardecer;
malvadas. Não há aplausos; as pessoas choram, gemem, batem muitos estarão mutilados e desfigurados, e suas camisas bran-
nas próprias cabeças. A excitação dos espectadores alcança um cas tingidas de vermelho serão suas mortalhas. Estes seres já
ponto tão extremo que não é raro tentarem linchar os perso- não pertencem à terra. Suas túnicas de corte tosco lhes dei-
nagens infames, os assassinos de Hussain. No final mostra-se xam livres apenas o pescoço e as mãos; rostos de mártires,
como a cabeça cortada do mártir é levada para a corte do mãos de assassinos.
califa. Durante o caminho ocorre um milagre após outro. Um "Com gritos de estímulo e por contágio de sua loucura,
leão faz uma profunda reverência diante da cabeça de Hussain. outros lhes entregam sabres. Agora sua excitação se torna as-
A caravana detém-se junto a um mosteiro cristão; quando o sassina; giram em círculos sobre si mesmos, brandindo as
abade vê a cabeça do mártir, abjura sua fé e converte-se armas que lhes foram entregues sobre suas próprias cabeças.
ao Islamismo. Seus gritos dominam os da massa. Para suportar seus sofri-
mentos, eles precisam cair num estado de catalepsia. Com
A morte de Hussain não foi em vão. Na ressurreição lhe
é confiada a chave do paraíso. Deus mesmo dispõe: "O direito passos de autômatos, avançam, retrocedem, vão para o lado,
sem qualquer ordem aparente. A cada passo, compassadamente,
de intercessão é expressamente seu. Hussain será, por minha
eles golpeiam as próprias cabeças com os sabres serrilhados.
graça especial, o mediador de todos". O profeta Maomé entre-
O sangue corre. As túnicas se tingem de escarlate. A visão
ga a Hussain as chaves do paraíso e diz:
deste sangue leva ao máximo a confusão em suas mentes. Al-
"Vai e salva das chamas cada um que durante a vida ver-
guns destes mártires voluntários caem por terra e golpeiam
teu uma única lágrima por ti, cada um dos que te ajudaram de
com seus sabres à esquerda e à direita. De suas bocas crispa-
alguma maneira, cada um dos que empreenderam uma pere-
das corre sangue. Em seu frenesi, eles cortaram suas próprias
grinação ao teu santuário ou que fizeram lamentações por ti
veias e artérias, e morrem no próprio local antes que a polícia
e cada um dos que escreveram versos trágicos em teu louvor.
tenha tempo para transportá-los a um pronto-socorro que foi
Leva cada um destes e todos contigo para o paraíso".
instalado atrás da porta fechada de uma loja.
Não existe religião que tenha dado uma maior ênfase à "A massa, insensível aos golpes da polícia, se fecha em
lamentação. É o maior mérito religioso e supera muitas vezes torno destes homens, envolvendo-os e arrastando-os para uma
qualquer outra boa obra. Pode-se falar com toda certeza de outra parte da cidade, onde o banho de sangue continua. Nin-
uma religião de lamentação. guém mantém a consciência clara. Os que não têm coragem
Seu paroxismo, no entanto, não é alcançado por este tipo suficiente para derramar seu próprio sangue oferecem coca
de massa durante as representações das cenas da paixão. O "Día aos outros como revigorante, excitando-os com esta substância
do Sangue" nas ruas de Teerã, que envolve meio milhão de e com imprecações.
pessoas, foi descrito por uma testemunha ocular com as pala- "Os mártires despem a túnica, que é considerada sagra-
vras que se seguem. Será difícil encontrar um relato mais da, e as dão aos que os arrastaram. Outros, que inicialmente
perturbador. não estão entre as vítimas voluntárias, descobrem repentina-
"Quinhentas mil pessoas, tomadas de loucura, cobrem a mente em meio à excitação geral sua própria sede de sangue.
cabeça com cinza e batem com a testa no chão. Querem sub- Exigem armas, arrancam suas vestes e se ferem no corpo todo.
meter-se a uma tortura voluntária, querem matar-se em grupos "Às vezes forma-se um claro no meio de um desfile; um
e mutilar-se de forma refinada. Os desfiles das corporações dos participantes cai esgotado. O claro se fecha imediatamente;
vão se sucedendo um após outro. Como são formados por a massa se fecha sobre o infeliz, que é impelido com os pés e
pessoas que conservam um vestígio de razão, ou seja, o ins- pisoteado.
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"Não existe sorte mais bela do que morrer num dia de ferentes contra a massa. Comparados com a Igreja, todos os
festa de aschura; os portões dos oito paraísos estão abertos poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes.
de par em par para os santos e todos procuram entrar lá. É preciso pensar, antes de mais nada, no próprio culto,
"Soldados em serviço, encarregados de cuidar dos feridos que atua da maneira mais imediata sobre os fiéis reunidos.
e de manter a ordem, tomados pela excitação da massa, des- Ele é de uma lentidão e de uma parcimônia sem paralelo. Os
pem seus uniformes e mergulham também no meio desse ba- movimentos dos sacerdotes em seus ornatos pesados e rígidos,
nho de sangue. a medida dos seus passos, o tom de suas frases, tudo lembra
"O delírio toma também as crianças, inclusive as mais um pouco uma lamentação fúnebre infinitamente diluída, re-
pequenas; junto a uma fonte está uma mãe, embriagada de petida por séculos com tal regularidade que do que existe de
orgulho, apertando contra o coração seu filho que acaba de repentino na morte, da intensidade da dor, praticamente nada
mutilar-se. Outro chega correndo e gritando: acabou de vazar restou: o processo temporal da morte é mumificado.
Mas a vinculação entre os próprios fiéis é impedida de
um olho e dentro de instantes vaza também o outro; os pais
o contemplam com regozijo." mais de uma forma. Eles não pregam uns aos outros; a palavra
do crente simples não tem valor algum de santidade. Tudo o
que ele espera, tudo o que tenha a resolver, a pressão múltipla
exercida sobre ele, emanam sempre de uma fonte superior; o
Catolicismo e massa que não lhe é explicado, ele nem sequer compreende. A pala-
vra santa lhe é ministrada já mastigada e dosada; ela é, justa-
Numa análise livre de preconceitos chama a atenção no mente na sua qualidade de santa, protegida dele. Até mesmo
Catolicismo uma certa lentidão e calma, relacionadas com uma os seus pecados pertencem aos sacerdotes, aos quais ele deve
grande amplitude. Sua pretensão principal, a de oferecer lugar confessá-los. Não é um alívio para ele comunicá-los a outros
para todos, está contida no seu próprio nome. Deseja-se que fiéis, e ele também não pode guardá-los para si. Em todas as
todos se convertam a ele, e cada qual é aceito sob certas con- questões morais mais profundas, ele encara somente o clero;
dições que não podem ser consideradas duras. Nisto, no prin- em troca da vida mediatamente satisfeita que o clero lhe ofe-
cípio, e não no processo de recepção, o Catolicismo conservou rece, ele se entrega totalmente.
um último vestígio de igualdade que contrasta curiosamente Mas mesmo a maneira como é dada a comunhão separa o
com sua índole rigidamente hierárquica. crente dos demais que a recebem com ele em vez de vinculá-los
Sua alma, que, junto com sua amplitude, exerce a maior num mesmo lugar. O comungante recebe, somente para si,
atração sobre muitos, se deve à sua antiguidade e à sua aversão um valioso tesouro. Ele espera este tesouro para si mesmo,
em relação a toda violência de massa. A desconfiança em rela- sozinho ele terá de cuidar dele. Quem observa as filas dos que
ção à massa não abandona o Catolicismo desde muito tempo, vão tomar a comunhão não pode deixar de observar até que
talvez desde os mais remotos movimentos heréticos dos mon- ponto cada qual se preocupa apenas consigo mesmo. Os que
tanistas, que se dirigiram aos bispos com resoluta irreverên- estão na sua frente ou atrás lhe importam ainda menos do que
cia. A periculosidade dos estalos súbitos, sua rapidez e impre- o próximo com o qual se relaciona na vida diária — e o rela-
visibilidade, e principalmente a supressão das distâncias obri- cionamento com este próximo já é em si bastante tênue. A co-
gatórias, entre as quais devem-se contar de modo especial as munhão vincula o destinatário com a Igreja, que é invisível
distâncias da hierarquia eclesiástica, tudo isto fez com que e que tem dimensões descomunais; ela o arrebata dos presen-
desde cedo a Igreja passasse a ver na massa aberta seu prin- tes. Entre si os comungantes se sentem muito pouco como
cipal inimigo, e fez com que ela se opusesse a esta massa de unidade, da mesma forma como um grupo de homens que,
todas as maneiras possíveis. tendo encontrado um tesouro, acabam de reparti-lo entre si.
Todo o conteúdo de sua fé, como também todas as for- Na natureza deste fato, tão importante para a fé, a Igreja
mas práticas de sua organização estão eivados deste inaba- revela sua prudência diante de tudo o que seria capaz de evo-
lável sentimento. Até hoje não houve sobre a face da Terra car a massa. Ela enfraquece e freia tudo o que existe de comum
estado algum que soubesse defender-se de tantas maneiras di- entre os homens realmente presentes e coloca em seu lugar um
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misterioso país remoto, superpotente, que não necessita de
eclesiástica. Cada qual desfila paramentado de acordo com sua
forma imprescindível do crente, e que jamais suprime real- dignidade e é reconhecido e designado pelo que representa.
mente a fronteira que o separa do crente, enquanto este ainda Espera-se pela bênção daquele que tem o direito de dá-la. Já
está com vida. A massa permitida, que é constantemente cita- esta articulação de procissão inibe no espectador a aproximação
da pelo Catolicismo, a massa dos anjos e dos bem-aventurados, a um estado semelhante ao de massa. Ele é retido em muitos
está situada em um além distante e é por isso, pelo seu distan- níveis da contemplação ao mesmo tempo; todo o movimento
ciamento, inofensiva e fora do alcance de qualquer contágio de equiparação entre eles, todas as reuniões repentinas estão
imediato. Além disso ela é, em si, de uma impassibilidade e excluídas. O contemplador adulto jamais se verá como sacer-
de uma calma exemplares. Não se imagina que os bem-aven- dote ou como bispo. Estes sempre permanecem separados dele,
turados sejam muito ativos; sua impassibilidade lembra a de sempre acima dele. Porém, quanto mais crente ele for, mais
uma procissão. Eles perambulam lentamente e cantam, entoam tenderá a testemunhar-lhes sua veneração, pois estão acima dele
hinos e sentem sua própria felicidade. Todos agem de forma e são mais santos do que ele. Ë exatamente isto, e não outra
semelhante; não se pode deixar de perceber uma certa unifor- coisa, a meta da procissão: procura-se alcançar a veneração
midade em seus destinos; nunca se tentou dissimular ou ocul- conjunta dos fiéis. Uma maior atividade comunitária nem é
tar o que existe de semelhante em suas maneiras de vida. desejada, pois poderia conduzir a ações e estalos passionais que
Eles são muitos, estão juntos e muito próximos e se encontram já não poderiam ser controlados. A própria veneração também
tomados pela mesma bem-aventurança. Mas em tudo isso estão é graduada; ascendendo no decorrer da procissão, de degrau
enumeradas suas características de massa. Eles se tornam mais; em degrau, degraus conhecidos e esperados, estáticos, fica neu-
isto no entanto ocorre de forma tão lenta que mal se percebe; tralizado o espinho da ação brusca. A veneração aumenta de
nunca se fala a respeito do seu número crescente. Eles também forma lenta e imperturbável como a maré; ela alcança seu
não têm uma direção. A situação deles é definitiva. A corte que nível mais elevado, e depois, lentamente, volta a cair.
eles formam é imutável. Eles já não querem ir para lugar Considerando-se a importância de todas as formas de or-
algum; já não existe algo que possam esperar. Certamente esta ganização para a Igreja, não é de se estranhar que ela apre-
é a forma de massa mais mansa e menos danosa que se possa sente um rico número de cristais de massa. Talvez em nenhu-
imaginar. Talvez ela esteja justamente no limite do que ainda ma outra parte seja possível estudar sua função tão bem como
pode ser qualificado como massa; é um coro reunido que aqui; o que porém não deve ser esquecido é que eles servem
entoa cânticos bonitos, mas não muito excitantes; a eleição à direção geral da Igreja, que é justamente a de impedir ou de
como estado eterno, depois de todas as labutas que servem de desacelerar as formações de massa.
prova. Se a duração não fosse o que é mais difícil de ser alcan- A estes cristais de massa pertencem os mosteiros e as
çado em tudo o que os homens desejam, seria difícil compreen- ordens religiosas. Eles contêm os cristãos propriamente ditos,
der em que consiste, especificamente, a atração dos bem-aven- que vivem para a obediência, a pobreza e a castidade Eles
turados como massa. servem para colocar de vez em quando à vista dos outros, dos
Na terra, nem tudo ocorre de forma tão imobilizada como muitos que se denominam cristãos mas não são capazes de
entre os bem-aventurados; mas, qualquer coisa que a Igreja viver como tais, exemplos de pessoas que realmente o são. Seu
mostre, é sempre mostrada lentamente. As procissões são um traje funciona como o mais importante meio para conseguir
exemplo impressionante. Elas devem ser vistas pelo maior este objetivo. Ele significa renúncia e desprendimento do laço
número possível de pessoas; seus movimentos são orientados costumeiro com os familiares.
neste sentido — ela flui lentamente. As procissões reúnem os Sua função modifica-se completamente em épocas de pe-
crentes, passando ao longo deles para incorporá-los paulatina- rigo. Não é sempre que a Igreja pode se permitir sua elegante
mente, sem provocar grandes movimentos a não ser cair de reserva, sua aversão em relação à massa aberta, a proibição
joelhos e entrar na seqüência-prevista no final do cortejo, sem gueimpôs ôs à formação desta massa. Existem épocas em que
que os crentes tenham a idéia ou mesmo o menor desejo de ela é ameaçada por inimigos externos; épocas em que a apos-
subir de posição dentro da seqüência estabelecida. tasia se propaga com tanta rapidez que somente é possível
A procissão oferece sempre uma imagem da hierarquia combatê-la com os meios da própria epidemia. Nestas épocas
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a Igreja se vê obrigada a opor massas próprias às massas ini- mente um deles vai na frente como porta-voz. Ele bate palmas
migas. Os monges se convertem então em agitadores que, fa- e os demais também o fazem, emitindo um alarido feroz: 'Este
zendo suas pregações, cruzam o país, instigando as pessoas a é o sepulcro de Jesus Cristo. Deus guarde o sultão. Jesus
uma atividade que em condições normais se prefere evitar. O Cristo nos redimiu'. O que é iniciado em grupos menores vai
exemplo mais grandioso de uma formação deliberada de massas aumentando rapidamente, até que por fim todo o espaço cir-
realizada pela Igreja são as cruzadas. cular entre os soldados fica repleto por uma correria, um tor-
velinho, uma corrente torrencial de figuras selvagens. Paula-
tinamente o frenesi se aplaca ou é bloqueado. A pista circular
O fogo sagrado de Jerusalém é desimpedida e da capela dos gregos se aproxima uma gran-
de procissão com estandartes bordados, que se movimenta
A festividade grega da semana santa em Jerusalém culmi- em torno do sepulcro.
na numa ação de caráter excepcional. No sábado de aleluia, "A partir deste momento, a excitação, que até então se
na igreja do Santo Sepulcro, o fogo sagrado desce do céu para restringia aos que corriam e dançavam, se torna generalizada.
a terra. Milhares de peregrinos vindos do mundo inteiro estão As duas gigantescas massas de peregrinos, separadas pelos sol-
reunidos para acender seus círios na chama, assim que esta dados, permanecem ainda paradas em seus lugares; no entan-
aparece no sepulcro do Redentor. O fogo propriamente dito to, todos juntos começam a emitir uma sucessão selvagem de
é considerado inofensivo; os crentes estão convencidos de que gritos, entre os quais de quando em quando — o que soa
ele nada lhes pode fazer. No entanto, a luta para obter o fogo bastante estranho -- se ouvem os cânticos da procissão. Três
custou a vida a não poucos peregrinos. vezes a procissão gira em torno do sepulcro. Na terceira vez,
Em 1853, Stanley, que posteriormente chegou a deão de as duas filas de soldados turcos se reúnem e juntam-se ao final
Westminster, presenciou durante uma viagem a comemoração da procissão. Num único grande movimento, a massa oscila
da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro, deixando um relato de- ondulante. O ponto culminante do dia está se aproximando.
talhado a este respeito. A presença dos infiéis turcos impede, acredita-se, a descida do
"A capela que contém o Santo Sepulcro está situada no fogo, e chegou o momento de expulsá-los da igreja. Eles se
centro da igreja. Em dois grandes círculos, separados por duas deixam expulsar e um tumulto como de batalha e vitória preen-
fileiras de soldados, encontram-se reunidos os fiéis, estreita- che a igreja toda. De todas as direções o populacho raivoso
mente apertados em torno do sepulcro. O espaço existente irrompe sobre as tropas, que fogem da igreja pelo canto su-
entre os dois anéis de pessoas é mantido livre por soldados deste; a procissão é interrompida, os estandartes estremecem
turcos. Nas galerias superiores estão sentados os espectadores; e oscilam.
é a manhã do sábado de aleluia e por enquanto tudo ainda está "Num grupo pequeno mas compacto de pessoas, o bispo
tranqüilo. Nada anuncia os acontecimentos que ocorrerão mais de Petra, que desta vez é o 'bispo do fogo' e que representa
tarde. Dois ou três peregrinos se seguram firmemente a uma o patriarca, é levado rapidamente à capela do Santo Sepulcro
abertura do muro da capela do Santo Sepulcro. e a porta é fechada atrás dele. A igreja toda é agora um só mar
"Por volta do meio-dia, um grupo desordenado de cris- de cabeças e retumba com força. Uma única parte permanece
tãos árabes irrompe na passagem livre e corre em círculos até livre: um estreito corredor que conduz da abertura no lado
serem presos pelos soldados. Aparentemente estes árabes" acre- norte da capela ao muro da igreja. Ao lado da abertura colo-
ditam que o fogo não virá se eles não correrem algumas vezes cou-se um sacerdote para apanhar o fogo. De ambos os lados
em torno do sepulcro. Durante duas horas completas ocorrem do corredor, até onde a vista alcança, estendem-se centenas
estes saltos de regozijo ao redor do sepulcro. Vinte, trinta ou de braços nus, que estremecem como os galhos de uma flo-
cinqüenta homens começam a correr de repente, perseguin- resta abalada por uma violenta tempestade.
do-se uns aos outros, erguendo um deles sobre os ombros ou "Em épocas anteriores e mais audaciosas, neste instante
sobre a cabeça e correndo para a frente com ele, até que ele aparecia uma pomba sobre a cúpula da capela, para tornar vi-
desça com um salto, sendo substituído por outro. Alguns ves- sível a descida do Espírito Santo. Este costume foi abolido,
tem-se com peles de carneiro, outros estão quase nus. Geral- mas a crença na descida continua existindo, e somente tendo
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isto em vista é possível compreender a excitação crescente dos grinos encontravam-se na cidade e quase todos tinham vindo
próximos momentos. Uma chama luminosa como de lenha ar- para ver o fogo sagrado.
dendo aparece dentro da abertura; ela foi acesa — como todo Pela manhã, os soldados abriram caminho em meio à
grego culto sabe e admite — pelo bispo no interior da capela. multidão para Ibrahim Pascha. Ele foi recebido por uma espé-
Cada peregrino, no entanto, acredita que se trate da luz da des- cie de procissão maluca e tomou seu lugar na galeria.
cida de Deus ao Santo Sepulcro. Tudo se dilui agora na exci- "As pessoas foram se tornando enlouquecidas. Durante
tação generalizada que preenche a igreja toda; é impossível uma noite inteira elas tinham permanecido de pé numa massa
perceber nitidamente qualquer incidente ou característica do enorme e agora estavam esgotadas. Quando se aproximou o
todo. Lenta e paulatinamente, o fogo passa de mão em mão, momento da apresentação do fogo sagrado, elas não conse-
de vela em vela, pela enorme multidão, até que finalmente o guiam conter sua alegria. Sua excitação foi aumentando. Por
prédio todo, de uma galeria à outra, forma um único fogo de volta de uma hora da tarde, uma magnífica procissão saiu da
milhares de velas acesas. capela dos gregos. Eles conduziram três vezes o patriarca em
"É neste momento que o bispo ou o patriarca, carregado torno do sepulcro. Depois o patriarca despiu seus paramentos
nos ombros das pessoas, é levado para fora da capela, prestes externos feitos de tecido bordado com prata, e entrou no se-
a desmaiar, para causar a impressão de estar abalado pela gló- pulcro cuja porta foi fechada atrás dele. A agitação dos pere-
ria do Todo-poderoso de cuja presença ele acaba de voltar. grinos tinha alcançado seu ponto culminante; soltavam gritos
"Uma grande corrida inicia-se então, para escapar da estridentes. A densa massa humana oscilava de um lado para
fumaça e do calor sufocante e também para levar as velas ace- outro como um trigal ao vento.
sas para as ruas e para as casas de Jerusalém. A multidão "O fogo sagrado é apresentado por um orifício redondo
lança-se para fora pela única porta da igreja e às vezes a aglo- numa determinada parte da capela do Santo Sepulcro. O ho-
meração é tão grande que ocorre uma desgraça como em 1834, mem que tinha pago a soma mais elevada por esta honra foi
quando custou a vida de centenas de pessoas. Durante mais conduzido por um grupo de soldados ao local indicado. Du-
alguns momentos os peregrinos continuam correndo de um rante um momento reinou silêncio; depois apareceu uma luz
lado para outro, expondo o rosto e o peito ao fogo, para de- no sepulcro e o feliz peregrino recebeu do patriarca, que estava
monstrar a sua inofensividade, na qual acreditam. O entusias- lá dentro, o fogo sagrado. Este consistia num maço de finas
mo selvagem porém extinguiu-se com a comunicação do fogo. velas de cera acesas; elas, estavam presas numa armação de
Um dos aspectos não menos impressionantes do espetáculo ferro; desta maneira pretendia-se evitar que fossem separadas
é a rápida e total diminuição de um frenesi de tal intensidade. e apagadas pela multidão, pois logo em seguida se formou
A furiosa agitação da manhã forma um estranho contraste uma batalha furiosa. Todos estavam tão ocupados em conse-
com o repouso profundo da noite, quando a igreja volta a guir a luz sagrada que várias pessoas, procurando acender as
ficar repleta e coberta por uma única massa de peregrinos, próprias velas, acabavam apagando as de seus vizinhos.
mas que desta vez estão imersos em sono profundo. É assim "Nisto consistia a cerimônia toda; não houve sermão,
que eles esperam pela cerimônia da meia-noite." nem orações, apenas alguns poucos cânticos durante a pro-
Também o grande desastre de 1834 teve uma testemu- cissão. Logo em seguida era possível ver as luzes multiplican-
nha ocular inglesa, Robert Curzon. Seu relato a respeito da do-se em todas as direções; cada um acendera a própria vela
catástrofe é de uma plasticidade aterradora e nós o apresen- na chama sagrada. As capelas, as galerias, cada canto onde fosse
tamos aqui nos seus principais detalhes. possível aparecer uma vela — tudo refulgia num mar de luz.
À meia-noite precedente ao sábado de aleluia, Curzon Em seu frenesi, os homens esfregavam os maços de velas
dirigiu-se com seus amigos à igreja do Santo Sepulcro para acesas no rosto, nas mãos e no peito para se purificarem de
assistir à procissão dos gregos. Cada janela e cada canto, cada seus pecados.
espaço mínimo onde pudesse ser colocado o pé pareciam estar "Logo tudo ficou obscurecido pela fumaça das velas; eu
repletos de pessoas, excetuando-se apenas a galeria reservada vi essa fumaça escapando em grossas nuvens pela abertura
a Ibrahim Pascha, o governador turco de Jerusalém, e a existente no centro da cúpula superior. Havia um horrível mau
seus hóspedes ingleses. Pelo que se dizia, dezessete mil pere- cheiro. Três infelizes pessoas, abatidas pelo calor e pela falta
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de ar, caíram das galerias superiores e foram despedaçar-se ros, dizendo-lhes que retrocedessem, o que eles fizeram. Eu
sobre as cabeças das pessoas que estavam embaixo. Uma pobre mesmo porém fui arrastado pela multidão até as imediações
mulher armênia de dezessete anos morreu onde estava, vítima da porta, onde todos lutavam pela vida. Aqui, vi a morte certa
do calor, da sede e da fadiga. diante de mim e fiz todos os esforços possíveis para voltar
"Finalmente, depois de termos visto tudo o que havia atrás. Um oficial do Pascha, reconhecível pela estrela de co-
para ser visto, Ibrahim Pascha se ergueu e foi embora. Seus ronel, alarmado como eu, também procurava voltar para trás.
numerosos guardas abriram à força caminho para ele em meio Ele me agarrou pelas roupas e me jogou sobre o corpo de um
à densa massa que tomava a igreja toda. Essa massa era mons- velho que estava dando seu último suspiro. O oficial me
truosa; por isso esperamos um pouco antes de iniciarmos nosso prendia contra o solo e, com a coragem do desespero, lutamos
regresso ao convento onde estávamos hospedados. Eu ia na entre mortos e moribundos. Briguei com esse homem até con-
frente, sendo seguido por meus amigos; os soldados nos abriam seguir abatê-lo. Finalmente pude pôr-me de pé outra vez. Mais
caminho através da igreja. Eu tinha chegado ao lugar onde tarde fiquei sabendo que ele não se levantou mais.
ficara a Virgem Maria durante a crucificação, quando vi uma "Durante um momento fiquei de pé em melo à refrega
grande quantidade de homens caídos uns sobre os outros nesta sobre a base instável de corpos mortos, soerguido pela densa
parte da igreja que eu podia ver até a porta. Procurei da massa que se aglomerava nesta parte estreita da igreja. Todos
melhor forma possível passar entre eles, até que foram ficando permanecemos quietos durante um curto espaço de tempo.
tão juntos que fui obrigado a pisar sobre um grande monte Repentinamente, a massa oscilou. Um grito ecoou, a massa se
de corpos. Repentinamente passou-me pela cabeça que todos abriu e eu me vi no meio de uma fila de homens, oposta a
deviam estar mortos. A princípio eu não tinha percebido isto; outra que se encontrava na minha frente, todos lívidos e des-
achava que eles estavam apenas extenuados pelos esforços da figurados, com as roupas rasgadas e manchadas de sangue. Ali
cerimônia e que tinham se deitado para descansar. Mas, quan- estávamos e nos olhávamos fixamente; um súbito impulso
do cheguei ao monte maior e olhei para baixo, percebi aquela tomou conta de nós, e com gritos que retumbaram pelas lar-
expressão dura e angulosa nos rostos que não dava margem gas naves da igreja do Santo Sepulcro as duas filas inimigas
a equívocos. Alguns estavam completamente pretos em con- se lançaram uma contra a outra. Logo depois eu me encontrei
seqüência da sufocação, e mais adiante havia outros cheios de agarrado a um homem semidespido, cujas pernas estavam sujas
sangue e cobertos com os miolos e as entranhas dos que tinham de sangue. A massa voltou a cair em lutas desesperadas e com
sido pisoteados e despedaçados pela massa. duros golpes consegui retornar ao interior da igreja, onde en-
"Nesta parte da igreja já não existia mais uma massa contrei meus amigos. Conseguimos alcançar a sacristia dos
viva; mas um pouco mais além, num ângulo em direção à católicos e de lá o aposento que os monges nos tinham desig•
entrada principal, as pessoas em pânico continuavam pressio- nado para o período de nossa permanência. Ainda na entrada
nando para a frente e cada qual se esforçava ao máximo para da sacristia tivemos de travar um furioso combate com um
escapar. Os guardas de fora, atemorizados pelas pressões de número considerável de peregrinos que pretendiam entrar co-
dentro, acreditavam que os cristãos quisessem atacá-los: a con- nosco. Dei graças a Deus por minha salvação, que quase não
fusão se transformou rapidamente em batalha. Com suas baio- consegui.
netas, os soldados mataram muitos pobres-diabos que estavam "Os mortos jaziam estendidos aos montes; eu vi talvez
caindo de esgotamento; as paredes estavam salpicadas de san- mais de quatrocentos desgraçados, mortos e vivos, todos empi-
gue e dos miolos dos homens que tinham sido abatidos como lhados em desordem, em alguns lugares em montes de mais de
gado pelos mosquetes dos soldados. Cada qual procurava se um metro e meio. Ibrahim Pascha tinha saído da igreja apenas
defender ou se salvar. Todos os que caíam na refrega eram alguns minutos antes de nós, tendo escapado com vida por
imediatamente pisoteados pelos demais. A luta se tornou tão milagre. A massa o cercava por todos os lados e alguns che-
selvagem e desesperada que por fim até mesmo os peregrinos garam a atacá-lo. Somente graças aos maiores esforços do seu
tomados de pânico e de susto pareciam estar mais interessados séqüito, do qual vários homens foram mortos, é que ele con-
em destroçar os outros do que em salvar a própria vida. seguiu atingir o pátio externo. Durante a luta ele chegou a
"Assim que percebi o perigo gritei para meus companhei- desmaiar mais de uma vez; seus homens foram obrigados a
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abrir com golpes de sabre caminho para ele através da como de batalha e de vitória reina imediatamente dentro da
densa massa de peregrinos. Ao chegar lá fora ele ordenou que igreja.
os cadáveres fossem retirados e que fossem separados os corpos A cerimônia começa com duas massas retidas que estão
dos que ainda pareciam estar com vida debaixo do monte de separadas pelos soldados. Pequenas maltas rítmicas de cristãos
mortos árabes movimentam-se entre elas e as excitam. Estas maltas
"Depois da pavorosa catástrofe na igreja do Santo Se- ferozes e fanáticas funcionam como cristais de massa e con-
pulcro, a multidão de peregrinos em Jerusalém foi tomada de tagiam com sua excitação todos os que estão esperando pelo
pânico e cada qual procurava fugir o mais rapidamente possí- fogo. Depois é iniciada a procissão dos dignitários, uma massa
vel da cidade. Corria um boato de que a peste estava se espa- lenta, que porém nesta ocasião chega mais rapidamente do que
lhando. Como os demais, demos também início aos prepara- nunca à sua meta: o patriarca meio desmaiado que mais tarde,
tivos para a partida." após o fogo ter sido aceso, é carregado pelos dignitários é
Para compreender o que ocorreu ali, é necessário fazer testemunho vivo disso.
uma distinção entre o transcorrer regular das festas da Páscoa O pânico de 1834 deriva com aterrorizante conseqüência
e este pânico de 1834, que Curzon testemunhou. do elemento de luta que faz parte da cerimônia. O perigo de
Trata-se da festa da Ressurreição. A malta de lamentação, pânico quando existe fogo num ambiente fechado é sempre
que se formou em torno da morte de Cristo e do seu sepulcro, muito grande. Mas neste caso ele é reforçado ainda mais pela
transformou-se em malta de vitória. A ressurreição é a vitória oposição entre os não-crentes, que inicialmente estão presentes
e é comemorada como tal. O fogo atua aqui como símbolo de na igreja, e os crentes que querem expulsá-los. O relato de
massa de vitória. É preciso que ele seja comunicado a cada um Curzon é rico em detalhes que esclarecem este aspecto do
dos presentes para que a sua alma participe da ressurreição. pânico: num dos seus muitos momentos aparentemente incoe-
Cada qual, por assim dizer, deve converter-se no próprio fogo rentes e absurdos, ele se vê de repente no meio de uma fila
que vem do Espírito Santo, e assim é indispensável que cada de homens enfrentando outra fila inimiga. As duas filas avan-
qual acenda sua vela nele. A partir da igreja, este valioso fogo çam uma contra a outra, travando um combate de vida ou
é transportado para casa. morte. Ele menciona também os montes de cadáveres sobre
A fraude na maneira como este fogo é gerado é irrele- os quais se pisa e sobre os quais se procura salvar a própria
vante. Essencial é a transformação da malta de lamentação em vida. A igreja do Santo Sepulcro converteu-se num campo de
malta de vitória. Participa-se da morte do Salvador, reunin- batalha. Cadáveres e corpos ainda com vida amontoam-se em
do-se em torno do seu sepulcro. Mas, acendendo-se a vela no numerosas pilhas. A ressurreição transformou-se no seu oposto:
fogo pascal que surge do seu sepulcro, participa-se de sua um massacre geral. A imagem de um monte ainda maior de
ressurreição. mortos, a idéia da peste, apodera-se dos peregrinos, e todos
Muito bonita e significativa é a multiplicação das luzes; fogem da cidade onde está o Santo Sepulcro.
a maneira como de uma rapidamente se formam milhares de
luzes. A massa destas luzes é a massa dos que viverão porque
acreditam. Ela nasce com uma rapidez espantosa, com a mesma
rapidez do fogo que se expande. O fogo é o melhor símbolo
da rapidez e do que existe de repentino na formação das
massas.
Mas antes de se chegar a isso, antes que o fogo realmente
apareça, luta-se por ele. Os soldados turcos, infiéis, que estão
presentes na igreja, devem ser expulsos; enquanto eles estive-
rem presentes, o fogo não pode aparecer. Sua retirada faz parte
do ritual da festa, e dá-se quando chega a procissão dos digni-
tários gregos. Os turcos dirigem-se para a saída, mas os crentes
os empurram como se os estivessem expulsando, e um tumulto
180 181
MASSA E HISTÓRIA
Símbolos de massa das nações

Na maior parte das vezes as tentativas de se chegar ao fundo


das nações padeceram de uma falha essencial. Queria-se che-
gar a definições do nacional propriamente dito; uma nação,
dizia-se, é isto ou aquilo. Vivia-se na crença de que importava
apenas encontrar a definição correta. Uma vez conseguida, ela
poderia ser aplicada a todas as nações. Invocava-se o idioma
ou o território, a literatura escrita, a história, o governo, o
assim chamado sentimento nacional, e em seguida as exceções
eram sempre mais importantes do que a regra. O resultado era
sempre agarrar algo vivo por uma ponta solta de sua roupa-
gem insignificante; esta se desprendia facilmente, e ficava-se
então de mãos vazias.
Ao lado deste método aparentemente objetivo havia
outro, ingênuo, interessado numa única nação, ou seja, na
própria; para este método, todas as demais nações eram indi-
ferentes. Ele consistia numa inabalável reivindicação de supe-
rioridade; de visões proféticas a respeito da própria grandeza;
de uma mescla singular de pretensões relativas à moralidade
e à animalidade. Entretanto não se deve pensar que todas estas
ideologias nacionais se parecem entre si. Elas se igualam ape-
nas em seu insistente apetite e na sua reivindicação. É possível
que todas queiram a mesma coisa, mas elas não são a mesma
coisa. Querem uma ampliação e justificam isso por meio da
multiplicação. A Terra inteira, parece, foi prometida a cada
uma delas e a Terra toda acabará pertencendo naturalmente a
cada uma delas. Todas as demais, ouvindo isto, se sentem amea-
amea-
çadas, e em seu medo vêem apenas a ameaça. Desta maneira
não
çad sepercebe
rbe
ce que o conteúdo concreto, as verdadeiras ideo-
logias destas formas de reivindicação nacional são muito dife-
rentes entre si. É preciso dar-se ao trabalho — mas sem com-
partilhar de sua avidez — de determinar "o próprio" no caso
de cada nação. É preciso manter-se à margem sem pertencer
a nenhuma, mas também é preciso interessar-se de maneira
profunda e honesta por todas. Deve-se permitir que cada uma
delas floresça espiritualmente dentro da gente, como se tivés-
semos sido condenados a pertencer-lhes realmente durante uma
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boa parte da vida. No entanto não se deve pertencer a uma uma massa ou um símbolo de massa. Esta unidade sempre
delas às custas das demais. tem algumas das características próprias das massas ou dos seus
Pois é uma vaidade vazia falar de nações sem determinar símbolos: densidade, crescimento e abertura para o infinito;
as diferenças que existem entre elas. Elas realizam prolonga- uma coesão surpreendente ou muito notória, um ritmo comum,
das guerras umas contra as outras. Uma parte muito grande uma descarga repentina. Muitos destes símbolos já foram abor-
dos membros de cada uma toma parte nessas guerras. Fala-se dados. Falamos a respeito do mar, da floresta, do trigo. Seria
com freqüência do porquê destas lutas. Mas ninguém sabe ocioso repetir aqui suas propriedades e funções e como chega-
como que lutam. Elas têm um nome para isto; dizem como ram a ser considerados símbolos de massa. Nas idéias e nos
franceses, como alemães, como ingleses, como japoneses. Mas sentimentos que as nações têm de si mesmas voltaremos a
qual é o significado desta palavra para o homem que a em- encontrá-los. Mas estes símbolos nunca aparecem despidos,
prega em relação a si mesmo? Em que ele acredita ser dife- nunca aparecem isolados: o membro de uma nação sempre
rente quando vai à guerra como francês, como alemão, como vê a si mesmo, disfarçado à sua maneira, em rígida relação
inglês, como japonês? Aqui não importa tanto a real diferença. com um determinado símbolo de massa que chegou a ser o
Um exame dos seus usos e costumes, do seu governo e de sua mais importante para sua nação. Neste retorno regular, neste
literatura poderia parecer ser exaustivo e, entretanto, passar emergir quando o momento assim o exige, está a continuidade
por cima do elemento determinadamente nacional que está do sentimento nacional. Com ele e somente com ele varia a
presente como fé quando conduz às guerras. autoconsciência de uma nação. Esta é mais variável do que se
Por isso as nações serão abordadas aqui como se fossem pensa e isto permite que se tenha alguma esperança quanto à
religiões. Com efeito elas tendem por vezes a considerar-se continuidade da existência da humanidade.
desta forma. A disposição para isso existe sempre, e nas No texto seguinte tentaremos observar algumas nações
guerras as religiões nacionais se tornam agudas. tomando por base seus símbolos. Para procedermos sem pre-
Em princípio deve-se esperar que o membro de uma conceitos, convém remontar a uns vinte anos atrás. Mas tra-
nação não se veja só, isolado. Assim que ele é designado ou ta-se naturalmente, e não se pode enfatizar isto o bastante, de
que se autodesigna, algo mais englobante aparece em sua ima- uma redução a características bem simples e universais; sobre
ginação, uma unidade maior com a qual ele mesmo se sente os indivíduos falaremos alguma coisa.
relacionado. O tipo desta unidade é importante, bem como
também sua relação com ela. Não se trata simplesmente da
unidade geográfica do país como é encontrada no mapa-múndi; Ingleses
esta é indiferente para o homem normal. As fronteiras podem
ter alguma extensão para ele, mas isto não ocorre com a área É aconselhável começar com a observação de uma nação que
completa e propriamente dita de um país. Ele também não faz pouco alarde de si, mas que sem dúvida alguma ainda
pensa no seu idioma, que poderia colocar-se de forma definida mostra o sentimento nacional mais estável que o mundo co-
e reconhecível em oposição aos idiomas dos outros. Certamente nhece hoje: a Inglaterra. Todos sabem o que o mar significa
palavras que lhe são familiares, justamente em tempos de para os ingleses. Mas é demasiadamente pouco conhecida a
maior agitação, têm um grande efeito sobre ele. Mas não é um forma como o seu muito mencionado individualismo e sua
dicionário que está por trás dele e pelo qual ele está disposto relação com o mar estão concatenados. O inglês se vê como
a lutar. Para um homem normal, menos importante ainda é a capitão de um pequeno grupo de homens em um navio; em
história de sua nação. Ele não conhece nem o seu verdadeiro torno dele e debaixo dele, o mar. Ele está quase só; mesmo
curso, nem tampouco a plenitude de sua continuidade, nem a como capitão ele se isola da tripulação sob muitos aspectos.
vida como foi antes; conhece apenas alguns nomes dos que O mar, no entanto, é dominado; esta idéia é decisiva. Os
viveram no passado. Os personagens e os momentos que pas- navios estão solitários em sua vasta superfície, como indivíduos
saram à sua consciência estão além de tudo o que qualquer esporádicos, personificados num capitão; a autoridade de co-
historiador sensato considera como história. mando deles é indiscutível. O curso que ele segue é a ordem
A unidade maior, com a qual ele se sente relacionado, é que é dada ao mar, e somente a sua imediata execução por
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parte da tripulação dissimula que na verdade é o mar que Os ingleses conquistaram sua ilha mas não tiveram de
deve obedecer. O capitão determina a meta e o mar, na sua arrancá-la do mar. Eles dominam os mares somente através dos
maneira cheia de vida, o transporta para lá, não sem tempes- seus navios, o capitão é o comandante do mar. O holandês teve
tades e sem correntes contrárias. Considerando-se a amplitude de conquistar primeiro do mar a terra onde ele habita. As
do oceano, o que importa é a quem ele obedece com mais terras eram tão baixas que ele teve de protegê-las do mar por
freqüência, e sua obediência é facilitada quando a meta é uma meio de diques. O dique é o princípio e o fim de sua vida
colônia britânica. Neste caso o mar é como um cavalo que nacional. A massa dos homens se identifica com os próprios
conhece bem o seu caminho. Os navios dos demais asseme- diques; unidos, eles opõem resistência ao mar. Se os diques es-
lham-se a cavaleiros ocasionais, aos quais o mar é emprestado, tão danificados, o país inteiro corre perigo. Em tempos de crise
mas somente para mais tarde voltar a se comportar muito os diques são perfurados; em ilhas artificiais se está a salvo do
melhor sob as ordens do seu senhor. O mar é tão grande que inimigo. Em nenhum outro lugar o sentimento da muralha
também importa o número de navios que o sujeitam. humana que se ergue contra o mar está tão evoluído como na
No que diz respeito ao seu caráter, é preciso levar em Holanda. Nos diques confia-se em tempos de paz; mas, quando
consideração a quantas e a quão apaixonadas transformações eles precisam ser destruídos diante de um inimigo, sua força
ele está submetido. Nas suas transformações, ele oferece mais se transmite aos homens que depois da guerra voltarão a cons-
variedade do que todas as massas animais com as quais o truí-los. O dique se mantém na intenção desses homens até
homem teve de se relacionar; e, comparados ao mar, quão ino- que possam ser transformados novamente em realidade. De
fensivos são as florestas do caçador, os campos do lavrador! maneira notável e inconfundível, os holandeses levam dentro
O inglês busca suas catástrofes no mar; freqüentemente ele é de si suas fronteiras contra o mar em épocas de ameaças sérias.
obrigado a imaginar seus mortos no fundo do mar. Desta forma Quando os ingleses são atacados em sua ilha, eles con-
o mar lhe oferece transformações e perigo. fiam no mar. Este, com suas tempestades, veio em ajuda deles
Sua vida em casa é formada de maneira complementar ao contra o inimigo. Na sua ilha eles estão seguros, sentem a
mar: a regularidade e a segurança são as suas principais carac- mesma segurança que em seus navios. O holandês sempre teve
terísticas. Cada qual possui o seu próprio lugar, que não deve o perigo nas costas. Para ele, o mar nunca foi completamente
ser abandonado por nenhuma razão, a não ser, é claro, que dominado. Ele navega certamente sobre o mar, dirigindo-se
se vá para o mar; e todo homem está seguro dos seus hábitos a todos os cantos do mundo. Mas em sua própria pátria o
como de suas posses. mar pode voltar-se contra ele; e, mais do que isto, em casos
extremos, quando for necessário impedir o avanço de um ini-
migo, deve-se fazer tudo o que é possível para forçar o mar
Holandeses a voltar-se contra os homens.

O significado dos símbolos nacionais de massa pode ser perce-


bido com uma clareza especial no contraste existente entre os Alemães
ingleses e os holandeses. Estes povos são aparentados tribal-
mente, seus idiomas são semelhantes, sua evolução religiosa é O símbolo de massa dos alemães era o exército. Mas o exército
quase a mesma. Ambas são nações marítimas e ambas fundaram era mais do que um exército: era a floresta em marcha. Em
impérios marítimos mundiais. O destino de um capitão holan- nenhum outro país moderno do mundo o sentimento da flo-
dês que saía em busca de oportunidades comerciais em nada resta permaneceu tão vivo como na Alemanha. O que existe
se diferenciava do destino de um capitão inglês. As guerras de rígido e paralelo nas árvores eretas, sua densidade e seu
que eles travaram entre si foram as que ocorreram entre rivais número fazem o coração dos alemães transbordar de uma ale-
ligados por estreitos laços de parentesco. No entanto, existe gria profunda e misteriosa. Ainda hoje ele vai com prazer à
uma diferença entre eles, que pode parecer insignificante mas floresta na qual viveram seus antepassados e se sente identi-
que determina tudo. Esta diferença diz respeito aos seus sím- ficado com as árvores.
bolos nacionais de massa. Sua limpeza e delimitação, bem como o arrojo de suas
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linhas verticais diferenciam a floresta da selva tropical, onde iguais e fraternos como nos demais países uma vez por ano
plantas trepadoras crescem em desordem e em todas as dire- podem se comportar como se tivessem essas qualidades. A
ções. Numa selva tropical, o olhar perde-se nas proximidades, Bastilha está tomada e as ruas estão novamente repletas como
numa massa caótica, inarticulada, animada da maneira mais naquela ocasião. A massa, que durante séculos foi vítima da
colorida possível, que exclui toda imposição de norma e de justiça real, exerce a justiça por si mesma. A lembrança das
repetição regular. A floresta das regiões temperadas têm seu execuções daquele tempo — uma série contínua de excitações
ritmo evidente. O olhar se perde ao longo de troncos visíveis, de massa do tipo mais repulsivo — pertence a este senti-
numa distância sempre igual. A árvore isolada, no entanto, é mento de massa, por mais que não se queira admitir isso. Quem
maior do que o homem isolado e continua sempre crescendo se opunha à massa oferecia-lhe sua própria cabeça. Ele devia
até atingir dimensões titânicas. Sua resistência tem muito da sua cabeça à massa e, à sua maneira, isto servia para manter
virtude característica do guerreiro. As cascas, que num pri- e para aumentar o sentimento de plenitude da massa.
meiro momento poderiam ser consideradas como couraças, na Nenhum hino nacional, seja de que país for, possui a
floresta onde estão reunidas tantas árvores da mesma espécie, vivacidade do hino francês — e a Marselhesa originou-se na-
se assemelham mais aos uniformes de uma divisão do exército. quele período. O estalo da liberdade como acontecimento pe-
Para o alemão, sem que ele mesmo tivesse plena consciência riódico, retornando anualmente, esperado anualmente, ofere-
disto, o exército e a floresta se juntaram de várias formas dife- cia grandes vantagens como símbolo de massa de uma nação.
rentes. O que para outros parecia desolado e árido no exército, Até mesmo mais tarde, da mesma forma que outrora, serviu
tinha para o alemão a vida e a luminosidade da floresta. Ele para desencadear as energias da defesa. Os exércitos franceses
não sentia medo dentro dele; ele se sentia protegido, um entre que conquistaram a Europa surgiram a partir da revolução.
muitos. A rigidez e a retidão das árvores foram transformadas Ela encontrou seu Napoleão e sua glória guerreira máxima.
em regras para ele mesmo. As vitórias pertenciam à revolução e ao seu general; ao impe-
O rapaz, atraído pela floresta para fora da estreiteza de rador foi reservada a derrota final.
sua casa, para, como acreditava, poder sonhar e ficar só, vivia Contra esta concepção da revolução como símbolo nacio-
lá de forma antecipada sua incorporação no exército. Na flo- nal de massa dos franceses seria possível fazer várias objeções.
resta já estavam dispostos os demais, que eram fiéis, verda- A palavra aparece de maneira por demais indeterminada, não
deiros e retos como ele mesmo queria ser em relação aos tem o concreto do capitão inglês no seu navio solidamente
outros, porque, embora todos cresçam direito, cada um é muito limitado, nem a ordem lígnea característica do exército alemão
diferente dos outros quanto à altura e à força. Não se deve em marcha. Porém não se deve esquecer que ao navio do
subestimar o efeito deste romantismo precoce da floresta sobre inglês também pertence o mar revolto e, ao exército alemão, a
o alemão. Em centenas de canções e de poemas ele cristalizou floresta ondulante. O mar e a floresta nutrem seus sentimentos
este romantismo e a floresta nestes textos freqüentemente e fixam seu fluxo. Também o sentimento de massa da revo-
chama-se "floresta alemã". lução se expressa num movimento concreto e num objeto
O inglês se via com prazer sobre o mar; o alemão gostava concreto: a tomada da Bastilha.
de se ver dentro da floresta. É impossível expressar com me- Até há duas ou três gerações, todos teriam acrescentado
nos palavras o que os separa no seu sentimento nacional. à palavra "revolução" o adjetivo "francesa". A lembrança mais
popular dos franceses também os caracterizava diante do mun-
do; era o que de mais peculiar eles tinham produzido. Desta
Franceses forma os russos, com sua revolução, acabaram provocando uma
brecha sensível no sentimento nacional dos franceses.
O símbolo de massa dos franceses tem uma história jovem;
é a sua revolução. A festa da liberdade é comemorada todos os Suíços
anos. Ela se transformou na festa nacional da alegria propria-
mente dita. No dia 14 de julho cada qual pode dançar com Um
estado cuja coesão nacional ninguém discute é a Suíça.
quem quiser na rua. Homens que em geral são tão pouco livres, O sentimento patriótico dos suíços é maior do que o de
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muitos povos que falam apenas um idioma. O uso de quatro Espanhóis
línguas, a multiplicidade dos cantões, sua estrutura social dis-
tinta, o contraste das religiões cujas guerras ainda permanecem Assim como o inglês se vê como capitão, o espanhol se vê
em lembranças históricas -- nada consegue perturbar seria- como matador. Mas em vez do mar que obedece ao capitão, o
mente a consciência nacional dos suíços. Mas é verdade toureiro é dono da multidão que o admira. O animal, que ele
deve abater segundo as nobres regras de sua arte, é o velho
que eles têm em comum um símbolo de massa, que está cons-
monstro traiçoeiro das lendas. Ele não pode demonstrar medo;
tantemente diante dos seus olhos e que é inabalável como o
seu controle é tudo. Cada um de seus menores movimentos é
de nenhum outro povo: as montanhas.
visto e julgado por milhares de pessoas. É a arena romana que
De qualquer lugar o suíço vê sempre o cume de suas sobreviveu aqui, mas o toureiro se transformou num nobre
montanhas. Mas de alguns pontos a seqüência parece ser mais cavaleiro; ele aparece como combatente único; a Idade Média
completa. A sensação que destes pontos se possam ver, juntas, modificou o seu sentido e o seu traje, mas, principalmente, o
todas as suas montanhas, confere a estes pontos de visão um seu prestígio. O animal selvagem submetido, o escravo dos
caráter sacro. As vezes, ao entardecer, em dias que não podem homens, ergue-se mais uma vez contra ele. Mas o 'herói dos
ser previstos, sobre os quais o ser humano não tem influência tempos míticos, que partiu para submetê-lo, está presente. Ele
alguma, as montanhas começam a fulgir: esta é a sua consa- se apresenta diante de toda a humanidade; está tão seguro de
gração suprema. Tanto o seu difícil acesso como a sua dureza seu ofício que é capaz de representar o combate ao monstro
inspiram segurança ao suíço. Separadas nos seus cumes, nas em todos os detalhes aos seus espectadores. Ele conhece exa-
partes superiores, as montanhas estão coesas na parte inferior, tamente sua capacidade; seus passos são calculados e seus
formando um corpo único, gigantesco. São um corpo apenas e movimentos têm a previsão de uma dança. Mas ele mata real-
este corpo é o próprio país. mente. Milhares de pessoas vêem esta morte e a multiplicam
Os planos de defesa dos suíços durante as duas guerras pela excitação.
passadas expressam esta identificação de sua nação com a A execução do animal selvagem, que já não deve ser sel-
própria cordilheira dos Alpes. Todas as terras férteis, todas as vagem mas que se torna selvagem para, justamente por causa
disto, ser condenado à morte, esta execução, o sangue e o
cidades, todos os locais de produção deveriam ser evacuados
cavaleiro sem mácula refletem-se de maneira dupla aos olhos
num caso de ataque. O exército se retiraria para a cadeia de
dos admiradores. Passa-se a ser pessoalmente o cavaleiro que
montanhas e ali combateria. O povo e a terra seriam sacrifica- combate o touro, mas também se é a massa que o aplaude.
dos. Mas o exército nas montanhas continuaria representando Sobre o toureiro, que seria a própria pessoa, o indivíduo vê-se
a Suíça, e o símbolo de massa da nação se converteria no pró- outra vez a si mesmo, do outro lado, como massa. Como o
prio país. anel é coeso, passa-se a ser uma criatura fechada em si mesma.
É um dique particular que os suíços possuem ali. Eles Por todos os lados encontram-se olhares; por todos os lados
não precisam, como os holandeses, construí-lo com suas pró- ouve-se uma voz, escuta-se a si mesmo.
prias mãos. Eles não o constroem, não o derrubam; não existe E assim o espanhol, que está cioso do seu matador, se
um mar que se arroja contra ele. Suas montanhas permanecem; acostuma desde cedo à visão de uma massa muito determinada.
basta conhecê-las bem. Eles as escalam e percorrem em todas as Ele aprende a conhecê-la profundamente. Ela é tão viva que
reentrâncias. Elas têm a força magnética de um ímã e atraem exclui muitos desenvolvimentos e formações mais recentes,
pessoas de todos os países que imitam os suíços na admiração inevitáveis em países de outro idioma. O toureiro no anel, como
e na exploração das montanhas. Os alpinistas dos países mais o vê o espanhol, se transforma também em seu símbolo nacio-
remotos são algo assim como crentes suíços; seus exércitos espa- nal de massa. Quando se pensa em muitos espanhóis reunidos,
lhados pelo mundo inteiro, após um breve e periódico serviço pensa-se no local onde eles se reúnem com mais freqüência.
nas montanhas, mantêm vivo o prestígio da Suíça. Valeria a Comparadas com estas violentas alegrias de massa, as da Igreja
são massas mansas e inofensivas. Isto nem sempre foi assim,
pena analisar até que ponto isto contribuiu na prática para e naqueles tempos em que a Igreja não vacilava em acender o
manter a.independência da Suíça.
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fogo dos infernos para os hereges aqui mesmo na terra, a eco- época em que as nações, no sentido moderno, ainda nem
nomia de massa do espanhol estava ordenada de urna forma
completamente diferente. existiam.
Entre estas duas Romas, o sentimento nacional da Itália
mo derna ficou paralisado. Não havia lesaj5- -ãíória possível, pois
ma existia e os romanos tinham sido a Itália. O fascismo
Ro
Italianos tentou a solução aparentemente mais fácil e adotou o traje
autêntico e antigo. Mas este traje não lhe assentava bem, era
O sentimento de si mesma de uma nação moderna, seu com- a mplo demais, e tão violentos foram os movimentos que nele
portamento numa guerra dependem em grande parte do reco-
se permitiram que ele acabou quebrando todos os ossos. Os
nhecimento do seu símbolo nacional de massa. Neste sentido foros todos podiam ser desenterrados, um depois dos outros,
a história prega peças desagradáveis a muitos povos, muito mas eles não voltaram a se encher de romanos. Os feixes de
tempo depois de eles terem obtido sua unidade. A Itália pode varas somente despertavam o ódio dos que eram açoitados por
servir de exemplo para demonstrar como é difícil para uma estas varas; ninguém se orgulhava das ameaças ou dos casti-
nação ver-se a si mesma, quando suas cidades se sentem afeta- gos. A tentativa de impor pela força um falso símbolo nacional
das pela presença de recordações maiores e o seu presente é de massa à Itália, para sorte de todos os italianos, acabou
perturbado conscientemente por estas recordações. fracassando.
Enquanto a Itália ainda não tinha conquistado sua uni-
dade, tudo era bem mais claro para as pessoas; o corpo des-
pedaçado voltaria a se reunir, a se sentir e a se comportar Judeus
como um único organismo, assim que o inimigo — essa pra-
ga — tivesse sido expulso. Em tais casos de sentimento agudo Nenhum povo é mais difícil de ser compreendido do que o
de opressão, quando o inimigo já se encontra há muito tempo judeu. Os judeus estão espalhados por toda a Terra habitada,
no país, todos os povos criam para si idéias análogas a res- seu país de origem estava perdido para eles. Sua capacidade
peito de sua situação. O inimigo é visto como numeroso, feio, de adaptação é famosa e malfadada, mas seu grau de adap-
odiado, como uma nuvem de gafanhotos que vive do solo bom tação é tremendamente variável. Havia entre eles espanhóis,
e generoso dos nativos. E, se tem sérias intenções de ficar, ele chineses e indianos. Carregam consigo idiomas e culturas de
se mostra inclinado a dividir este solo e a enfraquecer os nativos, um país para outro, e os conservam com maior tenacidade
debilitando de mil maneiras suas vinculações. A reação é então do que a seus próprios haveres. Os tolos podem falar a res-
a vinculação secreta, e numa série de momentos afortunados peito da igualdade dos judeus por toda parte; quem os co-
se elimina a praga nociva. Foi exatamente isto o que acabou nhece, porém, terá antes a opinião de que entre eles existem
acontecendo, e a Itália encontrou sua unidade, desejada em mais tipos distintos do que entre os membros de qualquer
vão por muitos e freqüentemente pelos seus espíritos mais outro povo. A amplitude de variação dos judeus quanto à
esclarecidos. essência e à aparência faz parte das coisas mais assombrosas
Mas a partir desse momento se percebe que não se de- que se podem encontrar. O mito popular de que entre eles se
volve a vida sem perigo a uma cidade como Roma. Os edifícios acham tanto os melhores como os piores homens expressa isto
de massa dos tempos passados continuam de pé, vazios; o de forma ingênua. Eles são diferentes dos demais. Mas na
anfiteatro era uma ruína demasiadamente bem conservada. verdade, se pudéssemos dizer assim, eles são os mais dife-
Dentro dele as pessoas tinham de sentir-se modestas e margi- rentes entre eles próprios.
nalizadas. A segunda Roma, a Roma de São Pedro, pelo con- Eles já despertam admiração pelo simples fato de ainda
trário, preservara bastante de sua velha atração. A basílica de existirem. Não são os únicos homens que estão espalhados pelo
São Pedro se enchia com peregrinos vindos do mundo inteiro; mundo todo, pois os armênios estão difundidos com a mesma
como pólo de discriminação nacional, porém, esta segunda amplitude. Também não são o mais antigo de todos os povos:
Roma não era apropriada de forma alguma. Ela se dirigia sem a história dos chineses remonta a tempos mais remotos. Mas,
diferença a todos os homens, sua organização remontava a uma entre todos os povos antigos, os judeus são os únicos que
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migram há tanto tempo. Eles tiveram o tempo mais amplo tada, é mantida unida. A quantidade de homens na caravana,
para desaparecer sem deixar vestígios; entretanto, estão hoje de seiscentos a setecentos mil, não é enorme apenas para as
mais presentes do que nunca. modestas pretensões daqueles tempos. De importância especial
Até poucos anos atrás, não havia entre os judeus uma é a duração da marcha. O que na massa perdura por quarenta
unidade territorial ou lingüística. A maioria já não entendia anos mais tarde pode perdurar por qualquer tempo. A impo-
mais o hebraico e eles falavam cem línguas diferentes. Para sição desta duração como castigo se parece porém com todos
milhões deles sua antiga religião era um saco vazio; até mesmo os padecimentos de migrações posteriores.
o número de judeus convertidos ao Cristianismo foi aumen-
tando paulatinamente, de modo particular entre os intelec-
tuais; e muito mais ainda o número de ateus. Considerando-se A Alemanha de Versalhes
o fato de maneira superficial, do ponto de vista comum da
autoconservação, eles deveriam fazer tudo o que lhes fosse Para esclarecer o máximo possível a delimitação dos conceitos
possível para que o mundo esquecesse que são judeus, para que foram estabelecidos aqui, é preciso dizer algo a respeito
eles mesmos se esquecerem disso. No entanto eles não o es- da estrutura de massa da Alemanha, da Alemanha que du-
quecem, e na maioria dos casos não querem esquecer. É o caso rante o primeiro terço deste século surpreendeu o mundo com
de se perguntar em que continuam sendo judeus esses homens, formações e tendências novas, cuja seriedade mortal ninguém
o que é que os faz serem judeus, qual o elemento definitivo
compreendia e que somente agora lentamente está começando
que os vincula uns aos outros quando dizem: eu sou judeu. a ser decifrada.
Este elemento está no começo de sua história e tem rea- O símbolo de massa da nação alemã unificada, como se
parecido com aterradora regularidade no decorrer dessa histó- formou depois da guerra francesa de 1870-1871, era e con-
ria: é o êxodo do Egito. É preciso que se tenha presente o tinuou sendo o exército. Todo o alemão se orgulhava dele;
conteúdo dessa tradição: um povo inteiro, em enormes mul- houve muito poucos que conseguiram subtrair-se à avassala-
tidões, migra durante quarenta anos através do deserto. Ao dora influência deste símbolo. Um pensador de cultura uni-
seu ancestral mítico foi anunciada uma descendência numerosa versal como Nietzsche recebeu desta guerra o impulso inicial
como a areia do mar. Agora essa descendência está presente e para sua obra da "vontade de poder": foi a visão
caminha como outra areia sobre a areia do deserto. O mar, de um esquadrão de cavalaria, da qual ele jamais se esqueceu.
que se abate sobre os inimigos, os deixa passar. Sua meta é Esta referência não é ociosa; ela mostra até que ponto era
uma terra prometida que será conquistada pela espada. generalizado o significado do exército para o alemão, como
A imagem desta multidão, que cruza durante anos e anos este símbolo de massa exercia sua ação até mesmo entre os
o deserto, transformou-se em símbolo de massa para os judeus. que, orgulhosamente, souberam marginalizar-se de tudo o que
Ela se conservou tão nítida e apreensível como em outros tem- lhes lembrasse a multidão. Burgueses, camponeses, trabalha-
pos. O povo se vê reunido; inclusive antes de terem se estabe- dores, intelectuais, católicos, protestantes, bávaros, prussianos,
lecido e se dispersado, eles se vêem em migração. É neste todos viam no exército o símbolo da nação. As raízes mais
estado de densidade que eles recebem suas leis. Têm uma meta profundas deste símbolo, sua origem na floresta, já foram
como nenhuma massa jamais a teve. Passam por aventuras e esclarecidas em outro local. Floresta e exército estão intima-
mais aventuras, um destino sempre compartilhado. Trata-se mente relacionados para o alemão, e tanto um como o outro
de uma massa nua; a multiplicidade, que geralmente entrelaça podem ser considerados como o símbolo de massa da nação;
o homem numa rede de vidas isoladas, praticamente não existe neste sentido, sem dúvida alguma, ambos são a mesma coisa.
neste ambiente. Em torno deles existe apenas areia, a mais É de importância decisiva o fato de que o exército, além
nua de todas as massas; nada como a areia conseguiria levar da sua eficiência simbólica, também existisse de forma con-
mais alto o sentimento de se estar sozinho consigo mesmo -- creta . U vive na imaginação e no sentimento dos
exatamente como esta caravana em marcha. Com freqüência homens;msoist ocorreu na curiosa formação floresta-exército. O
a meta desaparece e a massa ameaça desintegrar-se; com os ccoitrore,uno qual to do . ovem ale mão servia , tinha ,
verdadeiro exército,
golpes fortes dos tipos mais diversos ela é despertada, é limi- pelo contrário, a função de uma assa f echada. A cre nça no
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serviço militar geral e obrigatório, a convicção do seu sentido
profundo, a veneração que provocava iam mais além do que Tratado de Versalhes não tivesse dissolvido o exército dos
as religiões tradicionais, interessando tanto aos católicos como alemães. A proibição do serviço militar geral e obrigatório
privou os alemães da sua massa fechada mais essencial. Os
aos protestantes. Quem se excluía não era alemão. Já se disse
que os exércitos somente devem ser considerados como massa exercícios, que agora lhes eram proibidos, o receber e transmi-
tir ordens eram algo que todos precisavam procurar conseguir
num sentido bastante restrito. Porém, no caso do alemão, era
diferente: ele sentia a vivência do exército como a mais impor- novamente por todos os meios possíveis. A proibição do ser-
tante de suas massas fechadas. Ela era fechada uma vez que viço militar geral e obrigatório é o nascimento do nacional-so-
cialismo. Toda a massa fechada, dissolvida à força, transforma-
apenas determinadas faixas etárias de jovens serviam nela por
se numa massa aberta à qual comunica todas as suas caracte-
um tempo limitado. Para os demais, o exército era uma pro- rísticas. O partido toma o lugar do exército e para ele, dentro
fissão, e já por isso deixava de ser algo coletivo. Mas todos os da nação, não existem fronteiras. Todo o alemão — homem,
homens passavam uma vez por ele e permaneciam interior- mulher, criança, soldado ou civil — pode tornar-se um nacio-
mente ligados a ele durante toda a vida. nal-socialista; com freqüência a importância disto é maior para
Como cristal de massa servia neste exército a casta prus- aquele que não foi soldado, porque desta forma ele consegue
siana dos junkers, aristocratas rurais que constituíam a melhor
a participação numa conduta que de outra forma lhe seria
parte do corpo estável de oficiais. Era como uma ordem de
leis rígidas, se bem que não escritas; ou como uma orquestra vedada.
Com uma insistência infatigável e sem paralelo, Hitler
hereditária que conhece e que ensaiou com precisão a música
com a qual deverá contagiar o seu público. usou o slogan do Tratado de Versalhes com suas imposições.
Quando teve início a Primeira Guerra Mundial, todo o A eficácia deste slogan provocou muita surpresa e espanto.
Sua repetição não prejudicou sua eficiência; pelo contrário, a
povo alemão se transformou em uma única massa aberta. O
eficiência foi aumentando com os anos. Em que consistia esse
entusiasmo reinante naqueles dias já foi descrito muitas vezes.
No exterior, muitos tinham contado com a idéia internacio- slogan? O que é que Hitler transmitia com ele a seus ouvin-
tes? Para os alemães, a palavra Versalhes não significava tanto
nalista dos social-democratas e se surpreenderam com seu fra-
a derrota, que eles de resto jamais aceitaram realmente, mas
casso total. Eles não consideraram que também estes social-de-
sim a proibição do exército; a proibição de um exercício de-
mocratas levavam dentro de si como símbolo de sua nação a terminado e sacrossanto, sem o qual o alemão dificilmente
"floresta-exército"; eles mesmos tinham pertencido à massa conseguia imaginar a vida. A proibição do exército era como
fechada do exército; e nesta massa eles estavam sob as ordens
a proibição de uma religião. A fé dos pais estava impedida;
e sob a influência de um cristal de massa preciso e extrema- restabelecê-la era o dever sagrado de cada homem. A palavra
mente eficaz: a casta dos junkers e dos oficiais. Em relação a Versalhes mexia nesta ferida todas as vezes que era pronun-
isto, o fato de pertencerem a um determinado partido político
ciada; ela servia para manter este ferimento vivo, sempre san-
tinha pouca importância.
grando, sem jamais cicatrizar. Enquanto nas reuniões de massa
Mas aqueles primeiros dias de agosto de 1914 são tam- a palavra Versalhes continuasse sendo proferida com bastante
bém o momento de concepção do nacional-socialismo. Existe ênfase, impedia-se todo o princípio de uma eventual cura.
uma declaração acima de qualquer suspeita a este respeito É significativo que sempre se falou de um Diktat, nunca
feita por Hitler: ele conta como, ao ficar sabendo da declara- de um tratado. Diktat lembra a esfera da ordem. Uma ordem
ção de guerra, caiu de joelhos e agradeceu a Deus. Esta foi sua única, estranha, ordem do inimigo, chamada por este motivo
vivência decisiva, o único momento em que ele próprio foi de Diktat, tinha suprimido o direito de se transmitirem ordens
sinceramente massa. Não se esqueceu deste momento; toda a militares de alemães para alemães. Quem ouvia ou lia a expres-
sua trajetória posterior foi dedicada à reconstrução deste mo- são Diktat de Versalhes sentia da maneira mais profunda pos-
mento, mas a partir de fora. A Alemanha tinha de voltar a sível o que lhe tinha sido proibido: o exército alemão. Sua
ser, como naquele instante, consciente de sua força militar de reconstrução aparecia como sendo a única meta realmente im-
choque, concordando com ela, unificada nela. portante. Com ela, tudo voltaria a ser como antes. O signi-
Mas Hitler jamais teria alcançado o seu objetivo se o ficado do exército como símbolo nacional de massa não tinha
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sido abalado em nada; a parte mais profunda e mais antiga do Seu efeito é duplo: o do signo e o da palavra. E ambos
símbolo continuava intata: como floresta. têm algo de cruel. O próprio signo tem alguma coisa de duas
A escolha da palavra Versalhes como slogan central foi forças torcidas. Ele ameaça o observador de forma um pouco
extremamente feliz do ponto de vista de Hitler. Ela não ape- traiçoeira, como se quisesse dizer: espere, você ainda vai se
nas relembrava o último e doloroso acontecimento da vida espantar de ver quem penderá aqui. E, dado que a cruz gama-
nacional dos alemães, a proibição do serviço militar geral e da tem um movimento rotatório, este também é ameaçador:
obrigatório, a abolição do direito a um exército no qual todos lembra os membros partidos dos que antes eram amarrados
os homens pudessem ingressar durante alguns anos, como à roda de torturas.
também resumia outros momentos importantes e bem conhe- A palavra buscou na cruz cristã as características cruéis e
cidos da história alemã. sangrentas, como se fosse bom crucificar. As gamas, os gan-
Em Versalhes tinha sido fundado, por Bismarck, o segun- chos, relembram as brincadeiras, as rasteiras das crianças e
do Reich alemão. A unidade alemã — imediatamente após anunciam aos partidários o grande número dos que serão der-
uma grande vitória — tinha sido proclamada num instante de rubados. Para muitos também pode abrir uma saída crucial
euforia e de força irresistível. A vitória tinha sido conquistada para o ambiente militar, relembrando o hábito de bater os
sobre Napoleão III, que se considerava como sucessor do calcanhares numa postura típica do exército (em alemão
grande Napoleão; carregado pela veneração legendária em re- Hackenschlagen significa "bater os calcanhares"). De qualquer
lação ao seu nome, ele tinha ascendido ao trono como herdei- forma, a cruz gamada reúne uma ameaça de castigos cruéis
ro do espírito de seu antecessor. Mas Versalhes também foi com uma capciosa malícia e uma advertência dissimulada de
a residência de Luís XIV, que construiu o palácio. De todos disciplina militar.
os soberanos franceses anteriores a Napoleão, Luís XIV foi o
que mais profundamente humilhou os alemães. Por causa dele,
Estrasburgo com sua catedral tinha sido anexada à França. Inflação e massa
Suas tropas tinham devastado o castelo de Heidelberg.
A proclamação do imperador alemão em Versalhes era, Uma inflação é um fenômeno de massa no sentido mais
por tudo isso, como que uma vitória tardia e resumida sobre próprio e restrito da palavra. O efeito perturbador que exerce
Luís XIV e Napoleão juntos, e tinha sido obtida sem a ajuda sobre a população de países inteiros em caso algum está limi-
de nenhum aliado. Para um alemão daquela época isto tinha tado ao momento da própria inflação. Pode-se afirmar que nas
de causar efeito; existem testemunhos suficientes que o con- nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as
firmam. O nome deste palácio estava vinculado ao maior revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja com-
triunfo da história alemã mais recente. parável às inflações. As comoções, os abalos que provocam
Cada vez que Hitler falava do malfadado Diktat, voltava a são de natureza tão profunda que se prefere ocultá-las e es-
soar na palavra a lembrança daquele triunfo que se transmitia quecê-las. Talvez também se receie atribuir ao dinheiro, cujo
como promessa aos ouvintes. Os inimigos deveriam ter ouvi- valor é artificialmente fixado pelo próprio homem, efeitos ge-
do esta palavra como ameaça de guerra e de derrota se tives- radores de massa que vão muito mais além de sua determina-
sem tido ouvidos para escutar. Pode-se dizer sem exagero que ção propriamente dita e que têm algo de absurdo e de infini-
todos os slogans importantes dos nacional-socialistas, exce- tamente vergonhoso.
tuando-se apenas os que eram dirigidos contra os judeus, po- É necessário entrar neste assunto e dizer alguma coisa a
dem ser derivados do Diktat de Versalhes: o Terceiro Reich, respeito das propriedades psicológicas do próprio dinheiro. O
Sieg-Heil e assim por diante. O conteúdo deste movimento dinheiro pode transformar-se em símbolo de massa; mas, ao
estava incluído de forma concentrada nesta única frase: "A contrário de todos os outros que foram tratados aqui, é um
derrota que há de se transformar em vitória"; o exército símbolo no qual as unidades — pelo acúmulo das quais, em
proibido que, para este objetivo, ainda será formado. determinadas circunstâncias, se constitui uma massa — estão
Talvez ainda se deva dar um muco de atenção ao sím- categoricamente realçadas. Cada moeda está claramente delimi-
bolo do movimento, a cruz gamada. tada e possui um valor próprio; ela é reconhecível à primeira
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vista, circula livremente de mão em mão e muda interminavel- dragões dos contos, para os quais a vigilância, a contemplação,
mente de lugar. Freqüentemente leva estampada a efígie de os cuidados de um tesouro eram o único conteúdo da vida.
um soberano, que às vezes lhe dá o nome, principalmente quan- Seria possível objetar-se que esta relação com a moeda e
do ela é de alto valor. Existiram luíses de ouro e táleres Maria tesouro é antiquada para o homem moderno; que em todos
o
Teresa. Sente-se com prazer a moeda como sendo uma pessoa os lugares já se usa o papel-moeda; que as pessoas ricas guar-
apreensível. A mão que se fecha em torno dela, a sente por dam seus tesouros de forma invisível e abstrata nos bancos.
completo, em todos os seus relevos e superfícies. Uma certa Mas a importância das reservas de ouro para se ter boas divisas
ternura pela moeda, que nos pode proporcionar isto ou aquilo, mostra que o tesouro ainda não perdeu, em absoluto, seu
é universalmente humana e contribui para o seu "caráter" pes- antigo significado. A maioria dos homens, também nos países
soal. Num ponto a moeda supera a criatura viva: sua con- tecnicamente mais desenvolvidos, é assalariada pelo seu tra-
sistência metálica, sua dureza, lhe assegura uma existência balho horário e o montante deste salário se movimenta numa
"eterna"; ela — a não ser pelo fogo — dificilmente pode ser ordem que, em quase todas as partes, ainda é concebida em
destruída. A moeda não cresce até atingir seu tamanho; ela já termos de moeda. Ainda se recebem moedas em troca de pa-
sai pronta da matriz e deve continuar sendo o que é; ela não pel-moeda; o velho sentimento em relação às moedas, a velha
deve mudar. atitude perante elas continuam sendo familiares a todos; a
É possível que esta confiabilidade da moeda seja a sua troca de dinheiro como atividade cotidiana pertence aos me-
característica principal. Do seu proprietário tão-somente depen- canismos mais freqüentes e simples da nossa vida, que toda a
de guardá-la bem; ela não sai correndo por conta própria como criança aprende o mais cedo possível.
um animal; apenas tem de ser vigiada em relação às outras pes- Mas é correto que, ao lado desta relação mais antiga, de-
soas. Não é preciso desconfiar dela, ela pode ser utilizada sem- senvolveu-se uma outra forma de relação para com o dinheiro.
pre, não tem caprichos que devam ser levados em consideração. A unidade monetária de cada país adquiriu um valor mais
Além disso, cada moeda se autoconsolida em seu relaciona- abstrato. Mas nem por isso ela deixa de ser considerada como
mento com outras moedas de valor diferente. A hierarquia unidade. Se as moedas antes tinham algo da rígida organização
entre as moedas, que é rigidamente respeitada, faz com que hierárquica de uma sociedade fechada, agora, com o papel-
elas se pareçam ainda mais com as pessoas. Seria possível falar moeda, as coisas ocorrem mais como entre os homens das
de um sistema social das moedas com várias classes, que neste grandes metrópoles.
caso são classes de valores; com uma moeda de valor elevado O tesouro se transformou hoje no milhão. Existe algo de
pode-se obter outras de valor menor; com uma inferior, jamais cosmopolita nesta palavra, cujo significado se estende por todo
uma superior. o universo moderno, podendo referir-se a qualquer moeda. O
O monte de moedas é conhecido desde os tempos mais interessante no milhão é que, através de uma habilidade espe-
remotos, e entre a maioria dos povos, como tesouro. Na ma- culativa, ele pode ser conseguido repentinamente: ele flutua
neira como ele é percebido como unidade, na forma em que é diante de todos os homens cuja ambição está orientada na di-
encontrado, sem que se saiba quanto ele realmente contém, reção do dinheiro. O milionário assumiu para si algumas das
existe muito de massa. O tesouro pode ser revolvido, sepa- qualidades mais esplêndidas dos velhos reis das lendas. Como
rando-se moeda por moeda. Espera-se sempre que ele seja maior designação de um número, o milhão tanto pode referir-se ao
do que é. Freqüentemente ele é oculto e pode ser descoberto dinheiro como aos homens. Este caráter duplo da palavra pode
de um momento para o outro. Mas a esperança não é somente ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer vo-
do homem que durante toda a sua vida sonha encontrar um luptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo,
tesouro; quem o acumula também espera que ele cresça cons- é característico dos discursos de Hitler. Em geral ele se refere
tantemente, e faz tudo o que lhe é possível para conseguir aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich
que isso aconteça. Não resta a menor dúvida de que em alguns e que ainda precisam ser redimidos. Depois das primeiras vitó-
homens, que vivem apenas para seu dinheiro, o tesouro acaba rias incruentas antes do início da guerra, Hítler tinha uma pre-
assumindo o lugar da massa humana. Muitas histórias de ava- dileção especial pelas cifras crescentes da população do seu
Reich. Ele as confrontava com o total de todos os alemães que
rentos solitários pertencem a este tipo; são a continuação dos
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iffer"—
vivem na Terra. Tê-los todos em sua esfera de influência era centa, tudo se torna cada vez menos tudo, todo tesouro desa-
seu objetivo declarado. E ele também sempre empregava a parece. Pode-se considerar a inflação como uma festa de bruxos
palavra milhão em suas ameaças e exigências. Outros políticos da desvalorização, na qual homens e unidades monetárias con-
usam mais esta palavra com referência ao dinheiro. Mas o uso fluem da maneira mais estranha. Um substitui o outro; o
da palavra adquiriu sem dúvida algo de ambíguo. O número homem se sente tão mal quanto o dinheiro que fica cada vez
abstrato foi preenchido pelas cifras das populações dos países pior; e todos estão entregues a este mau dinheiro e juntos se
e sobretudo das grandes cidades, que em todos os lugares sem- sentem igualmente sem valor.
pre são expressas em milhões, acabando por adquirir um con- Na inflação, portanto, ocorre algo que propositalmente
teúdo de massa inexistente hoje em dia em qualquer outro nunca se quis, algo tão perigoso que todo aquele que de qual-
número. Como o dinheiro está relacionado com o milhão, quer forma tenha alguma responsabilidade pública, caso pu-
massa e dinheiro estão atualmente mais próximos do que desse prevê-lo, deveria retroceder assustado: uma desvaloriza-
nunca. ção dupla que se origina de uma dupla identificação. O ser
Mas o que acontece numa inflação? A unidade mone- singular se sente desvalorizado, porque a unidade na qual
tária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transfor- confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou
ma numa massa crescente de unidades; estas possuem cada vez a deslizar para baixo. A massa se sente desvalorizada porque
menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que o milhão foi desvalorizado. Já se mostrou até que ponto é am-
sempre tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas bígua a utilização da palavra milhão; como é usada para ambas
mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim. as coisas (a elevada soma de dinheiro e o grande conglomerado
É como se o ato de saltar tivesse retirado todo o valor de quem de homens, especialmente na idéia que se faz de uma grande
salta. Uma vez que a moeda entra neste movimento, que tem cidade moderna); como um conceito passa para o outro e ali-
o caráter de fuga, não é previsível um limite. Assim como se
menta o outro. Todas as massas que se formam em tempos de
pode contar chegando-se sempre a números superiores, o di-
inflação — e é justamente nestes períodos que elas se formam
nheiro também pode desvalorizar-se cada vez mais.
aos montes — estão sob a pressão do milhão desvalorizado.
Neste acontecimento reencontra-se aquela propriedade da
Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale então
massa psicológica que considerei como especialmente importan-
unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo
te e notória: o prazer pelo crescimento rápido e ilimitado. Mas
de milhões se converte em nada.
este crescimento se volta para o negativo: o que cresce tor-
na-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco, é agora Este acontecimento reúne homens cujos interesses mate-
dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do riais, em outras ocasiões, divergem totalmente. O assalariado
homem individual com o seu marco é abolida desta forma. fica tão confuso pela situação como o que vive de rendas.
O marco perdeu sua solidez e seu limite; a cada momento ele Numa só noite, pode-se perder muito e tudo, inclusive aquilo
é algo diferente. Ele já não é mais como uma pessoa e não tem que se acreditava estar em boa segurança depositado no banco.
duração alguma. Tem cada vez menos valor. O homem, que A inflação abole diferenças entre os homens que pareciam ter
confiava nele, não pode evitar sentir seu rebaixamento como sido criadas para toda a eternidade e reúne numa mesma massa
um rebaixamento dele próprio. Afinal, ele se identificou du- de inflação pessoas que, em outras circunstâncias, dificilmente
rante muito tempo com o marco, a confiança que tinha nele se teriam sequer cumprimentado nas ruas.
era como a confiança em si mesmo. A inflação não abala ape- Nenhuma desvalorização repentina da pessoa consegue ser
nas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece 'olvidada: ela é por demais dolorosa para que isso possa acon-
no mesmo local durante uma hora; mas em virtude da infla- tecer. Carrega-se o fardo consigo durante a vida toda, a não
ção ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele ser que se consiga jogá-lo sobre uma outra pessoa. Mas a mas-
foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é sa como tal também não se esquece de sua desvalorização. A
nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada. O processo da tendência natural então é a de encontrar algo que valha ainda
formação do tesouro inverteu-se passando a ser o contrário. menosdo que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado
Toda a confiabilidade do dinheiro evaporou-se. Nada se acres- da mesma forma como se foi desprezado antes. Não é suficiente

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apoderar-se deste desprezo tal como foi encontrado, conser-
vá-lo no nível em que estava antes de ser alcançado. O que se
A essência do sistema parlamentar
faz necessário é um processo dinâmico de rebaixamento: é
preciso tratar alguma coisa de tal maneira que ela valha cada o sistema de dois partidos do parlamento moderno uti-
liza a estrutura psicológica dos exércitos combatentes. Na guerra
vez menos, como a unidade monetária durante a inflação, e civil eles estavam realmente presentes, se bem que a contra-
este processo deve continuar até que o objeto tenha chegado gosto. Não se mata com prazer gente do nosso próprio povo,
a um estado de completa carência de valor. Então é possível sempre existe um sentimento de tribo que se opõe às guerras
jogá-lo fora como um papel com impressão defeituosa. civis e, na maior parte das vezes, faz com que elas terminem
Durante a inflação alemã, Hitler encontrou como objeto logo após alguns anos, ou antes. Mas os dois partidos que
para esta tendência os judeus. Eles eram ideais para represen- existem devem continuar se enfrentando. Lutam, abrindo mão
tar este papel: sua antiga vinculação com o dinheiro, para cujos dos seus mortos. Supõe-se que o de número maior vença num
movimentos e flutuações de valor eles tinham como que um choque cruento. A preocupação principal de todos os generais
faro tradicional; suas habilidades nas atividades especulativas, é a de ser o mais forte, de ter mais homens à disposição do
sua afluência às bolsas de comércio, onde sua maneira de agir que o lado contrário num determinado momento e num lugar
contrastava cruamente com o ideal de conduta militar dos ale- de choque real. O general que triunfa é aquele que consegue,
mães, tudo isto devia fazer com que eles parecessem, numa dentro do que é possível em muitas localidades importantes,
época repleta de suspeitas e caracterizada pela falta de estabili- manter a supremacia, mesmo que no conjunto ele seja o mais
dade e pela hostilidade do dinheiro, como particularmente du- fraco.
vidosos e hostis. O judeu era individualmente "mau": ele es- Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão
tava bem com o dinheiro, quando ninguém mais sabia como verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não
lidar com ele, preferindo manter uma boa distância. Se na basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode
inflação se tivesse tratado de processos de desvalorização dos contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação con-
alemães como indivíduos, teria sido suficiente despertar o ódio tinua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma
contra determinados judeus. Mas não era este o caso; os ale- verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que
mães, como massa, estavam se sentindo humilhados pelo des- se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e
crédito dos seus milhões. Hitler, que tinha uma visão muito agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a con-
clara a este respeito, orientou sua atividade contra os judeus tagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os
360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica
como um todo.
fora do jogo. Dentro do parlamento não deve haver mais
No tratamento dos judeus, o nacional-socialismo repetiu
mortos. Esta intenção é expressa de maneira mais clara na imu-
da forma mais exata possível o processo da inflação. Primeiro
nidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em re-
eles foram atacados como maus e perigosos, como inimigos; lação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares
depois foram sendo cada vez mais desvalorizados; como já não (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).
se tinha mais judeus em quantidade suficiente, eles passaram Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da
a ser coletados nos países conquistados; e, no final, eles eram maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também
considerados literalmente como insetos nocivos, que podiam a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa
ser exterminados aos milhões. Ainda hoje ficamos boquiaber- guerra; cada uma destas vontades tem a convicção do maior
tos diante do fato de os alemães terem ido tão longe, de terem direito próprio e da própria razão; é uma convicção fácil de
sido capazes de cometer, de tolerar ou de ignorar um crime ser encontrada, ela se encontra a si mesma. O sentido de um
dessas proporções. Dificilmente eles poderiam ter chegado tão partido consiste justamente nisto, em manter vivas esta vonta-
longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma de O adversário que fica em minoria não se
inflação durante a qual o marco chegou a valer apenas um bi- e esta porque
submete que de repente tenha deixado de acreditar em seu
lionésimo do seu valor original. E foi esta inflação como fenô- direito, m s simplesmente porque se dá por vencido. É fácil
meno de massa que eles descarregaram sobre os judeus. para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é
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castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de
eles haveriam de conquistar a vitória. Aqui também não se
colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma completamente
deve chegar ao ponto em que haja mortos. No entanto, a imu-
diferente. Porém ele conta com batalhas futuras. E o número
destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em ba- nidade dos eleitores não é tão importante quanto a das cédulas
talha alguma. de votação, que eles entregam e que contêm o nome do seu
candidato preferido. É permitido influenciar os eleitores de
A igualdade dos parlamentares, justamente o que os trans- quase todas as maneiras, até o momento em que eles se com-
forma em massa, consiste em sua imunidade. Neste ponto não prometem definitivamente com o nome de sua preferência, que
existe diferença alguma entre os partidos. O sistema parla-
mentar funciona enquanto se mantiver esta imunidade. Ele o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironi-
zado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras
desmorona assim que algum posto seja ocupado por alguém possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas
que se permita contar com a morte de qualquer um dos mem- batalhas eleitorais; se ele tiver uma orientação política, seus
bros da corporação. Nada é mais perigoso do que ver mortos destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos. Mas o
entre estes vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui momento da votação propriamente dita é quase sagrado; sa-
mortos em seu resultado. Um parlamento somente é um par- gradas são as urnas fechadas e lacradas que contêm as cédulas
lamento enquanto excluir os mortos. eleitorais; sagrado também é o processo de contagem.
O distanciamento instintivo de seus próprios mortos, por O aspecto solene de todos estes acontecimentos origina-se
exemplo, no parlamento britânico, inclusive dos que morreram na renúncia da morte como instrumento de decisão. Com cada
de forma pacífica e fora do parlamento, manifesta-se no siste- uma das cédulas usadas descarta-se, por assim dizer, a morte.
ma da eleição complementar. O sucessor do defunto não está Mas o que ela teria conseguido, a força do oponente, é cons-
predeterminado. Ninguém sobe de posto e ocupa automatica- cienciosamente anotado em um número. Quem joga com estes
mente o lugar do falecido. Novos candidatos se apresentam. números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar
A luta eleitoral é conduzida novamente em todas as suas à morte e nem sequer se apercebe disto. Os entusiasmados
formas regulares. Para o morto não existe posto de espécie amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de
alguma no parlamento. Ele não tem sequer o direito de dispor votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas in-
de sua própria herança. Nenhum parlamentar que está a ponto tenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tra-
de morrer pode saber com certeza quem chegará a ser seu tados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como
sucessor. A morte, com todas as suas perigosas repercussões, estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor
está eficientemente excluída do parlamento inglês. para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue.
Contra esta concepção do sistema parlamentar seria pos- O deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito
sível levantar a objeção de que todos os parlamentos conti- isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito
nentais são formados por muitos partidos que têm tamanhos mais para o deputado. Ele existe justamente para votar com
desiguais; que estes partidos apenas ocasionalmente se juntam freqüência. Mas também é muito menor o número de homens
em dois grupos de combate. No sentido da votação, este fato entre os quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício
não altera coisa alguma. Ela é sempre e em todos os lugares devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de
o momento essencial. Ela é que determina o que deve aconte- seus grandes números.
cer e ela sempre depende de dois números, dos quais o maior
obriga todos os que participaram da votação. Com a imunidade
do parlamentar vive e morre o parlamento de qualquer país. Divisão e multiplicação. Socialismo e produção
Em princípio, a eleição do delegado está aparentada com
as coisas que acontecem no parlamento. Considera-se como o O problema da justiça é tão antigo quanto o da partilha
melhor dos candidatos, o vencedor, aquele que demonstrar ser ou divisão. Em qualquer lugar onde um grupo de homens saía
o mais forte. O mais forte é o que obtém o maior número de para caçar, sempre se chegava por fim a uma partilha. Na malta,
votos. Se os 17562 homens que o apóiam se formassem como eles tinham agido como unidade, mas na partilha eles voltavam
exército fechado contra os 13.204 que seguem seu adversário, a se separar, a formar indivíduos isolados. Entre os homens
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jamais se desenvolveu um estômago comum que possibilitasse transformaram em massas enormes que em quase todos os
a um certo número deles alimentar-se como se fosse uma única centros da civilização continuam crescendo diariamente. Porém,
criatura. Na comunhão eles deram origem a um ritual que mais
se considerarmos que não é possível prever o fim deste cres-
se aproximava desta idéia de um estômago comum. Foi como cimento, que cada vez mais homens produzem cada vez mais
uma aproximação — insuficiente, mas mesmo assim uma apro- bens, que entre estes bens também se encontram seres vivos,
ximação — de um estado de coisas ideal e do qual sentiam ne- animais e vegetais, que os métodos para a geração de bens
cessidade. O que existe de isolado na ingestão, na incorporação animados e inanimados quase já não se diferenciam mais, será
é uma das raízes da pavorosa formação do poder. Quem come forçoso admitir que a malta de multiplicação foi a formação
sozinho e às escondidas, unicamente para si, também é obrigado mais rica e de maior êxito que a humanidade conseguiu produ-
a matar sozinho e para si. Quem mata junto com os outros zir. As cerimônias que como meta tinham a multiplicação fo-
também deve compartilhar sua presa com os demais. ram transformadas em máquinas e em processos técnicos. Cada
Com o reconhecimento da partilha tem início a justiça. Sua fábrica é uma unidade que serve a um mesmo culto. A novi-
regulamentação é a primeira lei. Até o dia de hoje, esta é a lei dade está na aceleração do processo. O que antes era uma
mais importante e como tal é o objetivo específico de todos os geração e uma intensificação da espera — da chuva, do trigo,
movimentos que se preocupam, de forma definitiva, com a cole- da aproximação de manadas de animais que se caçavam, do
tividade das atividades e da existência do ser humano. crescimento de outros que eram mantidos domesticados —
A justiça exige que cada qual tenha o que comer. Mas ela transformou-se hoje em geração imediata. Apertam-se alguns
também espera que cada qual contribua com sua parte para a botões, mexe-se em algumas alavancas e obtém-se o que se
obtenção deste alimento. A grande maioria dos homens está quer, da forma que se deseja, em algumas horas ou até mesmo
ocupada com a produção de bens de todas as espécies. Alguma em menos tempo.
coisa andou mal com a sua partilha. Este é o conteúdo do so- Vale a pena chamar a atenção para o fato de que a rela-
cialismo, quando reduzido à sua fórmula mais simples. ção rígida e exclusiva entre proletariado e produção, que há
No entanto, seja qual for a opinião que se tenha a res- mais ou menos cem anos ganhou tanto prestígio, restabelece
peito da maneira de repartir os bens no nosso mundo moderno, de maneira particularmente clara a velha idéia que serviu de
tanto os seguidores como os adversários do socialismo estão base para a malta de multiplicação. Proletários são os que
de acordo quando à premissa para a solução deste problema. aumentam mais rapidamente e este aumento ocorre de duas
Esta premissa é a produção. De ambos os lados do conflito formas. Por um lado, eles têm mais filhos do que as demais
ideológico que dividiu a Terra em duas metades atualmente pessoas; já pela sua própria descendência eles têm algo de
de potência semelhante, estimula-se a produção por todos os massa em si. Mas seu número também aumenta de outra ma-
meios. Pouco importa se produzimos para vender ou se pro- neira: pela afluência cada vez maior de homens do campo para
duzimos para repartir; o processo de produção em si não só os locais de produção. E justamente este duplo sentido de
não é discutido por lado algum, como também é venerado e aumento, como sabemos, é uma característica da malta de mul-
não se exagera quando se afirma que este processo atualmente tiplicação primitiva. Para suas festas e cerimônias confluíam
fixá-la historicamente é insuficiente. pessoas que assim, como um todo formado por muitos, se
É possível que as pessoas se perguntem de onde se ori- entregavam a procedimentos que haveriam de lhes garantir
gina esta veneração. Alguém poderia julgar que fosse possível urna rica descendência.
reconhecer um momento da história da humanidade em que Quando foi erigido e efetivado o conceito de um prole-
se tenha iniciado a sanção da produção. Um pouco de reflexão tariado despojado de seus direitos, deixou-se a ele a plena eufo-
mostra que este momento não existe. A sanção da produção ria do aumento. Em momento algum levantou-se a possibili-
remonta a tempos tão distantes que qualquer tentativa de dade de que seu número pudesse ser reduzido, uma vez que
fixá-la historicamente é insuficiente. seus ao
me mbros não passavam bem. Confiava-se na produção.
A hybris da produção remonta à malta de multiplicação. Devido auAmpen
rotodudzta que
produção deveria haver também mais
É fácil ignorar esta relação, uma vez que já não são mais as proletários. eles provocavamdeveria servir
maltas que se dedicam praticamente à multiplicação. Elas se eles mesmos. Proletários e produção tinham de crescer m
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tua dependência. Esta porém é exatamente a mesma relação deveria sacrificar um boi aos espíritos dos mortos e, no quarto
inseparável própria da atividade das maltas primitivas de mul- dia, voltar até onde eles estavam. No aspecto deles havia algo
tiplicação. Queremos nos tornar mais, e desta maneira também que exigia obediência e o homem fez tudo o que lhe tinha
deve se tornar mais tudo aquilo de que se vive. Uma coisa não sido ordenado. No quarto dia retornou ao rio. As estranhas
pode ser separada da outra; tudo está tão intimamente rela- Pessoas lá estavam outra vez; surpreso, reconheceu entre eles
cionado que muitas vezes não se sabe mais o que deve crescer. seu irmão que estava morto havia muitos anos. Foi então que
Já mostramos que o homem, identificando-se com certos ficou sabendo quem eram eles. Disseram que como eternos
animais que sempre vivem juntos em grande número, adquiriu inimigos dos homens brancos tinham vindo dos campos de
um sentimento exacerbado da multiplicação. Seria possível di- batalha além do mar para ajudar os xosas; que graças ao seu
zer que ele somente aprendeu esta idéia a partir dos animais. invencível poder os ingleses seriam desalojados do país; que
Ele tinha diante de si cardumes de peixes, enxames de insetos Umhalakaza teria de servir de intermediário entre eles e os
e enormes manadas de animais quando, em suas danças, repre- chefes e receberia as instruções para retrarsmiti-las. Se a ajuda
sentava estes animais de forma tão perfeita que acabava se oferecida fosse aceita, aconteceriam feitos surpreendentes, mais
transformando neles, que se sentia igual a eles se conseguia surpreendentes do que tudo o que jamais tinha acontecido.
fixar em seus totens essas determinadas metamorfoses para Antes de mais nada, ele deveria dizer às pessoas que acabassem
transmiti-las aos seus descendentes como tradição sagrada; com com suas bruxarias dirigidas contra o próximo e que matassem
isso ele transmitia também uma intenção de multiplicação que e comessem o gado mais gordo.
ultrapassa amplamente a do próprio ser humano. A notícia desta relação com o mundo dos mortos rapida-
Esta é exatamente a relação que atualmente o homem tem mente se divulgou entre os xosas. Kreli, o chefe supremo da
em relação à produção. As máquinas são capazes de produzir tribo, saudou a mensagem com alegria; dizem inclusive, mas
mais do que se podia sonhar. Toda a multiplicação cresceu sem que se possa prová-lo, que ele próprio foi o autor do
assim de uma maneira enorme. No entanto, como de maneira plano todo. Correu a voz de que a ordem dos espíritos devia
geral se trata de objetos e somente em grau menor de seres ser obedecida; deviam ser sacrificados e comidos os melhores
vivos, ele aumenta sua dedicação ao número destes objetos, espécimes do rebanho. Uma parte da tribo vivia sob a sobe-
aumentando sua própria necessidade em relação a eles. Existem rania britânica. Mensageiros foram enviados também aos chefes
cada vez mais coisas para as quais ele vê alguma utilidade; deste setor; eles foram informados do que tinha ocorrido e sua
utilizando estas coisas, geram-se novas necessidades. É este colaboração foi solicitada. Os clãs dos xosas se colocaram ime-
aspecto da produção, a multiplicação irrefreada como tal em diatamente em movimento. A maioria dos chefes começaram
todas as direções, que mais salta à vista em todos os países imediatamente a matança do gado. Somente um deles, Sandi-
"capitalistas". Nos países que dão uma importância especial le, homem prudente, titubeava ainda. O alto comissário inglês
ao "proletariado" — onde se impedem as grandes acumula- mandou que comunicassem a Kreli que ele podia fazer o que
ções de capital nas mãos de 'pessoas individuais — os proble- quisesse em seu próprio território, mas se não deixasse de
mas da distribuição comum são, teoricamente, equivalentes instigar súditos britânicos a destruírem suas propriedades seria
aos da multiplicação. castigado. Kreli pouco se importou com a ameaça; estava con-
vencido de que logo chegaria o momento em que ele distri-
A autodestruição dos xosas buiria os castigos.
As revelações feitas pelo profeta tinham cada vez maior
Numa manhã de maio de 1856, uma jovem xosa foi bus alcance. A jovem, de pé no meio do rio entre multidões incal-
car água num riacho que passava perto de sua casa. Quando culáveis de crentes, ouvia até mesmo estranhos ruídos sub-
retornou, contou que tinha visto uns homens estranhos junto terrâneos que vinham de sob seus pés. Seu tio, o profeta, ex-
ao rio, muito diferentes dos que ela encontrava normalmente. plicou que eram as vozes dos espíritos que confabulavam a
Seu tio, chamado Umhlakaza, foi ver os forasteiros e os encon- respeito dos assuntos dos vivos. A primeira ordem já deter-
trou no lugar indicado. Estes lhe disseram que voltasse para minara que era necessário matar gado; mas os espíritos eram
casa e executasse determinadas cerimônias; em seguida ele insaciáveis. Cada vez se sacrificava mais gado, mas nunca era
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suficiente. O delírio crescia de mês para mês, causando sempre reservas de alimento até o último vestígio. Entre estes estava
novas vítimas. Depois de um certo tempo até o cauteloso chefe
um tio do chefe Kreli. "É a ordem do chefe", disse; depois,
Sandile acabou cedendo. Seu irmão o convenceu com muita quando já não havia mais nada para comer, o ancião e sua
eficiência. Com seus próprios olhos ele teria visto os espíritos
esposa favorita se sentaram num kraal vazio e morreram. Tam-
de dois falecidos conselheiros de seu pai, tendo falado pessoal- bém o principal conselheiro de Kreli se opôs ao plano, até ver
mente com eles; pediam-lhe que ordenasse a Sandile que ma- que suas palavras eram inúteis. Então, declarando que tudo o
tasse seu gado, sob pena de sucumbir junto com o homem que tinha pertencia ao seu chefe, deu ordem para matar e
branco. destruir e fugiu como um demente. É possível que muitos te-
A última ordem do profeta também foi comunicada. Sua nham agido desta forma contra sua própria convicção. O chefe
execução haveria de ser o último preparativo dos xosas; depois ordenava e eles obedeciam.
dela, eles seriam dignos da ajuda de um exército de espíritos. Nos primeiros meses de 1857 reinava uma atividade in-
Nem um único animal deveria continuar com vida em seus comum no país inteiro. Preparavam-se grandes currais para
rebanhos; todos os cereais estocados teriam de ser destruídos. abrigar o gado que logo haveria de chegar em grandes quan-
Para os que obedecessem delineava-se um futuro paradisíaco. tidades. Fabricaram-se gigantescos recipientes de couro para
Num dia predeterminado, rebanhos de milhares e milhares de guardar o leite, que logo iria existir com a abundância da água.
cabeças, mais bonitas do que todas que se tinham matado, sai- Alguns já passavam fome enquanto executavam este trabalho.
riam da terra e cobririam as pastagens por todas as partes. A leste do rio Kei, as ordens do profeta tinham sido executa-
Grandes campos de milho, maduro e pronto para ser consumi- das literalmente, mas mesmo assim o dia da ressurreição tinha
do, brotariam do solo num abrir e fechar de olhos. Neste dia sido adiado. É que no território do chefe Sandile, onde as
os antigos heróis da tribo, os grandes e sábios do passado, res- ordens tinham começado a ser executadas somente mais
suscitariam e participariam do regozijo dos crentes. Desapa- tarde, a matança ainda não chegara ao fim. Uma parte da
receriam a preocupação e a enfermidade, bem como todos os tribo já passava fome, ao passo que outra ainda estava des-
achaques da velhice; a juventude e a formosura seriam atribu- truindo seus haveres.
to tanto dos mortos ressuscitados como dos vivos fracos. Mas O governo fez tudo para proteger suas fronteiras. Todos
pavoroso seria o destino de todos os que se opusessem à von- os postos foram reforçados, todos os soldados disponíveis fo-
tade dos espíritos ou dos que se descuidassem da execução de ram enviados para lá. Os colonos também se tinham preparado
suas ordens: o mesmo dia em que os crentes receberiam tanta para absorver o choque. Depois de se terem preocupado com
alegria seria para eles um dia de ruína e de perdição: o céu a defesa, começaram a reunir provisões para salvar a vida
cairia e os trituraria junto com os mestiços e os brancos. dos que passavam fome.
Os missionários e os agentes do governo se esforçavam Finalmente chegou o dia tão ansiosamente esperado. Du-
em vão para pôr um freio a estes acontecimentos loucos. Os rante a noite toda os xosas tinham ficado acordados na maior
xosas estavam totalmente enlouquecidos e não toleravam obje- das excitações. Eles esperavam ver nascer sobre as colinas do
ção ou resistência. Os brancos que se intrometiam no assunto oriente dois sóis vermelhos como sangue; o céu então cairia e
eram ameaçados; eles já não se sentiam sequer seguros de esmagaria todos os inimigos deles. Quase mortos de fome,
suas próprias vidas. Uma fé fanática tinha se apoderado de passaram a noite em meio a uma alegria selvagem. Depois,
todos os xosas; alguns dos seus chefes, no entanto, viram em finalmente, o sol apareceu como sempre, sozinho, apenas um
tudo isto uma boa oportunidade para iniciar uma guerra. Eles único sol e o coração dos xosas desfaleceu. Mas eles não per-
tinham constantemente um plano em mente: lançar toda a tribo deram as esperanças de imediato; talvez fosse necessário espe-
xosa armada e em estado de extrema inanição contra a colônia rar até o meio-dia, quando o sol alcançasse seu ponto mais
dos brancos. Eles mesmos estavam por demais exaltados para alto; e como então nada aconteceu eles esperaram ainda pelo
conseguir ver os perigos desta empresa, contra o êxito da qual pôr-do-sol. Mas o sol se pôs e tudo terminou.
tudo parecia conspirar. Os guerreiros, que deveriam ter-se lançado juntos contra
Alguns não acreditavam nas previsões do profeta, nem no a col poralgum
gum erro incompreensível não tinham sido
êxito da guerra; mas mesmo assim destruíram todas as suas reunidos. E agora era demasiado tarde para isto. Uma tentativa
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de adiar novamente a data da ressurreição não surtiu efeito. em comunicação com estes. Prometem-lhes um exército auxi-
A alegre excitação dos xosas tinha se transformado no mais liar. Como exército, ou seja, como massa de guerreiros mortos,
profundo desespero. Como mendigos, não como guerreiros, num eles se unirão ao exército dos xosas vivos. Este esforço será
estado de total inanição, tinham agora de tomar o caminho realizado exatamente como se tivesse sido feita uma aliança
em direção à colônia. Por pequenos pedaços dos grandes reci- com uma outra tribo. Mas desta vez trata-se de uma aliança
pientes para o leite, que naqueles dias de grande esperança com a tribo dos próprios mortos.
tinham sido confeccionados com tanto esmero, irmãos lutaram Assim que chegar o dia prometido, repentinamente todos
contra irmãos, pais contra filhos. Velhos, fracos e enfermos serão iguais. Os velhos voltarão novamente a ser jovens, os
foram abandonados ao seu próprio destino pelos mais jovens. doentes terão saúde, os angustiados ficarão alegres; os mortos
Para comer, procuravam todos os tipos de vegetais, inclusive se misturarão aos vivos. Um começo nesta direção de igualdade
as raízes das árvores. Os que estavam próximos do mar ten- generalizada já se efetua com a primeira ordem. Os vivos devem
taram subsistir à base de crustáceos, mas como não estavam abandonar os feitiços que usam uns contra os outros; a con-
habituados a este tipo de alimentação sofreram disenteria e fusão existente em suas intenções de hostilidade é o que mais
pereceram rapidamente. Em alguns lugares, famílias inteiras se perturba a unidade e a regularidade da tribo. Depois, naquele
sentavam juntas para morrer. Mais tarde, muitas vezes se en- grande dia previsto, a massa da tribo, que por si mesma é fraca
contraram, debaixo de uma única árvore, de quinze a vinte demais para poder vencer seus inimigos, repentinamente se
esqueletos juntos, pais que tinham morrido junto de seus filhos. verá aumentada por toda a massa dos seus mortos.
Uma interminável corrente de criaturas esfomeadas despejou-se Também a direção na qual se movimentará a massa está
sobre a colônia; na maior parte eram homens e mulheres jo- prescrita: ela se abaterá sobre a colônia dos homens brancos,
vens, mas também pais e mães com crianças meio mortas nas sob cujo domínio uma parte da tribo já se encontra. Seu poder,
costas. Eles se acocoravam diante das fazendas e pediam co- graças ao reforço dos espíritos, será insuperável.
mida com vozes lastimosas. Aliás, os espíritos têm os mesmos desejos dos vivos; eles
Durante o ano 1857, a população do setor britânico do gostam de comer carne e por causa disso exigem que o gado
país xosa caiu de 105.000 para 37.000. Morreram 68 mil pes- lhes seja sacrificado. É de supor-se que eles também saboreiem
soas. E a vida de milhares deles somente pôde ser salva graças os cereais que são destruídos. A princípio os sacrifícios ainda
às reservas de cereais que o governo distribuiu. Na zona livre, são isolados; eles podem ser interpretados como sinais de pie-
onde não existiam tais reservas, pereceram quantidades ainda dade e submissão. Depois porém eles aumentam, os mortos
maiores. O poder da tribo xosa ficou completamente aniqui- querem tudo. A tendência de multiplicação que geralmente se
lado. tem pelos animais e pelos cereais transforma-se numa tendên-
cia de multiplicação para os mortos. O que agora deve aumen-
tar é o gado morto, os cereais destruídos, uma vez que agora
Relatamos estes acontecimentos de maneira bastante deta- se trata de gado e cereais para os mortos. A inclinação dinâ-
lhada, e o fizemos propositalmente. Poder-se-ia suspeitar mica da massa de crescer de forma impetuosa, desconsiderada
que tudo isso foi inventado por alguém que tivesse a intenção e cega, sacrificando-se tudo a ela — fenômeno que aparece
de esclarecer a sucessão dos acontecimentos de massa, seu de- onde quer que se forme uma massa de homens vivos —, essa
senvolvimento previsto e sua precisão. No entanto, tudo real- inclinação é transferida. Os caçadores a transferem para seus
mente aconteceu dessa forma em meados do século passado, animais de caça, que nunca existem em número suficiente e
ou seja, num passado que não é tão remoto assim. Existem cuja fertilidade procuram incentivar através de numerosas ce-
relatos de testemunhas oculares do acontecimento, relatos que rimônias. Os criadores de gado a transferem para seus animais:
qualquer pessoa pode consultar. eles farão tudo para que seus rebanhos cresçam, e graças à sua
Vamos tentar extrair alguns pontos essenciais da história. habilidade na criação, realmente os transformam pouco a pouco
Por um lado, chama a atenção o fato de que os mortos em grandes e vastas manadas. Os agricultores transferem a
dos xosas estejam tão vivos. Eles realmente participam dos mesma inclinação para os produtos que conseguem extrair do
destinos dos vivos. Eles encontram meios e maneiras de entrar solo. Seus cereais multiplicam-se por 30 ou por 100 e os silos
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onde são armazenados, visíveis e admirados por todos, são a interessava um triunfo sobre os brancos; interessava-lhes so-
nítida expressão de que eles foram bem-sucedidos nesta súbita mente aumentar seu próprio número. Através de truques e
multiplicação. Eles fizeram tanto para isso que este sentimento simulações, ,priaram-se primeiro do gado e dos cereais dos
de massa transferido para as manadas ou para o cereal se trans- vivos; depoi , c,s mortos por inanição se foram, seguindo um
forma como que em uma nova consciência de si mesmos, e após outro. Apesar de tudo, portanto, a vitória foi conquistada
freqüentemente eles devem sentir-se como se tivessem conse- pelos mortos — se bem que se tratou de outra vitória e de
guido tudo isso sozinhos. outra guerra. No final, os mortos ficaram sendo a maior das
Durante esta "autodestruição" dos xosas, tudo o que neles massas.
havia de tendências de multiplicação de homens, de gado e de De importância especial para o comportamento dos xosas
cereais, transferiu-se para sua idéia dos mortos. Para vingar-se nos parece ser também a ordem. Ela tem algo de autônomo e
dos brancos que os despojavam cada vez mais de suas terras, como ação ela tem seu valor de forma independente, por si
para realizar contra eles uma guerra com possibilidade de êxito própria. Os mortos que dão a ordem necessitam de um inter-
depois de todas as guerras que já tinham perdido, necessitavam mediário para a sua transmissão. Eles reconhecem assim a hie-
de uma coisa: da ajuda de seus mortos. Assim que conseguis- rarquia terrestre. O profeta deve dirigir-se aos chefes e con-
sem assegurar realmente o apoio destes, assim que estes efeti- vencê-los a aceitar as ordens espirituais. No momento em que
vamente aparecessem em bandos numerosos, eles poderiam Kreli, o chefe supremo, se declara favorável ao plano dos
iniciar a guerra. Com eles, também voltariam o gado e o milho espíritos, a ordem segue seu curso normal. Mensageiros são
do país dos mortos em quantidades muito maiores do que as enviados a todos os clãs dos xosas, mesmo aos que se encon-
que tinham sido enviadas, tudo o que se tinha acumulado tram sob a "falsa" soberania dos ingleses. Até os incrédulos,
entre os mortos no decorrer dos tempos. que se defendem durante bastante tempo contra a execução
O gado que era morto e os cereais que eram destruídos do plano, entre eles o tio de Kreli e seu principal conselheiro,
tinham a função de um cristal de massa aos quais iriam se terminam acatando a "ordem" do chefe e explicam enfatica-
agregar todo o gado e todos os cereais do além. Noutras épocas, mente que esta ordem é o único motivo de sua submissão.
para conseguir esta mesma meta, teriam sem dúvida sacrificado Tudo se torna ainda mais estranho, no entanto, quando
seres humanos. Naquele grande dia previsto, os campos fica- levamos em consideração o conteúdo da ordem. Trata-se essen-
riam repletos de novas e enormes manadas e sobre os campos cialmente de sacrificar o gado, ou seja, de matar. Quanto mais
brotaria milho maduro e pronto para o consumo. enfaticamente a ordem é repetida, quanto mais envolvente e
A finalidade desta empresa, portanto, era a reaparição maciça é sua aplicação, tanto mais a ordem antecipa a própria
dos mortos juntamente com tudo o que pertence à vida. Em guerra. Do ponto de vista da ordem, por assim dizer, o gado
função desta intenção prioritária sacrificava-se tudo. Esse modo substitui os inimigos. Ele substitui os inimigos e também o
de pensar e de agir era confirmado por membros daquele gado deste, da mesma forma que os cereais que são destruídos
mundo que se conheciam. O irmão do profeta, os dois conse- substituem os cereais dos inimigos A guerra começa no pró-
lheiros do antigo e falecido chefe eram os avalistas de um prio país, como se os homens já estivessem no país inimigo.
convênio que foi estabelecido com os mortos. Quem se opunha A ordem entretanto retorna à sua origem, quando ainda era
ou hesitava, tirava da massa algo que lhe pertencia, pertur- sentença de morte, a sentença de morte instintiva de uma es-
bando assim sua unidade. Por isso era melhor colocar ime- pécie contra a outra.
diatamente essas pessoas entre os inimigos; juntamente com Sobre todos os animais que o homem mantém em cati-
estes haveriam de morrer. veiro pende sempre a sentença de morte. Se bem que a sen-
Considerando-se o resultado catastrõfico dos acontecimen- tença seja — com freqüência durante muito tempo — sus-
tos — o fato de que no solene dia prometido não ocorreu coisa pensa, nenhum desses animais é indultado. Dessa maneira o
alguma, de que não apareceram campos de milho nem rebanhos, homem transfere impunemente sua própria morte, da qual ele
nem exércitos de mortos — pode-se dizer que, do ponto de tem perfeita consciência, aos seus animais. O lapso de vida
vista da crença dos xosas, eles foram enganados pelos seus que ele lhes concede está relacionado com sua própria vida; a
mortos. Estes não tinham levado a sério o convênio, não lhes única diferença é que, no caso dos animais, é ele quem estabe-
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lece quando devem morrer. A morte dos seus animais lhe é
w
mais suportável quando ele possui muitos e retira apenas
alguns da manada para serem sacrificados. Suas duas metas
— a multiplicação de seus rebanhos e a morte necessária dos
animais isolados — podem existir muito bem lado a lado.
Desta forma, como pastor, ele é muito mais poderoso do que
qualquer caçador. Seus animais estão todos juntos e não fogem.
A duração da vida deles está em suas mãos. Ele não depende
da oportunidade que os animais lhe oferecem, não precisa ma- AS ENTRANHAS
tá-los no ato. A violência do caçador se transforma no poder
do pastor.
DO PODER
A ordem, portanto, que é dada aos xosas, é uma ordem
íntima em sua essência: a execução da sentença de morte sobre
seus animais deve preceder a matança de seus inimigos, como
se, no fundo, ambos fossem a mesma coisa; e de fato são.
É digno de consideração o fato de que esta ordem de
matar emane dos próprios mortos, como se eles tivessem auto-
ridade suprema a este respeito. Em última instância, eles fazem
com que tudo seja transferido para o além. Entre eles se en-
contram todos os que deram ordens no passado, gerações de
chefes. Seu prestígio reunido é grande; sem dúvida, também
seria grande se todos eles, não como mortos, repentinamente
estivessem entre os homens. Mas não se pode evitar a impres-
são de que seu poder aumentou ainda mais pela morte. O fato
de eles terem podido chamar a atenção por meio do profeta, de
que tenham aparecido e falado com ele, confere-lhes um poder
maior do que possuíam em vida, um prestígio sobrenatural;
desta maneira evitaram a morre e continuam impressionante-
mente ativos. Contornar a morte, o desejo de esquivar-se dela
constituem as mais antigas e tenazes tendências de todos os
que detêm o poder. Neste contexto é significativo acrescentar
que o chefe Kreli sobreviveu durante muitos anos após a morte
do seu povo por inanição.

