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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE HUMANIDADES

LYSIA DA SILVA ALMEIDA

CORPO COMO POTÊNCIA EDUCATIVA:


EXPERIMENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM A COMUNIDADE DO TERRITÓRIO
DO BEM EM VITÓRIA – ES

Vitória
2020
LYSIA DA SILVA ALMEIDA

CORPO COMO POTÊNCIA EDUCATIVA:


EXPERIMENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM A COMUNIDADE DO TERRITÓRIO
DO BEM EM VITÓRIA – ES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do
Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Ensino de Humanidades.
Orientador: Prof. Dr. Davis Moreira Alvim

Vitória
2020
[Ficha catalográfica]
LYSIA DA SILVA ALMEIDA

CORPO COMO POTÊNCIA EDUCATIVA:


EXPERIMENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM A COMUNIDADE DO TERRITÓRIO
DO BEM EM VITÓRIA – ES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do
Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Ensino de Humanidades.

Aprovado em 02 de setembro de 2020.

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Davis Moreira Alvim


Instituto Federal do Espírito Santo
Orientador

Prof.ª Dr.ª Kátia Gonçalves Castor


Instituto Federal do Espírito Santo
Membro interno

Prof. Dr. Jésio Zamboni


Universidade Federal do Espírito Santo
Membro externo
LYSIA DA SILVA ALMEIDA

ALMEIDA, Lysia da Silva. Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na


Varal. Vitória: Ifes, 26p. 2020.

Produto final apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto
Federal do Espírito Santo como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Ensino de Humanidades.

Aprovado em 02 de setembro de 2020.

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Davis Moreira Alvim


Instituto Federal do Espírito Santo
Orientador

Prof.ª Dr.ª Kátia Gonçalves Castor


Instituto Federal do Espírito Santo
Membro interno

Prof. Dr. Jésio Zamboni


Universidade Federal do Espírito Santo
Membro externo
Ao Território do Bem, por ser espaço de luta e
esperança em um mundo melhor, e por me acolher
como moradora e pesquisadora.
AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo a um lugar: o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação. Agradeço


às pessoas que atuam ali, não só pelo trabalho social importantíssimo no Território do Bem,
mas por terem recebido esta pesquisa, proporcionado que ela crescesse de maneira tão bonita e
por construírem um espaço de luta política e, principalmente, de afeto. Muito obrigada pela
parceria, e desejo que ela seja duradoura. Para não pecar de esquecer algum nome, agradeço à
Marly Rodrigues representando toda a equipe da Varal, aos oficineiros e às outras pessoas que
participaram dos encontros.

Agradeço de coração e com a maior sinceridade ao meu orientador, Davis Alvim, escorpiano
que balançou minhas certezas virginianas desde o início, quando me acolheu – e não sei o que
seria de mim se não fosse sua orientanda! Obrigada por não me deixar desistir, por apostar neste
trabalho e por me mostrar que é possível uma relação de orientação sem autoritarismo e
hierarquia. Foi um prazer imenso construir contigo, não só pela grande admiração que tenho
por sua produção acadêmica e atuação como professor, mas também porque tive liberdade de
compor e avançar ao seu lado. Muito obrigada por me ensinar tanto!

Do mesmo modo, agradeço à Bel Rizzi, que mesmo não oficialmente foi quem coorientou este
trabalho com muitas contribuições e leitura atenta. Além disso, sem sua dissertação e suas aulas
no curso de História – UFES eu não teria me aproximado de autores que foram a base deste
texto. Eu me inspiro em você, e se a vida me fizer professora novamente, quero seguir seu
exemplo e criar uma sala de aula que seja um espaço de questionamento das verdades absolutas
instituídas pelo mundo acadêmico. Obrigada pela sua sensibilidade, dedicação e amizade.

Agradeço aos queridos professores que compuseram a banca de qualificação e retornaram para
a defesa. Jésio Zamboni, sempre com comentários astutos para discutir os autores, e que me
colocou muitos movimentos e reflexões nas palestras e reuniões pela vida, mesmo sem saber.
Kátia Castor, que me acompanha desde o primeiro semestre no mestrado, com tanta poesia,
afeição e aconchego. Obrigada aos dois por partilharem conhecimento e contribuírem para
minha trajetória, todos os comentários foram imprescindíveis para a construção do texto.

João, meu amor, meu companheiro de vida. Participou desta pesquisa em absolutamente todos
os momentos: desde os estudos para a prova de seleção e a escrita do pré-projeto; no meio do
processo, quando me ouviu explicar cada autor e texto lido; quando me viu chorando e
paralisada pelo medo de não conseguir; até o final, nas oficinas e na elaboração do produto –
em todos esses momentos só vi incentivo e carinho, jamais julgamento. Não sei como agradecer
à vida pelo nosso encontro… como nossos corpos se tornam potentes juntos! Eu te amo de um
jeito que explode e transborda ao mesmo tempo, e amo desenhar um mundo novo com você
todos os dias. Obrigada por ser um grande parceiro e me ajudar nesta pesquisa e em todo o
resto.

Minha mãe, Noelita, porque sonhou o mestrado comigo e que tantas vezes foi mais impaciente
que eu, agradeço pelo sustento e amor. Levi, que sempre reforço, é irmão e melhor amigo,
obrigada pela camaradagem, pelas conversas e por dividir comigo os anseios e as crises de riso.
Agradeço também à minha sogra, Giselle, e minha cunhada, Ana Eliza, por me receberem na
família com amor e me apoiarem nesses últimos anos. Amo vocês!

Aos professores e à turma 3 do Mestrado em Ensino de Humanidades, obrigada pelos muitos


aprendizados sobre a luta anticapitalista e pelas deliciosas comilanças e confraternizações. Aos
queridos que estiveram mais próximos: Henrique Sepulchro, Samira Sanches e Rafaela Uliana,
a quem agradeço especialmente pela amizade e cumplicidade de sempre, que apareceram nos
abraços apertados e nos longos áudios.

Também do mestrado, agradeço profundamente à Marcela Fraga pelo imenso carinho, por ser
tão cuidadosa, atenciosa, e pela coragem de ser rebelde, compondo saberes potentes que não se
submetem aos terrores da ciência rígida – foi uma delícia desobedecer com você! E, é claro,
agradeço à Ariane Guimarães, amiga sem a qual seria impossível concretizar este trabalho –
não tenho palavras para mostrar o quanto sou grata por sua preocupação, pelo seu apoio
emocional nos momentos difíceis e por acreditar em mim mais do que eu mesma.

Aos amigos que sempre fazem meu coração expandir de amor, Luana Vieira, minha caloura
duas vezes, e Thaynan Bandeira, agradeço pela amizade, pelos papos, desabafos, risadas, vinhos
e cervejas, que sempre me lembraram que há vida para além do mestrado, ou melhor, que o
mestrado faz parte da vida. Em vocês encontrei o equilíbrio para falar ao mesmo tempo dos
estudos, de política e de bobagens. Obrigada por terem discutido a pesquisa e participado dela,
cada um ao seu modo.

Aos colegas que participaram das orientações coletivas: Amanda, Antelmo, Bruno Lemos,
Bruno Lotéro, Camila, Isa, Ju, Nel, Sol, meu muito obrigada pela construção em conjunto!
Agradeço em especial à maravilhosa Poli Passos, que desconcertou muitas vezes os rumos desta
pesquisa com suas palavras cortantes, indicações de textos (inclusive literários) e comentários
ácidos, que modificaram profundamente minha vida e meu corpo. Obrigada por me ensinar que
pesquisar é um ato íntimo, pessoal e que traz prazer, mesmo sendo muito difícil.
Agradeço a todes estudantes e professores que compõem o Grupo de Estudos e Pesquisas em
Sexualidades (GEPSs), onde muitos questionamentos deste texto começaram a ser tecidos. E
porque foi ali que aprendi efetivamente que a pesquisa exige liberdade de pensamento.

Agradeço às pessoas que não nomeei mas que em algum momento se fizeram presentes, pois
carrego nessa dissertação muitas palavras de incentivo.