220
Tomar e incorporar

A psicologia do ato de tomar e incorporar — como a do ato


de comer, de maneira geral — ainda está por ser investigada;
tudo nos parece extremamente óbvio a este respeito. No en-
tanto existem muitos processos de natureza enigmática, sobre
os quais jamais chegamos a refletir. Não existe nada em nós
que seja mais antigo. Nem mesmo o fato de compartilharmos
uma grande parte destes processos com os animais constitui,
até hoje, algo surpreendente para nós.
Uma criatura se aproxima de outra pela qual sente hostili-
dade, em diferentes atos, cada um dos quais tem seu deter-
minado significado tradicional. Temos, por exemplo, a espreita
da presa: ela é espreitada, observada, muito antes de perceber
quais são os nossos objetivos. Ela é contemplada com um
sentimento de aprovação e de extrema satisfação; ela é obser-
vada e vigiada; é vista como carne, se bem que ainda esteja
viva; tão intensa e decisivamente ela é vista como carne que
nada jamais poderia nos dissuadir da intenção de consegui-la.
Durante todo o tempo a rodeamos, sentimos até onde ela nos
pertence; a partir do momento em que a escolhemos como
presa, nós já a incorporamos na nossa imaginação.
A espreita é um estado tão peculiar de tensão que, inde-
pendentemente de tudo, pode adquirir um significado em si
mesmo. Nós o prolongamos; posteriormente, ele é provocado
como estado autônomo, independente da presa que nos é pro-
metida. Não é sem riscos que o homem fica na espreita e se
entrega à perseguição. Tudo o que o impele ativamente nesta
direção é também vivenciado de forma passiva por ele mesmo,
porém de maneira intensificada, pois sua maior inteligência
permite que ele perceba mais os perigos, e conseqüentemente
faz com que sinta tormentos maiores quando perseguido.
Nem sempre o homem é suficientemente forte para alcan-
çar sua presa de forma direta. A perseguição, já por si hábil e
apropriada, o conduziu às mais complicadas armadilhas. Fre-
qüentemente o homem se utiliza da transformação, que é o
seu principal talento, e se disfarça no animal que está perse-
guindo. Ele é capaz de fazer isto de forma tão perfeita que o
animal acredita no disfarce. Esta maneira de espreita poderia
223
ser considerada como uma lisonja. No fundo estamos dizendo forma em prenda para o todo. O espaço na parte interna da
ao animal: "Eu sou idêntico a você; eu sou como você. Você mão crispada é a ante-sala da boca e do estômago, pelos quais
pode me deixar chegar perto". a presa será definitivamente incorporada. Em muitos animais,
Depois da aproximação rastejante e do salto — fatos tra- em vez da garra ou da mão é a boca aberta que se encarrega
tados noutro contexto — verifica-se o primeiro contato. Talvez da tomada. Entre os homens, a mão que já não solta mais sua
seja isto o que mais se teme. Os dedos apalpam o que breve- presa converte-se no símbolo propriamente dito do poder. "Foi
mente pertencerá por inteiro ao corpo. A tomada de posse colocado em suas mãos." "Estava em suas mãos." "Está nas
pelos outros sentidos, pela visão, pela audição, pelo olfato, mãos de Deus." Expressões semelhantes a estas são freqüentes
é muito menos perigosa. Estas outras maneiras ainda deixam e familiares em todos os idiomas.
espaço entre a pessoa e sua vítima, e enquanto existir este O verdadeiramente importante no processo da tomada é
espaço continua havendo uma possibilidade de escapar e tudo a pressão que é exercida pela mão humana. Os dedos se con-
é indeciso. O apalpar, no entanto, como toque, já é um pre- traem em torno do que foi tomado; a concavidade, dentro da
cursor do sentir pelo paladar. Nos contos de fadas, a bruxa qual a criatura foi pressionada, se restringe. Deseja-se sentir
obriga o menino a estender o dedinho para apalpá-lo e para esta criatura com toda a superfície interna da mão; senti-la
determinar se a vítima já engordou o suficiente. com a maior intensidade possível. O primeiro contato foi leve
As intenções que um corpo tem em relação a outro tor- e cauteloso; depois ele se intensifica e se concentra, até que se
nam-se concretas a partir do instante do contato. Já nas formas tenha uma parte da presa da maneira mais pressionada e aper-
inferiores de vida este momento tem algo de decisivo. Ele tada possível. Este tipo de pressão acabou assumindo o lugar
contém os terrores mais antigos; nós sonhamos com ele; nós do dilaceramento por meio das garras. Nos cultos antigos o
o transformamos em versos ou o intensificamos; nossa vida dilaceramento ainda era praticado; mas era considerado como
civilizada nada mais é do que um único esforço para evitar este algo bestial, era um jogo entre animais. Para um caso de emer-
contato. O resistir ou o abandonar dependem, a partir deste gência, ele foi transferido, há muito tempo, para os dentes.
instante, da relação de poder entre o que toca e o que é tocado. A pressão pode ser aumentada até o ato de esmagar.
Porém, mais ainda do que da relação real de poder, dependem Quanto mais perigosa for a presa tanto maior será a pressão,
da imagem que o tocado faz dela. Na maior parte das vezes, que poderá chegar até o esmagamento. Se foi preciso travar
ele procurará defender sua pele; somente deixará de empreen- uma luta árdua contra a presa, se ela constitui uma séria amea-
der alguma ação contra um poder que lhe pareça ser imbatível. ça, se provoca a raiva ou, pior ainda, se causou ferimentos,
O contato definitivo, o contato ao qual o indivíduo se resigna far-se-á com que ela o sinta e será apertada mais fortemente
porque toda resistência, e principalmente toda resistência futura, do que seria necessário para a própria segurança.
parece ser inútil, é em nossa vida social a detenção. Basta Entretanto, muito mais do que a periculosidade e a fúria,
sentir sobre o ombro a mão de quem tem autoridade para é um sentimento de desprezo que impele ao ato de esmagar.
prender e, comumente, a pessoa se rende, antes mesmo de Algo muito pequeno, que quase não conta, um inseto, é esma-
chegar a sentir o contato propriamente dito. As pessoas se gado porque, caso contrário, não saberíamos o que aconteceu
dobram, se deixam levar; comportam-se de maneira controla- com ele. Não existe mão capaz de formar uma concavidade
da; no entanto o que habitualmente vem depois deste instante suficientemente estreita para ele. Mas, além do fato de que-
não costuma ser do tipo das coisas que podemos encarar com rermos nos livrar de algo que nos importuna e de querermos
calma e tranqüilidade. saber se realmente conseguimos nos livrar disso, este tipo de
O grau seguinte da aproximação é a tornada. Os dedos comportamento em relação a uma mosca ou a uma pulga mostra
da mão formam uma concavidade na qual tentam introduzir nosso desprezo por seres inteiramente indefesos, que vivem
uma parte da criatura tocada. Eles o fazem sem qualquer preo- numa ordem de magnitude e de poder completamente diferente
cupação com a estrutura, com a articulação orgânica da presa. da nossa, com os quais nada temos em comum, nos quais
Se eles a machucam ou não neste estágio, é indiferente. nunca nos transformamos e os quais nunca tememos a não ser
Mas alguma coisa pertencente ao corpo da criatura tocada deve que, repentinamente, se apresentem como massa. A destruição
entrar neste espaço formado pelos dedos, convertendo-se desta destas minúsculas criaturas é o único ato que permanece com-
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pletamente impune, também dentro de nós mesmos. Seu sangue tesca mão, aprisionada por ela, sem poder fazer coisa alguma
nunca cai sobre nossa cabeça; ele não faz com que nos lembre- para se defender de algo cujas intenções não pode conhecer.
mos do nosso próprio sangue. Nós não vemos seu olhar no É natural encontrar o ato decisivo do poder lá onde, desde
momento da morte. Não comemos essas vítimas. Elas não todos os tempos, ele sempre foi mais notório, tanto entre os
foram integradas — pelo menos entre nós ocidentais no animais como entre os homens: no ato de agarrar. O prestígio
crescente, se bem que não muito eficiente, reino da humani- supersticioso de que entre os homens gozam os animais felinos,
dade. Estão, numa palavra, fora da lei, entregues a quem tanto o tigre como o leão, tem aí sua origem. Eles são os gran-
quiser abatê-las, livres como pássaros; livres ao arbítrio como des agarradores; e eles agarram sozinhos. A espreita, o salto,
pulgas e moscas, seria mais correto dizer. Se eu digo a alguém: o golpear com as patas, o dilacerar, tudo neles está reunido
"Eu posso esmagar você com a mão", estou na verdade expres- em um ponto. O ímpeto deste processo, sua implacabilidade,
sando o maior desprezo imaginável por este alguém. Estou a segurança com que é executado, a indiscutível superioridade
dizendo o seguinte: "Você é um inseto. Você nada significa do executante, o fato de que tudo, por mais variado que seja,
para mim. Eu posso fazer com você tudo o que quiser, e pode se transformar numa presa — tudo isto contribui para o
mesmo assim você não significa coisa alguma para mim. Você seu violento prestígio. Não importa de que ponto de vista se
não significa coisa alguma para pessoa nenhuma. Eu posso analise a situação, em todos eles o poder se manifesta na sua
exterminar você impunemente. Ninguém notaria se eu fizesse concentração máxima. Desta forma, deixaram uma impressão
isso. Ninguém se lembraria disso. Nem mesmo eu". indelével no homem; todos os reis teriam sido leões com o
O grau supremo da destruição por pressão, a trituração, máximo prazer. Era o ato de agarrar que eles admiravam e elo-
já não é mais possível pela mão; a mão é macia demais para giavam, seu êxito. Em todos os lugares passou-se a qualificar
isso. A trituração pressupõe uma superioridade mecânica muito de coragem e de grandeza o que se baseava numa força ampla-
grande, duas superfícies duras, uma em cima e outra embaixo, mente superior.
entre as quais se tritura o objeto. Os dentes realizam aqui o O leão não precisa se transformar para conseguir sua
que as mãos já não conseguem fazer. De maneira geral, já não presa; ele a consegue sendo ele mesmo, como leão. Antes de
se pensa mais em coisa viva quando se fala de trituração; o se colocar em movimento, ele se dá a conhecer por seu rugido;
processo como tal já avançou demais em direção ao inorgânico. ele, o único, pode revelar sua intenção, anunciando-a em voz
O mais provável é vincular a palavra com uma catástrofe na- alta e de modo audível para todas as criaturas. Existe nisto
tural; grandes rochedos que se desprendem podem triturar uma obstinação inalterável que jamais se modifica, e que so-
criaturas muito menores. No sentido transposto, a expressão mente por isto já aumenta o terror que provoca. O poder, na
certamente é aplicada, mas ninguém a leva muito a sério. Ela sua essência e nos seus momentos culminantes, despreza todas
transmite a imagem de um poder que destrói, que pertence às as transformações. Ele se basta a si mesmo; ele quer apenas
ferramentas do homem, mas não autenticamente ao próprio a si mesmo. Nesta forma é que ele se mostrou admirável para o
homem. Existe algo de objetivo na trituração; o corpo sozinho, homem; absoluto e irresponsável, o poder não trabalha em
como exterioridade, não é capaz dela e renuncia a ela. O má- favor de nada e de ninguém. Seu maior brilho para o homem
ximo de que pode dispor é o punho "de aço". é quando ele se apresenta desta forma; e ainda hoje nada pode
É curioso observar o grande respeito de que goza o ato impedir que ele volte a aparecer desta forma.
de agarrar. As funções da mão são tão múltiplas que não pode Mas existe um segundo ato do poder, não tão brilhante
causar espanto o grande número de variações lingüísticas que mas nem por isso menos essencial. A grandiosa impressão do
se referem a ela. Na verdade seu nimbo, sua aura propriamente ato de agarrar faz às vezes com que se esqueça uma ação para-
dita residem no gesto de agarrar, ato central e mais celebrado lela e não menos importante: o ato de não se deixar agarrar.
do poder. "Surpreso", adjetivo que dificilmente poderia en- Todo o espaço livre que o poderoso cria etrí torno de si
contrar um superlativo, é talvez o testemunho mais impressio- está em função desta segunda tendência. Todo poderoso, até
nante disso. Ele expressa a condição de se estar inteiramente mesmo o menor deles, procura evitar que cheguem excessiva-
envolvido por uma força sobre a qual não se tem nenhuma mente perto dele. Onde quer que haja uma forma de convivên-
influência. A pessoa "surpresa" está agarrada por uma gigan- cia entre os homens, ela se exprime em distâncias que diminuem
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esse incessante terror de ser pego e agarrado. A simetria, tão neles, na opinião dele. Ele os usava como troféus e como
evidente em determinadas civilizações antigas, deriva exata- amuletos para que passasse a outros o terror que ele mesmo
mente da distância uniforme que o homem cria em torno de si. tinha sentido. As cicatrizes que tinham sido provocadas pelos
A segurança nestas civilizações é uma segurança de distâncias e dentes em seu corpo, ele as ostentava com orgulho; elas eram
isto também é expresso plasticamente. O poderoso, de cuja consideradas como sinais de honra e eram tão apreciadas e
existência depende a dos demais, goza da maior, da mais nítida desejadas que, posteriormente, passaram a ser provocadas
das distâncias; por isso, e não apenas pelo seu brilho, ele é o artificialmente.
sol ou, mais amplamente, como entre os chineses, o céu. O O efeito dos dentes sobre os seres humanos é extrema-
acesso a ele torna-se difícil; palácios com salões cada vez mais mente rico e múltiplo; tanto dos dentes dos animais mais fortes
numerosos são construídos em torno dele. Cada portão, cada como dos seus próprios. Pelo seu tipo eles se situam entre
porta está sob rígida vigilância; é impossível entrar contra a uma parte natural do corpo e a ferramenta; o fato de eles
vontade dele. Ele, no entanto, a partir de sua distante segu- poderem ser perdidos ou extraídos os aproxima ainda mais da
rança, pode mandar agarrar qualquer pessoa onde quer que categoria de ferramenta.
ela se encontre. Mas como agarrar o poderoso, que está cem As propriedades manifestas dos dentes, o fato de serem
vezes distante? lisos e de estarem ordenados, passaram à essência do poder
A incorporação da presa tem início na boca. Para ela leva- de maneira geral. São inseparáveis dele e são a primeira coisa
va originalmente o caminho de tudo o que era comestível: da que se pode estabelecer em qualquer forma de poder. Os
mão para a boca. Em muitas criaturas que não dispõem de bra- utensílios primitivos já o demonstravam; mas com o cresci-
ços para agarrar, esta função está a cargo da própria boca, dos mento do poder suas primeiras propriedades também cresce-
dentes ou de algum bico anteposto a ela. ram. A passagem da pedra para o metal foi talvez o maior
O instrumento mais notório do poder que o homem, da salto nesta direção de polimento cada vez maior. Por mais
mesma forma que muitos outros animais, carrega consigo são bem polida que fosse a pedra, a espada — primeiro de bronze
os dentes. A fileira em que estão dispostos, seu polimento e depois de ferro — era ainda mais lisa. O que há de verda-
brilhante fazem com que eles não possam ser comparados a deiramente atraente e sedutor no metal é o fato de ele ser
nenhuma outra parte ativa do corpo. Seria possível designá-los mais liso do que qualquer outra coisa. Nas máquinas e nos
como o primeiro ordenamento, um ordenamento que exige veículos do nosso mundo moderno, esta lisura aumentou ainda
formalmente ser reconhecido de maneira geral; um ordena- mais, passando a ser uma espécie de "lisura de funcionamen-
mento que funciona como ameaça para fora, nem sempre de to". A linguagem expressa este estado de coisas de forma
maneira visível mas quando se abre a boca, e isto ocorre com ainda mais clara; dizemos que alguma coisa funciona de ma-
freqüência. O material dos dentes é diferente do das demais neira "lisa" ou seja, sem atritos. Desta forma nos referimos a
partes visíveis do corpo; a impressão causada seria a mesma, algum acontecimento, seja ele qual for, que está perfeitamente
ainda que tivéssemos apenas dois dentes. Eles são lisos, duros, controlado, que ocorre sem qualquer espécie de estorvo. A
não cedem; podem ser comprimidos sem que mudem de volu- preferência pelas coisas lisas e polidas na vida moderna se es-
me; funcionam como pedras engastadas e polidas com muito tendeu a setores que antes eram evitados. As casas e as insta-
esmero. lações eram freqüentemente enfeitadas exatamente como o
Desde muito cedo, o homem utilizou todas as pedras corpo e os membros do homem. Os adornos se modificaram,
possíveis para fabricar armas e utensílios; mas levou muito mas sempre existiram; eles persistiam, mesmo quando seu sig-
tempo para conseguir poli-las até dar-lhes a lisura dos dentes. nificado simbólico já se tivesse perdido. Atualmente "o liso"
É provável que, para melhorar a constituição dos seus uten- também conquistou as casas, seus muros, suas paredes, os obje-
sílios, os dentes lhe tenham servido de modelo. Os dentes de tos que são colocados dentro delas; ornamentos e enfeites são
muitos animais de grande porte sempre lhe foram de muita desprezados e considerados como sinais de mau gosto. Fala-se
utilidade. É possível que ele se tenha apoderado destes dentes muito a respeito da função, da claridade e da utilidade, mas o
colocando a própria vida em perigo; e alguma coisa do poder que na verdade triunfou foi "o liso" e o secreto prestígio que
do animal que com eles o ameaçava devia estar ainda contido lhe é inerente.
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O exemplo da nova arquitetura deixa bem claro quão liberdade para o prisioneiro é tudo o que existe para além
difícil seria separar aqui o liso do ordenamento. Sua história destes dentes apertados, no lugar dos quais se erguem agora
conjunta é antiga, tão antiga corno os dentes. A igualdade de as paredes desnudas da cela.
toda uma fileira de dentes, as distâncias uniformes entre eles A estreita garganta pela qual a presa é obrigada a passar
foram modelos para muitos ordenamentos. Grupos regulares é, para as poucas que aí passam ainda em vida, o máximo de
de toda espécie, que atualmente são considerados por nós como todos os horrores. A fantasia do homem sempre se ocupou
óbvios, podem ter derivado disso. A disposição das divisões com estas etapas da incorporação. A bocarra rigidamente aberta
de tropas, imposta artificialmente pelo próprio homem, está das grandes feras que o ameaçavam o perseguiu até em seus
mitologicamente vinculada aos dentes. Os soldados de Cadmos sonhos e em seus mitos. As viagens de descobrimento por estas
brotaram do solo em que tinham sido semeados dentes de gargantas não lhe eram menos importantes do que as viagens
dragão. por mar e, sem dúvida, não eram menos perigosas. Alguns, que
Certamente o homem encontrou outros ordenamentos na já não tinham mais esperanças, puderam ser arrancados ainda
natureza; as ervas, por exemplo, e as árvores mais duras. Mas com vida da boca desses monstros e carregaram em seus cor-
ele não encontrou estes ordenamentos em si mesmo, como no pos, durante o restante de suas vidas, as cicatrizes dos feri-
caso dos dentes. Não estavam relacionados de maneira tão ime-
mentos causados pelos dentes.
diata e constante com sua absorção de alimentos nem eram
Mais longo ainda é o caminho que a presa percorre atra-
tão práticos. Foi justamente sua atividade como órgãos para
vés do corpo. Ao longo deste caminho ela é lentamente des-
morder que mais impressionou o homem, chamando sua aten-
frutada; qualquer coisa que ela possua e que possa ser utili-
ção para o ordenamento. Foi a queda de vários dentes, com
zada lhe é subtraída. O que sobra são detritos e mau cheiro.
suas dolorosas conseqüências, que fizeram com que ele viesse
Este processo, que está no final de toda conquista animal,
a se conscientizar do significado deste ordenamento.
é esclarecedor em relação ao caráter do poder em geral. Quem
Os dentes são os guardas armados da boca. Este espaço
realmente estreito é a imagem primordial de todos os cárceres. quer dominar os homens procura diminuí-los e rebaixá-los;
O que penetrar lá está perdido; muitas coisas penetram ainda procura privá-los maliciosamente de sua resistência e dos seus
com vida na boca. Um grande número de animais mata suas direitos, até que fiquem impotentes diante dele, como animais.
presas na boca; alguns as engolem ainda com vida. A rapidez Como animais, ele se utiliza deles; mesmo quando não o diz,
com que a boca se abre — quando já não está aberta durante sempre tem muito claro dentro de si o pouco que representam
a espreita —, a maneira efetiva com que, uma vez fechada, para ele; diante de seus confidentes ele os qualificará de ove-
assim permanece, lembra as propriedades mais temidas dos lhas ou de gado. Sua meta final sempre é a de "incorporá-los"
cárceres. Não seria errado supor que realmente existiu uma e de absorvê-los. É-lhe indiferente o que possa sobrar deles.
obscura influência das bocas em relação às prisões. Certamente, Quanto pior ele os tratar, tanto mais os desprezará. Quando
para o homem primitivo, não eram apenas as baleias os únicos já não servem para coisa alguma, livra-se deles em segredo
animais dentro de cujas bocas ele tinha espaço para ficar. E como se fossem excrementos, e toma cuidado para que não
nesse pavoroso lugar coisa alguma poderia prosperar, nem poluam a atmosfera de suas casas.
mesmo se chegasse a ser habitado. É um lugar árido e não Ele não terá coragem de se identificar com este processo
permite a semeadura. Quando quase desapareceram as bocas em todas as suas fases. Caso goste de declarações audaciosas,
enormes dos monstros e dos dragões, encontrou-se um substi- é possível que confesse a seus confidentes essa degradação dos
tuto simbólico para elas: os cárceres. Antigamente, quando homens ao nível dos animais. Porém, como não envia seus
ainda existiam câmaras de tortura, elas se assemelhavam a bocas súditos para serem mortos em matadouros nem os utiliza de
hostis em muitos dos seus detalhes. Ainda hoje o inferno tem fato como alimento de seu próprio corpo, ele negará que os
este aspecto. Os cárceres propriamente ditos, no entanto, se absorve e que os digere. Pelo contrário: será sempre ele que
tornaram puritanos: o polimento dos dentes conquistou o lhes dá de comer. É muito fácil passar por cima do significado
mundo, as paredes das celas são uma única superfície lisa e real de todos esses fenômenos, uma vez que o homem cria
suas aberturas para a entrada de luz são muito estreitas. A animais que não estão destinados a morrer imediatamente, nem
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a morrer necessariamente, uma vez que são mais úteis quando cesso da digestão que ocorre num plano oculto e que sem este
destinados a outros fins sinal permaneceria oculto.
Mas, afora o detentor do poder que sabe concentrar tantas
coisas em suas mãos, também a relação do homem com seus
próprios excrementos pertence à esfera do poder. Nada perten- A mão
ceu tanto a um homem como o que ele transformou em excre-
mentos. A pressão constante sob a qual se encontra a presa A mão deve sua formação à vida nas árvores. Sua primeira
transformada em alimento durante sua longa peregrinação pelo característica é a separação do polegar: sua constituição vigo-
corpo, sua dissolução e a íntima relação que assume com quem rosa e o maior espaço existente entre ele e os demais dedos
a está digerindo, o desaparecimento total e definitivo, primeiro permitem a utilização daquilo que em outros tempos foi garra
de todas as funções, depois de todas as formas que um dia para segurar nos galhos. O deslocamento em todas as direções
constituíram sua própria existência, a igualação ou a assimi- sobre uma árvore torna-se fácil e natural; nos macacos pode-
lação ao que já existe em quem a digere como corpo, tudo isso mos ver o grande valor das mãos. Esta função mais antiga da
pode ser considerado como o que há de mais central, ainda mão é conhecida por todos e não poderia ser colocada em
que também de mais oculto, no processo do poder. É algo tão dúvida.
óbvio, tão automático e tão além de tudo o que é consciente O que no entanto não se considera com atenção sufi-
que seu significado costuma ser subestimado. Tendemos a ver ciente é a função diversa das mãos no ato de trepar nas árvores.
somente os milhares de joguinhos divertidos de poder que As duas mãos não fazem a mesma coisa num só momento.
ocorrem na superfície; mas todos eles constituem apenas a Enquanto uma procura alcançar o galho seguinte, a outra se-
menor de suas partes. Sob isso, dia após dia, as coisas são gura o galho anterior. Este ato de segurar é de importância
digeridas e continuam sendo digeridas. Algo externo é agar- básica: durante um deslocamento rápido é a única coisa que
rado, destroçado, incorporado, assimilado e integrado ao que impede a queda. A mão, da qual pende todo o peso do corpo,
se tem no interior; é somente graças a este processo que se não deve de forma alguma soltar o que segura. Nisto ela
vive. Basta que ele seja interrompido para que rapidamente adquire uma grande tenacidade que, no entanto, deve ser bem
se chegue ao fim; isto todos sabem. Mas é evidente que todas diferenciada do antigo ato de segurar a presa. Porque assim
as fases deste processo, não 'apenas as externas e semicons- que o outro braço alcançou o galho seguinte, o galho anterior
cientes, devem refletir-se também no plano psíquico. Encon- precisa ser solto. Se isto não acontecer rapidamente, o trepador
trar suas correspondências não é tarefa fácil; algumas pistas não pode avançar muito. Portanto, é o soltar com a rapidez de
importantes aparecerão no decorrer desta investigação de ma- um relâmpago a nova aptidão que se agrega à mão; antes a
neira natural, convidando para serem seguidas. Muito revela- presa nunca era solta, a não ser sob coerção extrema e de
dores, conforme se verá mais adiante, são, neste sentido, os forma pouco habitual.
sintomas da melancolia. No ato de trepar o rendimento depende portanto, para
Os excrementos que restam no final estão carregados cada mão, de duas fases separadas e sucessivas: pegar, soltar;
com todas as nossas culpas de sangue. Por eles podemos reco- pegar, soltar. Apesar de a outra mão fazer a mesma coisa, ela o
nhecer que cometemos assassinatos. São a totalidade concen- faz num deslocamento de fase. Num mesmo momento, cada
trada dos indícios existentes contra nós mesmos. Exatamente mão está fazendo o contrário da outra. O que diferencia o ma-
como nossos pecados cotidianos, contínuos e jamais interrom- caco dos demais animais é a rápida sucessão destes dois movi-
pidos, eles fedem e clamam aos céus. Chama a atenção o mentos. Pegar e soltar se sucedem, e conferem aos macacos a
modo como nos desfazemos deles. Desfazemo-nos deles em leveza que tanto admiramos neles.
lugares próprios, destinados unicamente a este fim; o mais Também os macacos superiores, que desceram das árvores
privado de todos os momentos é o da excreção; ficamos real- e se instalaram na terra, conservaram sempre esta faculdade
mente a sós com nossos excrementos. É claro que nos enver- essencial das mãos que consiste, de certa forma, em conseguir
gonhamos deles. Eles são o sinal antiguíssimo daquele pro- que uma faça sempre o jogo da outra. Uma atividade ampla-
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mente difundida do homem mostra claramente ter a mesma Sobre a paciência das mãos
origem. Referimo-nos ao comércio.
Basicamente o comércio consiste em dar algo determina- Percebem-se como primitivas todas as atividades bruscas da
do em troca de algo determinado. Uma mão segura com força mão. Não é apenas o agarrar com intenções hostis que reflete
o objeto com o qual se procura induzir o interlocutor a comer- im petuosidade e crueldade. Muitas ações que vieram a apare-
cer somente mais tarde, como golpear, beliscar, empurrar,
ciar. A outra mão é estendida, cheia de desejo, em direção do
lançar e disparar, por mais que se tenham ramificado e com-
segundo objeto, que se quer obter em troca do que se possui.
plicado tecnicamente, continuam situando-se num mesmo pla-
Assim que a mão toca neste objeto, a primeira mão solta sua
no. É possível que sua rapidez e precisão tenham aumentado,
propriedade; não o faz antes porque, se o fizesse, poderia ver-se mas tanto seu sentido como sua intenção são o que sempre
totalmente privada daquilo que tem. Esta forma mais crua do foram. Para o caçador e para o guerreiro estas atividades se
engano, em que alguma coisa é tomada de alguém sem que esta fizeram muito importantes, mas nada agregaram à glória pro-
pessoa receba nada em troca, corresponde, dentro do processo priamente dita da mão humana.
de trepar, a uma queda da árvore. Para evitar que isto acon- A mão conseguiu sua perfeição por outros caminhos, ou
teça, permanece-se de sobreaviso durante toda a negociação e seja, pelos caminhos em que renunciou à violência e à presa.
observa-se todos os movimentos do interlocutor. A alegria A verdadeira grandeza das mãos está na sua paciência. Os
difundida e profunda que o homem encontra no comércio, em processos tranqüilos e compassados da mão criaram o mundo
parte pode ser explicada porque perpetua uma de suas mais em que queríamos viver. O oleiro, cujas mãos sabem como
antigas configurações de movimento sob a forma de atitude modelar formas na argila, aparece como Criador já no princípio
psíquica. Em nada o homem ainda está tão próximo do ma- da Bíblia.
caco como no comércio. Mas como as mãos se tornaram pacientes? Como conquis-
Mas vamos remontar desta incursão por épocas recentes taram a delicadeza dos seus dedos? Uma das ocupações mais
a uma época muito mais remota: à própria mão e às suas antigas de que se tem notícia e da qual os macacos tanto
origens. Nos galhos das árvores a mão aprendeu um modo de gostam é coçar o pêlo de seus companheiros. Acredita-se que
segurar que já não tinha mais a finalidade da alimentação eles estejam procurando alguma coisa e, como sem dúvida algu-
imediata. O caminho curto e monótono da mão para a boca mas vezes realmente encontram algo, imputou-se a esta ativi-
foi interrompido desta maneira. Quando o galho se quebrou dade um sentido demasiadamente restrito, apenas utilitário.
na mão, nasceu o porrete. Com ele era possível manter os ini- Na realidade o que verdadeiramente lhes interessa é a sensação
agradável que os dedos experimentam entre os pêlos da pele.
migos à distância. Ele serviu para criar um espaço em torno
Estes exercícios dos dedos são os mais antigos que se conhe-
de uma criatura primitiva que talvez tinha apenas alguma se-
cem e contribuíram para transformá-los no delicado instru-
melhança com o homem. Do ponto de vista de quem está na
mento que atualmente admiramos.
árvore, o porrete era a arma mais próxima. O homem lhe foi
fiel; ele nunca renunciou ao porrete. Batia-se com ele; agu-
çou-o para transformá-lo em lança; desbastou-o e lascou-o para Os exercícios digitais dos macacos
a produção de flechas. Porém, por trás de todas essas trans-
formações, o porrete permaneceu o que sempre tinha sido A cuidadosa revisão recíproca da pele chama a atenção de
desde o princípio: um instrumento com o qual se consegue qualquer pessoa que observe os macacos. A contemplação e o
criar distância; um instrumento que evita o contato e o tão detalhado ato de apalpar cada um dos pêlos dá a impressão
temido momento de ser tomado. Assim como a postura ereta de que eles estejam procurando parasitas. A posição adotada
jamais perdeu sua característica patética, da mesma forma o pelos animais lembra a de homens que procuram pulgas; fre-
porrete, com todas as suas transformações, jamais perdeu sua qüentemente eles levam seus dedos cuidadosamente à boca;
função primária: como vara mágica e como cetro, ele se man- desta forma demonstram ter encontrado alguma coisa. O
teve como atributo de duas importantes formas de poder. simples fato de que isto ocorra com tanta freqüência parece
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mostrar a necessidade de tal busca. Esta sempre foi a opinião do pêlo como fatores que servem à coesão do grupo social
popular. Somente em épocas mais recentes é que o fato pôde entre os primatas inferiores."
ser interpretado com maior precisão pelos zoólogos. Nada poderia surpreender mais do que a interpretação
Uma exposição e um estudo coerente deste costume dos sexual do fato depois de ler-se a descrição feita pelo próprio
macacos encontra-se no livro de Zuckermann, a respeito da Zuckermann. Ele fala de vários macacos que se ocupam simul-
Vida Social dos Macacos e Antropóides. Seu texto é tão reve- taneamente da pele de outro. Enfatiza a importância de todos
lador que transcrevo aqui um trecho: os tipos de pelagem para eles. Em passagens posteriores do
"Catar pulgas, por mais que os sociólogos possam discor- livro, formula uma antítese entre a investigação da pelagem
dar disto, é a forma mais fundamental e própria de intercâm- e os fenômenos sexuais. Por exemplo, ele menciona que os
bio social entre os macacos rhesus. Os macacos, e em escala animais em períodos de calma sexual, quando mostram um
menor os antropóides, passam uma grande parte do dia dedi- mínimo de interesse desse tipo, continuam mesmo assim apro-
cando-se a um cuidado recíproco. Um animal vai examinar ximando-se das grades para se deixarem coçar. Também sobre
cuidadosamente com os dedos o pêlo de seu companheiro e o significado precoce da pelagem para os filhotes de macaco
comer grande parte das pequenas coisas que lá encontrar. Ele ele tem muitas coisas a dizer.
leva o que encontra à boca utilizando a mão, ou então, depois A primeira experiência sensorial de um macaco seria jus-
de ter lambido uma mecha de pêlos, mordiscando-os direta- tamente a da pelagem. Logo depois do parto, o filhote é pu-
mente. Esta ação exige movimentos bem coordenados dos de- xado pela mãe para o peito; seus dedos agarram e seguram o
dos, associados a uma exata convergência dos olhos. Este pêlo dela. O animalzinho procura o mamilo até conseguir
comportamento em geral é interpretado como tendo por fina- encontrá-lo; a mãe não o ajuda nisso. "Durante todo o pri-
lidade eliminar piolhos. Na verdade raras vezes são encontrados meiro mês, ele vive exclusivamente de leite e a mãe o carrega
parasitas em macacos que se encontram em cativeiro; e isto nas costas para toda parte. Quando a mãe está sentada, segura
também é raro nos macacos que se encontram em liberdade. seu filhote fortemente apertado contra seu próprio corpo, e
Os resultados da busca costumam ser, de maneira geral, pe- as patas dele se agarram aos pêlos da barriga dela. As mãos
quenas escamas da pele, partículas de pele e de secreções, espi- dele se enfiam no pêlo do peito dela. Quando ela anda de um
nhos e outros corpos estranhos. Quando não estão preocupados lado para outro, o filhote continua pendurado dessa mesma
com alguma outra coisa, os macacos reagem à presença de uma forma. Geralmente ele se segura sozinho na mãe, sem que esta
pelagem fazendo nela uma cuidadosa revisão. Um macaco reage o ajude; mas às vezes ela o segura com um braço, saltando
logo depois de nascer ao estímulo dos pêlos e este estímulo é então sobre três pernas. Quando está sentada, segura o filhote
conservado de forma poderosa e eficiente durante todas as com os dois braços. O filhote manifesta um forte interesse
fases do seu crescimento. Quando não dispõe de um compa- pela pelagem materna. Passa os dedos entre os pêlos da mãe,
nheiro, o macaco examina sua própria pelagem. Dois ou às e depois de unia semana é possível que já esteja coçando seu
vezes até três macacos podem examinar em grupo um de seus próprio corpo. Observei um macaquinho de uma semana de
camaradas. Geralmente aquele que está sendo limpo mantém-se idade explorando com movimentos vagos de mão a pelagem
passivo, apenas fazendo movimentos que facilitem as investi- do seu pai, sentado ao lado de sua mãe. Às vezes a mãe se
gações dos demais. Às vezes porém ele pode também ocupar-se mostra irritada pela maneira com que o filhote puxa seu pêlo
em examinar a pele de outro animal. Os macacos não limitam e afasta-lhe as mãos e as patas para longe."
esta atividade aos seus congêneres. Qualquer objeto peludo, O comportamento de uma macaca lactante não se modi-
animado ou inanimado, pode incitá-los a investigar. Com entu- fica quando seu filhote morre. Ela continua apertando-o contra
siasmo dedicam-se ao exame da cabeleira de um ser humano o peito e carrega-o nos braços por toda parte. "No começo,
amigo. O fato parece ter um significado sexual, não apenas ela não o coloca no solo; continua examinando sua pelagem
pelo tênue estímulo de numerosas terminações nervosas da como quando estava vivo. Examina a boca, os olhos, o nariz
pele, mas também porque ele às vezes é acompanhado de uma e as orelhas. Depois de alguns dias percebe uma mudança no
atividade sexual direta. Por este motivo e por sua freqüência, seu comportamento. Um corpo inerte, agora já em princípio
talvez seja válido considerar as reações de busca e o estímulo de decomposição, pende do seu braço. Somente quando ela se
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movimenta é que continua apertando-o contra o peito. Apesar Não haverá mais dúvida — depois destas extensas cita-
de continuar revisando-lhe o pêlo e mordiscando-lhe a pele, ções de seu livro — de que o próprio autor não leva a sério
ela o deixa agora com maior freqüência no solo. A decompo- uma interpretação especificamente sexual do cuidado da pe-
sição avança, tem início a mumificação, mas a revisão da pele lagem dos macacos entre si. Ele é bastante claro: o pêlo em
e da pelagem continua. O corpo ressecado começa agora a se si exerce uma atração particular sobre os macacos em todas as
desintegrar e percebe-se que falta um braço ou uma perna; circunstâncias vitais. O prazer que lhes é proporcionado pelos
depois de algum tempo, resta apenas um pedaço de pele res- cuidados com os pêlos deve ser de natureza muito particular;
secada. A mãe arranca-lhe pedaços com a boca cada vez com eles o procuram por toda parte, em seres vivos ou mortos, em
mais freqüência; ignora-se se os engole ou não. Depois da companheiros de espécie ou em estranhos. O tamanho do outro
pode abandonar espontaneamente o que sobrou dos restos animal não importa. Neste sentido, o filhote significa tanto
ressecados." para a mãe como a mãe para o filhote. Casais de amantes e de
Os macacos gostam de guardar objetos de pêlo e de amigos se abandonam em igual medida a este hábito. Vários
plumas Uma fêmea de babuíno de um ano de idade, que se animais podem dedicar-se simultaneamente ao pêlo de um
achava sob a observação de Zuckermann, agarrou um gatinho, outro.
matou-o e segurou-lhe o corpo durante o dia todo em seus Este prazer é próprio dos seus dedos. Eles nunca se can-
braços, explorando-lhe a pele, e se defendeu com veemência sam dos pêlos; horas e horas podem transcorrer com os ma-
quando ele lhe foi tomado no final da tarde. No jardim zooló- cacos examinando pêlos entre os dedos. Trata-se dos mesmos
gico de Londres pode-se observar às vezes como os macacos animais cuja vivacidade e cujos caprichos se tornaram prover-
examinam as penas de pardais que eles conseguiram matar. biais; segundo uma antiga tradição chinesa, os macacos não
Narra-se também o caso de um rato morto que foi recolhido têm estômago e digerem seus alimentos saltando de um lado
por um macaco, que o tratou exatamente com o mesmo zelo para o outro. O contraste da paciência interminável que eles
dedicado ao filhote morto citado acima. demonstram nesses cuidados torna-se assim ainda mais notável.
A partir de sua exposição, Zuckermann conclui que é Nesse exercício seus dedos vão ficando cada vez mais delica-
necessário distinguir três fatores determinantes do comporta- dos; os numerosos pêlos que eles sentem de uma só vez con-
mento maternal. Os dois primeiros são, no fundo, de signifi- tribuem para que se cultive uma sensação tátil especial, que se
cação social, ou seja, a atração que exerce um pequeno objeto distingue muito das sensações mais grosseiras de agarrar e de
peludo, e a forte atração que o pêlo materno possui para o segurar. Não se pode deixar de pensar em todas as ocupações
filhote. O terceiro fator é o reflexo de sucção do animal jovem, posteriores do homem e que são baseadas na finura e na pa-
que pela sua atividade alivia a tensão no peito da mãe. ciência dos seus dedos. Os ancestrais ainda desconhecidos do
A reação ao pêlo seria pois um fator fundamental no pró- homem, exatamente como os macacos, passaram por um pro-
prio comportamento social. Sua importância também pode ser longado período de exercícios digitais, sem os quais nossa mão
deduzida do fato de um macaco jovem continuar agarrando-se não teria se aperfeiçoado tanto. Na origem deste cuidado po-
ao pêlo da mãe mesmo após a morte dela. No momento, não é dem ter influído coisas muito distintas: tanto uma procura de
este corpo específico que lhe interessa — o corpo de qualquer insetos parasitas, como as primeiras experiências do macaco
outro macaco morto, no qual ele fosse colocado, o tranqüili- junto ao pêlo da mãe. No entanto o fenômeno, como pode ser
zaria da mesma forma. "A natureza fundamental da reação ao observado atualmente e que ocorre em todos os macacos, tem
pêlo se deduz também da rigorosa delimitação de suas carac- a sua própria unidade e sentido. Sem ele nunca teríamos apren-
terísticas e da variedade de situações que podem provocá-la. dido a modelar, a costurar ou a acariciar. É com este fenô-
Plumas, ratos ou gatinhos podem servir de estímulo para esta meno que a mão começa a adquirir uma vida realmente pró-
reação. É bastante provável que o processo social do 'cuidado' pria. Sem a observação das figuras que os dedos formam
do 'examinar' seja derivado de uma reação inata ao pêlo, e durante este trabalho e que deviam pouco a pouco ir ficando
que seja um dos laços fundamentais que mantêm juntos os estampadas na mente do animal, provavelmente jamais tería-
macacos." mos chegado a conseguir nem mesmo sinais para indicar as
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coisas, e conseqüentemente nunca chegaríamos a desenvolver caco trepador e suas mãos em constante relação com um ma-
uma linguagem. terial mais duro do que eles mesmos. Para dominar os galhos
ele precisava segurar-se neles, mas também precisava saber
como quebrá-los. A compreensão do seu " terreno" era uma
As mãos e o nascimento dos objetos compreensão dos galhos e dos ramos; tudo o que se quebrava
com facilidade era um solo falso para o seu deslocamento. A
A mão que recolhe a água é o primeiro receptáculo. Os exploração deste mundo de galhos era um interminável con-
dedos das duas mãos, que se entrelaçam, formam o primeiro fronto com a dureza; a experimentação dos galhos continuou
cesto. É justamente aqui que, acredito, nasce a rica evolução sendo uma necessidade, mesmo depois de ele ter adquirido
de todos os tipos de trançados, de jogos de fios, até se chegar uma grande experiência nesta matéria. O pedaço de pau que o
finalmente ao tecido. Tem-se a sensação de que as mãos levam macaco, como o homem, converteu na sua primeira arma, ini-
sua própria vida de transformação. Não é suficiente que esta ciou toda uma série de instrumentos duros. As mãos eram
ou aquela conformação já exista no ambiente ao redor. Antes medidas por ele, como mais tarde foi feito em relação às
que o homem primitivo tenha a intenção de lhe dar alguma pedras. Os frutos e a carne dos animais eram macios; e o mais
forma, suas mãos e seus dedos devem começar representando. macio de tudo era a pelagem. Com o ato de coçar e de elimi-
É possível que há muito tempo já existissem cascas vazias nar os piolhos, ele exercitava a finura dos dedos; quebrando
como, por exemplo, as de coco, mas eram jogadas fora sem tudo o que caía entre estes dedos, exercitava sua dureza.
que se prestasse maior atenção a elas. Somente os dedos, que Existe portanto uma mania destrutiva particular das mãos,
formam uma concavidade para recolher a água, é que tornaram que não tende de imediato à atividade de pegar e de matar.
o recipiente uma realidade. Poder-se-ia imaginar que os obje- Trata-se de algo puramente mecânico e isso teve o seu pro-
tos como os entendemos, e aos quais corresponde um certo longamento justamente nas invenções mecânicas. Precisamente
valor porque nós mesmos os fizemos, existem primeiro como devido à sua inocência é que isso se tornou especialmente
sinais das mãos. Parece existir um ponto central de enorme perigoso. Esta mania sente-se livre de qualquer intenção de
importância, onde o nascimento da linguagem gestual \corres- matar, e por este motivo pode permitir-se qualquer empreen-
pondia ao prazer de dar pessoalmente forma aos objetos, antes dimento. O que ela provoca aparentemente diz respeito ape-
mesmo de se tentar indicá-lo realmente O que se representava nas às mãos, à sua agilidade e capacidade de realização, à sua
com a ajuda das mãos, somente mais tarde, depois de ter sido inócua utilidade. Em qualquer momento em que esta mania
representado suficientemente, tornou-se uma realidade. Pala-
mecânica de destruição das mãos, transformada num complexo
vras e objetos, conseqüentemente, seriam emanação e resultado
sistema técnico, se associa com a intenção real de matar, ela
de uma única experiência unitária, justamente a representação
fornece a parte automática, irreflexiva, do processo resultante,
através das mãos. Tudo o que o homem é e pode, tudo o que
o vazio e o que existe de especialmente inquietante para nós
num sentido representativo constitui sua cultura, foi incorpo-
rado por ele mediante transformações. As mãos e os rostos neste processo; uma vez que ninguém quis que isto aconte-
foram os veículos propriamente ditos desta incorporação. Sua cesse, tudo ocorreu como que por si mesmo.
importância aumentou — em relação ao restante do corpo — No âmbito privado e em pequena escala, todos nós expe-
cada vez mais. A vida própria das mãos, neste sentido primi- rimentamos este mesmo processo durante o jogo irreflexivo
tivo, conservou-se ainda com maior pureza na gesticulação. dos dedos, quando quebramos palitos de fósforo ou rasgamos
pedaços de papel. As múltiplas ramificações deste impulso de
destruição mecânica estão intimamente vinculadas à evolução
A mania destrutiva nos macacos e nos homens da tecnologia. Apesar de o homem ter aprendido a dominar
o duro com o duro, a mão continua sendo para ele a última
A mania destrutiva nos macacos e nos homens pode mui- instância de tudo isso. A vida independente da mão teve as
to bem ser considerada como um exercício de endurecimento mais monstruosas conseqüências. Ela foi, sob mais de um as-
da mão e dos dedos. A utilização dos galhos colocou o ma- pecto, nosso destino.
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Os que matam continuam sendo sempre os poderosos num tal comedor máximo o seu chefe, seu cacique. O apetite
sempre saciado desta pessoa parece-lhes uma garantia de que
A mão funcionou como modelo e estímulo não apenas nunca padecerão fome durante muito tempo. Eles depositam
como um todo. Também os dedos em separado, e principal- confiança na sua barriga cheia, como se ela tivesse sido enchi-
mente o dedo indicador estendido, adquiriram um significado. da também para todos os demais. A relação existente entre
O dedo se afinava na extremidade e se apresentava armado digestão e poder se manifesta aqui com extrema clareza.
com uma unha; a sensação ativa do espetar foi dada primei- Em outras formas de domínio, o respeito pelas dimensões
ramente por ele. O punhal que se desenvolveu a partir do físicas do comedor máximo passa para um segundo plano. Já
dedo, nada mais é do que um dedo mais duro e mais pontudo. não é necessário que ele seja um barril mais grosso que os
A flecha era um cruzamento entre ave e dedo. Para poder demais. Mas ele come e bebe com as pessoas que ele escolhe
penetrar mais profundamente, ela cresceu de tamanho; para ao seu redor e tudo o que ele lhes serve pertence a ele. Se
voar melhor, tinha de se afinar. O bico e o espinho confluíram ele mesmo não é o comedor mais forte, suas provisões devem
na sua composição;- o bico aliás já era algo próprio dos ani- ser as maiores; ele é quem possui o maior número de cabeças
mais alados. O pedaço de pau pontiagudo transformou-se em de gado e maiores estoques de cereais. Se quisesse, poderia
lança: um braço que termina num único dedo. sempre ser o comedor máximo. Mas ele transfere o prazer de
Todas as armas desta classe têm em comum a concentra- estar saciado à sua corte, a todos os que compartilham da sua
ção num único ponto. O próprio homem era espetado por mesa, reservando-se apenas o direito de ser o primeiro a servir-
espinhos duros e grandes; e ele os extraía com o auxílio de se de tudo o que for oferecido. A figura do rei como grande
seus dedos. O dedo que se separa da mão e que funciona como devorador jamais se extinguiu inteiramente. Sempre houve so-
um espinho que transmite o espetar é, psicologicamente, a beranos que representaram este papel diante de seus súditos
origem deste tipo de arma. O homem que é espetado começa entusiasmados. Também grupos inteiros de poderosos se aban-
a espetar ele mesmo com seus dedos e com os dedos artifi- donaram com gosto à comilança; proverbial neste sentido é o
ciais que aos poucos vai aprendendo a fazer. que se conta dos romanos. Todo o poder familiar solidamente
Nem todos os trabalhos executados pela mão conferem estabelecido se exibia freqüentemente dessa forma, e foi depois
igual quantidade de poder; seu prestígio é bastante diferente. imitado e superado pelos sucessores de ascensão recente.
Algumas coisas, que se revestem de importância especial para A possibilidade de esbanjar e a força necessária para isso
a vida de um grupo de homens, podem ser consideradas em cresceu em determinadas sociedades, chegando a converter-se
elevada estima. O prestígio máximo, no entanto, sempre é em orgias de destruição formais ritualmente estabelecidas. A
obtido pelo que se orienta em direção ao ato de matar. O que mais famosa é o potlatch dos índios do noroeste norte-ameri-
pode chegar a matar é temido; o que não serve imediatamente cano; trata-se de reuniões festivas de toda a comunidade, que
para matar é meramente algo útil. Todos os pacientes afaze- culminam em concursos de destruição entre os caciques. Cada
res da mão não trazem às pessoas que se limitam a eles mais um dos caciques se ufana de quanto está disposto a destruir
do que uma certa submissão. Mas os outros afazeres, os que sua propriedade; quem manda destruir mais coisas é con-
se dedicam a matar, detêm todo o poder. siderado como vencedor e goza de maior glória. Já o comer
o mais possível pressupõe a destruição da vida animal que nos
pertence. Tem-se a impressão de que no potlatch esta destrui-
Sobre a psicologia do ato de comer ção se transportou para a parte da propriedade que não é
comestível. Desta maneira o cacique pode jactar-se muito mais
Tudo o que se come é objeto de poder. O esfomeado do que se tivesse de comer tudo e, além disso, evitam-se todos
sente um vazio dentro de si. O mal-estar que é provocado por os inconvenientes corporais.
este vazio interior pode ser superado pela ingestão de alimen- Talvez seja útil examinar ainda os comensais, indepen-
tos. Quanto mais saciado ele está, melhor se sente. Pesado e dentemente da posição que ocupem na hierarquia. Um certo
cheio de satisfação fica deitado aquele que mais pode devo- respeito recíproco de todos os que comem juntos é inequívoco.
rar: o comedor máximo. Existem grupos humanos que vêem Ele se expressa já no fato de estarem compartilhando alguma
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coisa. A comida que se encontra diante deles pertence a dade separada, como um homem em si. Na verdade, porém,
todos juntos. Cada qual come alguma coisa; cada qual se preo- o estômago da mãe se duplicou e ela exerce controle sobre
cupa com que os outros também comam alguma coisa; cada a mbos. A princípio ela está mais interessada no novo estômago
qual se esforça por ser eqüitativo e não prejudicar os de- e no novo corpo ainda não desenvolvido do que no seu próprio;
mais. Mais forte ainda é a coesão que se origina entre os o que ocorreu durante a gravidez foi simplesmente exteriori-
comensais quando eles saboreiam um animal, um corpo que zado. A interpretação da digestão como um processo essencial
também quando em vida conheceram como unidade. Mas a do poder, tal como é defendida aqui, se aplica também à mãe;
solenidade em sua atitude não se explica apenas com isto; seu mas ela distribui este processo por mais de um corpo, e o fato
respeito significa também que eles não se comerão entre si. de que o novo corpo, de cuja alimentação ela se ocupa, esteja
É certo que sempre existirá a garantia de que as coisas serão separado do seu próprio corpo torna mais nítido e consciente
assim entre os homens que vivem juntos num grupo. Mas é o processo total. A mãe tem um poder absoluto sobre a criança
no momento da comida que isto se expressa de forma mais nas suas primeiras fases não apenas porque sua vida depende
convincente. Todos estão sentados junto com os demais, dela, mas também porque ela mesma sente o mais veemente
todos mostram seus dentes, comem e, nem mesmo neste desejo de exercer constantemente este poder. A concentração
momento crítico, sentem apetite pelo outro. As pessoas se deste prazer de domínio sobre uma criatura tão pequena lhe
respeitam a si próprias por causa disto e respeitam também proporciona uma sensação de supremacia que dificilmente pode
as demais pessoas por sua reserva, cujo valor é idêntico à que ser superada por qualquer outra relação normal entre os ho-
elas mesmas sentem. mens.
O homem traz os alimentos para a família, e a esposa lhe A continuidade deste domínio que a ocupa noite e dia,
prepara a comida. O fato de ele consumir regularmente a co- o número tremendo de detalhes que o compõem confere-lhe
mida preparada por ela constitui o vínculo mais importante uma perfeição e uma globalidade que não são próprios de
entre ambos. A vida em família é tanto mais íntima quanto nenhum outro tipo de domínio. Não se restringe a dar ordens,
maior for a freqüência das refeições em comum. A imagem que no começo nem sequer poderiam ser compreendidas. Sig-
que salta à vista quando se pensa numa família é a de país e nifica que se pode manter cativa uma criatura, se bem que
filhos reunidos em torno de uma mesa. Tudo parece ser ape- neste caso isso realmente seja em benefício da própria criatu-
nas uma preparação para esse momento; quanto maior for a ra; que se pode — sem compreender o que se faz — transmitir
freqüência e a regularidade com que isso se repete, tanto mais o que se recebeu décadas antes sob pressão, e que foi mantido
os que comem juntos se sentem como família. Ser recebido como espinho indestrutível no próprio interior; que se pode
nessa mesa praticamente equivale a ser recebido na família. fazer com que alguém cresça (coisa que um soberano consegue
Esta talvez seja a melhor oportunidade para se dizer al- fazer apenas artificialmente conferindo uma ascensão na escala
guma coisa a respeito do núcleo e do coração desta instituição: social). Para a mãe a criança reúne as propriedades da planta
a mãe. Mãe é a que dá o seu próprio corpo para ser comido. e do animal. Ela lhe permite o usufruto de direitos de sobe-
Ela alimentou dentro de si a criança e depois lhe oferece seu rania que normalmente são exercidos em separado: sobre as
leite. Esta tendência continua de forma atenuada durante muito plantas, provocando seu crescimento segundo a própria von-
tempo; seus pensamentos, justamente à medida que é mãe, tade, sobre os animais, mantendo-os cativos e controlando seus
giram em torno do alimento que a criança necessita para movimentos. A criança cresce como o trigo nas mãos da mãe
o seu crescimento. Não é preciso que seja um filho dela mes- e executa como um animal doméstico os movimentos que ela
ma; pode-se entregar-lhe um filho de outra — ela pode adotar lhe permite; alivia-a de antigos espinhos de ordens que todo
uma criança. Sua paixão é dar o que comer; é ver que a criança ser civilizado carrega consigo; além disso a criança torna-se
come; é prestar atenção para certificar-se de que a comida a um adulto novo e completo cuja contribuição para o grupo em
está fazendo crescer. O crescimento e o aumento de peso da que vive faz com que este lhe seja para sempre devedor de
criança são sua meta invariável. Sua atitude parece ser desin- uma certa gratidão. Não existe forma mais intensa de poder.
teressada e realmente o é, se considerarmos o filho como uni- O fato de usualmente o papel da mãe não ser visto dessa
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forma tem um duplo motivo. Todo homem guarda na lem- cebemos também os dos demais. Não possuir dentes é algo
brança principalmente a época da diminuição desse poder ma- desprezível; não mostrar os que a gente mesmo possui tem
terno; para cada um de nós parecem mais significativos os algo de ascético em si. A oportunidade natural de exibi-los é
direitos mais notórios, porém muito menos essenciais, de so- dada justamente pela refeição em comum. Nossa educação mo-
berania do pai. derna exige que se coma sempre com a boca fechada. E a
A família se torna rígida e dura quando exclui as demais ameaça velada que sempre está presente num inocente en-
pessoas de sua comida; aqueles com os quais a família tem de treabrir da boca se limita desta forma a um mínimo. No en-
preocupar-se são um pretexto natural para a exclusão doS de- tanto, nós não somos tão inofensivos assim. Comemos com o
mais. O vazio deste pretexto se torna evidente nas famílias auxílio de garfo e faca, dois instrumentos que poderiam facil-
que não têm filhos e que, mesmo assim, não demonstram a mente ser utilizados para a agressão. Cada qual está com os
menor disposição de compartilhar sua comida; a família de seus instrumentos diante de si; em determinadas ocasiões che-
apenas duas pessoas é a formação mais desprezível que a hu- gamos até mesmo a carregá-los conosco. E não devemos nos
manidade conseguiu produzir. Mas também quando existem esquecer de que a porção de comida que cada um forma para si
filhos este pretexto serve freqüentemente como mero rótulo e que empurra boca adentro, na medida do possível com bas-
para o mais desvairado dos egoísmos. "Pelos próprios filhos" tante dignidade, chama-se, em todas as línguas modernas, bo-
as pessoas economizam e deixam os demais passarem fome. cado.
Na verdade, porém, e devido a isto, enquanto se vive tem-se O riso já foi considerado como uma coisa vulgar porque
tudo para si. nesse momento abrimos amplamente a boca e mostramos todos
O homem moderno gosta de comer em restaurantes, em os dentes. Nas suas origens, o riso certamente continha em si
mesas separadas, em seus pequenos grupos, pelo que em a alegria por uma presa ou por um alimento que parecia estar
seguida paga a conta. Uma vez que todas as demais pessoas assegurado. Uma pessoa que cai lembra um animal que era
no local fazem exatamente a mesma coisa, durante a refeição perseguido e que se conseguia abater. Toda queda que pro-
gosta-se de imaginar que os demais têm o que comer. Mesmo voca o riso lembra a impotência do caído; caso se quisesse
as naturezas mais sensíveis nem sequer necessitam desta ilu- seria possível tratar esta pessoa como uma presa indefesa. Nós
são durante muito tempo; uma vez saciado, pode-se tropeçar não riríamos se fôssemos mais além na série de fenômenos
sem problemas nos que estão com fome. descritos e se incorporássemos realmente a pessoa caída. Ri-se
Quem come aumenta de peso, sente-se mais pesado. Nisto em vez de comer. O alimento que nos escapa é o que provoca
existe uma espécie de jactância; já não se pode mais crescer, o riso: é o repentino sentimento de superioridade, conforme
mas pode-se aumentar, ali mesmo, diante dos demais. Também já foi dito por Hobbes. Mas ele não acrescentou que este sen-
por este motivo come-se com agrado em companhia de outras timento aumenta até transformar-se em riso somente quando
pessoas; trata-se, no fundo, de uma tentativa para ver quem esta superioridade não tem outras conseqüências. A concepção
consegue ficar mais cheio. O bem-estar da sensação de estar que Hobbes tem do riso encontra a verdade na metade do
saciado, quando não se pode comer mais, é um ponto extremo caminho; ele não chegou à sua origem propriamente "anima-
que se atinge com muito gosto. Primitivamente ninguém se lesca", talvez porque os animais não riem. Mas os animais
envergonhava disso: uma presa grande precisava ser consumida também não recusam um alimento que podem alcançar quando
rapidamente; comia-se tanto quanto possível, acumulando-se realmente têm vontade de comê-lo. Somente o homem apren-
as provisões dentro de si mesmo. deu a substituir o processo inteiro da incorporação por um
Quem come sozinho está renunciando desta forma ao ato simbólico. Os movimentos que partem do diafragma e què
prestígio que pode obter comendo diante de outras pessoas. são característicos do riso aparentemente servem para substi-
Mostrar os dentes apenas para os alimentos, quando ninguém tuir, resumindo, toda uma série de movimentos peristálticos
está presénte, não causa impressão a pessoa alguma. Quando do ventre.
em companhia, podemos ver como cada qual abre a boca em Entre os animais, somente a hiena emite um som que
separado, e enquanto acionamos nossos próprios dentes, per- realmente se aproxima do nosso riso. Este som pode ser pro-
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vocado artificialmente apresentando-se a uma hiena em cati-
veiro algo para ser devorado e retirando-se rapidamente esta
coisa antes que ela tenha tempo de abocanhá-la. Vale a pena
lembrar que o alimento da hiena quando em liberdade con-
siste em carniça; podemos imaginar quão freqüentemente o
que ela deseja lhe é arrebatado diante de seus próprios olhos.

O SOBREVIVENTE

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rwr
O sobrevivente

O momento de sobreviver é o momento do poder. O espanto


diante da visão da morte se dissolve em satisfação, pois não
se é o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente está de
pé, É como se um combate tivesse antecedido aquele mo-
mento, e nós mesmos tivéssemos derrubado o morto. Na so-
brevivência, cada qual é inimigo do outro; comparado com este
triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita impor-
tância. Mas é importante que o sobrevivente esteja sozinho
diante de um ou de vários mortos. Ele se vê só, se sente só,
e, quando se fala do poder que este momento lhe confere, jamais
se deve esquecer que ele deriva da sua unicidade e somente
dela.
Todos os desejos humanos de imortalidade contêm um
pouco da mania de sobreviver. O homem não quer apenas
ficar para sempre, ele quer ficar quando os outros já não este-
jam mais. Cada qual quer chegar a ser o mais velho e saber
disto, e quando ele próprio já não existir as pessoas deverão
continuar sabendo o seu nome.
A forma mais baixa de sobrevivência é a de matar. Assim
como o homem mata o animal que lhe serve de alimento — e
que jaz indefeso à sua frente e pode ser cortado em pedaços
e repartido como presa que ele incorpora a si e aos seus —,
assim também deseja matar quem se interpõe no seu caminho,
quem se opõe a ele, quem se ergue diante dele como um inimi-
go. Ele quer derrubar o outro para sentir que ele mesmo ainda
existe e que o outro deixou de ser. Mas o outro não deve desa-
parecer inteiramente; sua presença como cadáver é indispen-
sável para esta sensação de triunfo. Agora pode-se fazer com
ele o que se quiser, ao passo que ele já não pode mais fazer
coisa alguma. Ele está caído, e permanecerá caído para sem-
pre; jamais voltará a se levantar. Podemos tomar sua arma;
podemos cortar partes do seu corpo e conservá-las para sempre
como troféus. Este momento do confronto com o que foi morto
enche o sobrevivente de uma força muito particular que não
é comparável a nenhuma outra. Não existe momento que exija
com tanta força a sua própria repetição.
Porque o sobrevivente tem conhecimento de muitos mor-
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tos. Se ele esteve numa batalha, viu outros caindo ao redor uma distância maior. Espadas, lanças e flechas são capazes de
de si. Ele foi à batalha com a intenção consciente de afirmar- penetrar nele. Ele inventou o escudo e a armadura, levantou
se contra seus inimigos. Seu objetivo declarado era o de der- muralhas e fortalezas em torno de si. Mas a segurança que
rubar o maior número possível deles, e ele somente pode ven- ele mais deseja é um sentimento de invulnerabilidade.
cer quando consegue fazer exatamente isso. Vitória e sobrevi- Ele tentou conseguir isto por dois caminhos diferentes.
vência são palavras que têm o mesmo significado para ele. Mas Estes caminhos são exatamente opostos um ao outro e seus
também os vencedores são obrigados a pagar seu preço. Entre resultados, conseqüentemente, são muito diferentes. Por um
os mortos jazem muitos que pertenciam a seu lado. Amigos e lado, ele tentou afastar de si o perigo, interpondo grandes
inimigos misturados jazem no campo de sangue, o monte de espaços entre ele e o perigo, espaços que pudesse vigiar e
mortos é comum. Às vezes as batalhas são travadas de tal ma- controlar com um olhar. Por assim dizer, ele se ocultou do
neira que não é possível separar os mortos de cada lado: uma perigo e o desterrou.
única vala comum recebe então todos os cadáveres dos caídos. O outro caminho, no entanto, é o que sempre lhe pro-
Diante deste monte de caídos, o sobrevivente se ergue vocou mais orgulho. Todas as antigas tradições estão repletas
como o homem de sorte e o preferido. Que ele ainda conserve da glória e da fama adquiridas pela coragem de procurar o
a vida enquanto tantos outros que momentos antes estavam perigo e de enfrentá-lo. O homem deixou que o perigo se
a seu lado a perderam é um fato monstruoso. Os mortos ja- aproximasse o mais possível e depois jogou tudo no seu su-
zem indefesos e, entre eles, ele está de pé: é como se a batalha cesso. De todas as situações possíveis, ele procurou a de maior
tivesse sido travada apenas para que ele pudesse sobreviver. perigo e a elevou ao ponto máximo. Transformou alguém em
A morte desviou-se dele para abater os demais. Não que ele inimigo e o desafiou. É possível que o outro já fosse seu ini-
tenha procurado evitar o perigo. No meio de seus amigos, ele migo ou que, nesse determinado momento, ele o tenha trans-
enfrentou a morte. Eles caíram. Ele está de pé e triunfa. formado em tal. O que quer que tenha acontecido, a intenção
Esta sensação de algo sublime é conhecida por qualquer era a de procurar o maior perigo possível e uma solução ina-
pessoa que já esteve em alguma guerra. Ela pode ser disfar- diável.
çada pelo luto em relação aos companheiros, mas estes são Este é o caminho do herói. E o que quer o herói? O que
poucos e os mortos sempre são muitos. A sensação de força, é que ele realmente deseja? A glória que todos os povos tri-
de estar de pé e com vida diante de tantos mortos é, no fundo, butaram aos seus heróis, uma glória tenaz, dificilmente pas-
mais intensa do que qualquer luto; é o sentimento de ter sido sageira, à medida que suas façanhas ofereciam variedade
eleito entre muitos, cujos destinos são manifestamente idên- ou se sucediam com suficiente rapidez, engana quanto aos
ticos. De alguma forma, sente-se que se é melhor, simples- motivos mais profundos destas façanhas. Supõe-se que apenas
mente porque ainda se está com vida. Foi possível comprovar a glória lhes interessava, mas eu acredito que originalmente
isto porque, afinal, ainda se está vivo. Foi possível comprovar eles queriam uma coisa completamente diferente: a sensação
isto entre muitos e isto é incontestável, já que os que estão de invulnerabilidade que desta maneira conseguiam ganhar
caídos não vivem mais. Quem consegue sobreviver muitas numa rápida escalada.
vezes desta forma é um herói. Ele é o mais forte. Ele possui A situação concreta, na qual o herói se encontra depois
mais vida dentro de si. Os poderes superiores lhe são pro- de um perigo superado, é a do sobrevivente. O inimigo queria
pícios. a sua vida, da mesma forma que ele queria a vida do inimigo.
Com este objetivo declarado e irredutível eles se enfrentaram.
O inimigo sucumbiu. Ao herói no entanto nada aconteceu du-
Sobrevivência e invulnerabilidade rante o combate. Totalmente tomado pelo monstruoso fato de
sua sobrevivência, ele se lança no combate seguinte. Como
O corpo do homem é nu e está exposto; em sua maciez, nada pôde afetá-lo, nada poderá afetá-lo. De vitória em vitória,
ele está sujeito a todos os tipos de golpes inesperados. Tudo de inimigo morto em inimigo morto, ele se sente cada vez mais
o que nas proximidades, por suas artimanhas, ele consegue seguro: sua invulnerabilidade aumenta, transforma-se numa ar-
manter longe do seu corpo, pode alcançá-lo com facilidade de madura cada vez mais perfeita.
252 253
Esta sensação de invulnerabilidade não pode ser adquiri- mais freqüentemente se viver estes momentos, tanto mais in-
da de outra maneira. Quem afastou o perigo, quem se escon- tensa e mais imprescindível se torna esta necessidade de sobre-
de diante dele somente adiou o seu próprio destino. Quem vivência. As carreiras dos heróis e dos mercenários comprovam
enfrenta o destino, quem realmente sobrevive, quem volta a que se origina uma espécie de mania irremediável. A explica-
enfrentá-lo novamente, quem acumula os momentos de sobre- ção usual que se dá a isto é que estes homens não conse-
vivência, este pode alcançar a sensação de invulnerabilidade. guem mais respirar quando não se encontram em situações de
Na verdade ele somente se transforma num herói no momento perigo; que toda a existência carente de perigo lhes é estranha
em que possui esta sensação. Então ele arrisca tudo; ele nada e sem incentivos; que já não podem mais encontrar prazer
tem a temer. Talvez tivéssemos uma tendência para admirá-lo ou gosto numa vida pacífica. Não se pode subestimar a atração
mais enquanto ainda houvesse motivos para sentir medo. exercida pelo perigo, mas freqüentemente se esquece que estas
Mas este é o conceito do observador externo. O povo quer que pessoas não saem sozinhas em busca de aventuras, que outros
seu herói seja invulnerável. as acompanham e sucumbem ao perigo. O que elas real-
Deve acrescentar-se que as façanhas do herói não se es- mente necessitam e de que já não podem mais prescindir é a
gotam apenas em duelos singulares. É possível que ele tenha volúpia constantemente renovada do sobreviver.
de enfrentar toda uma malta de inimigos; aquele que mesmo Mas, para satisfazer esta volúpia, não é preciso que a pes-
assim resolve atacá-los, aquele que não apenas consegue esca- soa sempre se exponha pessoalmente ao perigo. Ninguém pode,
par deles com vida, mas consegue também matar todos eles sozinho, abater um número considerável de homens. Nos
estabelece de uma só vez sua sensação de invulnerabilidade. campos de batalha, toda uma multidão trabalha num mesmo
Em certa ocasião, Gengis-Khan foi interrogado por um sentido e, quando se é o comandante desta multidão, quando
dos seus companheiros mais antigos e fiéis: "Você é o sobe- a batalha é o resultado de uma decisão pessoal, é lícito também
rano e é chamado de herói. Quais são as marcas de conquistas apropriar-se do sucesso pelo qual se é responsável; pode-se
e de vitórias que você leva em sua mão?" E Gengis-Khan lhe tomar posse de todos os cadáveres. Não é em vão que o ma-
respondeu: "Antes de subir ao trono do império, certa vez eu rechal-de-campo ostenta seu título arrogante. Ele manda: ele
cavalgava por um caminho. Lá encontrei seis homens que se envia seus homens contra o inimigo, em direção à morte.
tinham colocado em emboscada junto à cabeça de uma ponte Quando vence, é a ele que pertence todo o campo dos mortos.
e que queriam acabar com minha vida. Quando me aproximei, Alguns caíram por ele, os outros caíram contra ele. De vitória
puxei minha espada e os ataquei. Eles me inundaram com uma em vitória, ele sobrevive a todos. Os triunfos que ele come-
chuva de flechas, mas todas elas erraram o alvo e nenhuma me mora expressam da maneira mais exata possível o que ele que-
tocou. Matei todos eles com minha espada e continuei ca- ria. Sua importância se mede pelo número de mortos. O triunfo
valgando sem ter sido ferido. No caminho de regresso passei é ridículo quando o inimigo se rendeu sem travar um verda-
junto ao local onde tinha enfrentado aqueles seis homens. deiro combate, quando apenas alguns mortos foram reunidos.
Seus seis cavalos vagavam por ali sem dono e eu os levei todos Mas o triunfo é glorioso quando o inimigo se defendeu com
para minha casa". valor, quando a vitória foi conquistada a duras penas e custou
Nesta invulnerabilidade numa luta contra seis inimigos de um elevado número de vítimas.
uma só vez, Gengis-Khan via a prova mais certa de todas as "César superou todos os heróis de guerra e todos os
suas conquistas e de suas vitórias. generais juntos por ter travado mais batalhas e por ter ceifado
a vida da maior quantidade de inimigos. Pois em menos de
dez anos, durante o tempo que conduziu a guerra contra a
Sobreviver como paixão Gália, ele tomou de assalto mais de oitocentas cidades, sub-
meteu trezentos povos, combateu contra três milhões de ho-
A satisfação de sobreviver, que é uma espécie de volúpia, mens, dos quais matou um milhão durante as batalhas, e
pode transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela transformou outro milhão em prisioneiros."
cresce de acordo com as ocasiões. Quanto maior for o monte Esta opinião é de Plutarco, que ninguém pode acusar de
de mortos diante dos quais alguém se ergue com vida, quanto instintos bélicos ou de sede de sangue, pois foi um dos espí-
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ritos mais humanos que o mundo conheceu. Ele tem seu valor aproxime de qualquer lado, porque a consciência de que está
porque estabelece o balanço de maneira tão contundente. envolvido com muitos que poderiam atacá-lo de uma só vez
César combateu contra três milhões de inimigos, matou Mn mantém vivo dentro dele o medo de ser cercado. O perigo
milhão e transformou outro milhão em prisioneiros. Outros
generais, mongóis e não-mongóis, o superaram posteriormente. está espalhado por todos os lados, não apenas diante dele.
O perigo é até mesmo maior às suas costas, onde ele não o
Mas esta antiga opinião também é característica pela maneira
poderá perceber de maneira suficientemente rápida. Por este
ingênua como tudo é atribuído exclusivamente ao general. As motivo ele volve os Aos para todos os lados e nem mesmo
cidades tomadas por assalto, as nações submetidas, os milhões
o ruído mais imperceptível pode deixar de ser notado, pois
de inimigos vencidos, mortos, prisioneiros; tudo pertence a
poderia ser sinal de alguma intenção inimiga e hostil.
César. Não é a ingenuidade de Plutarco que se expressa desta O perigo por excelência, naturalmente, é a morte. É im-
maneira, e sim a ingenuidade da própria história. Desde os portante esclarecer de maneira precisa qual é a atitude do po-
relatos de guerra dos faraós egípcios estamos acostumados a deroso em relação a ela. A primeira e decisiva característica do
esta ingenuidade; e até os dias de hoje praticamente nada poderoso é o seu direito sobre a vida e a morte. Ninguém
mudou neste sentido. pode aproximar-se dele; quem lhe trouxer uma mensagem,
César, portanto, sobreviveu feliz a tantos inimigos. É quem precisa chegar perto dele é revistado. Sistematicamente
considerado falta de tato nestas ocasiões contabilizar também a morte é mantida a uma certa distância dele, que poderá
as baixas sofridas do próprio lado. Elas são conhecidas, mas impô-la a quem e quantas vezes quiser. Sua sentença de morte
não são creditadas ao grande homem. Nas guerras de César,
sempre é executada. Este é o selo do seu poder; seu poder
estas baixas, comparadas com o número dos inimigos abatidos, somente é absoluto enquanto o seu direito de impor a morte
não foram excessivamente numerosas. O certo é que ele sobre-
seja indiscutível.
viveu a alguns milhares de aliados e romanos; neste sentido, Porque realmente só está submetido quem se deixa matar
ele também não sai com as mãos totalmente vazias.
por ele. A última prova de obediência, da qual tudo depende,
De geração em geração, estes orgulhosos balanços foram é sempre a mesma. Seus soldados são educados para uma es-
repetidos; em cada uma delas apareceram heróis guerreiros em
pécie de disposição dupla: são enviados para matar os inimi-
potencial. Sua paixão de sobreviver aos outros homens foi
gos dele e estão dispostos a dar suas próprias vidas por ele.
estimulada até a loucura. O julgamento da história parecia Mas também todos os seus demais súditos, que não são sol-
justificar seus feitos, antes mesmo de eles serem realizados. Os
dados, sabem que a qualquer momento ele pode destruí-los.
mais aptos nesta forma de sobrevivência ocupam o lugar mais O terror que ele difunde lhe pertence; é seu direito e por isto
elevado e mais seguro dentro da história. Para esta espécie de é supremamente venerado. Ele é adorado de forma extrema.
glória póstuma, em última instância, mais do que a vitória ou O próprio Deus pronunciou a sentença de morte sobre todos
a derrota conta o monstruoso número de vítimas. Não se sabe os homens vivos ou que ainda irão viver. De sua vontade ape-
ao certo como Napoleão realmente se sentia durante sua cam- nas depende quando esta sentença será executada. Ninguém
panha na Rússia. pensaria sequer em se opor a esta sentença seria um em-
preendimento inútil.
No entanto, a sina dos poderosos terrestres não é tão
O poderoso como sobrevivente fácil quanto a de Deus. Eles não vivem eternamente; seus
súditos sabem que também os seus dias têm um fim; um fim
Poder-se-ia definir como paranóica a atitude do chefe que que, até mesmo, pode ser acelerado. Como qualquer outra coi-
se mantém afastado do perigo por todos os meios possíveis. sa, o poder também tem fim. Quem nega obediência apresenta
Em vez de provocá-lo e de enfrentá-lo, em vez de correr o combate. Nenhum governante pode ter certeza definitiva da
risco de um destino talvez desfavorável numa luta, ele pro- obediência dos seus súditos. Enquanto eles se deixarem matar
cura afastar o perigo com astúcia e previsão. Irá criar um por ele, ele poderá dormir tranqüilo. No entanto, assim que
espaço livre em torno de si, um espaço que possa ser contro- um deles se subtrair ao seu julgamento, o governante corre
lado, e analisará todo e qualquer sinal de perigo que se perigo.
256 257
"Ir
O sentimento deste perigo está sempre vivo dentro do
cicias durante os sacrifícios pelas almas dos mortos; os alimen-
poderoso. Posteriormente, quando abordarmos a natureza da tos também eram negros e foram apresentados em vasilhas
ordem, veremos que os seus temores precisam aumentar, à desta mesma cor. Cada um dos hóspedes começou a tremer,
medida que mais ordens suas tenham sido executadas. Ele
esperando ser logo degolado. Com exceção de Domiciano, to-
somente pode aquietar suas dúvidas dando um exemplo. De- dos tinham emudecido. Reinava um silêncio mortal, como se
terminará uma execução de pena capital por sí mesma, sem eles já estivessem no reino dos mortos. O imperador discorria
que tenha muita importância a culpa da vítima. De tempos em longamente a respeito da morte e de massacres. Finalmente
tempos ele necessitará de execuções deste tipo, em quantida- ele os despediu. Mas os escravos dos hóspedes, que aguardavam
des tanto maiores quanto suas dúvidas forem aumentando. por eles na ante-sala, tinham sido retirados. Os hóspedes
Seus súditos mais seguros, isto é, os mais perfeitos dentre eles, foram então confiados a outros escravos que lhes eram desco-
são os que foram vitimados por ele. nhecidos, e foram transportados para suas casas em carros ou
Cada execução pela qual ele é responsável lhe confere liteiras. Desta maneira o medo deles aumentou ainda mais.
algo de força. E é justamente a força do sobreviver que ele Assim que chegaram a casa e começaram a respirar aliviados,
procura desta forma. Suas vítimas não precisam ter-se voltado apresentou-se um mensageiro do imperador. Certos de que
realmente contra ele; basta saber que o poderiam ter feito. esse era seu último momento, perceberam que alguém lhes
O medo que o domina as transforma — talvez a posteriori — trazia a lousa, que era de prata. Outros vinham com diversos
em inimigos que lutaram contra ele. Ele as condenou, elas objetos, entre eles as vasilhas de material precioso nas quais
sucumbiram, ele sobreviveu a elas. O direito de pronunciar as refeições tinham sido servidas durante a ceia. Por fim,
sentenças de morte se transforma em sua mão numa arma apresentou-se na casa de cada hóspede o rapaz que o tinha
como outra qualquer, mas muito mais eficaz. Os soberanos atendido de modo particular; mas agora estava lavado e ador-
bárbaros e orientais freqüentemente davam grande importân- nado. Depois de terem passado toda a noite em angústia mor-
cia ao acúmulo de vítimas deste tipo entre os seus mais che- tal, recebiam agora presentes."
gados, de maneira a tê-los sempre sob suas vistas. Mas mesmo Este foi o famoso "banquete fúnebre de Domiciano",
onde os costumes se opunham a um tal acúmulo, os pensa- como passou a ser chamado pelo povo.
mentos dos poderosos ainda se ocupavam disso. Um jogo O terror incessante no qual ele manteve seus hóspedes
sinistro deste tipo é relatado a respeito do imperador romano fez com que eles emudecessem. Somente ele falava e falava
Domiciano. O banquete idealizado por ele, e que certamente de mortes e de massacres. Era como se todos estivessem mor-
nunca mais foi oferecido da mesma maneira, serve para, evi- tos e somente ele continuasse vivo. Durante a ceia tinha reu-
denciar com clareza a natureza mais profunda do poderoso nido todas as suas vítimas, pois como tais eles deviam sentir-se.
paranóico. O relato deste acontecimento transmitido por Cas- Disfarçado de anfitrião, mas na verdade como sobrevivente,
sius Dio diz o seguinte: ele falava para suas vítimas disfarçadas de hóspedes. Mas a
"Em outra ocasião Domiciano entreteve os senadores e situação de sobrevivente não era evidente apenas pelo acúmulo
cavaleiros mais importantes de forma diferente. Ele decorou de vítimas; ela era realçada de modo refinado. Apesar de os
um recinto onde tudo — teto, paredes e chão — era preto convidados estarem como mortos, ele ainda podia matá-los.
como piche, e colocou sobre o piso nu leitos da mesma cor. Desta maneira o processo propriamente dito da sobrevivência
Seus hóspedes foram convidados à noite e sem séqüito. Junto é exemplificado. Quando ele os despediu, isto foi o equivalente
a cada um deles mandou colocar uma lousa que tinha a forma a um indulto. Mas ele os fez tremer novamente, entregando-os
de uma lápide funerária e ostentava o nome do hóspede; além nas mãos de escravos estranhos. Quando chegam a suas casas,
disto havia ainda uma pequena lâmpada, como as que são ele lhes envia novamente mensageiros de morte. Trazem-lhes
colocadas nos túmulos. Entraram depois alguns rapazes de presentes, e com eles o maior' dos presentes: a vida. Ele pode,
corpos bonitos e nus, igualmente pintados de negro como fan- por assim dizer, transferi-los da vida para a morte, e logo em
tasmas; executaram uma dança horripilante em torno dos con- seguida trazê-los de volta à vida. Ele se diverte repetidas
vidados, e colocaram-se em seguida aos pés deles. Então foram vezes com esse jogo. Ele se autorga assim a sensação máxima
servidas aos hóspedes as comidas que normalmente são ofere- do poder; não se pode imaginar outra maior.
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A salvação de Flávio Josefo uma notável consciência e com uma espécie de compreensão
da própria essência do sobreviver tudo o que empreendeu para
Da guerra entre os romanos e os judeus, que ocorreu poder escapar. Não lhe foi difícil ser sincero, pois escreveu
durante a juventude de Domiciano, chegou-nos a narrativa de este relatório mais tarde, quando já gozava de grande reputação
um acontecimento que ilumina de forma definitiva a natureza entre os romanos.
do sobrevivente. O comando supremo dos romanos se encon- "Depois da queda de Jotapata, em parte por um senti-
trava nas mãos de Vespasiano, pai de Domiciano; foi durante mento de amargura contra Josefo, em parte porque o coman-
esta guerra que os Flávios chegaram a alcançar a dignidade dante estava extremamente interessado em sua captura —
imperial. quase como se ela fosse decisiva para o desfecho da guerra —,
Os judeus tinham se erguido, havia algum tempo, contra os romanos procura,T.m o odiado inimigo entre os mortos e
o domínio dos romanos. Quando o movimento se expandiu, em todos os esconderijos da cidade. No entanto, durante
os judeus designaram comandantes para as diferentes partes do a ocupação da cidade, como que movido por uma assistên-
país. Eles deveriam reunir homens para a guerra e colocar as cia divina, ele tinha se esgueirado entre os inimigos e saltado
cidades em condições de se defenderem com êxito contra as numa funda cisterna que se prolongava lateralmente formando
legiões romanas, que certamente não demorariam a chegar. A uma espaçosa cova, invisível para quem estivesse em cima.
Josefo, ainda jovem, com apenas trinta anos de idade, foi con- Neste esconderijo ele encontrou quarenta homens eminentes,
fiada a província da Galiléia. Com muito zelo ele se dedicou abastecidos de víveres suficientes para muitos dias. Durante
à execução de sua tarefa. Em sua História da Guerra Judaica, o dia ele ficava escondido, porque os inimigos tinham ocupado
ele descreveu os obstáculos contra os quais foi obrigado a todos os arredores; de noite, porém, ele subia, na tentativa de
lutar: falta de união entre os cidadãos, rivais que faziam intri- encontrar um caminho de fuga e de determinar a posição das
gas contra ele e que reuniam tropas por conta própria, cidades sentinelas. Como porém por sua causa os arredores estavam
que se recusavam a reconhecer seu comando supremo, ou que extremamente bem guardados, não havia qualquer possibili-
depois de algum tempo acabavam desertando. No entanto, com dade de fugir, e ele voltava sempre à cova. Durante dois dias
surpreendente energia, ele conseguiu colocar de pé um exér- conseguiu escapar desta forma à vigilância; no terceiro dia,
cito, se bem que mal armado, e ergueu fortalezas para receber porém, foi delatado por uma mulher que estivera com eles,
os romanos. mas que tinha sido presa. Vespasiano imediatamente enviou
Quando eles chegaram sob o comando de Vespasiano, dois tribunos encarregados de lhe prometer segurança, caso
este trazia consigo seu jovem filho Tito, da mesma idade de Josefo concordasse em deixar a cova.
Josefo. Em Roma, Nero ainda era o imperador. Vespasiano "Os tribunos chegaram, tentaram persuadi-lo e lhe deram
tinha fama de ser um velho e experiente general, que tinha se garantia de vida. Mas nada conseguiram dele, pois ele acre-
destacado em vários cenários bélicos. Ele penetrou na Gali- ditava saber o que o esperava por causa dos prejuízos causados
léia e isolou Josefo com seu exército judeu na fortaleza de aos romanos. O modo benévolo como o exortavam de maneira
Jotapata. Os judeus se defenderam com a maior coragem; Jo- alguma conseguiu modificar sua opinião a respeito da sorte
sefo possuía uma grande capacidade inventiva e soube rechaçar que o aguardava. Ele não conseguia afastar o temor de que
todos os ataques; os romanos sofreram duras perdas. A defesa eles apenas o queriam atrair para fora com artimanhas para
durou quarenta e sete dias. Quando os romanos finalmente em seguida executá-lo. Por fim Vespasiano enviou um terceiro
conseguiram penetrar à noite na fortaleza graças a um ardil — mensageiro na figura do tribuno Nicanor, bem conhecido de
todos dormiam e a presença do inimigo foi percebida apenas Josefo, do qual aliás era velho amigo. Este chegou e o infor-
ao clarear do dia —, os judeus se entregaram a um terrível mou do clemente procedimento dos romanos em relação aos
desespero e muitos acabaram matando-se mutuamente.
inimigos derrotados, explicando-lhe que os generais admiravam
Josefo escapou. Quero citar seu destino depois da ocupa- Josefo por sua coragem, que eles não o odiavam e que o co-
ção da cidade com suas próprias palavras pois, quanto eu mandante de maneira alguma tinha intenções de executá-lo —
saiba, não existe em toda a literatura universal nenhum outro
mesmo porque poderia fazê-lo sem que ele saísse de onde
relato semelhante de um sobrevivente. Josefo descreve com estava —; pelo contrário, estava resolvido a permitir que con-
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tinuasse vivo por tratar-se de um homem valente. Além do nharam suas espadas contra ele e ameaçaram matá-lo caso se
mais, seria inimaginável que Vespasiano enviasse a Josefo um rendesse aos romanos.
amigo deste com a intenção enganosa de disfarçar com a ami- "Josefo ficou com medo deles, mas parecia-lhe uma trai-
zade uma falta de palavra; tampouco ele, Nicanor, se teria ção morrer antes de cumprir os encargos divinos. Em meio à
prestado a enganar um amigo. pressão de suas aflições, procurou argumentos racionais para
"Como porém Josefo não conseguiu chegar a um acordo responder-lhes. Era bonito morrer na guerra, disse-lhes, mas,
com Nicanor, os soldados enfurecidos começaram a fazer pre- segundo os costumes da guerra, pelas mãos dos vencedores.
parativos para lançar fogo dentro da cova. Seu superior con- A pior covardia seria matar-se a si próprio. O suicídio vai
seguiu contê-los, já que lhe importava muito ter o homem vivo. contra a natureza íntima de todo ser vivo, e ao mesmo tempo
Enquanto Nicanor tentava convencê-lo e a tropa inimiga pro- é um sacrilégio contra Deus, o Criador. De Deus e'ie recebera
feria ameaças sem cessar, na mente de Josefo apareceram sua existência e a Ele também deveria confiar seu próprio fim.
lembranças de sonhos nos quais Deus lhe tinha revelado a Deus odiava e castigava ainda nos seus descendentes todos os
iminente desgraça dos judeus e o futuro destino dos impera- que erguiam suas mãos contra si mesmos. Não seria conve-
dores romanos. Josefo conhecia bem a interpretação dos so- niente acrescentar à perda de tantos homens um sacrilégio
nhos: como sacerdote e filho de sacerdote, estava intimamente contra o Criador. Eles não deveriam colocar empecilho algum
no caminho de sua salvação, caso esta fosse possível. Para eles
familiarizado com os vaticínios dos livros sagrados e era capaz
não seria uma desonra sobreviver, uma vez que já tinham de-
também de explicar os anúncios que Deus tinha deixado na
monstrado suficientemente sua valentia através dos feitos. Po-
ambigüidade. Justamente nesse momento, ele foi tomado por
rém, se a morte lhes estava reservada, esta lhes deveria ser
um entusiasmo divino; os horrores dos sonhos recentes apa-
infligida pelos vencedores. Ele não pensava em passar para o
receram diante do seu interior e ele enviou a seguinte oração
lado inimigo e transformar-se num traidor. Almejava, isto sim,
a Deus: 'Como resolveste dobrar o povo judeu, que Tu mesmo uma traição por parte dos romanos. Ele morreria feliz se, ape-
criaste, como toda a fortuna passou para os romanos e como sar da palavra empenhada, eles o assassinassem e esta falta de
escolheste minha alma para revelar o futuro, estendo a mão palavra, pela qual provocariam o castigo de Deus, era para
para os romanos e permaneço vivo. Porém, invoco Teu teste- ele um consolo maior do que a vitória.
munho de que não é como traidor mas como servidor Teu "Assim Josefo tentou de todas as maneiras dissuadir seus
que passo para o lado deles'. companheiros do suicídio. Mas o desespero os deixava surdos
"Depois desta oração ele prometeu a Nicanor que se en- a todas as argumentações. Há muito tempo eles se tinham
tregaria. Quando os judeus que se encontravam com ele no consagrado à morte e suas palavras conseguiam apenas aumen-
esconderijo se deram conta de que ele estava resolvido a ceder tar o ódio que eles sentiam. Eles o acusaram de covardia e
às exortações do inimigo, rodearam-no em grupo compacto por todos os lados avançaram com espadas na mão contra ele.
e o atacaram com acusações. Lembraram-lhe quantos judeus Cada um deles parecia estar disposto a transpassá-lo ali mes-
tinham morrido pela liberdade devido à insistência dele. Ele, mo. A difícil situação provocou nele uma multiplicidade de
cuja reputação de coragem tinha sido tão grande, estaria dis- atitudes: chamou este pelo nome, naquele cravou o olhar de
posto a continuar agora vivendo como escravo? Ele, cuja inte- comando; tomou um terceiro pela mão e mudou a opinião de
ligência tanto valia, esperava demência por parte daqueles con- um quarto por meio de súplicas. Desta forma conseguia afastar
tra os quais tinha combatido com tanta insistência? Ter-se-ia de si a espada homicida. Ele se comportava como o animal
esquecido totalmente de si mesmo? A lei dos pais recairia pe- encurralado que sempre se volta contra quem fez menção de
sadamente sobre ele e ele ofenderia a Deus mostrando-se tão atacá-lo. Mas, mesmo nesta situação extrema, eles ainda o res-
interessado na sua própria vida. Ele poderia estar cego diante peitavam como comandante; seus braços ficaram como que
da fortuna dos romanos, mas eles continuavam pensando na paralisados, os punhais lhes caíram das mãos e muitos que
honra do seu povo. Ofereceram-lhe seus braços e espadas para tinham levantado a espada contra ele voltaram a embainhá-la
que caísse voluntariamente como comandante dos judeus; do espontaneamente.
contrário morreria involuntariamente como traidor. Desembai- "Apesar desta situação desesperada, Josefo não perdeu
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sua calma; pelo contrário, confiando na ajuda de Deus, colo- prisioneiro de guerra que conseguiste dominar. Estás
cou sua vida em jogo e disse o seguinte a seus companheiros: que um
equivoca do•. estou diante de ti como porta-voz de assuntos mais
`Uma vez que tomamos a resolução de morrer e que esta reso- importantes. Eu, Josefo, devo cumprir para contigo uma mis-
lução é irrevogável, deixaremos que a sorte decida quem de nós são de Deus. Não fosse isso eu saberia muito bem o que exige
i
haverá de acabar com o outro. Cada um que for designado lei dos judeus e como deve morrer um comandante. Queres
a
pela sorte, morrerá pelas mãos do seguinte. Desta maneira a enviar-me para Nero? Para quê? Seus sucessores, que ainda
sorte de morrer nos tocará a todos e nenhum de nós se verá deverão ocupar o trono antes de ti, não o manterão durante
obrigado a matar a sí mesmo. No entanto, seria uma grande muito tempo. Tu mesmo, Vespasiano, chegarás a ser César e
injustiça se, depois da morte de seus companheiros, o último imperador, e este teu filho o será depois de ti! Agora, faze
se arrependesse e salvasse sua vida'. com que me acorrentem melhor e guarda-me para mais tarde,
"Esta proposta fez com que todos voltassem a confiar para ti. Porque serás César e terás poder não somente sobre
nele e, depois de todos terem concordado com ela, ele mesmo mim, mas sobre a terra e o mar e sobre toda a estirpe humana.
participou do sorteio. Cada um que era sorteado se deixava Faze com que me vigiem da maneira mais rígida possível e
matar pelo sorteado seguinte, sabendo que pouco depois tam- então, se usei em vão o nome de Deus, manda-me executar
bém haveria de morrer seu comandante, e a morte com Josefo como terei merecido!'
lhes parecia melhor do que a vida. No final sobrou justamente "No começo, Vespasiano não deu muito crédito a estas
Josefo — por uma feliz casualidade ou por divina providência palavras e estava inclinado a considerá-las como um ardil pelo
— com mais um companheiro; e, como ele não queria ser es- qual Josefo procurava salvar sua própria vida. Aos poucos
colhido pela sorte e também não queria manchar sua mão com porém, começou a acreditar nelas. Deus tinha despertado nele
o sangue do companheiro, conseguiu convencê-lo a se entregar a idéia do trono e lhe tinha insinuado o seu futuro reinado
aos romanos para salvar suas vidas. também por outros sinais. Além disto ficou sabendo que já
"Depois de Josefo ter saído vivo tanto da luta contra os em outras ocasiões seu prisioneiro tinha vaticinado o futuro.
romanos como da disputa com sua própria gente, foi condu- Um dos amigos de Vespasiano, presente à entrevista secreta,
zido por Nicanor até Vespasiano. Todos os romanos se reuni- expressou sua surpresa perante o fato de que Josefo não tivesse
ram para ver o comandante dos judeus e a multidão compri- previsto nem a destruição de Jotapata, nem tampouco sua
mida gritava multo. Uns se regozijavam por sua captura, outros própria captura: o que agora alegava talvez fossem apenas pa•
o ameaçavam, outros ainda abriam violentamente o caminho lavras vazias para ganhar o favor do inimigo. Josefo respondeu
para poder vê-lo de perto. Os que se encontravam mais dis- com o que tinha previsto para as pessoas de Jotapata: que
tantes gritavam exigindo que o inimigo fosse executado; os depois de quarenta e sete dias eles cairiam nas mãos do ini-
que estavam mais perto recordavam suas façanhas e se admi- migo, e que ele mesmo seria capturado vivo. Vespasiano orde-
ravam com a reviravolta do seu dèstino. Entre os oficiais, nou então que fossem feitas averiguações secretas entre os
porém, não havia um 'único que, apesar de toda a amargura prisioneiros; quando as declarações de Josefo foram confirma-
anterior, não se sentisse agora enternecido por seu aspecto. das, começou a dar crédito à previsão a respeito de sua própria
Principalmente o nobre Tito, de sua mesma idade, ficou muito pessoa. Apesar de ter mantido Josefo preso e acorrentado, ele
comovido pela constância de Josefo na desgraça e compade- o presenteou com um traje luxuoso e com outros objetos sun-
ceu-se de sua juventude. Queria salvar-lhe a vida e intercedeu tuosos. Depois disto, dispensou-lhe também um tratamento
com toda força a favor dele diante de seu pai. Vespasiano, amável, graças principalmente a Tito."
todavia, mandou que ele fosse colocado sob forte custódia; sua O relato de Josefo se divide em três fases diferentes. Uma
intenç era enviá-lo sem demora a Nero. vez ele escapa ao massacre da fortaleza conquistada de Jota-
"Quando Josefo ouviu falar a este respeito, pediu para pata. Todos os defensores da cidade que não acabam com a
conversar em particular com Vespasiano. O comandante orde- própria vida são mortos pelos romanos; alguns tornam-se pri-
nou que todos os presentes se retirassem, com exceção de seu sioneiros. Josefo se salva na cova situada junto à cisterna. Lá
filho Tito e de dois amigos de confiança. Josefo então disse o ele encontra quarenta homens que são enfaticamente qualifica-
seguinte: `Vespasiano, tu acreditas que eu nada mais sou do dos por ele como "eminentes". Todos são sobreviventes como
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ele. Eles se abastecem de mantimentos e pretendem man- mãos, e é morto em seguida pelo sorteado seguinte. Os es-
ter-se ocultos até que se ofereça uma possibilidade para escapar crúpulos religiosos que Josefo utilizou contra o suicídio apa-
dos romanos. rentemente não são válidos em casos de assassinato. A cada
Porém o paradeiro de Josefo, que é o mais procurado de homem que morre aumenta dentro de Josefo a esperança de
todos, é denunciado aos romanos por uma mulher. Com isto a sda própria salvação. Ele deseja a morte de cada um e de todos;
situação se modifica e tem início o segundo ato, o mais inte- para si mesmo, deseja apenas a vida. Eles morrem de bom
ressante do relato todo; pela sinceridade com que é evocado grado, acreditando que ele, seu comandante, irá morrer com
pelo seu protagonista, pode ser qualificado como único. eles. Não podem imaginar que ele irá ficar por último. Não é
Os romanos lhe prometem a vida. Assim que ele acredita provável que eles tenham sequer pensado nesta possibilidade.
neles, eles deixam de ser seus inimigos. Visto num sentido Como porém um deles forçosamente terá de ser o último, ele
mais profundo, é uma questão de fé. Uma visão onírica, pro- também se precavém contra isto: seria uma grande injustiça, diz
fética, ocorre-lhe no momento exato. Foi-lhe revelado que os ele aos seus homens, se após a morte dos seus companheiros,
judeus seriam vencidos. Eles foram vencidos se bem que, no o último se arrependesse e salvasse a própria vida. É justa-
momento, apenas na fortaleza que ele comandava. A sorte está mente esta injustiça que ele espera. O que ninguém poderia
do lado dos romanos. A visão em que isto lhe foi anunciado fazer após a morte de todos os companheiros é o que ele
vinha de Deus. Com a ajuda de Deus, ele será capaz de encon- mesmo tem intenções de fazer. Sob o pretexto de que neste
trar o caminho até os romanos. Ele se entrega a Deus e se último momento pertence totalmente a eles, é um deles, ele
volta agora contra seus novos inimigos, os judeus que, junto os envia todos para a morte, conseguindo desta forma salvar
com ele, se encontram na caverna. Estes querem cometer a própria vida. Eles não desconfiam o que ele sente enquanto
suicídio para não caírem nas mãos dos romanos. Ele, o chefe, presencia a morte dos demais. Encontram-se totalmente presos
que os tinha incentivado para o combate, deveria ser o pri- pelo destino comum e acreditam que ele também esteja preso;
meiro a enfrentar este tipo de morte. No entanto, ele está ele porém está do lado de fora e previu a morte apenas para
firmemente decidido a viver. Procura persuadi-los; invocando os demais. Eles morrem para que ele se possa salvar.
cem razões diferentes, procura tirar deles a vontade de mor- O engano é total. É o engano de todos os condutores.
rer. Não consegue êxito. Qualquer coisa que ele diga contra Eles fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados
a morte serve apenas para aumentar-lhes a decisão cega e para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles pró-
também a raiva que sentem contra ele, que quer se subtrair à prios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo.
morte. Ele vê então que somente pode escapar se os outros O condutor quer sobreviver; ele se fortalece nisto. Quando
morrerem; se eles se matarem entre si e somente ele conseguir tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando
sobreviver. Aparentemente ele resolve concordar com eles e não os tem, continua tendo seus próprios companheiros. De
recorre à idéia de decidir tudo pela sorte. qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de
A maneira como é tirada esta sorte não fica totalmente uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente; afinal, é
clara, e é difícil não pensar na possibilidade de um embuste. para isto que eles são inimigos. Os companheiros só podem
Este é o único ponto do relato todo no qual Josefo não se ser utilizados às escondidas.
expressa com clareza total. Ele explica o surpreendente resul- Na caverna de Josefo, este ardil se torna evidente. Do
tado desta loteria da morte como sendo algo pelo qual Deus lado de fora estão os inimigos. Eles são os vencedores, mas sua
ou o destino é responsável, mas a impressão que se tem é de velha ameaça se transformou agora em salvação. Dentro da
que ele confia na inteligência do leitor para reconstruir a ver- caverna estão os amigos. Eles continuam na antiga convicção
dadeira sucessão de acontecimentos. Pois o que acontece em de sua conduta, que ele mesmo lhes inspirou, e se negam a
seguida é pavoroso: diante dos seus olhos, os seus homens se aceitar a nova salvação. E assim, a caverna, dentro da qual o
matam uns aos outros. Mas isto tudo não acontece de uma líder queria se salvar, se transforma para ele num grande
só vez; tudo acontece aos poucos, um matando o outro com perigo. Ele engana seus amigos, que pretendem acabar com a
ordem e seqüência. Entre cada morte, eles tiram a sorte. Cada vida dele da mesma forma como querem matar a si próprios,
um deles tem de matar um companheiro com suas próprias e os vota antecipadamente à morte em comum. Desde o co-
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meço, ele se subtrai a esta morte em comum em pensamento, para Vespasiano, que sobreviveu a Nero, trinta anos mais jovem
e depois de fato. Junto com um único companheiro, ele sobre- do que ele, e a seus sucessores, que foram três. Estes três su-
vive. Uma vez que, como ele mesmo diz, não quer manchar cessores sucumbiram, por assim dizer, um à mão do outro, e
suas mãos com o sangue de um companheiro, convence este Vespasiano tornou-se imperador romano.
a se entregar aos romanos. Ele consegue persuadir apenas
esse companheiro a viver. Quarenta teriam sido demais. Os
dois se salvam entre os romanos. Aversão dos chefes pelos sobreviventes.
E assim ele também conseguiu escapar incólume da luta Soberanos e sucessores
com seus próprios companheiros. É justamente isto o que ele
leva aos romanos: o sentimento realçado de sua própria vida, Muhammad Tughlak, o sultão de Delhi, tinha vários planos
alimentado pela morte dos seus companheiros. A transferência que superavam em grandiosidade os de Alexandre e de Napo-
deste poder recém-adquirido para Vespasiano é o terceiro ato leão: entre eles a conquista da China atravessando o Himalaia.
da salvação de Josefo. Ela se expressa através de uma promessa Foi organizado um exército de cem mil cavaleiros. Em 1337
profética. Os romanos tinham perfeito conhecimento da rígida este exército se colocou em marcha, perecendo cruelmente na
fé em Deus dos judeus. Sabiam que isto seria a última coisa à região montanhosa. Somente dez destes homens conseguiram
qual um judeu se obrigaria a fazer: falar em vão no nome de salvar-se e regressaram a Delhi com a notícia do desapareci-
Deus. Josefo devia desejar veementemente ter Vespasiano mento dos demais. Estes dez homens foram executados por
como imperador no lugar de Nero. Este, ao qual ele deveria ordem do sultão.
ser enviado, não lhe teria prometido a vida, De Vespasiano, A aversão dos tiranos pelos sobreviventes é generalizadã.
pelo menos, ele tinha uma palavra. Ele também sabia que Nero Eles consideram todo e qualquer ato de sobrevivência como
sentia desprezo por Vespasiano, que costumava dormir du- algo que lhes pertence exclusivamente; esta é a sua riqueza
rante suas exibições musicais. Ele o tratara freqüentemente propriamente dita, é seu bem mais apreciado. Quem, de ma-
com mau humor, e somente agora que o levante dos judeus neira suspeita, em circunstâncias perigosas, e principalmente
estava assumindo proporções perigosas é que resolvera voltar entre muitos outros, conseguir sobreviver, estará atrapalhando
a se utilizar dele como general antigo e experiente. Vespasiano seus assuntos particulares e contra essa pessoa é dirigido todo
possuía muitos motivos para desconfiar de Nero. A promessa o seu ódio.
de uma futura soberania tinha, forçosamente, de lhe ser Nos lugares onde existiu uma forma de domínio índis-
agradável. cutido — no oriente islâmico, por exemplo — a fúria dos
Josefo deve ter acreditado ele mesmo nesta mensagem de donos do poder contra os sobreviventes podia se manifestar
Deus que ele deveria transmitir a Vespasiano. A capacidade abertamente. Os pretextos de que eles talvez precisavam para
de profetizar estava em seu próprio sangue. Ele se conside- aniquilá-los encobriam apenas de forma velada os verdadeiros
rava um bom profeta. Desta forma ele dava aos romanos algo motivos que os levavam a fazer isso.
que eles não tinham. Ele não levava os deuses deles a sério; Graças a uma cisão de Delhi, formou-se um outro império
o que vinha deles, ele considerava superstição. Mas ele tam- islâmico em Dekkan. O sultão desta nova dinastia, Muhammad
bém sabia que precisava convencer Vespasiano — que, como Shah, manteve durante todo o seu governo o mais duro com-
todo romano, desprezava os judeus e sua fé — da seriedade bate com os reis hindus que eram seus vizí-hos. Um dia, os
e da validade de sua mensagem. A segurança com que ele se hindus conseguiram conquistar a importante doade de Mudkal.
apresentou, o vigor com que se expressou — ele, sozinho, Todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças, foram
entre inimigos aos quais tinha infligido danos, inimigos que assassinados. Um único homem escapou e levou a notícia
até pouco antes o maldiziam —, a confiança em si mesmo, mais à capital do sultão. "Quando este foi informado", narra o
intensa nele do que qualquer outro sentimento, tudo isto ele cronista, "foi tomado por grande dor e ira; ordenou que o
devia ao fato de ter sobrevivido aos seus próprios companhei- infeliz mensageiro fosse imediatamente executado. Seria im-
ros. O que tinha conseguido fazer na caverna, ele transferiu possível para ele suportar em sua presença um miserável que
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tinha visto e sobrevivido ao massacre de tantos corajosos de longa vida, as revoltas dos filhos contra os pais se con-
companheiros". e
ertam numa espécie de instituição. Uma abordagem dos impe-
Neste caso, ainda é possível falar de um pretexto, e é v
radores mongóis na índia é bastante reveladora neste con-
provável que este sultão realmente não soubesse por que não texto. O príncipa Salim, filho mais velho do imperador Akbar,
suportava a visão da única pessoa que se salvara. O califa do "ardia de vontade de tomar em suas mãos as rédeas do go-
Egito, Hakim, que governou por volta do ano 1000, via com
verno, e estava furioso por causa da longa vida de seu pai, que
clareza muito maior os jogos do poder e os desfrutava de uma o mantinha afastado do prazer de usufruir as elevadas digni-
forma que lembra o imperador Domiciano. Hakim gostava de dades. Por este motivo decidiu usurpá-las, assumindo arbitra-
passear à noite usando todos os tipos de disfarces. Numa dessas riamente o nome de um rei e arrogando-se as prerrogativas de
caminhadas noturnas, numa colina próxima ao Cairo, ele en- um tal cargo". Esta informação faz parte de um relato con-
controu dez homens bem armados que o reconheceram e que temporâneo, de autoria dos jesuítas, que conheciam muito
lhe pediram dinheiro. Ele lhes disse: "Separem-se em dois bem tanto o pai como o filho, e que cortejavam ambos. O
grupos e lutem uns contra os outros; quem sair vencedor rece- príncipe Salim criou uma corte própria. Contratou assassinos
berá dinheiro de mim". Eles obedeceram e lutaram com tanto que assaltaram e mataram numa emboscada o mais íntimo
ímpeto que nove deles perderam a vida. Ao que sobreviveu amigo e conselheiro de seu pai. A rebelião do filho perdurou
Hakim lançou uma grande quantidade de peças de ouro que durante três anos; durante este período chegou-se uma vez a
carregava na manga. Mas, enquanto o homem se agachava para uma reconciliação hipócrita. Finalmente Salim foi ameaçado
recolhê-las, Hakim mandou que fosse trucidado por seus cria- com a escolha de um outro herdeiro para o trono e, devido a
dos. Desta forma ele demonstrou sua clara compreensão do esta pressão, aceitou um convite para ir à corte de seu pai.
processo da sobrevivência; ele o gozava como uma espécie de A princípio foi recebido cordialmente; depois seu pai o arras-
representação que ele mesmo provocava e, no final, o aniquila- tou para um aposento interior, o esbofeteou e o prendeu num
mento do sobrevivente ainda servia para lhe dar alegria. banheiro. Em seguida entregou-o a um médico e a dois cria-
A mais peculiar de todas as relações é a que existe entre dos, como se estivesse transtornado; o vinho, do qual ele
o detentor do poder e o seu sucessor. Quando se trata de uma gostava muito, lhe foi proibido. Na ocasião o príncipe tinha
dinastia e o sucessor é filho do soberano, o relacionamento trinta e seis anos. Depois de alguns dias, Akbar o despediu e
entre eles se faz duplamente difícil. É natural que o filho voltou a restituir-lhe sua dignidade de herdeiro do trono. No
sobreviva ao pai, e é natural também que o filho aumente ano seguinte Akbar faleceu devido a uma disenteria. Falou-se
dentro de si a paixão pela sobrevivência, uma vez que ele que seu filho o teria envenenado, mas não é possível estabe-
próprio está destinado a ser o detentor do poder. Ambos têm lecer-se isto com certeza. "Depois da morte de seu pai, pela
todos os motivos para se odiarem. A rivalidade entre eles, que qual tanto tinha ansiado", o príncipe Salim tornou-se impe-
parte de condições desiguais, vai se tornando extrema, justa- rador e adotou o nome de Jahangir.
mente por causa desta desigualdade, até atingir uma agudeza Akbar tinha reinado quarenta e cinco anos, Jahangir rei-
especial. O que tem o poder nas mãos sabe que deverá morrer nou vinte e dois. Mas durante este reinado, embora bem mais
antes do outro. O outro, que ainda não tem o poder, sente-se curto, ele viveu exatamente a mesma experiência de seu pai.
seguro de sobreviver. A morte do mais idoso, que entre todos Seu filho predileto Shah Jahan, que ele tinha designado para
é o que menos quer morrer — caso contrário não seria detentor sucedê-lo no trono, rebelou-se e lutou durante três anos contra
do poder —, é desejada ardentemente. Por outro lado, o acesso ele. Shah Jahan foi derrotado e implorou a paz. Foi perdoado
do mais jovem ao governo é protelado por todos os meios. em troca de uma dura condição: devia enviar seus dois filhos
Trata-se de um conflito para o qual não existe uma verdadeira como reféns à corte imperial. Ele próprio evitou apresen-
solução. A história está repleta de relatos de rebeliões deste tar-se diante de seu pai, aguardando a morte dele. Dois anos
tipo, de filhos contra os país. Alguns conseguiram derrubar após o tratado de paz, Jahangir morreu e Shah Jahan tornou-se
os pais, outros foram vencidos por eles, sendo depois perdoa- imperador.
dos ou assassinados. Shah Jahan governou durante trinta anos. O que ele tinha
É de se esperar que, numa dinastia de soberanos absolutos feito ao pai aconteceu também a ele; mas seu filho teve mais
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Nuir
sorte. Aurangzeb, o mais jovem de seus dois filhos que tinham ser, no final, mil e duzentas; o título oficial destas mulheres
vivido como reféns na corte do avô, rebelou-se contra o pai e era de "irmãs", Elas estavam proibidas de engravidar e, mais
contra o irmão mais velho. A famosa "guerra de sucessão" que ainda, de dar à luz uma criança. Todas se achavam sob um
se iniciou então, e que foi relatada por testemunhas oculares controle rígido e severo. Toda "irmã" cuja gravidez fosse des-
européias, terminou com a vitória de Aurangzeb, que mandou oberta era castigada com a morte. O filho de uma dessas mu-
c
executar o irmão e manteve o pai em cativeiro durante oito lheres, que lhe tinha sido ocultado, foi morto pelas mãos do
anos, ou seja, até a morte. próprio Shaka. Ele tinha em elevada conta sua própria arte
Pouco depois de sua vitória, Aurangzeb proclamou-se morosa; sempre conseguia controlar seus instintos, e por isso
a
imperador, governando durante meio século. Seu filho predi- achava que nenhuma mulher poderia engravidar por sua causa.
leto porém perdeu a paciência muito antes disso, Rebelou-se Assim ele não precisava temer um filho em fase de cresci-
contra o pai, mas o velho era mais astuto e soube conquistar mento. Aos quarenta e um anos de idade, porém, foi assassi-
os aliados de seu filho. Este foi obrigado a fugir para a Pérsia, nado por dois de seus irmãos.
onde morreu bem antes do pai. Se fosse lícito passar dos mandatários terrestres para os
Se considerarmos a história dinástica do império mongol divinos, caberia lembrar aqui o Deus de Maomé, cuja auto-
de forma global, percebe-se um quadro surpreendentemente cracia é a mais indiscutida entre todos os deuses. Desde o
uniforme. O tempo do seu esplendor máximo foi de cento e princípio dos tempos ele está só nas alturas e não precisa
cinqüenta anos; durante esse tempo não governaram mais de lutar, como o Deus do Antigo Testamento, contra rivais sérios.
quatro imperadores, filhos um do outro, todos dotados de No Corão constantemente se assegura de forma enfática que
tenacidade e de vida longa, todos apaixonadamente interessa- ele não foi engendrado por ninguém, e que também não dá
dos no poder. Seus períodos de governo são realmente longos: origem a ninguém. A polêmica contra o Cristianismo, que se
Akbar reinou quarenta e cinco anos, seu filho vinte e. dois, expressa nisso, origina-se do sentimento de unidade e de
seu neto trinta e seu bisneto durante cinqüenta anos. A partir indivisibilidade do seu poder.
de Akbar, nenhum dos filhos suportou o longo tempo de Em oposição a isso existem mandatários orientais com
espera, cada um dos que posteriormente chegou a ser impe- centenas de filhos, que precisam combater entre si para deci-
rador se ergueu quando príncipe contra o pai. Cada uma dir quem chegará a ser o verdadeiro sucessor. É de se pensar
destas revoltas termina de maneira diferente; Jahangir e Shah que a consciência da hostilidade que os divide atenue a amar-
Jahan são derrotados e perdoados pelos pais. Aurangzeb prende gura que o pai sente em relação à sua sucessão por qualquer
o pai e o depõe. Seu próprio filho morre mais tarde no exílio. um deles.
Com a morte de Aurangzeb chega ao fim o poder do império Noutra parte abordaremos o sentido mais profundo da
mongol. sucessão, suas intenções e vantagens. Aqui observamos apenas
Nesta' longa dinastia, cada filho se rebelou contra o pai que soberanos e sucessores se encontram numa inimizade espe-
e cada pai guerreou contra o filho. cial uns com os outros; uma inimizade que deve justamente
O sentimento mais extremo de poder existe lá onde o aumentar ainda mais com esta paixão mais característica do
detentor do poder menos quer um filho. O caso mais bem poder: a paixão de sobreviver.
documentado é o de Shaka, que durante o primeiro terço do
século passado fundou a nação e o império dos zulus, na África
do Sul. Ele era um grande general, tendo até sido comparado As formas de sobrevivência
a Napoleão, e jamais houve um detentor do poder que tivesse
sido mais duro do que ele. Recusava-se a casar para não ter Observar as formas de sobrevivência não é algo ocioso; exis-
um herdeiro legítimo. Nem mesmo as mais insistentes súplicas tem muitas delas e é importante não descuidar nenhuma.
de sua mãe, a qual ele sempre tratava com respeito, consegui- O primeiro processo na vida de cada ser humano, muito
ram demovê-lo dessa decisão. Ela nada desejava tanto como antes do nascimento e com certeza superior a este em seu
um neto, mas ele se manteve firme em seu propósito. Seu significado, a procriação, ainda não foi vista sob este impor-
harém era formado por centenas de mulheres que chegaram a tante aspecto da sobrevivência. A partir do momento em que
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o espermatozóide penetra no óvulo, sabe-se muito a respeito O matar se aproxima aqui do morrer; aliás, na sua forma
do processo da procriação; poderíamos até dizer que dentro roais monstruosa, ou seja, o morrer por causa de epidemias
em breve se saberá tudo. Porém quase não se meditou ainda atástrofes naturais. Neste caso sobrevive-se a todos os
ou de c
sobre o fato de que uma quantidade incomensurável de esper- que são mortais, amigos ou inimigos a um só tempo. Todas
matozóides não chega nunca à meta, apesar de participar as relações se dissolvem; o morrer pode tornar-se tão uni-
ativamente do processo global. Não é um espermatozóide que ersal que já não se sabe mais quem é enterrado. Muito carac-
v
procura encontrar seu caminho em direção ao óvulo. Existem rísticas são as antigas e renovadas histórias de pessoas que
te
aproximadamente uns 200 milhões deles. Numa única ejacula- renascem dentre os mortos, despertando entre o monte dos
ção, eles são expulsos juntos e logo em seguida começam a caídos. Estas pessoas tendem a considerar-se invulneráveis,
se movimentar num grupo denso e compacto em direção a heróis da peste, por assim dizer.
uma meta. Uma satisfação mais moderada e encoberta é derivada
Seu número, portanto, é enorme. Uma vez que todos do morrer esporádico dos homens. Trata-se de parentes e ami-
eles nasceram por divisão, elès são iguais entre si; sua densi- gos. Ninguém mata pessoalmente, ninguém se sente agredido.
dade dificilmente poderia ser maior, e todos têm uma única Não se coopera em coisa alguma, mas espera-se a morte do
meta. Vale a pena lembrar que justamente estes quatro fatores outro. Os mais jovens sobrevivem aos mais velhos, o filho
foram considerados como características essenciais da massa. ao pai.
Não é preciso sublinhar que uma massa de células semi- O filho acha que é natural que seu pai morra antes dele.
nais não pode ser a mesma coisa que uma massa de homens. O dever exige que ele vá ao seu leito de morte, que ele lhe
Porém não resta a menor dúvida de que existe uma analogia, feche os olhos, que ele o leve ao cemitério. Durante estes
e talvez até mais do que uma simples analogia, entre os dois acontecimentos que se prolongam durante alguns dias, o pai
fenômenos. jaz morto diante dele. A pessoa que como nenhuma outra lhe
Todos esses espermatozóides, seja no caminho em dire- pode dar ordens emudeceu. Indefeso, é obrigada a agüentar
ção à meta, seja mais tarde em sua aproximação imediata, todas as manipulações do seu corpo, e seu filho, que durante
perecem. Um único espermatozóide penetra no óvulo. Ele muitos anos esteve sob seu poder, dispõe agora dele.
pode ser considerado como o sobrevivente. Ele é, por assim A satisfação de sobreviver está presente inclusive aqui.
dizer, o condutor deles e conseguiu sobreviver a todos os que Ela é resultante das relações entre ambos: um, durante muitos
conduzia, coisa que todos os condutores desejam de forma
anos, foi débil e indefeso e esteve totalmente dominado pelo
declarada ou velada. É a partir deste sobrevivente de um grupo outro; este, que em outros tempos foi todo-poderoso, está
de 200 milhões que se forma cada um dos seres humanos.
agora derrotado e extinto; aquele dispõe dos seus despojos
A partir desta forma elementar, se bem que nunca sufi-
inanimados.
cientemente ponderada, passamos a outras formas que nos são
mais familiares. Nos capítulos anteriores falou-se muito a res- Tudo o que o paí deixa fortalece o filho. A herança é o
peito de matar. Luta-se contra inimigos: contra um inimigo seu botim. Com ela pode fazer o contrário do que seu pai
isolado, no assassinato ou no assalto por surpresa ou num teria feito. Se este era econômico, o filho pode ser esbanjador;
combate singular; contra uma malta, pela qual a pessoa se sente se ele era sensato, o filho pode ser imprudente. É como se
cercada, ou finalmente contra toda uma massa. Neste caso, não houvesse uma nova lei, cuja validade é promulgada agora. A
se está sozinho: lançamo-nos na batalha na companhia de nossa ruptura é tremenda, irreparável. Ela se consumou pela sobre-
própria gente. Mas a sobrevivência é considerada tanto mais vivência, na sua forma mais pessoal e íntima.
como pertencente a um indivíduo quanto mais elevado for o Bem diferente é a sobrevivência entre pessoas da mesma
cargo que ele ocupa. O "general" vence. Mas, como muitos idade. A tendência a sobreviver neste caso, tratando-se do pró-
dos integrantes de nossa própria gente também caíram, o monte prio grupo, se encontra velada por formas atenuadas de riva-
dos mortos é misto, ou seja, é formado tanto por amigos como lidade. Um grupo de pessoas da mesma idade forma parte de
por inimigos; a batalha é a transmissão para o caso "neutro" uma classe etária. Mediante determinados ritos, constituídos
da epidemia. de provas difíceis e freqüentemente cruéis, os jovens sobem de
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uma classe para a classe imediatamente superior. Pode-se excep- filhos o tenham precedido na morte; seu prestígio aumenta à
cionalmente morrer numa destas provas. medida que sua vida é mais resistente do que a deles.
Os velhos, os homens que após um certo número de anos Na classe dos mais velhos finalmente resta vivo apenas
se conservam com vida, gozam entre os povos primitivos de um ; justamente o mais velho de todos. Segundo a duração de
um grande prestígio. Nestes povos, os homens de maneira sua vida determinava-se o século etrusco, a respeito do qual
geral morrem jovens; vivem entre perigos maiores e estão vale a pena dizer algumas palavras.
muito mais expostos às enfermidades do que nós. Para eles O "século" dos etruscos tem uma duração variável; às
é uma façanha atingir uma determinada idade, e este fato vezes é breve, outras vezes é mais prolongado e sua duração
implica uma certa recompensa. Os velhos não apenas sabem deve ser determinada em cada ocasião. Em toda geração
mais, não apenas adquiriram experiência em um número maior existe um homem que chega a ficar mais velho que os demais.
de situações, mas também deram boas provas de resistência Quando este que sobreviveu a todos morre, os deuses forne-
porque ainda estão vivos. Eles devem ter tido sorte para con- cem determinadas indicações aos homens. Do momento de sua
seguirem sair ilesos de caçadas, de guerras e acidentes. Seu morte depende a duração do século: se o sobrevivente tinha
prestígio aumentou com a superação de todos esses perigos. 110 anos, este século tem 110 anos; se ele morreu com 105
Seus troféus podem provar suas vitórias sobre os inimigos. anos, temos um século menor de apenas 105 anos. O sobre-
Sua existência prolongada como membros de uma horda, que vivente é o século, que é formado pelos anos de sua vida.
nunca é formada por um número demasiadamente grande de Toda cidade e todo povo tem uma duração predetermi-
pessoas, é particularmente notável para os demais. Eles parti- nada. A nação dos etruscos correspondem dez destes séculos;
ciparam de muitas ocasiões de lamentação. No entanto, eles eles são calculados a partir da fundação de uma cidade. Se
ainda estão vivos, e as mortes dos que pertenciam ao seu grupo o sobrevivente de cada geração dura particularmente muito, a
etário contribuem para o seu prestígio. É possível que isto não nação inteira chega a ficar muito mais velha. Esta relação
seja tão importante para os membros de um grupo como as é curiosa; como instituição religiosa ela é única.
vitórias sobre os inimigos. Uma coisa no entanto é indiscutí- Sobreviver numa distância temporal é a única forma de
vel: o êxito mais elementar e evidente é o fato de ainda esta- se permanecer inocente. Pessoas que viveram muito antes de
rem com vida. Os velhos não apenas existem, eles ainda exis- nós, que nem sequer chegamos a conhecer, não poderiam ter
tem. Caso queiram, podem tomar esposas jovens, ao passo sido mortas por nós, não seria possível desejar nem esperar a
que os moços muitas vezes devem conformar-se com mulheres morte delas. Fica-se sabendo que estas pessoas existiram quan-
maduras. São os homens velhos que determinam a direção dos do elas já não existem mais. Através da conscientização destas
movimentos migratórios, contra quem se faz guerra, com quem pessoas fornece-se a elas uma certa forma de sobrevivência, se
se devem fazer acordos de aliança. Na medida em que se pode bem que muito moderada e freqüentemente inútil. Neste sen-
falar de um governo nessas condições de vida, são eles, os tido é possível que lhes sejamos mais úteis do que elas o são
velhos, que governam. para nós. Mas é possível demonstrar que elas também contri-
O desejo de se ter uma vida longa, que na maioria das buem para o nosso próprio sentimento de sobrevivência.
culturas desempenha um papel importante, significa na reali- Existe portanto a sobrevivência dos antepassados, que não
dade que se quer sobreviver aos próprios coetâneos. Sabe-se foram conhecidos pessoalmente, e de toda a humanidade ante-
que muitos morrem jovens e deseja-se um destino diferente rior, de maneira geral. Esta última experiência temo-la nos
para si mesmo. Ao pedir aos deuses uma vida longa, cada ho- cemitérios. Esta experiência se vincula com a sobrevivência
mem se exclui dos seus camaradas. Na oração eles não são numa epidemia: em vez da peste, a epidemia é a morte em
mencionados, mas imagina-se que será possível ficar mais geral, reunida de muitas épocas num único lugar.
velho do que eles. O fenômeno "sadio" da longevidade é um Seria possível objetar que nesta investigação do sobre-
patriarca, capaz de ver muitas gerações de descendentes. Nunca vivente falamos somente sobre o que já se conhecia há
se pensa na existência de patriarcas simultâneos. É como se muito tempo sob o conceito mais antigo do instinto de auto-
ele desse início a uma nova estirpe. Enquanto os netos e os preservação.
bisnetos estejam com vida, pouco importa que alguns dos seus Mas será que os dois conceitos coincidem realmente?
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Será que eles são totalmente idênticos? Como imaginamos os à sua experiência em combate, nem à sua força corporal; ele
efeitos do instinto de autopreservação? Na minha opinião este lhe é transferido a partir do seu inimigo abatido.
conceito não é correto por postular o homem singular, sozinho. "Desta maneira, nas Ilhas Marquesas, um membro da
A ênfase, por um lado, é dada ao prefixo auto. Mais impor- tribo podia chegar a ser chefe de guerra através de sua cora-
tante ainda é a segunda parte da palavra: preservação. Ela gem pessoal. Supunha-se que o guerreiro contivesse em seu
indica propriamente duas coisas: em primeiro lugar, que toda corpo o mana de todos os que tinham sido mortos por ele, Seu
criatura deve comer para permanecer viva e, em segundo próprio mana crescia de maneira proporcional à sua própria
lugar, que ela deve defender-se contra toda e qualquer agres- coragem. No entanto, na mente dos nativos, sua coragem era
cada morte que
são. É como imaginar uma criatura rígida qual um monumento, o resultado e não a causa do seu mana. Com
que com uma mão se alimenta e com a outra mantém o inimigo causava, crescia também o mana de sua lança. O vencedor no
à distância. Uma criatura pacífica no fundo! Se ela fosse dei- combate de homem contra homem assumia o nome do inimigo
xada em paz, comeria um punhado de ervas e não causaria o derrotado: um sinal evidente de que o seu poder agora lhe
menor mal a pessoa alguma. pertencia. Para incorporar diretamente o mana do inimigo ele
Existe alguma representação mais inadequada, mais erra- comia parte de sua carne; e para fixar esse crescimento de
da e mais ridícula do ser humano? É verdade que o homem poder durante uma batalha, para assegurar para si essa relação
come, mas ele não come o mesmo que uma vaca e também íntima com o mana capturado, ele levava sobre seu corpo,
ninguém o conduz até o pasto. A maneira como ele procura como parte do seu equipamento de guerra, qualquer parte fí-
sua presa é pérfida, cruenta e tenaz e seu comportamento pode sica do inimigo vencido: um osso, uma mão ressecada, às vezes
ser tudo, menos passivo. Ele não mantém seus inimigos à até mesmo um crânio inteiro "
distância com mansidão; ele os ataca assim que os percebe ao Não é possível formular com maior clareza o efeito da
longe. Suas armas agressivas foram mais bem desenvolvidas vitória sobre o sobrevivente. Matando, ele se tornou mais
do que as que lhe servem para a defesa. O homem quer se forte e o acréscimo de mana o torna capaz de novas vitórias.
autopreservar, não resta a menor dúvida, mas existem outras É uma espécie de bênção que ele arranca do inimigo, mas so-
coisas que ele também quer simultaneamente e que são inse- mente pode recebê-la após a morte desse inimigo. A presença
paráveis disso tudo. O homem quer matar para sobreviver aos física do inimigo, vivo e morto, é indispensável. É preciso que
demais. E ele não quer morrer para que os outros não sobre- ele tenha sido combatido e é preciso que ele tenha sido mor-
vivam a ele. Se estas duas coisas pudessem ser resumidas como to; tudo depende do próprio ato de matar. As partes remo-
autopreservação, o termo teria algum sentido. Mas eu não vejo víveis do cadáver, das quais o vencedor se apropria, que ele
por que motivo haveríamos de nos ater a um conceito tão apro- incorpora a si mesmo, que carrega consigo, lembram-lhe sem-
ximativo, quando existe um outro que capta melhor os fatos pre o aumento do seu próprio poder. Ele se sente mais forte
todos. graças a elas e ele inspira terror por meio delas: todo novo
Todas as formas mencionadas de sobrevivência são anti- inimigo que o desafiar tremerá diante dele e com horror verá
qüíssimas e já podem ser encontradas, como demonstraremos o seu próprio destino.
adiante, entre os povos primitivos. Uma relação mais pessoal, mas igualmente vantajosa, entre
o matador e o abatido existe, segundo a crença dos murngins, na
terra de Arnhem, na Austrália. O espírito do abatido penetra
O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos no corpo do matador e lhe confere uma força dupla, tornan-
do-o efetivamente maior. É de se imaginar que esta ganância
Nos mares do Sul, mana significa uma espécie de poder incite os jovens à guerra. Cada qual procura um inimigo para
sobrenatural e impessoal que pode passar de um homem para apoderar-se de sua força. Mas esse intento só pode ser reali-
outro. Trata-se de um poder muito desejável e é possível enri- zado à noite, pois durante o dia a vítima pode ver seu assas-
quecê-lo em indivíduos isolados. Um guerreiro valente pode sino, ficando então irritada demais para penetrar-lhe no corpo.
adquiri-lo em grandes quantidades. No entanto ele não o deve Este processo da "entrada" foi narrado com muita exa-
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tidão. É tão curioso que transcrevemos aqui boa parte da nar- de demais. Ele deixa a presa de lado e retorna ao acampamen-
rativa. to para informar seus amigos. 'Acabo de matar a alma do ho-
"Quando um homem matou outro durante uma guerra, mem morto', diz ele. 'Não permitam que outros saibam disso,
ele retorna para casa e não ingere nenhum alimento cozido porque ela poderia voltar a se irritar outra vez.' Seus amigos
até que a alma do morto se aproxime dele. Ele é capaz de Mais íntimos e seus parentes retornam com ele ao local para
ouvir sua aproximação, porque a haste da lança ainda está ajudá-lo a retirar a pele do animal e para prepará-lo para ser
presa à ponta de pedra cravada no morto; ela se arrasta pelo comido. Ao abri-lo, encontram gordura por todas as partes e
chão, bate contra arbustos e árvores, fazendo barulho ao ca- esta é considerada um dos principais manjares. Colocam-se pri-
minhar. Quando o espírito está muito perto, o matador ouve meiro pedaços muito pequenos sobre o fogo. Estes pedaços
sons que vêm da ferida do morto. são experimentados com muito cuidado e a carne sempre tem
"Ele toma a lança, retira a ponta e coloca esta extremi- sabor desagradável.
dade da haste entre os dois primeiros dedos do pé. A outra "Em seguida, o animal todo é cozido e as partes mais
extremidade da haste é apoiada no ombro. A alma passa então apreciadas são saboreadas. O restante é transportado ao acam-
pela abertura onde antes estava a ponta da lança, sobe pela pamento principal. Os anciãos o examinam: trata-se de um
perna do matador e penetra em seu corpo. Ela caminha feito animal excepcionalmente grande. Eles se colocam em círculo
uma formiga. Penetra no estômago, fechando-o. O homem sente e um deles pergunta:
então náuseas e febre no abdome. Esfrega o estômago e pro- "'Onde o mataste?'
nuncia em voz alta o nome do morto. Isto o cura e ele volta "Lá em cima, junto ao rio.'
a sentir-se bem, pois o espírito abandona o estômago, entrando "Os anciãos sabem muito bem que não se trata de uma
no coração. Assim que ele está no coração, o efeito é como se presa comum, uma vez que esta tem gordura por todas as
o sangue do morto estivesse agora dentro do matador. É como partes. Após uma breve pausa, um dos velhos pergunta:
se o homem, antes de morrer, tivesse dado seu sangue vital "'Viste alguma alma, lá fora, na floresta?'
ao outro que o mataria. "'Não', mente o jovem.
"O matador, que agora se tornou maior e particularmen- "Os velhos provam a carne, mas ela tem um sabor di-
'e forte, adquire toda a força vital que noutro tempo era pos- ferente, não é o sabor de um canguru comum.
suída pelo morto. Quando ele sonha, o espírito lhe diz que "Os velhos sacodem afirmativamente a cabeça e estalam
tem alimentos para ele, indicando a direção na qual poderá suas línguas: 'Não resta dúvida de que viste a alma do morto!"
encontrá-los. embaixo, junto ao rio', diz ele, 'encontrarás O sobrevivente, neste caso, adquire para si a força e o
muitos cangurus', ou 'Naquela árvore velha existe uni grande sangue do seu inimigo. Não é apenas ele mesmo que aumenta,
ninho de abelhas com mel', ou ainda 'Junto àquele banco de que se torna maior, também sua presa animal engorda e cresce.
areia irás capturar uma grande tartaruga e na areia da praia Trata-se de um ganho pessoal e imediato que ele extrai do
irás encontrar muitos ovos'. inimigo. Desta forma a maneira de pensar do jovem é orien-
"O matador ouve e depois de um certo tempo sai do tada desde muito cedo para a guerra. Mas como este aconteci-
acampamento e vai à floresta, onde encontra a. alma do morto. mento ocorre à noite e em segredo, isto tem pouca coisa em
A alma se aproxima e se deita. O matador se assusta e grita: comum com a idéia de herói como nós a entendemos.
`Quem é? Há alguém aí?' Retorna ao local onde estava o O herói que se lança sem temor e completamente só contra
espírito do morto e lá encontra um canguru. Trata-se de um os inimigos é encontrado nas Ilhas Fidji. Uma lenda conta a
animal excepcionalmente pequeno. Ele o contempla e com- história de um jovem que é criado pela mãe sem conhecer o
preende o significado disto: está exatamente no lugar onde próprio pai. Por meio de ameaças ele a obriga a revelar o nome
ouviu os movimentos do espírito. Recolhe o suor de sua axila de seu pai. Ao ficar sabendo que seu pai é o Rei do Céu, ele
e a esfrega no braço. Ergue a lança, grita em voz alta o nome se põe a caminho para encontrá-lo. O pai, porém, fica decepcio-
do morto e abate o animal. Este morre imediatamente, mas nado ao ver que seu filho é tão pequeno. Ele necessita de ho-
começa a crescer depois de morto. O homem tenta erguê-lo, mens, não de jovenzinhos, uma vez que neste momento se en-
mas percebe que isto é impossível porque o animal ficou gran- contra em guerra. Os homens que rodeiam o rei riem do me-
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nino quando, repentinamente, este, usando uma dava, arrebenta pouco a pouco um povo inteiro, e ninguém é capaz de se
ra
a cabeça de um dos que riam dele. O rei fica encantado e o
defender dele. No melhor dos casos chega-se a uma regula-
convida a ficar com ele. mentação do terror: um certo número de homens lhe é entre-
"Na manhã seguinte, bem cedo, os inimigos subiram até anualmente como comida. Então o herói se compadece de
a cidade com clamores de guerra, gritando: 'Vinde até nós, ó gue
seu povo, parte totalmente só, e correndo graves perigos mata
Rei do Céu, que estamos famintos. Vinde até nós para comer-
o monstro com suas próprias mãos. O povo lhe fica grato e
mos'. sua memória é fielmente reverenciada. Em sua invulnerabili-
"Então o jovenzinho se ergueu e disse: 'Que ninguém dade, graças à qual conseguiu salvar os demais, ele aparece
me siga. Fiquem todos na cidade!' Pegou a dava que ele mes- feito uma figura luminosa.
mo tinha feito, precipitou-se para fora entre os inimigos e Entretanto existem mitos nos quais se reconhece clara-
começou a desferir golpes furiosos em torno de si, à direita e mente a relação entre esta figura luminosa e os cadáveres
à esquerda. A cada golpe matava um inimigo, até que final-
amontoados; cadáveres que não são apenas de inimigos. O
mente todos fugiram. Ele sentou-se então sobre um montão de mais notável destes mitos vem de um povo sul-americano, os
cadáveres e chamou sua gente da cidade: 'Saiam todos para uitotos. Ele se encontra na importante e não muito conhecida
carregar os mortos daqui!' Eles saíram, cantaram o cântico antologia organizada por K. Th. Preuss e é citado aqui, de for-
da morte e carregaram os quarenta e dois cadáveres dos ini- ma abreviada, no que se refere ao nosso assunto.
migos enquanto na cidade rufavam os tambores. "Duas meninas, que viviam com seu pai às margens de
"Quatro vezes mais o jovenzinho derrotou os inimigos de um rio, viram certo dia na água uma minúscula e muito boni-
seu pai, de forma que suas almas se tornaram pequenas e eles ta cobra e tentaram capturá-la. Ne entanto ela sempre lhes es-
vieram com oferendas de paz procurar o Rei do Céu: 'Tende capava até que o pai, atendendo ao pedido das meninas, teceu-
piedade de nós, ó Senhor, deixai-nos com vida!' E assim o lhes uma peneira de malhas muito finas. Com ela conseguiram
Rei ficou sem inimigos e o seu reino se estendeu por todo capturar o pequeno animal e o levaram para casa. Colocaram
o Céu," a cobra num pequeno recipiente com água e lhe serviram todos
O jovenzinho enfrenta aqui sozinho todos os inimigos; os tipos de alimentos, mas a cobra recusava tudo. Uma noite
nenhum dos seus golpes é dado em vão. No final ele se vê o pai, num sonho, teve a idéia de alimentá-la com um tipo
sentado sobre um monte de cadáveres, e cada um dos que especial de amido, e ela começou a comer de verdade. Ficou
formam este monte foi uma vítima pessoal dele. Mas não se gorda como um cordel e depois como um dedo, e as meninas
deve pensar que isto ocorra apenas nas lendas. Existem qua- a colocaram num recipiente maior. A cobra continuou comendo
tro palavras fidjis totalmente diferentes para designar os heróis. o amido e ficou gorda como um braço. Colocaram-na então
Koroi é o matador de um homem. Koli é o nome dado a quem num pequeno lago; ela comia o amido com uma gula cada
matou dez, Visa é quem matou vinte e Wangka é uma pessoa vez maior e se mostrava tão esfomeada que introduzia na boca,
que matou trinta homens. Um famoso chefe, que conseguiu juntamente com o amido, a mão e o braço da menina que lhe
se destacar mais do que os outros, chamava-se Koli-Visa- dava de comer. Dentro de pouco tempo parecia uma árvore
Wangka; ele tinha matado dez mais vinte mais trinta homens, que tivesse caído na água. Começou então a sair para a mar-
ou seja, um total de sessenta. gem e a comer os veados e outros animais, mas respondia
As façanhas destes super-heróis são talvez ainda mais sempre imediatamente aos gritos de chamada e vinha devorar
imponentes do que as dos nossos, uma vez que eles comem as monstruosas quantidades de amido que as irmãs lhe prepa-
os seus inimigos depois de os matarem. Um chefe que tenha ravam. Ela preparou para si uma caverna debaixo das aldeias
desenvolvido um ódio muito especial contra alguém se reserva e das tribos e começou a comer os antepassados dos homens,
o direito de comê-lo sozinho e não convida ninguém para os primeiros habitantes do mundo. 'Amorzinho, venha comer',
compartilhar de um só pedaço do morto. gritaram as meninas; então a cobra veio, pegou o recipiente
Mas pode-se objetar que o herói não sai apenas contra com o amido que uma das irmãs segurava no braço até a
inimigos. Seus feitos principais nas lendas são contra os peri- altura de sua cabeça, engoliu a menina e a levou consigo.
gosos monstros dos quais liberta seu povo. Um monstro devo- "Chorando, a outra irmã foi contar tudo ao pai. Este
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decidiu vingar-se. Lambeu tabaco, como sempre se faz entre porto'.
Ouvindo estas palavras, o pai deixou de fazer os talhos.
este povo quando se decide a morte de uma criatura, embria- A cobra, apesar de tudo, voltou para comer entre as pessoas
gou-se e em sonho lhe ocorreu a maneira apropriada de vin- onde já tinha comido antes e as agarrou de surpresa. 'Ainda
gança. Preparou o amido para dar comida à cobra que tinha não terminou! Aonde iremos parar? Ela exterminou todo o
devorado sua filha, chamou-a e disse-lhe: 'Engula-me!' Ele nosso povo', diziam os habitantes das aldeias. Eles emagre-
estava disposto a suportar tudo e bebeu do recipiente de tabaco cia m cada vez mais. Também, o que é que eles ainda tinham
que carregava no pescoço, para matá-la. Ao seu chamado a para comer?
cobra saiu e tomou o amido que lhe era oferecido. Então o "As pessoas pereciam e apodreciam sobre o corpo dele.
homem saltou para dentro de sua boca e lá se sentou. 'Eu o Enquanto isso ele bebia um pouco do tabaco e continuava
matei', pensou ela, e levou o pai consigo. cortando o ventre da cobra. E assim Deihoma ficou sentado
"Então ela comeu uma tribo inteira, e dentro dela os o tempo todo dentro dela. Havia tempos inimagináveis ele não
homens começaram a apodrecer sobre o corpo do pai. Depois comia coisa alguma, o coitado; apenas bebia o suco de tabaco,
ela foi devorar uma outra tribo; as pessoas todas apodreciam pois o que haveria de comer? Tomava o suco de tabaco, e
sobre o corpo dele, que lá estava sentado; os corpos se decom- apesar do mau cheiro de toda aquela podridão ficava tran-
punham e ele tinha de agüentar o intenso mau cheiro. A cobra qüilo.
devorou todas as tribos que viviam junto ao rio e acabou com "As tribos já não existiam mais e a cobra tinha comido
elas até não sobrar ninguém. O pai tinha trazido consigo uma todos os corpos de todas as margens do rio ao pé do céu, de
concha para cortar-lhe a barriga, mas fez apenas um pequeno maneira que já não existiam mais homens. Os espíritos tute-
talho que causou dores na cobra. Então ela comeu as tribos lares do pai então lhe disseram: `Deihoma, este é o porto do
que viviam à margem de outro rio. Os homens tinham medo rio onde vives; corta agora com força; após duas curvas do
e não saíam para suas plantações, ficando sempre dentro de rio estarás em casa'. E ele cortou. 'Corta, Deihoma, corta com
suas casas. Também não era possível vagar pelo local porque força', disseram eles. Deihoma então cortou com mais força,
no meio do caminho a cobra tinha sua caverna, e quando al- abrindo o couro do ventre no porto, e saltou para fora pela
guém vinha do campo ela o agarrava e o levava consigo. Todos abertura.
choravam e temiam que a cobra os comesse e já não davam "Assim que saiu, sentou-se no chão. Sua cabeça estava
um passo sequer fora de casa. Quando saíam de suas redes, totalmente calva, pois seus cabelos tinham caído. A cobra se
temiam que a cobra tivesse ali sua caverna e os comesse e debatia, jogando-se de um lado para outro. Ele agora estava
levasse consigo. de volta, após ter permanecido um tempo inimaginavelmente
"Sobre o corpo do pai apodreciam e cheiravam mal os longo no interior da cobra. Lavou-se bem no porto, chegou
homens devorados. Ele bebia suco de tabaco do recipiente e à sua palhoça e voltou a ver suas filhas que se alegraram com
fazia talhos no ventre da cobra, de maneira que esta sentia o pai."
grandes dores. 'O que está acontecendo comigo? Engoli Deiho- No texto completo do mito, que aqui foi consideravel-
ma, o cortante, sinto dores', disse a cobra soltando um grito. mente abreviado, narra-se, em pelo menos quinze passagens
"Então ela foi até a outra tribo, onde saiu da terra e distintas, como os homens apodrecem dentro da cobra sobre
agarrou todos. Ninguém podia ir a parte alguma nem se apro- o corpo do herói. Esta imagem tão impressionante tem algo
ximar do rio. Quando alguém ia buscar água no porto, a cobra de fascinante; juntamente com o ato de devorar, é o que com
o agarrava e o levava consigo. Pela manhã bem cedo, assim que mais freqüência aparece no mito. Deihoma se mantém vivo
eles se levantavam, ela os agarrava e levava consigo. E o pai graças ao estratagema de beber suco de tabaco. Esta calma e
talhava o seu ventre com a concha e ela gritava: 'Por que impassibilidade em meio a todo o processo de apodrecimento
sinto estas dores? Engoli Deihoma, o cortante, e por isso caracterizam o herói. Todos os homens do mundo podiam apo-
sofro tanto'. drecer sobre ele; mesmo assim ele continuaria imperturbável,
"Então os espíritos tutelares do pai o alertaram: `Deiho- como o único, no meio da podridão generalizada, orientado
ma, este ainda não é o porto junto ao rio onde vives; tem em direção à sua meta. Ele é, por assim dizer, um herói ino-
cuidado com os talhos. Ainda estás muito distante do teu cente, pois nenhum dos que apodrecem pesa sobre sua cons-
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ciência. Mas ele suporta a podridão; ele está no meio dela. consigo para a casa abandonada. Lá ele a mantinha como um
Ela não o abate; quase se poderia dizer que é ela que o man- pássaro manso. Disse-lhe: 'Agora vou pescar. Quando voltar,
tém firme. A densidade deste mito, no qual tudo o que é quero encontrar-te transformada em mulher'."
verdadeiramente importante se passa dentro do corpo da co- Primeiro ele se deita entre os mortos para escapar. Dis-
bra, é irresistível; é a própria verdade. farça-se em um deles para não ser encontrado. Depois desco-
O herói é aquele que, em circunstâncias perigosas, so- bre que está só e fica triste e temeroso. Decide deitar-se entre
brevive sempre matando. Mas não é apenas o herói que os companheiros mortos. É possível que a princípio ele brinque
sobrevive. Na massa de sua própria gente existe um processo com a idéia de compartilhar do destino deles. Mas sua inten-
correspondente, justamente quando todos sucumbiram. ção não pode ser muito séria, pois sonhou com uma linda mu-
Como consegue um indivíduo salvar-se na guerra, quando lher e como não vê mais nenhum ser vivo a não ser os abutres,
todos os que pertencem ao seu próprio grupo sucumbiram? E toma corno mulher a filha do abutre real. Pode-se acrescentar
como se sente ele nesta ocasião? A este respeito existe uma que o pássaro, atendendo a seu desejo, se transforma depois
passagem de um mito indígena recolhido por Koch-Grünberg realmente numa mulher.
entre os taulipangues da América do Sul. Chama a atenção a quantidade de povos — em todas as
"Os inimigos vieram e os atacaram. Chegaram à aldeia partes da Terra — que concebem sua origem a partir de um
que tinha cinco casas e a incendiaram em dois lugares, à noite, primeiro casal, que são os únicos sobreviventes depois de uma
para iluminar o lugar e para que os moradores não pudessem catástrofe. O bem conhecido caso do dilúvio bíblico é atenua-
fugir na escuridão. Muitos foram mortos com golpes de dava do pelo direito de Noé levar consigo toda a sua família. Ele
enquanto queriam escapar das casas. recebe permissão de transportar toda a sua estirpe na arca;
"Um homem chamado Maitchaule deitou-se ileso em além disso, um casal de todas as espécies de seres vivos. Mas
meio ao monte de mortos e sujou de sangue seu rosto e seu foi ele quem encontrou graça diante dos olhos de Deus; a
corpo para enganar os inimigos. Estes acreditaram que todos virtude para sobreviver, que neste caso é religiosa, é possuída
estavam mortos e foram embora. O homem ficou sozinho para por ele e é somente por sua causa que os demais podem entrar
trás. Então ele se afastou, tomou banho e se dirigiu a outra na arca. Existem exemplos mais extremos desta mesma lenda;
casa, não muito distante. Pensou que havia gente lá, mas não relatos nos quais, excetuando-se o casal de progenitores da tribo,
encontrou pessoa alguma. Todos tinham fugido. Encontrou todos os demais perecem. Estes relatos nem sempre estão rela-
apenas tortas de mandioca e velhos pedaços de carne assada cionados com a idéia de um dilúvio. Freqüentemente são epi-
que comeu. Então refletiu, saiu da casa e foi para muito longe. demias nas quais todos desaparecem com exceção de um único
Depois se sentou e pensou. Ele pensava em seu pai e em sua indivíduo, que passa a vagar até conseguir encontrar uma ou
mãe que tinham sido mortos pelos inimigos, e pensou tam- talvez duas mulheres que ele desposa e com as quais funda
bém que agora já não tinha mais ninguém. Então disse: 'Quero uma nova estirpe.
me deitar ao lado •dos meus companheiros que estão mortos'. Uma parte da força e da glória deste ancestral está no
Cheio de temor, retornou à aldeia queimada. Lá havia agora fato de ele alguma vez ter ficado só. É, mesmo que isto não
muitos abutres. Maitchaule era um médico feiticeiro e tinha seja dito, uma espécie de mérito de sua parte o fato de ele
sonhado com uma linda mulher. Espantou os abutres e dei- não ter morrido junto com os seus semelhantes. Ao prestígio
tou-se ao lado de seus companheiros mortos. Tinha sujado de que goza como ancestral de todos os que vêm depois dele
novamente seu corpo com sangue. Mantinha as mãos na ca- soma-se o respeito diante da força feliz de sua sobrevivência.
beça para poder agarrar rapidamente. Os abutres voltaram e Enquanto ele ainda vivia entre seus iguais, é possível que não
começaram a brigar pelos cadáveres. Chegou então a filha do tenha se distinguido, que tenha sido apenas um homem como
abutre real. E que fez logo em seguida a filha do abutre real? todos os demais. Depois, porém, repentinamente fica só. O
Sentou-se sobre o peito de Maitchaule. Quando quis picar-lhe período de sua perambulação solitária costuma ser narrado
o corpo, ele a agarrou. Os abutres fugiram. Maitchaule disse à freqüentemente com muitos detalhes. Ele cobre o espaço mais
filha do abutre real: 'Transforma-te numa mulher! Estou muito amplo possível à procura de seres vivos, em vez dos quais,
só aqui e não tenho ninguém que possa me ajudar'. E levou-a por todos os lados, ele encontra apenas cadáveres. A certeza
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crescente de que realmente ninguém mais existe além dele depois procuro as pessoas, pois vi pegadas de gente. Talvez
próprio o enche de desespero. Porém existe ainda um outro sejam homens ou mulheres que estão com fome. E eles também
elemento, também inconfundível: a humanidade que recomeça precisam ter algo para comer'. E caminhou em direção aos
com ele depende unicamente dele; sem ele e sem sua coragem ursos.Quando chegou perto deles, viu que não eram ursos,
para voltar a recomeçar tudo sozinho, a humanidade não exis- mas sim mulheres. Uma era mais velha e a outra era menina
tiria. ida. Pensou: 'Estou contente por serem seres humanos. To-
Uma das tradições mais simples neste sentido diz respeito rnarei esta mulher como esposa'. Foi até elas e pegou a menina.
à origem dos kutenais. Textualmente ela diz o seguinte: A menina disse à sua mãe: 'Mãe, estou vendo um homem'.
"As pessoas viviam lá, e repentinamente ocorreu uma A mãe ergueu os olhos e viu que sua filha estava dizendo a
epidemia. Elas morriam. Todas morriam. Iam de um lado para verdade. Viu como um homem pegava sua filha. Então a
outro e transmitiam a notícia uns aos outros. A enfermidade mulher chorou, chorou a menina e chorou o jovem, porque
reinou entre todos os kutenais. Eles chegavam a um local e todos os demais kutenais estavam mortos. Eles se olhavam uns
contavam tudo uns aos outros. Em todos os lugares ocorria aos outros e choravam juntos. E a mulher disse: 'Não tome
a mesma coisa. Num lugar não viram ninguém. Todos tinham minha filha. Ela ainda é muito jovem. Tome a mim. Serás
morrido. Restava apenas uma única pessoa. Um dia, o único meu marido. Mais tarde, quando minha filha tiver crescido,
que restava sarou. Era um homem. Ele estava só e pensou: ela será tua mulher. Então poderás ter filhos'. E o jovem ca-
`Vagarei pelo mundo para ver se restou alguém em alguma sou-se com a mulher mais velha. Não passou muito tempo e
parte. Se ninguém restou, não quero mais retornar. Aqui não ela lhe disse: 'Agora minha filha é adulta. Agora ela já pode
resta ninguém e ninguém mais virá'. Partiu em sua canoa e ser tua mulher. É bom que venham filhos. O ventre dela
chegou ao último acampamento dos kutenais. Quando chegou agora é forte'. Então o jovem tomou a menifia como esposa.
a um lugar onde habitualmente havia gente na margem, não A partir de então os kutenais se multiplicaram."
encontrou pessoa alguma; e quando percorreu o local viu ape- Um terceiro tipo de catástrofe, às vezes conseqüência de
nas mortos; em nenhuma parte havia sinal algum de vida. uma epidemia e de uma guerra, o suicídio em massa, também
Assim soube que não restava ninguém. Então partiu novamen- produziu os seus sobreviventes. Neste contexto vale a pena
te em sua canoa. Chegou a uma determinada localidade, des- citar uma lenda dos ba-ilas, um povo bantu da Rodésia.
ceu do barco e novamente encontrou apenas mortos. Em Dois clãs destes ba-ilas, um dos quais derivava seu nome
todos os lugares não havia pessoa alguma. Retomou o caminho das cabras e o outro das vespas, tinham uma grave disputa
de regresso. Chegou ao último povoado onde tinham vivido entre si. Tratava-se de ver a qual dos clãs correspondia o di-
os kutenais. Nas palhoças havia apenas cadáveres empilhados. reito de atribuir a dignidade de chefe. O clã das cabras, ao
Assim continuou andando e viu que as pessoas não existiam qual tinha pertencido a primazia, perdeu este posto e seus
mais. Caminhando, ele chorava. 'Sou o único que resta', dizia. membros, feridos em seu orgulho, decidiram afogar-se todos
`Até os cachorros morreram'. Quando chegou ao povoado mais juntos no lago. Homens, mulheres e crianças reuniram-se para
distante, viu pegadas de ser humano. Lá existia uma palhoça; trançar uma corda muito comprida. Depois foram à margem,
mas não encontrou cadáveres dentro dela. Soube então que amarraram-se uns atrás dos outros com a corda no pescoço, e
mais dois ou três homens estavam vivos. Viu pegadas maiores juntos lançaram-se à água. Um homem, que pertencia a um
e outras menores, mas não saberia dizer se eram três. Sabia terceiro clã, o dos leões, tinha se casado com uma mulher do
porém que mais alguém conseguira salvar-se. Continuou em
clã das cabras. Ele tentou demovê-la do suicídio; como não o
sua canoa e pensou: 'Remarei nesta direção. Os que antes vi-
conseguisse, decidiu morrer com ela. Por acaso os dois foram
viam aqui costumavam remar nesta direção. Se for um homem,
talvez tenha resolvido ir mais longe'. os últimos a se amarrarem à corda. Foram arrastados e já esta-
vam quase se afogando, quando o homem se arrependeu; cor-
"Sentado assim em sua canoa, viu a uma certa distância
dois ursos negros que comiam frutas. Pensou: `Vou matá-los. tou a corda e soltou sua mulher e a si próprio. Ela tentou
Depois de mortos, eu os comerei. Secarei sua carne. Depois livrar-se dele e gritava: "Solte-me!" Mas ele não cedeu e trou-
disto verificarei se sobrou mais alguém. Primeiro seco a carne xe-a para terra firme. É por isto que até hoje os membros do

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clã dos leões dizem aos do clã das cabras: "Fomos nós que de de que ela seja analisada com coragem, é possível aprender
salvamos vocês da extinção".
rnclita coisa.
Finalmente devemos lembrar outro recurso utilizado pelos
sobreviventes, que vem de data histórica e é perfeitamente
fidedigno. Numa luta de extermínio entre duas tribos indíge- Os mortos como sobreviventes
nas da América do Sul, um único homem da parte derrotada
fica com vida e é enviado de volta ao seu povo pelo inimigo.
Sua função é a de informar os seus a respeito de tudo o que Ninguém que se ocupe com os testemunhos originais da
vida religiosa deixará de se surpreender com o poder dos mor-
viu e desestimulá-los a empreender uma nova luta. Humboldt
tos. A existência de muitas tribos está inteiramente tomada por
nos deixou um relato a respeito deste mensageiro da tragédia:
"A demorada resistência que os cabres, reunidos sob o ritos que se refere m aos mo r tos.
O primeiru f a tu que ehaina a atenção em todas as partes
comando de um corajoso chefe, tinha oferecido aos caraíbes,
causou a perdição daqueles depois de 1720. Os cabres tinham é o medo diante dos mortos. Eles estão descontentes e cheios
de inveja em relação aos seus, que deixaram para trás. Pro-
derrotado seus inimigos junto à desembocadura do rio; uma curam se vingar dos vivos, às vezes por causa de ofensas que
grande quantidade de caraíbes foi massacrada enquanto eles lhes foram feitas ainda em vida, mas freqüentemente também
fugiam entre as corredeiras do rio e uma ilha. Os prisioneiros pelo simples fato de os outros ainda estarem vivos. A inveja
foram devorados; mas com aquela astúcia refinada e com a dos mortos é o que os vivos mais temem. Eles tratam de apa-
crueldade que é própria dos povos da América do Sul e do ziguá-los, adulando-os e oferecendo-lhes alimento. Proporcio-
Norte, os cabres deixaram um caraíbe vivo; ele foi obrigado nam-lhes tudo o de que necessitam no caminho até o país dos
a subir numa árvore para ser testemunha dessa cena bárbara mortos, somente para que estes permaneçam bem distantes e
e informar seu povo a respeito do acontecido. A ebriedade da para que não retornem para causar dano ou para atormentar
vitória do chefe dos cabres foi de curta duração. Os caraíbes os seus familiares. Os espíritos dos mortos enviam enfermi-
voltaram em número tão grande que sobraram, apenas alguns dades ou as trazem consigo, têm influência sobre a prosperi-
míseros restos dos cabres antropófagos." dade dos animais e sobre as colheitas, influem na vida de cem
O indivíduo que foi mantido vivo como testemunha pre- maneiras diferentes.
sencia do alto de uma árvore o modo brutal como seus com- Uma verdadeira paixão, que sempre volta a aparecer entre
panheiros são devorados. Todos os guerreiros com os quais os mortos, é a necessidade de levar os vivos consigo. Uma vez
havia partido caíram durante a luta ou terminaram no estô- que os mortos invejam todos os objetos da existência cotidia-
mago dos inimigos. Ele é enviado de volta como sobrevivente na, que eles são obrigados a deixar para trás, originalmente era
forçado, com as cenas de terror gravadas na retina. O sentido costume não conservar coisa alguma (ou o menos possível) do
de sua mensagem, como foi imaginada pelos inimigos, seria: que lhes havia pertencido. Colocava-se tudo dentro do túmulo
"Um de vocês sobreviveu. Isto mostra quão poderosos nós ou cremava-se com os cadáveres. Abandonavam-se as palhoças
somos. Não se atrevam a lutar novamente conosco!" No en- nas quais eles haviam morado; jamais se retornava a elas. Fre-
tanto a impressão do que ele viu é tão grande, sua sobrevivên- qüentemente eles eram enterrados numa casa com todos os seus
cia forçada é tão chocante que ele acaba incitando os seus à pertences; desta maneira dava-se-lhes a entender que não se
vingança. Os caraíbes se reúnem em grande massa e dão cabo tinha a menor intenção de conservar qualquer coisa deles para
definitivamente dos cabres. si próprio. Mas isso não era o suficiente para afastar comple-
Esta tradição, que não é a única do seu tipo, mostra com tamente a cólera dos mortos. Porque a maior inveja dos mortos
que clareza estes povos primitivos vêem o sobrevivente. O pe- não se referia aos objetos, que podiam ser fabricados ou
culiar da situação lhes é perfeitamente consciente. Eles contam adquiridos novamente, mas sim à própria vida.
com ela e procuram utiIizá-Ia para seus fins particulares. De Chama a atenção o fato de que mesmo nas condições
ambos os pontos de vista, tanto dos inimigos como dos amigos, mais diferentes, os homens sempre atribuíram aos mortos este
o caraíbe que foi obrigado a subir na árvore desempenhou cor- sentimento. E este sentimento parece dominar os defuntos de
retamente o papel que dele se esperava. De sua dupla função, todos os povos. Eles sempre preferiam permanecer com vida.
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Para os que ainda vivem, todos os que já não vivem sofreram E agora, vê só, ela causou tua morte. Não me faças nada,
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uma derrota; esta derrota consiste em não se ser um sobrevi- tu mesmo causaste o teu próprio mal, alguma coisa de ruim
vente. O morto não consegue se conformar com isto e é natural meteu dentro de tua cabeça esta vontade de comer areia. Olha,
que ele queira provocar em outras pessoas esta dor suprema estou colocando aqui o teu arco e tuas flechas para que tu
que lhe foi infligida. possas brincar. Eu sempre fui boa para contigo. Agora não
Cada morto, portanto, é alguém que foi sobrevivido. So- deixes de ser bom também para comigo, e não me faças coisa
mente nas catástrofes grandes e relativamente raras em que ,,
alguma.
todos perecem é que a relação passa a ser diferente. A morte Em seguida, aproximou-se a mãe e disse numa espécie
isolada que nos interessa aqui desenrola-se de tal forma que
um homem é arrancado do meio de sua família e do seu grupo. filho, eu te trouxe ao mundo para que pudesses
Ele deixa todo um bando de sobreviventes e todos os que têm dver litt
O‘Mu
d i
na s
ea : as coisas boas e para que te divertisses com elas.
qualquer tipo de direito sobre o morto se unem numa malta Este meu peito te alimentou enquanto quiseste mamar. Eu
fúnebre que o lamenta. Ao sentimento de enfraquecimento te fiz coisinhas lindas e roupinhas. Eu me preocupei contigo
devido à sua morte soma-se o de amor que se sentia por ele, e te alimentei e brinquei contigo e nunca te bati. Agora deves
e freqüentemente um sentimento é inseparável do outro. Ele é ser bom e não me causar nenhum mal."
lamentado e pranteado da maneira mais apaixonada possível O pai do menino morto também se aproximou e disse:
e, em seu núcleo, esse lamento é certamente um sentimento "Meu menino, quando eu te disse que a areia te mataria,
autêntico. O fato de os estranhos suspeitarem da autenticidade tu não quiseste me escutar e agora estás morto. Eu saí
desse lamento deve-se à natureza complexa e múltipla da pró- para te comprar um lindo caixão. Vou ter de trabalhar muito
pria situação. para conseguir pagá-lo. Eu cavei para ti uma sepultura num
Porque as mesmas pessoas que têm motivos para a lamen- lugar lindo, onde gostavas de brincar. Eu vou te acomodar lá
tação são também sobreviventes. Como portadores de uma e vou te dar muita areia para comer, agora que ela não pode
perda, eles se lamentam; como sobreviventes, eles vivenciam mais te fazer mal; eu sei quanto gostas dela. Tu não podes
uma espécie de satisfação. Normalmente eles não irão con- me trazer mal algum; melhor será que vás procurar a quem
fessar este sentimento indevido. Mas eles sabem muito bem te fez comer areia."
o que o morto está sentindo. Ele deve forçosamente odiá-los Tanto a avó como a mãe e o pai amavam esse menino e,
porque eles ainda têm a vida que ele não possui mais. Os apesar de ele ser ainda muito pequeno, temem seu ressenti-
vivos chamam a alma dele de volta para convencê-lo de que não mento porque eles ainda estão vivos. Todos lhe asseguram que
desejavam sua morte. Fazem tudo para que se lembre de como não são culpados pela sua morte. A avó lhe dá o arco e as
foram bons para com ele, enquanto ainda se encontrava entre flechas. O pai lhe comprou um caixão caro e também lhe dá
os vivos. Enumeram as demonstrações práticas de que res- areia para que possa comer dentro da sepultura porque sabe
peitam suas vontades. Conscienciosamente cumprem os últi- quanto ele gosta disso. A ternura simples que eles demonstram
mos desejos do falecido. Em muitos lugares esta última von- é constrangedora; mas, mesmo assim, ela tem algo de inquie-
tade tem força de lei. Tudo o que eles fazem pressupõe de tante, pois está impregnada de medo.
maneira insofismável o ressentimento do morto diante do fato Em alguns povos a crença na vida dos mortos deu origem
de eles terem sobrevivido. a um culto dos ancestrais. Lá, onde ele adquiriu formas fixas,
Um menino índio em Demerara contraiu o hábito de é como se os homens tivessem sabido domar os próprios mor-
comer areia e morreu por causa disso. Seu cadáver estava num tos que são tão importantes. Dando-lhes regularmente o que
ataúde aberto que seu pai providenciara com um carpinteiro eles pedem, honra e alimento, eles ficam satisfeitos. Seus cui-
das imediações. Antes do enterro sua avó se aproximou do dados, desde que realizados segundo todas as regras da tradi-
féretro e disse com voz chorosa: ção,• os convertem em aliados. O que foram nesta vida con-
"Meu neto, eu sempre te disse para não comer areia. Eu tinuam sendo depois; eles ocupam seu lugar anterior. Quem,
nunca te dei areia, eu sabia que isto não te faria bem. Tu na terra, foi um chefe poderoso, também o é debaixo da terra.
sempre foste buscar areia sozinho. Eu te disse que isso era Durante os sacrifícios e as invocações, seu nome é citado em
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primeiro lugar. Sua suscetibilidade é considerada ao extremo; ancestrais, quando se respeitam os antigos hábitos e costumes
quando ela é ferida, as conseqüências podem ser muito perigo- e não se introduzem modificações, quando se realizam regular-
sas. Ele se interessa pela prosperidade dos seus descendentes; mente os sacrifícios, os ancestrais ficarão satisfeitos e irão
muitas coisas dependem dele, e sua boa disposição de ânimo é incentivar o bem-estar dos seus descendentes. Quando alguém
indispensável. Ele gosta de permanecer perto dos seus des- adoece, sabe que provocou o descontentamento de algum dos
cendentes e nada deve ser feito que possa afugentá-lo. seus ancestrais, e conseqüentemente fará tudo o que lhe for
Entre os zulus da África do Sul, esta convivência com os possível para descobrir o motivo deste descontentamento.
ancestrais assume uma forma particularmente íntima. Os rela- Porque os mortos estão longe de ser justos o tempo
tos que o missionário inglês Callaway reuniu e editou há cerca todo. Eles foram seres humanos que todos conheceram pes-
de cem anos são o testemunho mais autêntico a respeito soalmente e cujas fraquezas ainda estão presentes na lembrança
do culto dos ancestrais deste povo. Callaway deixa que seus dos vivos. Nos sonhos eles aparecem de uma forma que com-
informantes tomem a palavra e anota as declarações deles no bina com o seu caráter. Vale a pena citar um caso anotado
seu próprio idioma. Seu livro The Religious System of the com alguns detalhes por Callaway. Este caso mostra que até
Amazulu é muito raro e, por este motivo, não é suficiente- mesmo os mortos bem cuidados e famosos às vezes são to-
mente conhecido; no entanto ele figura entre os documentos mados de ressentimento contra os sobreviventes simplesmente
essenciais e básicos da humanidade. porque eles ainda estão vivos. A história de um destes ressen-
Os ancestrais dos zulus se tornam serpentes e descem timentos, como se verá — transposta para o contexto que nos
para baixo da terra. Mas não são, como se poderia supor, ocupa —, está ligada ao desenvolver-se de uma perigosa
serpentes míticas que ninguém pode ver. São espécies bem enfermidade.
conhecidas que se arrastam até perto das palhoças, entrando Um irmão mais velho morreu. Suas propriedades e em
com freqüência dentro delas. Algumas destas serpentes, graças particular todo o seu gado — que entre os zulus é conside-
a certas singularidades físicas, lembram determinados ancestrais, rado a propriedade mais importante — passaram para seu
e os vivos as consideram como sendo eles. irmão mais jovem. Esta é a ordem habitual da herança. O
Mas não são apenas serpentes, uma vez que em sonhos irmão mais jovem, que assumiu a herança e que realizou todos
aparecem aos vivos sob forma humana, falando com eles. Os os sacrifícios necessários, não está consciente de ter cometido
zulus aguardam esses sonhos, sem os quais a existência se nenhuma falta contra o morto. Mas de súbito ele adoece gra-
torna desagradável; eles querem falar com seus mortos, e é vemente e em sonho seu irmão lhe aparece.
importante vê-los de maneira clara e distinta em seus sonhos. "Eu sonhei que ele me batia e dizia: 'Como é que você
Às vezes a imagem dos ancestrais fica turva e obscura; nestes já não sabe quem sou?' Eu lhe respondi: 'Que posso fazer para
casos, mediante determinados ritos, consegue-se que a imagem que você veja que eu o reconheço? Eu sei que você é meu
volte a ficar clara. De quando em quando, especialmente em irmão!' Ele perguntou: 'Quando você sacrifica um boi, por
todas as ocasiões mais importantes, são-lhes oferecidos sacri- que não me chama?' Eu respondi: 'Mas eu chamo e honro
fícios. Imolam-se bodes e bois para eles, que são convocados você com os seus títulos de glória. Diga-me que boi eu sacri-
de forma solene para que comam essas vítimas. São chamados fiquei sem ter invocado você'. Ele disse: 'Quero carne'. Eu
em voz alta pelos seus títulos de glória, aos quais dão grande recusei e lhe disse: 'Não, meu irmão, eu não tenho, boi algum.
importância; eles são muito sensíveis e considera-se uma ofensa Você está vendo algum no curral?' Ainda que haja um só',
esquecer estes títulos de glória por ocasião dos chamamentos. disse ele, 'eu o quero para mim.' Quando despertei senti dores
O animal sacrificado deve soltar um grito que possa ser ouvido nas costas. Tentei respirar mas não conseguia; meu fôlego
pelos ancestrais, que amam este grito. Os carneiros, que mor-
rem mudos, conseqüentemente, não servem para este tipo de "O homem era obstinado e não queria sacrificar um boi.
sacrifício. Aliás, o sacrifício neste caso nada mais é do que E disse: 'Estou realmente doente e conheço a doença que me
uma ceia da qual participam vivos e mortos em conjunto, uma afeta'. As pessoas lhe disseram: 'Se você sabe qual é a sua
espécie de comunhão entre os vivos e os mortos. doença, por que não se livra dela? Será que um homem pode
Quando se vive como estavam acostumados a viver os causar voluntariamente sua doença? Se ele sabe o que é,
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será que ele quer morrer? Porque quando um espírito está lhe darei a carne que está pedindo. Se eu vir que ele me deixa
irado com o homem, ele o destrói'. paz e que me curo da doença, amanhã mesmo matarei o
em
"Ele respondeu: `Não, senhores! Eu fiquei doente por ga do para ele. Se for ele o responsável, que me faça sarar e
causa de um homem. Eu o vejo em sonhos quando me deito. respirar com facilidade. Que ele faça o meu fôlego voltar ao
Porque ele sente vontade de comer carne, ele se aproxima de normal'.
mim cheio de enganos e diz que não o invoco quando mato "E as pessoas concordaram com ele: 'Sim, se pela manhã
algum animal. Ele me surpreende muito, porque eu matei você estiver com boa saúde, saberemos que é o espírito do seu
muitas cabeças de gado e nunca deixei de invocá-lo. Se ele irmão. Mas, se pela manhã você ainda estiver doente, não dire-
tem vontade de carne, poderia simplesmente me dizer: Meu mos que é o seu irmão; neste caso será apenas uma simples
irmão, eu gostaria de carne. Mas ele diz que eu não o honro doença'.
como deveria. Estou irritado com ele e acredito que ele so- "uando o sol se pôs no horizonte, ele ainda se queixava
mente queira me matar'. de dores. Mas quando chegou a hora de ordenhar as vacas ele
"E as pessoas disseram: 'Você acha que o espírito ainda pediu comida. Pediu um mingau aguado e conseguiu comer um
sabe falar? Onde está ele para que lhe possamos dizer o que pouco. Então disse: 'Quero um pouco de cerveja. Tenho sede'.
pensamos? Nós todos sempre estivemos presentes quando você Suas mulheres lhe deram cerveja e sentiram confiança no co-
sacrificou alguma cabeça de gado. Você sempre o elogiou e ração. Elas se alegravam porque tinham sentido muito medo
chamou por todos os seus títulos de glória, títulos que ele e tinham perguntado: 'Será que a doença é tão grave a ponto
recebeu por sua coragem. Nós ouvimos o que você disse e se de ele não comer coisa alguma?' Elas se alegravam em silên-
fosse possível que este seu irmão ou qualquer outro morto cio; não manifestavam a alegria com palavras, apenas olhavam
se tornasse a levantar, poderíamos interpelá-lo e lhe perguntar: umas para as outras. Ele bebeu a cerveja e disse: 'Agora quero
Por que você diz coisas como estas? rapé; quero uma pitada bem pequena'. Deram-lhe o rapé, que
"O doente respondeu: 'Ai, meu irmão é prepotente por- ele tomou e depois se deitou outra vez. Pouco depois, tornou
que é o mais velho. Eu sou mais novo do que ele. Fico sur- a adormecer.
preso com o fato de ele exigir que eu destrua todo o gado. "À noite veio seu irmão e disse: 'E então? Você já esco-
Ele não deixou o gado como herança quando morreu?' lheu o gado para mim? Você vai matá-lo amanhã?'
"As pessoas disseram: 'Este homem morreu. Mas nós "E o adormecido disse: 'Sim, vou matar um boi para você.
ainda estamos falando com você e seus olhos ainda nos vêem Meu irmão, por que você diz que eu nunca o invoco, se sempre
realmente. Por isso dizemos a você o que importa a ele: fale honro você com todos os seus títulos de glória, quando sa-
com ele com muita calma e, mesmo se você tiver apenas uma crifico gado? Pois você foi muito corajoso e um excelente
única cabra, sacrifique-a. É uma vergonha que ele possa vir e guerreiro'.
matar você. Por que você vê constantemente seu irmão em "Ele respondeu: 'Tenho bons motivos, pois tenho vontade
sonhos e fica doente? Um homem que sonha com seu irmão de carne. Afinal„ eu morri e deixei uma aldeia para você. Você
deveria despertar com saúde'. tem uma grande aldeia'.
"Ele disse: 'Bem, senhores, eu darei a carne que ele ama. " 'Está bem, meu irmão, você me deixou uma aldeia. Mas,
Ele exige carne. Ele me mata. Ele comete uma injustiça comi- quando você me deixou a aldeia e morreu, você tinha matado
go. Todas as noites sonho com ele e acordo sentindo dores. Ele todo o seu gado?'
" 'Não, eu não tinha matado todo ele.'
não é um homem; sempre foi um sujeito miserável e briguento.
`Mas agora, filho do meu pai, você me pede que eu des-
Porque sempre foi assim: uma palavra, um golpe. Quando "
truatudo?'
alguém falava com ele, ele sempre respondia com golpes físicos. " 'Não, eu não exijo que você destrua tudo. Mas eu lhe
Quando havia alguma briga, ele era sempre o culpado e sem- digo: mate para que sua aldeia seja grande!'
pre golpeava os outros. Ele nunca quis ver isto e nunca reco- despertou e se sentiu bem; as dores do seu corpo
nheceu este fato. Jamais disse: Eu cometi um erro, não deve- tinham sumido. Sentou-se e cutucou a mulher: 'Levante-se e
ria ter brigado com esta ou aquela pessoa. Seu espírito é faça fogo'. A mulher acordou e obedeceu. Ela perguntou como
como ele. Ele é ruim e está sempre bravo e irritado. Mas eu ele se sentia. 'Fique quieta', disse ele; 'ao acordar senti o cor-
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po leve. Falei com meu irmão e quando acordei estava curado'. espírito deixar você doente nós saberemos que é o seu miserá-
Tomou uma pitada de rapé e tornou a adormecer. O espírito de vel irmão. Durante sua grave doença, não sabíamos se ainda
seu irmão retornou e disse: 'Veja como curei você. Mate o comeríamos carne com você. Vemos agora que o miserável quer
gado pela manhã!' que você morra. Estamos contentes por ver que você está
"Pela manhã ele se levantou e foi até o curral. Ele tinha novamente com saúde'."
mais alguns irmãos menores e os chamou; eles o acompanha- "Afinal, eu morri", diz o irmão mais velho, e esta frase
ram. 'Eu chamo vocês porque agora estou curado. Meu irmão contém em si a essência da disputa entre eles, da perigosa en-
diz que foi ele quem me curou.' Então mandou que eles lhe fermidade. Não importa de que forma o morto se comporta, não
trouxessem um boi. Eles o trouxeram. 'Tragam esta vaca esté- importa o que ele peça; ele está morto e isto é motivo sufi-
ril!' Eles a trouxeram. Chegaram à parte superior do curral e ciente de amargura. "Eu te deixei uma aldeia", diz ele, e acres-
ali ficaram junto dele. Rezou com as seguintes palavras: centa em seguida: "Você tem uma grande aldeia". A vida do
" 'Agora comam todos vocês, gente de nossa casa. Que um outro é esta aldeia; ele também poderia ter dito: "Eu estou
bom espírito permaneça conosco, que as crianças prosperem e morto e você ainda está vivo".
que todos fiquem com boa saúde. E eu pergunto a você que é É esta repreensão que o vivo teme e, sonhando com ela,
meu irmão: por que volta e torna a voltar em sonhos para mim? dá razão ao morto: afinal ele realmente sobreviveu ao morto. A
Por que sonho contigo e fico doente? Um espírito que é bom amplitude desta injustiça, diante da qual todas as demais injus-
vem e traz boas notícias. Eu tenho que me queixar o tempo tiças empalidecem, confere ao morto o poder de transformar a
todo por estar doente. Que tipo de gado é este que seu proprie- repreensão e a amargura numa grave doença. "Ele quer me
tário deve devorar, depois do que sempre fica doente? Eu lhe matar", diz o irmão mais moço; pois afinal ele morreu, pensa
digo: pare com isso! Pare de me deixar doente! Eu lhe digo: consigo mesmo. Ele sabe portanto muito bem por que o teme,
venha a mim em sonhos, fale comigo tranqüilamente e me diga e para apaziguá-lo consente finalmente em fazer o sacrifício.
o que você quer! Mas você sempre vem com a intenção de me Sobreviver aos mortos, como se vê, implica consideráveis
matar! Está mais do que claro que em vida você foi um sujeito incômodos para os vivos. Mesmo onde se estabeleceu uma ve-
ruim. E debaixo da terra você continua sendo um sujeito ruim? neração regular dos mortos não se pode confiar inteiramente
Eu nunca esperei que seu espírito se apresentasse a mim de neles. Quanto mais poderoso foi um deles entre os homens,
forma gentil e que me trouxesse boas notícias. Mas por que é tanto mais perigoso é seu ressentimento quando está do outro
que você vem com maldade? Você, o mais velho dos meus lado.
irmãos, que deveria trazer coisas boas para a aldeia para que No reino de Uganda encontrou-se uma maneira de man-
nada de ruim aconteça com ela; você, que era o proprietário ter o espírito do rei defunto entre os seus súditos devotos. Ele
da aldeia. não podia ir embora, não podia ser enviado para longe, era
"Depois ele disse as seguintes palavras sobre os animais e obrigado a permanecer neste mundo. Depois de sua morte,
agradeceu: 'Aqui estão os animais que sacrifico para você: um designava-se um médium, um mandwa, no qual se alojava o
boi vermelho e uma vaca vermelha e branca estéril. Mate-os! E espírito do rei. O médium, que tinha a função de sacerdote,
eu lhe digo: fale amavelmente comigo para que eu desperte sem devia ser parecido com o rei e comportar-se exatamente como
dores. Eu digo: deixe que todos os espíritos de nossa casa se ele. Imitava suas peculiaridades na maneira de falar e, quando
reúnam aqui em torno de você que tanto gosta de carne!' se tratava de um rei de tempos remotos, utilizava, como está
"Depois ele ordenou: 'Matem os animais!' Um dos seus comprovado num caso, o idioma arcaico falado trezentos anos
irmãos pegou uma lança e matou a vaca estéril; ela caiu. Depois antes. Quando o médium morria, o espírito do rei entrava num
o boi, que também caiu. Ambos berraram. Ele os matou; eles outro membro do mesmo clã. Assim um mandwa recebia seu
morreram. Ele ordenou que lhes tirassem a pele; e a pele lhes cargo de outro e o espírito do rei tinha sempre uma residên-
foi tirada. Eles os comeram no curral. Todos os homens se reu- cia. Era possível, portanto, que um médium utilizasse pala-
niram e pediram comida. Pedaço por pedaço, foram levando a vras cujo significado ninguém mais entendia, nem mesmo seus
carne. Comeram e ficaram satisfeitos. Eles agradeceram e disse- colegas.
ram: 'Nós agradecemos a você, filho de fulano de tal. Se um Mas não se deve imaginar que o médium representava
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perpetuamente o rei. De tempos em tempos, como se dizia, almas dos mortos. Pois a comunicação com o mundo dos mor-
"o rei o tomava pela cabeça". Ele caía então num estado de tos era perigosa se estes tomavam a iniciativa. Era propícia
obsessão e encarnava o morto em todos os detalhes. Nos clãs se aparecia como culto dos ancestrais, realizada segundo as
responsáveis pelo fornecimento dos médiuns transmitia-se por prescrições da tradição e efetuada nos intervalos devidos.
meio de palavras e de imitações as peculiaridades do rei, na A sobrevivência da alma dependia da força física e moral
época do seu falecimento. O rei Kigala morreu em idade muito que tivesse conseguido durante a vida. Esta força era adqui-
avançada; seu médium era um homem bastante jovem. Mas rida mediante a alimentação e o estudo. De importância muito
quando o rei o "tomava pela cabeça" ele se transformava
especial era a diferença entre a alma do senhor, que era um
num velho: seu rosto se enchia de rugas, a saliva escorria de "comedor de carne" e que se tinha nutrido bem durante toda
sua boca e ele começava a mancar. a vida, e a de um camponês comum, sempre mal alimentado.
Estes ataques eram contemplados com a maior veneração. "Somente os senhores", diz Granet, "têm uma alma no sentido
Considerava-se uma honra poder presenciar um deles; esta- próprio da palavra. Nem mesmo a velhice desgasta esta alma;
va-se então na presença do rei, que era identificado. O morto, pelo contrário, ela a enriquece. O senhor se prepara para a
porém, que podia manifestar-se quando queria no corpo de morte comendo a maior quantidade de manjares refinados e
um homem cuja função era apenas esta, não devia sentir o tomando bebidas vivificantes. No decorrer de sua vida, ele as-
mesmo ressentimento em relação aos sobreviventes que os ou- similou grandes quantidades de essências; tanto mais quanto
tros, que eram expulsos irremediavelmente deste mundo. maiores e mais opulentas eram suas posses. Ele multiplicou
Particularmente rico de conseqüências é o culto dos an- ainda mais a rica substância dos seus ancestrais, que já tinham
cestrais entre os chineses. Para compreender o que é um an- se alimentado de carne e de caça fina. Sua alma, quando ele
cestral entre os chineses, é preciso abordar antes a concepção morre, não se dispersa como uma alma vulgar; ela sai do cadá-
que eles tinham da alma. ver com força total.
Acreditavam que todos os seres humanos possuíam duas "Se o senhor levou uma vida de acordo com as regras de
almas. Uma delas, chamada po, originava-se a partir do esper- sua situação, sua alma, enobrecida e purificada pelos ritos
ma, estando conseqüentemente presente desde o momento da fúnebres, possui depois de sua morte um poder augusto e se-
procriação; era responsável pela memória. A outra, hun, ori- reno. Possui o vigor benéfico de um gênio tutelar e conserva
ginava-se do ar que a pessoa respirava depois do nascimento ao mesmo tempo todas as características de uma pessoa dura-
e ia se formando pouco a pouco. Tinha o formato do corpo doura e santa. Ela se torna uma alma de ancestral."
ao qual dava vida, mas era invisível. A inteligência, que lhe Passa então a receber um culto próprio num templo es-
pertencia, crescia com ela, que era a alma superior. pecial e toma parte das cerimônias das estações, da vida da
Depois da morte, esta alma-respiração subia ao céu, en- natureza e da vida do país. Quando a caça é abundante, ela
quanto a- alma-esperma permanecia com o cadáver dentro do recebe muita comida. E jejua quando a colheita é má. A alma
túmulo. Era esta, a alma inferior, que mais se temia. Ela era do antepassado se alimenta dos cereais, da carne e da caça fina
maligna e invejosa e procurava arrastar os vivos consigo para das comarcas que são sua pátria. No entanto, por mais rica
a morte. Enquanto o corpo se decompunha, a alma-esperma que seja a personalidade de uma alma de ancestral, por mais
se dissolvia pouco a pouco, perdendo desta forma seu poder que continue vivendo em sua força acumulada, também para
maligno. ela chega o momento em que se dispersa e extingue. Depois
A alma-respiração, pelo contrário, subsistia. Ela necessi- de quatro ou cinco gerações, a tabuleta de ancestrais, à qual
tava de alimentação, pois o caminho que tinha de percorrer fazia jus por determinados rituais, perde o direito a um san-
até o mundo dos mortos era longo. Se os descendentes não tuário especial. Ela é então colocada numa arca de pedra, junto
lhe ofereciam alimento, ela sofria espantosamente. Era infe- com as tabuletas dos ancestrais mais antigos, cujas lembranças
liz quando não conseguia encontrar o caminho e então se tor- já não existem. O ancestral que essa tabuleta representava e
nava tão perigosa quanto a alma-esperma. cujo nome estava escrito nela já não é mais venerado como
Os ritos de inumação tinham uma dupla finalidade: pro- senhor. Sua vigorosa individualidade, que durante multo tem-
teger os vivos da ação dos mortos e garantir sobrevivência às po se destacou com nitidez, se dissipa. Sua trajetória chegou
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ao fim, seu papel de antepassado está encerrado. Através dos possível. A sobrevivência, desta forma, fica despojada de toda
cultos que lhe foram dedicados durante longos anos, ele tinha e qualquer característica de massa. Como paixão seria algo ab-
escapado ao destino dos mortos comuns. Agora ele retorna à surdo e incompreensível; perdeu todas as características assas-
massa dos demais mortos e torna-se anônimo como antes. sinas. As recordações e o sentimento de si mesmo celebraram
Nem todos os antepassados perduram quatro ou cinco uma aliança. Cada um destes elementos desbotou o outro, mas
gerações. Depende de seu status especial que sua tabuleta seja conservou-se o melhor de ambos.
mantida durante tanto tempo, que se invoque sua alma supli- Quem contemplar a figura do poderoso ideal, tal como
cando que aceite alimentos. Algumas tabuletas são depositadas se aperfeiçoou na história e no pensamento dos chineses, ficará
na arca já depois de uma única geração. No entanto, indepen- comovido por sua humanidade. É de se supor que a carência
dentemente do tempo durante o qual perduram, o simples da brutalidade nesta imagem possa ser atribuída a esta moda-
fato de eles existirem já serve para modificar em muitos aspec- lidade de veneração dos ancestrais.
tos as características do sobreviver.
Para o filho deixa de existir o triunfo secreto de ter per-
manecido vivo quando seu pai morreu. Porque afinal, como Epidemias
ancestral, o pai continua estando presente; o filho lhe deve
tudo o que possui, e precisa manter a benevolência dessa alma. A melhor descrição da peste nos foi dada por Tucídides,
Deve alimentar o pai, apesar de ele estar morto, e certamente que a conheceu no próprio corpo e que conseguiu sobreviver
evitará qualquer demonstração de arrogância em relação a ele. a ela. Na sua concisão e exatidão, o texto contém todas as
A alma de ancestral do pai existe enquanto o filho estiver características essenciais desta enfermidade e vale a pena trans-
vivo e, como já vimos, conserva todas as características de uma crever aqui as passagens mais importantes.
pessoa determinada e reconhecível. O pai está muito interes- "Os homens morriam como moscas. Os corpos dos mo-
sado em ser honrado e alimentado. Para sua nova existência ribundos eram amontoados uns sobre os outros. Viam-se
como ancestral é essencial que o filho esteja com vida: se não criaturas semimortas cambaleando pelas ruas ou reunindo-se
tivesse descendentes, não teria quem o venerasse. Ele deseja sedentas em torno das fontes. Os templos nos quais se alojavam
que seu filho e também as gerações seguintes sobrevivam. estavam repletos de cadáveres de pessoas que tinham morri-
Ele quer que eles prosperem, porque dessa prosperidade de- do ali.
pende sua própria existência como ancestral. Ele exige que se "Em algumas casas, os homens estavam tão abalados pelo
viva enquanto se mantenha viva sua recordação. Forma-se as- peso de suas desgraças que deixaram de celebrar os lamentos
sim uma relação íntima e feliz entre esta espécie moderada de tradicionais pelos mortos.
sobrevivência adquirida pelos ancestrais e o orgulho dos des- "Todas as cerimônias fúnebres se transtornaram; os mor-
cendentes que estãos vivos e que procuram conservá-la. tos eram enterrados da melhor maneira possível. Algumas pes-
Também é bastante significativo que os ancestrais per- soas, em cujas famílias tinham ocorrido tantas mortes que elas
maneçam isolados durante o espaço de algumas gerações. Eles já não podiam mais custear os gastos das cerimônias, recor-
são conhecidos como indivíduos e como tais são venerados, e riam aos estratagemas mais insolentes. Chegavam primeiro às
somente quando relegados a um passado mais remoto é que fogueiras que outros tinham construído, depositavam lá seus
se reduzem a uma única massa. O descendente que ainda vive próprios mortos e acendiam a lenha; ou, se encontravam uma
está separado da massa dos seus ancestrais justamente por fogueira que já ardia, lançavam seus mortos sobre os outros
aqueles que, como o pai e o avô, se interpõem como indivíduos cadáveres e se afastavam do local.
isolados e bem determinados. Se na veneração do filho influi "Temor algum em relação às leis divinas ou humanas con-
o fato de ele mesmo ainda estar com vida, esta influência seguia contê-los. No que dizia respeito aos deuses, parecia ter
ocorre de maneira atenuada e moderada. Dada a natureza da pouca importância se eles eram ou não venerados, uma vez
relação, esta influência não pode incitá-lo a multiplicar o nú- que se via que tanto os bons como os maus morriam da mesma
mero dos mortos. Será apenas ele próprio quem irá aumentar forma. Ninguém temia ter de prestar conta de delitos contra
sua quantidade e ele deseja que este fato ocorra o mais tarde as leis humanas; afinal ninguém esperava viver durante o tempo
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suficiente para que isto acontecesse. Cada qual sentia que urna
sentença muito mais grave já tinha sido ditada contra ele. nos; todos juntos num monte de cadáveres. Esta massa es-
Antes da execução desta sentença, cada um procurava conse- --tanque dos mortos, segundo as idéias religiosas, somente per-
manece morta durante algum tempo. Ela irá ressuscitar num
guir ainda algum tipo de prazer nesta vida.
"Os que se mostravam mais compadecidos em relação aos único instante e, apinhada fortemente, se apresentará diante
de Deus para o juízo final. Porém, mesmo deixando de lado
doentes e aos moribundos eram os que tinham sofrido da
peste e que tinham conseguido escapar da morte. Eles não ape- o destino futuro dos mortos — porque as crenças religiosas
nas conheciam o assunto, mas também se sentiam seguros, não são iguais em todos os lugares —, existe uma coisa que é
indiscutível: a epidemia desemboca na massa de agonizantes
desde que ninguém contraía a enfermidade duas vezes; e, caso
a contraíssem, o segundo ataque nunca era mortal. Estas pes- e de mortos. "Ruas e templos" ficam repletos deles. Freqüen-
temente deixa de ser possível sepultar isoladamente vítima por
soas eram felicitadas em todos os lugares e elas mesmas se vítima, da maneira tradicional; os mortos são empilhados uns
sentiam tão exaltadas por sua cura que acreditavam que jamais sobre os outros, milhares numa única sepultura, reunidos em
haveriam de morrer de alguma doença." gigantescas valas comuns.
Dentre todas as desgraças que sempre se abateram sobre Existem três fenômenos significativos, bem conhecidos da
a humanidade, as grandes epidemias é que deixaram lembran- manidade, cuja meta são os montes de cadáveres. Eles são
ças particularmente vívidas. Elas se iniciam de forma tão re- hu
estreitamente relacionados entre si e, por este motivo, é pre-
pentina quanto as catástrofes naturais; no entanto, ao passo ciso delimitá-los bem. Estes três fenômenos são a batalha, o
que um terremoto se esgota na maior parte das vezes em alguns suicídio em massa e a epidemia.
tremores rápidos, a epidemia pode perdurar meses e até mesmo
Na batalha a meta é o monte de cadáveres de inimigos.
um ano inteiro. O terremoto produz seus estragos de uma só Quer-se diminuir o número dos inimigos vivos para que assim
vez; todas as suas vítimas são atingidas no mesmo instante.
o número de aliados seja maior. É inevitável que um certo nú-
Uma epidemia de peste, pelo contrário, tem um efeito cumu- mero de aliados também morra, mas não é isto o que se deseja.
lativo; primeiro são atacadas apenas algumas pessoas, depois A meta é o monte dos inimigos mortos. Esta meta é procurada
os casos se multiplicam; vêem-se mortos por todos os lados; de forma ativa por iniciativa própria, pela força dos próprios
em seguida se vêem mais mortos reunidos do que pessoas vi-
braços.
vas. O resultado final de uma epidemia pode ser o mesmo
No suicídio em massa esta iniciativa é voltada contra os
provocado por um terremoto. Mas numa epidemia as pessoas próprios aliados, Homens, mulheres e crianças, todos se matam
são testemunhas da grande mortalidade que se difunde e se
reciprocamente até que nada mais resta a não ser o monte
espalha diante dos seus olhos. Elas são como participantes de de mortos. Para que nada caia nas mãos do inimigo, para que
uma batalha; mas de uma batalha que perdura durante mais
a destruição seja total, recorre-se ao fogo.
tempo do que todas as batalhas conhecidas. O inimigo, porém, Na epidemia o resultado é o mesmo que no caso do sui-
é secreto, não pode ser visto em lugar algum, não pode ser cídio em massa, com a diferença de não ser arbitrário e de
atacado. Só se pode esperar ser atacado por ele. O combate parecer imposto de fora para dentro por algum poder desco-
é conduzido exclusivamente pelo lado adversário, que ataca nhecido. Leva-se mais tempo para alcançar a meta; dessa forma,
quem quiser. O inimigo ataca tantas pessoas que todas são vive-se numa igualdade de expectativa atroz, durante a qual
levadas a temer a possibilidade de serem atacadas. todos os vínculos habituais existentes entre os homens se des-
Assim que a epidemia é reconhecida como tal, ela somen- fazem.
te pode resultar na morte de todos. Os que são atacados espe- O contágio, tão importante na epidemia, faz com que
ram — uma vez que não existe remédio contra ela — a exe- os homens se afastem uns dos outros. É mais seguro evitar a
cução da sentença. Somente os atacados pela epidemia são aproximação de outras pessoas, uma vez que elas podem trazer
massa: são iguais quanto ao destino que os espera. Seu número
consigo o contágio. Alguns fogem da cidade e se dispersam
aumenta de forma cada vez mais rápida. Eles alcançam a meta por suas propriedades. Outros se fecham em suas casas, onde
em cuja direção se movem em questão de poucos dias. Alcan- não permitem a entrada de outras pessoas. As pessoas se evi-
çam a maior densidade possível tratando-se de corpos huma- tam umas às outras. A manutenção das distâncias se transfor-
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ma numa última esperança. A expectativa de vida, a própria Cada vez mais é o decurso de tempo que mais cativa o visitante.
vida se expressa, por assim dizer, no ato de se manter dis- Cada vez mais sua atenção se desprende das particularidades
tância em relação aos doentes. Os contagiados se transfor-
mam aos poucos numa massa morta; os não-contagiados se comoventes, fixando-se apenas no decurso de tempo.
Ali está o túmulo de um que chegou aos trinta e dois anos
mantêm distantes de todos os demais, freqüentemente até idade; ao lado, outro que chegou aos quarenta e cinco. O vi-
de
mesmo de seus parentes, de seus cônjuges, de seus filhos. É sitante já viveu mais que eles e esses mortos estão, por assim
notável como neste caso a esperança de sobreviver faz do ho-
dizer, fora do páreo. Ele encontra muitos que chegaram à idade
mem um ser isolado, diante do qual se situa a massa de todas dele e, caso não tenham morrido muito jovens, seu destino não
as vítimas. desperta nenhuma compaixão. Mas também existem muitos que
No entanto, dentro desta maldição geral, na qual todos os
que adoecem estão perdidos, acontece o mais surpreendente: o ultrapassaram. Alguns chegaram aos setenta e ali está um
que passou dos oitenta. Estes ainda podem ser alcançados. Eles
existem alguns poucos que saram da peste. É de se imaginar
o incitam a uma imitação. Tudo ainda lhe é possível. A inde-
como devem sentir-se em meio aos demais. Eles sobreviveram terminação da vida que ele tem diante de si é uma grande van-
e se sentem invulneráveis. Assim, eles também conseguem se tagem sobre esses mortos, e com algum esforço poderia até
compadecer dos enfermos e dos moribundos que os rodeiam.
ultrapassá-los. Ao medir-se com eles, ele se enche de esperança,
"Estas pessoas", enfatiza Tucídides, "se sentiam tão exal- uma vez que de antemão já tem uma vantagem: a meta deles
tadas devido à sua cura que achavam que no futuro jamais já foi alcançada, eles não vivem mais. Não importa com quem
morreriam de alguma doença." irá medir-se; de qualquer maneira a força estará do seu lado.
Pois do outro lado não existe força; existe apenas uma indica-
ção da meta alcançada. Os mais idosos já sucumbiram. Eles não
A respeito da sensação de cemitério podem mais nos encarar nos olhos, homem a homem, e nos
incentivam a chegar além da meta que eles alcançaram. O morto
Os cemitérios sempre exercem uma forte atração; nós os de oitenta e nove anos que está sepultado ali adiante funciona
visitamos mesmo quando não temos parentes que foram enter- como um estímulo. O que é que nos impede de chegar à marca
rados lá. Quando se chega a cidades estrangeiras visitamos seus dos noventa anos?
cemitérios, reservando para eles o tempo necessário como se Mas este não é o único tipo de cálculo que fazemos quando
eles existissem para ser visitados. E, mesmo no exterior, não é estamos entre tantos túmulos diferentes. Começamos a pensar
sempre o túmulo de algum homem venerado e ilustre que nos no tempo transcorrido desde que alguns dos mortos foram ali
atrai. E, quando originalmente a visita foi decidida por este mo- sepultados. Os anos que nos separam da data da morte deles
tivo, ela sempre acaba se tornando mais ampla. Num cemitério têm algo de tranqüilizador: significam que o homem está no
sempre entramos num estado de ânimo muito especial. Os cos- mundo desde há muito tempo. Os cemitérios com lápides bem
tumes piedosos querem que nós nos enganemos a respeito deste antigas, que datam do séc. XVIII ou até mesmo do séc. XVII,
estado de ânimo; pois a contrição que sentimos e que demons- têm algo de enaltecedor. Ficamos pacientemente parados diante
tramos com maior ênfase do que o normal encobre, na verdade, das inscrições de difícil leitura e não nos movemos antes de
uma satisfação secreta. conseguir decifrá-las. A cronologia, que normalmente serve ape-
O que é que um visitante faz quando se encontra num ce- nas para fins práticos, adquire uma vida intensa e plena de sen-
mitério? Como é que ele se movimenta e com que se ocupa? tido. Todos os séculos dos quais conhecemos a existência nos
Caminha lentamente de um lado para outro entre os túmulos, pertencem. Quem está enterrado ali não suspeita sequer do inte-
examina esta ou aquela lápide, lê os nomes e se sente atraído resse de quem contempla o curso de sua vida. A cronologia
por muitos deles. Em seguida começa a se interessar pelo que para ele termina com o ano de sua morte; para o observador, no
está escrito debaixo dos nomes. Lá está um casal que viveu entanto, ela continua até o momento presente. Quanto não
junto durante muito tempo e que agora repousa junto no mesmo daria o morto para poder estar ainda ao lado do observador!
túmulo. Ali está uma criança que morreu ainda muito pequena. Paz duzentos anos que ele morreu; nós, por assim dizer, sobre-
Do outro lado, uma moça que chegou apenas aos dezoito anos. vivemos a ele em duzentos anos. Pois, graças a informações de
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todos os tipos, grande parte do tempo que transcorreu desde
w com a certeza de que cem anos mais tarde muitos o leriam. Nos
sua morte, nos é bem conhecida. Nós lemos e ouvimos contar tempos modernos não é possível conceber uma fé na imortali-
muita coisa desse tempo e vivemos pessoalmente uma boa parte dade literária que seja mais clara, mais isolada e mais modesta.
dele. É difícil não sentir certa superioridade nessa situação; até Que significa esta fé? Qual é o seu conteúdo? Significa que a
mesmo o homem ingênuo a sente. pessoa continuará existindo quando todos os seus contemporâ-
Mais ainda, porém, o visitante sente o fato de estar pas- neos tenham deixado de existir. Não que ela esteja indisposta
seando sozinho pelo cemitério. A seus pés jazem muitos desco- e m relação aos vivos como tais. Eles não são eliminados, nada
nhecidos, densamente apinhados. Seu número é indeterminado se faz contra eles; eles nem sequer são combatidos de alguma
se bem que elevado; e cada vez este número aumenta mais. for ma. Desprezam-se os que alcançaram uma glória falsa, mas
Eles, os mortos, não podem separar-se uns dos outros; eles sente-se também desprezo diante da alternativa de combatê-los
permanecem formando um monte. Somente quem está vivo com seus próprios meios. Nem sequer se sente rancor em rela-
vem e vai, seguindo os seus próprios caprichos. Entre todos os ção a eles, uma vez que se sabe até que ponto eles estão equivo-
que jazem deitados, apenas ele está de pé. cados. Opta-se pela companhia daqueles aos quais se irá perten-
cer algum dia; a companhia de todos os que são autores de
obras lidas ainda hoje; daqueles que falam conosco, dos quais
A respeito da imortalidade
nos nutrimos. A gratidão que se sente em relação a eles é uma
É bom partir de um homem como Stendhal quando se gratidão pela própria vida.
fala de imortalidade privada ou literária. Seria difícil encontrar Matar para sobreviver nada pode significar para este estado
uma pessoa com maior aversão às representações correntes de de ânimo, porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de
fé. Stendhal foi um homem inteiramente livre das promessas entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se
e dos laços de qualquer religião. Seus pensamentos e seus sen- estará mais vivo pessoalmente e por conseguinte não se poderá
timentos voltavam-se exclusivamente para esta vida. Ele a sen- matar. Serão as obras que se confrontarão, e será demasiado
tiu e desfrutou da maneira mais precisa e profunda. Ele se abriu tarde para acrescentar qualquer coisa. A rivalidade propriamente
para tudo o que podia lhe dar prazer, e isto não fez com que dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não
se tornasse insípido, porque respeitou o que havia de indivi- estão presentes. O combate que será travado por suas obras
dual em si mesmo. Não reduziu nada a uma unidade duvidosa. nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas essa obra
Desconfiou de tudo o que não era capaz de sentir. Pensou mui- precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais
to, mas nele não existe pensamento frio. Tudo o que registrou, pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade
tudo o que criou conserva o calor de sua origem. Ele amou de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos
muitas coisas e acreditou em algumas, mas tudo era sempre mi- os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna
lagrosamente concreto. Tudo podia ser facilmente encontrado efetivo, tanto o menor como o maior.
dentro dele, sem que tivesse a necessidade de lançar mão de Trata-se do oposto daqueles donos do poder que arrastam
algum truque. consigo para a morte tudo o que os cerca para que, numa exis-
Esse homem que nada pressupunha, que sempre quis en- tência futura, reencontrem tudo aquilo a que estavam acostu-
contrar tudo através de si mesmo, que era a própria vida como mados. Nada caracterizava de maneira mais espantosa sua impo-
sentimento e espírito, que se encontrava no centro de todo acon- tência íntima. Eles matam em vida, matam na morte, um séqüito
tecimento e que por isto também era capaz de contemplar o que de mortos os acompanha para o além.
acontecia de fora para dentro, no qual a palavra e o conteúdo Quem, porém, abrir um volume de Stendhal torna a encon-
coincidem da maneira mais natural possível, como se ele se trá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui
tivesse proposto a depurar a linguagem por conta própria, esse nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais
homem excepcional e realmente livre tinha, apesar de tudo, nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo pro-
uma fé, da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se veitosa para os vivos; nesta reversão da oferenda' aos mortos,
fosse uma amante. todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus
Ele se contentou, sem revolta, em escrever para poucos, aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim.
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ELEMENTOS DO PODER
Força e poder