E, assim como comecei, termino agradecendo a lugares: à Universidade Federal do Espírito


Santo e ao Instituto Federal do Espírito Santo, pela formação. Eu me orgulho em dizer que sou
filha de uma educação pública, gratuita e de qualidade, e dessa luta não quero me apartar
facilmente.
Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-
lhe instituir o corpo como modelo: “não se sabe o que pode o
corpo…” Esta declaração de ignorância é uma provocação.
Fala-se da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus
efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as
paixões – mas nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo.
Gilles Deleuze

Formados no contexto filosófico do dualismo metafísico


ocidental, muitos de nós aceitamos a noção de que existe uma
cisão entre corpo e mente. Crendo nisso, as pessoas entram na
sala de aula para ensinar como se apenas a mente estivesse
presente, e não o corpo. Chamar atenção para o corpo é trair o
legado de repressão e negação que nos foi transmitidos por
professores que nos antecederam, geralmente brancos e do sexo
masculino.
bell hooks
RESUMO

Nas concepções ocidentais, desde pelo menos a Modernidade, ressoa um entendimento de corpo
como algo restrito ao biológico, fragmentado, limitado, separado da mente e inferior a ela. No
entanto, filósofos como Baruch de Espinosa e Gilles Deleuze mostram que não sabemos do que
o corpo é capaz. Sob a ótica de que corpo é potência de afetar e ser afetado, esta pesquisa buscou
experimentar, por meio da arte, o que pode um corpo em contexto educativo. Assim, realizamos
oficinas artísticas de diversas frentes – de criatividade, de colagens, de zine, de expressão
corporal, entre outras, acompanhadas por artistas convidados – no Ponto de Cultura Varal
Agência de Comunicação, localizado em Itararé, Vitória – Espírito Santo. Ali reunimos pessoas
interessadas nessa experimentação, dando prioridade aos moradores da região Poligonal 1 de
Vitória, conhecida como Território do Bem. Sabemos que no capitalismo contemporâneo ainda
tenta-se dominar o corpo, moldando formas de vida fixas e enrijecidas, mas as fugas acontecem.
Por isso, movidos pelos encontros, exercitamos uma prática educativa que pretendeu traçar
resistências: apostamos na arte para ensejar outros modos de viver baseados em compor
alianças. Essa nova forma de vida é da ordem da criatividade, do afeto e do comum. Um dos
resultados da pesquisa foi a elaboração coletiva do produto educativo no formato zine, uma
espécie de livreto, que registrou as produções artísticas dos participantes da pesquisa que foram
feitas durante as oficinas, e também as lições que aprendidas nelas – com a função de ser uma
inspiração, ou melhor, um convite para que práticas educativas afirmativas se multipliquem.

Palavras-chave: Corpo. Ensino-Educação. Arte. Oficinas artísticas. Zine.


ABSTRACT

Amongst the occidental conceptions, since at least Modernity, resonates an understanding of


the body as something restricted to the biological factor, fragmented, limited, separated from
the mind and inferior to it. However, philosophers like Baruch de Espinosa and Gilles Deleuze
show that we don't know what the body is capable of. From the perspective that the body is the
power to affect and be affected, this research sought to experiment, through art, what a body
can in an educational context do. Therefore, we held workshops with different art areas –
creativity; collages; zine; of body expression, among others, accompanied by guest artists – at
Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação, located in Itararé, Vitória – Espíriso Santo.
There we gathered people interested in this experimentation, giving priority to the dwellers of
the Poligonal 1 region of Vitória, known as Território do Bem. We know that in contemporary
capitalism, there is an attempt to dominate the body, forcing fixed and rigid life forms. But
escapes happen, and for that reason, moved by encounters, we exercised an educative practice
that intended to create resistance: we chose art as a mean to give rise to other ways of living
based on composing alliances. This new way of life is intertwined with creativity, affection and
the common. One of the research results was the collective elaboration of the educational
product in zine format, which is an kind of booklet that we used to gather the artistic productions
made during the workshops by the participants, and also the lessons we learned from them –
with the purpose of being an inspiration, actually, an invitation to multiply affirmative
educational practices.

Keywords: Body; Teaching-Education; Art; Art Workshops; Zine.


SUMÁRIO

1 ESTE É “MEU” CORPO ......................................................................................... 14


2 INVENTANDO OUTROS CORPOS POSSÍVEIS .................................................. 20
2.1 CORPO NA MIRA DA HISTÓRIA ........................................................................... 29
2.2 RELAÇÕES DE PODER E RESISTÊNCIAS NO CORPO ........................................ 41
3 O QUE PODE UM CORPO QUANDO COMPÕE UM COMUM? ....................... 62
3.1 POR ONDE CAMINHA ESTE CORPO? ................................................................... 76
3.2 PODE UM CORPO SER UM CONVITE À EDUCAÇÃO? ....................................... 85
3.3 CORPOS PERIFÉRICOS EM ALIANÇA ................................................................ 108
4 A ESCRITA DESSE CORPO NÃO CHEGA AO FIM ......................................... 112
OUTROS CORPOS DA PESQUISA ..................................................................... 115
ANEXO I – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ...... 126
ANEXO II – TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ........ 128
ANEXO III – TERMO DE CESSÃO DE IMAGEM E VOZ PARA FINS
EDUCACIONAIS ................................................................................................... 130
APÊNDICE A – PROPOSTA DE PRÁTICA EDUCATIVA ................................ 131
14

1 ESTE É “MEU” CORPO

Como é difícil para nós pensar que podemos escolher


tornar-nos escritoras, muito mais sentir e acreditar que
podemos! O que temos para contribuir, para dar? […]
Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas
tenho um medo maior de não escrever.
Glória Anzaldúa

Muitos discursos recaem sobre o corpo na busca de entendê-lo, defini-lo, categorizá-lo e


organizá-lo. Nesse sentido, existe uma determinada tradição científica que o enquadra no
âmbito da natureza, entendendo que o corpo é apropriado pela cultura, e que nesse processo
recebe significados. Como no texto de José Carlos Rodrigues (1979), essas formulações
afirmam-no como “o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais normal patrimônio que
o homem possui. […] uma categoria própria, sistematicamente relacionada às outras categorias
sociais” (p. 47).

O que se vê nesses trabalhos não é uma negação completa dos aspectos culturais que perpassam
o corpo, o que evidentemente seria uma proposição absurda no contexto das ciências humanas.
Porém, ao mesmo tempo, essa tradição manifesta uma busca pela “essência” do corpo, um
denominador comum que apareceria em todos os corpos de todas as sociedades, aquilo que está
imutável no interior, um aspecto considerado puro a partir do qual a cultura age. E essa noção,
não obstante, acaba por polarizar natureza e cultura.

Aqui, entretanto, se parte da concepção do corpo produzido cultural e discursivamente. Ou,


antes disso, de um corpo inventado. Dessa maneira, o (falso) antagonismo entre natureza e
cultura é questionado, porque tais categorias não são entendidas como separadas ou opostas,
mas como fabricadas. A própria noção de que algo – como o corpo – é natural, também é
construída culturalmente:

Não há nada a ser descoberto na natureza, não há segredo escondido. Vivemos na


hipermodernidade punk: já não se trata de revelar a verdade oculta na natureza, e sim
da necessidade de explicitar os processos culturais, políticos e tecnológicos por meio
dos quais o corpo, enquanto artefato, adquire um status natural. (PRECIADO, 2018,
p. 38)

O corpo não é homogêneo, é aliás atravessado por muitos elementos de ordem econômica,
social, política, cultural e subjetiva. De modo algum é “[…] um dado imutável, antes se
revelando na sua historicidade, sendo a origem e o resultado de um longo processo de
elaboração social” (CRESPO, 1990, p. 8). Também é contraproducente pensar como Carmen
15

Lúcia Soares (2004b) quando afirma que no corpo estão “[…] as últimas fronteiras a serem
desvendadas pela cultura” (p. 18). Ao contrário disso, queremos pôr em dúvida aquilo que é
aparentemente natural, e jamais tomá-lo como pronto e constituído, mas como um processo. É
“[…] inútil retroceder a um suposto grau zero das civilizações para encontrar um corpo
impermeável às marcas da cultura” (SANT’ANNA, 2005, p. 12).

Diante disso, não se pode conceber o corpo como como algo concreto, acabado em si mesmo e
pronto desde o nascimento (LOURO, 2000). Essa compreensão é uma redução do corpo a uma
simples constituição corporal: esse que se entende como puramente biológico, com funções
definidas, fragmentado, cheio de órgãos e submetido à mente. O que este trabalho quer sugerir,
diferente disso, é um corpo que não é só o meu ou o seu corpo, mas é um corpo como
experimentação.

Assim como mostra Gilles Deleuze (2002), Baruch de Espinosa já anunciou: não sabemos o
que pode um corpo. O que Deleuze mostra na companhia da escrita de Espinosa é um corpo
como modelo da filosofia prática, uma filosofia do corpo – ainda que o tempo todo tente-se
dominar o corpo e suas paixões, não se sabe do que ele é capaz. O corpo ultrapassa o
conhecimento que se tem dele (LINS, 2002). Ou seja, aqui não há a pretensão de definir o que
é um corpo, mas mais uma vez evocar o que a filosofia desses autores nos apresentou: o que
pode um corpo?

Temos pistas de que os corpos podem escapar ao controle em linhas de fuga, quando elaboram
outras formas de agir, sentir, pensar e estar no mundo. “Planos de fuga, deserções, nomadismos,
escapatórias; movimentos de resistência plurais, imprevisíveis, multicoloridos, inscritos nos
corpos” (MAÇÃO, 2016b, n.p.).

Deleuze coloca um papel de destaque no corpo durante sua obra, entendendo-o como algo que
não se opõe à mente, mas que é simultâneo a ela. Distante do corpo nas suas formas essenciais,
o filósofo pensa um corpo que é uma relação de forças, um corpo que experimenta, que se move
pela capacidade de afetar e ser afetado (BARBOSA, 2018). Desse modo,

Os afetos básicos, dos quais todos os outros derivam, são a alegria, que nada mais é
do que o aumento da capacidade de agir do corpo, e a tristeza, que consiste na
diminuição desta mesma capacidade. Os afetos são variações da capacidade de agir
do corpo, que pode ser ajudada ou impedida em seus encontros com outros corpos.
Além disso, há afetos passivos, ou paixões, sempre causados por outros corpos, e
afetos ativos, ou ações, dos quais o próprio corpo é a causa formal. As paixões podem
ser alegres ou tristes, mas as ações são sempre alegres, pois denotam necessariamente
um aumento da capacidade de agir do corpo. (BARBOSA, 2018, p. 872)
16

Diante disso, esta pesquisa se guiou pelo objetivo geral de buscar a potência de um corpo que
experimenta com arte em um contexto de prática educativa. São muitos os questionamentos
que acompanharam esse querer: o que pode um corpo nos encontros com outros corpos? Como
pode o corpo afetar e ser afetado? O que pode um corpo em experimentação artística nos
espaços educacionais?

Portanto, os capítulos desta dissertação são estruturados de modo a dar conta dos objetivos
específicos da pesquisa. No capítulo “Inventando outros corpos possíveis”, tento rapidamente
investigar o aparecimento do corpo na produção teórica recente, a qual tem operado de modo
a produzir o discurso da dualidade entre corpo e mente, reforçando que o corpo pertence ao
local da natureza, da limitação e da inferioridade. Também aponto como essa concepção
filosófica ainda ecoa na sociedade. Na sequência, apresento uma discussão sobre as relações
de poder que tomam o corpo como alvo, para diante disso, refletir sobre as maneiras que um
corpo pode traçar as resistências. Assim, nessas discussões temos o primeiro e segundo
objetivo específico.

O capítulo “O que pode um corpo quando compõe um comum?”, acompanha outras formas de
pensar o corpo e aumentar sua potência, e visa a compreender como o corpo se coloca nos
processos educativos e atua de modo a escapar das capturas do poder, comportando assim o
terceiro objetivo específico. Na escrita, pretendi estabelecer uma relação com meu próprio
corpo quando se faz professora/pesquisadora e, seguindo essa proposição, registro as apostas
metodológicas.

O último objetivo específico deste trabalho foi construir junto a outros corpos participantes da
pesquisa um material educativo em forma de zine, onde registramos nossos aprendizados e as
produções artísticas (ilustrações, poemas, colagens etc.), originadas nesse percurso. As zines
são livretos sobre temáticas variadas, produzidas com baixo custo e de forma independente. Ao
longo do trabalho volto a explicá-las e a contextualizar a forma como foram desenvolvidas.

Este trabalho está inserido na área de Ensino 1. É comum encontrar na discussão acadêmica uma
diferenciação entre as categorias “educação” e “ensino”, onde se reduz esta a uma mera
transmissão de informações e apresenta aquela como uma formação geral. Ou seja, perspectivas
que entendem o ensino como um campo conteudista ou como um aspecto menor e específico

1
Nesse caso, refiro-me a Ensino como uma das grandes áreas de avaliação da CAPES – Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, encaixada no colégio multidisciplinar.
17

vinculado à abrangência da educação. Aqui, uma redução assim não faz sentido, porque
compreendo as “[…] relações entre educação e ensino com base na ideia de enredamento entre
elas” (OLIVEIRA et al., 2012, n.p.).

Desse modo, ora utilizo o termo ensino, ora utilizo educação, mas em ambos os casos tentando
expressar o sentido de ensinoeducação, ampliando os significados dos termos sozinhos e
apontando um caminho possível, o qual aposta nas relações complexas que se formam nas redes
educativas, justamente “[…] porque na constituição das ações educativas cotidianas […] há
sempre e permanentemente ensino e educação, educação e ensino, indissociáveis um do outro”
(OLIVEIRA et al., 2012, n.p.).

Portanto, é significativo anunciar que a luta da educação se compõe no campo da micropolítica,


operando pequenas transformações, seja nas ações cotidianas da sala de aula, como afirma
Silvio Gallo (2002), seja em outros espaços – e até na feitura de uma pesquisa. Ademais,
semelhante à bell hooks2(2013), entendo que assim como corpo e mente, teoria e prática não
estão dissociadas. Denomino, portanto, como prática educativa 3 toda esta pesquisa, sem
intenção de colocar as ações distantes das reflexões teóricas, mas em uma relação constante na
qual o pensamento já é uma prática, e os modos de pensar ensejam os modos de vida
(BARBOSA, 2018).

Assim, para construir parte dessa prática, me aproximo de um espaço educativo com relevância
social e cultural, o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação, localizado no mesmo
bairro em que moro, Itararé, em Vitória, no Espírito Santo, para com a população da região
Poligonal 1, conhecida pelos moradores como Território do Bem, construir uma
experimentação, por meio da qual uma série de encontros se compõe para pensar sobre um
corpo e um comum.

Chamo de encontro pensando que

A educação é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para educar – e para


ser educado – é necessário que haja ao menos duas singularidades em contato.

2
A autora Glória Jean Watkins usa esse pseudônimo nos trabalhos acadêmicos e recomenda que seja grafado em
letras minúsculas, promovendo uma transgressão nas normas linguísticas com a mensagem de que o foco é o texto,
e não quem o escreve.
3
A escolha dessa nomenclatura se deu também porque o trabalho está inserido na linha de pesquisa Práticas
Educativas em Ensino de Humanidades. No Regulamento do PPGEH há a definição: “Práticas Educativas em
Ensino de Humanidades: trata-se da investigação, no campo do ensino de humanidades, que aborda a práxis
educativa em suas diversas formas em espaços educativos formais ou não formais de educação, com o objetivo de
produzir material educativo voltado para o ensino, a ser utilizado por educadores, nas mais diversas circunstâncias”
(PROGRAMA ..., 2017, p. 2).
18

Educação é encontro de singularidades. Se quisermos falar espinosanamente, há os


bons encontros, que aumentam minha potência de pensar e agir – o que o filósofo
chama de alegria – e há os maus encontros, que diminuem minha potência de pensar
e agir – o que ele chama de tristeza. A educação pode promover encontros alegres e
encontros tristes, mas sempre encontros (GALLO, 2008, p. 1).

Esses encontros, portanto, se delinearam na forma de oficinas artísticas 4, e marcaram a aposta


desta pesquisa em caminhar com a arte, sabendo que ela abre possibilidades de vida comum na
criação de afetos. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2020, aconteceram 20 horas de
oficinas na Varal, as quais se produziram como espaço coletivo para experimentar processos
artísticos variados.

Para registrar as produções dos participantes das oficinas, houve a confecção de uma zine
chamada “Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal” 5. Esse material
inicialmente seria apenas uma espécie de exposição artística das produções feitas nos encontros,
mas a partir das provocações da banca de qualificação, ele se transformou em algo que vai além,
e agora traz também marcas de alguns aprendizados que atravessaram a mim e aos outros
participantes. Apesar disso, nele não houve a intenção de traçar um roteiro de como conduzir
oficinas, mas antes, abrir possibilidades de criação que podem motivar experimentações
educativas em outros espaços.

A escolha de falar sobre corpo nos encontros se deu porque esse assunto me toca de modo muito
íntimo e particular. Esse corpo que por tanto tempo no saber acadêmico foi “[…] confinado às
margens, às fronteiras, às zonas de sombra, às alcovas e aos cantos” (DEL PRIORE, 1994, p.
49). Por muito tempo também coloquei meu próprio corpo num local de esconderijo, mas
escrever sobre isso é estar exposta às marcas e cicatrizes que carrego. E mais, ao fazer isso,
acabo por “[…] reabri-las, para delas e com elas me colocar na e pela escrita, e, assim,
(re)atualizar-me. (Re)atualizar, portanto, as marcas e as cicatrizes, compondo assim, um outro
corpo” (SILVA, 2010, p. 21).

Nesse sentido, se “[…] a história do corpo faz pouco caso das fronteiras, sejam estas nacionais
ou disciplinares” (COURTINE, 2008, p. 11), aos moldes de Glória Anzaldúa (2010) afirmo que
“para viver nas fronteiras / é preciso viver sem fronteiras / ser uma encruzilhada” (p. 113). Fazer
do corpo uma encruzilhada é compreender as tensões que se dão nas bordas e periferias, que

4
O detalhamento das oficinas, com as temáticas, carga horária e outras informações importantes está no Apêndice
A.
5
A zine está disponível em formato físico na biblioteca do IFES campus Vitória e na sede da Varal. Seu formato
digital (e-zine) pode ser encontrado no site do PPGEH, na seção de produtos educacionais.
19

questionam os limites fixos e de aprisionamento que se atribui a ele, e assim, construir outros
significados.