Ao conceito de força .associamos a idéia de algo que esteja pró-


ximo e presente. A força é mais coerciva e mais imediata que
o poder. Fala-se com ênfase maior de força física. Em níveis
inferiores e mais animais é mais apropriado falar de força que
de poder. Uma presa é agarrada pela força e é levada à boca
pela força. Quando a força dura mais tempo, transforma-se em
poder. Porém no instante crítico, que sempre acaba ocorrendo,
no instante da decisão e do irrevogável, o poder volta a ser
novamente força pura. O poder é algo mais genérico e mais
vasto do que a força; ele contém muito mais e não é tão dinâ-
mico. Ele é mais complicado e inclui até mesmo uma certa me-
dida de paciência. A palavra macht, poder, deriva de uma antiga
raiz gótica, magan, que significa "poder, ser capaz" e não está
de maneira alguma relacionada com a raiz machen que significa
"fazer".
A diferença entre força e poder pode ser exemplificada de
maneira evidente pela relação entre o gato e o rato.
O rato, uma vez caçado, encontra-se sob o regime de força
do gato; este o agarrou, o mantém preso, sua intenção é matá-
lo. Mas, assim que ele começa a brincar com o rato, acrescenta
algo de novo ao relacionamento. Solta-o e permite que ele corra
um pouco. Assim que o rato se vira e corre, escapa do regime
de força. Mas está em poder do gato fazer com que ele retorne.
Se o gato permite que o rato se vá definitivamente, este é excluí-
do de sua esfera de poder. Até o ponto em que o rato pode
ser alcançado com toda a certeza, ele permanece em poder do
gato. O espaço que o gato controla, os momentos de esperança
que ele concede ao rato vigiando-o atentamente sem perder o
interesse por ele e por sua destruição, tudo isto reunido —
espaço, esperança, vigilância e interesse destrutivo — poderia
ser designado como o corpo propriamente dito do poder ou,
simplesmente, como o próprio poder.
Portanto, ao contrário do que ocorre com a força, o poder
pressupõe uma certa amplitude: mais espaço e também algo
mais de tempo. Já formulamos anteriormente a suposição de
que a prisão poderia ser algo derivado da boca; a relação entre

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estes dois conceitos expressa também a relação entre o poder
e a força. Na boca não restam esperanças, não existe tempo orça e rapidez
nem espaço. Deste ponto de vista, a prisão é como uma amplia- A rapidez, enquanto pertence ao âmbito do poder, é a veloci-
ção da boca. Nela é possível dar alguns passos para cada lado,
exatamente como o rato faz sob os olhos do gato; às vezes sen- dade em alcançar ou em agarrar. Em ambos os casos os ani-
te-se o olhar do carcereiro cravado nas costas. O prisioneiro mais constituíram o modelo para o homem. O homem apren-
deu com as feras corredoras, principalmente com os lobos, a
tem tempo diante de si e esperanças de escapar ou de ser liber-
ação de alcançar. O agarrar mediante um salto súbito lhe foi
tado; e durante todo o tempo percebe-se o interesse destrutivo ensinado pelos felinos: seus mestres invejados e admirados
do aparelho da prisão em que se está, mesmo quando este inte- nisto foram o leão, o leopardo e o tigre. As aves de rapina
resse parece ter deixado de existir. reúnem os dois tipos de rapidez: alcançar e agarrar. Na ave
Mas a diferença entre poder e força se torna visível tam- de rapina, que voa solitária e visível e que depois se precipita
bém numa esfera completamente distinta: nos múltiplos matizes de elevada altura, o processo se expressa de maneira perfeita.
da devoção religiosa. Todos os que acreditam em Deus encon- Ela inspirou ao homem uma arma: a flecha, que durante mui-
tram-se sempre em poder de Deus e cada qual à sua maneira se to tempo foi o instrumento de maior velocidade que ele pôde
conforma com isso. Mas para muitos isto não é suficiente. Eles possuir. Por meio de suas flechas o homem voa para ir alcan-
esperam uma intervenção taxativa, um ato imediato de violência esa.
çar sua presa.
divina que possam reconhecer e sentir como tal. Encontram-se a nimais servem desta forma, desde muito cedo,
como símbolos do poder. Eles representavam os deuses ou os
na situação de quem aguarda ordens. Para eles Deus tem as
ancestrais do homem poderoso. Um lobo era ancestral de
características mais cruas do soberano. Sua vontade ativa, que Gengis-Khan. O falcão Hórus era o deus do faraó egípcio. Nos
implica a submissão ativa deles em cada caso particular, em reinos africanos os animais sagrados da estirpe real são o leão
cada manifestação, torna-se para eles o próprio núcleo da fé. e o leopardo. Das chamas, nas quais se queimava o cadáver do
As religiões deste tipo tendem a acentuar o princípio da pre- imperador romano, sua alma voava aos céus como uma águia.
destinação divina; desta forma seus fiéis têm motivos para sen- O mais rápido, porém, é o que sempre foi o mais rápido:
tir que tudo o que lhes sucede é uma expressão imediata da o raio. O medo supersticioso em relação ao raio, diante do qual
vontade divina. Eles podem submeter-se com maior freqüência não existe proteção possível, está amplamente difundido. Os
e até o fim. É como se eles já vivessem dentro da boca de Deus, mongóis, diz o monge franciscano Rubruk, que chegou até eles
que irá triturá-los logo a seguir. Eles, no entanto, têm a obri- como enviado de Luís IX da França, ou São Luís, temem o
gação de continuar vivendo neste terrível tempo presente sem trovão e o raio mais do que qualquer outra coisa. Durante
qualquer temor, e agindo da maneira mais correta possível. uma tempestade eles expulsam de seus abrigos todos os es-
O Islamismo e o Calvinismo são conhecidos principalmen- trangeiros, envolvem-se em feltros negros e se escondem até
te por esta tendência. Seus partidários estão sedentos da força que tudo tenha passado. Eles se abstêm (informa o historiador
divina. Não lhes basta apenas o poder divino; este lhes parece persa Rashid, que esteve a serviço deles) de comer a carne de
por demais generalizado e distante, deixando que muitas coi- um animal abatido por um raio, não ousando sequer aproxi-
mar-se dele. Entre os mongóis, proibições de todos os tipos
sas fiquem aos cuidados deles mesmos. O efeito desta perma-
servem para se obter o favor do raio. É preciso evitar tudo o
nente espera de ordens sobre os que se entregaram a ela de ue possa
que p a at atraí-lo.
í-lo. Oraio freqüentemente é a arma principal
uma vez por todas é profundo e tem as mais graves conseqüên- deu mais poderoso.
cias sobre seu comportamento em relação aos demais. Dessa
Seu aparecimento repentino entre as trevas tem o caráter
atitude surge o tipo de crente-soldado para o qual a batalha de uma revelação.O raio alcança e ilumina. A partir do seu
é a expressão mais exata da vida; batalha na qual ele não sente comportamento
rtamentopeculiar procura-se deduzir conclusões a res-
medo, porque afinal sente-se dentro dela o tempo todo. Quan- que lugarvontade
do cé dosdeuses. Em que forma ele aparece e em
do falarmos exclusivamente a respeito da ordem examinaremos u. , e onde vem? Para onde vai? Entre os
este tipo de crente com maiores detalhes. etruscos, a interpretação do raio era tarefa de uma classe espe-
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cial de sacerdotes que foram adotados pelos romanos como fui_ deslocamentos decisivos nas relações de poder. Combate-se a
guratores. dissimulação do inimigo com a própria dissimulação. Um go-
"O poder do soberano", afirma um antigo texto chinês, vernante convida importantes militares ou civis para um ban-
"assemelha-se ao do raio, apesar de ser inferior em sua ener- quete festivo. De repente, quando eles menos temem sua ini-
gia". É surpreendente o número de detentores do poder que mizade, são assassinados. A mudança de uma atitude para
foram fulminados pelo raio. É possível que os relatos a este outra corresponde com precisão à retirada da máscara. A rapi-
respeito nem sempre correspondem à verdade, mas o fato de dez do acontecimento é aguçada ao extremo; dela depende o
essa relação ter sido estabelecida já é em si algo significativo. êxito do projeto. O detentor do poder, bem consciente de sua
Notícias a este respeito são numerosas entre os romanos e entre constante simulação, somente pode esperar a mesma coisa por
os mongóis. Ambos esses povos acreditam num deus supremo parte dos outros. Toda rapidez, com a qual ele se adianta aos
no céu, ambos têm um sentido fortemente desenvolvido do outros, lhe parece ser permitida e indicada. Ele pouco se im-
poder. O raio, neste caso, é tomado como uma ordem sobre- portará de pôr as mãos num inocente; afinal, no complexo
natural. Quando ele fulmina, é porque deve fulminar. Quando jogo das máscaras, qualquer um pode equivocar-se. Por outro
fulmina um poderoso, foi enviado por alguém que é ainda lado, ficará profundamente irritado se, devido à falta de rapi-
mais poderoso. Serve como o castigo mais rápido e repentino, dez, um inimigo conseguir escapar.
mas também como o castigo mais evidente.
Ele foi imitado pelos homens e deu origem a um deter-
minado tipo de arma: a arma de fogo. O relampejar e o trovão Pergunta e resposta
do disparo, o fuzil e principalmente o canhão provocaram o
terror daqueles povos que não os conheciam e que os viam Toda pergunta é uma penetração, uma incursão. Quando a
como se fossem um raio. pergunta é utilizada como meio de poder, ela corta feito uma
Mas bem antes disso o homem já quis transformar-se no navalha o corpo do interrogado. Já se sabe o que se pode
animal mais veloz. A domesticação do cavalo e a formação da encontrar; mas não se quer realmente encontrar nem atingir
cavalaria em sua forma mais perfeita determinaram as grandes isso. Com a segurança de um cirurgião, penetra-se nos órgãos
irrupções históricas a partir do Oriente. Nos relatos contempo- internos. O cirurgião mantém sua vítima com vida para ave-
râneos sobre os mongóis sempre se destaca sua rapidez. Sua riguar coisas mais precisas a respeito dela. Este é um cirurgião
aparição sempre era inesperada; apareciam tão rapidamente de tipo especial, que trabalha conscientemente com a provo-
como desapareciam, e reapareciam mais repentinamente ainda. cação de uma dor local. Ele irrita determinadas zonas da víti-
Sabiam utilizar até mesmo a precipitação da fuga como agres- ma para saber coisas seguras a respeito de outras.
são; quando os inimigos acreditavam que eles tinham fugido, As perguntas procuram respostas; as que não recebem
viam-se cercados por eles. respostas são como flechas disparadas para o ar. A pergunta
A velocidade física como qualidade do poder aumentou mais inocente é a que permanece isolada e que não traz outra
desde então de todas as maneiras possíveis. Seria supérfluo consigo. Pergunta-se a localização de um edifício a uma pes-
entrar em detalhes a respeito de seus efeitos nesta nossa era soa desconhecida. Esta nos indica o caminho. Contentamo-nos
técnica. com esta resposta e prosseguimos em nosso caminho. Retemos
À esfera do agarrar pertence um tipo muito distinto de o desconhecido durante um instante. Forçamo-lo a se lembrar
rapidez, a do desmascaramento. Um ser inofensivo ou submisso de alguma coisa. Quanto mais clara e objetiva for a resposta,
está à nossa frente; arrancamos-lhe a máscara; por trás dela tanto mais rapidamente ele se livra do embaraço que nós lhe
existe um inimigo. Para ser eficaz, o desmascaramento deve ser causamos. Ele entregou o que esperávamos dele, e não tem
súbito. Este tipo de rapidez poderia ser designado como ra- nenhuma obrigação de voltar a nos ver.
pidez dramática. O ato de alcançar se restringe aqui a um es- Mas um indagador poderia não ficar satisfeito e continuar
paço muito pequeno, concentra-se. A utilização de uma máscara formulando perguntas. Quando estas se acumulam, não tardam
a.,provocar desgosto, insatisfação por parte do interrogado. Ele
como melo de dissimulação é antiqüíssimo e seu oposto é o
desmascaramento. De máscara em máscara é possível conseguir já não é mais retido apenas externamente; em cada resposta
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ele mostra mais alguma parte de si mesmo. É possível que sejam ioda por escrito. Uma resposta então compromete muito mais.
coisas sem importância, superficiais, mas elas estão sendo ex- Está sujeita a comprovações e o adversário pode utilizar-se dela.
traídas dele por um desconhecido. Estão relacionadas com ou- Quem carece de defesas externas apela para sua armadu-
tras coisas mais ocultas e que ele considera mais importantes. ra interior; esta armadura íntima contra a pergunta é o segredo.
A insatisfação, o desgosto que ele sente não demora muito como se fosse um segundo corpo, mais bem protegido, que
para se transformar em desconfiança. se encontra dentro do primeiro; quem se aproximar demais
Porque o efeito das perguntas consiste justamente em deve preparar-se para encontrar surpresas desagradáveis. Como
realçar o sentimento de poder do interrogador; elas lhe dão algo mais denso, o segredo se separa do ambiente que o cir-
vontade de formular cada vez mais e mais perguntas. Quem cunda e é mantido num local escuro que poucos conseguem
responde se submete tanto mais quanto mais ceder às pergun- iluminar. O que existe de perigoso no segredo sempre é colo-
tas. A liberdade da pessoa reside em boa parte em sua capa- cado acima do seu conteúdo propriamente dito. O mais im-
cidade de defender-se das perguntas. A tirania mais exigente portante e, poderíamos quase dizer, o mais denso do segredo
é a que se permite fazer as perguntas mais exigentes. Sensata é sua defesa eficaz contra a pergunta.
é uma resposta que põe fim às perguntas. Quem pode permi- O silêncio diante de uma pergunta é como o choque de
tir-se isto recorre às contraperguntas; entre pessoas iguais este uma arma contra um escudo ou uma armadura. Emudecer é
é um meio comprovado de defesa. Aquele a quem sua posição uma forma extrema de defesa, em que as vantagens e as des-
não permite réplica deve dar uma resposta exaustiva e escla- vantagens se equilibram. A pessoa emudecida não se expõe,
mas em compeisação parece ser mais perigosa do que realmente
recer tudo o que o outro procura ou, pela astúcia, tirar-lhe a
é. Supõe-se que ela oculte muito mais do que aquilo que ela
vontade de continuar indagando. Ele pode adular o interroga-
prefere não dizer. Ela emudeceu apenas porque tem muito
dor e reconhecer sua superioridade, de tal forma que este já
para ocultar; é importante então não deixá-la ir. O silêncio
não tenha mais necessidade de manifestá-la ele mesmo. Pode
obstinado acaba provocando o interrogatório penoso, a tortura.
desviar sua atenção para outras pessoas, às quais seria mais
Mas sempre, também em circunstâncias ordinárias, a res-
interessante ou produtivo interrogar. Se for alguém hábil em posta nos prende a alguma coisa. Não se pode abandoná-la com
dissimulações, pode ocultar sua verdadeira identidade. A per- facilidade. A resposta obriga a pessoa a se situar num determi-
gunta então passa a ser dirigida a outra pessoa e a resposta nado lugar e a permanecer aí enquanto o interrogador pode
não é sua incumbência. atacar de qualquer ângulo; de certa forma, quem faz as per-
A pergunta, que no fundo é uma espécie de dissecação, guntas contorna o interrogado e escolhe a posição que mais
começa com um toque. O contato se intensifica e chega a lhe convém. Ele pode ficar girando em torno do outro, sur-
diferentes lugares. Onde encontra pouca resistência, penetra. preendendo-o e confundindo-o. A mudança de posição lhe con-
O que é encontrado é colocado de lado, de reserva, para ser fere uma espécie de liberdade que o interrogado não pode ter.
utilizado posteriormente; as coisas encontradas não são apro- Ele procura agredi-lo com a pergunta e quando consegue tocá-lo
veitadas imediatamente. Primeiro é necessário encontrar aquele com ela, ou seja, quando o obriga a dar uma resposta, conse-
ponto bem definido que está sendo procurado. Toda pergunta gue subjugá-lo, prendê-lo num lugar. "Quem é você?" "Sou
sempre dissimula uma finalidade perfeitamente consciente. As fulano". O interrogado já não pode mais ser outra pessoa, ele
perguntas indefinidas, como as de uma criança ou de um tolo, está privado da possibilidade de escapar por metamorfose. Se
não têm força e são fáceis de ser eliminadas. o processo for prolongado, pode ser considerado como uma
Quando se exigem respostas breves e concisas, a situa- espécie de encadeamento.
ção se torna mais perigosa. Uma simulação convincente ou uma A primeira pergunta se refere à identidade, a segunda ao
metamorfose de fuga em poucas palavras passa a ser difícil ou lugar. Uma vez que ambas pressupõem uma linguagem oral,
até mesmo impossível. A maneira mais rudimentar de defesa seria interessante saber se é concebível uma situação arcaica,
é fazer-se de surdo ou fíngír não entender. Mas este estrata- queteria existido antes da pergunta em forma de palavra, e
gema funciona apenas entre iguais. Noutros casos, quando o que fosse equivalente a esta. Nela, lugar e identidade deveriam
coincidir ; uma coisa sem a outra deveria carecer de sentido. Esta
mais forte interroga o mais fraco, a pergunta pode ser formu-
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situação arcaica efetivamente existiu. É o contato vacilante coro separar os prós e os contras. A medida que a pergunta
a presa. Quem é você? Você pode ser comida? O animal, fo cortês e sem intenção de cobrança, ela nos dá uma liberdade
r
constantemente em busca de alimento, toca e fareja tudo o de decisão.
que encontra. Coloca o nariz em toda parte. Você pode ser Nos diálogos platônicos, Sócrates é elevado a uma espécie
comido? Qual é o seu gosto? A resposta é um odor, uma de posição de rei das perguntas. Ele recusa todos os tipos
contrapressão, uma rigidez inerte. O corpo estranho é aqui usuais de poder e se esquiva diligentemente de tudo o que
seu próprio lugar e por meio do farejamento e do toque fami- poderia lembrar isso. A sabedoria, que era sua superioridade,
liariza-se com ele ou, transladando isto para nossos costumes pode ser buscada nele por qualquer pessoa. No entanto Sócra-
humanos, dá-se-lhe um nome. tes freqüentemente não a comunicava numa conversação coe-
Na educação precoce da criança existem dois fenômenos rente, mas sim através da formulação de perguntas. Nos Diá-
que ao se cruzarem se intensificam de forma desmedida; pa- logos, Platão coloca em sua boca as perguntas mais determi-
recem ser desproporcionais e no entanto estão intimamente nantes e mais importantes. Desta forma Sócrates não solta seus
relacionados. Os pais, por um lado, ditam permanentemente ouvintes; obriga-os a separações dos tipos mais diversos. Ele
ordens vigorosas e insistentes; a criança, por outro lado, for- consegue seu domínio sobre os ouvintes exclusivamente me-
mula um sem-número de perguntas. Essas perguntas precoces diante suas perguntas.
da criança são como gritos pedindo alimentos, de forma dife- São importantes as formas de cortesia que restringem as
rente e agora já mais elevada. Elas são inofensivas, uma vez perguntas. Certas coisas não devem ser perguntadas a um es-
que de modo algum podem comunicar à criança todo o saber tranho. Se apesar de tudo o fazemos, nós o assediamos, pene-
dos pais; a superioridade destes continua sendo tremenda. tramos nele; ele teria motivos para sentir-se ferido. Nossa
Com que perguntas a criança começa? As primeiras são reserva, por outro lado, o convence do respeito que sentimos
sempre as que se referem a um lugar: "Onde está?" Outras por ele. O estranho é tratado como se fosse o mais forte;
são: "Que é isto?" e "Quem?" É possível ver claramente o trata-se de uma forma de adulação que provoca nele uma ati-
papel que já é desempenhado pelo lugar e pela identidade. tude idêntica. Somente assim, mantendo uma certa distância
Estas são realmente as primeiras coisas que uma criança indaga. uns dos outros, protegidos de perguntas como se todos fossem
Somente mais tarde, já no final do terceiro ano de vida, é que fortes e iguais nessa força, é que os homens se sentem seguros
ela indaga: "Por quê?" E ainda mais tarde: "Quando?" e e se mantêm em paz.
"Quanto tempo?" que são perguntas temporais. A criança sem- Uma pergunta monstruosa é a que indaga a respeito do
pre tarda muito em ter idéias precisas a respeito do tempo. futuro. Seria possível chamá-la de pergunta suprema; ela tam-
A pergunta que começa de um modo titubeante procura, bém é a mais intensa de todas. Os deuses, aos quais ela é
como já se disse, penetrar mais fundo. Ela tem algo de cor- dirigida, não estão obrigados a responder. Esta pergunta, diri-
tante, funciona como uma navalha. Isto se reconhece na resis- gida ao que existe de mais forte, é uma pergunta desesperada.
tência que as crianças muito pequenas opõem a perguntas du- Os deuses nunca se comprometem, nunca se pode penetrar
plas. "O que é que você prefere, uma maçã ou uma pera?" A neles. Suas exteriorizações são ambíguas, não podem ser de-
criança se calará ou responderá "pera", porque esta foi a úl- compostas. Todas as perguntas feitas a eles são feitas como pri-
tima palavra. Mas uma verdadeira decisão, que seria fazer uma meiras perguntas, que somente têm uma resposta. Freqüente-
separação entre a maçã e a pera, lhe é difícil. No fundo, a mente a resposta consiste apenas em sinais que são reunidos
criança gostaria das duas frutas. Pelos sacerdotes de certos povos em grandes sistemas. Os
A separação culmina lá onde são possíveis apenas as duas babilônios nos deixaram milhares destes sinais. Chama a aten-
respostas mais simples de todas: sim ou não. Por serem dia- ção o fato de que cada um deles se encontra isolado dos demais.
metralmente opostas, todas as soluções intermediárias ficam Não são conseqüência um do outro, não têm coerência interna.
excluídas e a escolha de uma ou outra opção é uma escolha de São listas de sinais, nada mais; mesmo quem conhece todos
compromisso e alcance especiais. eles nunca pode concluir, a partir de cada um, mais do que
Antes de uma pergunta nos ser formulada, muitas vezes algo separado do
não sabemos o que pensamos a respeito. A pergunta nos obriga O interrogatório, em oposição exata a isso, reconstitui o
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passado na totalidade de seu decurso. O interrogatório é diri-
fez ?" Na resposta que serve de álibi, lugar é oposto a lugar,
gido contra alguém mais fraco. Mas antes de nós nos consa-
identidade é oposta a identidade. "Neste momento eu me en-
grarmos à interpretação do interrogatório, convém dizer algu- contrava noutro lugar. Eu não sou a pessoa que fez tal coisa."
mas palavras a respeito de uma instituição que atualmente se "Certa vez", diz uma antiga lenda dos Vedas, "por volta
impôs na maioria dos países, o fichamento policial universal do meio-dia, nas proximidades de Dehsa, uma jovem camponesa
da população. Definiu-se um determinado grupo de perguntas, estava dormindo sobre a relva. Seu noivo estava sentado ao
as mesmas em todos os lugares, que basicamente servem à do dela. Ele pensava em como fazer para se livrar dela. Nisto
segurança e à ordem. O objetivo é saber quão perigoso cada la
chegou a Dama do Meio-Dia e lhe fez perguntas. Por mais que
um pode chegar a ser e permitir a captura imediata daquele de lhe respondesse, ela sempre fazia novas perguntas. Quando
que realmente se tornou perigoso. A primeira pergunta que o sino anunciou uma hora da tarde, seu coração parou de bater.
se formula oficialmente a uma pessoa é a respeito do seu nome ; A Dama do Meio-Dia o tinha interrogado até a morte."
a segunda se refere ao seu local de residência, seu endereço.
São, como já sabemos, as duas perguntas mais antigas: a de
identidade e a de lugar. A profissão, em seguida, revela sua
atividade; a partir dela e da idade conclui-se sua influência e O segredo
seu prestígio: como pode ser manipulado? Seu estado civil
O segredo está no núcleo do poder. O ato de se ocultar
indica a propriedade humana mais imediata, seja marido, espo-
por sua natureza é algo secreto. A criatura se esconde ou se
sa ou filho. Origem e nacionalidade dão uma referência a res-
mimetiza e não se dá a conhecer por nenhum movimento. Toda
peito de suas possíveis opiniões; nesta nossa época de nacio-
nalismos fanáticos, estes dados definem melhor a pessoa do criatura que se está ocultando desaparece, envolve-se no se-
que a religião, que já perdeu sua importância. Com isto tudo gredo como se este fosse uma segunda pele e permanece du-
— juntamente com uma fotografia e uma assinatura — já rante longo período de tempo ao seu abrigo. Uma concatena-
são muitos os elementos que ficam estabelecidos.. ção peculiar de impaciência e de paciência caracteriza a cria-
As respostas a estas perguntas são aceitas. Provisoriamente tura nesse estado. Quanto mais ela permanece assim, tanto
elas não são colocadas em dúvida. Somente no interrogatório, mais intensa se faz a esperança de conseguir um êxito repen-
dirigido a um fim determinado, é que a pergunta fica carre- tino. Para que ela afinal consiga algo, a paciência deve crescer
gada de desconfiança. Neste caso se estabelece um sistema de ao infinito. Caso ela acabe demasiadamente cedo, tudo terá
perguntas que serve de controle para as respostas; em si, qual- sido em vão, e a criatura precisa, sob o peso da decepção, re-
quer uma delas poderia ser falsa. O interrogado se encontra começar tudo novamente.
em relação de inimizade com o interrogador. Sendo muito mais O agarrar em si é algo que se manifesta publicamente,
fraco, ele somente consegue escapar se convencer o outro de inclusive porque se quer incrementar seu efeito pelo terror;
que não é um inimigo. mas, assim que a ingestão tem início, tudo volta a ocorrer na
Nos interrogatórios judiciais, o ato de perguntar estabe- obscuridade. A boca é obscura e tenebrosos são o estômago e
lece retroativamente uma onisciência do interrogador como as entranhas. Ninguém sabe e ninguém medita sobre o que
poderoso. Os caminhos que foram percorridos, os lugares que sucede interminavelmente em seu interior. Deste processo
foram visitados, as horas que foram vividas, coisas que en- primordial da assimilação, a maior parte permanece secreta.
quanto ocorriam pareciam ser livres e não controladas, repen- O processo começa ativamente, com o segredo que a própria
tinamente são colocadas sob suspeita. Todos os caminhos devem criatura cria ao esconder-se; termina de forma desconhecida e
ser novamente percorridos, todos os locais voltam a ser visi- passiva na escuridão misteriosa do corpo. Somente o instante
tados até que reste o menos possível daquela liberdade antiga de agarrar é que ilumina bruscamente as sombras como um
e usufruída. O juiz precisa saber de muitas coisas antes de relâmpago
poder julgar. Seu poder está baseado principalmente na onis- mais
ciência. Para adquiri-la, ele tem o direito de formular qualquer interior do corpo. Um curandeiro, cuja ação depende do seu
pergunta: "Onde você estava?" "Quando esteve lá?" "O que conhecimento a respeito dos fenômenos do corpo, antes de
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exercer sua profissão deve submeter seu corpo a operações a magia em atos individuais. Mas rechaçar o mal é algo que
muito estranhas. apenas os curandeiros conseguem. Graças à sua iniciação e à
Entre os arandas, na Austrália, um homem que deseja ser sua prática, eles estão protegidos de outra maneira. Alguns fei-
consagrado como curandeiro instala-se diante da caverna na ticeiros muito velhos são capazes de atrair o mal sobre grupos
qual residem os espíritos. Ali primeiramente lhe perfuram a inteiros de homens. Existem portanto como que três graus de
língua. Ele fica completamente só e um dos elementos de sua aumento de poder. Quem consegue fazer com que muitas pes-
iniciação é o terror que lhe inspiram os espíritos. A coragem soas adoeçam simultaneamente é evidentemente o mais po-
de permanecer em solidão, principalmente num local onde a deroso.
solidão é especialmente perigosa, parece ser um dos requisitos Muito temido é o poder mágico dos estrangeiros que
para exercer essa vocação. Mais tarde, segundo ele acredita, vivem em locais distantes. Eles são mais temidos porque os
morrerá por um golpe de lança que lhe atravessa a cabeça de antídotos contra seus feitiços não são tão bem conhecidos como
orelha a orelha e os espíritos o deitarão dentro da caverna, os antídotos para os próprios feitiços. Além do mais, desa-
onde irão morar juntos durante algum tempo numa espécie de parece toda a responsabilidade por feitiços que se perpetuam
além. Para o nosso mundo ele está inconsciente, mas no outro sempre dentro do próprio grupo.
mundo lhe são extraídos os órgãos internos, em troca dos quais Na defesa contra o mal, no tratamento das enfermidades,
recebe outros órgãos novos. É de supor-se que estes sejam o poder do curandeiro é considerado benéfico. Mas, ao lado
melhores do que os órgãos usuais, que sejam invulneráveis ou disso, existe a prática do mal em grande escala. Nada de ruim
menos expostos a intervenções mágicas. Desta maneira o curan- acontece por si mesmo; tudo é sempre provocado por um ho-
deiro se fortalece em sua profissão, mas este fortalecimento mem ou por um espírito mal-intencionado. Qualquer coisa
é de dentro para fora; seu novo poder tem início a partir das que para nós seria chamada de causa, para eles é culpa. Toda
entranhas. Ele teve de morrer antes de poder começar a agir, morte é um assassinato e como assassinato deve ser vingada.
mas sua morte serve para a penetração total do seu corpo. Seu A semelhança com o mundo do paranóico é surpreendente
segredo é conhecido apenas por ele e pelos espíritos; este se- sob todos os aspectos. Nos dois capítulos a respeito do caso
gredo jaz dentro do seu corpo. Schreber, incluídos no final deste livro, daremos indicações
Uma característica curiosa é que a indumentária do mago mais precisas a este respeito. Até mesmo o ataque contra os
inclui numerosos pequenos cristais. Ele os carrega consigo no órgãos internos é narrado lá em detalhes; depois de sua des-
corpo e são indispensáveis para sua profissão; em todos os truição total, depois de demorados períodos de dores, eles se
tratamentos ocorre uma ativa manipulação dessas pedrinhas. renovam e se tornam invulneráveis.
Às vezes é o próprio mago que distribui algumas delas, outras O caráter duplo do segredo é mantido em todas as formas
vezes ele as extrai das partes doentes do enfermo. Partículas superiores de poder. Do curandeiro primitivo ao paranóico
sólidas, estranhas ao corpo do doente, causaram a doença. É existe apenas um passo. E não é maior a distância de ambos
como se fosse uma curiosa moeda da enfermidade cuja cotação em relação ao detentor do poder, cuja evolução histórica é
somente é conhecida pelos magos. ilustrada por muitos exemplos bastante conhecidos.
Excetuando-se este tratamento muito íntimo do doente, Aqui o segredo se expressa excepcionalmente de forma
a magia sempre é praticada à distância. Prepara-se em segredo ativa. O detentor do poder, que dele se vale, o conhece muito
uma série de pontiagudas varinhas mágicas que são arremes- bem e sabe apreciá-lo devidamente segundo sua importância
sadas depois, de uma grande distância, na direção da vítima cada caso. Sabe o que deve ser ocultado quando ele quer
desprevenida, sobre a qual haverá de cair o efeito terrível do alcançar alguma coisa, e sabe também qual de seus ajudantes
feitiço. Aqui se aproveita do segredo do ato de acuar. Peque- deve
emcae o ato de ocultar. Ele tem muitos segredos,
nas lanças são jogadas com más intenções; às vezes elas se já que desejamuit
para coisas, e os combina num sistema no qual
muitas
tornam visíveis no céu como cometas. O ato propriamente eles se preservam reciprocamente. A um ele confia uma coisa
dito é breve, mas o efeito pode se fazer esperar durante algum e confia outra coisa a outro, certificando-se de que eles jamais
tempo. irão comunicar-se si.
Todo aranda tem a possibilidade de fazer mal mediante Todo aquele que sabe de alguma coisa é vigiado por ou-
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tro, o qual porém jamais fica sabendo o que é que na verdade curava guardar seus segredos até mesmo de si próprio. Seu
ele está vigiando no outro. Ele deve registrar cada palavra e caráter consciente e ativo lhe escapa, ele se sente impulsionado
cada movimento da pessoa cuja vigilância lhe foi confiada; man- em direção àquela forma passiva de segredo que se carrega
tendo informado o seu senhor a respeito de tudo isso, ele lhe dentro das trevas da própria caverna corporal; que se conserva
transmite uma imagem da atitude mental do vigiado. Mas o lá onde jamais se pode conhecer; e que se acaba por esquecer.
próprio vigilante é vigiado por sua vez, e o relato do outro "É um direito dos reis guardar seus segredos diante do
serve para corrigir o seu. Desta forma, o soberano está sempre pai, da mãe, dos irmãos, das esposas e dos amigos". Esta afir-
a par da confiabilidade das pessoas nas quais depositou seus mação está no Livro da Coroa, obra árabe que contém muitas
segredos, dos responsáveis pela sua segurança, e está em con- tradições antigas da corte dos Sassânidas.
dições de apreciar qual destes recipientes se encontra tão cheio O rei persa Cósroes II, o Vitorioso, inventou métodos
que poderia transbordar. Somente ele possui a chave para todo muito especiais para testar a discrição das pessoas que ele que-
este sistema de segredos. Ele se sente ameaçado quando confia ria utilizar. Quando sabia que duas pessoas do seu ambiente
totalmente noutra pessoa. estavam ligadas por uma estreita amizade e que concordavam
Uma das características do poder é a distribuição desi- entre si em todos os pontos, ele se fechava com uma dessas
gual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite pessoas e lhe confiava um segredo relacionado com o amigo.
que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado Comunicava-lhe que tinha tomado a decisão de mandar exe-
de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas cutar o outro, e proibia-lhe com ameaças de castigo de revelar
intenções. esse segredo à parte interessada. A partir de então, passava a
Um caso clássico de impenetrabilidade deste tipo foi o de observar o comportamento do ameaçado em suas idas e vin-
Filippo Maria, o ultimo dos Visconti. Seu ducado de Milão das peló palácio, a expressão de seu rosto e sua atitude quando
era uma grande potência na Itália do séc. XV. Ninguém igua- estava diante dele. Se constatava que sua conduta em nada
lava sua capacidade de dissimular sua intimidade mais recôn- tinha se modificado, sabia que ele não tinha revelado seu se-
dita. Nunca dizia abertamente o que queria; ocultava tudo por gredo. Depositava então sua confiança nele, tratando-o com
detrás de uma maneira peculiar de expressar-se. Quando dei- consideração particular, elevando sua posição e fazendo com
xava de apreciar alguma pessoa, ele continuava a elogiá-la; que sentisse seu favor. Mais tarde, quando estava a sós com
quando distinguia algum cidadão com honras e presentes, ele ele, lhe dizia: "Eu tinha a intenção de mandar justiçar aquele
o acusava de rispidez ou de estupidez e fazia com que esse homem devido a certas informações que me chegaram a seu
indivíduo sentisse não ser digno de sua sorte. Se desejava ter respeito; entretanto, averiguações mais precisas revelaram que
alguém perto de si, ele o atraía durante algum tempo até que era falso tudo o que se dizia".
nutrisse esperanças, e depois se esquecia dele. Quando o in- Quando porém percebia que o ameaçado demonstrava te-
teressado acreditava ter sido esquecido, ele o chamava nova- mor, mantendo-se afastado e virando o rosto para outro lado,
mente para seu lado. Se concedia uma graça a alguém cujos compreendia que seu segredo tinha sido traído. Então Cósroes
méritos reconhecia, interrogava com curiosa astúcia outras pes- fazia o traidor cair em desgraça, degradava-o e o tratava com
soas, como se nada soubesse do favor concedido. De maneira dureza. Ao outro, porém, informava que apenas tinha querido
geral, ele concedia algo diferente do que lhe tinha sido pedi- provar seu amigo confiando-lhe um segredo. Assim apenas con-
do, e sempre em desacordo com o que os outros desejavam. fiava na discrição de um cortesão forçando-o a trair mortal-
Quando queria oferecer um presente ou uma distinção a alguém, mente seu melhor amigo. Dessa forma ele se assegurava a maior
costumava interrogar essa pessoa dias antes a respeito dos as- discrição possível. "Quem não está apto a servir ao rei", dizia
suntos mais indiferentes, de maneira que ela não podia adi- ele, "carece também de valor para si mesmo, e de quem carece
vinhar suas intenções. Além disso, para não revelar a ninguém de valor para si mesmo não se pode tirar proveito".
suas intenções mais íntimas, lamentava freqüentemente a ou- O poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Signi-
torga de graças que ele mesmo tinha concedido, ou a execução fica que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos exter-
de penas de morte que ele mesmo tinha determinado. nos que nos induzem a falar. Não se responde a coisa alguma,
Neste último caso, tem-se a impressão de que ele pro- como se não fôssemos interrogados. Não se deixa perceber se
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algo nos agrada ou não. A pessoa se mostra muda sem ter formas mais livres de governo — como se elas não pudessem
emudecido. Porém escuta. Em sua concepção extrema, a funcionar seriamente — estão vinculados à sua falta de aspec-
virtude estóica da impassibilidade deveria conduzir ao silêncio. tos secretos. Os debates no parlamento são travados entre cen-
O silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que tenas de homens; seu sentido está enraizado justamente no fato
não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, de serem públicos. Opiniões opostas são expostas e confron-
faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. tadas. A curiosidade profissional da imprensa, o interesse do
Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e mundo financeiro levam freqüentemente às indiscrições.
também mais precioso. O silêncio não serve apenas para pro- O indivíduo isolado, acredita-se, ou um grupo muito pe-
teger esta coisa, mas também para concentrá-la. Um homem queno em torno dele são capazes de preservar um segredo.
que silencia muito sempre dá a impressão de ser mais con- Parece ser mais seguro que as discussões sejam realizadas em
centrado. Supõe-se que saiba muito, uma vez que cala muito. grupos muito pequenos, formados em vista da manutenção do
Supõe-se que pense muito em seu segredo, porque se encontra segredo; grupos que tenham imposto as mais severas penalida-
com ele sempre que julga necessário protegê-lo. des à traição. O melhor, porém, seria que a decisão dependesse
O que cala não deve portanto esquecer seu segredo. Ele de um único indivíduo. Pois esta pessoa não poderia saber de
é respeitado mais, à medida que o segredo mais arde dentro antemão qual seria sua decisão antes de tomá-la e, uma vez
dele, à medida que aumenta mais dentro dele sem que ele o tomada, como ordem ela encontra uma rápida execução.
revele. Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras
O silêncio isola: quem cala está mais solitário do que os deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do
que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos.
Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em
O silêncio atua contra a metamorfose. Quem se retirou palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo,
para seu posto de guarda interno não pode afastar-se dele. nada acontece que não se saiba de antemão. Tem-se a impres-
Quem cala pode dissimular, mas de maneira rígida. Ele pode são de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na
usar uma determinada máscara, mas de uma forma rígida. verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo.
A fluidez da metamorfose lhe é proibida. Seu efeito é dema- Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas
siadamente incerto, não se pode prever aonde se chegará caso sejam impostas com violência e em segredo. Parece ser uma
a pessoa se abandonar a esta fluidez. Cala-se em todos os espécie de destino servil, de índole muito peculiar, já que não
lugares onde a pessoa não quer se transformar. No emudecer se é nada, ir parar dentro do ventre de um poderoso. Não se
desaparecem todos os motivos para a metamorfose. Por meio sabe o que realmente está acontecendo, não se sabe quando irá
da fala trama-se tudo entre os homens; no silêncio tudo se acontecer; é possível que outros tenham precedência para entrar
torna rígido. no monstro. Espera-se de forma submissa, temendo e desejando
O que cala tem a vantagem de que suas palavras são mais ser a vítima escolhida. Nesta atitude é possível ver uma apo-
esperadas. Dá-se um peso maior a elas. Elas são concisas e teose do segredo. Todo o restante é subordinado à sua glori-
isoladas, aproximando-se assim da ordem, ficação. Não importa tanto o que acontece, desde que aconteça
A relação de diferença artificial de espécie entre quem com a força repentina e ardente de um vulcão, inesperado e
ordena e quem deve obedecer significa que estas pessoas não irresistível.
têm uma linguagem comum. Elas não falam entre si; é como Mas todos os segredos concentrados de um lado apenas e
se não pudessem fazê-lo. A ficção de que somente são capazes numa única mão acabam necessariamente sendo fatais: para o
de compreender-se através da ordem é mantida em todas as seu depositário, o que em si não teria muita importância, mas
circunstâncias. Desta maneira, os mandatários, dentro da esfera igualmente para todos os afetados, e isto é tremendamente im-
de sua função, calam. Por este motivo se costuma esperar que portante. Todo segredo sempre é explosivo, aumentando sua
os silenciosos, quando por fim resolvem falar, digam palavras potência graças ao próprio calor interno. O juramento é o seu
que são como ordens. selo; e é também o ponto onde ele se torna a abrir.
A dúvida, o desprezo que se manifesta em relação às Até que ponto um segredo pode vir a ser perigoso é algo
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que apenas hoje conseguimos conhecer inteiramente. Em diver- senta valores opostos, é considerada como natural e necessária.
sas esferas, que eram independentes entre si apenas na aparên- Tudo o que é bom existe para que se destaque do que é mau.
cia, ele foi se carregando com um poder cada vez maior. O E nós mesmos decidimos o que pertence a um campo ou a
ditador por excelência, contra o qual o mundo unido realizou outro.
a guerra, mal tinha acabado de morrer quando o segredo rea- O que assumimos desta forma é o poder do juiz. Porque
pareceu sob a forma da bomba atômica, mais perigoso do que é apenas aparentemente que o juiz se encontra entre os dois
nunca, crescendo rapidamente em suas devastações. campos, no limite que separa o bom do mau. De qualquer
Por concentração de um segredo entende-se a relação exis- forma, ele se conta entre os bons; a legitimação do seu cargo
tente entre o número dos que são afetados por ele e o número repousa, em grande parte, no fato de ele pertencer inabala-
dos que o guardam. Por esta definição é fácil compreender
velmente ao campo do que é bom, como se tivesse nascido ali.
que nossos modernos segredos tecnológicos são os mais con-
centrados e os mais perigosos que já existiram. Eles afetam Ele sentencia, por assim dizer, constantemente. Sua sentença
é lei. São coisas muito determinadas aquelas sobre as quais ele
todos, mas apenas um número muito reduzido sabe algo a res- deve proferir suas sentenças; seu amplo conhecimento a res-
peito deles, e de cinco ou dez homens depende a decisão de peito do que é ruim e do que é bom se origina a partir de sua
eles serem ou não utilizados.
prolongada experiência. Mas também aqueles que não são juí-
zes, aos quais ninguém encarregou destas funções e aos quais
ninguém em plena posse de suas faculdades mentais encarre-
Sentenciar e julgar garia delas, se permitem interminavelmente proferir sentenças
em todos os campos. Não se pressupõe qualquer conhecimento
É recomendável partir de um fenômeno que é familiar a do assunto para isso; os que evitam proferir julgamentos, por
todos nós: o prazer de julgar. "Um péssimo livro", diz alguém,
terem vergonha de fazê-lo, podem ser contados pelos dedos.
ou "um quadro medíocre", dando a impressão de que tem algo
objetivo a dizer. Toda a sua expressão revela que está dizendo A enfermidade do sentenciar é uma das mais difundidas
aquilo com gosto, com prazer. Mas a forma da declaração en- entre os homens, e praticamente todos nós somos atacados por
gana e logo passa ã ser interpretada como de índole pessoal. ela. Procuremos descobrir a raiz disto.
"Um mau poeta" ou "um mau pintor", acrescenta-se em se- O homem tem uma profunda necessidade de voltar sem-
guida, e isto soa como se se tivesse dito "um mau homem". pre a classificar todas as pessoas que possa imaginar. Dividindo
Sempre temos oportunidade de surpreender conhecidos, des- o número vago e amorfo dos existentes em dois grupos e colo-
conhecidos e até a nós mesmos neste processo de julgar. O pra- cando-os um diante do outro, ele lhes atribui algo semelhante
zer que uma sentença negativa proporciona é sempre incon- à densidade. Ele os concentra como se tivessem de lutar entre
fundível. si; ele os radicaliza e os enche de inimizade. Da maneira como
Trata-se de uma alegria dura e cruel que não se deixa os imagina, da maneira como os quer, eles têm necessariamen-
perturbar por coisa alguma. A sentença somente é uma sen- te de ficar uns contra os outros. A separação entre "bom" e
tença quando é emitida com segurança atemorizante. Ela igno- "mau" é um método antiqüíssimo de classificação dualista, que
ra a bondade, da mesma forma como ignora a prudência. A no entanto nunca é inteiramente conceitual e que nunca é to-
sentença é rapidamente encontrada; e combina perfeitamente talmente pacífica. Ela implica a existência de tensão entre os
com sua essência que ela seja formada sem reflexões. A paixão dois lados, e é importante que a sentença crie e renove esta
que ela revela deve-se à sua rapidez. A sentença incondicional tensão.
e a sentença dada às pressas espelham-se com prazer no rosto É a tendência à formação hostil de maltas que está na base
de quem as profere. deste processo. Em última instância, ela deve levar à formação
E em que consiste este prazer? Afasta-se algo de si, em- de maltas de guerra. Estendendo-se a todos os campos e a todas
purra-se algo para um grupo inferior, o que pressupõe que nós as atividades da vida, ela se dilui. Mas mesmo quando ela se
mesmos pertencemos a um grupo melhor. Nós nos elevamos desenvolve de forma pacífica, mesmo quando parece ser liqui-
rebaixando os outros. A existência da dualidade, que repre- dada em uma ou duas palavras da sentença, esta inclinação de
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levar a situação mais além, até o embate ativo e sangrento modelo elevado para todos os detentores do poder. Foi Ele
de duas maltas, sempre está presente como forma embrionária. também quem instituiu o complexo relacionamento de perdões;
Qualquer pessoa, nos mil relacionamentos de sua vida, quem se submete a Ele é recebido novamente em sua graça.
pertence desta forma a inúmeros grupos de "bons", que se Mas Ele analisa detalhadamente a conduta do seu servo e, dada
opõem a um número igualmente enorme de grupos de "maus". sua onisciência, é bastante fácil para Ele perceber até que ponto
Depende apenas das circunstâncias o fato de este ou aquele estão tentando enganá-lo.
grupo se exacerbar, se transformar em malta e se lançar sobre Não pode haver a menor dúvida de que muitas proibições
a malta inimiga. existem apenas para sustentar o poder dos que podem punir
Sentenças aparentemente pacíficas transformam-se em sen- ou perdoar as transgressões. A graça é um ato muito elevado e
tenças de morte contra o inimigo. Os limites dos bons ficam concentrado de poder, pois pressupõe a condenação; sem que
então precisamente delimitados e coitado do mau que ousar esta tenha ocorrido previamente, é impossível que aconteça o
ultrapassá-los! Ele nada tem a procurar entre os bons e deve ato da graça. Na graça também existe uma escolha. Não é cos-
ser aniquilado. tume indultar senão um número determinado e restrito de
condenados. Quem castiga tomará cuidado para não ser exces-
sivamente clemente; mesmo quando aparenta demência, quando
O poder do perdão. A graça se comporta como se a dureza da execução contrariasse sua
natureza mais íntima, ele se sentirá na necessidade de recorrer
O poder do perdão é um poder que cada um se reserva e a ela pelo sagrado dever de castigar. Mas deixa sempre aberto
todos o possuem. Seria curioso reconstruir uma vida segundo o caminho da graça, quer ele mesmo decida usá-la em casos
os atos de perdão que uma pessoa se permitiu. O homem de especiais, quer a recomende a uma instância superior encarre-
estrutura paranóica é aquele que dificilmente ou nunca conse- gada da sentença.
gue perdoar; ele avalia atentamente; nunca se esquece de nada O crescimento do poder culmina lá onde o indulto se ve-
onde existe algo para ser perdoado; arma-se de pretextos para rifica no último momento possível. Quando a morte que se
não perdoar. A principal resistência na vida de indivíduos decretou está para ser executada, no patíbulo da forca ou
desta espécie se dirige contra toda e qualquer forma de perdão. diante do pelotão de fuzilamento, o indulto aparece como sendo
Mesmo quando conseguem chegar ao poder, e para merecerem uma nova vida. O limite do poder está no fato de ele não poder
sua afirmação nele são obrigados a outorgar o perdão, isto realmente fazer com que os mortos retornem à vida; no entan-
ocorre apenas de forma aparente. O poderoso nunca consegue to, no ato longamente prolongado da graça, o poderoso se
perdoar realmente. Todo e qualquer ato de hostilidade perma- sente freqüentemente como se tivesse conseguido ultrapassar
nece rigorosamente registrado: apenas fica encoberto e guar- este limite.
dado em reserva. Muitas vezes o perdão é concedido em troca
de uma submissão verdadeira; os atos de generosidade dos
poderosos sempre têm este sentido. Eles desejam tanto a sub-
missão de tudo o que encontram que freqüentemente estão
dispostos a pagar um preço excessivamente elevado por ela.
O impotente, para quem o detentor do poder é descomu-
nalmente forte, não vê quanto é importante para este a sub-
missão completa de todos. Se ele tem alguma sensibilidade,
apenas conseguirá apreciar o aumento do poder tomando por
base seu peso efetivo, mas nunca será capaz de apreciar o que
significa para o rei resplandecente a genuflexão do último, do
mais esquecido e miserável de seus súditos. O interesse que o
Deus da Bíblia tem por cada uma das pessoas, a constância e
a preocupação com que cuida de cada alma devem servir de
332 333
A ORDEM
ordem: fuga e aguilhão
A

"Uma ordem é uma ordem": o caráter definitivo e indiscutí-


vel que é próprio da ordem pode também ter contribuído para
que tão pouco se tenha refletido a respeito dela. Ela é aceita
como algo que sempre existiu assim; parece ser tão natural
quanto indispensável. Desde pequeno se está acostumado às
ordens; elas formam uma boa parte daquilo que chamamos
educação; toda a vida adulta também está repleta delas, seja
nas esferas do trabalho, da luta ou da fé. Praticamente ninguém
se perguntou o que é exatamente uma ordem; se ela realmente
é tão simples quanto parece ser; se, apesar da rapidez e da
lisura com a qual provoca o previsto, não deixa outros vestí-
gios mais profundos, talvez até mesmo hostis, no homem que
obedece.
A ordem é mais antiga do que a fala, caso contrário os
cães não a poderiam entender. O adestramento dos animais
baseia-se justamente em que eles, sem conhecer a fala, apren-
dem a compreender o que se espera deles. Por meio de ordens
breves e muito claras, que em princípio não diferem das que
são dadas aos homens, lhes é comunicada a vontade do doma-
dor. Eles obedecem a esta vontade, da mesma forma como
acatam as proibições. Tem-se portanto todo o direito de buscar
raízes mais antigas da ordem; pelo menos está mais do que
claro que alguma forma de ordem existe também fora da so-
ciedade humana.
A forma mais antiga do efeito da ordem é a fuga. Ela é
ditada ao animal por alguém mais forte, por uma criatura fora
dele. A fuga é espontânea somente na aparência; o perigo sem-
pre tem uma forma; e sem supor esta forma, animal algum
fugiria. A ordem de fuga é tão forte e direta quanto o olhar.
Desde o começo pertence à essência da fuga a diversidade
de ambas as criaturas que desta maneira entram em relaciona-
mento uma com a outra. Uma delas apenas dá a entender que
quer devorar a outra: daí a seriedade mortal da fuga. A "or-
dem" obriga o animal mais fraco a se colocar em movimento,
independentemente de ele ser perseguido logo em seguida ou
não. Importa apenas a intensidade da ameaça: a intensidade da
voz, do olhar, da forma que impõe o terror.
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A ordem é derivada, portanto, da ordem de fuga: em sua minada, seja de forma expressa, seja de maneira claramente
forma mais primitiva, ela ocorre entre animais de diferentes wanif pela sua pr ópr ia natureza.
espécies, dos quais um ameaça o outro. A grande diferença de Aestaaçao q ue é execu tadaem virtude de uma ordem é dis-
poder entre ambos, o fato de que um deles — poderíamos estra-
tinta de todas as demais ações. É considerada como algo
dizer — está acostumado a servir de presa ao outro, o inaba- su a lembrança tem algo de passageiro. Alguma coisa dife-
lável desta relação que parece estar estabelecida desde sempre, nho;
rente passa junto à pessoa como um vento fugaz. A rapidez de
tudo isto confere algo de absoluto e de irrevogável ao aconte- execução que uma ordem exige talvez contribua para que ela
cimento. A fuga é a última instância à qual se pode apelar eja vista como algo estranho; mas só isso não é suficiente para
s
contra esta sentença de morte. O rugir de um leão que sai à fora.
explicá-la. Para a ordem é importante que ela venha de
caça realmente é uma sentença de morte: trata-se de um som Sozinho, ninguém teria tido tal idéia. Ela pertence aos elemen-
de sua fala que todas as suas vítimas entendem; e é possível que tos da vida que são impostos; ninguém os desenvolve dentro
esta ameaça seja a única coisa em comum entre elas, que são de si mesmo. Mesmo quando aparecem repentinamente homens
tão distintas entre si. A ordem mais antiga — dada muito solitários com uma massa monstruosa de ordens tentando fun-
antes de os homens existirem — é uma sentença de morte e dar uma nova fé, renovando uma fé antiga, a aparência de uma
obriga a vítima à fuga. Será bom lembrar isso quando abordar- carga alheia, imposta, é estritamente mantida. Estas pessoas
mos a questão da ordem entre os homens. A sentença de morte jamais falarão em seu próprio nome. O que elas exigem dos
e o seu terror desapiedado transparecem por trás de toda ordem. outros lhes foi ordenado; e, por mais que mintam em algumas
O sistema das ordens entre os homens está constituído de tal coisas, neste ponto sempre são sinceros: acreditam ter sido
forma que geralmente as pessoas escapam da morte; mas o enviados.
terror em relação a ela, a ameaça, está sempre contido na or- A origem da ordem, que é algo estranho, também deve
dem; além disso, a manutenção e a execução de verdadeiras ser considerada como algo mais forte. Obedece-se porque não
sentenças de morte mantêm desperto o terror diante de cada seria possível combater com perspectivas de êxito; quem ven-
ordem, diante das ordens de maneira geral. cesse, mandaria. O poder da ordem não deve ser colocado em
Mas agora esqueçamos por um momento o que já desco- dúvida; caso este poder tenha diminuído, ele deve estar dis-
brimos a respeito da origem da ordem e vamos contemplá-la posto a reafirmar-se por meio de lutas. Na maior parte das
sem preconceitos, como se o fizéssemos pela primeira vez. vezes este poder é reconhecido durante muito tempo. É sur-
A primeira coisa que chama a atenção numa ordem é o preendente notar quão poucas vezes se exigem novas decisões;
fato de ela provocar uma ação. Um dedo estendido apontando os efeitos das decisões antigas perduram. Lutas vitoriosas con-
numa determinada direção pode ter o efeito de uma ordem: tinuam vivendo nas ordens; em cada ordem obedecida renova-
todos os olhos que percebem esse dedo viram-se na direção se uma vitória antiga.
indicada. Parece portanto que a ação provocada, cuja direção Visto de fora, o poder de quem manda cresce de forma
está determinada, é tudo o que importa na ordem. Sua difusão incessante. A menor ordem consegue acrescentar-lhe algo. Ela
numa direção é particularmente importante; sua reversão é tão não é dada habitualmente apenas para ser útil a quem se uti-
imprópria quanto sua modificação. liza dela; existe também na natureza da própria ordem, no
É próprio da ordem não admitir réplica. Ela não deve ser reconhecimento que encontra, no espaço que atravessa, na sua
explicada, discutida ou colocada em dúvida. É clara e concisa, pontualidade peremptória, algo que garante ao poder uma
já que deve ser entendida imediatamente. Um atraso na recep- maior segurança e um crescimento de seu âmbito. O poder
ção prejudica sua força. Em cada repetição que não for se- emite ordens como uma nuvem de flechas mágicas: as vítimas
guida de execução, a ordem perde um pouco de sua vida; após que são atingidas por elas se oferecem ao todo-poderoso, cha-
algum tempo ficará esgotada ou impotente, prostrada no solo; madas, tocadas e conduzidas por essas flechas.
e nestas circunstâncias é melhor não tentar reavivá-la. Porque No entanto a simplicidade e a unidade da ordem que à
a ação que a ordem provoca está ligada ao seu instante. Ela primeira vista parecem ser absolutas e incontestáveis, quando
também pode ser fixada para mais tarde, mas deve estar deter- examinada s com maior atenção revelam-se aparentes. A ordem

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pode ser decomposta. É necessário decompô-la, caso contrário ,, ue haja uma oportunidade; a nova situação na qual esta or-
jamais conseguiremos compreendê-la realmente. dem se desprende deve assemelhar-se à situação antiga na qual
Toda ordem consta de um impulso e de um aguilhão. O ecebida. A reconstrução destas situações primordiais, mas
foi r
impulso força o receptor à execução, de um modo adequado de maneira inversa, é uma das grandes fontes de energia psí-
ao conteúdo da ordem. O aguilhão permanece dentro de quem quica do homem. O incentivo, a "espora", como se diz, para
executa a ordem. Quando as ordens funcionam normalmente, conseguir alcançar isto ou aquilo é o impulso mais profundo
como se espera delas, nada se vê deste aguilhão. Ele é secreto, para desfazer-se de ordens recebidas no passado.
não se suspeita de sua existência; talvez se manifeste, leve- Somente a ordem executada é que deixa o seu aguilhão
mente perceptível, numa pequena resistência antes de a ordem cravado em quem a cumpriu. Quem evita as ordens também
ser obedecida. não precisa armazená-las. O homem "livre" é somente aquele
Mas o aguilhão penetra fundo no homem que cumpriu que aprendeu a se desviar das ordens, e não aquele que somen-
uma ordem e permanece lá dentro,) inalterável. Entre todas as te mais tarde consegue se libertar delas, Mas quem necessita
configurações psíquicas não existe,qualquer outra coisa que seja de mais tempo para esta libertação, ou quem não é capaz disso,
menos mutável. O conteúdo da ordem mantém-se conservado sem dúvida alguma é a pessoa mais carente de liberdade.
no aguilhão; sua força, seu alcance, suas limitações, tudo foi Nenhum homem imparcial considera como uma carência
prefigurado para sempre no momento em que a ordem foi dada. de liberdade obedecer a seus próprios impulsos. Mesmo quan-
Podem-se passar anos ou décadas sem que esta parte aprofun- do estes impulsos se tornam mais fortes e sua satisfação leva
dada e armazenada da ordem (sua réplica em ponto pequeno) às mais perigosas complicações, o indivíduo tem a impressão
apareça novamente. Mas é importante saber que ordem alguma de que está agindo a partir de sí mesmo. Mas, quando ele se
se perde; ela nunca se acaba realmente com sua execução — opõe dentro de si à ordem que lhe foi dada de fora para dentro
ela é armazenada para sempre. e que ele foi obrigado a executar, então fala-se de pressão, e
Os receptores de ordens mais afetados são as crianças. a pessoa se reserva o direito de reversão ou de rebelião.
Parece um milagre que elas não sucumbam debaixo do peso
de tantas ordens, que elas consigam sobreviver aos mandos e
desmandos de seus educadores. O fato de elas, com a mesma A domesticação da ordem
crueldade de seus educadores, transmitirem posteriormente tudo
isso aos seus próprios filhos é algo tão natural quanto mastigar A ordem de fuga, que contém uma ameaça de morte, supõe
e falar. Mas o que sempre causará surpresa é que elas tenham uma grande diferença de poder entre os participantes. Quem
mantido intactas as ordens desde a mais tenra infância; estas coloca outro em fuga poderia matá-lo. Na natureza esta situa-
ordens estão à disposição assim que a próxima geração ofereça ção fundamental se deve ao fato de que muitas espécies ani-
suas vítimas. Nenhuma ordem foi modificada no menor deta- mais se alimentam de outros animais. É de outras espécies que
lhe sequer; ela poderia ter sido dada uma hora atrás apenas, elas vivem. Por este motivo, a maior parte dos animais se sente
mas na verdade ela foi dada há vinte, trinta ou mais anos. ameaçada por outros de. outra espécie, recebendo deles, estra-
A força com que a criança recebe ordens, a tenacidade e fide- nhos e inimigos, a ordem de fuga.
lidade com que as guarda dentro de si não são um mérito indi- Mas o que nós na vida comum chamamos ordem se de-
vidual. Inteligência ou talento especial nada têm a ver com isso. senvolve entre os homens: o senhor manda no seu escravo, a
Toda a criança, até mesmo a mais comum, não perde nem mãe manda no seu filho. A ordem, tal como nós a conhecemos,
perdoa nenhuma das ordens com as quais foi maltratada. evoluiu afastando-se de sua origem biológica: da ordem de
É mais fácil que se modifique o aspecto de um homem, fuga. Ela se domesticou. Ela é empregada nas relações sociais
as características pelas quais os outros o reconhecem — a pos- em geral, mas também na mais íntima convivência humana.
tura da cabeça, a expressão da boca, o modo de olhar —, do Ela é bastante diferente do que descrevemos como ordem de
que a imagem da ordem que permaneceu dentro dele como fuga. O senhor chama o escravo e este se aproxima, mesmo
um aguilhão e que foi armazenada de maneira inalterável. Inal- sabendo que irá receber uma ordem. A mãe chama seu filho e
terada, a ordem volta a ser expulsa, mas para isto é preciso não é sempre que este escapa. Apesar de ela sobrecarregá-lo
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com ordens de todos os tipos, de maneira geral mantém-se o permanece cravada em quem foi atingido; este pre-
A ordem xtraí-1a e atirá-la por sua vez para livrar-se de sua ameaça.
carinho. O filho permanece na sua proximidade, vem correndo
em direção a ela. O mesmo também é válido para o cachorro : cisa eerdade o processo da transmissão de ordens se desenvolve
ele sempre permanece nas proximidades do seu dono, e ven Na v destinatário extraísse a ordem de si mesmo, rete-
Como s- o
correndo assim que ouve o assobio. seu próprio arco e voltasse a disparar outra vez a mesma
sasse a qual foi. atingido. A ferida no seu próprio corpo
Como se chegou a esta domesticação da ordem? O que
tornou inócua a ameaça de morte? A explicação desta evolu- porém uma cicatriz. Cada cicatriz tem uma his-
ção está no fato de que em cada um destes casos pratica-se laerrcaiha,,adéecioaxmando deixada por uma determinada flecha.
sftó marca
uma espécie de suborno. O senhor dá a comida ao seu cão ou Mas o mandatário que dispara a flecha percebe um ligei-
ao seu escravo, a mãe alimenta seu filho. A criatura em estado ao fazê-lo. O próprio efeito, por assim dizer, o
ro contragolpe
de submissão está acostumada a receber seu alimento apenas contragolpe psíquico, ele o sente quando percebe que atingiu
de uma única mão. O escravo ou o cão recebem seu alimento o alvo. Neste ponto termina a analogia com a flecha física.
exclusivamente do seu dono; nenhuma outra pessoa tem obri- Mas é muito mais importante observar as marcas que o disparo
gação de fazê-lo; na verdade nenhuma outra pessoa deve ali- bem-sucedido deixa no atirador contente.
mentá-los. A relação de propriedade consiste em parte em que A satisfação pelas ordens cumpridas, ou seja, pelas ordens
todo e qualquer alimento chegue a eles apenas pelas mãos do dadas com êxito, engana em grande parte sobre o que acontece
dono. A criança, porém, ainda não é capaz de se alimentar sozi- com o atirador. Existe sempre como que a percepção de um
nha. Desde o seu primeiro momento de vida ela depende do contragolpe; o que a pessoa fez fica também estampado nela,
peito materno. não apenas na vítima. Muitos contragolpes se acumulam dando
Entre a entrega do alimento e a ordem criou-se uma es- origem ao medo. Trata-se de um tipo especial de medo aquele
treita relação. Muito claramente esta relação aparece na prática que resulta da freqüente repetição de ordens; por este motivo
do adestramento de animais. Quando o animal fez o que devia prefiro denominá-lo o medo de mandar. Ele é menor na pessoa
fazer, recebe uma guloseima da mão do domador. A domesti- que apenas transmite ordens. É tanto maior quanto mais perto
cação da ordem a transforma numa promessa de alimento. Em esteja quem dá as ordens da fonte de mando propriamente
vez de ameaçar com a morte e de provocar a fuga, promete-se dita.
o que toda criatura deseja em primeiro lugar, e cumpre-se es- Não é difícil compreender como se produz este medo de
tritamente a promessa feita. Em vez de servir de alimento ao mandar. Um disparo que mata um ser isolado não deixa após
seu dono, em vez de ser devorada, a criatura à qual se dá este si perigo algum. O morto já não nos pode causar mal algum.
tipo de ordem recebe o que comer. Uma ordem que ameaça de morte, mas que 'apesar disso não
Esta desnaturação da ordem de fuga biológica educa ho- mata, deixa a recordação da ameaça. Algumas ameaças se per-
mens e animais para uma espécie de cativeiro voluntário, do dem e outras atingem o alvo; são justamente estas que jamais
qual existerrn todos os tipos de intensidade e de nuanças. En- são esquecidas. Quem fugiu perante a ameaça ou quem cedeu
tretanto isto não modifica inteiramente a essência da ordem. a ela certamente irá se vingar. Pessoas nestas situações sem-
Ela passa a ser atenuada, mas existem sanções expressas em pre se vingam quando chega o momento adequado e aquele de
casos de desobediência; estas sanções podem ser muito severas quem partiu a ameaça tem plena consciência disso; ele precisa
e a mais severa de todas é a sanção primitiva, ou seja, a morte. fazer tudo o que lhe for possível para impedir que ocorra uma
inversão dos papéis.
Há um sentimento de perigo que consiste em saber que
Contragolpe e medo de mandar todo aquele a quem se deram ordens, a quem se ameaçou de
morte, vive e se recorda; nesse perigo se sentiria alguém, se
Uma ordem é como uma flecha. Ela é disparada e acerta. O todos os que foram ameaçados de morte se unissem contra ele.
mandatário faz pontaria antes de dispará-la. Ele irá acertar Trata-se de um sentimento profundamente motivado, que no
um alvo muito determinado com sua ordem; e a flecha tam- entanto é impreciso porque nunca se sabe quando os ameaça-
bém sempre tem uma direção que foi previamente escolhida. dos passarão da lembrança para a ação. Este torturante, ines-
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gotável e ilimitado sentimento de perigo eu defino como medo A massa, em estado de medo, quer permanecer junta. No
de mandar. auge do seu perigo ela se sente protegida apenas quando sente
Ele é tanto maior quanto mais elevada for a posição da a proximidade dos outros. Ela é massa principalmente pela
pessoa. Na fonte da ordem, na pessoa que dá as ordens a direção comum da fuga. Um animal que escapa e que se loco-
partir de si mesma, que não as recebe de qualquer outra pes- move numa direção própria está mais exposto do que os de-
soa, que por assim dizer gera as próprias ordens, a concen- mais. Além disso ele sente o perigo com maior intensidade
tração do medo de mandar alcança sua densidade máxima. porque está só: seu medo é muito maior. A direção comum
Esse medo pode permanecer durante muito tempo domesti- dos animais que fogem poderia ser chamada sua "convicção";
cado e oculto nos detentores do poder. Ele pode ir aumen- o que os mantém unidos os empurra para a frente com maior
tando no decorrer da vida de um governante, e manifestar-se vigor. Eles não sentem pânico enquanto não estejam abando-
numa espécie de delírio cesarista. nados,enquanto cada animal ao lado faça a mesma coisa e
esteja realizando exatamente os mesmos movimentos. Esta fuga
em massa, pelo movimento paralelo das patas, dos pescoços
A ordem a muitos e das cabeças, assemelha-se ao que, entre os seres humanos, eu
chamaria de massa palpitante ou rítmica.
É preciso distinguir entre a ordem dada a um indivíduo e a Entretanto, assim que os animais estão cercados, a ima-
que é dada simultaneamente a muitos. gem se modifica. Uma direção comum de fuga já não é mais
Já na origem biológica da ordem existe essa diferença. possível. A fuga em massa se transforma agora em pânico:
Alguns animais vivem isolados e recebem a ameaça dos seus cada animal procura salvar-se a si próprio e atrapalha o outro.
inimigos de forma individual. Outros vivem em bandos e são O anel em torno deles se contrai sempre mais. No massacre
ameaçados coletivamente. No primeiro caso o animal foge ou que agora tem início, um animal é inimigo do outro, uma vez
se esconde sozinho. No segundó caso foge o bando todo. Um que todos se bloqueiam mutuamente o caminho da salvação.
animal que normalmente vive em bandos, mas que por ca- Mas voltemos à ordem propriamente dita. A ordem dada
sualidade é surpreendido sozinho pelo inimigo, procura fugir a indivíduos, dissemos, é diferente da ordem dada a muitos.
e reintegrar-se no bando. A fuga individual e a fuga em massa Antes de fundamentar esta frase, é recomendável falar a res-
são diferentes a partir da própria base. O medo em massa de peito de sua exceção mais importante.
um bando que foge é o mais antigo e, seria possível dizer, o Um acúmulo artificial de muitos é o que se dá no exér-
mais familiar de todos os estados de massa que se conhecem. cito. Nele anulam-se as espécies diferentes de ordens; justa-
É muito provável que a partir desse medo de massa tenha mente isto constitui sua essência. Que a ordem se dirija a
se derivado o sacrifício. Um leão que está perseguindo um indivíduos, sejam poucos ou muitos, aqui não faz diferença.
bando de gazelas, todas fugindo juntas com medo dele, cessa Um exército existe somente se a ordem é equivalente e cons-
sua perseguição assim que consegue agarrar um dos animais. tante. Ela vem de cima e permanece estritamente isolada. Desta
Este animal é sua oferenda no sentido mais amplo da palavra. forma o exército nunca pode ser uma massa.
Ele proporciona tranqüilidade aos demais companheiros do Porque na massa a ordem se expande horizontalmente
bando. Assim que o leão obtém o que quer e os demais ani- entre seus membros. No começo é possível que ela alcance um
mais percebem que isso acontece, o medo diminui. Da fuga indivíduo isolado, vinda de cima. Porém, como existem outros
de massa, eles tornam a entrar no estado normal do bando: iguais a ele a seu redor, ela se transmite também a eles. No
cada animal pasta livremente e faz o que deseja. Se as gazelas seu medo, o indivíduo se aproxima mais dessas pessoas. Ime-
tivessem religião, se o leão fosse o deus delas, elas poderiam, diatamente os demais passam a ser contagiados. Primeiro
para saciar sua avidez, entregar-lhe por iniciativa própria uma alguns se colocam em movimento; pouco depois outros se-
gazela. Exatamente isto é o que acontece entre os homens: a guem esse exemplo, e logo todos estão se movimentando. Pela
partir do estado de medo de massa, deriva-se entre eles o sa- expansão instantânea da mesma ordem, essas pessoas se trans-
crifício religioso. Graças a ele detêm-se a perseguição e a fome formaram em massa. Agora todos fogem juntos.
do poder perigoso durante um certo tempo. Uma vez que a ordem é imediatamente difundida, ela não
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rivremen
deixa aguilhão ou espinho. Não existe tempo para que isso todas as demais ações, que os demais homens executam
aconteça; o que se teria convertido num elemento permanente te (ou assim pensam), o deixa ávidÕ das ações que
é imediatamente dissolvido. A ordem dada à massa não deixa de executar.
aguilhão. A ameaça, que leva à fuga em massa, se dissolve tos
precisamente nessa fuga. A sentinela, que permanece imóvel durante horas em seu
o melhor exemplo da constituição psíquica do sol,
É a situação de ordem isolada exclusivamente que nos posto, a não pode se afastar, não pode adormecer, não pode
do. ElEla
leva à formação do aguilhão-ordem. A ameaça, que comporta
se movimentar, a não ser que lhe tenham sido prescritos certos
uma ordem dada a um ser singular, não pode dissolver-se com- movimentos, fixados nos menores detalhes. Seu serviço pro-
pletamente. Qualquer pessoa que tenha cumprido uma ordem ríamente dito é a resistência a qualquer tentação de abando-
sozinha conserva sua resistência como aguilhão, como espinho
Pna r seu posto, seja qual for a forma sob a qual esta tentação
dentro de si, um duro cristal de rancor. Somente consegue des- possa aparecer. Esse negativismo do soldado, como poderia
fazer-se dele, dando ela mesma uma ordem idêntica. Seu agui- ser definido, é sua espinha dorsal. Todos os motivos habituais
lhão nada mais é do que o retrato fiel e oculto da ordem que
de ação, como os desejos, o temor, a inquietude, que consti-
recebeu e que não pôde transmitir no mesmo momento. So- tuem a essência da vida do homem, são reprimidos dentro
mente na forma desse retrato fiel é que a pessoa consegue dele. E ele os combate melhor quando nem sequer chega a
libertar-se do aguilhão.
confessá-los.
Uma ordem dada a muitos tem portanto um caráter muito Todo ato que ele então realmente executa deve estar san-
peculiar. Sua meta é transformar uma maioria numa massa cionado por uma ordem. Como é muito difícil para um homem
e, à medida que consegue fazer isso, não dá origem ao
não fazer coisa alguma, acumula-se dentro dele uma grande
medo. A "palavra de ordem" de um orador que impõe uma expectativa pelo que lhe é permitido empreender. O desejo de
direção aos homens reunidos tem exatamente esta função, e ação se represa e cresce até atingir proporções desmedidas.
pode ser considerada como uma ordem dada a muitos. Do Mas, como antes da ação existe uma ordem, a expectativa se
ponto de vista da massa, que gostaria de se formar rapida- volta para esta: o bom soldado está sempre em estado de
mente e manter-se como unidade, essas palavras de ordem são consciente espera de ordens. Esta espera é ampliada de todas
úteis e indispensáveis. A arte do orador consiste em conseguir as formas possíveis pela educação; ela se manifesta claramente
resumir e expressar vigorosamente tudo o que deseja em pa- nas posturas e nas fórmulas militares. O momento vital na
lavras de ordem que ajudam a constituição e a manutenção da existência do soldado é o da posição de atenção diante de seu
massa. Ele gera a massa e a mantém viva através de uma ordem superior. Num estado de tensão e de receptividade máximas,
superior. Depois de ter conseguido isso, não tem muita impor- ele se coloca diante do superior e a fórmula que pronuncia
tância o que ele realmente irá exigir dela. O orador pode insul- — "Às suas ordens!" — expressa com grande precisão do
tar e ameaçar um aglomerado de indivíduos isolados da ma- que se trata.
neira mais terrível; mesmo assim eles o amarão, se dessa ma- A educação do soldado começa no momento em que lhe
neira ele conseguir formá-los como massa. são proibidas muito mais coisas do que aos demais homens.
Para as menores transgressões existem castigos severos. A es-
fera do proibido, com a qual já está familiarizado desde criança,
Espera de ordens se amplia até atingir o gigantesco para o soldado. Muros e
mais muros são construídos em torno dele; muros que são ilu-
O soldado em serviço apenas cumpre ordens. É possível que minados para ele, e que dão a impressão de crescer diante dele.
tenha vontade de fazer isto ou aquilo, mas como é soldado Sua altura e severidade se igualam à sua claridade. Constante-
isso não conta. Ele não pode encontrar-se diante de encruzi- mente fala-se a respeito desses muros; o soldado não pode
lhadas; e mesmo que se encontrasse não seria ele quem iria alegar desconhecê-los. Começa então a se movimentar como se
decidir qual dos caminhos tomar. Sua vida ativa está restrin- eles estivessem sempre ao seu redor. O aspecto anguloso do
gida por todos os lados. Ele faz o que todos os demais sol- soldado é como um eco, em seu corpo, da dureza e da lisura
dados fazem com ele; e faz o que lhe é ordenado. A eliminação desses muros ; ele adquire algo de uma figura estereométrica.