Sei que esse exercício não se tece de modo solitário, mas apenas num fluxo de muitos corpos
que se relacionam nos encontros. Por isso este trabalho carrega não só a mim e minhas
experiências, mas também as vozes de autores, professores, colegas, obras de arte, museus,
ruas, becos, praças, morros, vielas, filmes, músicas, paisagens, viagens, poesias e, enfim, tantos
acontecimentos que o permitiram ser escrito. Este não é o meu6 corpo, este é um corpo da
multidão.

6
É importante ressaltar que parte da introdução foi escrita na primeira pessoa do singular. Mas devido ao que foi
dito aqui outros trechos do trabalho também serão grafados em primeira pessoa do plural, e essa variação se fará
necessária de acordo com o contexto do que está escrito.
20

2 INVENTANDO OUTROS CORPOS POSSÍVEIS

O corpo é onde a luta viveu


Meu campo de batalha sou eu […]
Sei que vão dizer ser impossível
Que outro dia vai nascer corrompido
Se todo mundo diz que é assim
Melhor eu inventar um mundo novo
Móveis Coloniais de Acaju

No filme Her (2013), a personagem Samantha é um sistema operacional (OS) com inteligência
artificial que vive um relacionamento amoroso com Theodore, um humano. Ela expressa várias
vezes seu desejo de possuir um corpo, como se apenas isso fosse capaz de lhe conferir uma
experiência completa, não apenas no romance, como também no mundo. Samantha é um
sistema complexo: possui intuição, personalidade e a habilidade de crescer com os aprendizados
e evoluir a cada momento. A personagem afirma-se como uma consciência. Contudo, sua
incorporeidade é o problema central na história porque, para ela, configura a impossibilidade
de estar viva. É evidente que, nesse caso, a narrativa se constrói em torno do humano biológico
como referencial a ser alcançado.

Entretanto, na contramão dessa personagem do filme, a qual coloca no corpo uma expectativa
positiva, podemos notar que, historicamente, se estabeleceu na filosofia ocidental uma tradição
dualista que opõe natureza e cultura. Essa polarização se expressa na noção de que o corpo e a
mente estão separados, sendo o corpo local daquilo que é passageiro, das penitências, do pecado
e de aprisionamento. A mente, por sua vez, seria onde está a razão e o intelecto (HOOKS, 2013).
Distante disso, pensamos aqui que o corpo está para além de sua redução ao biológico e supera
o dualismo corpo/mente:

O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo superior – uma alma imortal, o
universal, o pensamento – mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da
qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É essa a
grande virtude da nossa definição: não faz sentido definir o corpo diretamente, só faz
sentido sensibilizá-lo para o que são esses outros elementos. Concentrando-nos no
corpo, somos imediatamente – ou antes, mediatamente – conduzidos àquilo de que o
corpo se tornou consciente. (LATOUR, 2008, p. 39)

Para nós, trata-se de um corpo que se produz nas experimentações. Peter Pelbart (2008a), a
partir de Gilles Deleuze, afirma que “[…] um corpo não cessa de ser submetido aos encontros,
com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes – um corpo é primeiramente
21

encontro com outros corpos, poder de ser afetado” (p. 12). Corpo não é exatamente algo que
possuímos ou somos, é algo que fazemos – um corpo é algo que fazemos juntos7.

Deleuze diz que Baruch de Espinosa tem duas definições de corpo: “A definição cinética será:
todo corpo se define por uma relação de movimento e de repouso. A definição dinâmica é: todo
corpo se define por certo poder de ser afetado” (DELEUZE, 2019, p. 293). Portando, olhar para
o corpo como poder de ser afetado é compreender que em nós se sucedem ideias em todos os
momentos, e “seguindo esta sucessão de ideias, nossa potência de agir ou nossa força de existir
é aumentada ou diminuída de uma maneira contínua, sobre uma linha contínua; e isto é o que
nós chamamos afeto, o que nós chamamos existir” (DELEUZE, 2019, p. 42).

Espinosa mostra que o corpo está em constante encontro com outros corpos, de modo que nesses
encontros um corpo produz ações ou efeitos sobre o outro, causando uma mistura de corpos,
estado que chama de afecções. A afecção é uma marca de um corpo sobre outro. Esses encontros
entre os corpos podem ser maus, e produzir paixões tristes; ou bons, e produzir paixões alegres.
A alegria e a tristeza, nesse caso, não se referem exatamente aos sentimentos, mas à potência
de ação do corpo: um bom encontro é o que aumenta a potência de agir, e gera alegria; do
mesmo modo, um mau encontro diminui a potência de agir, gerando tristeza. Nesse sentido, é
necessário fazer os encontros que nos convém (DELEUZE, 2019).

Pensar o corpo a partir de uma ética dos afetos é perguntar de que ele é capaz: o que pode? Ou
seja, não temos tanta preocupação em definir o corpo, até porque com essa filosofia aprendemos
a não definir as coisas por sua essência, pelo que elas são, mas por sua potência, pelo que elas
podem (DELEUZE, 2019).

Trata-se de definir as pessoas, as coisas, os animais, qualquer coisa, pelo que cada um
pode. As pessoas, as coisas, os animais, se distinguem pelo que eles podem; isto é,
eles não podem a mesma coisa. O que eu posso? Jamais um moralista definirá o
homem pelo que ele pode, um moralista define o homem pelo que ele é, pelo que ele
é em direito. Então, um moralista definirá o homem por animal racional. É a essência.
Espinosa jamais define o homem como um animal racional, ele define o homem pelo
que ele pode, corpo e alma. […] No nível do animal, vemos muito bem o problema.
Se vocês tomam o que chamamos história natural, […] Ela define o animal pelo que
o animal é. Em sua ambição fundamental, trata-se de dizer o que o animal é. O que é
um vertebrado, o que é um peixe, e a história natural […] está cheia dessa busca da
essência. […] Imaginem estes tipos que chegam e procedem completamente de outro
modo: interessam-se pelo que a coisa ou pelo que o animal pode. Eles vão fazer uma
espécie de registro dos poderes do animal. Este pode voar, aquele come erva, tal outro
come carne. O regime alimentar, vocês sentem que trata-se dos modos de existência.

7
Essa frase é uma referência, ou melhor, uma apropriação de um trecho encontrado no texto “Transfeminismo”,
de Paul B. Preciado, onde ele diz: “Gênero é algo que fazemos, não algo que somos – algo que fazemos juntos.
Uma relação entre nós, não uma essência” (PRECIADO, 2015, p. 4).
22

Uma coisa inanimada também, o que é que ela pode, o diamante, o que ele pode? Ou
seja, de que experiências é capaz? O que suporta? O que ele faz? […] Definimos as
coisas pelo que elas podem, o que abre às experiências. É tudo uma exploração das
coisas, que não tem nada a ver com a essência. É preciso ver as pessoas como
pequenos pacotes de poder. Eu faço uma espécie de descrição daquilo que podem as
pessoas. (DELEUZE, 2019, p. 139)

Nossa pergunta central sempre se voltará para o que pode um corpo. Ainda assim, é interessante
traçar alguns entendimentos sobre ele. Dessa maneira, afirmamos que o corpo é uma construção
social e discursiva. Contudo, não queremos repetir o caminho de determinados construtivismos,
demonstrado por Francisco Ortega (2010), que recaíram na tradição que pretendiam criticar
quando colocaram o corpo como lugar onde a cultura se inscreve, como se fosse um receptáculo
das significações, e desse modo, acabaram por afirmar que há algo de essencial nele.

Tanto o essencialismo como o construtivismo partem de uma concepção cartesiana do corpo,


entendendo a consciência como algo imateria e o corpo material como algo mecânico. Ambos
os modelos seguem o mesmo fundamento metafísico: “[…] a crença segundo a qual o corpo
resguarda um grau zero ou uma verdade última, uma matéria biológica (o código genético, os
órgãos sexuais, as funções reprodutivas) ‘dada’” (PRECIADO, 2014a, p. 157).

A aposta aqui, desse modo, é escapar dessas concepções que soam como armadilhas, e não nos
render ao essencialismo nem ao construtivismo. Entendendo, de acordo com Guacira Lopes
Louro, que, na verdade, as redes discursivas inventam um real. Isso não significa que o corpo
material não exista, mas apenas indica que o corpo é uma fabricação: não pode ser entendido
como um elemento pré-discursivo e estritamente natural (LOURO, 2000). O corpo é um sujeito
e objeto histórico, e como certa teoria da história nos mostra, os sujeitos históricos não têm
essência, eles se fazem sujeitos no momento em que atuam na relação e, portanto, não estão
prontos no início da ação, não têm um sentido dado a priori (ALBUQUERQUE-JÚNIOR,
2007).

Nosso argumento não é que o corpo seja discursivamente construído em um sentido


determinista, como uma negação da materialidade dos fatos, ou como se percebêssemos a
realidade como um simulacro e apenas uma construção narrativa. Não se pode reduzir as ações
do corpo aos discursos, no entanto esses elementos estão relacionados, de modo que cada
discurso que recai sobre sujeitos e objetos é uma dobra de enunciações que instituem esses
sujeitos e objetos (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007). Entendemos, assim, que o corpo é
integrado com a mente; e, além disso, é uma invenção, e se produz na relação, se produz no
acontecimento.
23

De modo que nessa produção ele ganha o que Guacira Lopes Louro (2000) chama de marcas,
isto é, as características de distinção entre cada corpo. Isso significa que cada sociedade, em
seu tempo histórico, elege determinadas partes do corpo como relevantes para conferir
inteligibilidade aos indivíduos. Nossa sociedade, por exemplo, diz que a vagina, o pênis e a cor
da pele são partes corpóreas tão importantes que definem verdades sobre o sujeito, de modo
que a partir desses traços a identidade (e também a diferença) é construída.

A autora questiona os motivos de serem essas as características fundamentais para nós, e não
outras, como o tamanho das orelhas ou o formato das mãos, por exemplo. E nisso, podemos ver
notadamente que são as relações de poder que engendram algumas características, colocando-
as com mais valor do que outras. Os corpos são inscritos por marcas da cultura, marcas que
falam dos sujeitos – há a necessidade de compreender a verdade do outro: saber o gênero, a
raça, a sexualidade, acessar uma identidade (LOURO, 2000). Todavia, essas marcas se
transformam ao longo do tempo, e por isso o corpo não está fechado e acabado em um
entendimento restrito. O que nos interessa a partir disso é questionar determinados valores
impostos ao corpo que, na nossa perspectiva, têm se amparado em violências.

Uma dessas violências apareceu no contexto europeu, na Idade Moderna, quando o corpo
passou a ser visto como traço de demarcação de uma certa humanidade, uma “[…] possibilidade
de ser um território de preservação do humano factível […]” (SOARES, 2004a, n.p.). Sabemos
que o corpo é aberto, mutável e disforme, mas não podemos negar que esteve e ainda está sob
uma concepção regulamentária que se ampara em uma noção normativa de humano
(WIRCKER; KIFFER, 2014).

Ou seja, a Modernidade europeia criou a imagem de determinado corpo e conferiu a ele uma
visibilidade universal, como se representasse o humano: um humano específico e regido por
uma normalidade, isto é, uma categoria de humano excludente (TUCHERMAN, 1999). Foi a
partir dessa conjuntura que se enxergou determinados corpos como dignos desse status de
humano e outros não, como bem explica Paul B. Preciado:

Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da


Revolução Industrial, mas sim o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do
sexo e reprodutora, e os animais. As primeiras máquinas da Revolução Industrial
foram máquinas vivas. Assim, o humanismo inventou um outro corpo que chamou
humano: um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um corpo
estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos
desejos são os efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade,
igualdade, fraternidade. O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos
princípios universais do humanismo europeu. O regime de escravidão, e depois o
24

regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos “homens


modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o
reverso da igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da
fraternidade. O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial
repousam, portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e
sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de máquinas
(re)produtivas. (PRECIADO, 2014b, n. p.)

Não sem motivo, portanto, tantas populações nesse período da história não foram consideradas
humanas e, aliás, foram representadas como seres bestiais, sem alma, animais ou demônios,
como foi o caso dos ameríndios (FEDERICI, 2017). Na tentativa de definir aquilo que é inerente
ao ser humano, opera-se um exercício de diferenciação entre as espécies. Disseca-se corpos,
desenha-se teorias, cumprem-se análises a partir de muitos métodos para buscar o que nos torna
uma espécie superior às outras, o que compõe nossa humanidade.

E ainda que essa distinção se estabeleça pela afirmação de uma racionalidade que, em tese, os
outros animais não possuam, com frequência os mecanismos que nos demarcam como humanos
são estabelecidos a partir de alguma característica supostamente intrínseca aos corpos. Vemos,
portanto, que tanto no passado como na atualidade, isso se dá pelos
“[…] processos de assujeitamento, isto é, buscando apropriar-se de uma multiplicidade de
corpos e modos de vida, e, ao mesmo tempo, pedindo aos ‘homens’ que afirmem-se enquanto
tais, reiterando o discurso que os assujeita” (WIRCKER; KIFFER, 2014, n.p.).

Entre as ditas essências que são procuradas para demarcar aquilo chamado de humanidade,
muitos recorrem ao corpo; seja aos aspectos biológicos ou até mesmo às características
subjetivas – que teoricamente estariam resguardadas dentro de uma materialidade orgânica
específica. Esses atributos corporais serviriam para diferenciar os humanos das outras espécies
e, sem dúvidas, colocam-no como superior a elas. Com efeito, Felipe Wircker e Ana Kiffer
(2014) mostram que os limites do que é considerado humano são instáveis, e a todo momento
fogem e se redefinem. Diferente do que se propôs no passado, acreditamos que o corpo não
guarda indícios de uma pretensa humanidade, porque a própria categoria de humanidade é uma
produção que exclui corpos.

O corpo não guarda em si as marcas que definem a categoria de humanidade, como também
não possui em si uma naturalidade estrita, e por isso nos interessa problematizar o que se
pretende natural nele. Como dito, por muito tempo entendeu-se que o corpo possui uma
naturalidade essencial que é sobreposta pela cultura. No entanto,
25

Ao contrário do que pensavam os modernos, não fabricamos só a cultura, também não


cessamos de fabricar a natureza, inclusive a nossa, mas também somos objetos tanto
para a natureza, como para a cultura, somos fabricados por elas, somos seus produtos
e produtores. (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007, p. 34)

Em uma atualização do conflito entre natureza e cultura, Preciado (2014a) enfatiza que hoje
opera-se uma oposição entre a natureza e a tecnologia. Essa tecnologia de que fala o autor se
trata de “[…] um dispositivo complexo de poder e de saber que integra os instrumentos e os
textos, os discursos e os regimes do corpo, as leis e as regras para a maximização da vida, os
prazeres do corpo e a regulação dos enunciados de verdade (PRECIADO, 2014a, p. 154).

A ação da tecnologia, portanto, reside em produzir a natureza, ou seja, inventa a ideia de que
existem artefatos puramente naturais e intocados por outras instâncias. Desse modo, se falseiam
muitos antagonismos: “O termo tecnologia (cuja origem remete à techné, ofício e arte de
fabricar, opondo-se a physes, natureza) coloca em funcionamento uma série de oposições
binárias: natural/artificial, órgão/máquina […]” (PRECIADO, 2014a, p. 147).

Mais do que apenas inverídica, a separação entre natureza e cultura (ou natureza e tecnologia)
é também injustificada, já que foi historicamente usada de modo que determinados grupos de
pessoas – especialmente provenientes da cultura ocidental – dominassem a natureza, os animais
e também outros grupos de pessoas que são enquadrados nesse espaço. Preciado (2014a) afirma
isso enfatizando que, ao longo da história, alguns pensamentos reduziram determinados corpos
a um natural estrito, para que assim se tornassem passíveis de sujeição. O autor também expõe
como, no contexto da colonização do dito Novo Mundo, o corpo masculino branco europeu,
esse que seria supostamente detentor da cultura, era visto como possuidor de uma razão, e que
por isso deveria domesticar a natureza, domá-la e dominá-la.

E, de fato, esse corpo se utilizou de tal concepção para que outros corpos (femininos e
racializados, por exemplo), fossem colocados em um lugar de inferioridade, como corpos sob
um signo de uma natureza sem razão e, portanto, aculturados. Para explicar isso melhor,
Preciado parte dos estudos de Donna Haraway, e explica que o discurso colonial colocou os
povos indígenas como parte do mundo natural por não terem os mesmos aparatos tecnológicos
que os colonizadores conheciam e, sendo assim, pela lógica colonizadora, poderiam ser
explorados como a natureza (PRECIADO, 2014a).

Isso quer dizer que houve uma construção de verdades que pretenderam situar determinados
corpos nesse lugar dito natural. Esse enunciado, portanto, tentou apresentar que o domínio dos
corpos subalternos é de uma ordem imutável, como se determinados corpos precisassem
26

continuar dominados justamente por ocuparem o lugar da natureza: partindo-se do pressuposto


que um corpo é puramente natural, e independente das alterações sociais (ou de outras
instâncias) nas quais ele está inserido, seu âmago inalterável confere uma possibilidade de
dominação (PRECIADO, 2014a).