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É um prisioneiro que se adaptou aos seus muros; um prisio- A pessoa que deve dar ordens num exército deve poder
neiro que está satisfeito; que se defende tão pouco contra a rqanter-se livre de toda e qualquer massa — fora dele, dentro
situação em que se encontra quanto os muros que o moldam. ele.
- Ela aprendeu isso tendo sido educada para esperar ordens.
Enquanto outros prisioneiros vivem apenas de uma única idéia
(como conseguir saltar ou perfurar seus muros), o soldado os
aceita como uma nova natureza, como um ambiente natural Espera de ordens dos peregrinos em Arafat
ao qual se adapta, no qual ele mesmo acaba se transformando.
Somente quem incorporou dentro de si, desta maneira o momento mais importante durante a peregrinação a Meca,
intensa, a medida plena das proibições, quem através dos afa-
zeres de todos os dias — e isto dia após dia — demonstrou a culminação propriamente dita, é o wukzif ou o "ficar parado
em Arafat", a estação antes de Alá, a algumas horas de dis•
que sabe se esquivar da maneira mais precisa de todas as coisas tância de Meca. Uma multidão enorme de peregrinos — às
que são proibidas é que passa realmente a ser soldado. Para vezes seiscentos ou setecentos mil homens — acampa num
ele, a ordem tem um valor superior. É como a saída de uma vale rodeado de penhascos áridos e estende-se em direção ao
fortaleza, dentro da qual se tenha permanecido durante tempo Monte da Comiseração, situado no centro desse vale. Um pre-
demasiado. A ordem o atinge como um raio que o lança contra gador se encontra no local onde em outros tempos esteve o
os muros do que é proibido; como um raio que mata apenas profeta, e pronuncia um sermão solene.
esporadicamente. Neste enorme deserto monótono das coisas A multidão lhe responde com o grito: "Labbeika ya Rabbi,
proibidas que se estende por todos os lados em torno dele, a
labbeika! Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos tuas
ordem acontece como uma redenção: a figura estereométrica se ordens!" Este grito é repetido durante o dia todo de forma
anima e se coloca em movimento ao ouvir a voz de comando. incessante e vai aumentando até a demência. Então, numa es-
Faz parte da formação do soldado que ele aprenda a re- pécie de repentino medo de massa — chamado ifadha ou
ceber ordens de duas maneiras; sozinho ou na companhia de "rio" —, todos fogem juntos como possessos de Arafat em
outros. Os exercícios o habituaram a movimentos que são exe- direção à localidade vizinha de Mozdalifa, onde passam a noite,
cutados juntamente com os demais; todos devem realizá-los de indo no dia seguinte para Mina. Todos correm numa terrível
maneira absolutamente idêntica. Trata-se de uma espécie de confusão, empurrando-se e pisoteando-se uns aos outros; esta
precisão que se aprende melhor pela imitação dos demais do correria geralmente custa a vida de vários peregrinos. Uma vez
que sozinho. Desta forma o indivíduo torna-se igual aos outros; em Mina são sacrificados muitos animais, cuja carne é consu-
estabelece-se uma igualdade que eventualmente pode ser uti- mida imediatamente por todos. O solo fica empapado de san-
lizada para transformar a divisão do exército em massa. Nor- gue e encontram-se restos de animais por todos os lados.
malmente, porém, deseja-se exatamente o contrário: igualar o A parada em Arafat é o momento no qual a espera de
mais possível os soldados, sem que eles se transformem em ordens das massas de crentes alcança sua intensidade máxima.
massa. A fórmula concisa repetida milhares de vezes, "Aguardamos
Quando estão juntos como unidade, eles reagem a todas tuas ordens, Senhor! Aguardamos tuas ordens", expressa isto
as ordens dadas em conjunto. No entanto, deve continuar exis- com muita clareza. O Islamismo, a submissão estão reduzidos
tindo a possibilidade de separá-los: um, dois, três homens, aqui ao seu denominador mínimo, um estado no qual os ho-
metade deles, quantos o comandante desejar. O fato de eles mens pensam apenas nas ordens do Senhor e clamam por elas
marcharem juntos deve ser exterior; a divisibilidade da divisão com toda a violência imaginável. O medo súbito que se pro-
constitui sua utilidade. A ordem deve sempre poder atingir o duz a um determinado sinal e que provoca uma fuga em massa
número que se quiser: um, vinte ou a divisão inteira. Sua efi- sem paralelo tem uma explicação: o antigo caráter da ordem,
ciência não pode depender da quantidade dos que são atingidos. que é uma ordem de fuga, irrompe sem que os crentes possam
É a mesma ordem, pouco importando que seja apenas um quem saber por que isso acontece. A intensidade de sua expectativa
a recebe ou todos. Esta natureza invariável da ordem é da como massa aumenta ao máximo o efeito da ordem divina, até
maior importância: ela a subtrai de todas as influências da que se converte no que toda ordem originalmente é: uma
massa. ordem de fuga. A ordem de Deus coloca os homens em fuga.
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A continuação desta fuga no dia seguinte, depois de terem Pode parecer estranho que se qualifique como secreta
passado a noite em Mozdalifa, demonstra que o efeito da tuna coisa tão conhecida como a promoção. Mas a promoção
ordem ainda não se esgotou. .oenas é a expressão pública de uma coisa muito mais pro-
Segundo a concepção islâmica, é a ordem imediata de .f-uri-ida que permanece secreta, porque na maneira de sua função
Deus que traz a morte aos homens. Eles procuram escapar é• pouco comi,reendida• A promoção é a expressão do que existe
desta morte e a transferem para os animais que são sacrifica. aguilhão-ordem.
de oculto no
dos em Mina, ponto final dessa fuga. Os animais tomam aqui É evidente que esses aguilhões devem acumular-se de
o lugar dos homens, substituição corrente em muitas religiões ; maneira francamente monstruosa no soldado. Tudo o que ele
basta lembrar, por exemplo, o sacrifício de Abraão. Desta ma- faz, é obedecendo a uma ordem; ele não faz outra coisa, não
neira os homens escapam do banho de sangue que Deus lhes deve fazer outra coisa; é exatamente isto que a disciplina de-
destinou. Eles se submeteram às ordens Dele, tanto que fugi- clarada exige deles. Seus próprios impulsos espontâneos são
ram de sua presença, não o privando sequer do sangue: o solo reprimidos. Ele engole ordens e mais ordens e, como quer que
finalmente fica encharcado com o sangue dos animais sacrifi- ele se sinta durante essas ações, jamais pode cansar-se delas.
cados em massa. Para cada ordem que ele executa — e executa todas as ordens
Não existe nenhum outro costume religioso que torne tão que recebe — fica um aguilhão, um espinho, dentro dele.
evidente a natureza íntima da ordem como a parada em Arafat, A saturação desses aguilhões dentro dele é um processo
o wukuf e a fuga em massa que ocorre logo em seguida, o rápido. Se ele está servindo como soldado raso, no mais baixo
ifadha. No Islamismo, onde o mandamento religioso ainda degrau da hierarquia militar, lhe é negada toda e qualquer
possui muito do caráter imediato da própria ordem, a espera oportunidade para se desfazer dos seus aguilhões, pois ele
de ordens e a própria ordem de forma geral se revelam da próprio não pode dar ordem alguma. Somente pode fazer o
maneira mais pura possível no wukuf e no ifadha. que lhe é ordenado. Obedece e vai se tornando cada vez mais
rígido em sua obediência.
Uma mudança nesse estado, que possui algo de violento,
Aguilhão-ordem e disciplina somente é possível mediante uma promoção. Assim que ele
é promovido, deve começar a dar ordens também, e fazendo
A disciplina constitui a essência do exército. Mas trata-se de isso começa a livrar-se de uma parte dos seus aguilhões. Sua
uma disciplina dupla: uma declarada e outra secreta. A dis- situação — se bem que de maneira muito restrita — se inver-
ciplina declarada é a ordem: já se mostrou como o estreita- teu. Ele deve exigir coisas que anteriormente foram exigidas
mento da fonte de ordens conduz à formação de uma criatura dele próprio. O modelo da situação permaneceu exatamente o
extremamente curiosa, mais figura estereométrica do que cria- mesmo; somente sua posição é que se modificou dentro dele.
tura humana propriamente dita: o soldado. O que mais o ca- Seus aguilhões aparecem agora como ordens. O que antes lhe
racteriza é o fato de viver sempre em estado de espera de era ordenado por seu superior imediato, ele próprio começa a
ordens. Este estado marca sua atitude e sua estatura; o soldado ordenar. Não depende dos seus caprichos a libertação dos seus
que sai deste estado já não está mais a serviço — simplesmente aguilhões, mas ele é colocado numa posição que é ideal para
é uma pessoa que usa uniforme para combinar com as apa- que isso aconteça: deve dar ordens. Cada posição permaneceu
rências. A constituição do soldado é reconhecível por todas as exatamente a mesma, cada palavra continua sendo exatamente
pessoas, ela não poderia ser mais pública do que é. a mesma. Outros ficam parados diante dele, exatamente na
Mas esta disciplina declarada não é tudo. Com ela existe mesma posição que ele assumia anteriormente. Dele se ouve
outra a respeito da qual o soldado não fala, e que ele nem a mesma fórmula que ele ouvia antes, com o mesmo tom de
deveria mostrar: uma disciplina secreta. Para certos tipos mais voz, carregada com a mesma energia. A identidade da situa-
obtusos é possível que esta outra disciplina se torne consciente ção tem algo de macabro: é como se ela tivesse sido inventada
apenas algumas vezes. Mas na maioria dos soldados, principal- unicamente para satisfazer seus aguilhões-ordens. Com o que
mente em nosso tempo, ela sempre está desperta, se bem que antes o atingia, ele passa agora a atingir outros.
de maneira oculta. Trata-se da disciplina da promoção. Mas, embora ele agora tenha chegado a um nível onde
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seus antigos aguilhões-ordens podem manifestar-se embora
— por assim dizer — se exija agora que eles falem, ele coo_ quee se formou entre eles uma relação inteiramente
soar
aedip submissão de uma intimidade que não é possível
tinua recebendo ordens de cima. O processo então se torna ...c
duplo: ao mesmo tempo que ele se desfaz dos seus antigos r—rraalinente•
po distância física que normalmente existe entre quem
aguilhões-ordens, vão se acumulando novos aguilhões dentro A
dele. Agora são um pouco mais fáceis de serem suportados do _da e quem obedece, e também entre o dono e o seu ca-
que antes, pois o processo da promoção que foi iniciado lhe rro, por exemplo, deixa de existir neste caso. É o corpo do
confere asas: a esperança fundamentada de que ele irá conse- leiro que transmite as indicações ao corpo do cavalo. O
cava de comando reduz-se a um mínimo. Os aspectos dis-
guir livrar-se também desses novos aguilhões. espaço
tantes, estranhos, vagos, que pertencem ao caráter original da
Resumindo este processo, podemos dizer o seguinte: a m, desaparecem. A ordem neste caso é domesticada de
disciplina declarada do exército se expressa na emissão atual orde
neira muito especial; um novo agente se introduziu na
de ordens; a disciplina secreta consiste na utilização dos agui- ma
história das relações entre as criaturas: a cavalgadura; o ser-
lhões-ordens que foram armazenados.
vidor sobre o qual o dono se assenta, o servidor que está
exposto ao peso físico do dono e que cede a cada pressão do
Ordem. Cavalo. Flecha seu corpo.
Como o repercute esta relação com o cavalo sobre o exer-
cício de comando do cavaleiro? É preciso notar, em primeiro
Na história dos mongóis chama a atenção a estrita e original lugar, que o cavaleiro tem a possibilidade de transmitir ao seu
relação existente entre ordem, cavalo e flecha. Nesta relação
cavalo as ordens que recebe de um superior. A meta que lhe
podemos ver a razão principal do aumento súbito e repentino
é fixada, ele não a alcança correndo pessoalmente em sua
do poder deles. Uma análise desta relação é indispensável e
será tentada aqui em rápidas palavras. direção; ele transmite ao seu cavalo a ordem de chegar até lá.
Uma vez que isto ocorre de imediato, ele não mantém em si
A ordem, como sabemos, deriva biologicamente da ordem
o aguilhão desta ordem. Ele evita isso pela transmissão da
de fuga. O cavalo — como todos os demais animais ungulados
que se assemelham a ele — foi adaptado durante toda sua his- ordem ao seu cavalo. A limitação específica de liberdade que
tória a esta fuga; seria possível até mesmo afirmar que sua pró- esta ordem lhe teria ocasionado escapa-lhe antes mesmo de ele
pria finalidade era a fuga. Ele sempre viveu em manadas e estas ter a oportunidade de senti-la de fato. Quanto mais rapidamente
manadas estavam acostumadas a fugir em conjunto. A ordem ele realiza seu encargo, quanto mais depressa montar, quanto
para isto lhes era dada pelos perigosos animais de presas que mais depressa cavalgar, tanto menor será o aguilhão que irá
pretendiam tirar-lhes a vida. A fuga de massa passou a ser permanecer nele. A arte propriamente dita destes cavaleiros,
uma de suas experiências mais freqüentes e como que uma quando reveste o caráter militar, consiste no fato de eles serem
característica natural dos cavalos. Quando o perigo passa, ou capazes de adestrar uma massa muito maior de receptores de
quando eles acreditam que o perigo tenha passado, retomam ordens, aos quais transmitem sem demora tudo o que eles pró-
sua despreocupada vida gregária, onde cada um faz o que lhe prios receberam de cima.
agrada. A organização militar dos mongóis possuía uma disciplina
O homem que se apoderou do cavalo, que o domesticou, especialmente rígida. Aos povos que eles atacaram e que foram
forma uma nova unidade com ele. O mesmo homem aprendeu forçados à submissão, e que tinham oportunidade de observá-los
uma série de procedimentos que podem ser considerados como mais detalhadamente, esta disciplina parecia ser o que de mais
ordens. Alguns destes procedimentos são constituídos por sons; surpreendente e severo jamais tinham visto. Fossem eles per-
em sua maioria, porém, são formados por movimentos bastante sas,árabes ou chineses, russos, húngaros ou os monges fran-
determinados de pressão e de tração que transmitem ao ca- oiscaooques chegaram até lá como embaixadores do papa, a
valo a vontade do cavaleiro. O cavalo compreende os impulsos todos era igualmente incompreensível que seres humanos pu-
da vontade do cavaleiro e obedece a eles. Entre os povos de dessem obedecer de maneira tão incondicional. Esta disciplina
cavaleiros, o cavalo é tão necessário e tão familiar ao seu era suportada com facilidade pelos mongóis (ou tártaros, como
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freqüentemente eram chamados) porque a parte deste povo matam em movimento, a partir do dorso de um
que realmente arcava com o peso principal eram os cavalos. çàvaio. bservamos que toda ordem, desde sua origem bioló-
Crianças pequenas de dois ou três anos de idade já eram já o
colocadas sobre o dorso de um cavalo para aprenderem a mon- gica, leva acoplada uma sentença de morte. Quem não foge é
tar. Já mencionamos que, na primeira fase da educação de uma atingido. Quem é atingido é destroçado.
criança, ela é literalmente crivada de aguilhões-ordens. Princi- Entre os mongóis a ordem manteve o seu caráter de sen-
palmente pela mãe, desde muito cedo e de muito perto, mas tenç de morte em grau muito mais elevado. Eles matam ho-
a
também pelo pai, mais tarde e a uma distância maior, e por ens como se fossem animais. Matar é sua terceira natureza,
m
qualquer pessoa encarregada de sua educação. Na prática, qual- do mesma forma que cavalgar é a segunda.
quer pessoa adulta ou de idade maior que esteja em contato Suas matanças de seres humanos se assemelham muito às
com a criança não se cansa de sobrecarregá-la com determina. suas caçadas de animais. Quando não estão em guerra, vão à
são as caçadas. Eles devem ter ficado
ções, ordens e proibições. Desde cedo vão se acumulando na caça; suas manobras
criança todos os tipos de aguilhões; são eles que se transfor- altamente assombrados quando, no decorrer de suas vastas
marão posteriormente nas coerções e coações de sua vida, for- expedições de conquistas, encontraram budistas e cristãos, cujos
çando-a a procurar outras criaturas nas quais possa desfazer-se sacerdotes lhes falavam a respeito do valor especial de toda
espécie de vida. Um contraste maior dificilmente pode ter
dos seus aguilhões. Sua existência se transforma numa aven-
tura de procurar livrar-se desses aguilhões, sem saber por que existido: os mestres da ordem pura, que a encarnam por
instinto, se encontram com aqueles que por meio de sua reli-
comete esta ou aquela ação inexplicável, por que estabelece esta
gião a querem enfraquecer ou modificar a ponto de perder
ou aquela relação aparentemente absurda.
suas características letais, transformando-a em algo humano.
A criança mongol que aprende a cavalgar tão cedo tem
portanto, em comparação 'às crianças de culturas sedentárias e
superiores, uma liberdade de tipo muito particular. Assim que
Castrações religiosas: os skoptsys
ela passa a entender de cavalos, pode transmitir a estes tudo
o que lhe for ordenado. Desde muito cedo esta criança se livra
Sabe-se de alguns cultos religiosos que são celebrados com
dos aguilhões que — em medida muito menor — também
tanta intensidade que acabam induzindo à prática de castra-
pertencem à sua educação. O cavalo faz o que a criança deseja,
ções. Na Antiguidade, os sacerdotes da Grande Mãe Cibele
muito antes que o faça qualquer outra pessoa. Essa criança se
eram conhecidos por esse motivo. Existiram milhares deles que
habitua a tal obediência, e assim vive mais aliviada; mais
num ataque de frenesi se castraram em homenagem à sua
tarde, porém, exigirá da pessoa por ela subjugada o mesmo deusa. Em Comana, nas imediações do Ponto, onde se erguia
tipo de comportamento, ou seja, uma submissão física de na- um célebre santuário dedicado à deusa, dez mil seres humanos
tureza absoluta. estavam a seu serviço nessas condições. Não eram apenas ho-
A esta relação — de importância decisiva para o exercí- mens que se consagravam dessa forma. Mulheres que queriam
cio do comando — entre o homem e o cavalo, acrescenta-se expressar sua veneração emputavam os seios e se incorporavam
em segundo lugar para os mongóis o significado da flecha. à corte da deusa. Em sua obra Sobre a Deusa Síria, Luciano
Ela é a réplica exata da ordem primordial, não domesticada. narra como os fiéis caem em delírio durante uma reunião e
A flecha é hostil, sua finalidade é matar. Ela atravessa como um deles, cuja vez havia chegado, se castra. É um sacri-
em linha reta uma grande distância. É preciso esquivar-se dela. fício que ele oferece à deusa para demonstrar-lhe de uma vez
Quem não o consegue, perece; a flecha fica cravada nele. É por todas o quanto a ama e que nenhum outro amor terá lugar
possível extraí-la mas, mesmo que ela não se quebre, sempre em sua vida.
deixa uma ferida. (Existem alguns relatos a respeito de feri- A mesma prática se conhece também em relação à seita
mentos causados por flechas na História Secreta dos Mongóis.) russa dos skoptsys, as "pombas brancas", cujo fundador, Sili-
O número de flechas que se pode disparar é ilimitado; a flecha vanov, causou nos tempos da imperatriz Catarina II a maior
é a arma principal dos mongóis. Elas matam à distância; mas das sensações devido ao êxito de suas pregações. Sob sua
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influência, centenas, talvez milhares de homens se castra. lio fim se apresente diante do inimigo, mesmo quando este
ram, e mulheres amputaram os seios como prova de sua ele
aincaça de morte. O fato de ele próprio tentar matá-lo não é
fé. É impossível supor que exista alguma conexão histórica portante do que sua resistência; sem esta, ele jamais
entre estas duas configurações religiosas. Esta última seita se reais im
seria capaz de realizar seu intento.
originou a partir do Cristianismo russo, cerca de 1500 anos O soldado, exatamente como o skoptsy, se oferece como
depois de terem terminado os excessos dos sacerdotes frígio- vítima. Ambos têm esperança de sobreviver, mas contam com
sírios.
Os skoptsys se distinguem pela concentração sobre um a possibilidade de serem feridos, com a dor, o sangue e a
escasso número de mandamentos e de proibições e também mutilação. Pela batalha o soldado espera tornar-se vencedor.
por constituírem pequenos grupos de prosélitos que se co- pela castração o skoptsy se transforma em anjo e tem direito
nhecem muito bem entre si. Concentrada ao máximo está tam- ao céu, no qual a partir desse momento ele já passa a viver.
Mas trata-se dentro desta disciplina de uma ordem se-
bém sua disciplina — o reconhecimento e a adoração de um
Cristo vivo entre eles. creta, e assim ela somente é comparável à situação na qual se
encontra quem está sob comando militar e que deve executar
Eles temem a distração causada pelos livros e quase não sozinho uma ordem secreta, sem que ninguém saiba do assunto.
lêem. Na Bíblia são poucas as passagens que significam alguma Para atingir esta finalidade ele não pode ser reconhecível pelo
coisa para eles. uniforme, devendo portanto disfarçar-se. O uniforme do
Sua vida comunitária é muito densa, protegida por diver- skoptsy, aquilo que o iguala aos demais aos quais pertence, é
sas maneiras mediante juramentos sagrados. O segredo de- sua castração, e esta por sua própria natureza permanece sem-
sempenha para eles um papel extraordinário e decisivo. Sua pre secreta, não podendo jamais ser revelada.
atividade cultural se desenvolve principalmente à noite, isolada Seria possível dizer, portanto, que o skoptsy se assemelha
e oculta do mundo exterior. O centro de sua vida reside na- a um membro daquela temida seita dos assassins, ao qual um
quilo que eles devem guardar da maneira mais secreta: a cas- superior ordenou um assassinato de que ninguém jamais terá
tração, que eles chamam branqueamento. conhecimento. Mesmo quando a execução é levada a termo,
Mediante esta operação eles devem transformar-se em pessoa alguma ficará sabendo como foi realizada. A vítima pode
anjos puros e brancos. E passam a viver já na terra como se ser atingida e o assassino capturado depois do ato; mesmo
estivessem no céu. A complicada veneração que têm uns em assim jamais se esclarecerá o procedimento propriamente dito.
relação aos outros, suas reverências e adorações, seus elogios A ordem neste caso é uma sentença de morte e está desta
mútuos são semelhantes àqueles que os anjos deveriam ter forma muito próxima de sua origem biológica. O emissário é
entre si.
enviado a uma morte certa, mas isto não é levado em consi-
A mutilação à qual devem submeter-se tem o caráter deração, pois sua morte, que ele aceita voluntariamente, é
rígido de uma ordem. Trata-se de uma ordem que vem de usada para se atingir outra pessoa, a vítima escolhida. A ordem
cima; eles a extraíram de certas frases de Cristo nos Evange- se amplia transformando-se numa dupla sentença de morte:
lhos e também de uma frase dita por Deus a Isaías. uma delas não é formulada, apesar de se contar com ela; a
Eles recebem esta ordem com uma força tremenda e é outra é apontada com consciência clara e plena. O aguilhão,
com esta mesma força que devem transmiti-la. A teoria do que pereceria com o subordinado, é desta forma utilizado antes
aguilhão pode muito bem ser aplicada a eles. A ordem neste de desaparecer.
caso é executada no próprio receptor. Faça ele o que fizer, o Os mongóis têm uma expressão muito gráfica para de-
que realmente deve fazer é castrar-se. signar este matar precipitado, antes de a própria pessoa ser
Para esclarecer as coisas, será necessário revisar uma série morta. Os heróis, em sua História Secreta, dizem de um ini-
de ordens de índole especial. migo que querem matar no último instante antes de morrer:
Considerando que se trata de ordens que são dadas den- "Eu o levarei comigo como travesseiro".
tro do âmbito de uma disciplina rígida, elas podem ser compa- Mas, se com esta consideração a respeito dos assassins
radas às ordens militares. Também o soldado é educado para nós conseguimos nos aproximar da situação do skoptsy, mesmo
expor-se ao perigo. Todo o seu treinamento serve para que assim ainda não conseguimos apreendê-la com precisão. Pois
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o skoptsy é obrigado a atingir ou a mutilar sua própria pessoa, para nenhuma outra coisa; excetuando-se esses
A ordem que ele aceitou somente pode ser executada em si sensibilidade não sente mais coisa alguma.
mesmo, e somente executando esta ordem é que ele se trans- aguilhões,defesa
ele cm relação a novas ordens se converte então
forma num membro efetivo do seu exército secreto. Sua ão vital. Ele procura não ouvi-las, para não ter de
Não podemos deixar-nos confundir neste diagnóstico pelo numa quest . Quando é obrigado a ouvi-las, não as compreende,
itá-ias
fato de que a castração na maioria das vezes é realizada por delas de maneira ostensiva, fazendo o contrário
outras pessoas. Seu sentido reside no fato de que é o próprio adesviando-se ordenado. Quando lhe dizem para avançar, retro-
é
indivíduo quem se oferece voluntariamente à castração. Uma do que lhe lhe dizem para retroceder, avança. Não se pode
cede. Quando
vez que ele se declarou disposto a permitir que isso aconteça, dizer que ele seja livre em relação à ordem. Trata-se de uma
perde importância o como é feito. Posteriormente ele irá que- reação desastrada ou até mesmo impotente, pois de certa forma
rer transmitir isso de todas as maneiras; seu aguilhão para ela é também determinada pelo conteúdo da ordem. É esta
tanto permanece sempre igual, uma vez que ele recebeu a reação que a psiquiatria designa como negativismo; ele de-
ordem a partir de fora para dentro. sempenha um papel especialmente importante entre os es-
Mesmo se, como é de se supor, houve uma primeira pes- quizofrênicos.
soa que começou a efetuar a operação em si mesma, ela tam- Nos esquizofrênicos o que mais chama a atenção é a ca-
bém agiu em função de uma suposta ordem celeste. Ela está rência de contato. Eles estão muito mais isolados do que os
firmemente convencida disto. As passagens bíblicas que utiliza demais. Freqüentemente dão a impressão de estarem enrije-
para converter outras pessoas são as que a levaram à conver- cidos dentro de si mesmos; é como se não existisse nenhum
são; ela transmite exatamente o que recebeu. tipo de relação entre eles e os demais; como se nada entendes-
O aguilhão adquire neste caso a forma visível de uma sem; como se nada quisessem entender. Sua obstinação é
cicatriz física. Ela é menos secreta do que o aguilhão habitual como a das estátuas de pedra. Não existe uma posição na qual
eles não possam enrijecer. No entanto estas mesmas pessoas,
da ordem. No entanto, ela permanece secreta diante de todos
os que não pertencem à seita. noutras fases de sua enfermidade, se comportam repentina-
mente de maneira diametralmente oposta. Mostram-se de uma
sugestionabilidade que assume proporções fantásticas. Fazem
tudo o que lhes é ensinado ou que se pede a eles com tal rapi-
Negativismo e esquizofrenia dez, com tal perfeição que é como se nós mesmos estivéssemos
dentro deles, fazendo as coisas por eles. Trata-se de ataques
Um ser humano pode esquivar-se de ordens não lhes dando de servilismo que lhes acontecem repentinamente. "A escra-
ouvidos; pode esquivar-se deixando de executá-las. O aguilhão vidão da sugestão", como foi definido por um deles. De es-
— e nunca se insistirá demais neste ponto -- somente aparece tátuas passam a ser zelosos escravos do dever, e levam ao
com a execução de ordens. É a própria ação realizada sob extremo, de um modo que às vezes parece ridículo, qualquer
pressão alheia, de fora para dentro, o que leva o homem à coisa que se lhes peça.
formação de aguilhões. A ordem que é levada à ação estampa O contraste entre estas duas atitudes é tão grande que se
sua forma exata no executante; da força com que é dada, de torna difícil compreendê-lo; mas se por um momento nos abs-
sua aparência, de sua superioridade e de seu conteúdo depen- trairmos da maneira como estas atitudes se apresentam dentro
dem a profundidade e a dureza com que ela pode estampar-se. deles, se os contemplarmos, por assim dizer, de fora para den-
Ela sempre permanece como algo isolado, e desta forma é ine- tro, não se pode negar que ambos os estados são bastante
vitável que todo homem finalmente acumule uma porção de conhecidos também na vida dos seres "normais". A diferença
aguilhões, tão isolados como o foram as ordens recebidas. Sua é que, neste caso, esses estados servem a um determinado fim
capacidade de aderência nos homens é surpreendente, nada e dão a impressão de ser menos exagerados.
penetra tão profundamente neles e nada chega a ser tão indis- O soldado que não dá atenção a qualquer estímulo exter-
solúvel. É possível que chegue um momento no qual um no, que permanece rígido, parado onde foi colocado, que não
indivíduo esteja tão repleto de aguilhões que já não tenha abandona seu posto, a quem ninguém pode induzir a fazer algo
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que normalmente faria e que já fez com muito agrado, esse tâncias obrigadas foi narrada e designada como descarga. Para
soldado corretamente treinado para seu serviço encontra-se complementar podemos acrescentar que os aguilhões-ordens
artificialmente num estado de negativismo. É verdade que em que estão acumulados em cada indivíduo fazem parte destas
determinadas circunstâncias ele também pode agir, mas única distâncias obrigadas. Na massa todos os seres individuais são
e exclusivamente por ordens de seu superior. Ele foi adestrado iguais entre si, nenhum tem o direito de mandar nos outros;
neste negativismo para agir apenas sob determinadas ordens. também seria possível dizer que todos mandam em todos. Não
Trata-se de um negativismo que se deixa manipular, pois está só não se formam novos aguilhões: o indivíduo se desfaz ao
no arbítrio e no poder do superior levá-lo ao estado extremo mesmo tempo de todos os antigos. Por assim dizer ele esca-
oposto. Assim que a autoridade competente ordena algo ao puliu de casa e deixou seus aguilhões para trás, no sótão, onde
soldado, ele se comporta com o mesmo zelo e com o mesmo jazem amontoados. Este sair de tudo o que faz suas rígidas
servilismo do esquizofrênico em sua fase oposta. uniões, seus limites e cargas é o motivo principal do senti-
É necessário acrescentar que o soldado sabe muito bem mento de elevação, quase de euforia, que o homem sente
por que age dessa maneira. Ele obedece porque se encontra dentro da massa. Em parte alguma ele se sente mais livre, e,
sob ameaça de morte. Num capítulo anterior já descrevemos se ele deseja tão ardentemente continuar sendo massa, isto se
como ele se habitua pouco a pouco a este estado, chegando no deve ao fato de saber o que irá acontecer depois. Quando ele
fim a adaptar-se a ele de dentro para fora. Deve realçar-se retornar a si, quando voltar para sua casa, voltará a encon-
apenas uma coisa: a inconfundível semelhança externa que trar-se com tudo isso: limites, cargas e aguilhões.
existe entre o soldado em serviço e o esquizofrênico. O esquizofrênico que está tão sobrecarregado de aguilhões
Mas uma idéia bastante distinta se impõe aqui e ela me a ponto de ficar por momentos paralisado por causa deles,
parece importante. O esquizofrênico, no seu estado de extrema sucumbe à ilusão do estado oposto: o estado de massa. En-
sugestionabilidade, comporta-se como membro de uma massa. quanto ele se encontra na massa não sente seus aguilhões. Ele
Ele é igualmente impressionável, cede de igual maneira a todo saiu — pelo menos assim pensa — de si mesmo, e embora isso
e qualquer estímulo externo. Somente não percebemos que aconteça de maneira insegura e duvidosa, ele parece extrair
ele poderia estar neste estado porque está sozinho. Como não daí um alívio temporário para o seu tormento; sente-se como
vemos massa alguma em torno dele, não nos ocorre supor que se estivesse novamente relacionado com os demais. O valor
ele — do seu próprio ponto de vista — se sente como se a desta redenção, é claro, é apenas ilusório. Justamente onde
ela pertencesse: ele é um pedaço desprendido de massa. Esta inicia sua libertação o esperam novas e mais intensas coerções.
afirmação somente pode ser demonstrada se entrarmos nas Mas a natureza completa da esquizofrenia não é o assunto que
representações internas dos próprios enfermos. Inumeráveis desejamos estudar aqui. Basta lembrarmo-nos de um fato: nin-
são os exemplos que podem ser citados. Uma mulher declara guém necessita mais da massa do que o esquizofrênico, tão
ter "todos os seres humanos no seu ventre". Outra "ouvia os repleto de aguilhões-ordens que se sente asfixiado por eles.
mosquitos conversando". Um homem escutou "729 mil mo- Incapaz de encontrar a massa fora, ele se abandona a ela
ças", outro "as vozes sussurrantes de toda a humanidade". dentro de si.
Nas representações dos esquizofrênicos aparecem — por trás
de disfarces múltiplos — todas as espécies de massa que exis-
tem; seria até mesmo possível começar a estudar a massa a A inversão
partir deste ponto de vista. A meta de um trabalho especial
será reunir e revisar as representações de massa dos esquizo- "Pois o alimento que o homem comer neste mundo há de
frênicos. Sua classificação irá mostrar a grandiosa integridade comer ele no outro". Esta frase enigmática e inquietante se
e amplitude existente nelas. encontra no Shatapatha-Brahmana, um dos antigos tratados de
Vale a pena perguntar por que os dois estados opostos sacrifício dos hindus. Mais inquietante ainda é o relato que
que mencionamos aqui são necessários para o esquizofrênico. aparece neste mesmo tratado. Trata-se da excursão do vidente
Para compreendê-los é preciso lembrar o que ocorre com um Bhrigu ao além.
indivíduo, assim que ele entra na massa. A liberação das dis- Bhrigu, um santo, era filho do deus Varuna; ele tinha
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adquirido uma grande sabedoria brâmane e isto lhe tinha su- mesma história de Bhrigu é contada de forma algo diferente.
bido à cabeça. Tornou-se arrogante e colocou-se acima do Ele não percorre as várias direções cardeais, mas vai de um
próprio deus seu pai. Este lhe quis demonstrar o quão pouco mundo para outro. Em vez das quatro cenas que foram narra-
sabia e lhe recomendou visitar, uma depois da outra, as dife- das, existem apenas três. Primeiro Bhrigu vê árvores, que
rentes regiões celestes: Leste, Sul, Oeste e Norte. Deveria assumiram formas humanas no além, e agora cortam homens
prestar o máximo de atenção a tudo quanto visse e, no regresso, em pedaços e os devoram. Depois Bhrigu vê um homem que
contar-lhe tudo o que tinha presenciado. devora outro que grita. A este respeito dá-se uma explicação:
"Primeiro, ou seja, no Leste, Bhrigu viu homens que 4,0 gado que foi sacrificado e comido aqui assumiu no além
arrancavam a machadadas os membros de outros homens, um uma figura humana e agora faz ao homem o que este lhe fez
depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto per- antes". Finalmente ele vê um homem devorando outro que
tence a você, isto pertence a mim'. Quando Bhrigu viu isso não diz coisa alguma. O arroz e a cevada assumiram forma
ficou espantado e as pessoas que esquartejavam os outros lhe humana e retribuem agora o que sofreram antes.
deram como explicação o fato de que as vítimas tinham feito Também aqui são indicados determinados sacrifícios.
o mesmo com eles no mundo dos vivos e que eles agora nada Quem os realiza corretamente escapa do destino de ser devo-
mais faziam do que proceder da mesma forma. rado no além pelas árvores, pelo gado ou pelo arroz e a cevada.
"Depois disso Bhrigu iniciou sua viagem para o Sul, e lá Mas o que aqui nos interessa não são os antídotos contra o
viu homens que cortavam os membros de outros homens, um destino. O importante é a idéia popular que se oculta por trás
depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto per- do disfarce sacerdotal. O que fazemos aqui nos é feito no
tence a você, isto pertence a mim'. Quando perguntou o mo- além. Não são instituídos servidores especiais de justiça para
tivo, Bhrigu tornou a ouvir a mesma resposta: os que agora executar este castigo; pelo contrário, cada qual castiga seu
estavam sendo cortados tinham feito a mesma coisa no outro próprio inimigo. Também não se trata de ações quaisquer, mas
mundo com os que agora os cortavam. No Oeste, depois disso, sim do próprio ato de comer. "Assim como neste mundo os
Bhrigu viu pessoas que, caladas, devoravam outras pessoas, as homens comem animais e os consomem, da mesma forma, os
quais, também caladas, se deixavam devorar. Exatamente desta animais no outro mundo comem os homens e os consomem".
forma eles tinham se comportado no outro mundo com os que Esta frase de um outro Brahmana, semelhante ao que
os devoravam. No Norte, viu novamente homens que aos colocamos no início deste capítulo, encontra uma estranha con-
gritos devoravam outros homens que também gritavam, exata- firmação no Código de Manu. Lá explica-se que não é pecado
mente com estes tinham feito com aqueles no outro mundo. comer carne, porque este é o comportamento natural das cria-
"Depois do seu retorno, Bhrigu foi convidado por seu turas. Mas promete-se uma recompensa especial a quem se
pai Varuna a recitar sua lição como um aluno na escola. Mas abstiver da carne. A palavra em sânscrito para designar a
Bhrigu disse: 'O que devo dizer? Não existe lição alguma!' carne, mamsa, se explica pela decomposição de suas sílabas:
Ele tinha visto coisas por demais pavorosas e tudo lhe pa- mam significa "a mim", sa significa "ele"; mamsa quer dizer
recia sem sentido. "a mim-ele"; "a mim" "ele" lá no além irá comer, ele cuja
"Então Varuna soube que Bhrigu tinha visto essas coisas carne eu comi aqui; isto é o que os sábios explicam como a
e lhe explicou: 'Os homens do Leste, que arrancavam com "carnalidade da carne". Nisto consiste a natureza-carne da
machados os membros de outros, eram árvores. Os homens do carne; este é o verdadeiro sentido da palavra carne.
Sul, que cortavam os membros de outros, eram bois e vacas. A inversão é reduzida aqui à mais concisa de todas as
Os homens do Oeste, que calados devoravam homens calados, fórmulas, e é captada na imagem da carne. Eu a como, ela me
eram ervas. Os homens do Norte, que gritando devoravam come. A segunda parte, a conseqüência do que eu fiz, é então
outros homens, eram as águas'." precisamente a palavra que designa a carne. O animal que nós
Para todos estes casos ele conhecia um remédio. Mediante comemos lembra-se de quem o comeu. A morte não acabou com
determinados sacrifícios, que indicou ao filho, podiam evi- al. Sua alma continua vivendo, e no além ela se trans-
tar-se as conseqüências, no além, das próprias ações. formaem homem. Este aguarda então pacientemente a morte
Noutro tratado de sacrifícios, o Jaiminiya-Brahmana, a es
deteseau devorador. Assim que este morre e chega ao além, a
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situação primitiva se inverte, transformando-se no oposto. A vezes, é sua absoluta imutabilidade. Ele permanece isolado do
vítima encontra seu devorador, agarra-o, corta-o e come-o.
A relação que tudo isso tem com nossa concepção da restante do homem como um corpo estranho em sua carne.
Por maior que seja a profundeza alcançada, por mais camu-
ordem e do aguilhão é evidente. Entretanto tudo foi levado
flada que seja sua existência, ele sempre causa desagrado ao
a tais extremos, tudo se transforma em algo tão concreto que seu possuidor. Permanece suspenso dentro dele de maneira
se começa a ter medo. Em vez de acontecer nesta vida, a in-
misteriosa, aprisionado numa espécie de país estrangeiro.
versão ocorre no outro mundo. Em vez da ordem, que apenas
O próprio aguilhão quer ir embora, mas tem dificuldade
ameaça com a morte e que assim consegue por extorsão todos
os tipos de serviço, trata-se realmente de morte em sua forma em desprender-se. Não é possível livrar-se dele de qualquer
maneira. A força com a qual ele se liberta deve ser idêntica à
mais extrema, na qual o morto é devorado.
força com a qual penetrou. De uma ordem reduzida, ele pre-
Segundo nossa maneira de ver, que já não encara seria-
mente a existência no além, o aguilhão que a ameaça de morte cisa transformar-se novamente numa ordem completa. Para a
aquisição desta força é necessária uma inversão da situação
provoca continua existindo enquanto a vítima vive. Se ela
original: sua exata recomposição é indispensável. É como se o
irá conseguir uma inversão é sempre algo duvidoso; de qual-
aguilhão contivesse sua própria recordação e esta recordação
quer forma a vítima tentará consegui-la. Finalmente, o homem
constasse de uma só coisa; como se ficasse à espreita durante
é governado por seus aguilhões, sua fisionomia interna é de-
terminada por eles; conseguindo ou não libertar-se deles, eles meses, anos, décadas, até o regresso à situação antiga. É impres-
são o seu destino. Segundo a concepção hindu, para a qual cindível que ele a reconheça, pois ele consta apenas dela; ela
é a única coisa que ele é capaz de reconhecer. Repentinamente
o além é uma premissa segura, o aguilhão como núcleo duro
tudo volta a ser igual ao que era antes, mas os papéis estão
da alma continua existindo no além, mesmo depois da morte;
a inversão ocorre de qualquer maneira, ela se converte na ati- invertidos. Neste instante ele aproveita a ocasião e se lança
vidade propriamente dita da existência no além. Faz-se exata- com todo o vigor sobre sua vítima: a inversão finalmente
mente o que nos foi feito, e somos nós mesmos que o fazemos. aconteceu.
O fato de a mudança de aparência não constituir um obs- Este caso, que poderia ser chamado puro, não é no entan-
táculo parece ser uma característica especial. Já não é o animal to o único possível. Uma ordem pode ser repetida freqüente-
que comemos que nos agarra no além e que nos retalha: é um mente pelo mesmo indivíduo à mesma vítima, de maneira que
homem com a alma desse animal. Externamente a criatura se uma ou outra vez se formam aguilhões da mesma espécie.
modificou completamente, mas o aguilhão continua sendo inva- Estes aguilhões idênticos não permanecem isolados, eles devem
riavelmente o mesmo. Nas visões de horror que são presen- relacionar-se entre si. Esta nova configuração aumenta a olhos
ciadas por Bhrigu em sua viagem, o aguilhão aparece como o vistos, e não pode mais ser esquecida por quem a possui. Ela
tema principal da alma; seria inclusive possível dizer que esta sempre chama a atenção, ela sempre é pesada; por assim dizer,
é formada inteiramente por aguilhões. A essência propriamente ela fica acima da superfície da água.
dita do aguilhão, do qual tanto se falou nesta análise da ordem, Porém, a mesma ordem também pode ser dada e repetida
sua absoluta imutabilidade e a precisão da inversão à qual ele por diferentes indivíduos. Se isto acontece com muita freqüên-
aspira encontram nesta crença hindu do devorado que deve cia e numa sucessão implacável, o aguilhão perde sua forma
devorar por sua vez sua expressão mais conclusiva. pura e se desenvolve até se tornar — dificilmente se poderia
chamar isto de outra maneira — um monstro mortalmente
perigoso. Ele assume proporções enormes e se converte no
A dissolução do aguilhão conteúdo principal do seu possuidor. Sempre consciente dele,
este o carrega consigo e tenta eliminá-lo em todas as oportuni-
O aguilhão se forma durante a execução da ordem. Ele se des- dades. Inúmeras situações lhe parecem então idênticas à ori-
prende desta e se grava com a figura exata da ordem no exe- ginal; parecem-lhe apropriadas para a inversão. No entanto
cutante. Ele é pequeno, oculto e desconhecido; sua proprie- elas não o são, uma vez que, devido à repetição e ao entrecru-
dade mais essencial, a respeito da qual já falamos repetidas zamento, tudo se tornou impreciso; podemos dizer que a chave
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da situação original foi perdida. Uma recordação se colocou nativo, eles eliminam agora as distâncias: penetram no palá-
por cima de outra, como um aguilhão sobre o outro. Sua mas- es era proibido. Examinam o que ele contém: salões,
ci que lh móveis. A fuga, que as ordens reais antes provo-
moradores,
sa já não pode ser decomposta em suas partes constituintes.
eles, se inverte em familiaridade íntima. Se por temor o
Por mais que se tente, tudo continua como antes, e sozinha cavam n
a pessoa jamais conseguirá libertar-se de sua carga. rei permite esta aproximação, é possível que as coisas não ul-
A ênfase, neste caso, está na palavra "sozinha". Pois existe trapassem este ponto, mas não por muito tempo. O processo
uma libertação de todos os aguilhões, inclusive dos mais mons- geral de uma libertação de aguilhões, uma vez iniciado, prosse-
truosos, mas esta libertação está na massa. Diversas vezes já gue de forma inabalável. É preciso pensar em tudo o que foi
mencionamos aqui a massa de inversão, mas não era possível feito para manter em obediência os seres humanos, e em tudo
elucidar sua essência propriamente dita, antes de termos ana- o que durante longos anos se acumulou dentro deles sob a
lisado o modo como funciona a ordem. forma de aguilhões.
A massa de inversão é formada por muitos para, em con- A ameaça propriamente dita aos súditos, ameaça que pen-
junto, livrarem-se de aguilhões-ordens aos quais estão indivi- dia interminavelmente sobre suas cabeças, era a ameaça de
dualmente entregues sem esperança. Um grande número de morte. Por meio de execuções ela era renovada de tempos em
homens se une e se volta contra outro grupo, no qual vêem tempos, demonstrando sua seriedade de maneira inequívoca.
os causadores de todas as ordens que foram obrigados a su- De uma única maneira esta ameaça pode ser completamente
portar durante tanto tempo. Se eles por acaso forem soldados, compensada: o rei, que mandava cortar cabeças, deve ser deca-
qualquer oficial poderá ocupar o papel daqueles sob cujas or- pitado também. Com isto, o supremo, o mais amplo de todos
dens se encontravam. Se forem trabalhadores, qualquer em- os aguilhões, o que em sua aparência engloba todos os demais,
presário pode substituir os patrões para os quais trabalhavam. é retirado dos que eram obrigados a suportá-lo coletivamente.
Nesses momentos classes e castas se transformam em realidade, Nem sempre se pode compreender o sentido da inversão
elas passam a ser verdadeiras; seus componentes se compor- de forma tão nítida, e nem sempre ela culmina com tanta per-
tam como se fossem todos iguais. A classe inferior que se
feição. Quando a revolta não é bem-sucedida e os homens não
sublevou forma uma massa coesa em todos os pontos; a supe-
conseguem livrar-se realmente de seus aguilhões, mesmo assim
rior, cercada pela maioria, constitui uma série de maltas me-
eles guardam agora a lembrança do tempo em que foram mas-
drosas e interessadas apenas na fuga.
sa. Durante esse estado, pelo menos, estiveram livres dos agui-
Nos que agora pertencem à massa, cada aguilhão em sepa-
rado, complexo e cristalizado após muitas e diversas ocasiões, lhões e sempre irão se recordar dele com nostalgia.
encontra uma série de possíveis origens de uma só vez. Os
agredidos estão ali diante deles, isolados ou lado a lado, e pa-
recem saber muito bem por que sentem medo. Não é necessá- Ordem e execução. O verdugo satisfeito
rio que sejam os causadores reais deste ou daquele aguilhão;
sejam ou não causadores, estão no lugar deles e são tratados Até aqui nesta análise omitimos conscientemente um caso. A
com toda a seriedade como tais. A inversão, que aqui é dirigida ordem se explica como ameaça de morte; dissemos também
simultaneamente contra muitos, dissolve até os mais pesados que ela é derivada da ordem de fuga. A ordem domesticada,
de todos os aguilhões. tal como nós a conhecemos, relaciona a ameaça com uma re-
No caso mais concentrado desta espécie, quando se vai compensa; a alimentação atenua o efeito da ameaça, mas nada
contra uma única cabeça, um rei por exemplo, o que a massa muda em seu caráter. A ameaça nunca é esquecida. Em sua
sente é a maior clareza. A única fonte de todas as ordens era forma original ela permanece para sempre, até que se apre-
o rei; seus dignitários e a nobreza eram apenas elementos para sente uma oportunidade para que a pessoa afetada se desfaça
a transmissão e para a aplicação dessas ordens. Os indivíduos dela, transferindo-a para outros.
que formam a massa sublevada foram mantidos durante longos A ordem porém também pode ser um encargo de matar;
anos à distância por meio de ameaças e em estado de obediên- neste caso, ela leva à execução. Aqui realmente ocorre o que,
cia por meio de proibições. Numa espécie de movimento re- nos demais casos somente é ameaçado. Mas o que acontece e
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dividido entre dois homens. Um recebe a ordem, o outro é
quietante. O horror que desperta nos outros, ele não o sente
executado. dentro de si. É importante ver claramente este aspecto: os
O verdugo está, como todos os que se submetem a uma matadores oficiais estão tanto mais satisfeitos dentro de si
ordem, sob ameaça de morte. Mas ele se livra dessa ameaça mesmos quanto mais numerosas forem as ordens que levem
matando. Ele transfere imediatamente o que poderia lhe suce- diretamente à morte. Mesmo para o carcereiro, o dever é mais
der e, desta forma, antecipa a sanção extrema que pesa sobre duro do que para o verdugo.
ele. Disseram-lhe: você precisa matar, e ele mata. Ele não está É verdade que a sociedade faz com que ele pague a satis-
em condições de se defender contra tal ordem; ela lhe é dada fação que seu ofício lhe dá com uma espécie de proscrição.
por alguém cujo poder superior ele reconhece. Tudo precisa Mas, em si, nem mesmo isto está acompanhado de uma des-
acontecer rapidamente; em geral acontece logo em seguida. vantagem para ele. Ele sobrevive, "sem ter culpa disso", a cada
Não há tempo suficiente para a formação de um aguilhão. uma de suas vítimas. Uma parte do prestígio do sobrevivente
Mas, mesmo que houvesse tempo, não existe motivo para recai sobre ele, um mero instrumento, e compensa total-
a formação de um aguilhão. Porque o verdugo transmite o que mente aquela proscrição. Ele é capaz de encontrar uma esposa,
recebe. Ele nada tem a temer, uma vez que nada permanece tem filhos, leva uma vida familiar.
dentro dele. Neste caso, e somente neste, a equação da ordem
se resolve sem deixar saldo algum. Sua natureza mais profunda
e a ação que esta ordem provoca são idênticas. Tudo foi prepa- Ordem e responsabilidade
rado para que a execução seja viável; nada pode atrapalhar; é
improvável que a vítima consiga escapar. O verdugo tem cons- Sabe-se que homens que atuam sob ordens são capazes dos
ciência de todas estas circunstâncias desde o começo. Ele pode atos mais atrozes. Quando a fonte da ordem é sepultada e eles
aguardar a ordem com calma; tem confiança. Sabe que com são obrigados a voltar os olhos para seus atos, eles próprios
sua execução nada irá se modificar dentro dele. Por assim di- não se reconhecem. Dizem: isso eu não fiz. E nem sempre têm
zer, ele passa incólume pela situação toda, permanecendo com- consciência de que estão mentindo. Quando se vêem acusados
pletamente intato em relação a ela. Dentre todos os homens o por testemunhas e começam a vacilar, mesmo assim continuam
verdugo é o mais satisfeito, o mais carente de aguilhões. afirmando: eu não sou assim, eu jamais poderia ter feito isso.
Trata-se de uma situação monstruosa, que nunca foi se- Procuram os vestígios do ato dentro de si e não conseguem en-
riamente enfocada. Ela somente pode ser compreendida quan- contrá-los. Causa surpresa ver que eles conseguiram ficar tão
do levamos em consideração a verdadeira natureza da ordem. intactos. A vida que levam mais tarde realmente é outra e de
A ordem existe apenas como conseqüência da ameaça de mor- maneira alguma está manchada pelo ato. Eles não se sentem cul-
te; é desta que ela extrai toda a sua força. O excedente desta pados e de nada se arrependem. O ato simplesmente não pe-
força, que é inegável, explica a formação do aguilhão. Porém netrou neles.
as ordens que levam a morte a sério, que procuram, e que São homens que, sob outros aspectos, estão muito bem
realmente a provocam, são as que menos vestígios deixam em capacitados para avaliar suas ações. O que fazem por iniciativa
quem as recebe. própria deixa neles os vestígios que são de se esperar. Eles
O verdugo é um homem que é ameaçado de morte para se envergonhariam de matar uma criatura desconhecida e inde-
que mate. Ele só pode matar os que deve matar. Se ele se fesa que não os tivesse provocado. Sentiriam nojo de torturar
ativer estritamente às ordens recebidas, nada pode lhe aconte- qualquer pessoa. Eles não são melhores, mas também não são
cer. Certamente na execução ele também irá incluir algo do piores do que as pessoas em cujo meio convivem. Muitos que
que lhe foi ameaçado em outras oportunidades. É de supor os conhecem no cotidiano estariam dispostos a jurar que eles
que acrescente às suas execuções um pouco dos aguilhões de estão sendo acusados injustamente.
origem totalmente diferente que se foram acumulando dentro Quando depois desfila o longo cortejo das testemunhas,
dele. Mas de mais importância continua sendo o mecanismo do das vítimas que sabem muito bem do que estão falando, quan-
seu encargo propriamente dito. Matando, ele mesmo se liberta do essas vítimas, uma após outra, reconhecem o autor e fazem
da morte. Para ele tudo isto é um negócio limpo e nada ín- com que cada detalhe do seu comportamento lhe volte à me-
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mória, todas as dúvidas se tornam absurdas, e nós nos depara- pois de uma longa história, é o elemento singular mais peri-
mos com um enigma para o qual não existe solução. goso da convivência entre os homens. É preciso ter a coragem
Para nós isto já não é mais um enigma, uma vez que co- de se opor a ela e de abalar seu poder. É preciso encontrar
nhecemos a natureza da ordem. Para cada ordem que o autor meios e para manter-se livre dela a maior parte do
executou, restou dentro dele um aguilhão. Mas este é tão es- e
ser humano. Não se deve permitir que ela produza mais do
tranho como era a própria ordem no momento em que ela que pequenos arranhões na pele. Seus aguilhões devem trans-
lhe foi dada. Por mais tempo que um aguilhão permaneça formar-se em meros espinhos que possam ser eliminados com
aderente ao homem, ele nunca é assimilado; ele continua sendo um simples gesto.
um corpo estranho. Embora seja possível, conforme foi dito
em outra passagem, que vários aguilhões se reúnam e conti-
nuem crescendo até dar lugar a uma nova formação monstruo-
sa no afetado, eles sempre permanecem nitidamente diferen-
ciados do que os circunda. O aguilhão é um intruso, um fo-
rasteiro que jamais se naturaliza. É algo indesejável e seu por-
tador quer desfazer-se dele. O aguilhão é exatamente o que se
praticou; como se sabe, ele tem a aparência exata da ordem.
Como instância estranha ele continua vivendo dentro do des-
tinatário e lhe tira todo e qualquer sentimento de culpa. O
autor não se acusa a si mesmo mas sim o aguilhão, a instância
estranha, o verdadeiro autor, por assim dizer, que ele sempre
carrega consigo. Quanto mais estranha tiver sido a ordem, tanto
menor é a culpa que se sente por causa dela, tanto mais niti-
damente separada ela continua existindo como aguilhão. Ele
passa a ser a testemunha perpétua de que não se cometeu isto
ou aquilo. A pessoa se sente vítima, ela própria, do aguilhão
e não consegue ter qualquer sentimento pela vítima verdadeira.
É certo pois que os homens que agiram sob ordens se
consideram completamente inocentes. Caso estejam em con-
dições de enfrentar sua situação, podem sentir uma espécie de
surpresa por terem estado alguma vez tão completamente sob
o regime de violência das ordens. Mas mesmo este impulso
esclarecedor carece de valor, uma vez que se torna presente
apenas demasiado tarde, quando tudo já passou. O que acon-
teceu pode voltar a acontecer, e nenhuma defesa contra situa-
ções novas que se assemelhem á anterior como um cabelo a
outro chega a se desenvolver neles. Eles continuam entregues
indefesos ã ordem, apenas vagamente conscientes de sua peri-
culosidade. No caso mais claro, que felizmente é pouco fre-
qüente, eles transformam a ordem numa fatalidade e passam
a sentir-se orgulhosos de que esta fatalidade se tenha utilizado
cegamente deles, como se fosse necessário um caráter espe-
cialmente varonil para entregar-se a esse tipo de cegueira.
De qualquer ângulo que possa ser contemplada, a ordem,
na forma compacta e completa que apresenta atualmente de-
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A METANIORFOSE
Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos

A capacidade do homem para a metamorfose, que tanto poder


lhe conferiu sobre as demais criaturas, praticamente ainda não
foi abordada e compreendida. Ela faz parte dos maiores enig-
mas; todos têm esta capacidade, todos a aplicam, todos a con-
sideram muito natural. Mas poucos se dão conta de que devem a
ela o que existe de melhor neles mesmos. É extremamente
difícil sondar a essência da metamorfose e é preciso aproximar-
se dela pelos mais diversos lados.
Numa obra sobre o folclore dos bosquímanos — que eu
considero como o documento mais precioso da humanidade
primitiva e que ainda não foi superada, apesar de ter sido
escrita há mais de cem anos por Bleek e de ter sido impressa
há quase cinqüenta anos — encontra-se um capítulo sobre os
pressentimentos dos bosquímanos, do qual é possível extrair
importantes explicações. Trata-se nestes pressentimentos, como
se mostrará, de princípios de metamorfose numa forma extre-
mamente simples. Os bosquímanos sentem a chegada de pes-
soas que ainda não podem ver ou ouvir. Eles também são ca-
pazes de sentir que animais de caça estão se aproximando e
descrevem em seu próprio corpo os sinais pelos quais perce-
bem esta aproximação. Alguns exemplos disto são dados em
seguida, textualmente.
"Um homem díz aos seus filhos que prestem atenção à
chegada do avô: Prestem atenção, me parece que o avô está
chegando, pois sinto o lugar da antiga ferida no corpo dele'.
As crianças ficam atentas. Percebem um homem à distância.
E dizem ao pai: 'Lá vem um homem'. E o pai lhes responde:
`Aquele que lá vem é o avô de vocês. Eu sabia que ele vinha.
Eu senti sua vinda no lugar da antiga ferida dele. Eu queria
que vocês mesmos vissem: ele realmente está vindo. Vocês não
acreditam no meu pressentimento. Mas ele diz a verdade'."
O que aconteceu é de uma simplicidade grandiosa. O ve-
lho, que é o avô destas crianças, aparentemente estava muito
longe. Num determinado lugar do seu corpo ele possui uma
antiga ferida. Este lugar é conhecido com exatidão por seu
filho adulto, o pai das crianças. É uma daquelas feridas que
sempre voltam a se fazer sentir. Ele freqüentemente ouviu o
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velho referir-se a ela. Trata-se daquilo que nós chamaríamos meio da testa e estende-se até a ponta do nariz.
de "característico" nele. Quando o filho pensa no pai, pensa O bosquímano sente como se tivesse esta faixa preta sobre
nesta ferida. Mas é mais do que um simples pensamento. Ele seu próprio rosto. "Temos uma sensação nos olhos, por causa
não apenas imagina a ferida, o lugar exato do corpo onde ela arcas negras sobre os olhos da gazela."
se encontra; percebe-a no lugar correspondente em seu próprio das m
Outro sente golpes nas costelas e diz a seus filhos: "Pa-
corpo. Assim que ele a sente supõe que o pai, a quem não rece que vem uma gazela, eu sinto seus pêlos negros. Subam
vê há algum tempo, esteja se aproximando. Ele sente que o a e olhem para todos os lados. Estou com a sensação
pai se aproxima porque sente a ferida dele. Diz isto a seus a colin
da gazela". A gazela tem pêlos negros nos flancos. Para o bos
filhos, mas parece que estes não estão muito dispostos a acre- qu ímano, os golpes que sente nas costelas significam os pêlos
ditar. Talvez ainda não tenham aprendido a acreditar na vera- egros do animal.
n
cidade de tais pressentimentos. O pai faz com que eles prestem Outro que está presente enquanto se fala a respeito destes
atenção, e realmente aproxima-se um homem. Só pode ser o fenômenos concorda com ele. Ele também tem um pressenti-
avô; é ele. O pai tinha razão. A sensação no seu corpo não o mento que se refere às gazelas, mas não é o mesmo: ele sente
enganou.
o sangue do animal abatido.
Uma mulher sai de casa; leva seu filho preso a uma cor- "Tenho uma sensação na barriga das pernas quando o
reia que lhe pende do ombro. O homem ficou tranqüilamente sangue da gazela vai escorrer sobre elas. Eu sempre sinto o
sentado. A mulher foi a algum lugar e se ausenta durante certo sangue quando vou matar uma gazela. Eu fico sentado e tenho
tempo. Repentinamente o homem sente a correia dela em seu uma sensação nas costas, onde o sangue escorre quando carre-
próprio ombro. "Tem a sensação" de estar ele mesmo carre-
go uma gazela. Os pêlos da gazela ficam sobre minhas costas."
gando a criança. Assim que sente a correia, sabe que a mulher
Em outro trecho dizem: "Nós sentimos em nossas cabeças
está voltando com a criança.
quando estamos arrancando os chifres da gazela". Outro tre-
Os mesmos pressentimentos se referem também a animais. cho: "As corças, que são numerosas, costumam chegar no mo-
Os animais são tão importantes para os bosquímanos quanto
mento em que estamos deitados à sombra de nossas palhoças.
seus parentes mais próximos; são os seus animais mais próxi-
Elas acreditam que possivelmente estamos fazendo a sesta.
mos, por assim dizer, que ele caça e dos quais se alimenta.
Normalmente nós nos deitamos para a sesta. Mas não fazemos
Um avestruz passeia ao sol. Um inseto negro, que os bos-
químanos chamam de "piolho de avestruz", pica-o. O aves- sesta quando as corças andam e movimentam suas patas. Nós
truz se coça com a pata na parte posterior do pescoço. O bos- sentimos alguma coisa na parte posterior dos joelhos, onde o
químano sente algo na própria nuca, no local equivalente à sangue goteja quando carregamos os animais".
região onde o avestruz se coça. É uma sensação como a pro- Destas declarações dos bosquímanos percebe-se que impor-
vocada por pequenos golpes. Esta sensação diz ao bosquímano tância eles atribuem a estes pressentimentos ou suspeitas. Eles
que existe um avestruz nas proximidades. sentem em seus próprios corpos quando determinados aconte-
Um animal especialmente importante para o bosquímano cimentos são iminentes. Uma espécie de golpes sentidos na
é a gazela. Muitos pressentimentos se referem a todos os mo- carne fala com eles e lhes comunica algo. Suas letras, como
vimentos e características possíveis da gazela. eles mesmos dizem, estão dentro do seu corpo. Estas letras
"Temos uma sensação nos pés, percebemos o ruído das falam e se movimentam, induzindo ao movimento. Um homem
suas patas no mato". Esta sensação nos pés significa que as impõe silêncio aos demais e se mantém bem quieto quando per-
gazelas se aproximam. Não que o ruído tenha sido escutado. cebe estes golpes no seu corpo. O pressentimento diz a verda-
Elas ainda estão longe demais para isso. Mas os pés dos pró- de. Os estúpidos não entendem estes ensinamentos e caem em
prios bosquímanos fazem o ruído, porque as gazelas fazem o desgraça; são mortos por um leão ou lhes acontece alguma
ruído com suas patas à distância. Mas isto não é tudo; é muito outra coisa grave. Os sinais por golpes dizem aos que os enten-
mais do que o movimento das patas que passa das gazelas para dem que caminhos não devem pisar, que flechas não devem
os bosquímanos. "Temos uma sensação no rosto, por causa da empregar. Eles os avisam quando muitas pessoas se aproxi-
faixa preta que existe na cara da gazela". Esta faixa preta mam pela estrada. Quando se está à procura de alguém, os
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pequenos golpes informam que caminho se deve usar para en- 5 — Um bosquímano sente sangue na barriga da perna
contrar quem se quer. e nas costas. É o sangue da gazela a ser abatida, que ele
Não nos importa aqui verificar se os pressentimentos dos carregará nas costas, onde também sente os pêlos do ani-
bosquímanos são certos ou errados. É possível que eles tenham mal. Sente na própria cabeça a amputação dos chifres da
desenvolvido e que exercitem em sua vida diária capacidades gazela. Sente o sangue na parte posterior dos joelhos, onde
que nós já perdemos. É possível que eles tenham motivos para costuma gotejar o sangue do animal abatido ao ser car-
continuar acreditando em seus pressentimentos, apesar de al- regado.
gumas vezes terem sido enganados por eles. Seja como for,
suas declarações a respeito da maneira como os pressentimen- Tudo o que foi incluído no item 5 refere-se ao animal
tos se anunciam pertencem aos documentos mais precisos quan- morto. A ânsia pelo seu sangue determina o caráter da meta-
to à essência da metamorfose. Não existe nada comparável a morfose. O problema é menos simples aqui do que nos quatro
isso. Em relação a tudo o que se pode extrair dos mitos e con- casos anteriores; por este motivo é melhor analisar por en-
tos sob esse ponto de vista, é válida a objeção de que tudo quanto apenas esses quatro casos. O mais elementar em todos
foi inventado. Aqui porém somos informados do modo como eles é que um corpo é identificado com outro. O corpo do filho
se sente o bosquímano em sua vida real, quando pensa num com o corpo do pai; desta forma a ferida antiga se faz sentir
avestruz ou numa gazela distantes; do que acontece com ele no mesmo lugar. O corpo do homem com o da mulher: a cor-
nessa ocasião; do significado que tem para ele pensar numa reia, com a qual ela transporta o filho, o aperta em seu próprio
criatura que não é ele próprio. ombro. O corpo do bosquímano é o corpo do avestruz: o
Os sinais pelos quais eles reconhecem a aproximação de "piolho" pica-o em idêntica região do pescoço e ele se
um animal, ou também de algum outro homem, são sinais em coça aí.
seu próprio corpo. Estes sinais são, como já disse, princípios Nestes três casos é sempre por uma característica isolada
para a metamorfose. Se quisermos preservar o valor dos sinais que se manifesta a identificação dos corpos. São características
muito diferentes: no caso da ferida, é uma antiga peculiaridade
para um exame da metamorfose, devemos ter o cuidado de
do corpo que se faz sentir de tempos em tempos; no caso da
não incluir nada que seja estranho ao mundo dos bosquímanós.
correia, é uma determinada pressão permanente; no terceiro
É preciso manter estes sinais tão simples e concretos como caso, o da coceira, trata-se de um movimento isolado.
realmente são. Vamos extraí-los do contexto das declarações O mais interessante é o caso da gazela. Neste caso são
citadas e enumerá-los um após outro: quatro ou cinco as características que se juntam e dão à identi-
ficação de um corpo com outro um sentido muito integral.
1 — Um filho percebe a antiga ferida do pai exatamente Fala-se em primeiro lugar do movimento dos pés, dos pêlos
no mesmo lugar do corpo onde o pai foi ferido. negros nos flancos, da faixa negra na testa, das marcas negras
2 — Um homem sente a correia que sua mulher usa para sobre os olhos; depois da cabeça, de onde se arrancam os
carregar o filho no seu próprio ombro. cornos, como se o próprio bosquímano tivesse chifres. Ao mo-
3 — Um avestruz coça o próprio pescoço com a pata, vimento que aqui, em vez do coçar, é dos pés, se soma por-
no lugar onde está sendo picado por um "piolho". O tanto o que se assemelha a uma máscara completa. O que mais
bosquímano experimenta uma idêntica sensação na própria chama a atenção na cabeça do animal, os chifres e tudo o que
nuca, na região correspondente àquela onde o avestruz existe de negro, ou seja, a faixa e as marcas sobre os olhos, se
se coça. reúne formando uma máscara reduzida ao nível mais simples.
4 — Um homem sente nos próprios pés o ruído que as Esta máscara é usada como se fosse a própria cabeça, e ao
gazelas fazem no mato. A faixa negra da gazela, da testa mesmo tempo como sendo a cabeça do animal. Os pêlos negros
à ponta do nariz, ele a sente no próprio rosto. Sente em dos flancos são sentidos como se a pessoa tivesse vestido uma
seus próprios olhos as marcas negras existentes sobre os pele do animal; mas trata-se da própria pele.
olhos da gazela. Os pêlos negros que a gazela tem nos O corpo de um mesmo bosquímano se transforma no cor-
flancos são sentidos por ele na região das costelas. po de seu pai, de sua mulher, de um avestruz, de uma gazela.
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O fato de poder ser todos eles em momentos distintos, vol- Metal?:orfose de fuga. Histeria, mania e melancolia
tando depois a ser novamente ele próprio, é de tremenda im-
portância. As metamorfoses que se sucedem variam segundo
As metamorfoses para fugir, para escapar de um inimigo, são
as ocasiões exteriores. São transformações limpas: cada cria- generalizadas. Elas são encontradas em mitos e contos difun-
tura, cuja aproximação ele sente, continua sendo o que é. Ele
as mantém separadas, caso contrário não teriam significado. didos por toda a Terra. A seguir daremos quatro exemplos
com os quais se podem esclarecer as diversas formas que as
O pai com a ferida não é a mulher com a correia. O aves- metamorfoses de fuga assumem.
truz não é a gazela. A própria identidade, que o bosquímano Como formas principais distinguimos a metamorfose de
pode abandonar, se conserva na metamorfose. Ele pode ser
fuga linear e a metamorfose de fuga circular. A forma linear
isto ou aquilo, mas isto ou aquilo permanecem separados entre é a fuga muito comum da caça. Uma criatura persegue outra,
si, porque, entre uma coisa e outra, ele sempre volta a ser
ele mesmo. a distância entre elas diminui; no momento em que a criatura
perseguida vai ser agarrada, ela se transforma em alguma outra
Poder-se-ia afirmar que as características isoladas e simples coisa e escapa. A caça continua, ou melhor, recomeça. O perigo
que determinam a transformação são seus pontos nodais. A fe- aumenta de novo. O agressor se aproxima cada vez mais; tal-
rida antiga do pai, a correia da mulher, a faixa preta da gazela vez até consiga agarrar sua presa. Esta se transforma então
são esses pontos nodais. São as características mais proeminen- em outra coisa e escapa novamente no último instante. O mes-
tes da outra criatura, das quais se fala freqüentemente e que mo processo pode ser repetido inúmeras vezes, dependendo
sempre são percebidas com nitidez. São as características nas apenas de se encontrar sempre novas metamorfoses. Elas de-
quais a pessoa se fixa quando espera por esta criatura. vem ser inesperadas para surpreender o perseguidor. Este, como
O animal que se caça, no entanto, é um caso especial. O caçador, está atrás de uma presa bastante determinada que
que realmente se deseja é sua carne e seu sangue. O estado no lhe é bem familiar. Ele conhece sua maneira de fugir, conhece
qual a pessoa se encontra, depois de ter abatido o animal, en- sua figura e sabe como e onde pode agarrá-la. O instante da
quanto o carrega para casa, é especialmente feliz. O corpo do metamorfose o deixa desconcertado. Ele é obrigado a adotar
animal morto, carregado nas costas como presa, é ainda mais um novo gênero de caça. A presa modificada exige uma caça
importante do que o seu corpo vivo. Sente-se o sangue do modificada O caçador é obrigado a transformar-se também,
animal morto escorrendo pela barriga da perna, gotejando atrás Teoricamente não é possível prever um fim para essa série de
dos joelhos; sente-se o sangue nas costas, onde também se metamorfoses. Nos contos ela costuma ser longamente elabo-
sentem os pêlos do animal. Este corpo morto que se carrega rada. Na maior parte das vezes o narrador toma o partido do
não é o próprio corpo; não pode ser o próprio corpo, uma vez perseguido e gosta de encerrar o texto com a derrota ou o ani-
que se quer comê-lo. quilamento do perseguidor.
Os pressentimentos do bosquímano que se referem à ga- Um caso aparentemente simples de metamorfose de fuga
linear é encontrado no mito australiano dos lorityas. Os "eter
zela têm portanto fases diferentes. Da maneira como foi des-
nos e não-criados" tukutitas, que são os ancestrais dos totens,
crita, ele sente o animal vivo; seu próprio corpo chega a ser surgem da terra em figura humana. Permanecem homens até
o corpo do animal que se movimenta e que ele procura. Mas que um dia aparece um monstruoso cão preto e branco, deci-
ele também sente o animal morto como um corpo diferente, dido a agarrá-los e que se lança contra eles. Então eles fogem,
estranho, próximo do seu, num estado do qual já não pode mas temem não ser suficientemente rápidos. Para poderem
escapar. Estas duas fases são intercambiáveis. Um homem pode fugir melhor, transformam-se em todos os tipos de animais:
acreditar estar primeiro na fase anterior, ao passo que outro cangurus, emas e águias são mencionados. Cabe observar, po-
se acredita na fase posterior. Elas podem suceder-se uma à rém, que aqui cada qual se transforma em um determinado
outra. Podem aparecer uma imediatamente após a outra. Jun- animal, mantendo esta figura enquanto se encontra em fuga.
tas, as duas fases contêm a sua relação inteira para com o Aparecem dois outros ancestrais semelhantes a eles, que obvia-
animal, o processo completo da caça, desde os ruídos provo- mente são mais fortes ou mais valentes. Estes colocam o cão
cados pelas patas até o escorrer do sangue. em fuga e o matam. Então a maioria dos tukutitas volta a
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adotar sua figura humana; o perigo passou e eles já não têm pintinhos, agulha e linha. Nestes pares cada
mais nada a temer. Todavia conservam a faculdade de trans- linhacom
tá adaptada à outra, sejam animais ou objetos. Sempre
formar-se quando quiserem nos animais cujos nomes carregam, p
e argtae es

ou seja, nos animais que eles foram durante a fuga. uma dsenta as partes, que representa o mestre, persegue a outra, que
o rapaz; este sempre se salva no último instante
A limitação a uma única metamorfose animal mostra a r epre
ma caçada louca e atribulada,
essência destes ancestrais dos totens. Em outro contexto fala-se pela metamorfoisdeo. rantaat-userezdae daa metamorfose. Os locais va-
detalhadamente a respeito destas figuras duplas. Aqui basta iedvamente quanto as figuras.
enfatizar que a metamorfose a que eles se submetem e cuja riam
Passando à metamorfose de fuga circular, lembramos da
execução lhes é possível para sempre, produziu-se inicialmente
ritaaeonetelráaspdsica de Proteu, que é mencionada na Odisséia.
jussttóam

pela fuga. Proteu, um sábio ancião do mar, é o senhor das focas e, como
Um caso linear muito rico em conteúdo é o conto geor- elas, sobe à terra uma vez por dia. Primeiro vão as focas, de-
giano intitulado O Mestre e Seu Discípulo. O mestre malvado, pois ele. Ele conta todas elas com cuidado, e logo em seguida
que é o próprio diabo, recebeu o rapaz como aprendiz e lhe se deita entre elas. Menelau, voltando de Tróia, foi jogado por
ensinou todos os tipos de bruxarias. Mas não quer mais dei- ventos adversos contra o litoral do Egito onde vive Proteu,
xá-lo em liberdade, servindo-se dele para seus serviços. O rapaz e não consegue sair dali com seus companheiros. Passaram-se
escapa, mas volta a ser agarrado e é preso num estábulo escuro já alguns anos e ele está desesperado. Então a filha de Proteu
pelo mestre. Lá ele reflete sobre a libertação e nada lhe ocor- se compadece dele e lhe diz o que deve fazer para apoderar-se
re; o tempo passa e ele fica cada vez mais triste. de seu pai, que é capaz de prever o futuro, e obrigá-lo a falar.
Um dia percebe um raio de sol no estábulo. Investigando, Ela fornece peles de focas a Menelau e a dois dos seus com-
encontra uma fenda na porta pela qual penetrava o raio de panheiros, cava buracos na praia para escondê-los, e os cobre
sol. Rapidamente ele se transforma num rato e escapa através com as peles de focas. Com paciência, apesar do mau cheiro,
da abertura. O mestre percebe que ele escapou; transforma-se eles esperam ali até que chegue o bando de focas, entre as
num gato e corre atrás do fugitivo. quais permanecem depois deitados com o inofensivo disfarce.
Tem início agora uma louca série de metamorfoses. O gato Proteu sai do mar, conta o seu bando e, tranqüilizado, deita-se
já está abrindo a boca para matar o rato, quando este se trans- para dormir no meio dele. Chegou para Menelau e seus com-
forma num peixe e salta na água. O mestre se transforma ime- panheiros o momento esperado; eles agarram o velho enquanto
diatamente numa rede e persegue o peixe. Quando está quase dorme e não o soltam mais. Este procura livrar-se de todas as
conseguindo pegá-lo, o peixe se transforma num faisão. O maneiras, transformando-se numa porção de coisas; primeiro
mestre, agora como falcão, dá prosseguimento à caça. O fai- num leão com uma juba imensa, depois numa cobra; mas eles
são já está quase sentindo as garras do seu antagonista quando, o seguram. Transforma-se num leopardo e num poderoso ja-
transformado em maçã vermelha, se deixa cair no colo do rei. vali, mas eles o seguram. Transforma-se em água e depois
O mestre se transforma em faca, e o rei repentinamente a tem numa árvore frondosa, mas eles não o soltam. Ele tenta todas
na mão. O rei faz menção de usar a faca para cortar a maçã, as transformações, mas continua firmemente preso por eles.
mas esta já não está mais lá, tendo sido substituída por um Finalmente ele se cansa. Volta a tomar sua própria figura, a de
punhado de milho. Diante deste milho está agora uma galinha Proteu, velho do mar, e lhes pergunta o que querem e lhes dá
com seus pintinhos — é o mestre. Os pintinhos comem os as explicações desejadas.
grãos até restar um só. Este, no último instante, se transforma Vê-se por que este tipo de metamorfose de fuga pode ser
numa agulha. A galinha e os pintinhos se transformam então denominado circular. Tudo acontece num único lugar. Cada
num fio de linha enfiado no fundo da agulha. Então a agulha metamorfose é uma tentativa para evadir-se em outra figura
se inflama e o fio queima. O mestre está morto. A agulha se ou, por assim dizer, em outra direção. Todas essas tentativas
transforma outra vez no rapaz, que então retorna para casa são inúteis e Proteu continua preso por Menelau e seus com-
onde fica vivendo com seu pai. panheiros. Não se pode falar de uma caça: ela já terminou; a
A série de metamorfoses duplas neste caso é a seguinte: presa está segura e as transformações são uma série de ten-
rato e gato, peixe e rede, faisão e falcão, maçã e faca, milho tativas sempre frustradas de fuga do prisioneiro. Este, final-
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mente, é obrigado a resignar-se a seu destino e a fazer o que se convertecentro e in a tal ponto que já não se movimenta
dele se espera. r_se mão de todo e qualquer movimento, como se
Por fim, eu gostaria de recordar aqui a história de Peleu ata. Abre tivesse ocorrido, e a outra pessoa se
•m almente a morte já
e Tétis que, como pais de Aquiles, alcançaram uma grand e É fácil compreender como teria sido útil para Tétis e
afasta, de se fazerem passar por mortos,
celebridade. Peleu é mortal; Tétis é uma deusa que resiste a para Proteu este
uma relação com ele, já que ele não parece ser digno dela. Ele u esre Tétis não teria sido amada e Proteu
caso inão Fossem
a surpreende dormindo numa caverna, agarra-a e não a solta sido obrigado a revelar o futuro. Mas ambos eram
não teria sido como tais, imortais. Por mais perfeita que tivesse
mais. Ela tenta, como Proteu, todos os tipos de metamorfose. deuses e,
Transforma-se em fogo e em água, em leão e em cobra. Mas sido a simulação, sua morte teria sido a única coisa na qual
ele não a solta. Ela se transforma num monstruoso e viscoso nguém jamais teria acreditado.
polvo e o salpica com sua tinta. De nada lhe serve. É forçada ni A forma circular da metamorfose de fuga é portanto a
a se entregar e posteriormente, após algumas tentativas para que dá sua coloração característica à histeria. Ela também ex-
se desfazer da descendência dele, torna-se mãe de Aquiles. plica a riqueza das metamorfoses de fenômenos de natureza
Neste caso, as metamorfoses tentadas por Tétis são muito fenômenos de natureza religiosa tão patentes nesta
parecidas com as de Proteu; a semelhança reside também na a em Qualquer forma de apreensão pode incitar à fuga
enrófetircmidade.
situação: uma captura e um agressor que a agarra e não a e a intenção da fuga pode ser impossível, se quem aprisiona a
solta. Cada uma dessas metamorfoses é uma tentativa de es- outra pessoa tem forças suficientes para não soltá-la,
capar numa nova direção. Por assim dizer, ela dá voltas para Uma imagem oposta à transformação de fuga ocorre nos
encontrar um lugar por onde possa fugir. Mas em ponto algum ataques dos xamãs. Também eles se mantêm fixos no mesmo
consegue abrir uma brecha; permanece prisioneira, e finalmente lugar durante a sessão toda. Estão rodeados por um círculo de
se entrega no centro de todas as metamorfoses, já na figura homens que os observam. O que quer que aconteça ao espí-
da própria deusa. rito de cada um deles, seu corpo visível permanecerá onde
No fundo, portanto, a história de Tétis nada acrescenta está. Às vezes eles se fazem amarrar, com medo de que seu
à de Proteu. Ela foi citada pelas suas nuanças eróticas. Ela lem- corpo se afaste juntamente com o espírito. O elemento circular
bra os ataques de um tipo de enfermidade que é freqüente e está portanto muito acentuado, tanto pela necessidade de per-
universalmente conhecida: a histeria. Os grandes ataques desta manecer aderente ao seu centro terreno, centro de ação, como
enfermidade nada mais são do que uma série de violentas me- pela presença de um círculo de adeptos. As metamorfoses su-
tamorfoses de fuga. A mulher atingida se sente presa por uma cedem-se rapidamente e alcançam uma grande intensidade e
potência superior que não a solta mais. Pode ser um homem, freqüência. No entanto — e esta é a diferença essencial em
do qual queira escapar, um homem que a amou e possuiu, ou relação ao ataque histérico usual — elas não devem servir à
um homem como Peleu, que irá logo possuí-la. Pode ser um fuga. O xamã, por meio de suas transformações, procura espí-
sacerdote que mantém a doente presa em nome de um deus; ritos auxiliares que lhe obedeçam. Ele mesmo os agarra e os
pode ser um espírito ou o próprio deus. Em todos os casos, é obriga a ajudá-lo nos seus empreendimentos. O xamã é ativo,
importante que a vítima sinta a proximidade física de um po- suas metamorfoses servem para o aumento do próprio poder
der superior, sua apreensão imediata por ele. Tudo o que ela e não para a fuga diante de outros que sejam mais poderosos
faz, principalmente cada transformação que empreende, está cal- do que ele. Nas viagens que seu espírito empreende enquanto
culada para conseguir vencer esta apreensão. A riqueza das seu corpo aparentemente jaz inconsciente, ele visita os mundos
metamorfoses que tenta a todo momento, das quais muitas mais distantes do céu e dos infernos. Voa e sobe tão alto quanto
apenas se manifestam em seus começos, é surpreendente. Uma quiser; bate as asas como um pássaro. Mergulha e afunda até
das mais freqüentes é a transformação em morto; trata-se de as profundidades que quiser, chegando ao fundo do mar, e força
uma metamorfose comprovada há muito tempo e que é co- a entrada na casa de uma deusa a quem deseje formular uma
nhecida em muitos animais. Tem-se a esperança de ser consi- súplica urgente que lhe vem do coração. Ele sempre regressa
derado morto. O indivíduo se finge de morto e o inimigo se ao centro, onde seus adeptos aguardam temerosos sua mensa-
afasta. Esta transformação é a mais central de todas; a pessoa gem. Pode acontecer também que alguma vez, em algum lugar,
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ele seja colocado em fuga e se veja obrigado a escapar mediante tentou fazer foi inútil. Ela está entregue a seu destino
tentou
uma transformação; de maneira geral, sua ação tende à ampli o que corno presa. Encontra-se numa fase descendente: presa,

tude e ao domínio e o parentesco com os casos de Proteu e e se carniça ou excremento. Os processos de depreciação,
de Tétis reside apenas na natureza circular de suas metamor rebaixam cada vez mais a própria pessoa, se expressam na
que transferida de sentimento de culpa. Uma culpa, origi-
forma
foses acumuladas.
Vale a pena voltarmos agora à forma linear, tal como a ,significava que se estava em poder de outra pes-
nariamente
conhecemos no conto georgiano do mestre e do seu discípulo soa. Quer uma pessoa se sinta culpada, quer se sinta presa, no
Lembramos que o mestre se transformou em gato para agarrar fundo é a mesma coisa. O melancólico não quer comer, e como
o discípulo que conseguira escapar como rato. Mais tarde o motivo para esta negativa ele pode afirmar que não merece
Na verdade ele não quer comer porque acredita que
mestre se transforma em rede, falcão, faca e galinha com pin- comer.
tinhos. Cada uma de suas metamorfoses serve para um novo ele mesmo está sendo comido. Quando nós o obrigamos a
gênero de caça. Do ponto de vista do mestre, trata-se de uma comer, estamos fazendo com que ele se lembre disso: sua boca
rápida sucessão de metamorfoses agressivas, de uma mudança se volta contra ele próprio; é como se colocássemos um espe-
não apenas de gênero, mas também dos espaços da caça. O lho na sua frente. Neste espelho, ele vê uma boca e vê que
caráter descontínuo e amplo dos acontecimentos, em combi- ela está comendo. Mas o que está sendo comido é ele mesmo.
nação com a intenção perigosa que os origina, tem um paren- O terrível castigo por se ter sempre comido está presente e é
tesco patente com os fenômenos de uma outra enfermidade psí- inescapável. No fundo trata-se aqui da última metamorfose,
quica: a mania. As metamorfoses do maníaco têm uma enorme daquela que está no final de todas as fugas: a metamorfose
versatilidade. Elas têm o que existe de linear e de vago no naquilo que é comido. E, para evitar esta metamorfose, todo
caçador, bem como o que existe de descontínuo em suas metas ser vivo foge, de qualquer forma que lhe seja possível.
mutantes quando não conseguiu o que desejava, mas não aban-
dona sua caça. Têm o que existe de exaltado e alegre em seu
estado de ânimo, que — aonde quer que ele vá parar — per- Automultiplícação e auto-ingestão. A figura
manece sempre tenso e orientado. O discípulo do conto repre- dupla do totem
senta a presa mutante, que pode ser tudo, mas que no fundo
é sempre a mesma coisa, ou seja, a presa. A mania é um paro- Dos mitos que o jovem Strehlow recolheu entre os arandas
xismo do "conseguir uma presa". O que lhe importa é desco- setentrionais da Austrália central, há dois que chamam nossa
brir, caçar e agarrar. A ingestão da presa não é tão importante atenção de forma especial. O primeiro, o mito bandicoot ou
na mania. A caça do mestre assume seu caráter completo so- dos ratos marsupiais, diz o seguinte:
mente a partir do momento em que o discípulo escapa do está- "No começo, tudo jazia em eterna escuridão. A noite pe-
bulo escuro. Ela estaria terminada e com ela também, por as- sava sobre a Terra como uma espessura impenetrável. O an-
sim dizer, a crise maníaca teria passado, assim que o mestre o cestral — seu nome era Karora — dormia na noite perpétua
tivesse outra vez bem seguro dentro do seu estábulo. na parte mais baixa do charco de Ilbalintja. Mas ainda não ha-
Foi no estábulo que encontramos pela primeira vez o dis- via água dentro dele; tudo era apenas solo seco. A terra sobre
cípulo. "Meditava sobre sua libertação e nada lhe ocorria, o ele estava vermelha de tantas flores e todos os tipos de grama
tempo passava e ele ficava cada vez mais triste". Aqui de- formavam uma espécie de tapete; uma grande haste balançava
paramos com o começo do estado que é o oposto da mania, sobre ele no alto. Essa haste tinha brotado no meio do campo
ou seja, a melancolia. Pode ser oportuno, já que falamos mui de flores cor de púrpura que cresciam no charco de Ilbalintja.
to a respeito da mania, dizer também algumas coisas a respei- junto à sua base descansava a cabeça do próprio Karora. A
to do estado de melancolia. partir deste ponto a haste se levantava contra o céu, como se
Ela tem início quando as metamorfoses de fuga chegaram fosse tocar sua abóbada. Essa haste era uma criatura viva, re-
ao fim e se dá conta de que todas elas foram inúteis. Na coberta de uma pele lisa como a pele de um homem.
melancolia, a pessoa é que foi alcançada e agarrada. Já não " Acabza deKa ror ajazia junto à base da grande haste;
assim jazia i deo come .
pode mais escapar. Já não se transforma em outra coisa. Tudo ço
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"Karora pensava e vontades e desejos lhe passavam pela ximidades. O filho os traz de volta ao pai, que os cozinha no
cabeça. Repentinamente os bandicoots lhe saíram do umbigo e do pelo sol como já tinha feito antes e divide a
das axilas. Romperam a crosta que o cobria e saltaram para solo ealcia com o filho. A noite se aproxima e ambos não
a vida. carne cozidaadormecer. Nesta noite mais dois filhos nascem das
"Então começou a clarear. De todos os lados, os homen s ta rdam em ai Estes, manhã seguinte, são chamados à vida
axilas do p •
viam como aparecia uma nova luz: o sol mesmo começou a m grito sonoro e vibrante, como já acontecera antes.
mediante 1-1m
"Este processo se repete por muitos dias e noites. Os fi-
levantar-se e inundou tudo com sua luz. Então o ancestral pen-
sou em levantar-se, agora que o sol subia mais alto. Rompeu ncarregam da caça e o pai, todas as noites, traz ao
lhos se em número crescente de filhos — em algumas noites
a crosta que o recobria e o buraco aberto que deixou atrás mundo ua nascer até cinqüenta. Mas o final não se faz esperar
de si se converteu no charco Ilbalintja e se encheu com o sumo chegam
escuro e doce dos botões de madressilva. O ancestral se le- uito. Não demora muito tempo para que pai e filhos tenham
m
vantou e sentiu fome, já que forças mágicas tinham emanado devorado todos os bandicoots que originariamente tinham saí-
do seu corpo. do do corpo de Karora. Apertado pela fome, o pai envia seus
"Ele ainda se sentia aturdido; lentamente suas pálpebras filhos a uma caça de três dias. Eles atravessam a grande pla-
começaram a se mover; depois ele as abriu um pouco. Em seu nície. Durante longas horas procuram as presas no meio do
atordoamento tateia em volta de si. Por todos os lados, à sua pasto alto e branco, na penumbra dos bosques quase ilimita-
volta, percebe uma massa de bandicoots que se movimenta, dos. Mas em nenhum lugar existem bandicoots e eles são
Agora ele já está mais firme sobre seus pés. Pensa, sente dese- obrigados a voltar.
jos. Em sua grande fome, agarra dois filhotes de bandicoots e "É o terceiro dia. Os filhos estão a caminho de volta, es-
os cozinha a pouca distância, perto do lugar onde está o sol, no fomeados e cansados, em grande silêncio. De repente, um ruído
calcinante solo ardente que foi aquecido pelo sol. Somente os atinge-lhes os ouvidos; um som como que de um bumerangue
dedos do sol lhe fornecem o fogo e a cinza quente. girando no ar. Escutam; começam a procurar o homem que o
"Assim que fica saciado, seus pensamentos se dirigem está usando. Procuram, procuram e procuram. Com seus ca-
a alguém que possa ajudá-lo. Mas agora a noite se aproxima; jados espetam todos os ninhos e refúgios dos bandicoots. De
repente, salta algo escuro e peludo e desaparece. Um grito
o sol esconde seu rosto com um véu de cordas de cabelos,
ecoa: 'Ali corre um wallaby das colinas de areia'. Eles lançam
cobre seu corpo com pendentes de corda de cabelos e desapa-
seus bastões naquela direção e lhe quebram uma perna. E então
rece diante dos olhos dos homens. Karora adormece, os braços
ouvem as palavras de uma canção que vem do animal ferido:
esticados de ambos os lados.
"Enquanto dorme, debaixo de sua axila surge algo com `Eu, Tjenterama, agora estou coxo.
forma de um bumerangue. Toma a forma de um homem e Sim, coxo, e a púrpura eterna escorre de mim.
cresce numa noite até ser um jovem adulto: é o seu filho pri- Eu sou um homem como vocês. Não sou um bandicoot.'
mogênito. Nesta noite Karora acorda, por sentir algo pesado "Com estas palavras o coxo Tjenterama se afasta man-
pressionando seu braço: vê então seu filho primogênito a seu cando..
lado, com a cabeça repousando sobre seu ombro. "Os estupefatos irmãos prosseguem seu caminho em di-
"Clareia. Karora se levanta. Solta um grito sonoro, vi- reção ao pai. Logo vêem que ele se aproxima. Ele os conduz
brante; o filho, por causa disso, desperta para a vida. Levan- de volta ao charco. Estão sentados ao redor dele em círculos,
ta-se; dança a dança cerimonial em torno do pai que está sen- um círculo em torno do outro, como ondas na água que foi
tado, enfeitado com todas as insígnias de sangue e de plumas. posta em movimento. E então chega a grande maré do doce
O filho tropeça, ele ainda não está bem desperto. O pai começa mel dos botões de madressilva do leste e os inunda; ela os
a tremer violentamente com o tronco e com o peito. Então o carrega de volta ao charco Ilbalintja.
filho coloca suas mãos sobre ele. A primeira cerimônia chegou O velhoKarora permanece ali. Seus filhos, porém, são
ao fim. levados
‘ mais além pela corrente, por debaixo da terra, até um
"O filho é então enviado pelo pai para matar alguns lugar na espessura. Lá encontram Tjenterama, ao qual, sem
bandicoots. Estes brincam pacificamente nas sombras das pro- sabe,
r ueb m a perna com seus bastões. Ele se transforma
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num grande chefe. Karora continua dormindo seu sono eterno
no fundo do charco Ilbalintja." bastões num gesto de desprezo e nada disseram. O forasteiro
O segundo é o mito Lukara: então ficou ofendido. Num gesto de grande audácia, agarrou
o pacote dos irmãos Lukara e saiu correndo com ele, antes que
"No muito famoso Lukara, às margens do grande olho 1 ±.os irmãos o pudessem impedir.