Desse modo, o que nos move “[…] não é a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é mais
o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos a outros” (PRECIADO,
2014a, p. 21). Compreendemos que até nossas características mais “naturais” estão entranhadas
pelo social e tecnológico, e assim sofrem transformações constantes ou, ainda, fabricações
constantes. Diante disso, não há possibilidade de demarcar precisamente o que é um corpo
natural e o que é tecnologia artificial, justamente porque a tecnologia não é aquilo que modifica
a natureza dada, mas aquilo que produz essa natureza:

Os discursos das ciências naturais e das ciências humanas continuam carregados de


retóricas dualistas cartesianas de corpo/espírito, natureza/tecnologia, enquanto os
sistemas biológicos e de comunicação provaram funcionar com lógicas que escapam
a tal metafísica da matéria, é porque esses binarismos reforçam a estigmatização
política de determinados grupos (mulheres, os não brancos, as queers, os
incapacitados, os doentes…) e permitem que eles sejam sistematicamente impedidos
de acessar as tecnologias textuais, discursivas, corporais etc. que os produzem e os
objetivam. Afinal, o movimento mais sofisticado da tecnologia consiste em se
apresentar exatamente como “natureza” (PRECIADO, 2014a, p. 168, grifos nossos).

Além disso, ainda que a distinção entre natureza e cultura esteja totalmente fincada na
cosmovisão ocidental, podemos, com as devidas críticas, versar sobre os modos como outras
sociedades percebem-na. Eduardo Viveiros de Castro (2004) indica que no pensamento
ameríndio as categorias “natureza” e “cultura” “[…] são parte de um mesmo campo
sociocósmico” (p. 234). Na perspectiva de algumas sociedades indígenas, portanto, diferente
do que foi estabelecido pelo pensamento europeu, não é a cultura que é mutável e age diante de
uma natureza fixa, mas o contrário: a natureza é múltipla e a cultura é una. Ou seja: “Uma só
‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 239).

Para exemplificar esse modo de ver o mundo, olhamos para a corporalidade das sociedades
amazônicas, ou melhor, para a centralidade que o corpo assume no perspectivismo indígena. O
que Viveiros de Castro (2004) demonstra é que o corpo, para tais grupos, é um modo de ser,
aquilo que está entre a materialidade e a subjetividade, um conjunto de capacidades e afecções.
A diferença entre os corpos para esses indígenas só aparece do ponto de vista exterior, isto é,
todos os seres enxergam o mundo da mesma forma, o que se transforma na verdade é o próprio
mundo:
27

Os animais veem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus
corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologia
— quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos —,
mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o
que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou
solitário… A morfologia corporal é um signo poderoso dessas diferenças de afecção,
embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar
ocultando uma afecção jaguar. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 240, grifos
nossos)

Quando o autor se refere à morfologia corporal ocultar uma afecção, está dizendo que para
alguns grupos indígenas, os corpos podem sofrer transfigurações. Nessa concepção, os animais
se veem como gente, e a forma corpórea apresentada pelas espécies esconde a forma humana
interna, que apenas a própria espécie ou os xamãs podem enxergar. Mas isso não indica que na
compreensão indígena há uma essência verdadeira e uma aparência falsa. O corpo transforma
metafisicamente a identidade de quem o veste não para ocultar a essência humana, mas para ser
um instrumento no mundo (VIVEIROS DE CASTRO, 2004).

Esse é só um exemplo dentre as múltiplas possibilidades de metamorfose corpórea na sociedade


ameríndia; existem outras, que podem inclusive modificar a essência, realmente transformando
homens em animais ou espíritos, afetando a gestualidade e até a mudança corporal de fato
(VIVEIROS DE CASTRO, 1987). No nosso entendimento, isso exprime uma intensa
plasticidade do corpo nas concepções indígenas, na sua forma de vida, e coloca em questão toda
a rigidez e fixidez que nossa filosofia impõe aos corpos:

Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se os índios pensassem o mundo


de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”.
Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos os povos do planeta.
O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade para outra. Para os povos
ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma única cultura, que é sempre
a mesma para todo sujeito. Ser gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver
segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça,
caçar porco.
Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que é
construído, dependendo do observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no corpo
em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira
posição, superior e fundadora das outras duas. Ao passarmos de um observador a
outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa mudar.
(CARIELLO, 2014, online.)

Além disso, outra característica interessante do entendimento ameríndio sobre o corpo é de que
ele não assume, de imediato, o estado de acabado. A sociedade xinguana, por exemplo, vê a
necessidade da fabricação contínua dos corpos: o corpo precisa se submeter a processos de
feitura, que são constantes e intencionais. Esses processos se relacionam com intervenções
sobre o corpo, que entre outras coisas, consistem nos alimentos que recebe, nos fluidos que
28

pode ou não expulsar e nas tinturas que são marcadas na pele. As mudanças experimentadas
pelo corpo causam mudanças na posição social do indivíduo (VIVEIROS DE CASTRO, 1987).

Nas palavras do autor, o social não se deposita em um corpo inerte, como em geral o ocidente
compreende; para os ameríndios o social de fato cria o corpo: “Desta forma, a natureza humana
é literalmente fabricada, modelada, pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela
sociedade (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 40, grifos do autor). Viveiros de Castro (2004)
completa: “A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito: não há
mudança ‘espiritual’ que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de
suas afecções e capacidades” (p. 247).

Desse modo, mais uma vez aproximando a discussão do corpo ao estatuto da humanidade,
percebemos que no ocidente, essa condição é ambígua: a humanidade é também uma espécie
animal, de modo que a animalidade abarca os humanos, mas ao mesmo tempo, a humanidade
não compreende em si os animais, porque é uma condição moral excludente. Assim,
“[…] nossa cosmologia imagina uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica
entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza,
a segunda, das ciências da cultura” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 241).

Enquanto ocidentais, demarcamos o espírito para nos diferenciar do restante dos animais: o
espírito é a parte que singulariza os humanos entre si e os coloca acima dos bichos. Já o corpo
seria o que nos integra, conecta-nos aos outros seres vivos, e por isso resguardaria em si uma
natureza última dos corpos materiais. Para os ameríndios, por sua vez, o que prevalece é uma
continuação metafísica e uma descontinuidade física. Ou seja, “O espírito, que não é aqui
substância imaterial mas forma reflexiva, é o que integra; o corpo, que não é substância material
mas afecção ativa, o que diferencia” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 242). É evidente que
nessas discussões os pontos de vista ameríndio e ocidental não são compatíveis:

Escolhemos a haste correspondente à natureza como nosso suporte, deixando a outra


descrever o círculo da diversidade cultural. Os índios parecem ter escolhido a haste
do compasso cósmico correspondente ao que chamamos ‘cultura’, submetendo assim
a nossa ‘natureza’ a uma inflexão e variação contínuas. (VIVEIROS DE CASTRO,
2004, p. 250)

Todavia, diante de tudo isso, chama-nos a atenção que a forma como percebemos o corpo e nos
relacionamos com ele nos parece tão natural porque já está incorporada pelo nosso modo de
vida, e isso modela nossa sensibilidade. Essa naturalidade fabricada e falseada é uma expressão
de que o controle recai sobre o corpo, e tenta naturalizar aquilo que de modo algum pode ser
29

dito como natural; ou seja, “[…] nossos gestos mais ‘naturais’ são fabricados pelas normas
coletivas” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2008, p. 7). Tais normas que atingem os
corpos são os “[…] dispositivos socioculturais, semióticos, tecnológicos, econômicos, morais
etc., que funcionam atualmente de maneira a monitorá-lo, regulá-lo, modelizá-lo, enfim,
controlá-lo, reduzindo o corpo a um insípido organismo” (LINS; GADELHA, 2002, p. 10).

Sem dúvidas, o corpo vem ao longo da história sendo submetido ao adestramento e à disciplina,
em sucessivas crueldades que são impostas a ele, de modo que ele se encontra no limite da
impotência. Todavia, perguntamos o que pode um corpo; pois estamos certos que o corpo
experimenta a potência de resistir. Podemos até dizer que o corpo não aguenta mais tantas
investidas sobre ele, mas, que ainda assim buscamos a potência do corpo, porque
paradoxalmente, isso não indica sua fraqueza, mas ao contrário, exprime a potência que o corpo
tem de suportar, e além disso, criar novas possibilidades. Como mostra David Lapoujade
(2002), o corpo está desde sempre resistindo à organização que tenta lhe impor uma alma, e
nisso revela uma potência própria. Quer dizer, quando se pergunta o que pode o corpo,
concebemos uma potência própria ao corpo.

Isso posto, neste capítulo apresentamos nosso entendimento de corpo e, propomos a partir disso,
um olhar para a maneira como essa categoria emergiu na produção teórica; recuperando
brevemente os modos como as relações de poder historicamente atuam sobre o corpo; além de
reforçar as possibilidades de construir resistências a partir dele.

2.1 CORPO NA MIRA DA HISTÓRIA

Apesar de tradicionalmente estar vinculado às pesquisas nas áreas médicas e biológicas, já há


algum tempo os corpos têm cada vez mais se tornado interesse de diversos campos do
conhecimento, como mostra a historiadora Mary Del Priore (1995), e revelam mudanças nos
ângulos da abordagem histórica. No entanto, a temática do corpo foi por muito tempo um
personagem coadjuvante na construção do saber nas humanidades.

Segundo a autora, ao se tratar especificamente da História, o corpo entra como objeto de estudo
de maneira relevante a partir da Nova História, corrente que se iniciou na década de 1970,
quando os historiadores passaram a olhar com mais atenção para a vida cotidiana como fonte
de suas produções. Com isso, nas discussões sobre o passado começaram a aparecer os hábitos,
30

a sexualidade, as doenças, os rituais familiares, questões ligadas a nascimentos, casamentos e


mortes. Esses interesses fizeram aparecer, de certa forma, também o corpo, ainda que como
pano de fundo para os outros assuntos (DEL PRIORE, 1995).

A partir da década de 1980, a influência da Antropologia no fazer histórico ensinou aos


historiadores a importância de olhar para o imaginário e para o simbólico das sociedades
analisadas, revelando que até o campo perceptivo e dos sentidos também podem ser
historicizados. Assim, não apenas o corpo como uma determinação conceitual, mas também o
corpo na sua realidade corporal, e as relações sociais com ele, passam a ser alvo da História
(DEL PRIORE, 1995).

Pensamos o corpo como um objeto da História, e nesse sentido aqui o compreendemos como
inventado também por discursos históricos. Não nos centramos em uma história das ideias sobre
o corpo, a qual persegue os significados que foram atribuídos a ele em cada momento – ainda
que utilizemos autores que partem dessa concepção, pois, afinal, suas reflexões são válidas.

Contudo, queremos, na verdade, mostrar que o corpo é um objeto que se dá nas relações, e é
atravessado por fatores culturais, econômicos, subjetivos, e de outras ordens, todos localizados
historicamente. Portanto, falar sobre corpo e as relações sociais com ele em diferentes
sociedades e períodos, indica que as teias discursivas em cada temporalidade produzem
concepções diferentes sobre o corpo, e diferentes modos de interpelá-lo.

Desse modo, utilizar uma história que admite seu aspecto inventivo nos objetos que investiga é
interessante para nosso trabalho, pois, como afirma o historiador Durval Muniz de Albuquerque
Junior (2007), os “objetos e sujeitos se desnaturalizam, deixam de ser metafísicos e passam,
pois, a ser pensados como fabricação histórica, como fruto de práticas discursivas ou não, que
o instituem, recortam-nos, nomeiam-nos, classificam-nos, dão-nos a ver e a dizer” (p. 21).

No campo da historiografia, recorrer ao termo e à noção de invenção para pensar os objetos de


estudo, enfatiza uma variedade nos acontecimentos históricos, que não se resumem a uma
constância de fatos. Ou seja, as reflexões sobre a história não podem ser construídas sob o
prisma da linearidade, como se seu percurso fosse coeso e evolutivo (ALBUQUERQUE-
JÚNIOR, 2007).

Nem os objetos nem os sujeitos preexistem à história que os constitui. A História


possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu
curso e suas margens ao passar. Mas esses objetos e sujeitos também inventam a
31

história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que as
inventam. (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007, p. 29)

Dessa maneira, não nos interessa descrever precisamente uma cronologia, estabelecer uma linha
do tempo, nem tampouco descobrir a origem de cada corrente que versou sobre o corpo. Apenas
elencamos algumas percepções na história ocidental que enfatizam uma dicotomia entre corpo
e mente e a redução do corpo à esfera da natureza. Sem a pretensão de dar conta da imensa
complexidade que esse assunto comporta, pretendemos olhar para os rasgos, as exceções,
diferenças, descontinuidades e singularidades que emergem ao longo do tempo, e que assim
questionam a universalidade das ideias e teorias, mostrando uma multiplicidade na escrita da
história e nos acontecimentos históricos em si.

A história é um jogo múltiplo, e a tarefa do historiador é construir um discurso sobre o passado,


o que exige não tomar os fatos como dados, mas compreender as redes discursivas que o
construíram como fato histórico; de modo que o contexto no qual esse fato está inserido não é
suficiente para explicá-lo, porque os acontecimentos históricos comportam fugas, surpresas e
acasos na vida cotidiana, que são da ordem do incompreensível (ALBUQUERQUE-JÚNIOR,
2007).

Ademais, acerca do corpo, esse processo não é diferente e, justamente por isso, para
compreender as relações com o corpo na sociedade contemporânea, é fundamental se desdobrar
sobre os modos como ele foi visto e vivido no passado. Também cabe perceber como teorias e
correntes filosóficas há muito tempo tomaram-no como objeto de disputas narrativas, tentando
impor verdades sobre ele – algumas das quais pretendemos questionar, como já adiantamos, a
de que ele pertence à esfera de uma natureza irrestrita, ou de que é submetido à mente.

Sabemos, portanto, que cada grupo social, em sua época, enxerga o corpo de modos diferentes
e isso atinge a maneira como os indivíduos se relacionam com ele. Ou seja, há uma grande
dificuldade em tentar recuperar o conceito de corpo, porque historicamente ele se transforma
(FONTES, 2004). O corpo já foi e ainda é visto de formas muito diferentes, e até contraditórias.
Prova disso é que, dentre as muitas correntes de pensamento no mundo Antigo ocidental,
algumas viam-no como uma extensão do cosmo, ou melhor, um microcosmo inserido em um
macrocosmo. O corpo, nesse sentido, não era entendido como uma entidade autônoma, mas sim
como constituído pelos quatro elementos formadores do mundo natural: água, fogo, terra e ar.
Essa concepção via no corpo uma íntima relação com a natureza, e por isso entendia que sua
saúde dependia de fatores externos como o clima e as estações (SOARES, 2004b).
32

Entretanto, aos poucos e concomitantemente, outras formas de compreendê-lo foram


emergindo e, desse modo, ganhou eco a percepção do corpo como uma matéria finita, que
abriga uma alma, que na visão de alguns pensadores da Antiguidade era imortal. A própria
etnologia da palavra corpus (do latim) é uma flexão de corpo em oposição à alma, expressando
uma materialidade, algo que é da ordem do mundo sensível e que sem a alma é passivo e inerte
(FONTES, 2004).

Já no medievo do ocidente, certas perspectivas do cristianismo se diferenciaram de outras


concepções que viam os indivíduos mais incorporados no espaço, e dessa maneira, algumas
faces do pensamento cristão passaram a contribuir para uma distinção profunda entre homem e
natureza. “Assim, a natureza não é eterna e o homem não é um ser na natureza, mas um ser
diante dela” (SOARES, 2004b, p. 12, grifos da autora).

Os modelos corporais da Antiguidade Clássica não estavam totalmente apagados no período


medieval. Mas ainda podemos dizer que a austeridade cristã trouxe uma percepção cada vez
mais dominante para com o corpo quando cola nele um caráter pecaminoso: algo que estava
fadado a padecer e era um obstáculo para a salvação, porque comportava em si os desejos
mundanos e passageiros. Além disso, o corpo seria uma prisão da alma, ou seja, o homem
carrega um corpo, mas na verdade é a sua alma eterna e imortal que tem centralidade para a
moral cristã (SOARES, 2004b). Ainda tratando da visão de certas vertentes do cristianismo
sobre o corpo, Denise Bernuzzi Sant’Anna afirma que:

Enquanto a alma é pensada em termos positivos e dotada de imortalidade, o corpo


permanece mortal, aquilo que impede o homem de conquistar uma contemplação
serena da vida. Considerando seu duplo vergonhoso, o corpo padece e está fadado a
padecer, pois, diferentemente da alma, está submetido aos ciclos naturais, às
flutuações do desejo, aos perigos da corrupção. Afirma-se uma concepção, que
atravessará os séculos, na qual o humano tem um destino original em relação à
natureza, graças a sua alma imortal: homem e natureza, tanto quanto alma e corpo, se
afirmam como termos opostos. (SANT’ANNA, 2005, p. 13)

Em relação à Modernidade, de acordo com Denise Najmanovich (2001), o pensamento era


variado em termos de quantidade de intelectuais e da produção de discursos multifacetados.
Ainda assim, foi nesse período que se efetivou a imagem de um suposto corpo material, objetivo
e independente. Isso porque, a Europa, especialmente nos séculos 16 e 17, foi marcada pela
instauração de uma nova ordem social, que provocou uma mudança profunda de paradigmas.
As correntes teóricas do período estavam cada vez mais baseadas em cálculos, que buscavam
fenômenos estáveis inclusive no mundo social. Assim, os pensadores utilizavam instrumentos
33

de medição para interrogar a natureza, e abarcavam uma maneira de concebê-la a partir da


matematização da experiência.