d'água, nos primeiros começos, um velho jazia em sono pro- "Horrorizados, eles retornaram até onde se encontrava
fundo ao pé de um arbusto de larvas witchetty. Eternidades u pai. Antes mesmo que chegassem, ele já tinha sentido a
se
tinham passado sobre ele; ele tinha permanecido imperturbado perda do pacote das larvas. No momento em que o ladrão
como um homem num interminável estado de semi-sono. Desde roubou as larvas, o pai tinha sentido uma dor aguda no corpo.
o começo ele não se havia movido, não fizera um único movi- Então, lentamente, ele se ergueu e com passos vacilantes se-
mento; tinha permanecido sempre reclinado sobre seu braço guiu o ladrão. Mas como não lhe foi possível diminuir a dis-
direito. Eternidades tinham passado sobre ele em seu sono per- tância entre eles, o ladrão levou as larvas para a distante
pétuo. Mboringka. O pai então caiu por terra e seu corpo se trans-
"Quando balançou a cabeça em seu sono eterno, as larvas formou numa churinga viva, uma pedra comemorativa sagrada.
brancas se arrastaram sobre ele. Elas sempre tinham estado Os filhos também se transformaram todos em churingas; e o
sobre seu corpo. O velho não se movia e também não acor- pacote com as larvas roubadas também se transformou numa
dava. Ele jazia ali em sono profundo. As larvas se moviam so- churinga."
bre todo o seu corpo como um enxame de formigas, e de vez Estes dois mitos tratam de dois ancestrais bem diferen-
em quando o velho afastava suavemente algumas delas, sem tes: um é o do pai dos bandicoots ou ratos marsupiais, o outro
despertar do sono. Mas elas voltavam arrastando-se sobre o é o do pai das larvas witchetty. Ambos são importantes totens
corpo dele; elas penetraram nele. Mas ele não acordava. Eter- para os arandas. Até o dia em que estas lendas foram recolhi-
nidades continuaram passando. das, estes totens existiam e suas cerimônias eram celebradas.
"Então, certa noite, enquanto o velho dormia reclinado Eu gostaria de destacar algumas características que chamam a
sobre seu braço direito, alguma coisa caiu de sua axila direita, atenção e que são comuns a ambos os mitos.
alguma coisa que tinha a forma de uma larva witchetty. Caiu Karora, o pai dos bandicoots, passa primeiro um longo
no solo, tomou forma humana e cresceu rapidamente. Quando tempo sozinho. Ele jaz em eterna escuridão e dorme sob unia
a manhã chegou, o velho abriu os olhos e olhou atônito para crosta no fundo do charco. Não está consciente e ainda não
seu filho primogênito." fez coisa alguma. De repente, gera-se a partir do seu corpo uma
O mito continua relatando como um grande enxame de verdadeira multidão de ratos marsupiais. Eles saem do seu
filhos varões "nasceram" de maneira idêntica. O pai não se umbigo e de suas axilas. O sol aparece e sua luz o incita a
movimentava. O único sinal de vida que dava era abrir os romper a crosta. Ele sente fome, mas está atordoado. Neste
olhos às vezes. Até mesmo recusava todos os alimentos que estado de atordoamento, ele tateia em seu redor e a primeira
seus filhos lhe ofereciam. Os filhos, entretanto, se dedicaram coisa que sente é uma massa viva de ratos marsupiais que o
com afinco à tarefa de desenterrar as larvas witchetty das raí- rodeia por todos afi lados.
zes dos arbustos vizinhos. Eles as assavam e comiam. Às vezes No outro mito, o pai das larvas, cujo nome não é referido,
eles mesmos sentiam o desejo de voltar a transformar-se em jaz ao pé de um arbusto e dorme. Ele dorme há uma eterni-
larvas. Então cantavam uma fórmula mágica, se transformavam dade. Sobre seu corpo arrastam-se as larvas brancas. Elas se
em larvas e voltavam a entrar nas raízes dos arbustos. De lá encontram por todas as partes como formigas. Aqui e ali, sem
voltavam a sair à superfície e retomavam novamente a forma acordar, ele suavemente afasta algumas de si. Elas se arrastam
humana.
novamente e penetram no seu corpo. Ele continua dormindo
"Então chega um forasteiro, um homem como eles, mas no meio deste monte em ebulição.
vindo do distante Mboringka. Ele vê as larvas gordas dos irmãos Ambos os mitos principiam com o sono. Em ambos a
Lukara e sente vontade de comê-las. Em troca ele lhes oferece primeira relação com outras criaturas tem o caráter de um sen-
suas próprias larvas que eram compridas, magras e miseráveis. timento de massa. É o sentimento de massa mais denso e
Os irmãos Lukara empurraram o pacote dessas larvas com seus imediato: o da pele. Um deles percebe os ratos marsupiais
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quando, em estado semidesperto, tateia pela primeira vez em rirmo repetindo-se durante muitas noites. Cada vez são mais
torno de si. O outro sente as larvas sobre a pele ainda em filhos que nascem; em algumas noites o pai chega a ter cin-
estado de sono e as afasta, mas sem desfazer-se delas. Elas qüenta novos filhos. Todo este processo também pode ser de-
regressam e penetram no seu corpo. signado no sentido mais restrito da palavra, como sendo a
Esta sensação de estar coberto por enxames descomunais „,,tomultipheaçao de Karora.
de pequenos insetos, que são sentidos em todas as partes do — Algo muito semelhante ocorre no segundo mito. O velho
corpo, naturalmente é conhecida por todos Não se trata de continua dormindo, reclinado sobre seu braço direito; repen-
uma sensação agradável. Ela aparece freqüentemente em aluci- inamente, certa noite, cai de sua axila direita algo que tem a
nações, por exemplo no delirium tremens. Quando não são tf o
rma de uma larva witchetty. Cai no solo, assume a forma
insetos, são ratos ou ratazanas. O formigamento ou o roer da humana e cresce rapidamente. Quando amanhece, o velho abre
pele são atribuídos à atividade de insetos ou de pequenos roe- os olhos e vê, assombrado, seu filho primogênito. O processo
dores. No próximo capítulo trataremos disto com maiores torna a se repetir e um grande número de "homens-larvas"
detalhes: a expressão "sentimento de massa da pele" será ex- nasce de maneira idêntica. É importante assinalar desde já que
plicada e justificada então. Mas resta chamar a atenção para estes homens podem transformar-se quando quiserem numa
uma importante diferença entre estes e aqueles casos. Nos mitos determinada espécie de larvas e depois retornar ao seu estado
dos arandas esta sensação é agradável. O que o ancestral sente de homens.
aqui é algo que se origina a partir dele mesmo, não alguma Em ambos os mitos trata-se portanto da automultiplica-
coisa hostil que o ataca de fora para dentro. ção e em ambos trata-se também de um nascimento duplo.
No primeiro mito narra-se como os ratos marsupiais ou Duas espécies distintas de criaturas se originam a partir de
bandicoots saem do umbigo ou das axilas do ancestral. Antes um mesmo ancestral. O pai dos ratos marsupiais dá origem
eles estavam contidos dentro dele próprio. Este pai é um ser primeiro aos bandicoots, e logo em seguida a um grande núme-
extremamente curioso: seria possível designá-lo como mãe de ro de homens. Ambos se originam da mesma maneira. Eles
massas. Inúmeras coisas brotam simultaneamente do seu corpo, devem considerar-se como parentes muito próximos, uma vez
de partes que não são habitualmente destinadas ao nascimento. que têm o mesmo paí. Têm o mesmo nome: bandicoot. Como
Ele se assemelha a uma rainha de térmitas; porém a uma rainha nome de um totem significa que todo homem que pertence a
que extrai seus ovos de partes muito diferentes do seu corpo. esse grupo é um irmão mais jovem dos ratos marsupiais que
No segundo mito, é dito que as larvas sempre estiveram sobre nasceram antes dele,
ele. Não se menciona — por enquanto — que elas tenham Exatamente o mesmo vale para o ancestral das larvas
saído do corpo do próprio ancestral; apenas estão sobre ele witchetty. Por um lado, ele é pai das larvas e, por outro, tam-
ou penetram nele. Entretanto no transcorrer do mito aparecem bém dos homens, Os homens são os irmãos mais jovens das
características que nos levam a supor que as larvas primitiva- larvas. Todos juntos são a encarnação visível da fertilidade do
mente se tenham originado dele; que ele próprio é inteira- grande ancestral do respectivo totem. Strehlow, a quem se
mente formado por elas. deve um grande reconhecimento por ter recolhido estes impor-
Os nascimentos dos quais se fala aqui não são apenas no- tantes mitos, encontrou uma expressão feliz para isso. "O an-
táveis por ocorrerem a partir de um pai e por se tratar de cestral", diz ele, "representa a soma total da essência viva das
grandes massas, mas também porque o que nasce é algo bas- larvas witchetty, tanto das larvas animais como das humanas,
tante distinto do original. contempladas como um todo. Cada célula, poder-se-ia dizer,
Depois de Karora, o pai dos ratos marsupiais, ter saciado do corpo do ancestral original é um animal vivo ou um ser
sua fome, cai a noite e ele volta a dormir. Debaixo de sua humano vivo. Se o ancestral é um 'homem-larvas witchetty',
axila surge um bumerangue. Ele toma a forma de um homem então cada célula do seu corpo é potencialmente ou uma larva
e cresce; no decorrer de uma só noite torna-se um jovem. witchet ty viva s9arada, ou um ser humano separado do totem-
Karora sente a carga de algo pesado sobre seu braço. Desperta: larvas witehett y
a seu lado está deitado seu filho primogênito. Na noite se- Este aspecto duplo do totem manifesta-se com clareza
guinte, nascem-lhe dois filhos das axilas. Esta situação con- especial no fato de os filhos humanos às vezes terem o desejo
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de voltar a ser larvas. Então eles recitam uma fórmula mágica, alimentação. O processo da incorporação de alimentos se en-
transformam-se em larvas e rastejam de volta às raízes dos contra predeterminado pelo da metamorfose. A direção dos
arbustos onde comumente vivem estas larvas. De lá, elas podem dois processos é a mesma, eles coincidem inteiramente. Para
é como se ele se alimentasse de si mesmo.
voltar a sair e retomar, se quiserem, a figura humana. As figu- o antepassado,
ras separadas permanecem perfeitamente claras, são larvas ou Vamos observar estes fatos com uma atenção maior. De-
homens, mas podem transformar-se umas nos outros e vice- pois que Karora trouxe os bandicoots ao mundo e o sol come-
versa. A restrição a esta determinada metamorfose, pois em si çou a brilhar, ele rompe a crosta que o recobre, ergue-se e
seriam possíveis infinitas outras, é o que define a natureza do sente fome. Por causa desta fome ele tateia em torno de si,
totem. O ancestral que as gerou somente tem a ver com estas apesar de ainda estar meio atordoado; é justamente neste mo-
mento que sente por todos os lados a massa viva dos ratos
duas espécies de criaturas e não com qualquer outra coisa. Ele
representa seu parentesco remoto com exclusão de qualquer marsupiais. Agora ele fica mais firme sobre suas pernas. Ele
pensa e tem desejos. Na sua enorme fome, agarra dois ratos
outro que possa existir no mundo. Seus filhos sentem o desejo
de optar ora por uma ora por outra figura. Pela aplicação da marsupiais e os cozinha um pouco mais além, lá onde o sol
esquentou o chão até deixá-lo incandescente. Depois disso, e
fórmula mágica, eles podem ceder a este desejo e praticar esta
somente depois disso, ele pensa em alguém que possa ajudá-lo.
metamorfose que lhes é inata.
Os ratos marsupiais que ele sente como massa em torno
Não se pode enfatizar suficientemente o significado desta
de si saíram dele próprio, são partes do seu corpo, carne de
figura dupla do totem. A própria metamorfose, mas uma me-
sua carne. Por causa da fome, ele os sente como alimento.
tamorfose muito determinada, é fixada na figura do totem e
transferida aos descendentes. Em cerimônias importantes que Agarra dois deles, que aliás são designados como filhotes, e os
servem para a multiplicação do totem, isso é representado de cozinha. É como se tivesse devorado, ainda jovens, dois dos
forma dramática. Isto significa que sempre se representa tam- seus próprios filhos.
bém a metamorfose que este totem encarna em si. O desejo Na noite seguinte ele traz ao mundo o seu filho primo-
das larvas de transformar-se em homens — e o dos homens, gênito humano. De madrugada ele lhe instila vida através da-
em larvas — foi sendo transmitido pelos ancestrais aos mem- quele grito sonoro e vibrante e faz com que ele se levante.
bros vivos do clã-totem, que consideram um dever sagrado Eles celebram uma cerimônia em conjunto, na qual se esta-
entregar-se a esse desejo em suas cerimônias dramáticas. Porém, belece sua relação de pai e filho. Imediatamente o pai o envia
para que o rito de multiplicação dê certo, é necessário que essa para matar ratos marsupiais. São seus outros filhos, nascidos
determinada metamorfose seja representada de forma correta, antes, e estão brincando pacificamente à sombra nas proximi-
sempre da mesma maneira. Cada participante sabe quem tem dades. O filho leva o rato que matou para onde se encontra
diante de si ou quem essa pessoa está representando quando o pai. Este o cozinha ao sol como no dia anterior e divide a
são representados acontecimentos da vida das larvas. Ele tem carne cozida com o filho. O que o filho come agora é a carne
o nome dessas larvas, mas também pode transformar-se nelas. dos seus irmãos e, na verdade, também a de seu pai. O pró-
Enquanto tiver o nome delas, estará praticando a antiga me- prio pai lhe ensina a matar os ratos e lhe mostra como eles
tamorfose. Seu valor para ele é imensamente grande: a multi- devem ser cozidos. É o primeiro alimento do filho, como tam-
plicação das larvas depende dele, mas também sua própria bém foi o primeiro alimento do pai. Não se fala de qualquer
multiplicação, porque uma é inseparável da outra; a vida do outra alimentação na lenda toda.
seu clã está determinada em todas as direções pela manuten- Durante a noite seguinte, Karora traz ao mundo dois no-
ção desta transformação. vos filhos humanos. Ao amanhecer eles são chamados à vida,
Outro aspecto muito importante destas lendas refere-se e agora os três juntos são enviados à caça dos ratos marsupiais.
ao que poderia ser chamado de auto-ingestão. O ancestral dos Trazem o botim de volta, o pai cozinha a carne e a divide com
ratos marsupiais e seus filhos alimentam-se dos ratos marsu- eles. O número dos filhos aumenta; todas as noites chegam
piais, os filhos do ancestral-larva alimentam-se de larvas É ao mundo mais filhos humanos; em uma única noite nascem
como se não existisse nenhum outro alimento, ou pelo menos Cinqüenta deles. Todos são enviados à caça. Mas, enquanto os
como se eles não estivessem interessados em nenhuma outra filhos humanos aumentam cada vez mais, Karora não produz
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mais ratos marsupiais. Estes apareceram apenas no começo, t dessas larvas e nenhum outro alimento é men-
todos de uma só vez. Finalmente, todos foram devorados; o alimentam-se
pai e seus filhos, em conjunto, os comeram todos. cionado. a auto-ingestão é própria dos filhos. O velho
Neste caso,r as larvas, sentindo-se pai delas, sua própria
Agora eles têm fome. O pai envia os filhos para longe,
para uma caçada de três dias. Por onde quer que andem, pro- se nega a commais fácil esta auto-ingestão é para os filhos.
mau to
carne. Muito
curam pacientemente apenas ratos marsupiais, mas não con- impressão de que neles a metamorfose e a alimenta-
Tem-se
seguem encontrá-los. No caminho de retorno ferem na perna
ção estreitamente ligadas. É como se o seu desejo de
uma criatura que eles tomaram por um animal. Imediata- do fato de comê-las com tanto
converter em larvas nascesse
mente ouvem esta criatura cantando: "Sou um homem como do Eles as assam e comem; depois eles
agrado. Eles as procuram,
vocês. Não sou um bandicoot". Depois, mancando, a criatura esmos se transformam em larvas. Após algum tempo arras- arras-
m
se afasta. Os irmãos (que agora já devem ser muitos) retor- tam-se para a superfície, onde reassumem a forma humana.
nam ao lugar onde se encontrava o pai. A caçada chegou ao Então, quando comem as larvas, é como se estivessem comen-
fim. do a si próprios.
O pai, portanto, primeiro trouxe ao mundo um determi- Aos dois casos de auto-ingestão, o do pai bandicoot e o
nado alimento para si e para seus filhos posteriores; esse ali- dos filhos-larvas, agrega-se um terceiro, que se afasta um
mento são justamente os ratos marsupiais. Trata-se de um ato pouco dos dois primeiros. Ele pertence a uma terceira lenda
único, que não se repete no decorrer da lenda. Depois chegam que é apresentada de forma muito resumida por Strehlow.
paulatinamente ao mundo todos os filhos humanos que, junto Trata-se da história de outro ancestral-larva, o de Mbo-
com o pai, comem esse alimento até não restar mais nada. O ringka. Ele sai regularmente para roubar e matar homens-larvas,
pai não lhes ensinou caçar outra coisa, ele não lhes indica que são seus próprios filhos. A respeito destes, diz-se expres-
qualquer outra coisa. Tem-se a impressão de que ele quer ali- samente que têm forma humana. Ele os assa e come com de-
mentá-los apenas com sua própria carne, com os ratos marsu- leite; ele gosta de sua carne doce. Um dia, a carne de suas
piais que saíram dele próprio. Em seu modo de agir omitindo entranhas se transforma em larvas. Estas consomem o pai de
todo o resto, ele parece querer isolar seus filhos e colocá-los dentro para fora e assim, no final, o pai acaba sendo devorado
contra todos os demais; nisto existe algo semelhante ao ciúme. pelos filhos que ele mesmo matou.
Não aparece qualquer outro ser na lenda, a não ser no final a Este caso de auto-ingestão conduz assim a um curioso
criatura cuja perna eles ferem, um homem como eles, aliás ele acréscimo. O comido come por sua vez. O paí come seus filhos
próprio um grande ancestral, ao qual mais tarde rendem e estes mesmos filhos o comem, quando ele já os está dige-
homenagem. rindo. O canibalismo é duplo e recíproco. Mas o mais sur-
Na segunda história, que trata do pai das larvas, a rela- preendente é que a resposta venha a partir de dentro, a partir
ção entre descendência e alimento é parecida, mas não é intei- das entranhas do pai. Para que isto seja possível é necessária
ramente idêntica. O primeiro filho cai como larva da axila uma metamorfose dos filhos comidos. Ele os come como ho-
paterna e assume a forma humana assim que toca o solo. O mens; eles comem o pai como larvas ou vermes. Trata-se de
pai não se move, permanece totalmente quieto. Ele nada exige um caso extremo e, à sua maneira, muito completo. Caniba-
do filho e nada lhe ensina. Muitos filhos continuam nascendo lismo e metamorfose celebram aqui sua mais estreita aliança.
de maneira idêntica; a única coisa que o pai faz é abrir os O alimento permanece vivo até o final, e ele mesmo come
olhos e contemplar seus filhos. Nega-se a aceitar alimento deles. COT/1 prazer. Sua metamorfose em larvas no estômago do pai
Estes entretanto, se dedicam com interesse a desenterrar as é uma espécie de reanimação. Esta porém serve para satis-
larvas das raízes dos arbustos próximos; eles as assam e co- fazer o desejo pela carne do pai.
mem. O curioso é que eles às vezes sentem o desejo de trans- As metamorfoses que unem o homem com os animais
formar-se na mesma espécie de larva da qual se alimentam. que ele come são fortes como correntes. Sem transformar-se
Quando isto acontece, arrastam-se de volta às raízes dos arbus- em animais, o homem jamais teria aprendido a comê-los. Cada
tos e vivem lá como as larvas. Eles são ora uma coisa, ora um destes mitos contém urna experiência essencial: a obtenção
outra; ora são homens, ora são larvas; mas, quando homens, de determinada espécie animal que serve de alimento; sua gê-
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nese pela metamorfose; sua ingestão e a transformação de perseguiraim e caçaram de forma tão eficiente que não se podia
seus restos em nova vida. A recordação de como se obteve o „ruutrar mais nenhum bandicoot a uma distância de três dias
alimento, ou seja, precisamente por metamorfose, está contida 5;-carninhada. Nestes momentos de fome teria sido necessário
ainda em comunhões sacras posteriores. A carne, que se des-
fruta em conjunto, não é o que representa; ela está em lugar produzir novos bandicoots. A auto-ingestão tinha ido dema-
siadamente longe; todos os irmãos mais velhos, os primeiros
de outra carne e se converte nela no momento em que é de Karora, tinham sido devorados. Nesse momento teria
comida. f ilhos
importante que a auto-ingestão voltasse a ser substituída
É importante observar que a auto-ingestão da qual se auto multiplicação com que tudo tinha começado.
S
pela aiu
i n
fala aqui, apesar de ser comum nas lendas a respeito da ori- É exatamente esta transformação que ocorre hoje em dia
gem dos arandas, não o é em suas vidas diárias. O comporta-
mento real dos membros de um clã-totem em relação ao animal nos atuais ritos para a multiplicação dos animais totêmicos.
Está-se tão estreitamente aparentado com o animal totêmico
do qual têm o nome é completamente diferente do que apa-
que já não se consegue separar muito bem a sua multiplicação
rece nas lendas de suas origens. Na verdade os membros de
da própria. Uma parte essencial e repetida sempre nos ritos
um clã nunca se alimentam do seu totem. Estão proibidos de é a representação dos ancestrais que foram ambas as coisas,
matar ou de comer esse animal; devem considerá-lo como seu ora homens ora animais. Por sua própria vontade eles se trans-
irmão mais velho. Somente durante as cerimônias que servem formam um no outro; e somente será possível representá-los
para a multiplicação do totem, durante as quais se represen- se se dominar esta metamorfose. Os ancestrais aparecem como
tam os antigos mitos e certos membros do clã aparecem como as figuras duplas das quais falamos acima. A metamorfose é a
sendo seus próprios ancestrais, é-lhes feita a solene entrega de parte essencial da representação. Desde que ela seja efetuada
um pedaço da carne do seu totem. Eles são informados de que corretamente, o parentesco 'continua bem fundamentado e po-
devem servir-se apenas de um pouco dessa carne. Ela lhes está de-se assim forçar o animal, que se é, à multiplicação.
proibida como alimento habitual; e, se um desses animais cair
em suas mãos, eles não devem derramar seu sangue. Devem
entregá-lo aos membros de sua família, ou a bandos que per- Massa e metamorfose no delirium tremens
tençam a outros totens; estes podem comê-lo.
No período que se segue ao tempo mítico dos ancestrais,
As alucinações dos alcoólatras oferecem uma oportunidade
que do ponto de vista dos arandas pode ser considerado como para estudarmos a massa tal como ela se apresenta na imagi-
a era presente, a auto-ingestão foi substituída portanto por um nação do indivíduo. Certamente trata-se aqui de sintomas de
outro princípio: o da proibição. Não se comem os próprios intoxicação, mas esses sintomas são acessíveis a qualquer um;
parentes mais próximos entre os animais, da mesma forma dentro de certos limites, eles podem ser provocados de forma
que não se comem outros seres humanos. O período do cani- experimental. Seu caráter geral é inegável: homens de origens
balismo-totem — pois assim poderia ser designado o ato de e predisposições muito diferentes têm, em suas alucinações,
ingerir a carne dos próprios totens — passou. Permite-se que características elementares comuns. Seus pontos máximos em
os membros de um outro clã comam os parentes mais próxi- termos de acúmulo e de intensidade são alcançados no delirium
mos que um indivíduo tem entre os animais; os membros desse tremens. Seu exame é frutífero em dois sentidos. Os fenôme-
outro clã, por sua vez, devem aceitar que seus parentes animais nos -de metamorfose e de massa estão entrelaçados de maneira
sejam devorados por outras pessoas. É muito mais do que uma peculiar no delírio; em nenhum outro caso é mais difícil sepa-
simples concessão. Mediante esta autorização, permite-se que rá-los do que neste. No delírio aprende-se tanto sobre a me-
o próprio animal-totem se multiplique. Os ritos desta multi- tamorfose como sobre a massa; e ficamos — depois de muitas
plicação foram transmitidos e confiados a uma pessoa; seu — com a convicção de que seria mais correto não
dever é colocá-los em prática. Os animais muito caçados têm estabelecer separação alguma ou apenas o menor número pos-
tendência a emigrar ou a se tornarem mais escassos. Basta sív e l, entre ambas as coisas.,
oisas:
lembrar a primeira lenda, na qual todos os bandicoots dos Para dar uma idéia da natureza destas alucinações, come-
arredores desapareceram; os incontáveis filhos de Karora os çaremos reproduzindo a descrição de Krãpelin, e logo em se-
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guida a de Bleuler. O enfoque de ambos não é exatamente o c) enfermo está totalmente incapacitado para qualquer
,,
mesmo; o que coincide em ambos terá um valor tanto maior ocupação realmente ordeda; ele passa a ficar completa ele mente
de demonstração para as nossas finalidades. fado pelas suas ilusões. São raras as vezes que as
"Entre as percepções enganadoras do delirium tremens",
diz Krãpelin, "costumam predominar as da visão. As ilusões Zxrea perpassar simplesmente diante dos seus olhos; na maioria
das vezes, elas lhe provocam reações veementes. Ele não fica
são na maior parte das vezes de grande nitidez sensorial, mais ç a, força o caminho até a porta, pois o momento de sua
raramente crepusculares, indeterminadas; com freqüência são nacarn- está iminente e todos já se encontram à espera dele.
amedrontadoras e têm conteúdo desagradável. São considera- 1e se diverte com os animais curiosos, retrocede tremendo
E
diante dos pássaros em vôo, procura afastar os vermes do
das pelos enfermos às vezes como realidades, às vezes como
simulacros artificiais — lanterna mágica, cinema — que ser- chão, pisotear os animais; enlouquecido persegue as pulgas,
vem para diverti-los ou para assustá-los. Com freqüência, são recolhe o dinheiro esparramado por todos os lados, procura
vistos em massa objetos menores e maiores: pó, copos, moe- omper os fios que o envolvem; salta com esforço penoso sobre
r
das, flocos, garrafas, barras. Quase sempre as imagens da visão osfios de arame estendidos acima do solo.
mostram uma mobilidade mais ou menos vivaz; também "No delírio do alcoólatra", diz Krâpelin em outra pas-
ocorrem casos de visão dupla. Esta instabilidade das percep- sagem resumindo o assunto, "chama a atenção o caráter de
ções enganosas serve, talvez, para explicar a freqüência com massa das alucinações de igual espécie e sua movimentação
que são vistos animais que deslizam ou se movem furtiva- múltipla e vivaz, sua emergência, sua diminuição e seu desa-
mente. Eles se amontoam entre as pernas, zunem pelo ar, re- pareci m ento .
cobrem a comida; tudo está repleto de aranhas "de asas dou- A descrição do delirium tremens feita por Bleuler não é
radas", bichinhos, percevejos, cobras, vermes com longos menos impressionante.
espinhos, ratos, cães, feras... Grandes quantidades de pessoas "Em primeiro plano destacam-se alucinações de matizes
se precipitam sobre os enfermos, cavaleiros hostis, até mesmo particulares: afetam primordialmente a visão e o tato. As
`sobre pernas de pau', policiais; ou então passam desfilando em visões são múltiplas, móveis, na maior parte das vezes inco-
grandes formações, fantasticamente agrupadas, diante dos doen- lores e tendem à redução. As alucinações visuais e tácteis têm
tes; ameaçadoras figuras fantasmagóricas isoladas, aleijados, além disso, freqüentemente, a aparência de arames, fios, jorros
anõezinhos, diabos, 'rufiões de fogo', fantasmas enfiam a cabeça de água e de outros objetos grandes e finos. Visões elemen-
pela porta, arrastam-se por debaixo dos móveis, sobem pelas tares, como faíscas e sombras, são freqüentes. Nas alucinações
escadas até os pontos mais elevados. Mais raras são as moças auditivas, o que o doente ouve na maior parte das vezes é
sorridentes e bem-arrumadas ou os acontecimentos escabrosos, música — freqüentemente de ritmo marcado e vigoroso —,
brincadeiras carnavalescas, representações de teatro... o que é muito raro em outras psicoses. No decorrer da enfer-
" ...Diversas e estranhas sensações sobre a pele provo- midade, os pacientes podem estabelecer relações com centenas
cam no enfermo a idéia de que formigas, sapos, aranhas cami- de pessoas imaginárias, todas mudas...
nham sobre ele. O doente se sente envolto por fios delga- "Os objetos pequenos, móveis e múltiplos aparecem nor-
dos, salpicado de água, mordido, picado, alvejado. Ele recolhe malmente sob a forma de pequenos animais, como camundon-
dinheiro que vê jogado em torno de si e o sente nitidamente gos ou insetos. Estas são também as alucinações mais freqüen-
na mão, mas logo em seguida esse dinheiro escorre entre seus tes dos bêbados; mesmo assim, porém, não são raras as visões
dedos como se fosse mercúrio. Tudo o que ele toca desaparece, de animais das mais variadas espécies: porcos, cavalos, leões,
contrai-se ou cresce até se tornar monstruoso, para logo em camelos podem surgir reduzidos ou em tamanho natural; às
seguida voltar a diminuir, para rolar para a distância, para vezes aparecem também animais completamente inexistentes,
escorrer... em combinações inteiramente fantásticas. Com bastante fre-
"Os pequenos nós e as irregularidades do tecido são con- qüência ouvi a descrição de todos os tipos de casais de animais,
siderados como pulgas nos lençóis da cama; os riscos existen- normalmente de grandes dimensões, mas reduzidos então ao
tes sobre a mesa se transformam em agulhas; nas paredes tamanho de gatos e desfilando sobre uma tábua pregada à
abrem-se portas secretas... parede — uma tábua imaginária —, o que proporciona grande
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do efeito Liliput; só que aqui Gulliver não cresceu, apenas foi
de parte eles se transformaram em símbolos de massa. É muito
transportado para um mundo muito mais denso e repleto, mas possível que tenham sido eles que levaram o homem a pensar
também muito mais fluido. grandes; seus primeiros "milhares" e
Esta mudança de proporções não é tão surpreendente <e m massas realmentee g sido insetos.
como parece ser à primeira vista. Basta pensar no tamanho " talvez tenham
o poder e a imagem que o homem tem cie si mesmo já
reduzido e na enorme quantidade das células que constituem nii
crescido forma gigantesca quando descobriu a exis-
o corpo humano. São células de espécie muito distinta e estão tt'émri clihaões
v:a dos bacilos. de O contraste passou a ser então incompara-
em contato permanente entre si. São atacadas por bacilos e por lmente maior: o homem se considerava superior; como indi-
outras criaturas minúsculas que se estabelecem em massa vlduo ele se via isolado, separado dos seus semelhantes. Os
dentro delas. Estes bacilos estão sempre ativos à sua maneira, ' porém eram muito menores que os insetos, não eram
pois estão vivos. Não se pode rechaçar a suspeita de que um s a olho nu, e se multiplicavam ainda mais depressa. Ao
obscuro sentimento destas relações primitivas do corpo en- vbiaseíivleois maior e isolado se apresentou então uma massa maior
contre expressão nas alucinações dos alcoólatras. Durante o homem É difícil exagerar o significado
delírio eles estão desvinculados em grande parte do seu am- de criaturas de tamanho ínfimo.
desta idéia. Seu desenvolvimento pertence aos mitos centrais
biente, entregues por inteiro a si próprios ou tomados pelas da história do espírito. É o modelo propriamente dito da dinâ-
mais estranhas sensações. Os sentimentos dissociativos do mica do poder. O homem decidiu considerar como insetos tudo
corpo são conhecidos com exatidão a partir de outras enfer-
midades. A tendência tenaz do delírio,para o que é concreto e o que se opusesse a ele. Desta forma ele viu e tratou todos os
animais que não lhe eram úteis. Assim o detentor do poder,
pequeno, que no delírio da cocaína se transforma em "mi-
que degrada os homens até transformá-los em animais, que
croscopicamente" pequeno, tem alguma coisa da dissociação aprende a dominá-los apenas porque os considera como de
do corpo em suas células. espécie inferior, degrada ao nível de insetos tudo o que não
O aspecto cinematográfico das alucinações, como vemos, seja apropriado para ser dominado, e extermina essa massa aos
acentua-se freqüentemente. Gostaríamos de acrescentar alguma milhões.
coisa sobre o conteúdo destas projeções: são as relações e os Como terceiro aspecto importante das alucinações dos
acontecimentos do seu corpo, traduzidos para o mundo imagi- alcoólatras poderíamos dizer alguma coisa a respeito da natu-
nativo familiar, que o alcoólatra contempla em seu delírio, e reza de suas metamorfoses. Elas sempre se desenvolvem no
entre eles principalmente os que estão em relação com o que exterior do doente; mesmo quando ele as vivencia como reali-
existe de massa em sua própria estrutura corporal. Trata-se dade, não chegam a transformá-lo. O que mais lhe agrada é
apenas de uma suposição. No entanto não será ocioso recordar observá-las a uma certa distância. Quando elas não o ameaçam
que em determinados períodos toda a vida do homem "gi- e ele não se sente forçado a tomar uma posição em relação a
gante", com suas características, com toda a sua massa heredi- elas, o doente se alegra e se diverte com a fluidez e a ligeireza
tária, está concentrada em células individuais que aparecem em das coisas que ele está vivenciando. Mas freqüentemente elas
massa: a fauna seminal do esperma. alcançam uma intensidade que se lhe torna impossível qual-
Porém, independentemente do crédito que se dê a esta quer vislumbre de equilíbrio aparente; quando tudo treme e
interpretação, a situação básica do delírio como tal, a situação se dilui interminavelmente, é natural que ele próprio se sinta
do grande solitário que se vê diante de um número incalculá- pouco à vontade. Notam-se dois tipos de metamorfoses que
vel de agressores muito pequenos, existe e foi exacerbada de têm caráter muito diferente. O primeiro tipo é de massas que
maneira altamente significativa na história da humanidade. se transformam em outras massas. As formigas podem se trans-
Ela começa com um sentimento peculiar em relação aos insetos, formar em besouros e besouros em moedas; ao recolher essas
pelos quais todos os mamíferos, para falar apenas destes, são moedas, elas voltam a fluir como gotas de mercúrio. Mais
torturados. Sejam eles mosquitos ou piolhos, gafanhotos ou adiante trataremos deste caso, no qual um múltiplo se trans-
formigas, a imaginação do homem sempre se preocupou com forma noutro múltiplo.
eles. Sua periculosidade consistiu sempre na sua massa e na O outro tipo de metamorfose é o que conduz a formações
maneira repentina com a qual essas massas aparecem. Em gran-
híbridas e monstruosas: um ser singular se une a outro ser
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singular e disso resulta algo de novo, como se eles tivessem procissão delib eraram ent_ão se devi a m dar-lhe da 1h e
sido fotografados superpostos. Nos pares de animais que pas- participantes da e d eviam ma t á lo ; a p ro r i e t á r i da
boa surraou s p
sam em desfile mencionados anteriormente, aparecem "às vezes apenas uma . primeira alternativa, com a condição de que
pela
era
também animais que nem existem, nas mais fantásticas com- `Coroa'alojasse para sempre na casa dela. Ele porém queria ir
binações": criaturas monstruosas e disformes que lembram a ele se porque não lhe davam cerveja; chegou por fim um
Tentação de Santo Antão de Grünewald, ou os seres com boraa
para libertá-lo; o proprietário da 'Coroa' disparou um
os quais Hieronymus Bosch povoou suas pinturas. l
esci ontra
p o policial e foi levado à prisão.
Para chegar a impressões mais exatas será necessário c toda a comunidade protestante estava
abordar um ou dois casos de delirium tremens dentro dos seus tiro ,‘Ein outra noite
igreja durante uma cerimônia; o centro das atenções era
respectivos contextos. Somente então se verá realmente quem na estudante, que antes do início do serviço religioso oferecia
se transforma em quê, e talvez então venha a ser possível enun- umm outros cinqüenta companheiros uma espécie de espetáculo
ciar algumas hipóteses a respeito do como e do por que isto eo
sobre pequenos cavalos. Mais tarde o doente percebia
sucede. O decurso completo de um delírio, conforme se reco- de circo
como sua esposa se retirava com um parente para um banco
nhecerá principalmente no segundo exemplo, também permite da igreja; em seguida, escondido atrás do órgão em companhia
uma compreensão mais profunda da natureza dos fenômenos de uma irmã de caridade, observava como eles profanavam o
de massa. antuário. Logo depois ele estava preso dentro da igreja; mas
O primeiro caso é o de um dono de bar e restaurante que s
o vidraceiro serrou um buraco numa das janelas para que, pelo
foi tratado por Krãpelin. O conteúdo do seu delírio, que teve menos, pudessem lhe passar cerveja. Quando quis se vestir,
a duração de uns seis dias, é em resumo o seguinte: todas as mangas e aberturas de suas vestes estavam costuradas;
"Ele tinha a impressão de que era o 'Dia de Papus', quan- os bolsos estavam soltos e descosturados; ao tomar banho, o
do o diabo anda solto pelo mundo. De repente batia com a doente se viu rodeado por sete lebres imersas na água, que o
cabeça numa coluna de mármore, queria esquivar-se dela, mas salpicavam constantemente e o mordiscavam."
a rua toda era atravessada por uma poderosa placa de már- O novo ambiente, real, do qual o enfermo durante o de-
more; quando quis voltar, havia outra placa atrás dele. Amea- lírio nada sabe, e contra o qual ele bate a cabeça, é constituído
çadoras, as duas placas desabaram sobre ele. Dois personagens de mármore. Em seu mundo alucinado, ele gosta de se ver
sinistros o transportaram numa carroça até a pousada 'O Boi', entre muitos, e especificamente como objeto eleito e ameaçado.
e o estenderam sobre seu leito de morte. Um mestre de ceri- Sobre seu leito de morte no "O Boi", ele é privado pouco a
mônias enviava, usando uma tesoura incandescente, raios quen- pouco de sua força vital. É como uma longa execução poster-
tes contra sua boca, de maneira que sua força vital pouco a gada que ele utiliza para reunir em torno de si espectadores,
pouco o foi abandonando. Atendendo a seus pedidos, foi-lhe mantidos ali por meio de exortações piedosas. Em lugar de
dado um copo de vinho tinto; o copo seguinte lhe foi negado todos os seus apetites individuais aparece a sede; no além ele
com sorrisos maldosos pelo próprio Satanás. Depois, com todo vivencia o conhecido suplício de Tântalo. Suas três filhas, que
tipo de exortações piedosas, ele se despediu dos presentes e foram colocadas a seu lado como cadáveres, revivem como ele
morreu; ao mesmo tempo foram colocados a seu lado os cadá- na manhã seguinte, mas sob a forma de lebres brancas. Isso
veres de suas três filhas. No além, ele passou a ser castigado representa a inocência delas, mas também traduz os remorsos
de acordo com seus pecados na terra; sentia constantemente de consciência que ele sente por elas e que roem seu coração
uma sede horrível, mas cada vez que conseguia alcançar o jarro de beberrão.
ou o copo, estes desapareciam em sua mão. A procissão dos católicos é o primeiro acontecimento de
"Na manhã seguinte ele estava novamente vivo no es- massa propriamente dita. Ele é obrigado a participar, mas sem
quife, no 'O Boi'; as meninas também, mas em forma de lebres juntar-se realmente à massa, permanecendo num aposento ao
brancas. Havia uma procissão de católicos; ele tinha de cola- lado; lá estão espalhados inúmeros óculos de ouro sobre o
borar com ela, enquanto se entoavam litanias na sala da chão; estes substituem a massa dos participantes da procissão.
`Coroa', esmagando um sem-número de óculos de ouro espa- Ao esmagar cada par de óculos, ouve-se um tiro — é possível
lhados pelo chão; cada vez que fazia isso ouvia-se um tiro. Os que sejam salvas para aumentar a alegria da festa. Mas na sua
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obstinada maldade, ele se sente como se matasse a tiros os ntasmagóricas... As paredes de ambos os lados eram
fit5 fa
católicos. Os participantes da procissão, que descobrem suas milhares de pequenos barcos; seus ocupantes eram
intenções, formam uma espécie de assembléia que delibera um mar come mulheres, todos nus, que se abandonavam ao prazer
l
homens
sobre seu castigo. É a continuação da situação do leito de panhando o compasso da música; após cada orgasmo uma
morte; um grupo de pessoas, maior desta vez, está em torno acomn
figura apunhalava o casal pelas costas com uma lança compri-
dele, julgando-o. Seria de supor que ele não sinta grande estima da, e o mar tingia-se de sangue, mas chegavam constantemente
pelos católicos; mas a comunidade protestante, que se reúne novos bandos... Um trem de passageiros, do qual desciam
na noite seguinte para uma cerimônia, não é tratada por ele muitas pessoas. Entre estas, ouvi as vozes de meu pai e de
com respeito muito maior: ele a relaciona com um espetáculo minha irmã K., que tinham vindo para me libertar. Eu per-
circense. Aqui existe um exemplo notável de transição de uma cebia perfeitamente como eles conversavam entre si. Depois
massa pata outra. A paróquia se transforma num circo. O estu- vi minha irmã cochichando com uma velha; gritei com todas
dante, que talvez esteja ocupando o lugar do sacerdote, tem as minhas forças para que ela viesse libertar-me. Ela respon-
nada menos que cinqüenta companheiros; os cavalos, como deu também gritando que o faria, mas a velha não a deixava,
era de se esperar, diminuíram de tamanho; é possível que o assegurando-lhe que isso mergulharia a casa toda na desgraça
doente sinta o golpe dos seus cascos. e que a mim nada sucederia... Entre lágrimas e orações espe-
É muito característica, para a tendência de uma atitude rei pela morte. Reinava também um silêncio de morte e bandos
contemplativa durante o delírio, a maneira como observa a de figuras fantasmagóricas me rodeavam. . . Finalmente chegou
esposa em seu deslize conjugal. Curiosa aparece também a rela- um dos espíritos e colocou, a uma certa distância, seu relógio
ção com suas roupas; também elas se transformam: as mangas diante dos olhos, enquanto me dava a entender que ainda não
e aberturas estão fechadas e costuradas, os bolsos descostura- eram três horas, e que portanto não acharia nenhuma das
dos; transformaram-se em monstruosidades; suas diversas par- figuras...
tes perderam a finalidade. Um zoológico de peças de roupas "Depois disto houve longas negociações entre os parentes
transformadas seria perfeitamente possível no delírio, e não do paciente que queriam comprar seu resgate, primeiro com
estaria muito distante dos animais. As sete lebres no banho, somas pequenas, depois com somas mais elevadas. Outras vozes
finalmente, têm no total uma boa quantidade de dentes e se deliberavam a maneira pela qual poderiam eliminar o paciente.
encarregam de atormentar a pele do enfermo. Então os parentes foram atraídos para umas escadarias e lan-
O segundo caso, que eu gostaria de citar aqui dentro de çados ao fosso do castelo, onde se puseram a gritar angustia-
um contexto mais amplo, foi tratado por Bleuler. O doente, dos. A mulher do carcereiro veio, cortou pedaço por pedaço
um esquizofrênico, descreveu suas vivências durante um ataque a carne do paciente, começando pelos pés até chegar ao peito;
de delirium tremens em trinta e seis páginas. Seria possível assou estes pedaços e os comeu. Sobre as feridas dele, espa-
levantar uma objeção e dizer que o exemplo de um paciente lhou sal. O paciente foi içado, num andaime que balançava
tão "anormal" não é típico. Entretanto parece-me, pelo con- fortemente, aos diversos céus, até o oitavo, passando por coros
trário, que justamente a partir deste caso é possível apren- de trombetas, que proclamavam o seu nome. Finalmente, de-
der-se muito a respeito das representações de massa no delírio. vido a um engano qualquer, ele foi transferido de volta para
As alucinações são um pouco mais coerentes, as metamorfoses a terra ... Havia gente sentada em torno de uma mesa, co-
se tornaram mais tranquilas; o total, para dizer a verdade, tem mendo e bebendo coisas do mais delicioso aroma; mas quando
o caráter de uma criação poética. Até mesmo no pequeno as pessoas lhe passavam um copo, este se desvanecia; ele
resumo que apresentamos em seguida consegue-se perceber um sofria grande sede. Depois teve de ficar contando e fazendo
pouco disto. cálculos em voz alta durante horas. Num pequeno frasco lhe
"O que repentinamente tive de ver ali fez com que meus ofereciam néctar celestial; mas, quando queria bebê-lo, o frasco
cabelos ficassem de pé . . . Bosques, rios, mares com as figuras se quebrava e o conteúdo lhe escorria entre os dentes como
animais e humanas mais horríveis que qualquer pessoa jamais fios viscosos. Mais tarde ocorreu uma grande batalha entre
tenha visto, passavam sibilando sem parar, alternando com seus torturadores e seus parentes; ele nada viu desta batalha,
oficinas de todas as profissões, onde trabalhavam terríveis fign- mas ouvia muito bem os golpes e os gemidos."
408 409
Os "bosques, rios e mares" que aparecem aqui nos são juntos• o movimento que iniciam quando descem do trem e
familiares como símbolos de massa. Mas, como se ainda esti- a última etapa da viagem, o trajeto que os conduz
percorrem
vessem em seu processo de metamorfose em símbolos, ainda ída da estação — um lugar neutro —, é a extinção dessa
à sa
não foram totalmente desligados das massas, em cujo lugar massa atenuada, um trecho de marcha coletiva sobre a pla-
com tanta freqüência aparecem. Estão animados por todas "as
taforma.
Para o espectador o esvaziar-se de um trem imediata-
figuras animais e humanas mais horríveis que qualquer pessoa
jamais tenha visto". A formação de novas criaturas por combi- mente depois de ele ter visto tantas pessoas desconhecidas
nação de outras preexistentes em número tão elevado é obra encostadas às janelas e às portas tem um efeito de massa de
da metamorfose. O próprio paciente não é incluído na trans- natureza distinta da que é percebida pelo próprio viajante. O
formação; com grande rapidez porém se mistura e se trans- que interessa é encontrar entre todos esses rostos desconheci-
forma o próprio mundo. Mas todas estas novas criaturas exis- dos um ou dois rostos familiares, justamente aqueles pelos
tem em grandes massas para ele. É notável que ele faça se quais se está esperando. O "trem de passageiros do qual des-
alternarem as unidades familiares de bosque, rio e mar, nas cem muitas pessoas", combina portanto muito bem com os
quais a vida aparece de maneira natural, com "oficinas de delírios de contemplação de que estamos tratando aqui. Cabe
todas as profissões". A produção é portanto equiparada à ainda acrescentar que se imagina esta cena numa grande estação
metamorfose, uma concepção que certos povos primitivos com- para a qual convergem muitas linhas.
partilham com este paciente. As profissões estão separadas A palavra "morte", um pouco depois, conduz a "silêncio
como criaturas de diferentes espécies, mas o que elas produzem de morte". Porém, se para nós isto significa apenas um silêncio
aponta em direção à massa e tem-se a sensação de que elas especialmente profundo, para o doente os "mortos" se des-
propriamente existem apenas para criar massas de coisas da prendem da palavra e o rodeiam em bandos como figuras
maneira mais rápida possível. Trata-se de processos de trabalho espectrais.
como abstrações e de seus resultados, executados por aquelas No seu caminho para os céus, aos quais é içado, ele passa
complicadas figuras fantasmagóricas. ao lado de coros de trombetas que anunciam a sua glória. Nada
Depois as paredes retornam de novo como um mar po- caracteriza melhor a essência da glória. Quem ambiciona a
voado por milhares de pequenos barcos em vez das "figuras glória deseja exatamente isto: coros de criaturas, de preferên-
animais e humanas". Lá existem homens e mulheres, todos cia seres humanos, que nada mais façam além de proclamar
despidos, iguais em sua nudez — excetuando-se as diferenças seu nome. Também este tipo de massa tem algo de atenuado.
sexuais — e também iguais em sua dependência do compasso O coro, uma vez formado, permanece no seu lugar e, por mais
musical. A massa, da qual se trata aqui, é a dos pares e a do ruidoso que seja, não se aproxima da pessoa, apenas a chama
acasalamento. Como pares são apunhalados, o sangue de todos e proclama seu nome.
eles cai no mar e o tinge de vermelho. Mas continuam che- Durante todo este relato desenrola-se um conflito entre
gando novos grupos de pares. dois grupos inimigos. De um lado estão os familiares do doente
O "trem de passageiros do qual descem muitas pessoas" que querem resgatá-lo; do outro estão seus inimigos que gos-
requer uma explicação algo mais detalhada. O que se imagina tariam de eliminá-lo. Ele é o objeto que se disputa; ou, mais
num trem são muitas pessoas juntas, que percorrem um longo exatamente, seu corpo é disputado. Tudo começa com grandes
trajeto numa mesma direção; pessoas separadas entre si, é negociações, de somas pequenas passa-se para somas maiores;
claro, pelos compartimentos, mas em circunstâncias que não ele vai subindo cada vez mais na estima dos seus familiares.
lhes permitem afastar-se voluntariamente umas das outras, a Os do seu partido são atraídos para o fosso de um castelo, de
não ser nas estações. Ao chegarem alcançam a meta que lhes onde chegam seus gritos angustiados; já tratamos do monte
era comum, mesmo que tenham iniciado a viagem em lugares de moribundos e de mortos quando examinamos a guerra.
muito diferentes. Nos instantes anteriores à chegada, ficam Como prisioneiro, o doente é comido e torturado de maneira
de pé, saem ao corredor e se instalam junto às janelas. Então canibalesca. A oposição entre seus torturadores e seus parentes
se observa nesses viajantes uma forma muito tênue de excita- provoca também uma grande batalha. Ele a ouve; ouve nova-
ção de massa, como se todos estivessem cruzando uma meta mente o gemer dos feridos. Este delirio contém portanto, acima
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de todas as demais coisas, a massa dupla que nos é familiar e ser obervado principalmente nos macacos, Justa-
que ePodf lidades da imitação impede o seu aprofundamento.
sua descarga na guerra. As fases concretas do processo que ment a aci
culmina na batalha lembram pelos seus detalhes a forma de — A metamorfose é como um corpo em comparação com a
conduzir a guerra entre os povos primitivos. que é bidimensional. Uma forma de transição entre
imitação
Poder-se-ia dizer que neste caso não falta praticamente imitação e a metamorfose, que conscientemente pára no meio
nenhum fenômeno de massa. Não é freqüente que eles se en- do caminho, é a simulação.
contrem reunidos em tal concentração e com tanta nitidez. A aproximação amigável com intenção hostil — coisa
comum em todas as formas superiores de poder — é um
primeiro e importante tipo de metamorfose. É superficial e se
Imitação e simulação refere apenas à aparência exterior: à pele, aos chifres, à voz,
ao modo de andar. Debaixo disso tudo, intocável, com intenção
As palavras "imitação" e "metamorfose" freqüentemente mortal que por nada pode ser influenciada, está o caçador.
Esta extrema separação entre o interior e o exterior, que não
são empregadas sem discriminação e com pouca clareza para
poderiam ser mais diferentes, alcançou sua perfeição máxima
designar os mesmos fenômenos. Todavia é recomendável fazer na máscara. O caçador tem domínio total sobre si mesmo e
uma distinção entre elas. Elas não significam de forma alguma leva uma arma na mão. Mas ele também domina a figura do
a mesma coisa, e sua cuidadosa separação pode contribuir para animal que está representando. Em cada instante ele possui
a elucidação do processo propriamente dito da metamorfose. um domínio completo sobre si e sobre o animal. Ele é, por
A imitação é algo externo; pressupõe que se tenha diante assim dizer, simultaneamente duas criaturas e as mantém até
dos olhos alguma coisa cujos movimentos são copiados. Quan- alcançar sua meta. O fluxo das transformações das quais seria
do se trata de sons, a imitação significa apenas que estamos capaz foi interrompido: ele se encontra em dois lugares rigi-
reproduzindo exatamente os mesmos sons. Sobre a disposição damente circunscritos, um dentro do outro, este claramente
interna de quem faz a imitação, nada se diz. Macacos e papa- separado daquele. E é essencial que o interior permaneça
gaios imitam, e é de supor que ao fazerem isso eles não se estritamente oculto atrás do exterior. O amigável-inofensivo
modificam de forma alguma. Poder-se-ia dizer que eles não está fora, o hostil-mortal está dentro. O mortal somente é
sabem o que imitam; nunca o viveram de dentro para fora. revelado pelo ato definitivo.
Assim, eles também podem saltar de uma para outra coisa, Esta duplicidade é a forma extrema do que vulgarmente
sem que a seqüência tenha a menor importância para eles. Uma se chama simulação. Tomada ao pé da letra, a palavra não
certa falta de insistência facilita a imitação. De maneira geral poderia ser mais gráfica do que é. No entanto ela tem sido
ela se refere a um aspecto isolado. Como por sua natureza é aplicada a tantos fenômenos de natureza mais fraca que acabou
um aspecto que impressiona, a imitação simula freqüentemente perdendo uma boa parte de sua força. Eu gostaria de voltar a
uma capacidade de "caracterização" que na realidade não existe. restringi-la ao seu sentido menos amplo e defino como simu-
Uma pessoa pode ser reconhecida por determinadas fór- lação a figura amiga, por trás da qual se oculta outra, a
mulas que utiliza constantemente, e um papagaio que a imite inimiga.
pode, exteriormente, lembrar essa pessoa. Mas essas fórmulas "Um lavadeiro possuía um burro capaz de transportar
não precisam necessariamente ser características da pessoa. cargas extraordinárias. Para alimentá-lo, o lavadeiro o cobria
Podem ser determinadas frases que ela utiliza apenas para o com uma pele de tigre e, quando caía a noite, conduzia-o aos
papagaio. Neste caso o papagaio imita algo que carece inteira- trigais alheios, onde o burro comia quanto queria, porque nin-
mente de importância e ninguém que não esteja devidamente guém se atrevia a ir até onde ele estava e expulsá-lo de lá,
informado reconheceria a pessoa ern questão através de sua pois todos os tomavam por um tigre. Uma vez, porém, um
imitação. guarda de campo ficou à sua espreita. Ele tinha coberto seu
A imitação, resumindo, nada mais é do que um primeirís- corpo com um manto cor de terra e estava com o arco prepa-
simo princípio de metamorfose que é imediatamente abando- rado para matar a fera. Quando o burro o viu de longe tomou-
nado. Ela pode acontecer em rápida sucessão de objetos, fato se de amores por ele, acreditando que o homem fosse uma
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fêmea de sua própria espécie. Por isso zurrou e correu em morto pelo guarda dos campos. Em vez de atuar como presa,
direção dele. O guardião do campo reconheceu o burro pela que um tigre devoraria com prazer, o guarda, sem suspeitar
voz e o matou." disso, atuou como fêmea de burro. Em vez do amor que pro-
Este conto indiano conhecido como Asno na pele do curava , o burro encontrou a morte.
tigre contém em poucas frases um pequeno manual de simu-
A história está construída com uma série de enganos. Si-
lação. Ninguém até hoje conseguiu dizer mais coisas a respeito mula ndo-se uma criatura que não se é, procura-se enganar
dela num espaço tão pequeno. É forçoso reconhecer que se outras criaturas. A ação resulta do fato de as simulações atua-
trata aqui de sua aplicação e não de suas origens. Mas algumas
rem de maneira diferente da pretendida. É somente o homem
destas aplicações não estão distantes das origens. que aplica a simulação de maneira consciente. Ele mesmo pode
O conto começa com a profissão do lavadeiro, isto é, dissimular-se como guarda, pode disfarçar-se em outra criatura,
aquele que lava peças de roupa; estas são a segunda pele do como o lavadeiro fez com seu burro. O animal somente pode
homem. Ele é um lavadeiro trabalhador e encontrou um bur- servir de vítima passiva para a simulação. A separação do
ro que lhe transportava as cargas. É de supor que o burro homem e do animal nesta história é completa. Os tempos mí-
sirva para a entrega da roupa que o seu dono lavou. Entre as ticos em que não era possível separá-los uns dos outros —
peles que o lavadeiro manipulou em sua profissão é possível quando os homens agiam como animais verdadeiros e quando
que houvesse também uma pele de tigre, da qual trata a his- os animais falavam com os homens — passaram. O homem
tória. aprendeu — justamente por meio de suas aventuras míticas
O burro que trabalha tão bem está sempre com fome e como animal — a utilizar quase todos os animais da maneira
necessita de muito alimento. Seu dono o cobre com a pele que lhe é mais conveniente. Suas metamorfoses passaram a ser
de tigre e o conduz aos trigais alheios. Lá ele pode comer à simulações. Nas máscaras e nas peles com as quais ele se cobre,
vontade; as pessoas o temem, pois o tomam por um tigre de continua muito consciente dos seus objetivos, continua sendo
verdade. A criatura inofensiva está coberta aqui com a pele ele mesmo, o senhor dos animais. Aos que ele não consegue
de um animal muito perigoso. Mas o burro não sabe o que submeter, venera, como no caso do tigre. Todavia os mais
está acontecendo. O terror que ele inspira não pode ser com- valorosos tentam dominar também estes outros animais, jus-
preendido por ele. Ele come à vontade e ninguém o perturba. tamente pela simulação; e é possível imaginar que o guarda
Os homens, que não têm coragem de se aproximar, não podem dos campos teria conseguido, por meio do seu ardil, abater
saber o que ele faz ali. Seu temor diante de um ser mais pode- um tigre de verdade.
roso tem algo de uma crédula veneração. Seu temor os impede Certamente é surpreendente que uma história tão curta
de descobrir o tigre-burro. Eles se mantêm afastados dele e seja capaz de expressar tantas relações essenciais. Também não
ele, enquanto permanecer calado, pode continuar comendo. Eis, deixa de ser significativo que a história comece com um la-
porém, que aparece um guarda dos campos, que não é um vadeiro: ele manipula vestes que são, poder-se-ia dizer, os
homem como os demais; ele tem a coragem do caçador e leva últimos e inanimados derivados da pele; nos mitos, por meio
em suas mãos um arco para abater o tigre. Ele se esconde de- do ato de vestir roupas, muitas vezes são operadas metamorfo-
baixo de um abrigo cor de terra, que talvez seja até mesmo ses. A pele de tigre, que o lavadeiro utiliza para o seu ardil,
a pele de um burro; de qualquer maneira ele quer que o su- anima as roupas inofensivas que ele costuma manipular.
posto tigre o tome por um burro. Sua simulação é a da cria- A simulação, esta versão restrita da metamorfose, é a úni-
tura perigosa que se faz passar por inofensiva. Os primeiros ca utilizada até hoje pelo detentor do poder. O poderoso não
caçadores do mundo já se utilizavam deste ardil para se apro- pode ir além em suas transformações. Ele continua sendo ele
ximarem da presa. mesmo, enquanto tiver consciência de sua intenção hostil in-
O divertido da história está no fato de que o burro, ape- terna. Ele está restrito a metamorfoses que mantenham sempre
sar de se alimentar bem, se sente só. Quando vê alguma coisa e totalmente intacto esse núcleo interior, sua figura verdadei-
à distância que lhe lembre um outro burro, pretende que seja ra. É possível que às vezes ele considere útil ocultar o terror
uma fêmea de sua espécie. Ele zurra e corre em direção à que emana de sua figura verdadeira. Para isso ele pode utili-
suposta fêmea. Pela voz ele se dá a conhecer como burro e é zar-se de diversas máscaras. Mas sempre irá utilizá-las de ma-
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neira provisória, e elas jamais irão conseguir alterar um pouco xação de determinadas metamorfoses. O personagem
sequer sua figura interior, que é sua natureza, quequa
a fi
l, por assim dizer, a pessoa se fixa, que se transforma
no qual,
tradição que transmite vida, que se representa inúmeras

O personagem e a máscara vezes, do qual se fala nas fábulas em todas as ocasiões, não é
n-
o que hoje chamaríamos uma espécie animal, um canguru, um
avestruz, mas sim duas coisas ao mesmo tempo: um canguru
O estado final da metamorfose é o personagem. Uma de suas se confunde com um homem, um homem que se trans-
características é não permitir uma transformação posterior. O que quando quer num avestruz.
forma
personagem está delimitado e é claro em todas as suas carac- O processo da metamorfose se transforma assim no per-
terísticas. Não é natural, mas sim uma criação do homem. Ele s onagem mais antigo. Da multiplicidade de inúmeras e inces-
representa uma salvação na incessante fluidez da metamorfose. santes metamorfoses, que são todas possíveis, desprende-se uma
Ele não pode ser confundido com o que a ciência moderna determinada que se fixa em personagem. O mesmo processo
define como um gênero ou uma espécie. da metamorfose, ou melhor, um desses processos, é estabele-
Chega-se mais perto de sua essência pensando nos perso- cido, e com isso, em comparação com os demais que foram
nagens divinos das religiões mais antigas. Vale a pena contem- excluídos, ele recebe um valor especial. Esta figura dupla, que
plar neste sentido alguns dos deuses egípcios. A deusa Sekhmet contém e confirma a metamorfose do homem em canguru e do
é uma mulher com cabeça de leoa, Anúbis é um homem com canguru em homem, que permanece para sempre idêntica a
cabeça de chacal, Thot um homem com cabeça de íbis. A deusa si mesma, é o primeiro e o mais antigo personagem, o perso-
Hathor tem cabeça de vaca, o deus Hórus a de um falcão. nagem original.
Estes personagens, em sua forma determinada, imutável, que Poder-se-ia dizer que ainda é um personagem livre. Seus
é uma forma dupla de animal-homem, dominaram durante mi- dois aspectos são equivalentes. Nenhum deles é colocado diante
lênios as idéias religiosas dos egípcios. Nesta forma eles se do outro, nenhum é ocultado atrás do outro. Ele remonta à
encontraram retratados por toda parte, nesta forma foram ado- noite dos tempos, mas no seu efeito pleno de sentido ele está
rados. Sua constância é surpreendente; no entanto, muito tem- sempre presente. Existe um acesso a ele; mediante a repre-
po antes de se desenvolverem os rígidos sistemas religiosos sentação dos mitos aos quais pertence, toma-se parte nele.
desta espécie, as configurações duplas de animais-homens eram Também para nós é importante lançar luz sobre esta es-
comuns e correntes entre inúmeros povos da Terra que não pécie mais antiga de personagem. É importante compreender
mantinham nenhum tipo de relação entre si. que o personagem começa com algo que não é nada simples,
Os ancestrais míticos dos australianos são homem e ani- que nos parece complexo e que, ao contrário do que entende-
mal ao mesmo tempo; às vezes até mesmo homem e planta. mos hoje por personagem, expressa o processo de uma meta-
Estes personagens são conhecidos como totens: existe um to- morfose simultaneamente com o seu resultado .
tem canguru, um totem bandicoot, um totem avestruz. Cada A máscara distingue-se por sua rigidez de todas as demais
um deles é caracterizado pelo fato de ser homem e animal ao fases finais da metamorfose. Em lugar de uma mímica que
mesmo tempo; ele funciona corno homem e como um animal jamais se aquieta, que se encontra em movimentação constante,
bem determinado e é considerado como ancestral de ambos. aparece o oposto dela, uma rigidez completa e constância. É
Como devem ser interpretados estes personagens arcaicos? principalmente na mímica que se expressa a incessante dispo-
O que é que eles realmente representam? Para compreendê-los sição de metamorfose do homem. Ele, entre todas as criaturas,
é preciso lembrar que são considerados como habitantes do possui de longe a mímica mais rica; também é ele quem tem
tempo mítico primordial, um tempo em que a metamorfose a vida mais rica de metamorfoses. É incrível o que no decorrer
era um dom universal das criaturas e acontecia constantemente. de uma única hora se passa no rosto de um homem. Se dispu-
Já destacamos muitas vezes a fluidez desse mundo. A pessoa séssemos do tempo necessário para contemplar com maior va-
podia transformar-se em todos os tipos de coisas; mas também gar todos os impulsos e estados de ânimo que perpassam por
tinha-se o poder de transformar os demais. Desta fluência uni- um rosto, ficaríamos surpresos com os incontáveis núcleos de
versal destacam-se personagens isolados que não são mais do metamorfose que ali poderíamos reconhecer e selecionar.
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O costume não tem o mesmo enfoque em todos os lu- Nos casos estritos, plenamente configurados, dos quais
gares quanto ao jogo livre do rosto. Em algumas civilizações tért•
estamos falando aqui, ou seja, onde a máscara é levada a sério,
a liberdade do rosto é restrita em grande medida, É conside- deve ficar sabendo quem está por trás dela. Ela expres-
rado como impróprio mostrar imediatamente dor ou conten- .to mas o que ela oculta é muito mais. É uma separa-
tamento; os sentimentos são trancados dentro da pessoa e o sa minse
carregada de um conteúdo perigoso, que não deve ser
cão:
ção:
rosto permanece totalmente impassível. O motivo mais pro- 'onhecido,
c com o qual uma relação de familiaridade não é
fundo deste enfoque é a constante exigência de autonomia do ela se oxima muito de onde estamos mas perma-
aproxima
os s
homem. Ninguém tem permissão de penetrar no outro. O nece, justamente nessa proximidade, nitidamente separada de
homem deve ter a força de estar consigo mesmo; o homem
nós. í vEvele ameaça com o segredo que se acumula por trás dela.
deve ter a força de permanecer igual a si mesmo. Uma coisa
rn a l:z que uma leitura fluida como a de um rosto não é
completa a outra. Porque é a influência de um homem sobre possível neste caso, supõe-se e teme-se o desconhecido que
outro que provoca intermináveis e fugazes metamorfoses. Estas existe por trás da máscara.
se expressam pela gesticulação e pela mímica; onde ambas são Trata-se, na esfera visual, da mesma experiência que todos
malvistas, toda a metamorfose é dificultada e finalmente acaba conhecem a partir da esfera acústica. Chega-se a um país cujo
sendo totalmente impedida. idioma nos é totalmente desconhecido. Estamos rodeados de
Um pouco de conhecimento da rígida essência desta an- pessoas que falam conosco. Quanto menos se entende, tanto
tinaturalidade "estóica" nos leva rapidamente a conhecer o mais se supõe. E supõem-se apenas coisas desconhecidas.
sentido da máscara em geral: é um estado final. A fluida su- Teme-se a inimizade. Mas ficamos incrédulos e até mesmo um
cessão de metamorfoses não esclarecidas, semiterminadas, cuja pouco decepcionados quando as palavras do idioma estranho
maravilhosa expressão é o rosto humano natural, acaba desem. nos são traduzidas para uma língua familiar. Como são inofen-
bocando na máscara; termina nela. Quando ela está presente, sivas! Nada têm de perigoso! Todo idioma inteiramente estra-
nada do que principia é revelado, nada que ainda seja um nho é uma máscara acústica; assim que passamos a entendê-lo,
núcleo amorfo e inconsciente. A máscara é clara; ela expressa converte-se num rosto decifrável, que logo depois se torna
algo muito determinado, nem mais nem menos. A máscara é íntimo.
rígida: o determinado não se modifica. A máscara é portanto isso que não se transforma, incon-
É verdade que por trás desta máscara pode existir outra. fundível e duradouro, algo permanente no jogo sempre mu-
Nada impede que o ator use uma máscara por debaixo de tante da transformação. Seu efeito límpido depende de que ela
outra. Conhecem-se máscaras duplas de vários povos; abre-se oculte tudo o que existe por trás dela. Sua perfeição reside no
uma e debaixo dela aparece outra. Mas também esta é uma más- fato de ela ser exclusivamente o que é, e de que tudo o que
cara, um estado final próprio. É um salto que conduz de uma está por trás dela se torna irreconhecível. Quanto mais clara
à outra. Qualquer coisa que existisse entre os dois pontos está ela for, tanto mais obscuro fica tudo o que está atrás dela.
excluída; não existe uma transição atenuante como a que ocor- Ninguém sabe o que poderia irromper de trás da máscara. A
reria no rosto de um ser humano. O novo, o outro, repentina- tensão entre a rigidez da aparência e o mistério por trás dela
mente está aí. Ele é tão claro e rígido como o anterior. De pode chegar a alcançar uma dimensão monstruosa. Esta tensão
máscara em máscara tudo é possível, mas somente mediante o é o motivo propriamente dito do que existe de ameaçador na
salto de máscara, de uma maneira única, idêntica e concentrada. máscara. "Eu sou exatamente o que você está vendo", diz a
O efeito da máscara é principalmente para fora. Ela cria máscara, "e tudo o que você teme atrás de mim". Ela fascina,
um personagem. A máscara é intocável e estabelece uma dis- ao mesmo tempo que impõe distância. Ninguém ousa colocar
tância entre o espectador e ela. Pode, por exemplo, num baile, a mão nela. O ato de arrancar a máscara de outra pessoa é
aproximar-se mais do espectador. Mas este, por si, deve per- punido com sentença de morte. Durante o seu período de ati-
manecer onde está. A rigidez da forma transforma-se também vidade, ela é intocável, invulnerável, sagrada. O que existe de
numa rigidez de distância: o fato de ela não se modificar no certeza na máscara, sua facilidade de compreensão, está carre-
menor detalhe sequer é o que ela tem de mais fascinante. gado também de incerteza. Seu poder repousa no fato de ela
Porque imediatamente por trás da máscara começa o mis- ser conhecida com precisão, mas sem que jamais se saiba o que
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contém. Ela é conhecida apenas por fora; por assim dizer, 11111111" perturbador de sua metamorfose. Ele deve tomar todo
', Iftnite
apenas de frente. cuidado para não perdê-la. Ela não pode cair, não pode abrir-
Mas, quando durante determinadas cerimônias a máscara desta forma ele está cheio de preocupações com o que pode
se; desta
se comporta exatamente como de costume e de acordo com a acontecer a ela. Assim a própria máscara continua permane-
expectativa, ela também pode funcionar de forma tranqüiliza- cendo fora de sua metamorfose, como uma arma ou um ins-
dora. Pois ela se interpõe entre o que é perigoso, e que está trumento que deve ser manipulado. Sua pessoa normal a ma-
atrás dela, e o espectador. Desta forma, desde que seja mane- ne ja, enquanto como ator ele se transforma nela. Ele é portanto
jada corretamente, cla pode conjurar o perigo que o ameaça. dois, e deve permanecer sendo dois durante toda a duração
Pode armazenar o perigo em si e conservá-lo armazenado. So- de sua função.
mente irá permitir que este perigo ameace na medida em que
isto corresponda a sua figura. É possível comportar-se corre-
tamente em relação a ela assim que se estabelece uma relação A desconversão
com ela. É um personagem com um comportamento próprio.
Quando se aprende isto, quando se conhece isto, quando se O detentor do poder, consciente de sua disposição hostil in-
sabe a distância que ela exige de nós, ela nos protege contra terna, não pode enganar todos pela simulação. Existem ou-
o perigo que está contido dentro dela. tros que ambicionam o poder como ele próprio, que não o
Sobre este efeito da máscara que chegou a ser persona- reconhecem e que se consideram rivais seus. Em relação a
gem haveria muita coisa a ser dita: com ela começa e com ela estes, ele está sempre em posição de alerta; eles podem tornar-
vive e morre o drama. Mas aqui somente nos interessa a pró- se perigosos. Está sempre à espera do momento certo para
pria máscara. É necessário ver o que existe do outro lado, "lhes arrancar a máscara do rosto". Por trás dela se torna
pois ela não tem apenas um efeito para fora, dirigido para os então visível a verdadeira intenção deles que ele tão bem co-
que desconhecem seu conteúdo; ela também é usada por sua nhece por experiência própria. Se os desmascarar, poderá tor-
vez por homens que estão dentro dela. ná-los inofensivos. Poderá, se isto convier aos seus fins, pou-
Estes são muito conscientes de si mesmos. Mas a tarefa par-lhes a vida. Porém, tomará cuidado para que isto não
deles é a de representar a máscara e manter-se durante esta resulte em nova dissimulação, e irá mantê-los vigiados em sua
representação dentro de determinados limites: justamente da- figura autêntica.
queles que correspondem à máscara. As metamorfoses que ele mesmo não impõe aos outros
A máscara é colocada, é externa. Como configuração ma- lhe são pouco confortáveis. Ele pode nomear pessoas que lhe
terial, ela está nitidamente separada de quem a usa. Ele a sente são úteis para cargos mais elevados. Mas a metamorfose social
em sí como algo estranho, nunca pode percebê-la por dentro, que ele provoca desta maneira deve estar estritamente limita-
como seu próprio corpo. Ela o incomoda, ela o constringe. da, deve ser imutável e deve encontrar-se totalmente em suas
Enquanto ele a estiver representando, sempre será duas coi- mãos. Mediante nomeações e destituições ele estabelece a si-
sas: ele mesmo e ela. Quanto mais vezes ele a tiver usado, tuação, e ninguém pode arriscar-se a um salto por conta própria.
quanto melhor a conhecer, tanto mais encarnará ele próprio o O detentor do poder trava uma luta incessante contra as
personagem da máscara. Mas apesar disso uma parte de sua metamorfoses espontâneas e incontroladas. O desmascaramen-
pessoa permanecerá separada dela: a parte que teme o desco- to, meio de que ele se vale nesta luta, é diametralmente oposto
brimento; a parte que sabe que está propagando um temor que ao processo da metamorfose e pode ser definido como descon-
não lhe corresponde. O mistério que representa para os que versão. O processo já é conhecido pelo leitor. Menelau fez uma
estão fora deve ter o seu efeito sobre ele, que está dentro: não desconversão de Proteu, não se deixando espantar por nenhu-
é, como se poderia supor, o mesmo efeito. Eles temem o que ma de suas figuras e sujeitando-o até que ele voltou a ser
não conhecem; ele teme o desmascaramento. É justamente este proteu
temor que não permite que ele se abandone de todo. Sua meta- Pertence à essência da desconversão que sempre se saiba
morfose pode ir muito longe, mas ela jamais é completa. A com exatidão o que será encontrado depois. O que é esperado
máscara, que lhe poderia ser arrancada do rosto, representa o é que primeiro se nos torna consciente; com terrível segurança
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avança-se em direção a isso, desprezando-se todas as metamor- Nas cerimônias totem dos arandas somente possui o di-
foses que se vão revelando como artificialidade pretensiosa e to de participar quem pertence ao totem. A metamorfose
enganadora. Pode-se fazer isto numa única ocasião como Me- rei figura
nelau, ao qual interessava a sabedoria de Proteu. Ou pode-se prerrogativa que corresponde apenas a determinadas pes-
também fazer isto freqüentemente, e por fim pode-se transfor- as. Sem um direito a ela ninguém pode apropriar-se da meta-
so
morfose, que é transmitida como um bem imóvel. Está tão
mar esse jogo numa paixão.
A desconversão acumulada conduz a uma redução do bem protegida como as palavras e os sons dos cânticos sagra-
mundo. A riqueza de suas formas de aparição de nada vale, dos que lhe pertencem. Justamente a exatidão na qual se
toda a multiplicidade é suspeita. Todas as folhas são iguais e desenvolveu esta figura dupla, sua clara determinação e deli-
secam; todos os raios se extinguem numa noite de hostilidade. mitação, torna fácil protegê-la. A proibição de sua apropriação
Numa enfermidade mental tão estreitamente aparentada é rigorosamente respeitada; ela é reforçada por uma sanção re-
com o poder que poderia ser considerada como seu gêmeo, a ligiosa total. Somente após longas e complexas cerimônias de
desconversão deu início a uma espécie de tirania. A paranóia iniciação é que um jovem é recebido no grupo daqueles aos
se destaca principalmente por duas características. Uma é desig- quais, em determinadas ocasiões, esta transformação é permi-
nada pela psiquiatria como dissimulação. Nada mais é do que tida. Para as mulheres e para as crianças a proibição se man-
a simulação no exato sentido em que aqui utilizamos esta ex- tém incondicional e permanente Para os iniciados de outros
pressão. Os paranóicos podem simular tão bem que de muitos totens, às vezes, como expressão de uma cortesia especial, a
deles jamais se chega a saber totalmente até que ponto são proibição é levantada. Mas estas são ocasiões únicas e, depois
paranóicos. A outra característica é um desmascaramento inces- que passam, a antiga proibição continua valendo com a mesma
sante de inimigos. Eles se encontram por toda parte, usando os severidade de antes.
disfarces mais pacíficos e inócuos, mas o paranóico, que possui Existe um grande salto desta religião para a religião cristã,
o dom de adivinhar as intenções, sabe com exatidão o que na qual o personagem do diabo está proibido para todos igual-
existe por trás das coisas. Ele lhes arranca a máscara do rosto mente. Sua periculosidade é afirmada de todas as maneiras; em
e descobre-se que, no fundo, trata-se sempre do mesmo inimigo. centenas de histórias de alerta narra-se o que acontece a quem
O paranóico está totalmente entregue à desconversão como se relaciona com ele. Os tormentos eternos das almas destas
nenhum outro homem, e nisto ele se mostra um detentor enri- pessoas no inferno foram pintados com todos os detalhes e
jecido de poder. A posição que ele acredita ocupar, o signifi- serviram de ameaça. A intensidade desta proibição é mons-
cado que se atribui aos olhos dos demais, certamente são fic- truosa; ela é mais vigorosa onde os homens sentem a compul-
tícios; mesmo assim ele os defenderá mediante uma aplicação são de agir contra ela. As histórias de pessoas possuídas que
ininterrupta do processo duplo e relacionado de simulação e repentinamente começaram a agir como o próprio diabo, ou
desmascaramento. até mesmo como vários diabos, são bem conhecidas. Existem
Um estudo válido da desconversão somente é possível autobiografias de pessoas desse tipo, uma das mais célebres
dentro do contexto de um caso concreto e individual de para- é a da abadessa Jeanne des Anges, do convento das ursulinas
nóia. Este estudo se encontra nos últimos capítulos deste livro, de Loudun, e a do Pe. Surin, que devia exorcizá-la, quando o
que tratam do "caso Schreber". diabo entrou no seu próprio corpo. Neste caso, indivíduos
consagrados ao serviço especial de Deus, aos quais a simples
aproximação do diabo — para não falar da transformação
Proibições de metamorfose nele — era proibida em grau ainda maior do que aos leigos
comuns, são possuídos por ele: a metamorfose proibida os
Um fenômeno social e religioso de maior peso é a metamorfose subjugou por completo. Dificilmente estaremos errando se atri-
proibida. Ela praticamente nunca foi estudada seriamente, e buirmos a força com a qual a metamorfose aparece à intensi-
muito menos chegou a ser compreendida. Também nossa ten- dade da proibição à qual ela estava submetida.
tativa de aproximação que apresentamos em seguida nada mais O aspecto sexual da proibição da metamorfose se torna
é que um primeiro tatear a este respeito. mais nítido numa análise da bruxaria. O pecado propriamente
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dito das bruxas é sua união sexual com o diabo. Não importa " o de temor e de obediência mediante a utilização de más-
o que mais elas façam; sua existência secreta sempre desem- 1111‘
caras terríveis e de sons lúgubres.
boca em orgias das quais o diabo participa. Elas são bruxas É no sistema de castas que a separação das classes se
por se terem relacionado sexualmente com ele; uma parte anifesta com a máxima rigidez. Neste caso, o fato de se
m
essencial da metamorfose delas consiste no fato de pertence- pertencer a uma determinada casta exclui totalmente qualquer
rem sexualmente ao diabo. tipo de transformação social. A pessoa se isola da maneira mais
A idéia de uma metamorfose pelo coito é antiguíssima.
rigorosa possível, tanto para cima como para baixo. Todo e
Considerando-se que toda criatura, de maneira geral, somente qualquer contato com um inferior é estritamente proibido. As
mantém relações sexuais com criaturas do gênero oposto de pessoas se casam apenas entre si; elas são obrigadas a ter todas
sua própria espécie, é facilmente imaginável que um afastamen- uma mesma profissão. Portanto, nem sequer é possível trans-
to desta regra seja considerado uma metamorfose, Neste caso formar-se numa criatura de outro nível social mediante o pró-
teríamos de considerar já as leis matrimoniais mais antigas prio trabalho. A conseqüência deste sistema é surpreendente.
como uma forma de proibição de metamorfose, ou seja, uma Um estudo exato a este respeito já permitiria o reconhecimento
proibição de todas as transformações, excluindo-se apenas as de todos os inícios de transformações sociais. Uma vez que
permitidas e desejáveis, que eram bem determinadas e estabe- todos devem ser evitados, eles são registrados, descritos e ex-
lecidas. Esta forma sexual da metamorfose deveria ser inves- plorados cuidadosamente. De um sistema completo de proibi-
tigada de maneira mais detalhada. Tenho a impressão de que ções seria possível derivar com precisão — desde que ele fosse
isto conduziria a conclusões de suma importância. invertido — o que se considera como a transformação de uma
É possível que as mais importantes de todas as proibições classe na classe superior. Um "ensaio sobre as castas" a partir
de metamorfose sejam as sociais. Toda hierarquia somente é deste ponto de vista da transformação é algo imprescindível,
possível se pressupusermos certas proibições que tornem impos- mas que ainda está para ser feito.
sível que membros de uma certa classe se sintam nivelados ou Uma forma isolada da proibição de metamorfose, ou seja,
iguais aos membros de uma classe superior. Já nas classes a que se refere a uma pessoa isolada que se acha no ápice de
etárias dos povos primitivos é preciso prestar atenção a estas uma sociedade, encontra-se nas formas primitivas do reino.
proibições. As separações, uma vez feitas, se acentuam de Chama a atenção o fato de que as duas formas mais desenvol-
forma cada vez mais rigorosa. A ascensão de uma classe infe- vidas do detentor do poder que se conheciam na humanidade
rior é dificultada de todas as maneiras possíveis. Ela somente antiga diferenciam-se justamente pelo seu posicionamento opos-
se torna viável mediante iniciações especiais e estas são con- to em relação à metamorfose.
sideradas, isso sim, como metamorfoses no sentido próprio da Num dos pólos está o mestre das metamorfoses, capaz de
palavra. Freqüentemente imagina-se a ascensão de tal forma adotar qualquer figi. ra quando quiser, seja de animais, de espí-
que é preciso morrer na classe inferior, para depois voltar à ritos de animais ou de espíritos de mortos. O mais truculento,
vida na classe superior. A própria morte é colocada entre uma que engana todos os demais por suas metamorfoses, é um per
e outra classe; trata-se de um limite muito sério. A metamor- sonagem estimado que pertence aos mitos indígenas norte-ame-
fose passa a ser um caminho muito longo e perigoso. É preciso ricanos. Seu poder baseia-se nas inúmeras figuras que ele é
superar todos os tipos de provas e de horrores; não é feita capaz de adotar. A maneira como ele desaparece surpreende;
concessão alguma ao candidato. Mas tudo o que o jovem so- ele agarra de maneira inesperada e somente se deixa agarrar de
freu, ele poderá — quando pertencer à classe superior — tal maneira que lhe seja possível soltar-se outra vez. O meio
devolver aos noviços que forem examinados por ele. A idéia principal que ele utiliza para levar a cabo todas as suas assom-
da classe superior adquiriu desta forma um caráter de estrita brosas façanhas é novamente a metamorfose.
separação, com uma vida própria com a qual se relaciona o O mestre das metamorfoses alcança o seu verdadeiro po-
conhecimento de cantos sagrados e de mitos, às vezes até mes- der como xamã. Em sua sessão estática ele invoca espíritos aos
mo o conhecimento de um idioma próprio. Os que pertencem quais submete, dos quais fala a língua, nos quais se converte e
às classes inferiores, como as mulheres, que estão inteiramente aos quais pode dar ordens como se fosse um deles. Torna-se
excluídas de todas as classes superiores, são mantidos num es- pássaro quando empreende a viagem para o céu, e como animal
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marinho mergulha até o fundo do mar. Tudo lhe é possível; o ;mutáveis. El e sentia no seu corpo presenças estranhas —
paroxismo que alcança resulta da sucessão acelerada e acrescida tTasta lembrar, neste contexto, os pequenos golpes dos bos-
de metamorfoses que o agitam até escolher entre elas o de que ' "anoss —, sentia-se em poder delas, e devia até transfor-
necessita para seus fins. ,1
mar-se nelas; elas lhe eram impostas de fora para dentro,
O mestre das metamorfoses é o transformador máximo, e mesmo quando sua fome já tinha sido aplacada graças a seu
se ele for comparado com a figura do rei sacral, que é subme- mesmo quando já estava satisfeito e em calma. Estas
talento,
tido a centenas de restrições, que deve permanecer sempre no presenças estranhas eram puro movimento, como era fluidez
mesmo lugar, sendo sempre igual a si mesmo, do qual ninguém o seu sentimento mais pessoal, seu ego mais íntimo. Tudo isto
pode se aproximar e que freqüentemente nem sequer pode ser rinha necessariamente de despertar nele um desejo pela per-
visto, percebemos que a diferença, quando colocada no deno- manência e pela duração, que somente poderia ser satisfeito
minador mais simples, não consiste senão numa oposição de por meio das proibições de metamorfoses.
atitudes em relação à metamorfose. No xamã a metamorfose Somos levados a pensar, a este propósito, no sistema de
é intensificada ao extremo e é aproveitada até o fim; no rei pedras dos australianos. Toda façanha ou aventura, toda mi-
ela é proibida e evitada até que se enrijece inteiramente. Este gração e destino dos ancestrais se incorporam à paisagem,
deve permanecer sempre tão igual a si mesmo que nem sequer transformando-se em monumentos sólidos e imutáveis. Quase
deveria envelhecer. Como homem sempre da mesma idade, deve não existe um rochedo que não represente alguma criatura que
permanecer em sua maturidade, em sua força e em sua saúde, alguma vez viveu ali e realizou coisas grandiosas. Às caracte-
e quando mostra os primeiros sinais de velhice, cabelos brancos rísticas externas e monumentais da paisagem, que permanecem
ou decréscimo de sua força viril, freqüentemente é morto.
imóveis, acrescentam-se as pedras menores que as pessoas pos-
O que há de estático neste tipo humano, ao qual é proi-
suem e que são guardadas em lugares sagrados. Cada uma
bida a própria transformação, mesmo que dele emanem cons-
destas pedras é transmitida de uma geração a outra. Cada uma
tantemente ordens que modificam sem cessar todos os demais,
entrou na essência do poder, e a idéia que o homem moderno delas significa algo muito determinado: seu sentido ou sua
tem do poder foi determinada de forma decisiva por essa rea- lenda estão ligados a ela; ela é a expressão visível dessa lenda.
lidade. Aquele que não se transforma está fixo numa determi- Enquanto a pedra se mantiver igual, a lenda também não se
nada altura, num determinado lugar, precisamente delimitado modifica. Nesta concentração sobre o permanente da pedra, o
e invariável. Não deve descer de sua altura, não pode sair ao que também não nos é desconhecido, parece-me estar contido
encontro de ninguém, ele "nada se permite", mas pode fazer o mesmo desejo profundo, a mesma necessidade que conduzi-
com que outros subam, nomeando-os para este ou para aquele ram a todos os tipos de proibições de metamorfoses.
cargo. Pode transformar os demais erguendo-os ou rebaixan-
do-os. O que não pode acontecer com ele, ele pode fazer aos
outros. Carente de metamorfoses, ele transforma os demais Escravidão
segundo os seus caprichos.
Esta enumeração rápida e fugaz de algumas formas de O escravo é propriedade à maneira de um animal e não à ma-
proibições de metamorfoses, que ainda deverá ser mais apro- neira de uma coisa inanimada. Sua liberdade de movimento
fundada, levanta a pergunta do que é que se pretende real- lembra a de um animal que tem permissão para pastar e para
mente por esta proibição, quais são os motivos pelos quais fundar algo semelhante a uma família.
sempre se torna a recorrer a ela, qual é a necessidade profunda O caráter propriamente dito da coisa é sua impenetrabili-
que impele os homens a impô-la a si mesmos e aos seus seme- dade. Ela pode ser golpeada e empurrada mas não pode arma-
lhantes. Precisamos nos aproximar desta questão com o máxi- zenar ordens. A definição jurídica do escravo como coisa e
mo de cautela. propriedade é portanto enganadora. Ele é animal e propriedade.
Parece que foi justamente o talento do homem para a Ë melhor comparar o escravo isolado com um cachorro. O cão
metamorfose, a fluidez crescente de sua natureza, que o deixou cativo foi separado do seu bando, foi singularizado. Ele se en-
intranqüilo e fez com que ele apelasse para barreiras sólidas e contra sob as ordens do seu dono. Abandona suas próprias
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iniciativas à medida que elas se opõem a estas ordens, e em
troca disso é alimentado pelo seu dono.
Os alimentos e as ordens têm, portanto, para o cão como
para o escravo, uma só fonte: o dono. E neste sentido sua
comparação com o estado das crianças não é totalmente inade-
quada. Mas o que os distingue essencialmente destas está re-
lacionado com a economia da metamorfose. A criança se exer-
cita em todas as metamorfoses de que poderia vir a necessitar
mais tarde. Seus pais a ajudam em seus exercícios e a estimu- ASPECTOS DO PODER
lam a renovar seus jogos. A criança cresce em direções múlti-
plas e, quando consegue dominar suas metamorfoses, como re-
compensa é recebida num nível superior.
Entre os escravos ocorre o contrário. Assim como o dono
não permite que seu cão cace o que quiser, restringindo o
âmbito dessa caça de acordo com sua vontade superior, assim
também não permite ao escravo sucessivas metamorfoses. O
escravo não deve fazer isto, não deve fazer aquilo; determinadas
ocupações, porém, devem ser repetidas e, quanto mais monó-
tonas elas forem, tanto mais o dono insistirá em que sejam
realizadas. A divisão de trabalho não é perigosa para a econo-
mia da metamorfose do homem enquanto ele possa executar
diversas ocupações. Porém se for restrito a uma única ocupação,
tendo de extrair dela o máximo no menor espaço de tempo
possível, ou seja, tendo de ser produtivo, ele se transforma na-
quilo que com toda a propriedade merece o nome de escravo.
Desde o começo devem ter existido dois tipos muito dis-
tintos de escravos: uns isolados, sozinhos, presos como cães
domésticos ao seu dono, outros juntos como manadas no cam-
po. Estas manadas devem ser consideradas como o tipo de
escravidão mais antigo.
O desejo de transformar homens em animais é o impulso
mais potente da escravidão. Não se pode superestimar a ener-
gia deste desejo, nem tampouco a do oposto: converter animais
em seres humanos. A este último desejo devem sua existência
grandiosas criações espirituais, como a doutrina da metempsi-
cose e o darwinismo, e também certas diversões populares,
como a exibição de animais amestrados.
Quando os homens conseguiram reunir tantos escravos
como animais em manadas, estavam lançadas as bases do Esta-
do e do uso e abuso do poder; e não há dúvida de que o
desejo de manter o povo inteiro como escravo ou como gado
torna-se mais forte no governante à medida que seu povo é
formado por um maior número de pessoas.

428
Ar posições do homem: o que elas contêm de poder

o homem, que tanto gosta de se manter ereto, também pode,


sem mudar de local, sentar-se, deitar-se, acocorar-se ou ajoe-
lhar-se. Todas estas posições, e principalmente a transição de
tuna para outra, expressam algo determinado. O poder e os
cargos criaram para si mesmos posições fixas tradicionais. Da
maneira como as pessoas se posicionam é fácil deduzir a dife-
rença do seu prestígio. Sabemos o que significa alguém ocupar
um assento elevado e todos os demais ficarem de pé em torno
dele; uma pessoa estar de pé e todas as que a rodeiam perma-
necerem sentadas; aparecer alguém repentinamente e toda a
assembléia se colocar de pé diante dele; alguém cair de
joelhos diante de outra pessoa; não se convidar um recém-che-
gado a sentar-se. Basta uma enumeração casual como esta para
mostrar quantas constelações mudas de poder existem. Seria
necessário examiná-las e determinar com mais precisão o seu
significado.
Toda nova posição que se assume sempre se relaciona
com a anterior; somente conhecendo-se esta é que se pode in-
terpretar de maneira exaustiva aquela. Alguém que esteja de
pé pode ter-se erguido com um salto há um momento de sua
cama, mas também pode ter-se levantado de um assento. No
primeiro caso pode ter pressentido um perigo, no segundo
caso é possível que sua intenção tenha sido a de honrar alguém.
Todas as mudanças de situação têm algo de repentino. Podem
ser familiares e esperadas, integrando-se com exatidão nos
costumes de uma determinada comunidade. Mas sempre existe
a possibilidade de uma mudança inesperada de situação, que
neste caso se torna ainda mais surpreendente e expressiva.
Durante uma missa se permanece por muito tempo de joelhos;
trata-se de um hábito e até mesmo Os que o fazem de bom
grado não concedem um significado demasiadamente grande
às suas freqüentes genuflexões. Porém se momentos mais tar-
de, na rua, diante de um homem que se encontrava ajoelhado
na igreja, ajoelha-se repentinamente um desconhecido, o efeito
é tremendo.
Apesar da sua multiplicidade de significados, percebe-se
uma certa tendência à fixação de certas posições do homem e à
431
sua monumentalização. Um indivíduo sentado ou de pé apare- Existe sempre uma certa solenidade quando dois homens
ce, mesmo separado do seu contexto temporal ou espacial, ficam conhecendo. De pé trocam seus nomes, de pé esten-
por si próprio. Em certos monumentos algumas destas posições se
dem as mãos um ao outro. Com isto eles se honram, mas
chegaram a ser tão vazias e banais que praticamente deixaram
ta mbém se medem e, pouco importando o que ocorra mais
de ser percebidas. Tanto mais efetivas e importantes são na tarde, seu primeiro contato real, "de homem para homem",
nossa vida diária,
foi de pé.
Nos países onde a independência da pessoa parece ser
O estar de pé tao importante que é desenvolvida e acentuada de todas as
maneiras, fica-se de pé com mais freqüência e durante períodos
O orgulho do indivíduo que está de pé é devido ao fato de mais longos. Na Inglaterra, por exemplo, os locais onde se
estar livre e de não se apoiar em coisa alguma. Talvez porque bebe de pé são especialmente estimados. O cliente pode partir
influa no fato de estar de pé a lembrança da primeira vez, que, a qualquer momento e sem muita cerimônia. Um movimento
quando criança, ele se sustentou sozinho sobre os dois pés, ou mínimo e discreto lhe permite isolar-se dos demais. Por isso
talvez porque participe disto a idéia de uma superioridade sobre ele se sente mais livre do que se tivesse de levantar-se com
os animais, dos quais poucos se mantêm livre e naturalmente dificuldades de uma mesa. O ato de levantar-se seria como
sobre duas patas, o fato é que quem está de pé se sente inde- uma espécie de comunicação de sua intenção de se afastar, algo
pendente. Quem se levantou se encontra no final de um certo que restringiria sua liberdade. Mesmo em suas reuniões parti-
esforço e este é o ponto mais elevado que consegue alcançar. culares os ingleses gostam de ficar de pé. Com isto informam,
Porém quem permanece já há algum tempo de pé expressa já ao chegar, que não pretendem permanecer por muito tempo.
uma certa força de resistência, seja por não mudar de lugar, Eles se movimentam livremente e podem, uma vez que estão
como uma árvore, seja por poder ver-se por inteiro, sem temor de pé, afastar-se sem cerimônia de uma pessoa e voltar suas
e sem se ocultar. Quanto mais serenamente a pessoa estiver atenções para outra. Não existe nada de chocante em tal com-
parada, quanto menos se virar e olhar em diferentes direções, portamento e ninguém se sente ofendido. A igualdade dentro
tanto mais segura parece ser. Nem sequer teme um ataque de um determinado grupo social, uma das ficções mais impor-
pelas costas, apesar de não ter olhos nesta região. tantes e úteis da vida inglesa, se acentua de maneira muito
Uma certa distância em relação aos que estão ao seu redor especial quando todos têm a vantagem de estar de pé. Desta
serve para realçar quem está de pé. Quem está de pé, sozinho, forma, ninguém fica sentado "acima dos outros" e os que
separado dos demais por uma certa distância, defronte de mui- querem conversar podem se aproximar um do outro.
tos outros, parece ser especialmente alto, como se estivesse de
pé por todos eles ao mesmo tempo. Caso ele se aproxime deles,
procurará ficar num plano elevado, e caso se misture com os O estar sentado
demais será erguido aos ombros e carregado. Mas desta manei-
ra ele perde sua independência, e é como se estivesse sentado Ao sentar-se, o homem procura a ajuda de pernas alheias
sobre todos os demais juntos. que substituem aquelas duas que recebeu para ficar de pé. A
Manter-se de pé produz a impressão de uma energia que cadeira, na forma que hoje conhecemos, é derivada do trono;
ainda não foi gasta, porque isso é considerado como o início ela porém pressupõe animais ou homens que devem transpor-
de todo deslocamento: normalmente se está de pé antes de tar o governante. As quatro pernas de uma cadeira estão no
começar a andar ou correr. É a posição central, da qual se pode lugar das pernas de um animal: cavalo, touro ou elefante. É
passar sem transição tanto para outra posição como para qual- preciso fazer uma distinção muito clara entre o estar sentado
quer forma de movimento. Supõe-se portanto a existência de sobre cadeiras elevadas e o sentar-se no solo, acocorar-se. O
uma tensão maior em quem está de pé, mesmo quando suas sentido é muito diferente: o estar sentado numa cadeira era
intenções são completamente outras, pois é possível que no uma distinção. Quem estava sentado se havia colocado acima
momento seguinte a pessoa se deite para dormir. A pessoa
dos outros que eram seus súditos e escravos. Enquanto ele
que está de pé sempre é superestimada.
podia ficar sentado, eles tinham de permanecer de pé. O can-
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saço deles não era levado em consideração, desde que ele não que durante o julgamento permanece sentado, e na medida do
se cansasse. Ele era o mais importante; o bem-estar de todos nossível imóvel, e que quando chega o veredicto imediata-
os demais dependia do fato de sua força sagrada ser poupada. mente se levanta, expressa com a maior nitidez possível esta
'
Quem está sentado exerce uma pressão sobre algo que é relação.
indefeso e que não pode exercer uma contrapressão ativa. São As variações do estar sentado, no fundo, são sempre va-
as características do cavalgar que entraram no estar sentado; riações de pressão. Os assentos acolchoados não são apenas
mas o movimento do cavalgar sempre dá a impressão de que moles; eles também transmitem ao sentado um obscuro senti-
isto não é um fim em si, que cavalgando quer-se chegar à mento de que está se apoiando sobre algo vivo; o ceder do
meta mais rapidamente do que seria possível de qualquer outra
acolchoado, a tensão elástica têm algo do ceder e da tensão
maneira. O enrijecimento do cavalgar passando para o estar da carne viva. A aversão de alguns homens em relação aos
sentado, transforma a relação do superior para com o inferior assentos demasiadamente moles pode estar relacionada com a
em algo abstrato, como se se tratasse de expressar exatamente intuição do que foi dito. É surpreendente ver até que ponto
esta relação. O inferior, que nem sequer vive, fica preso como se desenvolveu o gosto pela comodidade do assento também
que para sempre. Já não tem vontade alguma, menos ainda em grupos de homens que, nos demais aspectos, desconhecem
do que o escravo; é uma escravidão em conseqüência extrema. a brandura. Neste caso trata-se de homens para os quais o
O superior pode agir com toda a liberdade e arbítrio. Pode
domínio se transformou numa espécie de segunda natureza, e
chegar, sentar-se, permanecer quanto tempo quiser. Pode ir
que desta maneira, numa forma simbolicamente muito atenua-
embora, sem conceder um pensamento sequer ao que foi dei-
da, representam-no de bom grado e com bastante freqüência.
xado para trás. Existe uma tendência inconfundível para per-
sistir neste simbolismo. O homem se mantém fiel com grande
tenacidade à cadeira de quatro pernas; formas mais novas en-
O estar deitado
contram dificuldade para se impor. É de supor que até mesmo
o cavalgar possa desaparecer mais rapidamente do que esta
Para o homem, deitar-se equivale a depor as armas. Um sem-
forma de cadeira, que tão bem ilustra o seu sentido.
número de ações, atitudes e maneiras que o determinam intei-
A dignidade do estar sentado se manifesta especialmente
na sua duração. Ao passo que de quem está de pé se espera uma ramente quando está em posição erguida, são colocadas de lado
como se fossem peças de roupa, como se elas, que normalmente
multiplicidade de coisas e a multiplicidade de suas possibilida-
des contribui para o respeito que impõe, de quem está sentado tanto o preocupam, não lhe pertencessem realmente. Este pro-
espera-se que permaneça sentado. A pressão que exerce afirma cesso externo decorre de forma paralela ao processo interno do
seu prestígio, e quanto maior for o tempo em que ele o exerça, adormecer, no qual também se abandona e se deixa de lado
tanto mais seguro parece estar. Praticamente não existe insti- muito do que parece ser indispensável: determinados caminhos
tuição humana que não se aproveite desta qualidade do estar protetores e limitações do pensamento, as vestes do espírito.
sentado; que não a utilize para sua conservação e afirmação. Quem está deitado se desarma a tal ponto que não se com-
O que se exibe no ato de estar sentado é o peso físico preende como a humanidade conseguiu sobreviver ao sono. No
do homem. Ele necessita de cadeira elevada para se fazer valer. seu estado mais selvagem, o homem nem sempre viveu em
Visto em conjunto com as finas pernas da cadeira, o homem cavernas; aliás, até mesmo estas eram perigosas. Os primitivís-
sentado realmente parece ser mais pesado. Sentado no próprio simos abrigos de galhos e folhas, com os quais muitos selva-
chão, a visão é diferente; a terra é mais pesada e mais densa gens se contentam para passar a noite, não oferecem proteção
do que qualquer criatura, uma pressão contra ela não tem peso alguma. É um milagre que ainda existam homens; eles deve-
algum. Não existe forma mais elementar de poder do que a riam ter sido exterminados há muito tempo, quando eram
que é exercida pelo próprio corpo. O corpo pode destacar-se menos numerosos, muito antes que marchassem em fileiras
pelo seu tamanho, e para isso deve estar de pé. Pode agir pelo cerradas em direção à autodestruição. O simples fato do sono
peso e para isso é preciso que exerça uma pressão visível. Ele- indefeso, que retorna, que dura, já é o suficiente para demons-
vando-se um assento, é possível somar estas duas coisas. O juiz trar o vazio existente em todas as teorias da adaptação, as
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quais, para o que em grande parte é inexplicável, argumentam ruía numa posição fetal como no ventre materno —, com este
nto repentino recupera novamente todo o seu cresci-
constantemente com as mesmas pseudo-explicações. ovime
Mas não estamos tratando aqui desta questão mais pro- mento, e embora para seu grande pesar não possa tornar-se
funda e difícil de ser explicada, de como a humanidade no seu ior do que é, mesmo assim se torna tão grande quanto real-
ma
conjunto conseguiu sobreviver ao sono, mas sim do estar dei- mente é.
tado e da medida de poder que esta postura contém quando Todavia existem, ao lado dos que descansam, os que estão
comparada com as demais posições assumidas pelo homem. deitados, os feridos, e os que, por mais que o desejem, não
Como já vimos, num dos pólos está aquele que se encontra podem se levantar.
de pé, que expressa grandeza e independência, e o que está Os deitados involuntários têm a desgraça de lembrar aos
sentado, que expressa peso e duração; no outro pólo está o que estão de pé os animais caçados e atingidos. O disparo pelo
que se encontra deitado; sua impotência, principalmente quan- qual ficaram deitados é como uma mácula, como um grande
do dorme, é completa. Mas não é uma impotência ativa; é passo na pista que se desenvolve repentinamente em direção
insignificante e não se manifesta ativamente. O deitado se à morte. Aquele que foi atingido passa então a ser "acabado".
desprende mais e mais de tudo o que o rodeia. Quer desapa- Se antes era muito perigoso, depois de morto continua sendo
recer de todas as maneiras dentro de si. Seu estado não é dra- um objeto de ódio. É pisoteado, uma vez que já não pode mais
mático. O fato de passar despercebido pode lhe outorgar uma se defender; é jogado para o lado. Não se gosta de que, apesar
certa, se bem que muito escassa, medida de segurança. Ele se de morto, ele continue atravancando o caminho; já não deve-
põe em contato o mais possível com outro corpo; deita-se em ria ser absolutamente nada, nem mesmo um corpo vazio.
todo o comprimento; com todas as suas partes, ou pelo menos A queda do homem parece despertar ainda mais desprezo
com a maioria delas, ele toca em alguma coisa que não é ele e aversão do que a queda do animal. Poder-se-ia dizer que a
mesmo. Quem está de pé está livre e não se apóia em coisa visão do atingido reúne para quem está de pé as duas coisas:
alguma; o sentado exerce pressão; o deitado não está livre em o triunfo natural e costumeiro sobre o animal atingido, e a
parte alguma, apóia-se contra tudo o que lhe é oferecido e impressão penosa do homem caído. Eu me refiro aqui ao que
distribui sua pressão de tal forma que praticamente deixa de realmente sucede com o que está de pé, e não ao que deveria
senti-la. suceder com ele. Esta tendência pode tornar-se ainda mais in-
A possibilidade de erguer-se de um salto, da postura mais tensa sob certas circunstâncias. Muitos caídos têm sobre quem
baixa para a mais alta, é certamente muito impressionante e os vê um efeito terrível; é como se ele os tivesse abatido so-
sedutora. Ela mostra o quanto a pessoa ainda está com vida; zinho. Seu sentimento de poder cresce rapidamente, a saltos
quão pouco se está dormindo mesmo no sono; como, mesmo irrefreáveis: ele se apropria de todo o monte de moribundos
neste estado, ainda se percebe e se ouve tudo o que é impor- ou de mortos. Transforma-se no único que vive e todos os
tante; como nada nos surpreende realmente. Muitos deten- demais são sua presa. Não existe sentimento de triunfo que
tores do poder acentuaram esta passagem da posição deitada seja mais perigoso; quem se permitiu sentir isto alguma vez
para a ereta. Fizeram divulgar histórias sobre a rapidez do voltará sempre a colocar todo o seu empenho para tornar a
raio com que ocorria neles esta mudança. Certamente aqui senti-lo novamente.
também intervém o desejo do corpo de continuar crescendo, A relação numérica entre os deitados e os erguidos tem
o que nos é negado a partir de uma certa idade. Todos os de- um grande significado. Também é importante considerar a oca-
tentores do poder, no fundo, queriam tornar-se fisicamente sião em que o erguido encontra os que estão caídos. Guerra e
maiores; gostariam de ter esta faculdade e de aplicá-la sempre batalha têm seus ritos próprios e como acontecimentos de
segundo suas necessidades; crescer de maneira repentina e massa já foram abordados em separado. A tendência descrita
inesperada até o alto para assustar os demais que não têm se solta com toda a liberdade diante do inimigo; o extermínio
este mesmo dom; depois, então, sem que ninguém o perceba, deste não tem sanção alguma. Em relação a ele é permitido
tornar-se novamente menores para poder crescer outra vez na nutrir os sentimentos que parecem naturais.
próxima oportunidade em público. O homem que assim que Na paz da cidade, o indivíduo que cai e que não consegue
acorda salta da cama — que talvez há dois minutos ainda dor- levantar-se tem outro efeito sobre os que o contemplam. Cada
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um, segundo o seu momento e sua maneira, irá se identificar dificaria. O ficar de cócoras pode conter ambas as coisas: a
em medidas diferentes com ele. Passará ao longe, talvez com nropriedade ou a ausência dela. É justamente a partir disto
peso de consciência, ou se dará ao trabalho de ajudá-lo. Se o rue o ficar de cócoras se transformou na posição contempla-
caído conseguir manter-se novamente sobre os próprios pés, tiva básica, uma visão familiar para todos os que conhecem
todos os espectadores se sentirão satisfeitos; o reerguido passa o Oriente. A pessoa acocorada se desprendeu dos homens, não
a ser identificado diretamente com eles. Caso não o consiga é exerce peso sobre ninguém; ela descansa em si mesma.
entregue a uma instituição competente. Nisto sempre existe,
até mesmo entre as pessoas mais educadas, um leve sentimento
de desprezo. Procura-se para o caído a ajuda da qual ele ne- O ajoelhar-se
cessita, mas com isto ele é expulso da comunidade dos que
estão erguidos e, durante um certo tempo, ele deixa de ser Ao lado da forma passiva de impotência, que já conhecemos
considerado um ser normal e completo. no estar deitado, existe uma outra muito ativa, que se refere
de maneira imediata ao poderoso que está presente e dirige a
própria impotência de maneira a realçar o seu poder. O gesto
O acocorar-se de ajoelhar-se deve ser interpretado como súplica de uma gra-
ça. O condenado à morte oferece sua cabeça; ele se resignou
O ato de acocorar-se expressa frugalidade, ausência de neces- a que a cortem. Não faz nada contra isso; pela postura do seu
sidades, retirada para dentro de si mesmo. A pessoa se torna corpo ele facilita a execução dessa vontade alheia. Mas ele
o mais redonda que pode e nada espera dos outros. Ela re- junta as mãos e ainda no último instante roga demência ao
nuncia a qualquer atividade que implique reciprocidade. Não poderoso. O ajoelhar-se é sempre uma representação do último
acontece coisa alguma que desencadeie uma ação contrária. O instante, mesmo quando na realidade se trate de algo muito
acocorado dá a impressão de ser tranqüilo e conformado; não distinto, de uma adulação extrema que chama a atenção. Quem,
se espera ataque algum por parte dele, ele está satisfeito jus- em aparência, se resigna a ser morto confere àquele, diante do
tamente por ter tudo o de que necessita justamente porque qual está de joelhos, o poder maior, ou seja, o poder de vida
nada exige para si mesmo. O mendigo acocorado mostra que e de morte. Alguém que seja tão forte, tão poderoso também,
ficará contente com tudo o que lhe for dado; ele não faz deve ter a possibilidade de conceder muitas outras coisas. A
diferenças. graça de quem recebe a súplica deve igualar-se à impotência,
A maneira oriental de acocorar-se com que as pessoas à inofensividade do ajoelhado. A distância é simulada como
ricas acolhem seus visitantes tem algo de sua atitude peculiar algo tão grande que somente a grandeza do poderoso é capaz
em relação à propriedade. Dão a impressão de transportar suas de cobrir; e, caso ele não o faça, torna-se menor diante de si
propriedades consigo, estando totalmente seguras delas; de mesmo do que no momento em que a outra pessoa se ajoelhou
na sua frente.
cócoras não mostram qualquer temor ou preocupação de serem
despojadas do que possuem, nem de perder de qualquer outra
maneira o que lhes pertence. Elas se deixam servir, mas é como
se as suas propriedades se fizessem servir. Com isto elas evitam O maestro
a dureza natural desta relação pessoal. Não existe tampouco o
exibicionismo de quem se sente como se estivesse acima de Não existe expressão mais clara e nítida do poder que a ativi-
outra criatura, próprio de quem se senta numa cadeira. A pes- dade do maestro. Cada detalhe de sua conduta pública é ca-
soa é como um saco, bem formado e bem vestido, que con- racterístico; tudo o que ele faz serve para lançar luz sobre a
tém tudo o que deve conter; os criados vêm e cuidam do saco. natureza do poder. Quem nada soubesse a respeito do poder,
Mas a resignação em relação a tudo o que ainda poderia poderia deduzir suas propriedades, uma após outra, a partir
acontecer também é uma característica do ficar de cócoras, O da observação atenta de um maestro. Para que isto nunca
mesmo homem também se sentaria assim se fosse um men- tenha sido feito há um motivo muito convincente: a música que
digo; e isto significa que neste caso ele também não se mo- o maestro dirige parece ser a coisa principal, e é geralmente
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aceito que as pessoas vão aos concertos para ouvir sinfonias. O ~ação a ninguém na platéia; praticamente não se dá
próprio maestro é a pessoa que está mais convencida disso; sua Pre° ,: ` eles Aparece o maestro. Faz-se silêncio. Ele se coloca
atença°.çao; pigarreia; ergue a batuta: todos emudecem e ficam
regência, acredita ele, está a serviço da música e deve trans- osi
miti-la com exatidão e nada mais. em P Enquanto ele rege ninguém deve se movimentar.
O maestro acredita ser o primeiro servidor da música. Ele °s•que ele acaba de reger todos devem aplaudi-lo. Todo
rAígsisdifin
se encontra tão tomado por ela que simplesmente não lhe pode desejo de movimento, despertado e aumentado ainda mais
úsica, deve ser contido até o final; depois, porém, explo-
ocorrer a idéia de um segundo sentido, extramusical, de sua pela m
atividade. Ninguém ficaria mais surpreso do que ele a respeito de , O maestro se inclina diante das mãos que o aplaudem.
da interpretação que se segue. po r causa delas ele retorna várias vezes, quantas vezes essas
O maestro está de pé. A posição ereta do homem tem mãos o quiserem. A elas, mas apenas a elas, ele está entregue;
significado inclusive como antiga lembrança de muitas repre- é para elas que ele realmente vive. É a antiga aclamação do ven-
sentações de poder. Ele está de pé sozinho. Em torno dele está cedor que desta forma lhe é dada. A magnitude da vitória se
sentada a sua orquestra; atrás dele estão sentados os ouvintes; expressa na medida do aplauso. Vitória e derrota tornam-se a
chama a atenção o fato de ser ele o único a estar de pé. Está de forma pela qual ele organiza sua própria economia espiritual.
pé num plano elevado e é visível tanto pela frente como pelas Nada fora disto tem importância; tudo o mais que existe na
costas. Pela frente seus movimentos agem sobre a orquestra; vida dos outros se transforma para ele em vitória e derrota.
por trás, sobre os ouvintes. As disposições, as ordens propria- Durante a execução, o maestro é um guia para a multidão
mente ditas, ele as transmite apenas com a mão ou com a mão presente na sala. Ele se encontra na cabeça, na ponta desta
e a batuta. Com um movimento mínimo, ele desperta repenti- multidão e vira as costas para ela. É a ele que a multidão
namente para a vida esta ou aquela voz, e quem ele quer que segue, pois é ele quem dá o primeiro passo. Mas em vez de
se cale, cala-se. Desta forma ele tem poder sobre a vida e a avançar com o pé, ele avança com a mão. O andamento da
morte das vozes. Uma voz, que durante muito tempo tenha música, que é provocado pela mão, está no lugar do caminho
estado morta, pode ressuscitar em função de uma ordem sua. que os pés seguiriam. Ele arrebata a multidão presente na
As diferenças entre os instrumentos correspondem às diferenças sala. Durante a peça inteira, a multidão jamais lhe vê o rosto.
entre os homens. A orquestra é como uma reunião de todos os Ele é implacável e não permite um momento sequer de des-
seus tipos principais. Sua disposição à obediência permite que canso. Suas costas se erguem diante deles como se fossem a
o maestro os transforme numa unidade, que ele então repre- meta. Se ele se virasse, nem que fosse apenas uma vez, o
senta para eles, sendo publicamente visível. feitiço estaria quebrado. O caminho que percorrem já não
A obra que executa, sempre de natureza complexa, exige seria mais um caminho e, decepcionados, se encontrariam sen-
sua máxima atenção. Presença de espírito e rapidez estão entre tados numa sala imobilizada. Mas pode-se ter confiança: ele
as suas principais qualidades. Ele deve atingir com a rapidez não se vira. Porque, enquanto eles o seguem, ele tem diante
de um raio todos os infratores da lei. As leis estão colocadas de si um pequeno exército de músicos profissionais que deve
em suas mãos sob a forma de partitura. Os outros também as ser dominado. Também neste caso a mão o auxilia, porém ela
têm e podem controlar o seu cumprimento, mas somente ele não serve apenas para indicar os passos como para as pessoas
decide, e somente ele julga no ato qualquer coisa a respeito que se encontram atrás dele, mas para transmitir ordens.
das falhas. Que isto suceda publicamente, à vista de todos Seu olhar, sempre o mais intenso possível, abrange a
em cada um dos seus detalhes, dá ao maestro uma consciência orquestra inteira. Cada um dos integrantes se sente observado
peculiar de si mesmo. Ele se habitua a ser visto sempre, e por ele; e, mais ainda, sente-se ouvido por ele. As vozes dos
cada vez lhe é mais difícil abrir mão disto. instrumentos são as opiniões e as convicções às quais ele presta
O fato de os ouvintes estarem sentados em silêncio faz a maior atenção. Ele é onisciente, pois ao passo que os mú-
parte das intenções do maestro, como a obediência da orques- sicos têm diante de si apenas suas próprias vozes, ele tem a
tra. Os ouvintes são obrigados a permanecer imóveis. Antes partitura completa na cabeça, ou sobre a estante. Ele sabe
da chegada do maestro, antes do concerto, eles conversam e se com toda a exatidão o que é permitido a cada um dos inte-
movimentam em desordem. A presença dos músicos não causa grantes a qualquer instante. O fato de prestar atenção a todos
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em conjunto, confere-lhe o prestígio da onipresença. Por assim rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite
dizer, ele está na cabeça de todos e de cada um. Ele sabe o deles para a aquisição de homens. Mas ele quer homens que
que cada um deve fazer, e também sabe o que cada um faz. vivam , para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. Os
Ele, a somatória viva das leis, atua de ambos os lados do que nasceram antes e os que nascerão depois têm para ele
mundo moral, pelo mandato de sua mão dispõe o que ocorre importância secundária.
e evita o que não pode ocorrer. Seus ouvidos exploram o ar à O famoso coleciona coros. Destes, quer escutar apenas o
procura do que é proibido. Para a orquestra o maestro repre- seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem
senta assim, de fato, a peça inteira na sua simultaneidade e ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam
seqüência; e, como durante a execução o mundo não pode numerosos e que tenham sido exercitados em repetir seu nome.
consistir em qualquer outra coisa que não seja a peça, durante
esse tempo ele é o senhor do mundo.
A ordenação do tempo
Glória A ordenação é essencial para as principais formações políticas.
A ordenação do tempo regula todas as atividades con-
Para a glória sadia é indiferente em que boca ela vá parar. juntas dos homens. Seria possível dizer que a ordenação do
Não faz diferença alguma; o essencial é que o nome seja pro- tempo é o atributo mais eminente de toda dominação. Um
nunciado. A indiferença em relação aos que o pronunciam, poder recém-aparecido que queira impor-se deve proceder a
principalmente a igualdade deles entre si, em relação ao ma- uma nova ordenação do tempo. É como se com ele tivesse
níaco da glória, revela a origem de sua mania nos processos início o tempo; mais importante ainda para todo poder novo
de massa. Seu nome reúne uma massa. À margem, e somente é que o tempo não transcorra. De suas pretensões temporais
em tênue relação com o que um homem realmente é, o nome pode deduzir-se a imagem de grandeza que um poder tem de
leva sua própria e ávida vida. si mesmo. Hitler não queria um Reich que durasse menos de
A massa do maníaco da glória é formada por sombras; mil anos. O calendário juliano de César durou mais; mais ainda
ou seja, por criaturas que não têm outra razão de viver senão perdura o nome do mês a ele dedicado. Dentre as figuras
a de pronunciar um nome muito determinado. Deseja-se que o históricas somente Augusto conseguiu um nome de mês du-
digam com freqüência e que o digam diante de muitos outros, radouro. Outros conseguiram, transitoriamente, dar seu pró-
ou seja, numa comunidade, para que muitos o aprendam e se prio nome aos meses; mas seus nomes acabaram caindo com
fortaleçam ao pronunciá-lo. Mas o que estas sombras fazem suas estátuas.
além disso — seu tamanho, seu aspecto, sua alimentação, seu O domínio mais grandioso sobre a computação do tempo
trabalho — é algo ainda mais indiferente do que o ar para a foi o de Cristo; nisto ele conseguiu superar o próprio Deus, a
pessoa famosa. Enquanto alguém se preocupa com os donos partir de cuja criação do mundo os judeus continuam calcu-
das bocas que dizem nomes, enquanto as recruta, as corrompe, lando o tempo. Os romanos contavam o tempo a partir da
as incita ou fustiga, ainda não é totalmente célebre. Neste fundação de sua cidade, um método que eles tomaram dos
caso, ele está apenas preparando as bases para o seu futuro etruscos; isto contribuiu muito para o tremendo destino de
exército de sombras. Uma vez atingida, a glória pode permi- Roma aos olhos do mundo. Alguns conquistadores se conten-
tir-se não ter preocupações com os demais, sem que perca tam em intercalar seu nome em algum lugar qualquer do ca-
nada com isso. lendário. Dizem que Napoleão tinha colocado suas esperanças
As diferenças entre o rico, o detentor do poder e o famoso no dia 15 de agosto. A vinculação de um nome com o retorno
podem ser resumidas mais ou menos assim: regular do tempo exerce uma atração irresistível. O fato de a
O rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas grande maioria dos homens não ter consciência da origem de
coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para uma designação temporal não parece diminuir a intensidade
ele é suficiente o fato de poder comprá-los. do desejo dos detentores do poder de perpetuar-se desta ma-
O detentor do poder coleciona homens. Os montes e os neira. Até hoje ninguém ainda conseguiu uma estação inteira
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do ano, se bem que já foram reunidas séries inteiras de séculos
,ária a preocupação de manter-se o tempo correto. Sinais de
sob o nome de uma dinastia. A história chinesa é calculada tambor e de fogo servem para a transmissão a longas distâncias.
desta forma: fala-se da época Han ou da época Tang. Seu É sabido que a vida de certos indivíduos serviu para rea-
esplendor favorece também dinastias pequenas e tão miserá- lizar os primeiros resumos temporais de grupos maiores de
veis que melhor fora esquecê-las. Esse tipo de cálculo conver- homens. Os reis, que ocupavam seu posto durante determina-
teu-se num método de computação de longos lapsos de tempo dos lapsos de tempo, encarnavam este tempo para todos. Sua
entre os chineses; porém trata-se mais de uma perpetuação de morte assinalava sempre um período de tempo. Eles eram o
famílias do que de indivíduos isolados. tempo; entre um e outro o tempo se detinha e procurava-se
Mas a relação entre os detentores do poder com o tempo que estes períodos intermediários — interregnos — tivessem
não se esgota na vaidade dos seus nomes. Trata-se também da a menor duração possível.
própria ordenação do tempo, e não simplesmente da troca de
nomes de unidades já existentes. A história dos chineses se
inicia com essa ordenação. O prestígio dos primeiros gover- A corte
nantes legendários repousa, em sua maior parte, na divisão
efetiva do tempo que lhes é atribuída. Para seu controle são Antes de mais nada, uma corte é concebida como um centro,
instituídos funcionários especiais. Eles são castigados quando um ponto central que sirva de orientação para os demais. A
se descuidam de seus encargos. Somente debaixo de um tempo tendência para movimentar-se em torno de um ponto central
comum é que os chineses realmente se reuniram como um é muito antiga; ela já foi, inclusive, observada entre os chim-
povo. panzés. Mas originariamente este ponto central também era
A maneira mais aceitável de se delimitar as civilizações móvel. Podia originar-se aqui ou ali, deslocava-se com os que
continua sendo uma ordenação do tempo. Sua solidez depende se moviam em torno dele. Aos poucos o ponto central se
da duração de sua transmissão regulada. Elas se desintegram fixou. Grandes pedras e árvores foram o modelo para tudo o
quando ninguém a continua. Uma civilização chega ao fim que não mudava de lugar. Com árvores e pedras também foram
quando ninguém continua levando a sério a sua maneira de erguidas mais tarde residências mais sólidas. A nota do per-
contar o tempo. Neste ponto não é indevida uma analogia com manente se acentuava cada vez mais. A dificuldade da cons-
a vida de um indivíduo. Um homem que já não quer mais trução de tal centro, o transporte das pedras a longas distân-
saber que idade tem terminou sua vida; ele deixa de viver cias, o número de participantes nesse trabalho, o próprio pe-
quando não pode mais sabê-lo. Períodos de desorientação tem- ríodo de tempo que sua construção exigia, tudo contribuiu
poral na existência dos indivíduos como na de culturas inteiras para aumentar o seu prestígio como coisa durável.
são períodos de vergonha, que se procurará extirpar da ma- Mas este centro duradouro de um pequeno mundo, que
por seu intermédio se transformava numa ordenação, ainda
neira mais rápida possível.
não era uma corte. À corte pertence um núcleo de homens em
Os motivos práticos desta importância enorme que a di-
número não demasiadamente reduzido, que estão incorporados
visão de tempo adquiriu são evidentes. Ela reúne unidades
a ela da maneira mais cuidadosa, como se fizessem parte da
maiores de homens, que vivem amplamente dispersos e que sua construção. Eles estão, como os próprios espaços, dispostos
não podem ver-se frente a frente. Numa pequena horda, for- em determinadas distâncias e alturas. Suas obrigações estão
mada por uns cinqüenta membros, cada qual sempre sabe o estabelecidas de maneira precisa e exaustiva. Podem fazer exa-
que o outro faz. Todos se encontram facilmente em exercícios tamente isto e, em hipótese alguma, mais do que isto. Mas
comuns. Seu ritmo se desenvolve em determinados estados de em determinadas horas eles se reúnem, e sem renunciar ao que
malta. Eles dançam sua duração, da mesma forma como dan- são, sem esquecer seu lugar, muito conscientes de sua limitação,
çam tantas outras coisas. A transmissão de tempo de uma rendem homenagem ao soberano.
malta para outra não é importante; e, quando é, a transmissão Sua homenagem consiste em estar ali, voltados para ele,
é fácil, uma vez que todos estão próximos uns dos outros. agrupados em torno dele, mas não excessivamente próximos,
A cada ampliação do contexto torna-se cada vez mais neces- deslumbrados por ele, temerosos diante dele e esperando tudo
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dele. Nesta atmosfera peculiar, na qual esplendor, terror e graça "Diante do trono do imperador erguia-se uma árvore de
se interpenetram igualmente, passam sua vida. Quase mais ronze, mas dourada, cujos galhos estavam repletos de pás-
bu de diferentes tipos, igualmente de bronze e dourados;
nada existe para eles. Por assim dizer, eles se estabeleceram saros
perto do próprio Sol, e com isto provam aos demais que ele todos, cada qual segundo sua espécie, entoavam o canto do
também é habitável. pássaro que representavam. O trono do imperador tinha sido
A postura fascinada dos cortesãos, que o soberano não construído de tal maneira que num determinado momento pa-
perde de vista, é a única coísa comum a todos eles. Nisto eles recia ser baixo, maior logo depois e por fim de uma altura
são iguais, do primeiro ao último. Nesta invariável direção do sublime. Leões de porte monstruoso, não sei se de metal ou
olhar eles têm algo de massa; mas somente o primeiro indício de madeira, mas recobertos de ouro, eram os guardiões do
disto, nada mais; pois é justamente este mesmo olhar que trono; batiam com a cauda no solo e abrindo a boca e movi-
relembra a cada qual o seu dever, que se distingue do dever m entando a língua soltavam rugidos. Para esta sala fui con-
de todos os demais cortesãos. duzido, acompanhado por dois eunucos, até diante do impera-
O comportamento dos cortesãos deve agir sobre os de- dor. Quando entrei, os leões rugiam, os pássaros cantavam,
mais súditos por contágio. O que aqueles sempre fazem deve cada qual à sua maneira; mas eu não fiquei atemorizado nem
levar estes a fazê-lo às vezes. Em determinadas ocasiões, por assombrado, uma vez que já tinha sido informado de tudo isto
exemplo, quando o rei entra na cidade, todos os seus morado- por pessoas que o conheciam muito bem.
res devem esperar por ele, como os cortesãos no palácio, e "Quando me prostrei pela terceira vez e levantei a cabeça,
oferecer-lhe a homenagem que há tanto tempo lhe devem; avistei aquele a quem antes tinha visto sentado a uma altura
e devem fazê-lo, justamente por isto, com mais entusiasmo regular, levantado até quase a altura do teto da sala, e ador-
ainda. A proximidade da corte deve atrair todos os súditos nado com vestimentas diferentes da que usava ainda há pouco.
para a capital, onde realmente se toma posição em grandes Como isso foi feito é algo que não consigo compreender, a
círculos concêntricos em torno dos cortesãos. A capital cresce não ser que ele tenha sido levantado da mesma maneira que
em torno da corte, suas casas são uma homenagem permanente as árvores das prensas de vinho. O imperador, nesta oportu-
a ela. O rei, magnificente como é de esperar, retribui com nidade, não pronunciou palavra porque, mesmo que o quisesse
edifícios luxuosos. fazer, isso não teria sido decoroso a uma distância tão grande.
A corte é um bom exemplo de cristal de massa. Os ho- Por meio do seu representante pediu informações quanto à
mens que a constituem têm funções inteiramente separadas e vida e ao bem-estar do meu senhor. Depois de lhe ter respon-
se consideram multo diferentes entre si. Mas, para os outros, dido da maneira devida, retirei-me a um sinal do intérprete e
têm — justamente como cortesãos — algo de idêntico a todos e fui conduzido à hospedaria que me tinha sido indicada."
formam uma unidade da qual se irradia uma opinião uniforme. Enquanto o enviado se prostra e toca o solo com a cabeça,
o trono do imperador cresce até o alto. O rebaixamento de
um é usado para o levantamento do outro. A distância entre
O trono crescente do imperador de Bizâncio os dois, que no momento da recepção tinha sido excessiva-
mente reduzida, volta a ser restabelecida verticalmente. O
O crescer de repente sempre causou uma enorme impressão gorjeio artificial dos pássaros e o rugir dos leões é superado
aos homens. Mais que o tamanho físico, permanente; mais pela arte de um trono crescente. Este crescimento significa o
que o rápido erguer-se de um assento; a pequena estatura que, aumento do poder: sua ameaça ao enviado de um poder es-
diante dos olhos dos espectadores, crescia até o gigantesco é o trangeiro é inequívoca.
que mais deslumbrava. Na mitologia e nos contos poéticos de
muitos povos estes personagens são bem conhecidos. Uma
utilização consciente desta mudança de estatura para fins de Idéias de grandeza dos paralíticos
poder nos chega da Bizâncio do séc. X. Liudprando de Cre-
mona, enviado de Oto I, deixou o seguinte relato a respeito Na verdade, o que é que o homem entende por "grandeza"?
de sua recepção diante do imperador bizantino: A palavra é utilizada de forma tão ambígua que é desespera-
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dor quando se procura descobrir um sentido claro e exato ;mediações de Metz, onde ele queria estabelecer uma horti-
dela. Quanta coisa já não foi qualificada como sendo "grande"! culturaem
» grande escala; a região também era muito ade-
As coisas mais opostas e as mais ridículas se reúnem aqui, em qu ada para vinhedos. Além disso também pretendia adquirir
vizinhança imediata de criações sem as quais não se consegue quatorze cavalos para a exploração agrícola, como também
sequer imaginar uma existência digna de um ser humano. Jus- instalaria um poderoso comércio de madeiras, que certamente
tamente em sua confusão, esta palavra "grandeza" expressa haveria de lhe proporcionar uma boa soma de lucros. À obje-
algo sem o que os homens já não podem mais viver. É preciso ção de que todos estes empreendimentos certamente não se
tentar apreendê-la em sua ambigüidade, e talvez seja recomen- desenvolveriam sem problemas, que eles exigiriam o emprego
dável aproximar-nos da "grandeza" na mente dos homens sim- de meios financeiros consideráveis, ele responde cheio de con-
ples, onde ela adquire a sua forma mais apreensível e externa. fiança que, com sua grande capacidade de trabalho, seria per-
Uma enfermidade muito difundida e bastante estudada feitamente capaz de contornar todos esses problemas; tampouco
vem a calhar neste sentido, A paralisia caracteriza-se no seu lhe faltaria dinheiro, levando-se em consideração as excelentes
caso clássico por uma produção em massa de idéias de gran- perspectivas de lucro. Ele dá também a entender que o Kaiser
deza. Estas se alternam numa sucessão extremamente variada se interessa por ele e lhe permitirá recuperar o título de no-
e respondem, com facilidade aos estímulos exteriores. Elas não breza do qual seu avô tinha aberto mão por falta de recursos;
existem em todas as paralisias; existem também formas de- por assim dizer, ele já podia voltar a usá-lo agora mesmo.
pressivas desta enfermidade, que se caracterizam por idéias de Todas estas declarações são feitas pelo doente num tom de
coisas pequenas; em alguns casos, ambas coexistem lado a lado. voz sereno e objetivo; ele se comporta com naturalidade."
Mas não se trata aqui de uma análise desta doença como tal. É fácil incitá-lo a uma ampliação dos seus planos. "Quan-
O que nos interessa é o acúmulo concreto de idéias de gran- do se insinua que uma avicultura também poderia ser van-
deza em casos determinados, conhecidos e descritos de forma tajosa, ele assegura imediatamente que é claro que também
precisa. Justamente a abundância destas idéias, sua ingenui- irá criar perus, galinhas-d'angola, pavões e pombas, que cevará
dade e sua fácil provocação, o que faz com que elas sejam tão gansos e que montará uma criação de faisões".
absurdas ao indivíduo "normal", ou seja, ao não-paralítico, é Sua doença chamara a atenção em primeiro lugar pelos
que proporcionam conclusões surpreendentes sobre a "gran- grandes projetos de compra e de produção. Quando foi inter-
deza". É preciso acompanhar com um pouco de paciência as nado na clínica, "ele se sentiu muito estimulado à criação;
enumerações que faremos em seguida. É preciso ouvi-las da num estado mental e físico melhor do que nunca. Tinha a
forma mais completa possível antes de se poder começar a intenção de dedicar-se ali, onde tudo lhe agradava muito, à
desvendar o seu sentido. Os dois doentes dos quais falaremos poesia, coisa que fazia muito melhor do que Goethe, Schiller
em seguida viveram no tempo do Kaiser Guilherme II, da e Heine... Queria inventar inúmeras novas máquinas, remo-
Alemanha, circunstância que é importante para não poucas de delar a clínica, levantar uma catedral mais alta que a de Co-
suas imagens. lônia, cercar a instituição com uma proteção de vidro. Ele
Um comerciante de meia-idade apresentado na clínica de dizia ser um gênio, falar todos os idiomas do mundo, capaz
Krãpelin, diz o seguinte a respeito de si mesmo: de fundir uma igreja de ferro, de conseguir as mais elevadas
"Ele esteve louco devido aos esforços e às perseguições, condecorações do Kaiser; dizia ser capaz de inventar um meio
mas agora se sentia plenamente recuperado espiritualmente; de acalmar os loucos, que doaria à biblioteca do estabeleci-
apenas um pouco nervoso. Sua capacidade de trabalho aumen- mento mi] volumes, na sua maioria obras filosóficas; ele tinha
tara consideravelmente na clínica devido às atenções e todo tipo de privilégios divinos. Estas idéias de grandeza mo-
cuidados, de maneira que podia render muito. Por este motivo dificavam-se constantemente, originavam-se instantaneamente
também tinha esplêndidas perspectivas; a curto prazo, assim para serem substituídas logo em seguida por outras. .. O
que lhe dessem alta, pensava em montar uma grande fábrica doente falava, escrevia e desenhava sem cessar, encomendava
de papel, para a qual um amigo lhe forneceria o dinheiro ne- sem pestanejar tudo o que era oferecido nos anúncios dos jor-
cessário. Além disto, Krupp, que era um conhecido deste seu nais; alimentos, mansões, roupas, móveis. Ora era um conde,
amigo, tinha colocado à sua disposição uma propriedade nas ora um general, ora presenteava o Kaiser com um regimento

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completo de artilharia de campo. Ele se ofereceu para trans- estivesse livre e realmente tivesse dinheiro, ele compraria
ferir a clínica para um lugar mais elevado, no alto de uma as essas coisas. Não se pode dizer porém que ele as acumu-
montanha".
jria. Sem dúvida ele lidaria com essas coisas com tanta pro-
Vamos agora estabelecer algo semelhante a uma ordem digalidade como com o dinheiro; ele as presentearia a todos os
provisória nesta confusão colorida. Por um lado existe o que
tipos de pessoas. A conservação lhe interessa tão pouco quanto
poderia ser chamado de tendência à altura: ele quer erguer a posse. Ele vê as coisas que quer comprar como montes diante
uma catedral que supere em altura a de Colônia, e quer tam- de si, mas apenas enquanto ele não as possui. A fluidez da
bém transferir a clínica para o topo de uma montanha. Esta propriedade lhe importa muito mais do que a própria proprie-
altura que ele procura também o beneficia. Transposta para dade. Seu gesto, que parece ser duplo, no fundo é único:
as circunstâncias de hierarquia humana, isto se expressa na trata-se de recolher e de jogar de mãos cheias. É um gesto de
nobreza do seu avô; ele mesmo é um conde; na hierarquia grandeza.
militar é um general. O Kaiser se interessa por ele e está Passemos agora a um segundo caso. Díz respeito a outro
inclinado a conceder-lhe condecorações; ele presenteia o Kaiser comerciante, aliás da mesma idade, cuja forma de paralisia é
com todo um regimento. Nisto tudo está implícito que ele
muito mais agitada. Com ele tudo também começou com gran-
quer chegar a ser ainda mais elevado que o próprio Kaiser. des projetos. De repente, sem ter meios para isso, resolveu
O mesmo impulso também está presente na esfera espi- comprar um estabelecimento de banhos por 35.000 marcos e
ritual: como gênio fala todos os idiomas do mundo, como se encomendou 14.000 marcos de champanha e 16.000 marcos
os idiomas fossem uma espécie de súditos do gênio; e os poetas de vinho branco para instalar um restaurante. Na clínica ele
mais famosos que ele conhece — Goethe, Schiller e Heine — fala sem cessar:
serão superados por ele. Tem-se a impressão de que nesta ten- "Ele quer se tornar maior e pesar 200 kg; manda que
dência à altura não lhe importa permanecer lá em cima, mas lhe coloquem barras de ferro dentro dos braços e carrega con-
sim chegar rapidamente lá em cima. Muitas vezes é preciso decorações que pesam 100 kg; mantém relações com cinqüenta
subir depressa; toda oportunidade é apropriada para isso. negras que ele produz com uma máquina de ferro e terá para
Mostra-se que o que até então era considerado como o mais sempre quarenta e dois anos de idade; casa-se com uma condes-
alto, é fácil de ser superado. Estabelecem-se novos recordes de sa de dezesseis anos que tem uma fortuna de 600 milhões e que
altura. Não se pode ignorar a suspeita de que nestes recordes obteve do papa a Rosa da Virtude. Possui cavalos que não
de altura se trata propriamente de recordes de crescimento. comem aveia, além de cem palácios de ouro com cisnes e
Uma segunda tendência, igualmente patente, é a da aqui- baleias do material com que são feitas as cotas de malha à
sição. Fala-se de uma fábrica de papel e de um comércio de prova de balas; fez grandes invenções; construiu um palácio
madeiras, de uma grande horticultura, de vinhedos e cavalos. de 100 milhões para o Kaiser, que ele trata por tu; recebeu
Mas a maneira com a qual é recebida a sugestão de uma criação cento e vinte e quatro condecorações do arquiduque e pre-
de aves revela que a aquisição tem características bastante senteia qualquer pobre diabo com meio milhão. Junto a isto
arcaicas. Trata-se de uma multiplicação de todos os tipos de existem idéias de perseguição. Já tentaram assassiná-lo cinco
coisas, principalmente das coisas vivas que gostam de se mul- vezes; todas as noites chupam-lhe dois baldes de sangue do
tiplicar. Perus, galinhas-d'angola, pavões, pombas, gansos, traseiro; por este motivo mandará decapitar os enfermeiros,
faisões — tudo isto é enumerado separadamente, como espé- deixá-los-á serem estraçalhados por cães, irá construir uma
cie, e em cada um dos casos está inerente a idéia de que através guilhotina a vapor."
da criação a espécie pode multiplicar-se de forma incomensu- Neste caso tudo é muito mais cru e mais nítido; trata-se
rável. A aquisição neste caso é o que era originariamente: uma da nudez do crescimento, do próprio crescimento que pode
influência sobre as massas naturais para que elas se multipli- ser medido pelo seu peso de 200 kg. Trata-se de força; ele
quem, o que posteriormente acaba nos beneficiando. manda colocar barras de ferro nos seus braços. Trata-se da
Em terceiro lugar existe uma tendência à dilapidação, ao mais potente e indestrutível distinção: condecorações de ferro
esbanjamento. O doente encomenda tudo o que é oferecido COM 100 kg de peso; e ele é suficientemente forte para poder
nos anúncios dos jornais: alimentos, mansões, roupas, móveis. carregá-las. Trata-se de potência e de paralisação do tempo:
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para suas cinqüenta negras ele terá sempre quarenta e dois dicional qualidade dos reis que tão bem conhecemos pelos
anos. A mais virtuosa e rica, a mais jovem das noivas é acei-
contos e pela história: a prodigalidade. De um rei negro da
tável para ele. Para seus cavalos a aveia não é suficiente. Os África Ocidental do séc. XIV, conta-se que numa peregrinação
cisnes nos seus cem palácios de ouro parecem ser também
mulheres e, de qualquer forma, são um contraste com as suas a Meca comprou toda a cidade do Cairo, proeza que nunca
foi esquecida. A ostentação do adquirir ainda hoje está ampla-
negras; as baleias ele também as possuí por serem as maiores mente difundida, não menos do que a ostentação do esbanjar.
criaturas existentes. Ele também se preocupa com sua invul-
Aos tão questionados reis do dinheiro dos nossos tempos, de
nerabilidade. Fala — se bem que em relação às baleias — de
todas as manifestações de grandeza nada mais lhes é realmente
cotas de malha à prova de balas, mas fala muito também de permitido além da exibição gigantesca de suas doações públi-
metais em geral. Cem milhões, sobre os quais domina, custa
cas. Nosso doente esbanja palácios de 100 milhões e encontra
o palácio para o Kaiser, e graças a estes 100 milhões eles se
tratam por tu. Pobres diabos existem aos milhões, e cada um no Kaiser um cliente interessado.
Suas idéias de grandeza certamente se modificam muito,
é como que uma metade; provavelmente é isto que o leva a
mas não se tem a impressão de que ele se transforme por causa
presenteá-los com meio milhão cada um. Em sua elevada po-
delas. Ele continua sempre igual, mesmo quando pesa 200 kg,
sição, ele está exposto naturalmente a todos os tipos de per-
quando se casa com uma virtuosa condessa de dezesseis anos
seguição. Uma única tentativa de assassinato não pode ser o
ou quando trata o Kaiser por tu. Pelo contrário, tudo o que
suficiente para uma personalidade tão importante. Está em seu
se aproxima dele de fora para dentro é utilizado para ele
direito decapitar os enfermeiros que chupam seu sangue (por
mesmo. Ele é o ponto fixo e central do universo; ele o con-
trás, para expressar a baixa posição deles) e mandar que sejam
quista comendo e crescendo, mas sem jamais se transformar
despedaçados por cães. Porém, mais rápida do que a antiquada
em outra coisa. O aspecto descontínuo de suas idéias lhe for-
malta de cães é a guilhotina a vapor, que ele constrói para
nece alimento; a variedade e a alternância desses alimentos
suas execuções de massa.
certamente lhe são importantes, pois ele quer crescer de todas
Quanto mais cara é alguma coisa, quanto mais elevado
as maneiras imagináveis, mas tudo não passa de uma diferença
seu preço, quanto mais se fala de milhares e milhões, tanto
mais ele se sente atraído por essa coisa. O dinheiro volta a de alimentos. Seu colorido engana; trata-se do colorido do ape-
ter o seu antigo caráter de massa. Ele aumenta de uma só vez tite e nada mais.
e com a máxima aceleração, chega-se rapidamente ao milhão; A multiplicidade de suas idéias de grandeza somente é
uma vez alcançado este nível, os milhões passam a desempe- possível porque nenhuma se detém. Basta que uma destas
nhar o papel principal. O significado da palavra possui algo idéias surja para ser realizada. É natural mudar de meta, quan-
de brilhante, de mutável, ela se refere tanto aos homens como do as metas são conseguidas tão rapidamente. Como porém se
às unidades monetárias. A propriedade mais importante da explica que o doente não sinta resistência alguma em relação
massa, sua tendência para o crescimento, foi comunicada tam- às suas idéias? Qualquer coisa que uma palavra contenha no
bém ao dinheiro. O grande dispõe a seu bel prazer de milhões. sentido de poder e riqueza, ou de possibilidade de expansão
própria, basta que lhe seja lançada e ele acredita já ter alcan-
Como no caso anterior, aquisição e esbanjamento são o
çado todo o seu conteúdo. Esta facilidade parece estar rela-
aspecto duplo de um único movimento; comprar e presentear
cionada com o fato de ele sentir sempre a massa ao seu lado.
são, como todo o resto, apenas meios para a sua expansão.
Em cada um dos seus disfarces a massa existe para ele, quer
Poder-se-ia designar isto, para fazer diferença com relação à
se trate dos 600 milhões do dote, dos cem palácios de ouro ou
tendência para as alturas, como um crescimento em extensão.
das cinqüenta negras que ele produz com uma máquina de
Para ele não existem diferenças entre comprar e presentear;
ferro. Mesmo quando alguma coisa lhe é desagradável, como
com seu dinheiro em massa ele recobre os objetos até incluí-los os enfermeiros, logo ele tem à disposição uma malta de cães
em si mesmo; com o dinheiro e os objetos ele recobre os que, a uma ordem sua, se lançam sobre eles para despedaçá-los.
homens, até conquistá-los para si. Mas quando pensa em decapitações, inventa imediatamente
De forma ingênua, e justamente por isso de forma espe- uma guilhotina a vapor que se encarrega disso de maneira ma-
cialmente convincente, voltamos a encontrar aqui aquela tra- ciça. A massa sempre está atrás dele, nunca contra ele, e se
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alguma vez, excepcionalmente, ela é contra ele, então essa
massa é formada por decapitados.
No caso anterior vimos como todos os empreendimentos
frutificavam para o doente, principalmente as iniciativas agrí-
colas. Todos os tipos de aves esperavam apenas pela oportu-
nidade de se multiplicarem para ele; e quando ele queria
favorecer a biblioteca da instituição, apareciam imediatamente
diante dele mil volumes. Para comprar e presentear, ambos
têm à sua disposição todos os milhares e milhões imagináveis. PODERIO E PARANÓIA
É importante chamar a atenção para este comportamento
positivo da massa em relação ao paralítico com idéias de gran-
deza. A massa nunca se opõe a ele; ela é a matéria dócil pro-
priamente dita para os seus planos, e qualquer coisa que passa
pela cabeça dele é realizada pela massa. Ele jamais seria capaz
de querer demais, porque o crescimento dela é tão ilimitado
quanto o seu. Ela é de uma lealdade incondicional para com
ele; de uma lealdade que nenhum governante jamais conheceu
por parte dos seus súditos. Veremos mais tarde que a massa
no paranóico tem nuanças muito diferentes, ou seja, caracte-
rísticas de hostilidade. Por este motivo as idéias de grandeza
entre os paranóicos são muito mais polêmicas e mostram uma
tendência para se tornarem cada vez mais rígidas. Quando a
massa de tendências hostis se mostra mais forte, estas idéias
se transformam em idéias de perseguição.
Resumindo o que aprendemos pela análise das idéias de
grandeza dos paralíticos, podemos concluir que se trata de
continuar crescendo sempre e de voltar a crescer em duas
direções; uma é a direção da própria pessoa: ela quer ficar
maior e mais pesada fisicamente e não pode dar-se por satis-
feita com o término do crescimento físico. Todas as espécies
de força que fazem parte de sua individualidade devem crescer
com ela. A segunda direção é a dos milhões, à qual pode per-
tencer tudo o que tenha uma tendência para multiplicar-se
repentinamente — como a própria massa. Estes milhões fluem
pelas mãos do grande, em todas as direções, segundo seu de-
sejo e vontade, obedecendo apenas a ele.
Na grandeza com a qual os homens sonham, alia-se o sen-
timento de crescimento biológico individual com o sentimento
de crescimento brusco, que caracteriza a massa. A massa, neste
caso, é o fator subordinado, sua índole não conta, não tem
importância, e cada um dos seus substitutos pode servir para
um mesmo fim.

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Reis africanos

O estudo dos reis africanos mostrará de uma forma global os


aspectos e elementos do poder que analisamos em separado.
Nestes reis tudo parece ser estranho e insólito. É possível que
alguns se sintam tentados a descartá-los como curiosidades
exóticas. Um europeu é facilmente tomado por um sentimento
de sublimação quando ouve relatos como os que apresentare-
mos em seguida. No entanto é recomendável uma certa dose
de modéstia até conhecermos mais coisas a respeito deles. O
europeu do séc. XX não tem razão quando presume estar acima
da barbárie. Os meios dos seus poderosos podem ser mais
eficientes, mas suas intenções freqüentemente em nada se dife-
renciam das dos reis africanos.
A morte de um velho rei e a eleição de um novo no Gabão
foi narrada da seguinte maneira por Du Chaillu.
"Enquanto estive no Gabão, morreu o velho rei Glass.
A tribo tinha se cansado do seu rei. Ele era considerado um
bruxo poderoso e malvado; não se falava disso abertamente,
mas poucos teriam ousado aproximar-se de sua casa à noite.
Quando adoeceu, todos pareciam estar muito penalizados. Mas
muitos dos meus amigos me disseram, em confiança, que a
cidade inteira aguardava sua morte. Finalmente ele morreu.
Certa manhã acordei com o barulho de gritos, de lamentos e
choros. A cidade inteira parecia estar se desfazendo em lágri-
mas; o luto e as lamentações duraram seis dias. No segundo dia
o antigo rei foi enterrado em segredo. Alguns dos homens de
maior confiança da tribo o levaram a lugar que apenas eles
conheciam e que permaneceu para sempre oculto aos demais.
Durante os dias de luto, os anciões da aldeia ficaram atarefados
com a eleição de um novo rei. Este acontecimento também é
mantido em segredo e somente no sétimo dia é que eles comu-
nicam ao povo quando deverá ser coroado o novo rei, cujo nome
não será revelado até o final.
"O acaso quis que a eleição recaísse sobre Njogoni, um
amigo meu. Ele era de boa família e o povo o estimava, de
maneira que obteve a maioria dos votos. Não acredito que
Njogoni tivesse a menor suspeita de que tinha sido o escolhido.
Quando, na manhã do sétimo dia, passeava pela praia, foi assal-
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tado por toda a população. Logo em seguida cumpriu-se um a mbiente festivo era repartido e todos os que chegavam eram
costume que precede a coroação e que deve tirar de todos, com
exceção talvez dos mais ambiciosos, a vontade de subir ao trono. benl-viO velho rei Glass tinha sido esquecido, e o novo rei
nd°s
Numa massa compacta eles o rodearam e o cobriram de insultos Glass, coitado, estava doente de tanto cansaço. Dia e noite
que apenas o populacho mais sórdido é capaz de imaginar. era obrigado a receber pessoas e tinha de se mostrar cortês
Alguns lhe cuspiam no rosto, outros o golpeavam com os
punhos, alguns lhe davam pontapés, outros jogavam objetos com "Poro rum acabou, o prazo fixado tinha sido cum-
todas fim
elas.
asquerosos contra ele, enquanto os infelizes que se encontra- prido, e voltou a reinar a calma. Agora, pela primeira vez, a
vam demasiadamente distantes e que somente conseguiam nova majestade teve permissão para sair e visitar seu reino."
alcançar o pobre rapaz com suas vozes, insultavam-no, seu A sucessão dos acontecimentos, na medida em que pro-
pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs e seus ancestrais até as vocam a participação da massa, é aqui de extraordinária impor-
mais remotas gerações. Um estranho não teria dado um cen- tância. Tudo começa com a malta de lamentação em torno do
tavo sequer pela vida daquele que estava em vias de ser co-
rei morto durante seis dias. Depois, repentinamente, no sétimo
roado rei. dia, acontece o ataque contra o eleito. Todos os impulsos ho'stis
"Em meio a toda esta algazarra e confusão, ouvi algumas contra o morto são liberados sobre o seu sucessor. A massa
palavras que me serviram de explicação. Às vezes ouvia-se
de perseguição que se constitui em torno dele é na verdade
alguém que tinha dado um golpe ou um pontapé especialmente
violento dizendo: 'Você ainda não é o nosso rei. Agora ainda uma massa de reversão; não é dirigida contra ele, mas sim
contra o morto. As pessoas se libertam do ódio em relação ao
podemos fazer com você o que quisermos. Depois seremos
morto, que governou durante tempo demais e do qual, no fim,
obrigados a obedecer a você'.
só se sentia medo. O novo governo começa com a situação que
"Njogoni se mantinha firme como um homem e como
todo poderoso mais teme: com um cerco de súditos irados
um futuro rei. Ele permanecia sereno e suportava todas as
injúrias com rosto sorridente. Depois de aproximadamente que o atacam perigosamente. Mas ele permanece sereno porque
meia hora foi levado à casa do antigo rei, onde teve de sen- sabe que esta hostilidade está deslocada, que é representada
tar-se e deixar-se insultar novamente por curto período de e que não é realmente dirigida contra sua pessoa. No entanto
tempo. tudo isto deve permanecer em sua memória, como penoso
"Fez-se então silêncio. Os anciões ficaram de pé e pro- início do seu governo, como advertência de algo que poderia
nunciaram solenemente palavras que o povo repetiu: 'Nós te acontecer a qualquer momento. Todo rei assume aqui seu
elegemos agora como nosso rei. Prometemos que te ouviremos cargo no meio de uma revolução. É a revolução retardada
e obedeceremos'. contra um rei que já morreu; o recém-eleito, como substituto
"De novo fez-se silêncio. Trouxeram uma cartola, que dele, é o seu objeto apenas aparente.
aqui é considerado como emblema da dignidade real, e a colo- Outra situação essencial é a festa que, como antes o luto,
caram sobre a cabeça de Njogoni. Foi paramentado com uma também dura seis dias. A distribuição de alimentos e de be-
vestimenta vermelha e logo em seguida recebeu de todos, que bidas, seu consumo coletivo, desenfreado, expressam a multi-
pouco antes o tinham insultado, as maiores demonstrações de plicação que se espera do novo detentor do poder. Assim como
veneração. agora, no começo do governo, também mais tarde o reino de-
"Em seguida foi feita uma festa que durou seis dias. O verá transbordar de rum e de vinho de palmeira, e todos terão
rei, que juntamente com o cargo também adotara o nome do mais do que o necessário para comer. É para a obtenção desta
seu antecessor, tinha de receber seus súditos em sua própria multiplicação que o rei é entronizado. A massa festiva, como
casa e não devia sair dela. Foram seis dias de comilança indes- verdadeiro começo do seu governo, avaliza a multiplicação
critível, de bebedeira bestial e de barulho ensurdecedor. Uma f utura.
quantidade incalculável de forasteiros chegou das aldeias vizi- O relato de Du Chaillu foi escrito há cem anos. Possui a
nhas para testemunhar seu respeito. Todos traziam mais rum, vantagem de ser uma visão de fora para dentro e não está
vinho de palmeira e comida. Tudo o que servisse para realçar sobrecarregado de detalhes. Hoje se sabe muito mais a res-
458 459
peito dos reis africanos. É útil analisar também alguns dos que era enterrada com ele quando morria. No trata-
relatos mais recentes. mento
nto cerimonial ele era chamado, em alusão às suas forças
O rei de Yukun, na Nigéria, era um ente sagrado, cuja fertilizantes: "Nosso milho da Guiné, nosso amendoim, nosso
vida se movia dentro de limites estritamente observados. Sua feijão". A ele era atribuído poder sobre a chuva e os ventos.
tarefa mais nobre não era a de conduzir seu povo à luta como Uma sucessão de secas e de más colheitas era prova de que
guerreiro, nem a de destacar-se por sua sábia administração suas forças estavam diminuindo e então, de forma secreta e à
do seu país. Não importava que fosse uma grande personali- noite ele era estrg an ulado.
dade; ele era considerado muito mais como o continente vivo bm re i recé m eleitoprecisava dar três voltas correndo
do qual fluíam as forças que asseguram fertilidade à terra e em torno de uma colina, e durante todo este tempo os gran-
germinação às sementes, e com isto ele presenteava vida e des lhe davam golpes e empurrões. Posteriormente ele devia
bem-estar ao povo. Para a conservação destas forças serviam matar um escravo ou então apenas o feria, e outra pessoa o
as cerimônias que determinavam o transcurso dos seus dias matava usando a lança e a faca do rei.
e anos. Durante a coroação, o chefe da família real lhe dizia:
Raramente o rei aparecia em público. Seu pé descalço não "Hoje nós te demos a casa de teu pai. O mundo inteiro te
devia tocar o solo, pois a conseqüência disto teria sido o resse- pertence. Tu és o nosso milho e o nosso feijão, nossos espí-
camento dos frutos do campo; tampouco podia recolher qual- ritos e nossos deuses. De agora em diante não tens mais pai
quer coisa do solo. Em outros tempos, quando caía do cavalo nem mãe, mas tu és pai e mãe de todos. Segue os passos dos
era morto. Ninguém tinha permissão de mencionar o fato teus antepassados e não faças mal a ninguém para que teu
de ele estar doente. Quando era acometido de alguma doença povo permaneça contigo e para que alcances com saúde o
séria, ele era estrangulado em segredo. Os gemidos de um rei final do teu governo".
doente, dizia-se, se ouvidos pelo povo, teriam causado confu- Todos se prostravam diante do novo soberano, jogavam
sões. Espirrar era-lhe permitido: quando o rei de Yukun espir- poeira sobre a cabeça e exclamavam: "Nossa chuva! Nossa
rava, os homens presentes batiam nas próprias coxas entre colheita! Nossa riqueza! Nossa salvação!"
murmúrios de aprovação. Era impróprio falar do seu "corpo" O poder do rei era absoluto, mas tinham sido tomadas
ou dar a impressão de que ele possuía um ventre humano providências para que ele não se tornasse insuportável. Um
comum. Em vez disso, usava-se uma palavra especial que era conselho de nobres, presidido pelo Abo ou Ministro Principal,
dedicada apenas à sua pessoa. Esta palavra designava todas as se sentia co-responsável. Se o capricho do soberano ameaçava
suas ações, mas também as ordens que procediam de sua boca. prejudicar o país ou se ocorriam más colheitas ou quaisquer
Quando o rei devia tomar as refeições, funcionários espe- outras calamidades nacionais, era possível mostrar-lhe uma
ciais emitiam gritos prolongados; outros batiam dezenas de falha em seus inúmeros deveres mágicos e com isto abafar sua
vezes nas próprias coxas, fazendo ruídos sonoros. No palácio insolência. O Abo sempre tinha acesso ao rei; tinha permissão
como em toda a cidade começava então a reinar silêncio, as de adverti-lo e podia colocá-lo em graves problemas mediante
conversações se extinguiam, cada qual deixava seus trabalhos uma ausência prolongada da corte.
e afazeres de lado. A refeição do rei era sagrada e lhe era ser- Normalmente o rei não participava das expedições de
vida como a uma divindade em cerimonial solene. Quando guerra. Entretanto todo o botim era considerado propriedade
terminava de comer, novos gritos e golpes, repetidos pelos sua. Mas ele sempre devolvia um terço ou até a metade do
funcionários do pátio externo, anunciavam que o trabalho e a botim ao guerreiro que o tinha conseguido, como mostra de
palavra eram novamente permitidos a todos. reconhecimento e expressão de esperança de que ele se mos-
Se o rei era tomado de raiva, se apontava para alguém trasse igualmente valente no próximo combate.
com o dedo, se enfurecido batia no chão com o pé, isto era Nos tempos antigos, quando o rei mostrava ter valor,
acompanhado pelas mais espantosas conseqüências para o país. após sete anos de governo era sacrificado na festa da colheita.
Era então indispensável acalmá-lo a tempo por todos os meios Em sua História da África, a primeira tentativa séria deste
possíveis. Sua saliva era sagrada. Seus cabelos e suas unhas, gênero, Westermann fala a respeito da "surpreendente regu-
depois de cortados, eram guardados por ele mesmo numa bolsa laridade na estrutura e nas instituições destes reinos". Ele
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encontra uma determinada quantidade de características que
lhes são comuns. Vale a pena fazer uma enumeração reduzida por todos os meios. Raramente ou nunca ele se mostra, e
qua ndo o faz é sempre com algum tipo de disfarce que o oculta
ao essencial delas e tentar interpretá-las de acordo com o sen- por completo ou em boa parte. Sua preciosidade é sublinhada
tido mostrado aqui. de todas as maneiras; por um lado, pelo fato de estar vestido
"O rei possui forças que conferem fertilidade ao solo. com coisas preciosas ou de estar rodeado por elas; por outro,
Dele depende a prosperidade dos frutos da terra. Freqüente- com a raridade de suas aparições. Além disso ele é protegido
mente ele também é o fazedor da chuva." O rei aparece aqui por uma guarda pessoal cegamente fiel a ele, e também por
como o multiplicador, esta é a sua qualidade principal. Seria recintos cada vez mais vastos. A ampliação de sua corte, a
possível dizer que, na verdade, foi em função desta qualidade de recintos cada vez mais amplos servem tanto para
de multiplicar que se chegou à instituição da monarquia. çisãtoanciamento como para proteção.
Ordens de todos os tipos emanam dele; mas a forma mais pe- crida Unicidade, isolamento, distância e preciosidade constituem
°
culiar da ordem que se encontra nele é a coação ao cresci- portanto um importante grupo de características que podem
mento. "Você é pai e mãe de todos", dizem no relato a res- ser determinadas à primeira vista.
peito de Yukun. Isto não significa apenas que ele alimenta "As manifestações corporais do rei — tossir, espirrar, as-
todos, mas também que instiga todos e tudo a crescer. Seu soar o nariz — são imitadas ou aplaudidas." Se no rei de Mo-
poder neste caso é o da malta de multiplicação. O que ela nomotapa sobressaía alguma qualidade boa ou má, qualquer
deveria conseguir como um todo foi transferido exclusiva- doença física, uma tara, um vício ou uma virtude, seus com-
mente para ele em sua substância plena. Pelo seu comporta- panheiros e servidores se esforçavam por imitá-lo. Se o rei era
mento, ele pode garantir uma constância que não é possível coxo, seus companheiros mancavam. Já na Antiguidade, Es-
na malta de multiplicação; esta é formada por muitos indiví- trabão e Diodoro nos informam que, quando o rei da Etiópia
duos e acaba sempre desfazendo-se. Ele engloba, como um era mutilado em qualquer parte do seu corpo, todos os corte-
cântaro nitidamente limitado para fora, todas as forças de sãos tinham de sofrer a mesma mutilação. Um viajante árabe,
multiplicação. Seu dever sagrado é o de impedir que estas que em princípios do século passado visitou a corte de Darfur,
forças escapem. Disto se originam as características seguintes: diz a respeito das obrigações dos cortesãos: quando o sultão
"Para conservar sua força de crescimento e para preser- limpa a garganta, como se quisesse falar, todos emitem um
vá-lo de todos os danos, sua pessoa é rodeada por uma infi- som de "ts, ts". Quando ele espirra, toda a assembléia imita
nidade de prescrições e de proibições, que muitas vezes quase o grito do yeko, e é como se estivessem incentivando seu cava-
impedem que ele possa agir". A preciosidade do rei, que na lo. Quando o sultão caía do cavalo, todos os seus cortesãos
verdade é a preciosidade do seu conteúdo, acaba conduzindo tinham obrigação de cair do cavalo também. E quem não o
ao enrijecimento. Ele é um cântaro cheio até a borda e nada fazia, por mais elevada que fosse sua posição, era deitado no
pode ser derramado. solo e surrado. Na corte de Uganda, quando o rei ria, todos
"Ele não é visível ou apenas o é em determinadas épocas. riam com ele; quando espirrava, todos espirravam; quando lhe
Não pode abandonar o recinto do seu palácio, a não ser à cortavam o cabelo, todos mandavam cortar seu cabelo também.
noite ou em ocasiões especiais. Ninguém o vê comendo ou Esta imitação dos reis, aliás, não se restringe apenas à África.
bebendo." Seu isolamento o protege de tudo o que poderia Na corte de Boni, nas ilhas Celebes, era costume que os cor-
exercer uma influência nociva sobre ele. A raridade de suas tesãos fizessem tudo o que o rei fazia. Quando ele estava de
aparições significa que ele existe apenas para fins muito espe- pé, todos ficavam de pé; quando se sentava, sentavam-se to-
ciais. Comer e beber, como diminuição, não combinam bem dos; quando caía do seu cavalo, todos caíam dos seus. Quando
com ele nas suas funções de multiplicador. Ele deveria poder tinha vontade de tomar banho, todos se banhavam com ele.
subsistir por si mesmo, graças às forças que nele existem. Os transeuntes tinham de entrar na água tal qual como esta-
Decisivo no rei é o fato de ser único. O mesmo povo, vam, independentemente dos trajes que estivessem usando. A
que pode ter muitos deuses, tem apenas um rei. Como já respeito da China nos informa um missionário francês: quando
vimos, é importante que ele fique isolado. Entre ele e seus o imperador da China ri, riem também os mandarins. Assim
súditos cria-se artificialmente uma distância que é mantida que ele deixa de rir, os demais também param com o riso.
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Quando o imperador está triste, as expressões faciais deles
suicidar-se. Ele é envenenado ou estrangulado. Dá-se preferên-
são de luto e tristeza. Julgar-se-ia que os rostos dos mandarins
cia a estas formas de morte porque não é permitido derramar
estão ligados a molas e que o imperador pode acionar essas
o sangue dele. As vezes, a duração do seu governo é fixada pre-
molas e colocá-las em funcionamento quando quiser.
viamente, limitada a um determinado número de anos. O rei
A exemplaridade do rei é geral. As vezes, ela se reduz à de Yakun, como já vimos, originariamente reinava apenas sete
admiração e à veneração. Nada do que ele faz carece de signi-
anos. Segundo uma tradição dos bambaras, o próprio rei re-
ficado. Em cada uma de suas exteriorizações descobre-se um
sentido. As vezes porém vai-se mais longe, e percebe-se cada cém-eleito determinava a duração do seu governo. "Colocava-se
uma tira de algodão em torno de seu pescoço e duas pessoas
exteriorização como uma ordem. O fato de ele espirrar signi- a puxavam pelas extremidades em direções opostas, enquanto
fica: espirrem! O fato de ele cair do cavalo significa: caiam! ele retirava de uma cabaça todos os pedregulhos que conseguia
Ele está tão repleto de força de comando que nada acontece pegar; o número deles indicava o número de anos do seu
por acaso. A ordem neste caso passou de uma palavra para uma governo; após esse tempo era estrangulado."
ação de exemplo. Acrescenta-se a isto que toda a sua existên- Mas pela limitação artificial de sua vida não é apenas a
cia aponta para a multiplicação, para o acréscimo; como já salvação de sua preciosa substância de multiplicação que se
dissemos, esta é a sua raison d'être. Assim também todo mo- consegue. Sua paixão de sobreviver, que poderia adquirir pro-
vimento e toda manifestação dele têm uma tendência para des- porções perigosas durante seu governo, é domada e amortecida
pertar uma multiplicidade análoga. Seria possível dizer que desde o início. Ele sabe quando vai morrer: antes de muitos
nestas oportunidades sua corte se converte numa espécie de dos seus súditos. Ele tem sempre diante dos olhos a data de
malta de multiplicação, não pelo que diz respeito a seu senti- sua morte; justamente por este motivo, ele está em considerá-
mento interno, mas pelo que se refere a seu comportamento vel inferioridade em relação àqueles que são dominados por
externo. Todos fazem a mesma coisa, mas o rei a faz primeiro. ele. Assumindo o governo, ele renuncia à sua própria sobre-
A corte, convertida num cristal de massa, retorna assim à sua vivência. É uma espécie de pacto que ele celebra com seus
origem, ou seja, à malta de multiplicação. súditos. O cargo que consegue é na verdade uma carga. Ele se
Também a aclamação e o aplauso podem ser considerados declara disposto a oferecer sua vida em sacrifício, depois de
como expressão de uma vontade de multiplicação. Determi- decorrido um certo prazo.
nados gestos ou expressões, considerados exemplares, são for- Os insultos e os golpes aos quais se submete antes de
talecidos com aplausos e provoca-se a sua repetição. Pouquís- assumir o governo são um aviso prévio do que o aguarda no
simos são capazes de se subtrair à obrigação que emana de mil final. Da mesma maneira que agora aceita tudo, aceitará tam-
mãos que aplaudem: a produção do aplaudido tem de se mul- bém mais tarde o seu destino. O fim do rei é antecipado. Pouco
tiplicar. importa que este fim seja considerado como ameaça ou como
"Se o rei começa a envelhecer, sua força mágica está já solenemente estabelecido: a massa de perseguição que se
ameaçada. Pode diminuir ou enfraquecer, pode transformar-se forma antes mesmo do início de seu governo faz com que ele
no seu contrário devido à ação de potências malignas. Por isso veja com dolorosa clareza que não governa por si próprio.
tira-se a vida do rei que envelhece para transferir sua força Conta-se a respeito do rei dos iorubas que, antes de mais
mágica ao sucessor." A pessoa do rei somente tem importân- nada, ele era submetido a uma surra. Se não suportava a dor
cia enquanto estiver intacta. Como cântaro intacto é capaz de com indiferença, era rechaçado. É possível que a eleição caísse
conter as forças de multiplicação. O menor defeito faz com que então sobre um dos outros príncipes mais pobres, tranqüila-
ele se torne suspeito para os seus súditos: ele poderia perder mente dedicado às suas ocupações e sem a menor aspiração ao
algo da substância que lhe é confiada e colocar em perigo o trono; este príncipe era então obrigado a comparecer e era
bem-estar do seu povo. A constituição destes reinos é a cons- maltratado, para sua grande surpresa. Em Serra Leoa, antiga-
tituição física do próprio rei. Ela é, por assim dizer, dependen- mente, um homem antes de sua proclamação era acorrentado
te do seu vigor e de sua saúde. Um rei que mostra cabelos e surrado com bastões. Isto lembra o relato de Du Chaillu a
grisalhos, cuja força visual diminui, que perde os dentes, um respeito da eleição do rei do Gabão.
rei impotente é assassinado; ou então tem a obrigação de Entre a morte de um rei e a entronização de outro vivia-
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se num estado de anarquia. Esta se manifestava com certo 1cipe com menos partidários era morto ou obrigado a fugir
significado nos maus tratos dirigidos contra a pessoa escolhida -,ara outro país. Todos os ardis de guerra eram permitidos; um
para ser rei. Mas também podia voltar-se contra os fracos e limão procurava espionar para descobrir onde se encontrava
indefesos. Entre os mosis de Wagadugu, depois da morte do o outro, e aproximar-se secretamente à noite para atacá-lo de
rei, todos os delinqüentes saíam dos cárceres. O assassinato e surpresa. Apunhalava-o enquanto dormia, ou colocava veneno
a pilhagem eram atos permitidos e todos faziam o que queriam, em sua comida. Apelava para procedimentos de magia ou uti-
Em Ashanti eram os membros da família real que se aprovei- lizava forças externas. Cada filho era apoiado por sua mãe e
tavam deste período de anarquia; podiam roubar e matar qual- por sua irmã, que se utilizavam de feitiços contra os inimigos
quer cidadão. Em Uganda procurava-se manter em segredo a dele e procuravam protegê-lo dos espíritos dos assassinados.
morte do rei; depois, talvez após uns dois dias, apagava-se o O filho predileto, sobre o qual tinha recaído a eleição do anti-
fogo sagrado que ardia na entrada do recinto real e iniciava-se go rei, mantinha-se oculto durante o combate.
uma grande lamentação. Os tambores tocavam o ritmo da A guerra da sucessão podia durar meses; neste período o
morte e o país inteiro era assim informado do que tinha país vivia num estado de caos. Todos procuravam proteção
ocorrido; mas ninguém podia comentar a morte; dizia-se ape- junto a seus parentes. Muitas cabeças de gado eram roubadas;
nas que o fogo estava apagado. Ocorria então um estado de qualquer pessoa que tivesse algum ressentimento contra outra
desordem selvagem. As pessoas podiam roubar-se umas às ou- aproveitava-se da confusão para vingar-se dela. Somente os
tras; somente os chefes que dispunham de fortes escoltas sen-
grandes chefes de Ankolé, que vigiavam as fronteiras do país,
tiam-se seguros. Os chefes menores corriam o perigo de serem não participavam desta guerra, pois sua função era a de impe-
mortos pelos chefes mais fortes, que durante este breve período
dir a invasão dos estrangeiros.
intermediário faziam o que bem entendiam. Claro que, nestas
Um príncipe apôs outro era morto ou forçado ao exílio,
circunstâncias, os fracos e os indefesos levavam a pior. Com
o novo rei voltava a ordem. Ela era na verdade representada até que restasse apenas um entre os combatentes. Somente en-
pela sua pessoa. tão é que o filho predileto do antigo rei saía do seu esconderijo
A sucessão não estava sempre regulamentada com clareza. e se media com o vencedor entre os irmãos. A verdadeira meta
Mas mesmo quando estava as pessoas somente se atinham a da luta era a posse dos tambores reais. O filho predileto nem
esse regulamento quando obrigadas. Nos estados himas esta- sempre vencia, mas geralmente tinha do seu lado os feiticeiros
beleceu-se uma concepção singular da sucessão. Ela foi inter- mais poderosos, além de um grande número de partidários.
pretada com justeza por Oberg no seu excelente estudo a res- Quando todos os seus irmãos estavam mortos, o sobrevivente
peito do reino Ankolé. retornava à corte, levando consigo os tambores reais, além de
Também aqui o rei era obrigado a tomar veneno assim sua mãe e de sua irmã. O rei de farsa era morto e o vencedor
que suas mulheres e os chefes percebiam nele sinais de debi- era proclamado rei.
lidade. A sua força dava-se a maior importância. A força tam- Desta forma, todos os rivais eram exterminados. O so-
bém era decisiva para a eleição do sucessor. Aos governantes brevivente, como vencedor, era considerado o mais forte, e
-himas era importante que o mais forte dos muitos filhos do todos se inclinavam diante dele. É de supor que também os
rei assumisse a sucessão. Uma decisão a este respeito somente demais estados himas, onde as guerras de sucessão eram a
podia ser tomada em combate. Durante a guerra de sucessão, regra, adotavam o mesmo princípio. Queria-se ter como rei o
que se tornava inevitável, Ankolé não podia permanecer ofi- sobrevivente. O fato de ter morto tantos inimigos lhe conferia
cialmente sem rei. Depois das cerimônias fúnebres pelo sobe- o poder que se esperava dele.
rano morto, realizava-se um combate entre pastores comuns no Mas a guerra pela sucessão não era o único meio para dar
seu kraal; o vencedor era proclamado como uma espécie de forças ao rei. O novo governante era fortalecido também de
rei de farsa. Os irmãos reais legítimos assistiam ao combate, outra maneira para a sobrevivência. No reino Kitara, que fazia
mas depois de este ter sido decidido, cada qual reunia seus par- fronteira ao norte com Ankolé, a luta pela sucessão, depois de
tidários em torno de si e partia à procura dos tambores reais. já decidida, era resumida por um rito assombroso durante a
Quando se encontravam no caminho, acontecia o combate. Um coroação do novo rei. Este rito foi presenciado pela última
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vez em 1871, no início do governo do rei Kabarega; existe No início de cada ano o rei repetia este ato simbólico de "fie-
um relato a este respeito. chrear as nações".
Entre os príncipes havia sempre muitos rapazes, que por () mais forte dos reinos vizinhos, com o qual Kitara sem-
serem demasiadamente jovens não tinham participado da luta. estava em guerra, era Uganda. Aqui, quando o rei subia
Eles continuavam vivos enquanto seus irmãos adultos se ex- ao trono, dizia-se que tinha "comido Uganda" ou "comido os
terminavam uns aos outros, excetuando-se apenas o vencedor.
tambores". A posse dos tambores era sinal do cargo e de auto-
O chefe supremo, que desempenhava uma função semelhante ridade. Havia os tambores reais e os tambores dos chefes. Cada
à de um regente, tentou convencer um destes irmãos mais cargo era reconhecido pelo ritmo dos seus tambores. Durante
jovens de que ele era o rei eleito; todos os chefes presentes as cerimônias de inauguração o rei dizia: "Eu sou o rei de
confirmaram isso. Mas o rapaz sabia o que estava sendo pla- Uganda. Viverei mais do que os meus ancestrais para governar
nejado e disse: "Não me enganem, eu não sou rei, vocês apenas as nações e para derrubar as revoltas".
querem me matar". Mas ele foi obrigado a se submeter e foi O primeiro dever do novo rei era o luto pelo rei morto.
sentado no trono Os chefes compareceram, ofereceram-lhe No final do período de luto, o rei mandava tocar os tambores.
presentes e lhe renderam todas as homenagens. Com eles veio No dia seguinte realizava-se uma caçada. Trazia-se uma gazela
Kabarega, o vencedor, de cuja coroação se tratava realmente, que era colocada em liberdade: o rei tinha obrigação de caçá-la.
vestido como um simples príncipe; trazia uma vaca como pre- Depois prendiam-se dois homens na rua, transeuntes casuais;
sente. O regente lhe perguntou: "Onde está minha vaca?" um era estrangulado e ao outro concedia-se a vida. Nesta mesma
Kabarega respondeu: "Eu a trouxe para a pessoa que a mere- noite, o rei subia à velha cadeira do trono. Diante de um im-
ce, para o rei". O regente considerou esta resposta como uma portante dignitário ele prestava o seu juramento. Dois homens
afronta e bateu no braço de Kabarega com um cordão. Kaba- fortes o carregavam sobre os ombros pelo acampamento para
rega saiu furioso e foi buscar os seus guerreiros. O regente viu que o povo pudesse venerá-lo.
que eles se aproximavam e disse ao rapaz sentado no trono: Depois levava-se à presença do rei dois homens de olhos
"Kabarega vem para lutar!" O rapaz quis escapar, mas o re- vendados. Um era ligeiramente ferido com uma flecha e en-
gente o agarrou, levou-o à parte posterior da sala do trono e viado como uma espécie de bode expiatório para o país inimi-
o estrangulou. Ele foi enterrado no próprio edifício do palácio. go, Kitara. O segundo homem era libertado e nomeado capataz
A briga entre o regente e o novo soberano era fingida. da corte interna do rei e guardião de suas mulheres. Este novo
O destino do rapaz-rei já estava prefixado. Um deles sempre capataz era conduzido, juntamente com oito prisioneiros, a um
era eleito e morto durante as cerimônias, segundo se dizia, lugar de sacrifício. Lá vendavam-lhe os olhos e sete dos prisio-
"para enganar a morte". A guerra estava decidida, os rivais neiros eram mortos a pauladas em sua presença; ele tinha per-
todos mortos; mas durante a coroação o rei devia sobreviver missão para ver a morte do oitavo prisioneiro. Dizia-se que
ainda a um rapaz, que era seu irmão, e a vítima era enterrada estas mortes infundiam forças ao rei. Ao capataz elas davam
nos recintos internos, onde ficavam o trono e os novos tam- vigor e fidelidade.
bores reais. Depois que o rei já governava dois ou três anos, dois
No reino de Kitara, o arco real tinha um significado sim- homens lhe eram novamente apresentados. Um era ferido e
bólico; ele deveria receber novas cordas durante a coroação. o outro recebia sua vida de presente. O ferido era morto fora
Elegia-se um homem, para o qual era uma honra poder doar do recinto, junto à entrada principal. O outro era nomeado
os tendões do seu próprio corpo. Ele mesmo dirigia a opera- ajudante do capataz. Sua primeira tarefa depois da nomeação
ção, durante a qual lhe extraíam os tendões do lado direito; era recolher o cadáver do morto e lançá-lo no rio mais próximo.
logo em seguida ele morria em conseqüência das feridas. O Também este homem era assassinado para fortalecer o rei.
arco e quatro flechas eram entregues ao rei. Ele disparava uma Matava-se para mostrar que ele tinha assumido seu governo,
de cada vez contra os quatro pontos cardeais e dizia: "Disparo e matava-se para que ele sobrevivesse para sempre. Do próprio
contra as nações para dominá-las". Com cada flecha mencionava sobreviver ele extraía poder. Um costume que chama a atenção
os nomes das nações que ficavam naquela direção. Depois, pro- e que talvez tenha sido exclusivo de Uganda era a apresenta-
curavam-se as flechas que eram trazidas de volta e guardadas. ção das vítimas em pares. Um morre e ao outro concede-se
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a graça do perdão. O rei exerce simultaneamente o duplo [1.„ a comida. Durante a refeição ela tinha de virar o rosto
direito que lhe corresponde. Extrai força de um; mas o fato para o outro lado. "O leão come sozinho", dizia o povo. Quando
de conceder o perdão ao outro o favorece igualmente. Pois não gostava da comida, ou quando ela não lhe era trazida com
este é testemunha do destino que se abateu sobre o outro; ele suficiente presteza, mandava chamar o culpado e o atravessava
mesmo se fortalece pela sobrevivência, e por ter sido eleito com uma lança. Se uma servente tossia durante a refeição, era
para o perdão converte-se num servidor ainda mais fiel do rei. castigada com a morte. Ele tinha sempre duas lanças ao al-
Causa surpresa o fato de que depois de tantas cerimônias cance da mão. Se por acaso alguém entrasse e o surpreendesse
o rei de Uganda ainda pudesse morrer. Também em outras durante a refeição, era morto no ato. Então o povo dizia:
oportunidades eram sacrificadas vidas para ele. A idéia de que "O leão, enquanto comia, matou este ou aquele". As sobras
ele ganhava poder graças à simples sobrevivência levou à ins- de suas refeições não podiam ser trocadas por pessoa alguma;
tituição permanente de sacrifícios humanos. Mas tratava-se de elas eram dadas a seus cães prediletos.
uma instituição religiosa, vigente independentemente dos ape- O rei de Kitara era alimentado por seu cozinheiro. Este
tites particulares deste ou daquele rei. A isto acrescentavam-se trazia a refeição, espetava o garfo na carne, cortava um pedaço
seus próprios caprichos, e era uma característica deles que estes e o colocava na boca do rei. Ele repetia este gesto quatro
caprichos fossem perigosos. vezes, e se por acaso tocasse nos dentes do rei com o garfo,
Um dos atributos principais do rei africano era o seu era castigado com a morte.
poder absoluto sobre a vida e a morte. Tremendo era o terror Todas as manhãs, depois de ordenhar as vacas, o rei de
que emanava dele. "Agora você é Ata, você tem o poder sobre Kitara ocupava o trono e ditava a justiça. Ele exigia silêncio e
a vida e a morte. Mate todo aquele que disser que não tem se irritava quando alguém falava. Junto dele ficava um pajem
medo de você" — é o que diz a fórmula de entronização do que carregava uma pele de leão sobre o ombro direito; a cabeça
rei de Igara. Ele matava quem quisesse e sem dar motivos ou do leão ficava pendida e ocultava a espada de fio duplo, em-
explicações para isso. Bastava seu humor; ele não precisava bainhada na pele. Quando o rei queria sua espada, estendia a
prestar contas a ninguém. Em muitos casos, ele próprio não mão e o pajem a entregava a ele. Então o rei se servia dela
devia derramar sangue. Mas o carrasco, que o fazia em seu para abater o culpado ali mesmo no seu pátio. Aliás, ele
lugar, assumia o cargo mais imprescindível da corte. Pouco também fazia justiça sumária fora dos recintos do seu palácio.
importava que o homem que exercera o cargo de carrasco Ele costumava passear acompanhado pelo pajem da espada,
chegasse a ser o primeiro-ministro do país, como no Daomé; e quando alguma coisa não lhe agradava estendia a mão, e
ou que o rei empregasse centenas de carrascos como uma alguém podia se dar por perdido.
espécie de casta, como em Ashanti; ou que as execuções se Todas as suas ordens deviam ser obedecidas sem objeção.
reduzissem aos casos convenientes — sempre a imposição da Não observá-las era um crime castigado com a morte. A ordem
pena de morte era um direito indiscutido do rei. E quando aparece aqui na sua forma mais pura e mais antiga, como sen-
ele o exercia poucas vezes ou talvez nunca, aproximava-se a tença de morte do leão contra todo animal mais fraco que
hora da diminuição do seu poder; ele deixava de ser temido e se encontra constantemente sob sua ameaça. Se era inimigo,
começava a ser desprezado. devia estar sempre em fuga diante dele. Se era súdito, tinha
O rei era visto como um leão ou um leopardo, quer por- obrigação de servi-lo. Ele enviava as pessoas para onde qui-
que estes animais eram considerados como seus ancestrais, quer sesse; enquanto elas obedecessem, ele lhes concedia a vida. Mas
porque ele participava de suas características sem descender na realidade permanecia sempre como o leão, e quando tinha
diretamente deles. Sua natureza de leão ou de leopardo signi- motivo ou vontade atacava-as de forma implacável.
ficava que ele tinha de matar como matam estes animais. Era
correto e natural que ele matasse. Sua vontade de matar devia
ser inata. O terror que emanava destes animais ele devia in- O sultão de Delhi: Muhammad Tughlak
fundir nas pessoas, exatamente como eles.
O rei de Uganda comia sozinho; ninguém podia vê-lo en- Por uma circunstância feliz chegou até nós um retrato nítido
quanto estava comendo. Uma de suas mulheres devia oferecer- deste sultão de Delhi, muito mais exato do que aqueles que
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normalmente possuímos dos potentados orientais. Um célebre de ação . Era um homem piedoso: respeitava estritamente os
viajante árabe, Ibn Batuta, que visitou todo o mundo islâmico preceitos de sua religião e não bebía vinho. Para os cortesãos
de sua época, do Marrocos à China, passou sete anos na corte ra recomendável respeitar os períodos de oração; quem não
e a serviço desse sultão. Dele, de seu caráter, de sua corte e
de suas medidas de governo, Ibn Batuta, que desfrutou du-
:
a
fazia era severamente castigado. Ele se importava muito com
justiça; tomava a sério não apenas as prescrições rituais, mas
as prescrições morais do Islamismo, e esperava esta
rante longo tempo de seus favores, deixou-nos uma descrição
realista e cheia de vida. Depois, tendo caído em desgraça, viveu mesma aatitude
atitudede todos os demais. Na guerra destacava-se pela
em estado de permanente terror. Primeiro, como era costume, coragem e iniciativa; comentavam-se suas façanhas bélicas du-
ganhou seus favores pela adulação; por fim procurou salvar-se rante o governo de seu pai e dos antecessores deste. É impor-
levando uma vida de asceta. tante mencionar esta versatilidade de sua natureza, porque
"De todos os homens este rei é quem com mais gosto todas as características e todos os atos pelos quais ele se tornou
faz presentes e derrama sangue." Depois de suas experiências temível e incompreensível para seus contemporâneos se encon-
nesta corte, Ibn Batuta tinha como poucos uma idéia clara travam em violento contraste com essas brilhantes qualidades
da face dupla do poder; tanto da face pródiga como da assas- que tanto admiravam nele e que ele sempre conservou.
sina. Da precisão psicológica de sua narrativa existe uma prova Como era a corte deste monarca justo e extremamente
irrefutável; há um segundo relato, feito independentemente, culto? Para chegar-se ao interior do palácio era preciso atra-
com o qual o seu pode ser comparado. Um alto funcionário vessar três portas. Diante da primeira uma tropa montava
que viveu durante mais de dezessete anos na corte de Muham- guarda com tocadores de trombetas e de flautas. Quando che-
mad, Ziva-d din Barani, escreveu, não muito tempo após a gava algum emir ou outra personalidade importante, eles toca-
morte do monarca, uma história de sua época em idioma persa vam seus instrumentos anunciando: "Chegou fulano, chegou
que pertence às melhores obras do gênero. Entre muitas ou- fulano". Diante da primeira porta havia plataformas sobre as
tras, são relatadas três conversações que o futuro historiador quais esperavam sentados os verdugos. Quando o sultão orde-
manteve com o próprio sultão e que são muito significativas nava a execução de um homem, a sentença era cumprida diante
em relação ao conceito que este tinha dos seus súditos e da da porta do palácio. Os cadáveres ficavam ali jogados durante
arte de governar. A descrição que apresentamos em seguida se três dias. Quem se aproximava do palácio encontrava sempre
apóia nestas fontes, que são citadas textualmente com fre- cadáveres, montes e mais montes deles atirados por ali. Os
qüência. limpadores de ruas e os carrascos, que tinham de transportar
Muhammad Tughlak se encontrava no ápice da cultura de os corpos e executar as vítimas, estavam sempre extenuados
sua época. Suas cartas persas e árabes eram consideradas mode- por causa do seu trabalho pesado e incessante. Entre a segunda
los de elegância e foram admiradas durante muito tempo, ainda e a terceira porta havia uma sala de recepção para o público
depois de sua morte. Tanto sua caligrafia como seu estilo em em geral. Diante do terceiro portal ficavam sentados os "es-
nada perdiam para os mais célebres mestres destas artes. Tinha cribas da porta"; sem autorização especial do sultão ninguém
imaginação e sabia manejar as parábolas; conhecia profunda- podia passar por ali. Quando alguém aparecia nesta porta, o
mente a poesia persa; tinha uma memória excepcional e sabia escriba anotava: "Fulano chegou na primeira hora" ou "na
de cor muitas poesias que citava com freqüência e bom gosto. segunda hora". Depois da oração da tarde, o sultão era infor-
Também estava muito familiarizado com o restante da lite- mado a este respeito. Quem durante três ou mais dias, com
ratura persa. A matemática e a física, a lógica e a filosofia dos ou sem justificativa, tinha permanecido ausente do palácio,
gregos o absorviam com o mesmo entusiasmo. "Os dogmas dos não podia mais entrar sem permissão renovada do sultão. Caso
filósofos, a indiferença e a dureza do coração tinham uma tivesse estado doente ou se tivesse alguma outra justificativa,
poderosa influência sobre ela". Mas também possuía a sede de trazia ao sultão um presente adequado à sua própria posição.
saber do médico; ele mesmo cuidava dos enfermos quando Depois desta porta ficava a sala de audiência do sultão, a "Sala
um sintoma pouco comum de doença lhe interessava. Nenhum das Mil Colunas", um espaço gigantesco com um teto de
erudito, nenhum calígrafo, nenhum poeta, nenhum médico era madeira maravilhosamente entalhado e pintado.
capaz de lhe fazer frente numa discussão em sua própria esfera As audiências normalmente eram feitas à tarde; às vezes
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também pela manhã. O sultão ficava sentado com as pernas sultão. Os muros das ruas pelas quais passa, da porta da
cruzadas no seu trono debaixo de um baldaquim forrado de .e até a porta do palácio, estão cobertos de seda. Diante
branco, com uma grande almofada nas costas e duas outras de ..gide caminham os lacaios e alguns milhares dos seus escravos;
apoio para os braços. Diante dele ficava de pé o vizir; atrás Ás vêm o populacho e os soldados. Numa de suas entradas
os secretários, depois os intendentes, e assim sucessivamente :cidade, eu vi, sobre elefantes, três ou quatro pequenas cata-
segundo a hierarquia da corte. "Enquanto o sultão se sentava, que lançavam moedas de ouro e de prata sobre o povo,
secretários e intendentes gritavam da maneira mais alta possível: d esdes instante em que ele entrou na cidade até chegar ao
o
`13ismillah!' (Em nome de Deus!)" Cem portadores de armas palácio."
estão parados à direita, cem à esquerda, com escudos, espadas Muhammad era particularmente generoso com os estran-
e arcos. Os demais funcionários e dignitários se colocam de geiros. Seu serviço secreto o informava sobre cada um que che-
ambos os lados da sala. Depois são introduzidos sessenta cava- gava às cidades fronteiriças do seu império. Seu serviço de
los com os arreios reais; eles são colocados à direita e à es- correios estava organizado de maneira exemplar; um trajeto
querda de tal forma que o sultão os possa ver. A seguir entram que os viajantes levavam cinqüenta dias para percorrer era
cinqüenta elefantes adornados com mantas de seda; suas pre- coberto pelos seus corredores, que se revezavam a cada terço
sas são recobertas de ferro, o que as torna muito eficientes de milha, em apenas cinco dias. Não eram apenas suas cartas
para matar delinqüentes. Na nuca de cada elefante está sentado que costumavam ser transportadas desta maneira, mas também
seu condutor, que leva nas mãos uma espécie de lança de ferro, frutas de Khurasan, que chegavam frescas à sua mesa. Os cri-
com a qual fustiga e dirige o animal. Sobre as costas, cada minosos, amarrados sobre macas, eram colocados sobre as cabe-
elefante transporta uma espécie de caixa que, segundo o tama- ças dos corredores e chegavam até ele tão rapidamente como as
nho do animal, tem capacidade para mais de vinte soldados. cartas e as frutas. Os informes a respeito dos estrangeiros na
Estes elefantes foram amestrados para render homenagem ao fronteira eram muito exatos: aspecto e trajes, número de acom-
sultão e se inclinam diante dele. Cada vez que eles se inclinam, panhantes, de escravos, de servidores e de animais, tipo de
os intendentes gritam bem alto: "Em nome de Deus!" Tam- transporte, comportamento — tudo era registrado cuidadosa-
bém eles são colocados metade à direita e metade à esquerda, mente e com todos os detalhes. O sultão estudava atentamente
por trás das pessoas que estão de pé. Cada pessoa que entra estas informações. O forasteiro porém tinha de esperar na ca-
tem o seu lugar determinado e faz sua reverência assim que pital da província fronteiriça até que chegassem instruções do
chega ao lugar onde estão os intendentes. Estes repetem: "Em sultão: se podia prosseguir sua viagem e com que honras devia
nome de Deus", e regulam o volume de suas vozes de acordo ser recebido. Cada qual era julgado exclusivamente segundo
com o cargo da pessoa que ocupa seu lugar, de onde não se sua própria conduta, porque a respeito de sua origem ou de
move mais. Quando quem vem render homenagem é um hindu sua família dificilmente seria possível saber-se alguma coisa
não-crente, os intendentes dizem: "Deus te conduza!" na Índia distante. Muhammad interessava-se particularmente
Também a entrada do sultão em sua capital foi descrita pelos estrangeiros; ele os nomeava governadores e dignitários.
de forma muito clara pelo viajante árabe: A grande maioria dos seus cortesãos, funcionários, ministros
"Quando o sultão regressa de uma viagem, os elefantes e juízes eram estrangeiros. Por decreto, ele concedeu a todos
são enfeitados; sobre dezesseis deles são montados guarda-sóis, o título de "honorável". Ele lhes fazia pagar grandes somas
alguns de brocado, outros enfeitados com pedrarias. Constroem- para sua manutenção, mas também os obsequiava de muitas
se pavilhões de madeira de vários andares de altura e reco- formas. Através deles a fama de sua generosidade se espalhou
bertos de seda; em cada andar são colocadas cantoras e dança- pelo mundo inteiro.
rinas maravilhosamente vestidas e enfeitadas. No centro de Todavia mais ainda do que de sua generosidade falava-se
cada pavilhão existe um grande recipiente de pele, repleto de de sua severidade. Ele castigava os crimes grandes e pequenos
água misturada com um xarope doce. Todos, tanto os foras- sem levar em consideração a pessoa do acusado, pouco impor-
teiros como os nativos, podem beber dessa água, recebendo tando que fosse ou não um homem erudito, piedoso ou de
ao mesmo tempo folhas de bétel e nozes de areca. O solo entre cargo elevado. Diariamente centenas de pessoas acorrentadas
os pavilhões é recoberto de seda, sobre a qual pisam os cava- pelas mãos e pés eram levadas diante dele. Uns eram executa-
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dos, outros torturados, outros açoitados. Por uma disposição é Porém conseqüência de um governo prolongado. Desde o
especial do sultão, todos os dias — excetuando as sextas-fei- pri•ncipio existia entre ele e seus súditos uma tensão que, isto
ras — eram conduzidos diante dele todos os ocupantes de suas irri cresceu no decorrer dos anos. A ordem de abandonar
prisões. A sexta-feira era um dia de folga para eles; um dia no Delhi aconteceu logo no segundo ano do seu governo. Quanto
qual cuidavam do seu asseio e repousavam. .0 conteúdo das cartas que eram lançadas na sala de audiências,
Uma das acusações mais graves contra o sultão foi a de Somente se podem fazer suposições. Mas é provável que elas
ter obrigado os habitantes de Delhi a abandonar a cidade. Ele se referissem à maneira como ele subiu ao governo. O pai de
tinha, segundo acreditava, motivos para castigá-los. Eles tinham Muhammad, Tughlak Sha, perecera após um governo de ape-
o costume de escrever-lhe cartas, nas quais o insultavam e ofen- nas quatro anos, vítima de um acidente infeliz. Somente alguns
diam. As cartas eram lacradas e endereçadas "Ao senhor do iniciados sabiam o que realmente acontecera. O velho sultão,
mundo, para ser lido apenas por ele pessoalmente", e as joga- que regressava de uma expedição, pediu ao filho que cons-
vam à noite na sala de audiências. Quando o sultão quebrava truísse um pavilhão para recepcioná-lo. Três dias mais tarde
o lacre nada encontrava além de injúrias e ofensas. Ele decidiu o pavilhão já estava erguido; era de madeira como de costume,
reduzir Delhi a ruínas e, depois de ter comprado de todos os mas armado de tal forma que um só golpe num determinado
habitantes suas casas e residências, ordenou que eles se trans- lugar faria com que desmoronasse. Quando o sultão se dirigiu
ferissem para Daulatabad, onde queria estabelecer sua capital. para lá na companhia de seu filho mais moço, Muhammad
Os moradores se recusaram a obedecer; ele então mandou pro- pediu permissão para que fosse realizado um desfile de ele-
clamar por seu arauto que, transcorridos três dias, não deveria fantes. Foi atendido. Os elefantes foram conduzidos de tal
restar pessoa alguma na cidade. A grande maioria obedeceu maneira que ao passar se chocaram contra o ponto fraco da
às ordens, mas alguns preferiram esconder-se em suas casas. construção; esta desmoronou e sepultou o sultão juntamente
O sultão mandou então que revistassem a cidade à procura dos com seu filho predileto. Os trabalhos de salvamento foram re-
que tinham se escondido. Seus escravos encontraram dois ho- tardados por Muhammad de forma que nada adiantaram. O
mens na rua, um aleijado e um cego, que foram conduzidos sultão e seu filho finalmente foram encontrados sem vida.
até ele. O sultão ordenou que o aleijado fosse expulso da Alguns afirmavam que o sultão, que tinha se inclinado sobre
cidade, lançado por uma catapulta, e que o cego fosse arras- seu filho, ainda respirava e que, por assim dizer, foi assassi-
tado de Delhi para Daulatabad. Era uma viagem de quarenta nado uma segunda vez. Muhammad pôde então subir ao trono
dias, e durante o caminho ele foi se desfazendo em pedaços; sem oposição alguma, mas também sem poder algum sobre as
a única coisa que chegou a Daulatabad foi uma perna. Depois más línguas; desde o princípio suspeitava-se que ele assassi-
disso todos abandonaram a cidade, deixando para trás móveis nara seu próprio pai.
e propriedades; a cidade ficou totalmente abandonada. A des- O sultanato de Delhi alcançou sob o governo de Muham-
truição foi tão completa que não restou nem um gato, nem mad Tughlak sua extensão máxima. Passaram-se mais de du-
um cão nos edifícios da cidade, nos palácios ou nos arrabaldes. zentos anos antes que, sob Akbar, voltassem a ficar reunidas
"Uma pessoa na qual tenho confiança me contou que o sultão regiões tão vastas da índia sob um único cetro. Mas Muham-
subiu certa noite ao terraço de seu palácio e olhou para Delhi, mad não estava satisfeito com as duas dúzias de províncias
onde não se via nem fogo, nem fumaça, nem luz alguma, e que lhe cabiam. Ele queria submeter ao seu domínio a totali-
disse: 'Agora meu coração está sereno e minha cólera foi apla- dade do mundo habitável e para isto fazia planos grandiosos.
cada'. Depois escreveu aos habitantes de outras cidades e lhes Nenhum dos seus conselheiros ou de seus amigos era colocado
ordenou que se transferissem para Delhi, para repovoá-la. O a par desses projetos que ele guardava para si, da mesma forma
resultado foi apenas a ruína das outras cidades. Delhi entre- que os concebia sozinho. Qualquer coisa que lhe ocorresse lhe
tanto permaneceu vazia devido à sua incalculável extensão, parecia boa. Não tinha dúvida alguma, sua meta lhe parecia
pois é uma das maiores cidades do mundo. Neste estado en- evidente, os meios que ele utilizava para alcançá-la eram os
contramos a cidade por ocasião de nossa chegada: vazia e, ex- únicos corretos.
cetuando-se alguns poucos habitantes, despovoada". Dentre seus planos de conquista, os mais ambiciosos eram
Esta amargura do sultão em relação aos seus súditos não um ataque a Khurasan e ao Iraque, e outro à China. Para o
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primeiro reuniu um exército formado por trezentos e setenta ,ocamente o tinham jogado e, levando-o à câmara do tesouro,
mil cavaleiros. Subornou com somas gigantescas os dignitários vain-no por ouro e prata. Montanhas de moedas de cobre
das cidades ameaçadas. Mas o ataque não chegou a ser reali- trocaumularam em Tughlakabad. O tesouro perdeu somas enor-
zado ou malogrou ainda no estágio dos planos; o exército de- se ac
mes , A falta de dinheiro passou a ser aguda. Quando o sultão
bandou. Somas que até para as possibilidades de Muhammad conseguiu avaliar o que tinham custado as moedas de cobre
tinham de ser consideradas monstruosas foram desperdiçadas ao seu tesouro, voltou-se ainda mais contra os seus súditos.
em vão. O outro projeto, a conquista da China, deveria ser Outra maneira de conseguir dinheiro era pelos impostos,
realizado mediante uma marcha além do Himalaia. Enviaram- que já eram bastante elevados sob o governo dos seus anteces-
se cem mil cavaleiros para as montanhas mais elevadas, com
sores. Eles foram aumentados ainda mais e a arrecadação era
a finalidade de dominar toda a cordilheira com sua população feita com crueldade desumana; os camponeses se transformaram
selvagem e garantir a posse das passagens para a China. Este em mendigos. Todo hindu que possuía alguma coisa aban-
exército sucumbiu, com exceção de dez homens que consegui- donava sua terra e se reunia na selva aos rebeldes, que existiam
ram retornar a Delhi, e que o sultão, decepcionado mandou em grupos de todos os tamanhos por toda parte. A terra não
executar. era cultivada; produziam-se cada vez menos cereais. Chegou-se
A conquista do mundo exigia exércitos colossais e estes, a um estado de fome total nas principais províncias do impé-
por sua vez, exigiam mais e mais dinheiro. É bem verdade rio. Quando as chuvas vieram a faltar, a fome tornou-se geral.
que Muhammad contava com rendimentos enormes. Os tribu- Esta situação perdurou vários anos; as famílias se desmem-
tos dos reis hindus submetidos afluíam de todos os lados. Do braram, cidades inteiras não tinbam o que comer e milhares
seu pai ele tinha herdado, entre outras coisas, um depósito de seres humanos pereceram.
cheio de uma sólida massa de ouro fundido. Mesmo assim não Parece ter sido esta fome que provocou a mudança do
demorou que ele entrasse em dificuldades financeiras, para as destino do império. As revoltas se multiplicavam. Uma pro-
quais, como era seu costume, procurou uma solução grandiosa. víncia depois da outra foi se emancipando de Delhi. Muham-
Ele tinha ouvido falar a respeito do papel-moeda dos chineses mad estava constantemente viajando para acabar com as re-
e decidiu fazer algo semelhante com o cobre. Mandou cunhar voltas. Sua crueldade crescia. Ele devastava territórios inteiros.
grandes quantidades de moedas de cobre, e arbitrariamente Mandou que cercassem a selva para onde tinham fugido os re-
fixou seu valor como equivalente ao da prata. Ordenou que beldes e matassem todos quantos pudessem, homens, mulhe-
estas moedas fossem utilizadas no lugar das de ouro e prata: res e crianças. O terror que difundia era tão grande que bastava
tudo agora era comprado e vendido com moedas de cobre. A ele aparecer para que as pessoas se submetessem, a não ser
conseqüência deste decreto foi que a casa de cada hindu se que conseguissem fugir. Mas, quando ele conseguia impor a paz
transformou numa casa da moeda. Os hindus das diferentes ou transformar uma localidade num deserto, iniciava-se uma
províncias cunharam por conta própria milhões de moedas de nova rebelião em outra parte do país. Ele mandava arrancar
cobre. Com elas pagavam seu tributo, compravam cavalos e a pele dos governadores que desertavam. Essas peles eram em
todos os tipos de objetos bonitos. Príncipes, chefes locais e seguida recheadas com palha, e estes inquietantes bonecos eram
proprietários de terras se enriqueceram com estas moedas de enviados pelo país inteiro para amedrontar os habitantes.
cobre, ao mesmo tempo que o estado empobrecia. O valor do Muhammad não sentia qualquer remorso por sua cruel-
novo dinheiro caiu de forma vertiginosa, enquanto as velhas dade. Ele estava plenamente convencido de que suas medidas
moedas, agora muito raras, subiram até alcançarem quatro ou eram as mais certas. As conversas que manteve a este respeito
cinco vezes o seu valor. O cobre por fim não valia mais do com o historiador Zia Barani são tão reveladoras que vale a
que pedregulhos. Todos estocavam suas mercadorias, o comér- Pena citar uma parte delas.
cio estancava por todos os lados. Quando o sultão viu as con- "Veja", disse o sultão a Barani, "quantas revoltas ocor-
seqüências do seu decreto, revogou-o irritado e ordenou que rem. Eu não me alegro com elas, se bem que as pessoas irão
todos os que possuíssem moedas de cobre as trouxessem à afirmar que todas são provocadas pela minha severidade exa-
câmara do tesouro para serem trocadas por moedas antigas. As gerada. Mas não me farão desistir da pena de morte nem com
pessoas então retiraram todo o cobre dos cantos onde desde- comentários desse tipo nem com revoltas. Você já teve opor-
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tunidade de ler muitas obras de história. Você não descobriu ll.e seu império estava doente e que remédio algum surtia o
que os reis, sob certas circunstâncias, costumam impor a pena frito desejado. Barani responde que os reis que tinham reco-
de morte?" elbecido não possuir mais a confiança do seu povo, tornan-
Em sua resposta, Barani citou uma alta autoridade islâ- do.se objeto de aversão universal, haviam abdicado e deixado
mica que considerava a pena de morte permitida em sete cir- o governo para o mais digno dos seus filhos. Outros tinham se
cunstâncias. Qualquer coisa além destas circunstâncias somente dedicado à caça e aos divertimentos, deixando os negócios de
Estado ao cuidado de seus vizires e funcionários; quando o
provocava distúrbios e revoltas, sendo prejudicial ao país. Estas
sete circunstâncias eram: apostasia da verdadeira religião, as- po vo ficava satisfeito com isto e quando o rei não era vingati-
sassinato, adultério de um homem casado com a mulher de vo , a enfermidade do Estado ainda podia ser curada. Dentre
todos os males políticos, o maior e o mais terrível era um sen-
outro, conspiração contra o rei, incitação à revolta, conivência
timento generalizado de aversão e uma carência de confiança
ou colaboração com os inimigos do rei, desobediência que re-
dundasse em prejuízo para o Estado; mas nenhuma outra deso- em todas as camadas da população. O sultão porém não mudou
bediência. Acrescentou que a respeito de três destes crimes — de idéia com estes valentes e claríssimos conselhos de Barani.
apostasia religiosa, assassinato de um muçulmano e adultério — Quando conseguisse colocar em ordem os assuntos do seu
o próprio profeta já tinha se pronunciado; o castigo relativo império da maneira como ele desejava — e só então — con-
aos quatro outros itens seria mais uma questão de política e fiaria o governo a três pessoas escolhidas e partiria para uma
de bom governo. Mas as autoridades, comenta Barani, também peregrinação a Meca, "Agora estou irritado com os meus sú-
enfatizaram que os reis devem nomear vizires que logo sobem ditos e eles estão furiosos comigo. Meus sentimentos são do
a altas dignidades e em cujas mãos se coloca a administração conhecimento deles, assim como eu também sei o que eles
sentem. Qualquer tipo de tratamento que eu tente seria ine-
do império; estes vizires têm obrigação de procurar que os
ficaz. Meu remédio para os rebeldes, os insatisfeitos e os des-
decretos sejam acertados e de manter o país em boa ordem
contentes é a espada. Eu imponho a pena de morte e uso a
para evitar que o rei se manche com o sangue de seus súditos.
espada para obter uma cura através do sofrimento. Quanto
A isto o sultão respondeu: "As penas que foram pro-
mais as pessoas resistirem, tanto mais castigos eu lhes imporei."
postas naquele tempo eram adequadas à situação da época.
Hoje existem quantidades muito maiores de homens maus e Mas o número de revoltas e o abalo generalizado do seu
rebeldes. Eu os castigo pela simples suspeita ou pela suposição império tiveram um efeito sobre o ânimo do sultão. Começou
de sua intenção rebelde e traiçoeira, e castigo o menor dos atos a sentir escrúpulos; não tanto pelos montes de cadáveres que
de desobediência com a pena de morte. E continuarei fazendo se acumulavam diante do seu palácio e em todas as províncias
isso até que eu morra ou até que as pessoas se comportem de e cidades que visitava, mas pela legitimidade do seu poder.
maneira decente, renunciando à rebeldia e à desobediência. Eu Ele era, como já foi explicado, um homem piedoso e justo e
queria alcançar para seu régio cargo a sanção espiritual suprema
não tenho um vizir que estabeleça regras para evitar que eu
derrame sangue. Eu castigo meus súditos porque eles todos, que o Islamismo pode outorgar. Nos séculos anteriores, os cali-
de uma só vez, se tornaram meus inimigos e adversários. Eu fas da Casa dos Abbasies, que residiam em Bagdá, eram consi-
distribuí grandes riquezas entre eles, mas mesmo assim eles derados como a instância pertinente. Mas o império deles não
não se tornaram amistosos e leais. O estado de espírito deles existia mais. Em 1258, Bagdá tinha sido conquistada pelos
me é bem conhecido, e eu vejo que eles estão descontentes e mongóis e o último califa tinha sido assassinado. Muhammad
que me são hostis". Tughlak subiu ao trono em 1325 e seus escrúpulos tiveram
início em 1340, quando, uma depois da outra, suas províncias
Numa conversa posterior, ele se lamenta de não ter man-
começaram a desertar. Não era claro para o sultão quem pos-
dado matar antes todos os que com suas rebeliões lhe causa-
suía agora o direito da investidura. Ele realizou então uma série
ram tantos problemas. Noutra ocasião — acabara de perder
uma de suas cidades mais importantes, a mesma para a qual de investigações profundas. Todos os viajantes que chegavam
tinha forçado a mudança de todos os habitantes de Delhi — ao seu reino vindos dos países islâmicos ocidentais eram inter-
manda chamar Barani e lhe pergunta que soluções tinham sido rogados com a maior minúcia, até que finalmente ele chegou à
tomadas por reis anteriores em casos como aquele. Diz-lhe conclusão de que o califa do Egito era o seu "papa" tão dese-

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jado. Entrou em negociações com ele; embaixadas iam e vinham. • neiros lhe sejam apresentados diariamente: como candi-
Nas cartas enviadas ao califa, ele se entregava a lisonjas tão mos à execução, eles são sua propriedade mais preciosa. No
Prisi°
excessivas que o historiador Barani, que já devia estar acostu- decorrer do seu governo de vinte e seis anos, os montes de
mado a muitas coisas, não se atreveu a repeti-las. Muhammad, cadáveres se espalham por todas as províncias de seu império.
juntamente com seus mais elevados dignitários e teólogos, diri- Epidemias e surtos de fome aparecem para ajudá-lo na tarefa
giu-se para as portas da cidade a fim de receber o emissário de matar. Ele se irrita com a inevitável diminuição dos impos-
que o califa lhe tinha enviado; depois o escoltou descalço tos . Mas, enquanto aumenta o número de suas vítimas, nada
durante um certo trecho. Ordenou que seu nome fosse reti- consegue abalar seriamente sua autoconsciência.
rado de todas as moedas e substituído pelo nome do califa. Para manter concentrada a energia de suas ordens, que
Nas orações de sexta-feira e dos dias festivos, o nome do califa nada mais são senão sentenças de morte, procura uma instân-
era citado. Mas Muhammad não ficou satisfeito com isso. cia suprema que lhe assegure isso. Deus, em quem acredita
Todos os reis anteriores, que não tinham sido confirmados como todo maometano piedoso, não lhe é suficiente. Procura
pelos califas, foram suprimidos da oração e seus governos fo- sua investidura por parte do representante legal de Deus.
ram declarados nulos a posteriori. Sobre os edifícios mais altos Muhammad Tughlak foi defendido pelos historiadores mo-
foi inscrito o nome do califa; nenhum outro nome podia apare- dernos da índia. O poder jamais careceu de quem lhe fizesse
cer junto dele. Num diploma solene, que após uma correspon- elogios. Os historiadores, profissionalmente possuídos pelo po-
dência de muitos anos chegou do Egito, Muhammad foi no- der, costumam justificar tudo pela época, atrás da qual, como
meado com todas as formalidades representante do califa para conhecedores, eles podem ocultar-se com facilidade, ou pela
a índia. Este documento causou tamanha felicidade a Muham- necessidade, que nas mãos deles assume a forma que lhes é
mad que ele ordenou aos poetas de sua corte que o traduzissem mais conveniente.
em versos artificiosos. Interpretações deste tipo também valem para casos que
De resto ele permaneceu o mesmo até o final. Sua seve- nos são bem mais próximos do que o de Muhammad Tughlak.
ridade crescia com seus fracassos. Ele não pereceu nas mãos Assim, pode ser de utilidade preventiva descobrir os processos
de um assassino. Após vinte e seis anos de governo, morreu de poder num homem que, para sorte do mundo, só os possuía
vitimado por uma febre contraída numa de suas expedições em seus delírios.
punitivas.
Muhammad Tughlak é o caso mais puro de um detentor
de poder paranóico. Os elementos exóticos de sua existência O caso Schreber. Primeira parte
fazem com que ela se torne especialmente instrutiva para um
europeu. Nele tudo se destaca, tudo sobressai. A coerência Seria difícil imaginar um documento mais abundante e mais
estrita de sua natureza é evidente, fecundo do que as Memórias de Schreber, antigo presidente do
Quatro massas atuam sobre seu espírito: seu exército, Senado de Dresden, Ele era um homem culto e inteligente;
seu dinheiro, seus -adáveres, e a sua corte, da qual depende a sua profissão o preparara para fazer formulações claras. Tinha
capital. Ele as manipula incessantemente. Uma aumenta às passado sete anos como paranóico internado em várias clínicas,
custas da outra. Com a ruína dos exércitos enormes, esgota-se quando tomou a decisão de colocar por escrito com todos os
o tesouro. Manda para o exílio todos os habitantes de sua detalhes o que ao mundo pareceria o seu sistema de delírio.
capital. Nesta grande cidade ele permanece sozinho e satisfeito. Suas Memórias de Um Neuropata transformaram-se num livro.
Do terraço de seu palácio contempla a metrópole vazia: ele Ele estava tão firmemente convencido da exatidão e do signi-
teve oportunidade para gozar plenamente a felicidade do so- ficado de sua religião autocriada que assim que recebeu alta
brevivente. mandou publicar seu texto. Seus recursos lingüísticos parecem
Qualquer que seja a ação que empreenda, ele sabe sem- feitos sob medida para representar tão peculiar formação de
pre conservar uma de suas massas. Não deixa de matar em idéias ; graças a eles apreende o estritamente necessário para
circunstância alguma. Uma instituição permanente é o monte que nada de essencial permaneça obscuro. Defende uma causa
de cadáveres diante do seu palácio. Faz com que todos os e, felizmente, não é poeta: desta maneira é possível acompa-
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nhá-lo por toda parte sem que haja necessidade de proteger-se as outras pessoas. Ele deseja estar contido nela, fixado por
dele. ela A imutabilidade e a duração das constelações, como são
Eu gostaria de destacar algumas das características mais con hecidas há milênios, podem também ter exercido uma atra-
notórias de seu sistema da forma mais breve possível. Na ção especial sobre ele. Uma "localização" entre elas era uma
minha opinião este caso permite uma grande compreensão da localização para a eternidade.
natureza da paranóia. Se outros que examinarem este mesmo Este sentimento de posição do paranóico é de significado
documento chegarem a outros resultados, isto servirá apenas ssencial: trata-se sempre de defender e de assegurar uma po-
e
como prova da riqueza destas Memórias. sição exaltada. Também no caso do poderoso, considerada a
A pretensão de Schreber torna-se mais nítida lá onde ele natureza do poder, não pode ser diferente: o sentimento sub-
aparentemente se limita. "Eu também sou apenas um homem", jetivo que ele tem em relação à sua posição em nada se dife-
diz ele no início, "e por isto também estou sujeito aos limites rencia do sentimento do paranóico. Quem pode rodeia-se de
do conhecimento humano", Porém não existe a menor dúvida soldados e se encerra em fortalezas. Schreber, que se sente
para ele de que conseguiu aproximar-se infinitamente mais da ameaçado de muitas maneiras, fixa-se nas estrelas. Pois, con-
verdade do que todos os demais homens. Depois, ele passa forme se verá, o mundo está transtornado. Para tornar com-
imediatamente para a eternidade. O pensamento da eternidade preensíveis estes perigos, é preciso dizer alguma coisa a res-
permeia todo o seu livro, significando mais para ele do que peito da população do mundo dele.
para o homem comum. Ele a entende e a encara não apenas Schreber acha que a alma humana está contida nos nervos
como algo que lhe corresponde, mas também que lhe pertence. do corpo. Enquanto o homem vive, ele é corpo e alma simul-
Ele se move em gigantescos espaços de tempo: suas experiên- taneamente. Porém, quando morre, os nervos continuam exis-
cias se estendem por séculos. Ele tem a impressão de que "noi• tindo como alma. Deus é sempre apenas nervos, nunca corpo.
tes isoladas tenham durado séculos, de maneira que dentro É semelhante, portanto, à alma humana, mas infinitamente su-
deste espaço de tempo poderiam ter ocorrido as mais profun- perior a ela porque o número de nervos de Deus é ilimitado e
das modificações da humanidade, da própria Terra, e de todo eles são eternos. Os nervos de Deus têm a propriedade de
o sistema solar". No espaço cósmico ele se sente tão em casa transformar-se em raios, como os do Sol e das estrelas, por
como na eternidade. Exercem especial fascínio sobre ele algu- exemplo. Deus gosta do mundo que criou; todavia Ele não
mas constelações e estrelas isoladas: Cassiopéia, Vega, Capela, intervém diretamente em seus destinos. Depois da criação Ele
as Plêiades. Fala a respeito delas como se fossem paradas de se retirou do mundo, e na maior parte dos casos permanece
ônibus logo depois da próxima esquina. Todavia ele tem plena à distância. É que Deus não pode aproximar-se demais dos
consciência da distância real que as separa da Terra. Possui homens, pois os nervos dos vivos têm uma tal força de atra-
conhecimentos astronômicos e não diminui o mundo. Pelo con- ção que Ele não poderia mais desprender-se deles e se veria
trário, tem-se a impressão de que os corpos celestes o atraem ameaçado em sua própria existência. Por isso Ele está sempre
justamente por estarem tão distantes. A grandeza do espaço em guarda contra os vivos e, se alguma vez se deixa atrair por
o seduz; quer ser tão vasto quanto este e estender-se inteira- uma oração intensa ou por um poeta, logo se retira da maneira
mente sobre ele. mais rápida possível, antes que seja demasiado tarde.
Mas não se tem a impressão de que ele se importe com o "Um relacionamento regular de Deus com as almas huma-
processo de crescimento; é mais um estender-se do que um nas somente ocorre após a morte. Deus pode aproximar-se
crescer; ele quer a amplidão para fortalecer-se e para manter-se dos cadáveres sem perigo, para retirar seus nervos do corpo e
nela. A posição como tal é o que lhe importa e ela nunca pode para despertá-los para uma nova vida celestial." Mas antes os
ser suficientemente grande e eterna. O princípio supremo que nervos humanos precisam ser revistos e purificados para este
vale para ele é a ordem cósmica. Ele a coloca acima de Deus; fim. Deus somente podia usar nervos humanos puros, pois era
quando Deus tenta agir contra ela, Ele se vê em dificuldades. destino deles serem integrados nele e converter-se por fim "em
Schreber fala freqüentemente do seu próprio corpo humano vestíbulos do céu, em partes constitutivas dele próprio". Um
como se se tratasse de um corpo celeste. A ordem do sistema complicado processo de purificação era portanto necessário,
planetário o mantém tão entretido como a ordem familiar entre- e nem mesmo Schreber é capaz de descrevê-lo com detalhes.
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MU.
Depois que as almas tinham passado por este processo e subido Flechsig. Depois de uni ano recebeu alta e pôde retomar suas
ao céu, esqueciam aos poucos quem tinham sido na terra; mas atividades profissionais. Na ocasião Schreber ficara muito agra-
nem todas se esqueciam com a mesma rapidez. Homens emi- decido ao psiquiatra; mais agradecida ainda ficou sua esposa
nentes, como Goethe ou Bismarck, conservavam sua auto- "que no Prof. Flechsig venerava francamente aquele que lhe
consciência talvez durante séculos; mas ninguém, nem mesmo tinha devolvido o marido, e que por este motivo, durante anos,
as pessoas mais importantes, a conservava para sempre. Isto manteve uma fotografia dele sobre sua mesa de trabalho".
porque finalmente "era destino de todas as almas amalgama- Schreber passou então oito anos sadios, felizes e de muito
rem-se em unidades superiores, fundidas com outras almas, e trabalho ao lado da mulher. Durante todo este tempo teve
com isto sentirem-se apenas como partes constitutivas de Deus, muitas oportunidades de ver o retrato de Flechsig sobre a mesa
ou seja, como 'vestíbulos do céu' ". de trabalho de sua esposa, e isto deve tê-lo preocupado muito
A fusão das almas numa massa é aqui a suprema bem- sem que soubesse bem por quê. Quando tornou a adoecer,
aventurança. Vêm-nos à lembrança algumas representações da procurou-se — compreensivelmente — o mesmo Flechsig, que
iconografia cristã: anjos e santos, todos apertados lado a lado já tinha obtido tão bons resultados anteriormente; percebeu-
feito nuvens, às vezes como nuvens de verdade, nas quais ape- se então que o personagem do psiquiatra tinha aumentado no
nas olhando-se com muita atenção percebem-se as cabeças indi- espírito de Schreber até alcançar dimensões muito perigosas.
viduais. Esta imagem é tão difundida que já não pensamos em É possível que Schreber, que como juiz possuía uma certa
seu significado. Expressa que a bem-aventurança não consiste autoridade, tivesse nutrido um rancor secreto em relação a
unicamente na proximidade de Deus, mas também na maneira ele por ter estado durante um ano inteiro em seu poder. Con-
compacta de se estar junto dos que nos são iguais. Com a de- venceu-se de que Flechsig praticava um assassinato ou se-
signação "vestíbulos do céu" realiza-se a tentativa de tornar qüestro de sua alma. A idéia de que era possível apoderar-se
ainda mais densa a consistência desta massa de almas bem- da alma de outro era antiguíssima e muito difundida. Era desta
aventuradas. Realmente elas foram amalgamadas em "unida- maneira que uma pessoa conseguia apropriar-se das forças es-
des superiores". pirituais do afetado ou conseguia uma vida mais longa para si
Deus não entende muito a respeito dos homens vivos. mesmo. Por ambição ou por desejo de dominar, Flechsig teria
Em partes posteriores das Memórias Schreber várias vezes o feito uma conspiração com Deus e procurado convencê-lo de
repreende por sua incapacidade de compreender o homem vivo, que não podia realmente depender da alma de um Schreber.
e particularmente por não ser capaz de julgar corretamente É possível que se tenha tratado inclusive de uma rivalidade
sua atividade pensante. Ele fala da cegueira de Deus, que teria mais antiga entre as famílias Schreber e Flechsig. Um dos
como base sua ignorância a respeito da natureza humana. E Flechsig poderia ter tido repentinamente a sensação de que
isto porque Ele estaria acostumado a lidar apenas com cadá- um membro da família Schreber conseguira uma posição me-
veres e a evitar uma aproximação excessiva dos seres humanos lhor do que a sua. Por isto instigou uma conspiração com ele-
vivos. O eterno amor divino, no fundo, existiria apenas em mentos do reino de Deus pretendendo, por exemplo, que aos
relação à criação na sua totalidade. Deus não é um ser com a Schreber fossem negadas determinadas profissões que pode-
perfeição absoluta que lhe é atribuída pela maior parte das riam levar a relações mais íntimas com Deus. Uma destas pro-
religiões. Caso contrário Ele não se teria deixado induzir à fissões era a de neurologista; considerando-se o significado
conspiração contra os inocentes, que é o núcleo propriamente dos nervos como substância formadora de Deus e de todas as
dito da enfermidade de Schreber. Porque na "maravilhosa demais almas, era evidente quanto poder se encontrava nas
construção" do mundo, tal como acabou de ser descrita, apa- mãos de um neurologista. Assim, nenhum Schreber era psi-
receu repentinamente uma fissura, Sobre o reino de Deus foi quiatra, mas sim um Flechsig; o caminho para o seqüestro de
declarada uma grave crise relacionada com o destino pessoal almas estava aberto para os conspiradores; Schreber encon-
de Schreber. trava-se em poder do assassino de sua alma.
Trata-se nada menos que de um caso de assassinato de Talvez seja útil referir-nos aqui ao significado que as
alma. Schreber já tinha estado doente uma vez, e se havia con- Conspirações têm para o paranóico. As conspirações ou con-
fiado então aos cuidados de um psiquiatra de Leipzig, o Prof. jurações estão para ele na ordem do dia; é quase impossível
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não se encontrar nele alguma coisa que não se pareça com isso, de nomes que mantinham relações comigo como almas. Todas
ainda que remotamente. O paranóico se sente cercado. Seu estas almas falavam comigo como 'vozes', cada uma delas sem
inimigo principal jamais se contentará com atacá-lo sozinho, nada saber a respeito da presença das outras. Todos poderão
Sempre procurará atiçar contra ele uma malta odiosa, soltando-a facilmente imaginar o barulho desesperador que se formou por
no momento exato. Os membros da malta a princípio se man-
causa disto em minha cabeça . . ,
têm ocultos, podem estar por toda parte. Fingem ser inofensi- "Como conseqüência do meu nervosismo cada vez maior e
vos e inocentes, como se não soubessem o que estão esprei- da força de atração aumentada ainda mais por este motivo, um
tando. Mas a penetrante força mental do paranóico consegue número cada vez maior de almas mortas se sentia atraído por
desmascará-los. Onde quer que ele coloque a mão, sempre con- mim, para logo em seguida dissipar-se sobre minha cabeça ou
segue encontrar um conjurado. Sempre, mesmo que não ladre, dentro do meu corpo. Em numerosas ocasiões o processo termi-
a malta está presente; sua disposição é inalterável. Uma vez nava com as almas, como os chamados 'homenzinhos' — minús-
conquistados pelo inimigo, continuam sendo o que são, seus culas figuras de forma humana mas medindo apenas alguns milí-
cães fielmente devotados. Ele pode tratá-los como quiser. Man- metros —, tendo uma breve existência sobre minha cabeça, e
tém-nos sujeitos à corrente de sua maldade, mesmo à distância. logo em seguida desaparecendo completamente... Em numero-
Dirige-os como bem entende, e de preferência escolhe os que sas ocasiões eles me diziam os nomes das estrelas ou das cons-
atacam simultaneamente por todos os lados e com grande supe- telações estelares de onde procediam ou `das quais depen-
rioridade em relação ao afetado. diam'... Havia noites em que as almas gotejavam como 'ho-
Uma vez montada esta conspiração contra Schreber, como menzinhos' às centenas ou aos milhares sobre minha cabeça.
se desenvolveu concretamente o combate contra ele? Quais Eu sempre procurava impedir a aproximação delas porque to-
eram os objetivos dos conjurados e que medidas foram adota- das as vezes, depois dos acontecimentos anteriores, eu tinha
das por eles para consegui-los? O objetivo mais importante — a consciência do aumento da incomensurável força de atração
embora não o único —, do qual não quiseram abrir mão du- dos meus nervos, enquanto as almas sempre consideravam
rante anos, era a destruição do seu intelecto. Queriam trans- totalmente incrível uma força de atração tão ameaçadora.
formá-lo num imbecil. A enfermidade dos seus nervos deveria "No idioma das almas eu era chamado 'o visionário', ou
ser levada a um tal extremo que parecesse definitivamente seja, um homem que vê espíritos, que tem relações com espí-
incurável. O que poderia ferir mais profundamente um homem ritos ou com almas de pessoas mortas. De fato, desde que o
de sua mentalidade? Sua enfermidade começou com uma in- mundo é mundo, não deve ter existido um caso como o meu,
sônia angustiante. Qualquer coisa que se fizesse era inútil. em que um homem tenha entrado em relação constante não
Desde o começo, acredita Schreber, existiu a intenção de im-
apenas com almas singulares de mortos, mas com a totalidade
pedir que ele dormisse e de causar, mediante a insônia, seu das almas e com a onipotência do próprio Deus."
colapso espiritual. Para isso foram descarregados sobre ele O caráter de massa destes acontecimentos é evidente para
inúmeros raios. A princípio eles se originavam no Prof. Flechsig;
Schreber. O cosmos, até as estrelas mais remotas, está povoado
mas depois as almas dos defuntos que ainda não tinham fina- por almas de finados. Todas têm seu lugar determinado, onde
lizado seu processo de purificação, "almas provadas", como moram: alguma estrela bem conhecida. Repentinamente, de-
são chamadas por Schreber, em medida crescente começaram vido à sua enfermidade, ele passa a ser o ponto central. Ape-
a interessar-se também e penetraram nele como raios. O pró- sar de suas advertências, elas se apertam contra ele. Sua atra-
prio Deus participava deste influxo. Todos esses raios passaram ção se torna irresistível. Seria possível dizer que ele as reúne
então a falar com ele, mas de maneira imperceptível aos de- como massa em torno de si e, considerando-se que — como
mais. Era como uma espécie de oração que se recita em si- ele enfatiza - se trata da totalidade das almas, elas represen-
lêncio, sem pronunciar as palavras em voz alta. A penosa dife- tam a maior massa imaginável. Mas elas não permanecem
rença era que as palavras de uma oração assim dependem da simplesmente como massa reunidas em torno dele, como por
própria vontade, ao passo que os raios que lhe eram impostos exemplo, um "povo" em torno do seu führer. Pelo contrário,
de fora para dentro diziam o que eles queriam. com elas acontece imediatamente o que aos povos que se
"Eu poderia mencionar aqui centenas ou até milhares amontoam em torno dos seus líderes ocorre apenas no trans-
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correr dos anos: nele, elas se tornam cada vez menores. Assim foi mencionado, o sentimento do catastrófico que está
que elas o alcançam, começam a encolher a toda velocidade ní'-
inculado a tudo isso, uma ameaça à ordem universal que
até alcançarem o tamanho de alguns milímetros, e a verdadeira d'eriva justamente desta inesperada atração em rápido aumento.
relação entre eles aparece assim da maneira mais convincente : Nas Memórias existem numerosos testemunhos deste sen-
ele, em comparação com elas, é um gigante; elas, como cria- timento. As visões de fim do mundo de Schreber têm algo de
turas minúsculas, se agitam em torno dele. Mas isto também gra ndioso; citaremos aqui por enquanto uma passagem direta-
não lhe basta: o grande homem as devora. Literalmente elas mente vinculada à sua atração sobre as almas As almas, que
se incorporam a ele, para logo em seguida desaparecerem com- goteja m sobre ele em massa a partir das estrelas, colocam em
pletamente. Seu efeito sobre elas é demolidor. Ele as atrai e pe rigo, devido ao seu comportamento, os corpos celestes de
as reúne, ele as miniaturiza e as consome. Tudo o que elas onde se originam. Parece que as estrelas constam especifica-
eram favorece agora o seu próprio corpo. Não que elas te- mente destas almas; quando estas se afastam em grande quan-
nham vindo para lhe fazer algum bem. Sua intenção era espe- tidade, para chegar até onde Schreber se encontra, tudo se
cificamente hostil; inicialmente elas tinham sido enviadas para dissolve.
transtornar sua razão e para causar sua perdição. Mas foi jus- "De todas as partes chegavam notícias desastrosas, infor-
tamente diante deste perigo que ele cresceu. Agora que ele mando que agora também tinha sido abandonada esta ou aquela
sabe como domá-las, sente-se muito orgulhoso em relação ao estrela, esta ou aquela constelação. Dizia-se que também Vênus
seu grande poder de atração. estava inundada, ou que fora necessário desarticular todo o
primeira vista, Schreber, na esfera do seu delírio, pode- sistema solar, ou então que Cassiopéia — a constelação toda —
ria parecer um personagem dos tempos passados, quando teve de ser fundida num único sol, e que talvez apenas as
a crença nos espíritos era generalizada e as almas dos mortos Plêiades ainda poderiam ser salvas."
zumbiam como insetos em torno das orelhas dos vivos. É como A preocupação de Schreber pela duração dos corpos ce-
se ele exercesse a profissão de um xamã que conhece da maneira lestes era porém apenas um aspecto do seu estado de espírito
mais exata possível o mundo dos espíritos, que sabe colocar-se catastrófico. Muito mais significativo era outro fato, com o
em contato direto com eles e que os obriga a servir a todos os qual teve início sua enfermidade. Não se referia às almas dos
tipos de metas e objetivos humanos. Ele até gosta de ser mortos com as quais, como já sabemos, ele se encontrava em
chamado de "visionário". Mas o poder de um xamã está longe contato ininterrupto, mas sim aos seus semelhantes. Estes já
de chegar ao ponto do poder de Schreber. O xamã tem, às não existiam mais: toda a humanidade tinha sucumbido. Schre-
vezes, os espíritos dentro de si, mas eles não se dissolvem lá, ber se considerava o único real sobrevivente. Ele acreditava
eles sempre conservam sua existência separada, e é ponto que as poucas figuras humanas que ele continuava vendo —
pacífico que ele sempre tem de libertá-los. Dentro de Schre- seu médico, os enfermeiros do estabelecimento ou outros pa-
ber, no entanto, eles se amalgamam e desaparecem como se cientes, por exemplo — eram simples aparências. Eram "ho-
nunca tivessem existido por conta própria. Seu delírio, sob o mens rapidamente esboçados", que somente lhe eram simu-
disfarce de uma concepção antiquada do mundo, que pressupõe lados para deixá-lo confuso. Vinham como sombras ou como
a existência dos espíritos, é na realidade o modelo exato do imagens e se dissolviam outra vez; ele naturalmente não as
poder político, que se nutre da massa e que é composto por levava a sério. Todos os verdadeiros homens tinham sucum-
ela. Qualquer tentativa de análise conceituai do poder será bido. O único que continuava vivo era ele. Este fato não lhe
mais pobre do que a clareza da visão de Schreber. Todos os foi revelado por visões isoladas, não era substituído por opi-
elementos das circunstâncias reais estão nela: a intensa e con- niões opostas; ele esteve firmemente convencido disso durante
tínua atração sobre os indivíduos que irão se reunir numa anos. Todas as suas visões de fim do mundo estavam impreg-
massa, sua intenção duvidosa, sua domesticação, sua miniatu- nadas desta crença.
rização, o fato de se amalgamarem no poderoso que representa Ele achava possível que toda a instituição de Flechsig, e
o poder político em sua pessoa, em seu corpo, sua grandeza talvez a cidade de Leipzig com ela, tivesse sido "arrancada"
que desta maneira deve renovar-se interminavelmente, e, final- da Terra e transferida para qualquer outro corpo celeste. As
mente, um último e muito importante aspecto que até agora vozes que falavam com ele lhe perguntavam às vezes se Leipzig
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continuava de pé. Numa de suas visões foi conduzido num q uer ser o único ainda de pé, com vida, em meio a um gigan-
elevador para as profundezas da Terra, Desta maneira viveu tesco campo de cadáveres, e este campo de cadáveres inclui
todos os períodos geológicos, até que repentinamente se en- todos os demais seres humanos. Nisto ele não se mostra ape-
controu em um bosque de carvão-de-pedra. Abandonando tem- nas como paranóico; é a tendência mais profunda de todo
porariamente o veículo, perambulou como se estivesse num ce- poderoso "ideal" ser o último a permanecer com vida. O po-
mitério, cruzando os locais onde jazia a população de Leipzig, deroso envia os demais à morte para que ele mesmo seja per-
encontrando até mesmo o túmulo de sua própria esposa. Cabe doado pela morte: ele a desvia de si. A morte dos demais não
observar que sua esposa continuava viva e o visitou repetidas lhe é apenas indiferente; tudo o impele a provocá-la de ma-
vezes na instituição onde ele estava internado. neira maciça. Ele apela para este expediente radical princi-
Schreber imaginava de diversas maneiras como teria ocor- palmente quando seu domínio sobre os vivos é questionado.
rido o desaparecimento da humanidade. Pensava numa dimi- Quando ele se sente ameaçado, sua paixão de ver todos mor-
nuição do calor solar devido a um maior distanciamento do Sol, tos diante de si dificilmente será refreada por considerações
com o conseqüente congelamento generalizado. Pensava em racionais.
terremotos: comunicaram-lhe que o grande terremoto de Lis- poder-se-ia objetar que este enfoque "político" do caso
boa havia sido relacionado com o caso de um visionário, bas- Schreber é impróprio e um tanto fora de propósito, que suas
tante semelhante ao seu. A notícia da aparição de um mago, visões apocalípticas são de natureza religiosa; que ele não pre-
justamente o Prof. Flechsig, no mundo moderno, e o repentino tende conseguir domínio algum sobre os vivos; que o poder
desaparecimento de Schreber, uma personalidade bastante co- de um visionário, por sua própria natureza, é algo diferente.
nhecida em círculos amplos, teriam provocado pavor e espanto Uma vez que seu delírio tem início com a idéia de que todos
entre os homens, destruindo as bases da religião. Um nervosis- os homens estão mortos e já sucumbiram, dificilmente seria
mo e uma imoralidade generalizadas ter-se-iam expandido e possível atribuir-lhe algum interesse temporal.
epidemias devastadoras teriam irrompido sobre a humanidade. O erro desta objeção será demonstrado logo mais adiante.
Falava-se de lepra e de peste, duas enfermidades que pratica- Encontraremos em Schreber um sistema político que parece
mente não existiam mais na Europa. No seu próprio corpo aterradoramente familiar para nós. Mas, antes de mostrarmos
ele percebeu sintomas de peste, que aparecia sob diferentes isto, seria apropriado dizer algumas coisas a respeito da sua
formas. Havia a peste azul, a parda, a branca e a negra. concepção do governo divino.
Mas, enquanto os demais homens sucumbiam a todas estas Foi Deus mesmo, acha ele, "quem determinou a linha
terríveis epidemias, Schreber era curado graças aos raios be- normativa completa da política adotada contra mim ... Deus
néficos. Era necessário fazer uma distinção entre duas espécies estaria a qualquer momento em condições de aniquilar um
diferentes de raios: os raios "mutiladores" e os "benéficos". homem que lhe fosse incômodo, por meio de uma doença
Os primeiros estavam carregados de venenos de cadáveres e de mortal ou de um raio. Quando ocorria alguma colisão dos
outras matérias em estado de putrefação; introduziam um vírus interesses de Deus com os de homens isolados ou de grupos
no corpo ou provocavam outros efeitos destruidores dentro da humanidade, talvez até mesmo de toda a população de um
dele. Os raios "benéficos" ou puros, porém, remediavam os planeta, devia nascer em Deus, como em qualquer outro ser
danos causados pelos raios "mutiladores", animado, o instinto de autoconservação. Basta lembrar de
Não se tem a impressão de que estas catástrofes tenham Sodoma e Gonaorra ... Seria impensável que Deus negasse a
irrompido sobre a humanidade contra a vontade de Schreber. qualquer homem individual a medida de bem-aventurança que
Pelo contrário, ele parece sentir uma certa satisfação diante lhe corresponde, uma vez que toda a multiplicação dos 'vestí-
do fato de que as perseguições que lhe eram movidas pelo bulos do céu' servia exclusivamente para aumentar seu próprio
Prof. Flechsig tenham conduzido a conseqüências tão mons- poder e para reforçar as defesas contra os perigos resultantes
truosas. A humanidade inteira é castigada e exterminada por- da aproximação em relação à humanidade. Uma colisão entre os
que ousou ficar contra ele. Somente ele é protegido pelos raios interesses de Deus e os dos homens não podia ocorrer sob a
"benéficos" contra os efeitos das epidemias. Schreber resta condição prévia de um comportamento conforme a ordem do
como único sobrevivente porque ele próprio assim o quer. Ele universo dos homens". Que, apesar disso, tivesse ocorrido com
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ele tal colisão de interesses, era um caso único na história uni- leito por Deus, de cuja língua ele se servia preferencialmente.
versal; um caso que, sem dúvida, jamais voltaria a ocorrer. No decorrer da história, uns após os outros — como povos
Ele fala a respeito do "restabelecimento da autocracia de Deus mais eficientes no campo moral —, teriam sido eleitos por Deus
sobre o céu"; de uma "espécie de cooperativa federada da alma os antigos judeus, depois os persas antigos, depois os greco-
de Flechsig com partes de Deus", que dirigia sua vanguarda romanos, e finalmente os alemães.
hostil contra ele; a metamorfose da situação entre os partidos Este povo eleito, os alemães, naturalmente está ameaçado
criada desta forma teria se conservado no essencial até o dia por múltiplos perigos. Em primeiro lugar, pelas manobras dos
de hoje. Ele menciona "as forças colossais do lado da onipo- católicos. Recordem-se aquelas centenas ou até milhares de
tência de Deus" e a "resistência inútil" do seu lado. Expressa nomes que ele poderia citar de almas que, como raios, manti-
a suposição de "que a atribuição de poderes do Prof. Flechsig, nham relações com ele e que, todas elas, falavam com ele. Em
como administrador de uma província de Deus, deve ter se muitos dos portadores destes nomes achava-se em primeiro
estendido até a América". O mesmo pareceria ser válido tam- plano o interesse religioso. Especificamente, havia entre eles
bém em relação à Inglaterra. É mencionado um outro neuro- muitos católicos que esperavam um aumento do Catolicismo,
logista que "parecia ser uma espécie de administrador dos in- uma conversão ao Catolicismo, principalmente da Saxônia e de
teresses divinos para uma outra província de Deus, especifica- Leipzig; entre eles estavam o pároco St. de Leipzig, "quatorze
mente para os territórios eslavos da Áustria". Entre este outro católicos de Leipzig" (provavelmente alguma associação cató-
médico e o Prof. Flechsig tinha começado uma luta pela su- lica), o padre jesuíta S. de Dresden, os cardeais Rampolla,
premacia. Galimberti e Casati, e o próprio papa; finalmente numerosos
Destas citações, extraídas de diversas partes das Mernó monges e freiras; em determinada ocasião, entraram de uma
rias, resulta uma imagem extremamente clara de Deus; ele só vez duzentos e quarenta monges beneditinos, conduzidos por
nada mais é do que o detentor do poder. Seu reino tem pro- um padre "como almas na minha cabeça para encontrarem lá
víncias e partidos. Os interesses de Deus, como são designados dentro sua perdição". Entre as almas, porém, encontrava-se
de maneira concisa e cortante, tendem a um aumento do po- também um neurologista vienense, um judeu batizado e esla-
der. Este, e apenas este, é o motivo pelo qual ele não nega a vófilo, que por meio de Schreber pretendia eslavizar a Alema-
homem algum a medida de bem-aventurança que lhe corres- nha, e ao mesmo tempo estabelecer o domínio do Judaísmo.
ponde. Os homens incômodos são eliminados do caminho. A Como se vê, o catolicismo se apresenta aqui de maneira
impressão é de que este Deus está de guarda, como uma aranha, muito completa: aparecem não apenas simples crentes, que em
no centro da teia de sua política. Dali não é grande o salto para Leipzig se reúnem em associações ominosas, mas também toda
a política do próprio Schreber. a hierarquia eclesiástica. Menciona-se um padre jesuíta e com
Talvez seja importante informar que Schreber foi educa- isto se evoca todo o perigo vinculado ao nome dos jesuítas.
do na velha tradição política da Saxônia e que via com descon- Como supremos dignitários eclesiásticos aparecem três cardeais
fiança todos os esforços proselitistas católicos. Sua primeira com sonoros nomes italianos e o papa em pessoa. Monges e
declaração a respeito dos alemães vinculava-se à vitoriosa guer- freiras aparecem aos montes. Pululam como insetos no edifí-
ra de 1870-71. cio em que Schreber vive. Numa visão, que eu não citei, apare-
Ele recebera insinuações bastante corretas de que o rigo- ce-lhe a ala feminina da clínica neurológica da universidade
roso inverno de 1870-71 teria sido decidido por Deus para transformada num convento de freiras; outra vez, numa capela
inclinar a sorte da guerra para o lado dos alemães. Mas Deus católica. Nos aposentos situados debaixo do telhado do esta-
também tinha uma fraqueza pelo idioma dos alemães. Durante belecimento estão sentadas irmãs de caridade. O mais impres-
o período de purificação, as almas aprendem a "língua básica", sionante é a procissão dos duzentos e quarenta monges benedi-
falada pelo próprio Deus: um alemão arcaico, porém muito tinos conduzidos por um padre. Nenhuma forma de represen-
vigoroso. Isto não significava que a bem-aventurança estivesse tação é mais adequada ao Catolicismo do que a procissão. O
destinada apenas aos alemães. Mas, fosse como fosse, os ale- grupo fechado de monges representa, como cristal de massa,
mães seriam nos tempos modernos — desde a Reforma, tal- a totalidade dos católicos. A imagem da procissão incita nos
vez já desde os tempos das migrações dos povos — o povo espectadores a fé latente, e eles sentem repentinamente o de-
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sejo de agregar-se a ela. Assim, o cortejo aumenta pela adesão ecessário procurar desde já um último asilo junto aos
seria n
de todos aqueles na frente dos quais a procissão passa; na iov os não-arianos."
realidade este cortejo deveria tornar-se infinito. Engolindo toda r A "época sagrada" de Schreber cai no ano de 1894. Ele
esta procissão, Schreber simbolicamente dá o golpe de mise- tern uma tendência para indicar com exatidão lugares e datas.
ricórdia no Catolicismo. Para o "primeiro julgamento de Deus" ele fornece datas muito
Da agitada primeira época de sua enfermidade, que Schre- precisas. Seis anos mais tarde, em 1900, quando seu delírio
ber denomina época sagrada, destaca-se, pela sua intensidade, já tinha se decantado e fortalecido, ele começou a redação das
o período de uns quatorze dias, o período do primeiro julga- suas Memórias; em 1903, elas foram publicadas em forma de
mento de Deus. Trata-se de uma série de visões que se suce- livro. Não se pode negar que seu sistema político chegou a
deram dia e noite e que tinham como base uma "idéia geral obter grandes honras algumas décadas mais tarde. Numa versão
comum". O núcleo desta idéia era essencialmente político, mais brutal e menos "culta", ele se transformou no credo de
se bem que aguçado de forma messiânica. um grande povo. Sob a direção de um "príncipe mongol"
O conflito entre o Prof. Flechsig e Schreber levara a uma chegou à conquista do continente europeu e, por pouco, ao
crise perigosa para a existência do reino de Deus. Por este domínio do mundo inteiro. Com isto, as exigências de Schreber
motivo a povo alemão — em especial a Alemanha protestante foram reconhecidas a posteriori por seus desprevenidos discí-
— não podia mais manter-se na direção como povo eleito. pulos. De nós não se pode esperar a mesma coisa. No entanto,
Talvez até mesmo o povo alemão saísse de mãos vazias quando o fato incontestável de uma ampla coincidência dos dois siste-
mas deve ser considerado como justificativa para termos de-
fossem ocupadas outras esferas celestes — planetas habitados
dicado tanta atenção a um único caso de paranóia; ainda exis-
—, se não aparecesse um paladino por meio do qual pudesse
tem muitos outros aspectos a serem tratados.
demonstrar sua perpétua dignidade. Este paladino teria de ser
Em vários pontos Schreber certamente se adianta ao seu
ou o próprio Schreber, ou alguma outra personalidade. Aten-
século. Na época não era imaginável uma ocupação de plane-
dendo às instâncias das vozes, ele enunciou os nomes de alguns
tas habitados. Nenhum povo eleito se viu até agora prejudi-
homens de destaque que lhe pareciam ser apropriados para a cado neste empreendimento. Mas os católicos, os judeus e os
função de paladino nesse combate. À idéia básica do primeiro eslavos, ele já os antevia, da mesma forma pessoal que ao pa-
julgamento de Deus pertencia o avanço do Catolicismo, do Ju- ladino futuro — não identificado por ele —, como massas
daísmo e do Eslavismo. De influência essencial sobre Schreber hostis, e odiou-os por sua simples existência. Uma urgente
foram certas representações que se referiam a tudo o que ele tendência a aumentar lhes era inata como massas. Ninguém vê
chegaria a ser numa futura metempsicose. melhor as propriedades da massa do que o paranóico ou o
"Foram-me atribuídos sucessivamente os papéis . .. de poderoso, palavras que — como agora talvez já seja possível
um 'aluno jesuíta em Ossegg', de um 'burgomestre de Klattau', admitir — são equivalentes. Pois ele, para designar ambos
de uma 'jovem alsaciana que precisa defender sua honra de com um pronome no singular, somente se preocupa com as
estirpe contra um vitorioso oficial francês' e, por fim, 'de um massas que deseja atacar ou dominar e estas sempre têm, em
príncipe mongol'. Em todas estas previsões julguei reconhecer toda parte, a mesma face.
uma certa relação com o quadro de conjunto das demais vi- É impressionante a maneira como Schreber determina
sões A futura destinação de um aluno jesuíta em Ossegg, suas futuras existências. Das cinco que ele enumera apenas a
de um burgomestre em Klattau e de uma jovem alsacíana na primeira, ocorrida anteriormente, é de caráter apolítico. As
situação descrita acima, considerei-a como o vaticínio de que três seguintes o colocam no centro das posições disputadas com
o Protestantismo já teria sucumbido ou se submeteria ao Cato- mais violência; ele se infiltra como aluno entre os jesuítas;
licismo, da mesma forma que o povo alemão já sucumbira ou torna-se burgomestre de uma cidade situada na floresta da
sucumbiria em sua luta contra seus vizinhos latinos e eslavos; Boêmia, onde existem conflitos entre alemães e eslavos; trans-
a perspectiva de chegar a ser um príncipe mongol pareceu-me forma-se numa jovem alemã que procura defender a Alsácia
um anúncio de que, depois que todos os povos arianos se tives- contra um vitorioso oficial francês. Sua "honra de estirpe" se
sem mostrado inadequados como apoio para o reino de Deus, aproxima perigosamente da honra de raça dos seus sucessores.
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A mais reveladora, todavia, é sem dúvida a sua quinta encar- O caso Schreber. Segunda parte
nação como príncipe mongol. A explicação que dá para ela
assemelha-se muito a uma desculpa. Ele se envergonha desta
A conspiração que se tinha formado contra Schreber não estava
existência "não-ariana", e a justifica com o fato de os povos dirigida apenas ao assassinato de sua alma e à destruição do
arianos terem fracassado. Na verdade ele não imagina qualquer
seu intelecto. Pensava-se também em fazer outra coisa com
outro príncipe mongol além de Gengis Khan. As pirâmides de ele, algo quase tão detestável: transformar seu corpo no de
crânios dos mongóis o fascinam, seu amor pelos campos de uma mulher. Como mulher, abusariam dele e "depois me dei-
cadáveres não é desconhecido do leitor. Ele aprova esta ma- xariam jogado de lado, para perecer, entregue assim à decom-
neira manifesta e milionária de exterminar os inimigos. Quem posição". A idéia de sua transformação em mulher o ocupou
extermina todos os seus inimigos deixa de tê-los e desfruta incessantemente durante os anos de sua enfermidade. Ele sentia
do espetáculo oferecido pelos seus montões indefesos. Schreber, serem enviados para seu corpo nervos femininos, em forma de
ao que parece, se viu regressando a estas quatro existências raios, que lentamente iam predominando.
de uma só vez. Seu maior êxito foi obtido como príncipe No início de sua enfermidade, Schreber tentou acabar com
mongol. a própria vida de todas as maneiras possíveis para escapar de
Deste exame mais demorado de um delírio paranóico, por tão espantosa degradação. Cada banho que ele tomava era li-
enquanto resultou com certeza uma coisa: o religioso se inter- gado a fantasias de morte por afogamento. Exigia que lhe
penetra aqui com o político; são inseparáveis: redentores do trouxessem veneno. Mas o desespero de Schreber em relação
mundo, são uma única pessoa. A ambição do poder é o núcleo às intenções de transformá-lo numa mulher não durou muito
de tudo. A paranóia é, no sentido literal da palavra, uma en- tempo. Pouco a pouco foi surgindo nele a convicção de que
fermidade do poder. Um estudo desta enfermidade, em todos justamente desta maneira seria capaz de garantir a existência
os seus aspectos, mostra a natureza do poder com uma inte- da humanidade. É que, devido a terríveis catástrofes, todos os
gridade e uma clareza que não se consegue alcançar de outra homens tinham sucumbido. Ele, o único que restava, como
maneira. Não devemos nos deixar ofuscar pelo fato de que, mulher seria capaz de trazer ao mundo uma nova linhagem.
num caso como o de Schreber, o doente não tenha realizado a Para ele, apenas Deus era aceitável como pai de seus futuros
monstruosa ambição que o consome. Outros conseguiram. Al- filhos. Ele precisava conquistar o amor de Deus. Unir-se a
guns destes puderam apagar habilmente as pegadas de sua as- Deus era uma grande honra; fazer-se cada vez mais mulher para
censão e manter oculto seu sistema perfeitamente desenvolvido. ele, arrumar-se sedutoramente para ele, atraí-lo com todos os
Alguns tiveram menos sorte, ou talvez não tenham tido todo requintes femininos já não parecia ser para ele, o barbudo ex-
o tempo necessário. Neste caso, como aliás em tudo, o êxito presidente do Senado, algo escandalizante ou degradante. Des-
depende exclusivamente de casualidades. A reconstrução destas sa maneira também seria possível fazer frente à conspiração
casualidades, simulando-se uma legitimidade, é o que chama- de Flechsig. Ganhava-se o favor de Deus; o Todo-poderoso,
mos de história. Para cada grande nome da história poderiam que se sentia cada vez mais atraído pela bonita fêmea Schre-
figurar, individualmente, outros cem. Tanto o talento como ber, caía numa certa dependência em relação a ela. Por estes
a maldade estão amplamente repartidos pela humanidade. Todos meios, que poderiam parecer chocantes, Schreber realmente
sentem apetite e estão, como reis, de pé sobre intermináveis conseguiu ligar Deus à sua própria pessoa. Não sem uma certa
campos de cadáveres de animais. Um exame consciencioso do resistência, Deus acabou se submetendo a este destino um
poder deve prescindir por completo do êxito como critério tanto desprezível. Constantemente ele torna a se afastar de
básico. Tanto suas propriedades como suas aberrações devem Schreber; por certo sua vontade seria a de se livrar inteira-
ser cuidadosamente reunidas e comparadas. Um doente men- mente dele. Mas o poder de atração de Schreber já se tornara
tal que, expulso, indefeso e desprezado, passou seus dias ve- grande demas. i
getando numa clínica, pode, pelos conhecimentos que propor- Encontramos declarações que se referem a este tema espa-
ciona, ser muito mais significativo do que Hitler ou Napoleão, lhadas por todo o texto das Memórias. A primeira vista talvez
e iluminar a humanidade a respeito de sua maldição e de seus esejatentado a considerar a idéia da transformação de Schre-
senhores. bernuma mul her como o núcleo mítico do seu delírio. Obvia-
se
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mente foi justamente este ponto que provocou o maior inte- tais? O que era que eles diziam quando falavam, o que era
resse por ele. Tentou-se reduzir este aspecto isolado, e depois realmente atacado por eles? Vale a pena aprofundar-se mais
a paranóia como um todo, a tendências homossexuais repri- um pouco neste processo. Schreber se defendeu com a maior
midas. Dificilmente seria possível cometer um erro maior. Tudo tenacidade dos seus inimigos. A descrição que ele oferece deles
pode ser causa de uma paranóia; o essencial porém é a estru- e de sua defesa é a mais completa que se possa imaginar. É pre-
tura e a população do delírio. Os fenômenos do poder no ciso destacá-la do contexto do mundo autocriado do seu "de-
delírio sempre têm um significado decisivo. Mesmo no caso lírio", como se costuma dizer segundo as velhas convicções, e
Schreber, no qual talvez haja muitos elementos favoráveis à transpô-la para a nossa linguagem mais simples. Infelizmente
citada interpretação, uma análise mais exata desse aspecto — não é possível impedir que o texto perca um pouco de sua
que não pretendemos fazer aqui — provocaria sérias dúvidas. peculiaridade.
Mas, mesmo se considerarmos fora de dúvida a tendência ho- A este propósito se deve citar em primeiro lugar sua
mossexual de Schreber, muito mais importante parece a utili- coerção para pensar, como ele próprio se exprime. Existe calma
zação específica que ela encontra no seu sistema. Schreber nele apenas quando fala em voz alta; então, tudo em torno
sempre considerou como centro do seu sistema o ataque contra dele fica em silêncio mortal, e ele tem a impressão de se mo-
seu intelecto. Todo o seu pensamento e sua ação tinham por vimentar entre cadáveres ambulantes. Todas as demais pessoas,
finalidade combater este ataque. Para desarmar Deus, ele pacientes ou enfermeiros, parecem ter perdido totalmente a
quis transformar-se em mulher: seu ser-fêmea era uma lisonja capacidade de falar, nem que seja apenas uma única palavra.
e uma submissão a Deus. Assim como os outros se ajoelhavam Assim que ele passa da fala para o silêncio, as vozes se anun-
diante do Todo-poderoso, ele próprio se ofereceu para o pra- ciam dentro dele e o obrigam a uma incansável atividade pen-
zer. Para atraí-lo para seu lado, para apoderar-se dele, sedu- sante.
ziu-o sob falsas aparências. E segura-o por todos os meios pos- A intenção delas é a de lhe roubarem o sono e o repouso.
síveis. Falam com ele de forma incessante; é impossível não ouvi-las
"Trata-se de um assunto que, além de não ter analogia ou ignorá-las. Ele fica entregue a tudo o que elas dizem e é
na experiência humana, não foi sequer previsto na própria obrigado a se preocupar profundamente com isso. As vozes
ordem universal. Quem, numa tal relação, gostaria de estender- têm métodos distintos que elas aplicam de forma alternada.
se por insustentáveis suposições para o futuro? Para mim, a Um dos métodos prediletos era a pergunta direta: "No que
única coisa segura é que jamais se conseguirá chegar a esta des- você está pensando agora?" Ele não tinha vontade de res-
truição do meu intelecto pretendida por Deus. Quanto a este ponder a esta pergunta. Mas elas respondiam por ele dizendo,
ponto tenho certeza absoluta há anos, e com isto afastei de por exemplo: "Ele deveria estar pensando na ordem univer-
mim o perigo principal que pareceu ameaçar-me durante o sal!" Ele se ressentia de tais respostas, qualificando-as de "fal-
primeiro ano da minha enfermidade." sificações de idéias". Não se contentavam de interrogá-lo ape-
Estas frases encontram-se no último capítulo das Memó- nas de forma inquisitorial, queriam também obrigá-lo a uma
rias. Com sua redação parece ter ocorrido um apaziguamento determinada ordem de idéias. Essas perguntas, que procura-
essencial em Schreber. O fato de ele ter terminado seu texto, vam desvendar seus segredos, provocavam sua oposição; quan-
de ter permitido que outras pessoas lessem o manuscrito, dei- to mais as respostas que seus pensamentos lhe impunham!
xando-se impressionar por ele, devolveu-lhe definitivamente Perguntas e ordens (ou indicações) eram igualmente uma in-
a fé no seu próprio intelecto. Restava-lhe apenas passar a um tervenção em sua liberdade pessoal. Como instrumentos do
contra-ataque, tornar seu sistema acessível ao mundo inteiro poder, ambas são bem conhecidas; como juiz, ele mesmo as
mediante a impressão de suas Memórias e, como sem dúvida tinha manipulado exaustivamente.
era sua esperança, convencê-lo das coisas em que ele acreditava. As provas que Schreber era obrigado a suportar eram va-
De que maneira se conduziu a luta contra o intelecto de riadas e imaginativas. Ele era interrogado, pensamentos lhe
Schreber? Que ele era atacado por inúmeros "raios" falantes, eram impostos, confeccionava-se um catecismo com suas pró-
já se sabe. No entanto, o que era concretamente que os raios prias frases e palavras, controlava-se cada um dos seus pensa-
inimigos queriam destruir em suas capacidades e certezas men- mentos e não se deixava nenhum deles despercebido, cada
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palavra era examinada para descobrir o que significava para
ele. Sua carência de segredos diante das vozes era completa. ensação pela iniqüidade contra ele praticada". Às frases come-
adas, "jogadas" dentro dos seus nervos, pertencem freqüen-
Tudo era revisto, tudo era exposto à luz. Ele era o objeto de ç
temente conjunções ou locuções adverbiais que expressam uma
um poder interessado na onisciência. Mas apesar de ter que relação de causalidade: "por que só", "por que então", "por
suportar tantas provações, ele nunca se deu por vencido. Uma que". "por que eu", "a não ser que". Como acontece com as
de suas formas de defesa era o exercício de sua própria onis- demais frases, ele é obrigado a completar estas sentenças, e
ciência. Ele provava a si mesmo quanto era bom o funciona-
dessa forma elas também exercem uma coerção sobre ele.
mento de sua memória: decorava poesias, contava em voz alta "Mas me forçam a meditar sobre muitas coisas pelas
em francês, enumerava todas as províncias russas e os depar- quais o ser humano normalmente passa sem prestar atenção,
tamentos da França.
Com a conservação do seu intelecto, ele se referia prin- e por isso contribuíram para aprofundar meu pensamento."
Schreber está plenamente de acordo com sua mania de
cipalmente à invulnerabilidade do conteúdo de sua memória; o ndamentação, que lhe dá muita alegria; ele encontra argu-
mais importante era a capacidade de manter incólumes as fu
mentos plausíveis para justificá-la. Somente o ato original da
palavras. Não existem ruídos que não sejam vozes; o mundo criação ele deixa para Deus. Todas as outras coisas que existem
está repleto de palavras. Trens, pássaros e máquinas falam. no mundo ele as ata com uma corrente de motivos forjada
Quando ele se cala, as palavras se originam imediatamente nos por ele mesmo, e assim se apropria delas.
outros. Entre as palavras não existe coisa alguma. O descanso, Mas a mania de fundamentação nem sempre é tão razoá-
ao qual ele se refere, que ele tanto deseja, nada mais seria além vel. Schreber se encontra com um homem que já viu freqüen-
de uma liberdade de palavras. Mas esta liberdade não existe em temente, e o reconhece à primeira vista como o "Sr. Schneí-
lugar algum. Qualquer coisa que acontece lhe é comunicada der". É um homem que não dissimula; inofensivo, ele é exata-
imediatamente por palavras. Tanto os raios mutiladores como mente como todos o conhecem. Para Schreber, porém, este
os benéficos têm capacidade para falar e, como ele, são obri- simples ato de reconhecimento não é suficiente. Ele queria
gados a se utilizar dessa capacidade. "Não se esqueça de que que houvesse algo mais por trás disso, e sente dificuldade em
os raios devem falar!" É impossível exagerar o significado das se conformar com o fato de que não há mais coisa alguma
palavras para o paranóico. Estão por todos os lados como inse- a descobrir no Sr. Schneider. Schreber está acostumado a
tos nocivos, sempre em estado de alerta. Elas se reúnem numa desmascarar, onde não existe nada a ser desmascarado, fal-
ordem universal que não exclui coisa alguma. A tendência mais ta-lhe chão debaixo dos pés. O ato do desmascaramento tem
extrema da paranóia talvez seja a de apreender por completo o para o paranóico — e não apenas para ele — um significado
mundo pelas palavras, como se a linguagem fosse um punho fundamental. Disto também deriva a mania da causalidade;
fechado e o mundo estivesse dentro dele. inicialmente, todos os motivos eram procurados nas pessoas.
Trata-se de um punho fechado que nunca mais torna a É oportuno examinarmos aqui com maiores detalhes o des-
se abrir. Mas como consegue fechar-se? Aqui é necessário Mascaramento, que já foi mencionado em outros capítulos.
recorrer a uma mania de causalidade, que se coloca como fim A tendência para descobrir repentinamente entre os muitos
em si mesma e que neste grau é encontrada apenas nos filóso- rostos desconhecidos, talvez na rua, um que nos parece conhe-
fos. Nada acontece sem que haja uma causa, basta perguntar-se cido, certamente é familiar a todos os seres humanos. E fre-
por ela. Sempre se encontra uma causa. Tudo o que é desco- qüentemente acontece um equívoco; o suposto conhecido se
nhecido acaba reduzindo-se a algo conhecido. O estranho que aproxima ou nós mesmos vamos em sua direção: é alguém que
se aproxima é desmascarado como propriedade secreta. Por jamais vimos em toda a nossa vida. Ninguém se preocupa
trás da máscara do novo existe sempre algo de velho; basta muito com este equívoco. Qualquer traço casualmente pare-
agarrar sem medo esta máscara e arrancá-la. Fundamentar se cido, a postura da cabeça, a maneira de caminhar, os cabelos,
torna uma paixão que é exercitada a respeito de tudo. Schre- tudo foi motivo de confusão e também serve para eliminá-la.
ber vê claramente este aspecto da sua coerção para pensar. Mas existem períodos nos quais estas confusões se acumulam.
Enquanto se lamenta amargamente dos fenômenos antes rela- Urna pessoa bem determinada aparece-nos por toda parte.
tados, vê nesta mania de fundamentação "uma espécie de com- Ela está parada diante de locais onde queremos entrar, ou em
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esquinas movimentadas. Aparece várias vezes por dia; natural- final nestes acontecimentos breves e animados. "Desmascararl",
mente trata-se de alguém que nos preocupa, de uma pessoa ordenamos, e cada qual aparece como realmente é. A partir
que amamos ou, com mais freqüência, que odiamos. Nós deste momento é proibido continuar com as transformações.
sabemos que esta pessoa mudou de cidade, que está do outro A representação terminou. As máscaras foram arrancadas. Este
lado do oceano; mesmo assim acreditamos reconhecê-la. O erro processo de retrocesso da desconversão quase nunca é inteira-
se repete e nós perseveramos nele. É evidente que queremos mente puro porque, de maneira geral, está sempre tingido por
encontrar essa pessoa através dos outros rostos. Vemos esses expectativas de hostilidade. As máscaras quiseram enganar o
rostos como uma ilusão que nos oculta o verdadeiro. Muitos parano'ico. Sua metamorfose não foi desinteressada. Sobretudo
podem prestar-se a esta ilusão; atrás de todos eles supõe-se importava-lhes o segredo. No que elas se converteram, o que
estar a pessoa que se procura. Existe uma urgência neste pro- tinham de representar é bem mais secundário; o principal era
cesso que não nos dá sossego: cem rostos são desmascarados que em caso algum fossem reconhecíveis. A contra-ação do
para que atrás deles apareça o :único que importa. Se tivés- ameaçado ao arrancar as máscaras é tão brutal e odiosa, tão
semos de assinalar a principal diferença entre este e os outros violenta e impressionante, que com demasiada facilidade se
cem, teríamos de dizer: os outros cem são desconhecidos e esquece a metamorfose precedente.
este nos é familiar. É como se somente pudéssemos reconhe- As Memórias de Schreber nos levam, neste sentido, muito
cer o familiar. Mas, como ele se esconde, somos forçados a perto do núcleo do assunto. Schreber se recorda da primeira
procurá-lo no desconhecido. época, quando tudo ainda era fluido. No primeiro ano de sua
No paranóico este fenômeno se concentra e se torna mais enfermidade, na "época sagrada", passou uma ou duas sema-
agudo. O paranóico sofre de uma atrofia da metamorfose que nas numa pequena clínica particular, que era definida pelas
parte de sua própria pessoa — absolutamente imutável -- - e vozes como "cozinha do diabo". Foi, como ele mesmo diz, o
que a partir deste ponto recobre todo o restante do mundo. "tempo do mais louco excesso de prodígios". O que ele viveu
Inclusive, ele costuma ver coisas que realmente são distintas ali de metamorfoses e de desmascaramentos, muito antes de o
como se fossem a mesma coisa. Ele torna a reencontrar seu seu delírio enrijecer e assentar, é a melhor ilustração de tudo
inimigo nas mais diferentes figuras. Em qualquer lugar onde o que foi exposto acima.
ele arranque uma máscara, sempre aparece seu inimigo. Por "Durante o dia, em geral eu ficava no salão comum da
causa do segredo que supõe existir por trás de tudo, por causa clínica, onde havia um perpétuo entrar e sair dos demais supos-
do desmascaramento, tudo se torna máscara para ele. Ele não tos pacientes do estabelecimento. Do meu controle especial
se deixa enganar; ele é quem percebe isso tudo; o tudo é parecia estar encarregado um guarda no qual, graças a uma
apenas um. Com a crescente rigidez do seu sistema, o mundo semelhança talvez fortuita, pensei reconhecer o ordenança da
vai ficando cada vez mais pobre em personagens reconhecidos; Audiência Territorial, que durante minha atividade profissio-
sobra apenas o que pertence ao drama do seu delírio. Tudo é nal em Dresden costumava trazer as atas para a minha casa.
sondável da mesma maneira e tudo é sondado até o final. Além do mais ele tinha o costume de vestir, de vez em quando,
Finalmente nada mais resta a não ser ele próprio e o que ele minhas próprias roupas. Como suposto diretor médico da insti-
domina. tuição aparecia às vezes — geralmente durante as horas da
No seu nível mais profundo trata-se aqui do inverso da tarde — um cavalheiro que por sua vez me lembrava o Dr.
metamorfose. O processo do desmascaramento também poderia O., que eu tinha consultado em Dresden... No jardim do
ser definido como desconversão. Algo é reconduzido, de manei- estabelecimento pisei apenas uma única vez para dar um pas-
ra forçada, a si mesmo, a uma determinada posição, a uma seio. Na ocasião vi algumas senhoras, entre as quais a esposa
determinada postura que se deseja, que se considera como a do pastor W. de Fr. e minha própria mãe, bem como alguns
sua própria postura autêntica. Começa se como espectador; senhores, entre os quais o procurador judicial K., de Dresden;
parte-se da observação dos demais que se transformam uns em este porém com a cabeça aumentada de maneira disforme. Eu
outros. É possível que se assista durante algum tempo a esta Poderia ter considerado o aparecimento de tais semelhanças
mascarada; mas não a aprovamos, não encontramos prazer como compreensível, caso se tratasse de dois ou três casos;
nela. Repentinamente dizemos: "Basta1", e colocamos um ponto mas eram quase todos os pacientes da instituição, ou seja,
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várias dúzias de pessoas, que usavam as fisionomias de perso-
nagens que eu tinha conhecido". Como pacientes via "puras
figuras fantásticas, entre elas alguns personagens chamuscados,
usando roupas de linho... Eles apareciam na entrada do salão,
velados, um após o outro, sem fazer o menor ruído e sem,
F
s
Neste relato existem coisas que chamam bastante a aten-
Olo, Schreber vê mais pessoas do que as que realmente pode-
ria m existir; todos são levados a um curral. Com elas ele se
ente, como é sugerido pela escolha de suas palavras, rebaixado
ao nível de um animal; é o que nele mais se aproxima de
segundo parecia, se notarem. Constatei diversas vezes que vivência de massa. Mas nem no "curral" dos pacientes
alguns deles, durante sua permanência no salão, trocavam suas Schreber chega a se abrir de verdade. Ele observa atentamente
cabeças, ou seja, sem abandonar o salão, repentinamente pas- jogo das metamorfoses, com olho crítico certamente, mas
seavam com outra cabeça, :Ião com hostilidade. Até os alimentos e as peças de roupa se
c
"O número de pacientes que avistei no curral" — era transformam. O que mais o preocupa são os seus reconheci-
assim que ele designava um pátio onde ia para respirar ar
mentos. Cada um que aparece na sua frente é, na realidade,
puro — "e no salão, de maneira simultânea ou sucessiva, não
alguma .outra pessoa que ele antes conhecia bem. Ele se encar-
tinha qualquer relação com o tamanho dos recintos da insti-
tuição. Segundo minha convicção, era impossível que as qua- rega de que nada seja verdadeiramente desconhecido. Mas todos
estes desmascaramentos têm ainda um caráter relativamente
renta ou cinqüenta pessoas que eram levadas comigo ao curral
e que, ao ouvirem o sinal de retorno, se apertavam outra vez pacato. Com ódio ele se refere apenas ao enfermeiro-chefe,
numa passagem que não citamos aqui. Ele reconhece muitas
em direção à porta da casa pudessem todas encontrar aloja-
mento ali para a noite. .. O andar térreo, na maior parte das pessoas, todas bastante diversificadas; ainda não aparece uma
vezes, pululava de figuras humanas." visão estreita e exclusiva. Em vez de se desmascararem, as
Entre as figuras do curral ele se recorda de um primo de pessoas trocam de cabeças; seria difícil conceber-se uma forma
sua esposa, que tinha se suicidado com um tiro, em 1887, e mais divertida e generosa de desmascaramento.
o promotor geral B., que sempre assumia uma atitude devota, Mas as aventuras de Schreber poucas vezes tinham este
como se estivesse rezando, permanecendo imóvel nesta posi- caráter malicioso e libertador. Um tipo muito diferente de
ção. Outras pessoas que ele reconhece são: um conselheiro visões que ele teve freqüentemente em sua "época sagrada"
privado, um presidente do Senado, outro conselheiro da conduz, segundo acredito, diretamente à situação original da
Audiência Territorial, um advogado de Leipzig que tinha sido paranóia.
seu amigo na juventude, seu sobrinho Fritz e uma conhecida A sensação de estar cercado por uma malta de inimigos,
de um verão passado em Warnemünde. Da janela de onde se que estão todos interessados no que se faz, é um sentimento
avistava o caminho de acesso à instituição, reconheceu certa básico da paranóia. Ela se expressa da maneira mais pura nas
vez a figura do seu sogro. visões de olhos: vêem-se olhos por toda parte, por todos os
"Aconteceu repetidas vezes que eu vi uma quantidade de lados; estes olhos não se interessam por qualquer outra coisa
pessoas — certa ocasião inclusive senhoras — que depois de além da nossa pessoa, e fazem isto com um empenho por
terem cruzado o salão entravam nos aposentos ao lado, de demais ameaçador. As criaturas às quais pertencem esses olhos
onde devem depois ter desaparecido. Diversas vezes ouvi têm a intenção de vingar-se de nós. Durante muito tempo
também um estertor particular que estava relacionado com a fizemos com que elas sentissem o nosso poder; se forem
dissolução dos 'homens fugazmente esboçados'. animais, eles foram caçados da maneira mais implacável, estão
"Não só as figuras humanas mas também os objetos inani- ameaçados de extinção e conseqüentemente, de maneira inespe-
mados eram motivo de prodígio. Por mais cético que eu agora rada, levantam-se agora contra nós. Esta situação original da
procure ser ao examinar minhas lembranças, não posso apagar paranóia é encontrada de forma conclusiva e inequívoca nas
de minha memória a impressão que me ficou de certos fenô- lendas de caça de muitos povos.
menos como, por exemplo, a transformação das maneiras de Nem sempre esses animais conservam a figura de presa
vestir dos seres humanos que eu via e do próprio conteúdo do que têm para o homem. Convertem-se em criaturas mais peri-
meu prato durante as refeições (assim um assado de porco se gosas que o homem sempre temeu. Aproximando-se dele,
transformava em assado de vitela, ou vice-versa)." enchendo seus aposentos, ocupando sua cama, aumentam-lhe o
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terror ao máximo. O próprio Schreber se sentia acossado por estrutura da paranóia não poderia ser captado de forma mais
ursos à noite. a.
Freqüentemente abandonava a cama e sentava-se no assoa- A relação complicada e ambígua de Schreber para com
lho. As mãos, que ele apoiava no chão atrás das costas, eram- Deus, a "política de almas" da qual ele se sentia vítima, não
lhe erguidas a uma altura considerável por figuras com apa- o impediu de experimentar a onipotência, por assim dizer de
rência de ursos - - ursos negros. Ele via outros ursos negros, fora e unitariamente, como esplendor. Durante todos os anos
maiores e menores, sentados ao redor dele, todos com olhos de sua enfermidade, ele teve esta vivência apenas durante
ardentes. Os lençóis de sua cama se transformavam em "ursos pouquíssimos dias e noites consecutivos; ele tinha plena cons-
brancos". Ao anoitecer — ainda estava desperto — apareciam ciência do aspecto raro e precioso deste acontecimento.
gatos com olhos incandescentes sobre as árvores do jardim da Deus apareceu numa única noite. A brilhante imagem dos
instituição. seus raios — enquanto Schreber estava deitado na cama acor-
Mas a coisa não parou nessas maltas animais. O principal dado — se tornou visível ao seu olhar espiritual. Ao mesmo
inimigo de Schreber, o psiquiatra Flechsig, tinha uma maneira tempo, ouviu a linguagem divina. Não como um tênue sussur-
particularmente pérfida e perigosa de formar maltas celestiais ro; sua potente voz de baixo ressoou diante das janelas do
contra ele. Tratava-se de um fenômeno peculiar que Schreber quarto.
chamava de divisão de almas. No dia seguinte Schreber viu Deus com seus olhos físi-
A alma de Flechsig se subdividiu até ocupar toda a abó- cos. Era o sol, mas não como aparece normalmente e sim
bada celeste com suas partes, de forma que os raios divinos banhado por um mar de raios de fulgor prateado, que cobria
encontravam resistência por todos os lados. Toda a abóbada uma sexta ou oitava parte do céu. A visão tinha uma magni-
celeste parecia estar recoberta de nervos que ofereciam um ficência e uma grandiosidade tamanhas que ele teve medo de
obstáculo mecânico aos raios divinos; era impossível ultra- continuar olhando, e procurava afastar o olhar da aparição. E
passar esses nervos. Eles se assemelhavam a uma fortaleza este sol radiante falou com ele.
sitiada, protegida contra o ataque do inimigo por muralhas Durante certo tempo, Schreber visualizou não apenas em
e fossos. A alma de Flechsig tinha se subdividido para este Deus mas também em si mesmo esse esplendor; não havia
fim num grande número de partes; durante algum tempo eram nada de estranho nisso, considerando-se sua importância e sua
de quarenta a sessenta partes, entre as quais muitas bastante estreita relação com Deus. "Freqüentemente, e como conse-
pequenas. qüência de uma afluência em massa de raios, minha cabeça
Parece que depois também outras "almas provadas" parecia estar rodeada por um halo de luz, semelhante à auréo-
começaram a se dividir segundo o exemplo de Flechsig; elas la de Cristo tal como é representada nos quadros, só que incom-
se faziam cada vez mais numerosas e, como é de esperar de paravelmente mais rica e brilhante: a assim chamada coroa
verdadeiras maltas, já viviam apenas para as emboscadas e os radiosa."
assaltos. Grande parte delas tinha se preocupado apenas com Mas este aspecto sagrado do poder foi descrito por
realizar movimentos de envolvimento, manobra cujo objetivo Schreber de um modo ainda mais intenso. Alcançou a pleni-
consistia em atacar por trás os raios divinos que avançavam tude no seu período de imobilidade, que abordaremos agora.
ingenuamente e forçá-los à rendição. O grande número destas A vida exterior que levava nesta época era sobremaneira
"partes de almas provadas" finalmente chegou a ser incômodo monótona. Duas vezes por dia dava um passeio pelo jardim.
até mesmo para a onipotência de Deus. Depois que Schreber Fora isso, permanecia imóvel durante o dia todo, sentado na
já tinha conseguido atrair uma boa parte delas, foi organizada cadeira diante de sua mesa, sem ir sequer até a janela. Também
certo dia uma grande razzia de almas pela onipotência de Deus. no jardim, ele preferia permanecer sentado sempre no mesmo
É possível que na sua "divisão de almas" Schreber tenha lugar. Ele considerava esta passividade absoluta como um
visualizado a multiplicação de células por divisão, que certa- compromisso religioso.
mente lhe era conhecida. O emprego dos montões de maltas As vozes é que lhe tinham provocado esta idéia. "Nem
celestes assim resultantes é um dos aspectos mais caracterís- o menor movimento", tinham-lhe dito elas em várias ocasiões.
ticos do seu delírio. O significado das maltas inimigas na Para si mesmo ele explicava este pedido, achando que Deus
508 509
não sabia lidar com as pessoas vivas, uma vez que somente
pereliçar raios divinos, ele o compartilha com inúmeras cultu-
estava acostumado a lidar com cadáveres. E assim lhe foi apre-
ras espalhadas pelo mundo inteiro, nas quais se cristalizou
sentada a monstruosa exigência de se comportar constante- urna concepção sagrada do poder. Ele próprio se considera
mente como um cadáver.
Esta imobilidade era uma questão de autoconservação, comoo um recipiente no qual vai se juntando, pouco a pouco,
toda a essência divina. Qualquer movimento, por menor que
mas também uma obrigação em relação a Deus: servia para seja , pode ter como conseqüência o derramamento de parte
libertá-lo da situação de aperto na qual tinha sido colocado dela. Por este motivo Schreber deve permanecer imóvel. O
pelas "almas provadas". "Eu tinha chegado à convicção de que poderoso retém o poder do qual está investido, seja porque
as perdas de raios aumentavam quando eu mesmo me deslo- o sente como substância impessoal que poderia acabar, seja
cava com freqüência; também quando passava uma corrente porque uma instância superior espera dele este comportamento
de ar pelo meu quarto. Considerando-se o temor sagrado que
aberrante, como uma espécie de ato de veneração. Ele irá ficar
na época eu ainda sentia em relação aos raios divinos e a enrijecido lentamente na postura que lhe parecer mais favorável
incerteza de que realmente existisse uma eternidade, ou de que para a conservação de sua preciosa substância; todo e qualquer
os raios pudessem acabar de repente, considerei como meu desvio desta postura é perigoso e deve enchê-lo de preocupa-
dever opor-me a toda a dilapidação de raios no que depen-
ção. Evitando cuidadosamente estes desvios, ele garante sua
desse de mim." Era mais fácil atrair as almas provadas e fazer existência. Algumas destas posturas em sua uniformidade
com que elas se dissolvessem completamente em seu corpo, através de séculos chegaram a ser modelos. A estrutura polí-
mantendo-se neste estado permanente de repouso. Somente tica de muitos povos tem seu núcleo na postura rígida e exata-
assim era possível restabelecer a autocracia de Deus no céu. mente prescrita de um único indivíduo.
De maneira que ele acabou impondo a si mesmo o incrível Também Schreber cuidou de um povo, que apesar de não
sacrifício de privar-se durante semanas e meses de todo e considerá-lo como rei, achava que ele era uma espécie de
qualquer movimento físico. Já que a dissolução das almas patrono nacional. Em algum corpo celeste distante tinha-se
provadas ocorria com maior probabilidade durante o sono, de realizado uma tentativa de criação de uma nova humanidade
noite ele nem sequer ousava mudar de posição na cama. de "espírito schreberista". Estes homens novos eram, fisica-
Esta rigidez de Schreber durante um período de semanas mente, de porte muito menor do que o dos nossos homens
e meses é uma das coisas mais surpreendentes que ele conta. terrestres. Mas eles já tinham alcançado um nível cultural
Sua explicação para isso é dupla. Que pelo amor de Deus ele considerável e criavam também, proporcionalmente à sua menor
fosse obrigado a permanecer imóvel como um cadáver, soa aos estatura física, uma espécie bovina menor. O próprio Schreber
nossos ouvidos ainda mais estranho do que é. E isto se deve convertera-se, como "patrono nacional", num objeto de vene-
principalmente a nossa atitude puritana em relação ao cadáver. ração divina, de maneira que sua postura física seria de algum
Nossos costumes exigem que um cadáver seja afastado rapi- significado para sua fé.
damente. Não se faz muita coisa com ele; sabemos que apo- A natureza de determinada postura, que deve ser enten-
drece rapidamente e de forma alguma nos sentimos compeli- dida de maneira muito concreta e física, aparece aqui com
dos a fazer qualquer coisa para evitar isso. Nós o arrumamos grande clareza. Estes homens não foram apenas criados da
apenas um pouco, o exibimos durante pouco tempo e tornamos substância de Schreber: da sua postura também depende a fé
impossível qualquer acesso posterior a ele. Por mais faustosa deles.
que seja uma cerimônia funerária, o cadáver mal aparece; tra- Conforme já foi visto, o intelecto de Schreber teve de
ta-se da celebração do seu ocultamento e de sua subtração. correr os perigos mais refinados durante o transcorrer de sua
Para compreender Schreber é necessário pensar nas múmias enfermidade. Mas também todas as intervenções dirigidas
dos egípcios, entre os quais o cadáver é conservado, cuidado contra seu corpo escapam de qualquer descrição. Quase nenhu-
e admirado. Por amor a Deus, Schreber se comportou durante ma parte do seu corpo ficou a salvo. Os raios não se esque-
meses como uma múmia, não como um cadáver; sua própria ciam de coisa alguma, nada lhes passava despercebido; literal-
definição neste caso não é totalmente correta. mente, sempre chegava a vez de cada uma das partes do seu
O segundo motivo de sua imobilidade, o temor de des- corpo. Os efeitos de suas intervenções apareciam de maneira
510 511
tão repentina e surpreendente que somente podiam ser consi tempo em alguma ocupação; quando andava procuravam fazer
derados como milagres. com que ele se deitasse, e quando estava deitado procuravam
Havia por um lado os fenômenos vinculados com a inten- brigá-lo a levantar-se novamente. "Os raios não pareciam
ção de transformá-lo em mulher. Estes ele os aceitou e não o
compreender que um homem que existe concretamente precisa
opôs qualquer resistência em relação a eles. Mas, além disso, estar em algum lugar."
é quase inacreditável tudo o que lhe aconteceu. Colocaram Destes fenômenos talvez valha a pena sublinhar uma carac-
um verme nos seus pulmões. Os ossos de suas costelas foram rística que todos têm em comum: trata-se de uma penetra-
te
temporariamente esmagados. No lugar do seu estômago sadio, O princípio físico da impenetrabilidade dos corpos aqui
ção.
aquele neurologista vienense enxertou-lhe no ventre um "estô- ão tem vigência. Da mesma forma que Schreber quer difun-
n
mago judeu" de má qualidade. Os destinos de seu estômago dir-se por todos os lugares, penetrando em linha reta até o
eram, por si mesmos, muito variáveis. Freqüentemente foi obri- seio da Terra, assim também tudo se difunde em linha reta
gado a viver totalmente sem estômago; chegou a explicar ao
por meio dele, realizando suas travessuras com ele e dentro
enfermeiro que não podia se alimentar pois não possuía estô-
mago. Quando apesar disto comia, o alimento caía em sua dele. Freqüentemente, ele fala a seu próprio respeito como
cavidade abdominal e nas coxas. Porém ele acabou se acostu- se fosse um corpo celeste; no entanto, nem mesmo o seu pró-
mando a esse estado e mais tarde passou a comer com entu- prio corpo humano lhe está assegurado. O tempo durante o
siasmo, sem qualquer problema, apesar de não possuir estô- qual ele se difunde, durante o qual anuncia suas pretensões,
mago. O esôfago e os intestinos muitas vezes estavam rompi- parece ser também o tempo propriamente dito de sua pene-
dos ou tinham desaparecido. Mais de uma vez engoliu, enquan- trabilidade. Tamanho e perseguição estão intimamente ligados
to comia, partes de sua laringe. nele, ambos se manifestam em seu corpo.
Por meio de "homenzinhos" que lhe foram colocados Entretanto, uma vez que apesar de todos os ataques ele
nos pés, tentou-se bombear para fora sua medula espinal, de continuava vivendo, passou a ter a convicção de que os raios
maneira que durante seus passeios pelo jardim ela se evapo- também o curavam. Todas as substâncias impuras do seu corpo
rasse sob a forma de pequenas nuvens através de sua boca. eram reabsorvidas pelos raios. Fora-lhe permitido comer mes-
Freqüentemente ele tinha a sensação de que a parte superior mo sem estômago, com entusiasmo e sem problemas. Por meio
de sua caixa craniana tinha ficado mais fina. Quando tocava dos raios formaram-se os germes das doenças dentro dele,
piano ou escrevia, tentavam paralisar-lhe os dedos. Algumas mas pelos mesmos raios eles eram eliminados.
almas assumiam a forma de minúsculas figuras humanas, com Desta forma concebe-se a suspeita de que todos os ata-
poucos milímetros de altura, e se divertiam à custa dele nas ques contra seu corpo tinham por finalidade mostrar sua in-
mais diversas partes do seu corpo, algumas vezes no interior, vulnerabilidade. Seu corpo devia demonstrar-lhe o quanto ele
outras vezes sobre a superfície exterior. Algumas destas figu- era capaz de resistir. Quanto mais prejudicado e abalado esti-
ras se ocupavam em abrir e fechar-lhe os olhos, ou ficavam vesse, tanto mais firme acabaria ficando.
sobre seus olhos, entre as sobrancelhas, de onde, usando fios Schreber começou a duvidar de que fosse realmente mor-
finíssimos como teias de aranha, puxavam suas pálpebras para tal. O que era o veneno mais potente comparado com os tor-
cima e para baixo. Nesta época sempre havia um grande núme- mentos que já tinha suportado? Se caísse na água e se afogas-
ro de "homenzinhos" que se reuniam sobre sua cabeça. Eles se, provavelmente lhe fariam uma reanimação e lhe estimula-
passeavam por toda a cabeça, correndo curiosos para todos os riam a atividade cardíaca e a circulação do sangue. Se metesse
lugares onde pudessem contemplar novos estragos. Chegavam uma bala de revólver na própria cabeça, os órgãos internos e
até mesmo a participar de suas refeições, guardando uma minús- os ossos destruídos poderiam ser reconstruídos outra vez. Afi-
cula porção dos alimentos que ele saboreava. nal de contas, ele tinha vivido durante um longo tempo sem
Roendo de forma dolorosa os ossos da região dos seus órgãos de importância vital. E tudo voltara a crescer dentro
calcanhares e do seu traseiro, procuravam tornar-lhe impossí- dele. Tampouco as enfermidades naturais poderiam chegar a
vel toda uma série de coisas: caminhar, ficar de pé, sentar-se ser perigosas para ele. Depois de muitos tormentos dolorosos
e deitar-se. Nunca permitiam que ele permanecesse muito e de inúmeras dúvidas, aquele intenso desejo de invulnerabi-
512 513
lidade tinha se transformado para ele numa conquista indis-
cutível.
No decorrer deste ensaio demonstramos como o desejo
de invulnerabilidade e a mania de sobreviver confluem. Tam-
bém neste sentido o paranóico mostra ser a réplica exata do
poderoso. A diferença entre ambos é apenas sua situação no
mundo exterior. Em sua estrutura interna, eles são a mesma
coisa. É possível que se considere o paranóico mais impressio-
nante, porque ele se basta a si mesmo, e não se deixa comover EPÍLOGO
pelo fracasso exterior. A opinião do mundo não vale nada
para ele, seu delírio se ergue sozinho contra toda a humanidade.
"Tudo o que ocorre", diz Schreber, "refere-se a mim. Eu
me converti para Deus no homem absoluto ou no único ho-
mem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado
tudo o que ocorre e o qual por conseguinte, a partir do seu
próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas
a si mesmo."
A idéia de que todos os demais seres humanos teriam su-
cumbido, que efetivamente ele era o único homem e não ape-
nas o único que importava, o dominou, conforme se sabe,
durante vários anos. Somente pouco a pouco é que ele foi
cedendo a uma opinião mais mitigada. Do único homem vivo,
ele passou a ser o único homem que contava. Não se pode re-
chaçar a suposição de que por trás de cada paranóia, como por
trás de cada poder, existe a mesma tendência profunda: o
desejo de eliminar os demais do caminho para ser o único ou,
numa forma mais atenuada e mais freqüentemente admitida,
o desejo de servir-se dos demais para que com a ajuda deles
se chegue a ser o único.

514
A dissolução do sobrevivente

Depois de nos termos ocupado demoradamente de um delírio


paranóico que encontrou um único adepto, justamente o seu
criador, vale a pena refletir a respeito do que aprendemos sobre
o poder. Porque cada caso isolado, por mais profundos que
sejam os esclarecimentos que oferece, deixa também uma dú-
vida não menos profunda. Quanto mais se chega a conhecer
os detalhes de cada caso, tanto mais se toma consciência de
seu caráter único. De repente nos surpreendemos acalentando
a esperança de que seja assim somente desta vez, e de que em
todos os demais casos tudo seja diferente. Isto é válido princi-
palmente para os casos de doentes mentais. O inabalável or-
gulho do homem se aferra ao fato de que estes casos não têm
conseqüências externas. Mesmo que fosse possível demonstrar
que cada idéia na cabeça de um Schreber coincide com a de
um temido detentor de poder, sempre se conservaria a espe-
rança de que em alguma parte eles sejam fundamentalmente di-
ferentes. O respeito em relação aos "grandes" deste mundo é
algo difícil de ser dissolvido; e é incomensurável a necessi-
dade de veneração por parte do homem.
Mas, felizmente, nossa investigação não se limitou apenas
a Schreber. Por mais detalhada que ela possa ter parecido para
muitos, vários assuntos foram apenas mencionados e outros,
que seriam importantes, nem chegaram a ser abordados. Mes-
mo assim não se poderia censurar o leitor se ele agora, no final
deste livro, já quisesse saber o que é considerado válido e
garantido.
É fácil verificar por qual das quatro maltas está marcado
o nosso tempo. O poder das grandes religiões de lamentação
está se aproximando do fim. Elas foram sufocadas, e pouco a
pouco se asfixiam na multiplicação. Na produção moderna o
velho conteúdo da malta de multiplicação conheceu uma esca-
lada tão impressionante que ao seu lado desaparecem todos
os demais conteúdos de nossa vida. A produção ocorre aqui,
nesta vida terrena. Sua rapidez e sua multiplicidade incomen-
surável não admitem um instante de repouso e de reflexão.
As guerras mais terríveis não a interromperam. Em todos os
campos inimigos, seja qual for sua estrutura, ela é igualmente

517
ativa. Se existe uma fé à qual aderem um depois do outro
todos os povos mais importantes da Terra, essa é a fé na pro-
dução, o furor moderno da multiplicação. Te rcebe-se que a tendência à multiplicação se tornou tão forte
que ultrapassou a tendência à guerra; esta parece ser apenas
algo que molesta, que atrapalha. A guerra, como meio de mul-
O aumento da produção tem como conseqüência que se tiplicação rápida, esgotou-se num estalo de caráter arcaico na
deseje um maior número de homens. Quanto mais se produz, Alemanha do nacional-socialismo e, espera-se, liquidou-se para
mais consumidores parecem necessários. A venda em si, se es- sempre.
tivesse inteiramente submetida à sua própria lei, procuraria Todos os países se mostram atualmente inclinados a pro-
alcançar todos os homens. Nisto ela se assemelha, se bem que teger melhor sua produção do que seus homens. Nada se jus-
apenas superficialmente, às religiões universais, que procuram tifica mais, nada tem mais assegurada a aprovação geral. Ainda
conquistar todas as almas. Todos os homens deveriam chegar neste nosso século serão produzidos mais bens do que os ne-
a uma espécie de igualdade ideal, ou seja, ser todos compra- cessários. Em lugar das guerras irão se firmar outros sistemas de
dores leais e bem-dispostos. Mas isto não bastaria, pois uma massas duplas. A experiência parlamentar demonstra que é pos-
vez que todos tivessem sido alcançados e todos tivessem com- sível excluir a morte da engrenagem das duas massas. Um rodí-
prado, a produção iria querer aumentar ainda mais. Sua se- zio pacífico e regulado na alternância do poder poderia ser esta-
gunda e mais profunda tendência dirige-se portanto a um au- belecido também entre as nações. O esporte como feito de mas-
mento do número de homens. A produção necessita de mais sa substituía, já em Roma, uma grande parte da guerra. Atual-
homens: através da multiplicação dos objetos retorna-se ao mente ele está em vias de readquirir — mas desta vez em es-
sentido original de toda a multiplicação, ou seja, à multiplica- cala mundial — a mesma importância. A guerra certamente irá
ção dos próprios homens. extinguir-se e o seu fím pode ser previsto para muito breve;
Em sua essência mais íntima a produção é pacífica. As apenas esqueceu-se de levar em consideração o sobrevivente.
diminuições causadas pela guerra e pela destruição lhe são Mas, em tudo isso, o que restou nas religiões de lamenta-
prejudiciais. Nisto o capitalismo e o socialismo não se diferen- ção? Nos incompreensíveis extremos de aniquilação e de pro-
ciam: são formas gêmeas em luta de uma mesma crença. A 'dução que caracterizam a primeira metade deste século, nesta
menina dos olhos de ambos é a produção. Ela se tornou um cegueira duplamente inexorável que atua ora numa ora noutra
assunto de coração em medida igual para ambos. Sua rivali- direção, as religiões de lamentação, na medida em que se con-
dade contribuiu para o êxito frenético da multiplicação. As servaram como organizações, oferecem a imagem do mais total
duas formas se parecem cada vez mais uma com a outra. desamparo. Titubeantes ou solícitas, elas dão, se bem que com
Nota-se nelas uma espécie de respeito mútuo sempre crescente. algumas exceções, suas bênçãos a tudo o que acontece.
Este se deve quase exclusivamente ao êxito de ambas na pro- Apesar disso, sua herança é bem maior do que se poderia
dução. Já não é verdade que uma forma queira destruir a pensar. A imagem desse Um, cuja morte os cristãos lamentam
outra; elas querem, isto sim, superar-se. há quase dois mil anos, penetrou na consciência de toda a
Existem atualmente vários centros enormes de multipli- humanidade, É um moribundo e não deve morrer. Com a
cação, muito eficientes e em rápida expansão. Eles estão re- secularização da Terra sua divindade perdeu o significado.
partidos por diversos idiomas e culturas; nenhum é suficien- Querendo-se ou não, Ele permaneceu como o ser humano sin-
temente forte para apropriar-se do poder. Nenhum ousa gular, sofredor e agonizante. Seus antecedentes divinos lhe
enfrentar, sozinho, os demais. Uma tendência à formação de conferiram dentro dessa humanidade terrena uma espécie de
enormes massas duplas salta aos olhos. Tomam como nome imortalidade histórica. Ela o fortaleceu e também fortaleceu
setores inteiros do mundo, Oriente e Ocidente. Englobam cada um que se vê nele. Não existe um único perseguido,
tantas coisas que é cada vez menos o que permanece fora de- sejam quais forem os motivos dos seus padecimentos, que em
las; o que fica de fora parece tornar-se impotente. A !--ígida alguma parte de sua alma não se veja como o Cristo. Inimigos
formação destas massas duplas, sua fascinação recíproca e o fato mortais, mesmo quando lutam por uma causa má e desumana,
de estarem armadas até os dentes e, brevemente, até a Lua des- assim que as coisas pioram sentem exatamente o mesmo. A
pertaram no mundo um terror apocalíptico: uma guerra entre imagem do sofredor que agoniza passará, de acordo com a se-
elas poderia levar ao extermínio da humanidade. No entanto qüência dos acontecimentos, de um para o outro, e o mais
518 519 •
fraco pode finalmente sentir-se como o melhor. Mas também o
mais fraco dos fracos, aquele que nunca teve um inimigo sério, cacife foi multiplicado; existem muito mais homens e todos
toma parte nesta imagem. Não deseja morrer por nada do estão mais perto uns dos outros. Os meios se multiplicaram por
mundo; a própria morte o transforma em algo especial. Cristo mil. A impotência da vítima, se bem que não sua submissão,
no fundo permaneceu a mesma.
lhe empresta a malta de lamentação. Em meio à fúria da mul-
Todo o terror diante de um poder sobrenatural, um poder
tiplicação, que também é a dos homens, o valor do indivíduo
não diminuiu, aumentou. Os acontecimentos do nosso século que desaba vingador e destrutivo sobre os homens, está con-
tido na imagem da "bomba". Mas o indivíduo pode manipulá-
parecem afirmar o contrário: mas nada se modificou na cons-
la. Ela está nas suas mãos. O detentor do poder pode desen-
ciência dos homens. Passando por um desvio pela sua alma,
cadear devastações que excedem todas as pragas de Deus reu-
o próprio homem, tal como vive aqui, foi incluído. O seu
nidas. O homem roubou seu próprio Deus. Apoderou-se dele
desejo de indestrutibilidade fdi justificado. Cada qual é para
e se apropriou de tudo o que havia de terror e fatalidade nele.
si mesmo um objeto digno de lamentação. Cada qual está
Os sonhos mais temerários dos poderosos de outros tem-
firmemente convencido de que não deve morrer. Neste ponto
pos, para os quais a sobrevivência se transformara em paixão
a herança cristã — e de maneira diferente também a herança e vício, parecem atualmente coisas mesquinhas. A história
budista — é indestrutível. adquire repentinamente, recapitulada a partir do nosso ponto
Mas o que se modificou radicalmente nesta época foi a de vista, um rosto inocente e inofensivo. Quanto tempo tudo
situação do sobrevivente. Seguramente foram poucos os que levava para ser feito antes e quão pouco havia para ser ani-
não sentiram uma profunda repugnância ao terminar a leitura quilado numa Terra desconhecida! Hoje, entre decisão e resul-
dos capítulos que tratavam do sobrevivente. A intenção era a tado não existe mais do que um instante. Gengis Khan! Ta-
de retirá-lo de todos os seus esconderijos e de representá-lo tal merlão! Hitler! . Comparados com nossas possibilidades,
como é e como sempre foi. Como herói era adorado, como nada mais são que aprendizes lamentáveis e simples amadores!
mandatário era obedecido: no fundo ele era sempre o mesmo. Existe alguma possibilidade de se reduzir o sobrevivente
Mesmo em nossa época, entre homens para os quais o conceito que cresceu até atingir estas monstruosas proporções? Esta é a
humanitário significa muito, ele obteve os seus triunfos mais pergunta maior e, poder-se-ia dizer, a única. A especialização e a
sinistros. Ele não se extinguiu e não se extinguirá enquanto mobilidade da vida moderna. fazem com que se torne enganosa a
não tivermos a força necessária para vê-lo com clareza, seja simplicidade, a concentração, desta pergunta fundamental. Por-
qual for seu disfarce, seja qual for sua glória, por mais radiante que a única solução que se oferece ao apaixonado impulso de
que ela seja. O sobrevivente é o mal original da humanidade, sobreviver — a solidão criadora que ganha a imortalidade —
sua maldição e talvez sua perdição. Será possível escapar dele por sua própria natureza é uma solução para poucos.
no último momento? Contra este perigo crescente que cada qual sente nos seus
Em nosso mundo moderno, a escalada de suas atividades próprios ossos, é preciso levar em consideração um segundo
é tão monstruosa que quase não temos coragem de contem- fato, um fato novo. O próprio sobrevivente tem medo. Sempre
plá-las de frente. Um único homem pode aniquilar, sem multo teve medo. Mas, juntamente com suas possibilidades, este medo
esforço, uma boa parte da humanidade. Para isso pode utilizar- cresceu de forma desmedida e insuportável. Seu triunfo poderá
se de processos técnicos que ele próprio não compreende. Pode ser coisa de minutos. Mas a Terra não é mais segura em parte
agir a partir de um ponto totalmente escondido; nem sequer é alguma, nem mesmo para ele. As novas armas podem atingir
necessário que se exponha a qualquer perigo para realizar seu qualquer lugar, de forma que também ele pode ser alcançado
gesto. O contraste entre sua individualidade e o número de em qualquer parte. Sua grandeza e sua vulnerabilidade estão
pessoas que ele pode aniquilar já não cabe mais numa imagem em conflito entre si. Ele mesmo se tornou excessivamente gran-
coerente. Atualmente uma pessoa pode sobreviver, de um golpe, de. Os poderosos atualmente tremem de maneira diferente por
a um número de homens que supera o total de várias gerações si mesmos: exatamente como tremem todos os demais homens.
anteriores. As receitas dos poderosos estão à disposição, não A antiga estrutura do poder, seu âmago — a conservação do
é difícil utilizar-se delas. Todas as descobertas e invenções os poderoso às custas de todos os demais —, foi levada ad absur-
favorecem, como se tivessem sido feitas apenas para eles. O dum, está totalmente em ruínas. O poder é maior, mas tam-
520 521.
bém é mais fugaz do que nunca. Todos sobreviverão ou nin- NOTAS
guém sobreviverá!
Mas, para encontrar o ponto fraco do sobrevivente, é •
preciso descobrir suas manipulações lá onde elas parecem ser TI Pág. 32 — A descrição de haka encontra-se em J. S. Polack, New
mais naturais. Seu crescimento é indiscutido e, por este motivo, Zealand. A narrative of traveis and adventure, London, 1838, vol. I,
especialmente perigoso na distribuição das ordens. Já demons- págs. 81.84.
Pág. 39 — A "Parada em Arafat" foi descrita várias vezes; a des-
tramos como a ordem, na sua forma domesticada e usual da crição mais detalhada encontra-se em Gaudefroy-Demombynes, Le Pèle-
convivência entre os homens, nada mais representa que uma ':. rinage à la Mekke, Paris, 1923, págs. 241-255.
sentença de morte suspensa. Sistemas eficazes e exacerbados Pág. 43 — Bechuana: Dornan, Pygmies and Bushmen of the Kala-
de tais ordens se introduziram por toda parte. Quem subiu hari, pág. 291.
demasiadamente rápido ao ponto mais elevado, ou quem de Pág. 43 — Boloki: Weeks, Among Congo Cannibals, pág. 261.
alguma forma conseguiu apropriar-se do poder supremo, pela Pág. 44 — Pigmeus do Gabão: a canção sobre a caverna dos mor-
tos foi extraída de Trilhes, Les Pygmées de la forêt équatoriale, Paris,
própria natureza de sua posição vive dominado pelo medo de
1931.
mandar e deve tentar libertar-se dele. A ameaça contínua, da Pág. 44 — Espíritos auxiliares dos xamãs dos chukches: Ohlmarks,
qual ele se vale e que constitui a essência propriamente dita Studien zum Problem des Schamanismus, pág. 176.
do sistema, se volta finalmente contra ele. Esteja ou não real- Pág. 44 — Visão do xamã dos esquimós: Rasmussens, Thulefahrt,
mente ameaçado por inimigos, ele sempre se sentirá ameaçado. Frankfurt, 1926, págs. 448-449.
Pág. 44 — Exércitos dos mortos da região montanhosa da Escócia-
A ameaça mais perigosa vem de sua própria gente, a quem
Carmichael, Carmina Gaidelica, vol. II, pág. 357.
sempre dá ordens, que está mais próxima dele, que o conhece Pág. 45 — A aurora boreal entre os lapões e os índios tlingits:
bem. O meio de libertar-se, ao qual não recorre sem vacilar, Hõfler, Kultische Geheimbünde der Germanen, Frankfurt, 1934, págs.
mas ao qual jamais chega a renunciar, é a ordem repentina 241-242.
de uma morte em massa. Ele dá início a uma nova guerra e Pág. 45 — A população do ar: Bin Gorion, Die Sagen der Juden,
tomo I. Von der Urzeit, pág. 348.
envia seus homens a lugares onde irão matar. Muitos deles Pág. 46 — O exército dos demônios entre os persas: Darmesteter,
poderão sucumbir nessa empresa. Ele não lamentará que isso The Zend-Avessa, Part II, pág. 49.
aconteça. Qualquer que seja a atitude que adote exteriormente, Pág. 46 — Caesarius von Heisterbach: uma tradução inglesa com-
sente uma necessidade profunda e secreta de que também as pleta do Dialogus Miraculorum apareceu com o título de The Dialogue
fileiras de seus próprios homens sejam dizimadas. Para a sua on Miracles, Editorial Routledge, Londres, 1929. Os fragmentos citados
libertação do medo de mandar é necessário que também mor- pertencem ao vol. I, págs. 322-323 e 328; vol. II, págs. 294-295.
Pág. 47 — Deus e sua corte: Caesarius, op. cit., vol. II, pág. 343.
ram muitos dos que combatem por ele. A floresta do seu medo Pág. 47 — Poema dos gafanhotos: Waley, The Book o/ Songs,
tornou-se espessa demais; é preciso cortar árvores para que London, 1937, pág. 173.
ele possa respirai-. Se vacilou durante tempo demais, deixa de Pág. 61 — Madame Jullien a seu filho: carta de 2 de agosto de
ver claramente e pode deteriorar muito sua própria posição. 1791, em Landauer, Brief e aus der Franzasischen Revolution, tomo I,
pág. 339.
Seu temor de mandar assume então proporções que conduzem
Pág. 62 — Camille Desmoulins a seu pai. Landauer, tomo 1, pág.
à catástrofe. Mas antes que a catástrofe atinja a ele mesmo, a 144.
seu próprio corpo que para ele encarna o mundo, ele conduz Pág. 63 — Revivais: boas informações a respeito dos Revivais, prin-
inúmeros outros à perdição. cipalmente na América, se encontram no livro de Davenport: Primitive
O sistema de ordens é universalmente admitido. Ele se Traits in Religious Revivais, New York 1905. Um dos pregadores mais
famosos narrou a história de sua própria vida: Peter Cartwright, The
solidificou da maneira mais nítida nos exércitos. Mas muitos Backwoods Preacher. An Autobiography, London, 1858.
outros âmbitos da vida civilizada estão dominados e marcados Pág. 63 — Castigos infernais: Davenport, op. cit., pág. 67.
pela ordem. A morte como ameaça é a moeda do poder. É Pág. 63 — Meeting de Cane Ridge: Davenport, op. cit., págs. 73-77.
fácil colocar aqui moeda sobre moeda e acumular grandes capi- Pág. 64 — Convulsões, latidos, riso sagrado: Davenport, op. cit.,
tais. Quem quiser reduzir o poder deve encarar a ordem, fren- págs. 78-81.
te a frente, sem temor, e encontrar os meios para despojá-la Pág. 65 — A descrição de uma festa entre os papuas em todas as
suas fases constitui o tema de um livro sumamente ágil de André Du-
do seu aguilhão. Peyrat: Jours de Fête chez les Papous, Paris, 1954.
522 523
Pág. 68 - Uma festa entre os tupinambás: Jean de Léry, Le voya- Pág. 130 - Malta de caça e canguru: Arunta, págs. 170-171.
ge au Brésil 1556-1558. Nova edição em 1927, Ed. Payot, Paris, págs. Pág. 132 - Deitar-se sobre o candidato: Arunta, págs. 192-193.
223-224. Pág. 133 - Spencer and Gillen, The Arunta. Fila indiana, pág.
Pág. 69 - Dança guerreira das mulheres entre os kafirs do Hindu- 160. Rodar em círculo, muito freqüente, por exemplo, pág. 273. Esten-
kush: Crooke, Things Indian, pág. 124. der-se em fileira, pág. 280, fig. 100. Disco dançante, págs. 261-262. Duas
Pág. 69 - Dança guerreira entre as mulheres dos jívaros: R. Kars- fileiras frente a frente, pág. 189. Quadrilha, pág. 278. Montão no solo,
ten, Blood Revenge, War and Victory Feasts among que Jibaro Indians págs. 286, 290, 292. Provas de fogo, pág. 294. Lançamento de ramos
of Eastern Ecuador, Washington, 1922, pág. 24. ardentes, págs. 279 e 289. Circuncisão, pág. 219.
Pág. 70 - Mirary em Madagascar: R. Decary, Moeurs et Coutumes Pág. 140 - Mary Douglas, The Leia of Kasai, in African Worlds,
des Malgaches, Paris, 1951, págs. 178-179. editado por Daryll Farde, Oxford University Press, 1954, págs. 1-26.
Pág. 73 - Jeremias: 25, 33. Pág. 141 - Prestígio da selva: M. Douglas in African Worlds,
Pág. 73 - A pregação de Maomé aos inimigos mortos: as tradi- pág. 4.
ções a respeito da vida de Maomé, segundo Ibn Ishak, apareceram na Pág. 143 - Caça conjunta: M. Douglas, ibid., págs. 15-16.
tradução alemã de Weil, em 1864. Este trabalho foi superado pela Pág. 147 - R. Karsten, Blood Revenge, War and Victory Feasts
moderna tradução inglesa de A, Guillaume, The Life of Muhammad. A among the Jibaro Indians of Eastern Ecuador, Washington, 1922. Um
translation of Ibn Ishaqs Sirat Rasul Allah, Oxford, 1955. Os relatos
estudo mais recente é o de M. W. Stirling, Historical and Ethnographi-
a respeito da pregação triunfal aos mortos se encontram nas páginas cal Material on the Jibaro Indians, Washington, 1938.
305-306.
Pág. 74 - O relato de Une: em Erman, Ãgypten und iigyptisches Pág. 149 - Ruth Benedict, Patterns of Culture, Houghton Mifflin,
Leben im Altertum, pág. 689. Boston, 1934, págs. 57-130.
Pág. 74 - Hino de louvor a Ramsés II: Erman, Die Literatur Pág. 150 - Conjuração da chuva: Urformen der Kultur, pág. 53.
der Agypter, pág. 324. Pág. 153 - Daomé: Dalzel, The History of Dahomey, 1793. Este
Pág. 74 - A batalha de Kadesh: Erman, Die Literatur der livro antigo de valor inestimável contém também a primeira descrição
Agypter, pág. 333. detalhada dos "Annual Customs", a festa anual; outras obras sobre o
Pág. 75 - A vitória de Merenptah sobre os líbios: Erman, Ãgypten Daomé: Burton, A Mission to Geleia, King of Dahomey, 2 vols., Lon-
und agyptisches Leben, pág. 710-711. don, 1864. Ellis, The Ewe-speaking Peoples of the Slave Coast of West
Pág. 75 - Ramsés III e os líbios: Erman, op. cit., pág. 711. Africa, 1890. Le Hérissé, L'Ancien Royaume du Dahomey, Paris, 1911.
Pág. 75 - Contagem de cabeças entre os assírios. O relevo da Herskovits, Dahomey, an Ancient West African Kingdom, 2 vols., New
época de Assurbanípal está reproduzido esquematicamente em G. Mas- York, 1938.
péro, Au Temps de Ramses et d'Assourbanipal, pág. 370. Pág. 156 - O peregrino espanhol Ibn Jubayr. The Traveis of Ibn
Pág. 81 - O fogo nos Vedas: H. Oldenberg, Die Religion des Jubayr. Translated by R. J. C. Broadhurst, Cape, London, 1952. Capa-
Veda, pág. 43. cidade de ampliação de Meca, pág. 174.
Pág. 84 - A dança do fogo dos índios navajos: Hambly, Tribal Pág. 157 - O profeta da luta e da guerra: Goldziher, Vorlesun-
Dancing and Social Development, London, 1926, págs. 338-339. gen über den Iriam, págs. 22 e 25. "Matem os infiéis": Cotão, 9, 5.
Pág. 85 - A incendiária: Krãpelin, Einführung in die psychiatri- Pág. 157 - Cibele transtornada: Luciano, Diálogo dos Deuses,
sche Klinik, tomo II, caso 62, págs. 235-240. diálogo 12, segundo a tradução alemã de Wieland.
Pág. 93 - Os deuses da tempestade nos Vedas: Macdonell: Hymns Pág. 158 - Lamento de Isis: Erman, Religion der Agypter,
from the Rigveda, págs. 56-57. pág. 39.
Pág. 97 - Plutarco: Vida de Pompeu, cap. II. Pág. 160 - Além das conferências de Goldziher a respeito do
Pág. 107 - A partilha do botim de caça. Veja É. Lot-Palck, Les Islamismo, foram consultadas para este capítulo as seguintes obras:
Rites de Chasse chez les peuples sibériens, Gallimard, Paris, 1953, págs. Gobineau, Religions et Philosophies dans l'Asie Centrale, 1865. Nova
179-183. edição: Paris, 1957. Donaldson, The Shiite Religion, London, 1933. Von
Pág. 108 - A expedição militar dos taulipangues contra os pishau- Grunebaum, Muhammadan Festivais, London, 1958. Virolleaud, Le
kos foi extraída de Koch-Grünberg: Vom Roroima zum Orinoco, vol. Théâtre Persian, Paris, 1950. Titayna, La Caravana des Morts, Paris,
III, Etnographie, págs. 102-105. i9 3 0.
Pág. 120 - Totens dos australianos. Além das obras antigas de Pág. 161 - Os padecimentos de Hussain: Donaldson, op. cit.,
Spencer Gillen e de C. Strehlow, têm importância especial em relação págs. 79-87.
a este tema os seguintes trabalhos: Elkin, The Australian Aborigines, Pág. 162 - Tribulações da estirpe do profeta: Goldziher, op. cit.,
1943, e Elkin, Studies in Australian Totemism, "The Oceania Mono- págs. 212-213.
graphs", N.° 2, 1933. Pág. 162 - Chorar por Hussain: Goldziher, op. cit., págs. 213-214.
Pág. 121 - Dança dos búfalos dos mandans: George Catlin, The Pág. 163 - O túmulo de Hussain em Kerbela: Donaldson, op.
North American Indians, vol. I, págs. 143-144. cit., págs. 88-100.
Pág. 129 - Ungutnika e os cães selvagens: Spencer and Gillen, Pág. 163 - A grande festa dos xiitas• Grunebaum, op. cit.,
The Arunta, pág. 169. págs. 85-94.
524 525
Pág. 165 — Dois tipos de confrarias: Gobineau, op. cit., págs. Pág. 269 — Conquista de Mukdal. Sewell, A Forgotten Empire,
334-338.
Pág. 166 — "O teatro está repleto": Gobineau, op. cit., págs. ri pág. 34.
Pág. 270 — Hakim: Wolff, Die Drusen und ihre Vorlaufer,
353-356. Leipzig, 1845, pág. 286.
Pág. 168 — "Vá e salve das chamas": Grunebaum, op. cit., pág. 94. Pág. 271 — Para uma breve sinopse da história dos imperadores
Pág. 168 — O "Dia do Sangue": Titayna, La Caravane des mongóis, veja Smith: The Oxford History of India, págs. 321-468.
Morts, págs. 110-113; citado por De Félice: Foules en Délire, págs Pág. 271 — O relato dos jesuítas a respeito do príncipe Salim,
170-171. extraído de Du Jarric, Akbar and the Jesuits, translated by C. H. Payne,
Pág. 174 — Stanley: Sinai and Palestina, págs. 354-358. Routledge, London, 1926, pág. 182.
Pág. 176 — Curzon: Visits to Monasteries in the Levant, págs. Pág. 272 — Shaka: a melhor descrição contemporânea de Shaka
230-250. é a do viajante inglês Henry Fínn. Seu diário, que já tinha sido utili-
Pág. 185 — Nesta seção foram agrupados alguns capítulos que, zado com bastante freqüência, apareceu quase cem anos mais tarde em
com uma única exceção, se referem a situações modernas. Seria pre- forma de livro: The Diary of Henry Francis Fynn, editado por Stuart
maturo fornecer aqui mais elementos: o leitor ainda não está familia- and D. Mck. Malcolm. Pietermaritzburg, Shuter and Shooter, 1950. A
rizado com as conclusões de partes posteriores do livro, dedicadas à única biografia moderna, valiosa, que além de todas as fontes escritas
investigação do poder. Portanto, haveria motivos para não se concordar também utiliza as tradições orais, pertence a Ritter, Shaka Zulu, Long.
com o título de "Massa e História", achando-se que ele é demasiada- mans Green, London, 1955.
mente amplo. A aplicação das conclusões obtidas a respeito da massa Pág. 277 — O século dos etruscos: A. Grenier: Les Religions
e da malta em relação aos movimentos históricos de épocas anteriores Êtrusque et Romaine, Paris, 1948, pág. 26.
fica reservada para uma publicação posterior que, em parte, já está
Pág. 278 — O mana nas Ilhas Marquesas: Handy, Polynesian Re-
escrita, e em parte está esboçada.
Pág. 212 — O relato que forneço a respeito dos acontecimentos ligion, pág. 31.
entre os xosas procede — um pouco simplificado — de Theal, History Pág. 279 — O matador entre os murngins: Warner, A Black Civi-
of South Africa, vol. III, págs. 198-207. O missionário alemão Kropf, lization, Harper and Brothers, 1958, págs. 163-165. Este livro, que foi
testemunha dos acontecimentos, narrou suas impressões num artigo lançado pela primeira vez em 1937, é a descrição mais completa e
breve, muito ilustrativo, mas de difícil acesso: Die Lügenpropheten des importante de uma tribo australiana que possuímos até hoje.
Kat fernlandes, Neue Missionsschriften, ed., n.° 11, Berlim, 1891. Em Pág. 281 — O herói nas Ilhas Fidji: Lorimer Fison, Tales from
seu livro Propheten in Afrika, Braunschweig, 1949, Katesa Schlosser Old Fidji, págs. 51-53, XXI.
deu uma rápida versão dos acontecimentos nas páginas 35-41. Ela cita Pág. 283 — Cobra-monstro e herói entre os uitotos: K. Th. Preuss,
as partes mais importantes do artigo de Kropf. A descrição moderna Religion und Mythologie der Uitoto, Gõttingen, 1921, págs. 220-229.
mais detalhada, com material novo, se encontra num livro de um escritor Pág. 286 — Um sobrevivente entre os taulipangues: Koch-Grün-
sul-africano de província que permaneceu desconhecido na Europa: berg, Indianermlirchen aus Südamerika, Jena, Diederichs, 1921, págs.
Burton, Sparks from the Borden Anvil, King Williams Town, 1950, 109-110.
págs. 1-102. Pág. 288 — A origem dos kutenais: Boas: Kutenai Tales, n.° 74,
Pág. 236 — Zuckerman: The Social Life of Monkeys and Apes, "The Great Epidemic", págs. 269-270, Washington, 1918.
Kegan Paul, London, 1932, págs. 57-58. Pág. 289 — Suicídio em massa entre os ba-ilas: Smith and Dele,
Pág. 237 — Zuckerman, págs. 268-269; págs. 300-304. The Ila-speaking Peoples of Northern Rhodesia, London, 1920, vol. I,
Pág. 254 — Gengis-Khan: segundo Wladimirzov, The Live o.t pág. 20.
Chingis-Khan, Routledge, London, 1930, pág. 168. Pág. 290 — Cabres e caraíbas: Humboldt, Reise in die Aquinoc-
Pág. 255 — César: Plutarco, Vida de César, cap. 15. tial-Gegenden des neuen Kontinents, vol. V, pág. 63.
Pág. 258 — O banquete fúnebre de Domiciano: Dio, História
Romana, Epítome do livro LXVII, cap. 9.
Pág. 260 — O relato se encontra em Flávio Josefo: História da
Guerra dos Judeus, livro III, cap. 8.
Pág. 264 — "No final restou justamente o próprio Josefo, diga-se
1 Pág. 292 — Morte de uma criança índia em Demerara: Roth, An
Inquiry finto the Animism and Folklore of the Guiana-Indians, Wash-
ington, 1915, pág. 155.
Pág. 294 — O culto dos ancestrais entre os zulus: o irmão vivo
e o irmão morto: Callaway, The Religious System of the Amazulu, 1870,
por feliz casualidade ou divina providência, com outro companheiro." págs. 146-159.
Na versão eslava da Guerra dos Judeus, que segundo a opinião de Pág. 299 — O médium do rei em Uganda: N. K. Chadwick,
alguns eruditos se apóia num texto grego mais antigo, em vez desta Poetry and Prophecy, Cambridge, 1942, págs. 36-38.
frase encontra-se outra mais realista: "Depois que ele ( Josefo) disse Pág. 300 — O culto dos ancestrais entre os chineses: Granet, La
isto, calculou astutamente os números e assim enganou a todos". Ve- Civilisation Chinoise, Paris, 1929, págs. 300-302. Henri Maspéro,
ja-se a nova tradução inglesa em Penguin Classics: Josephus: The La Chine Antique. Nova edição, Paris, 1955, págs. 146-155. Jeanne
Jewish War, translated por G. A. Williamson, pág. 403. Appendix:
Cuisinier, Sumangat. L'âme et son culte en Indochine et en Indonésie.
The Slavonic Addictions. Gallimard, Paris, 1951, págs. 74-85.
Pág. 269 — Muhammad Tuglak. Veja o capítulo posterior: "O Pág. 303 — A peste em Atenas: Tucídides, História da Guerra
Sultão de Delhi", do Peloponeso, II, págs. 47-54.
526 527
Pág. 315 - "O ancestral de Gengis-Khan era uni lobo cinzento concordar totalmente com a orientação de sua interpretação dos textos
eleito pelo destino, que foi engendrado pelo alto céu". Com esta frase hindus, e de chegar a conclusões diferentes, devo muito ao trabalho dele.
começa a História Secreta dos Mongóis, editada e traduzida para o Nas minhas citações do texto de Lommel deixei de lado tudo o que
alemão por Haenisch, Leipzig, 1948. considero supérfluo numa investigação da inversão neste contexto.
Pág. 315 - A alma do imperador romano sobe como águia ao Pág. 375 - Bleek and Lloyd, Specimens of Bushman Folklore,
céu. Veja a maravilhosa descrição da apoteose de um imperador roma. London, 1911. Bushman Presentiments, págs. 330-339.
no - neste caso, Septímio Severo - em Herodiano, História do Impé- Pág. 381 - Mito dos lorityas sobre os tukutitas: C. Strehlow,
rio Romano desde Marco Aurélio, livro IV, cap. 2. Die Aranda- und Loritya-Stümme in Zentral-Australien, II, págs. 2-3.
Pág. 315 - Temor das tempestades entre os mongóis, no diário Veja-se também Lévy-Bruhl, La Mythologie Primitive, Paris, 1935. Este
de viagem de Rubruk, Contemporaries of Marco Polo, editado por importante livro é sumamente sugestivo em muitos aspectos da me-
Komroff, London, 1928, pág. 91. tamorfose. Em geral ele se limita ao mundo mítico dos australianos e
Pág. 316 - Os fulguratores dos etruscos: A. Grenier, Les Reli- dos papuas, traz citações muito extensas das melhores obras sobre a
gions Etrusque et Romaine, págs. 18-19. região e deixa muitas questões a critério do próprio leitor. Pode ser
Pág. 316 - Poder e raio: Franz Kuhn, Altchinesische Staatswei- considerada a obra menos problemática de Lévy-Bruhl.
sheit, pág. 105. - Desaparecimento de Rômulo em meio a uma tem- Pág. 382 - O Mestre e Seu Discípulo: Dirr, Kaukasische Mãrchen,
pestade: Lívia, I, 16. - Túlio Hostílio morto por um raio: Lívio, I, Jena, 1922.
31. - Morte de um antigo rei de Alba Longa, Rômulo Sílvio, por um Pág. 383 - Proteu: Odisséia, IV, págs. 440-460.
raio: Lívio, I, 3. Pág. 384 - Histeria: Krãpelin, Psychiatrie, tomo IV, págs. 1547-
Pág. 320 - As primeiras perguntas de uma criança: Jespersen, 1706. Bleuler, Lehrbuch der Psychiatrie, págs. 392-401. ICretschmer,
Language, pág. 137. Ueber Hysterie, 1927.
Pág. 323 - A Dama do Meio-Dia pergunta até a morte: Wendi- Pág. 385 - Xamãs: Czaplicka, Aboriginal Siberia, 1914. Ohl-
sche Sagen, editadas por Sieber, Jena, 1925, pág. 17. marks, Studien zum Problem des Schamanismus, 1939. Eliade, Le Cha-
Pág. 324 - O curandeiro entre os arandas: Spencer and Gillen, manisme, 1951. Findeisen, Schamanentum, 1957.
The Arunta, vol. II, págs. 391-420. Pág. 386 - Mania e melancolia: Krãpelin, Psychiatrie, tomo III,
Pág. 326 - A impenetrabilidade do último Visconti: Decembrio, Das manisch-depressive Irresein, págs. 1183-1395. Bleuler, Lehrbuch
Vida de Filippo Maria Visconti, traduzido para o alemão por Funk, der Psychiatrie, págs. 330-351.
Jena, 1913, cap. 43, págs. 29-30. Pág. 387 - T. G. H. Strehlow, Aranda Traditians, Melbourne
Pág. 327 - A prova de discrição de Cósroes II: Le Livre de la University Press, 1947.
Couronne, attribué a Gahiz, traduit par Ch. Pellat, Paris, 1954, págs. Pág. 387 - O mito "bandicoot": Strehlow, op. cit., págs. 7.10.
118-120. Pág. 390 - O mito Lukara: Strehlow, op. cit., págs. 15-16.
Pág. 349 - Wukuf e ifadha. Veja o livro já citado de Gaude- Pág. 393 - "O ancestral como soma total da essência viva":
froy-Demombynes, Le Pèlerinage à la Mekke, Paris, 1923, págs. 235-303. Strehlow, op. cit., pág. 17.
Pág. 355 - Luciano, Sobre a deusa síria. Tradução alemã de Pág. 397 - O ancestral-larva de Mboringka: Strehlow, op. cit.,
Wieland, tomo IV das Obras Completas, Munique, 1911, págs. 376-377. pág. 12.
Pág. 355 - Skoptsy: a obra mais exaustiva, mas um pouco pe- Pág. 399 - Alucinações do delirium tremens: Krãpelin, Psychia-
sada, a respeito dos skoptsys é a de Grass: Die russischen Sekten. trie, tomo II, pág. 132. Bleuler, Lehrbuch der Psychiatrie, págs. 227-
Vol. II: Die weissen Tauben oder Skopzen, Leipzig, 1914. Grass tam- 228 e 233.
bém traduziu para o alemão o "Escrito sagrado e secreto dos skoptsys", Pág. 406 - O dono de restaurante: Krãpelin, Einführung in die
Leipzig, 1904. Uma obra mais recente e que contém excelente material Psychiatrische Klinik, tomo II, caso 43, págs. 157-161.
é: Rapaport: Introduction à la Psychopathologie Collective. La Sede Pág. 408 - Esquizofrênico delirante: Bleuler, Lehrbuch der Psy-
mystique des Skoptzy, Paris, 1948. chiatrie, págs. 234-235.
Pág. 357 - Assassinos: a bibliografia mais antiga sobre os assas- Pág. 413 - O asno na pele de tigre: Hertel, Indische Mãrchen,
sinos foi superada em boa parte pela obra crítica de Hodgson: The Diedrichs, Jena, 1921, págs. 61-62.
Order of Assassins, Haag, 1955. Pág. 446 - Liudprando de Cremona: O livro da vingança, livro
Pág. 359 - Escravidão da sugestão: Krãpelin, Psychiatrie, vol. VI, cap. 5.
III, pág. 723. Pág. 448 - Paralisia clássica: Krãpelin, Einführung in die Psy-
Pág. 360 - Os mosquitos falam etc.: todas as citações foram chiatrische Klinik, tomo II, caso 26, págs. 93-97.
extraídas de Krãpelin, Psychiatrie, vol. III, págs. 673-674. Pág. 451 - Paralisia agitada: Krãpelin, op. cit., caso 28, págs.
Pág. 361 - Num importante ensaio publicado em 1950 em Pai- 101-102.
deuma, vol. 4, com o título de "Bhrigu no além", Hermann Lommei Pág. 457 - Neste ponto foi consultada a obra Geschichte Afrikas
ofereceu um resumo desta expedição dos Shatapatha-Brahmana que de D. Westermann, Colônia, 1952, que contém uma quantidade de
utilizei acima. Lommel reuniu aqui todos os casos correspondentes da material realmente extraordinária.
literatura antiga da índia, completou-os com um suplemento no vol. 5 Pág. 457 - Morte e eleição de um novo rei no Gabão: Du
de Paideuma, em 1952, e relacionou-os com as concepções de outros Chaillu, Explorations and Adventures in Equatorial Africa, 1896, págs.
povos a respeito do "mundo invertido" dos mortos. Apesar de não 18-20.
528 529
Pág. 460 - O rei de Yukun: Meek, A Sudanese Kingdom, Kegan Pág. 472 - A história de Ziau-d din Barani se encontra no vol.
Paul, London, 1931, págs. 120-177, págs. 332-353. De forma mais_ su- III de Elliot and Dowson: The History of _índia as told by its own
cinta em Westermann, op. cit., págs. 149-150. Historians, 1867-1877. Agora apareceu em separata como Later Kings
Pág. 461 - Características dos reis africanos: Westermann, op. of Delhi, na editora S. Gupta, Calcutá. Muhamánad Tughlak é abordado
cit., págs. 34-43. nesta obra nas páginas 159-192.
Pág. 483 - Como exemplo de um defensor moderno do sultão
Pág. 463 - Imitação dos reis. Monomotapa: Westermann, op. cit.,
pode ser mencionado o historiador indiano Ishwari Prasad: Vinde du
págs. 413-414. Etiópia: Diodoro, III, 7. Estrabão, XVII, 2, 3, Darfur,
Traveis of an Arab Merchant in Soudan, Londres, 1854, pág. 78. Ugan- VHe Siècle (na coleção "Histoire du Monde"), Paris, 1930, págs. 270-
300. Ele o define como um "idealista infeliz" e "sem dúvida alguma,
da, Boní, China: Frazer, The Dying Coei, págs. 39-40.
a pessoa mais capaz da Idade Média".
Pág. 465 - O próprio rei determina a duração do seu reinado: Pág. 483 - Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, do Dr. Da-
Montei], Les Bambara du Ségou, Paris, 1924, pág. 305. niel Paul Schreber, Leipzig, 1903.
Pág. 465 - Eleição e surra de um rei entre os iorubas: Wester-
mann, op. cit., pág. 40; em Serra Leoa, ibidem, pág. 41.
Pág. 465 - Anarquia após a morte do rei: entre os mosis de
Wagadugu: Westermann, op. cit., pág. 185; em Ashanti, ibidem, pág. 222;
em Uganda: Roscoe, The Baganda, Londres, 1911, págs. 103-104.
Pág. 466 - Os estados himas se formaram por conquista no ter-
ritório da atual Uganda e ao sul deste país. Pastores guerreiros de pro-
cedência hamítica, conhecidos exatamente como os himas, tinham emi-
grado do norte e submeteram e transformaram em servos os negros ali
estabelecidos que se dedicavam à agricultura. Seus reinos pertencem
aos mais interessantes da África: distinguem-se por uma nítida dife-
rença entre a casta dos senhores e dos servos.
Pág. 466 - A sucessão em Ankolé: Oberg, The Kingdom of
Ankole in Uganda, em: Af rical Political Systems, editado por Fortes
and Evans-Pritchard, Oxford University Press, 1954, págs. 121-162. O
trecho sobre a sucessão, págs. 157-161. Menos conciso, mas digno de
ser lido, é o livro mais antigo de Roscoe, The Banyankole, Cambridge,
1923. Sobre a parte meridional dos estados himas, de Ruanda, existe
um excelente novo trabalho: Maquet: The Kingdom of Ruanda, em:
African Worlds, editado por Daryll Forde, págs. 164-189.
Pág. 467 - Sacrifício de um jovem príncipe na coroação do rei
de Kitara: Roscoe, The Bakitara, Cambridge, 1923, págs. 129-130.
Pág. 468 - O arco do rei de Kitara: Roscoe, The Bakitara, págs.
133-134.
Pág. 469 --- Uganda: tambores. Roscoe, The Baganda, pág. 188.
Pág. 469 - "Eu viverei mais que meus ancestrais". Roscoe, The
Baganda, pág. 194. Aprisionamento de dois passantes: Roscoe, ibidem,
pág. 197. Bode expiatório e guardião: Roscoe, ibidem, pág. 200.
Pág. 469 - Sacrifício duplo: um é morto, o outro perdoado. Ros-
coe, The Baganda, pág. 210.
Pág. 470 - "Agora você é Ata": Westermann, Geschichte Afrikas,
pág. 39.
Pág. 470 - O rei de Uganda come sozinho como um leão: Ros-
coe, The Baganda, pág. 207.
Pág. 471 - O cozinheiro alimenta o rei de Kitara: Roscoe, The
Bakitara, pág. 103.
Pág. 471 - Justiça sumária: Roscoe, The Bakitara, págs. 61 e 63.
Pág. 472 - Viagem do árabe Ibn Batuta através da índia e da
China. Adaptado por H. von Muzik, 1911. Ibn Batuta, Travels in
Asia and Africa 1325-1354, Translated and selected by J. A. R. Gibb,
Routledge, London, 1929. As citações correspondem a esta edição
inglesa.

530 .
53'•
Para desenvolver todo o tra-
balho de Massa e Poder, Canetti
levou 35 anos, e no parecer de
Arnold Toynbee "Canetti ofere-
ce realmente uma nova intros-
pecçào nas bases do convívio
humano. O que ele tema dizer a
respeito do homem e das atitu-
des das massas forma a base do
conhecimento abrangente da
sociedade humana em geral"

Elias Canetti nasceu em 1905,


em Rustschuk, um pequeno vila-
rejo às margens do Danúbio, na
Bulgária. Em 1911, mudou-se
com seus pais, judeus espa-
nhóis, para a Inglaterra e, em
1913, depois da morte de seu
pai, instalou-se em Viena. Entre
1916 e 1924, estudou em Zurique
e Frankfurt. Em seguida, dedi-
cou-se às Ciências Naturais até
1929, na Universidade de Viena,
onde obteve o título de Doutor
em Filosofia e Letras. A partir daí,
começou a escrever. Em 1938
regressou a Londres, via Paris,
onde vive até hoje.
Narrador e dramaturgo satíri-
co, é conhecido primeiramente
por seu romance Auto de Fé, Prê-
mio Nobel de Literatura de 1981,
além de obras como Diários e
numerosos ensaios, destacan-
do-se O Outro Processo de Kaf-
9

ka.
Capa de
99'29

Georg Reuthner

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