Dessa maneira, essa nova ordem social desenha também uma nova concepção sobre o corpo,
baseando-se em uma filosofia mecanicista. Com objetivo de sujeitar o corpo ao trabalho,
controlá-lo esvaziando-o de suas forças e organizá-lo de modo racional, a corporalidade se torna
alvo de ataques e violências. Nesse contexto, a ideia de um corpo mecânico e produtivo para o
ofício surge e ganha ênfase, reduzindo-o a uma ferramenta passível de manipulação,
principalmente laboral (FEDERICI, 2017a).

Na filosofia mecanicista se percebe um novo espírito burguês, que calcula, classifica,


faz distinções e degrada o corpo só para racionalizar suas faculdades, o que aponta
não apenas para a intensificação de sua sujeição, mas também para a maximização de
sua utilidade social. Longe de renunciar ao corpo, os teóricos mecanicistas tratavam
de conceituá-lo, de tal forma que suas operações se fizessem inteligíveis e
controláveis. Daí vem o orgulho (mais do que a comiseração) com que Descartes
insiste que “esta máquina” (como ele chama o corpo de maneira persistente em O
tratado do homem) é apenas um autômato robô e que sua morte não deve ser mais
lamentada do que a quebra de uma ferramenta. (FEDERICI, 2017a, p. 253)

O objetivo, com isso, era a construção de um corpo apropriado para o trabalho e reduzido apenas
a essa função, segundo Silvia Federici (2017a). Sob essa óptica, o domínio do corpo e o
autocontrole deveriam estar na mira do modelo de homem moderno, com a repressão dos
desejos e emoções para obter resultados práticos, de modo a se tornar de fato uma máquina de
trabalho. Alguns filósofos tentaram reduzir o corpo a uma matéria mecânica, e no caso de René
Descartes havia também a tentativa de demarcar uma separação abrupta entre o domínio mental
e o físico numa divisão ontológica. Para esse pensador, o corpo deveria ser conquistado nos
aspectos mais íntimos para que a alma se liberasse do condicionamento corporal e pudesse ter,
efetivamente, a soberania sobre o corpo (FEDERICI, 2017a).

O corpo cartesiano é, portanto, uma máquina – um conjunto de membros com funções


definidas, uma matéria bruta, sem racionalidade, e como efeito, se torna divorciado da pessoa:
cria-se um corpo desumanizado, no sentido literal, porque o homem é dissociado do corpo.
O indivíduo “[…] vê, então, a mesma centralização das funções de mando que neste mesmo
período ocorria com o Estado: assim como a tarefa do Estado era governar o corpo social, na
nova subjetividade, a mente se converteu em soberana” (FEDERICI, 2017a, p. 271).

A partir dos estudos de Nobert Elias, Federici (2017a) mostra que também nesse momento da
história o corpo se torna alvo de práticas na esfera da vida cotidiana, e não apenas nas discussões
filosóficas e ideológicas. A criação das noções de higiene, etiqueta e boas maneiras se
34

incorporam nos hábitos e um novo modo de se relacionar com o corpo é traçado, o que envolve,
por exemplo, o uso dos talheres à mesa; atenção à formas de se comportar nos gestos, risos,
bocejos; a prudência com a nudez; e uma série de outras intervenções sobre funções corporais
que em períodos anteriores dessa sociedade não tinham tanta atenção (FEDERICI, 2017).

Segundo Federici (2017a), essas mudanças de hábitos colocaram as pessoas diante de sua
animalidade, o que reforçava um cuidado cauteloso com o corpo para discipliná-lo a uma ordem
mais domada: “na medida em que o indivíduo se dissociava cada vez mais do corpo, este último
se convertia em um objeto de observação constante, como se se tratasse de um inimigo. O corpo
começou a inspirar medo e repugnância” (FEDERICI, 2017a, p. 281).

O mundo ocidental foi aos poucos sendo tomado por artefatos tecnológicos, teorias científicas
e concepções filosóficas que, ao agir nas sensibilidades, produziu uma corporalidade abstrata,
e tal qual os espaços do mundo explorado pelos mapas são independentes entre si, o corpo físico
na modernidade foi tido como mensurável sob um eixo de coordenadas. Esse exemplo mostra
que foi construído no período moderno o paradoxo de um corpo desencarnado, regido por leis
imutáveis, inserido na lógica reducionista de causa e efeito e, desse modo, os modernos
concebem a mente como uma atividade racional apenas, avulsa do corpo e superior a ele
(NAJMANOVICH, 2001).

Ou seja, as formas de viver de uma época estão relacionadas às formas de ver o corpo, e mais
do que isso, se relacionam, principalmente, com os mecanismos de controle que recaem sobre
ele em cada um desses contextos. Se no medievo o corpo foi criatura de Deus e lugar da finitude
pecaminosa, o mundo objetivo, obcecado pelo método e pela fantasia da neutralidade científica,
traçou nele uma separação da experiência e das emoções. A visão cartesiana expressa o sujeito
moderno, abstrato e universal, que moldou o jeito de pensar e se relacionar com o mundo, e dá
outra dimensão ao problema corpo-mente, agora apresentado de maneira mais intensa e radical:
o corpo é regido por leis imutáveis, ainda inferior e submetido à mente, que por sua vez é palco
da racionalidade (NAJMANOVICH, 2001).

Evidente que o corpo na Modernidade permanece com referências sagradas, seja por elementos
cristãos que perduram nas sociedades europeias, seja pela presença de curandeiros, feiticeiras e
da medicina popular que ainda tem uma enorme presença nesse contexto (VIGARELLO, 2008).
No entanto, a filosofia mecanicista deste período promoveu uma intensa repulsa à associação
de elementos mágicos ao corpo. A magia esteve presente desde o medievo na Europa, mas a
35

transformação – tanto prática como discursiva – do corpo em máquina de trabalho, totalmente


desvinculado à mente ou ao espírito, exigiu uma racionalização que era incompatível com o
substrato mágico onde a matéria e o sujeito não se separavam (FEDERICI, 2017a).

Além disso, a crença de que elementos da natureza e o próprio corpo guardavam em si virtudes,
ou no conceito de um corpo como receptáculo de poderes mágicos, dentre muitas outras
concepções relacionadas à magia, poderiam afastar as pessoas do mundo que se delineava agora
baseado no trabalho, na ciência e no método. Assim, uma série de intervenções estatais
perseguiu crenças e sujeitos, e acreditar em magias tornou-se uma insubordinação, uma
incompatibilidade com a disciplina requerida; a magia naquele contexto representava uma
ameaça social de impedir o processo de mecanização do corpo (FEDERICI, 2017a).

Por isso, a partir das modificações sociais relacionadas à Renascença e às Luzes, o corpo de
certa forma se distancia do misticismo, e é alvo de uma dupla tensão, que o singulariza, mas
também coloca imposições coletivas. A modernidade versa sobre os desejos e produz um corpo
que se preocupa com a duração da vida, o que exige a autovigilância dos gestos, ou seja, uma
vida íntima regrada, e enfim, cerceada pela compostura (VIGARELLO, 2008).

Todavia, como repetido aqui, a História não é uma simples sucessão de acontecimentos, e nem
de longe eles são sequenciais, organizados e contínuos. A história é movimento, ação criativa,
invenção, e por isso as descontinuidades e imprevisibilidades operam nela (ALBUQUERQUE-
JÚNIOR, 2007). Isso é provado quando pensamos que ainda na Modernidade, no século 17,
emergiu uma filosofia que trouxe a quebra do pensamento estabelecido quando Baruch de
Espinosa anunciou a insignificância da dicotomia entre corpo e alma.

Para o filósofo, a alma é a ideia do corpo – e não há mais ideia quando não há corpo. Ou seja,
cada afecção do corpo contém em si uma ideia da alma. Nesse sentido, a alma exprime as
afecções do corpo sob a forma de ideias, mas não as causa. Segundo Daniel Lins (2002), não
existe, para Espinosa, uma supremacia ou dominação de mente sobre o corpo ou o contrário,
porque o poder da alma não é maior que o do corpo, e sendo assim, não há como o corpo querer
algo e a mente querer outra coisa, não há luta entre a razão e as paixões.

Federici (2017a) aponta que enquanto tantos filósofos do século 17, como Descartes, diziam
que nós não somos o corpo e duvidavam que o corpo poderia pensar, afirmando uma soberania
da mente sobre ele, Luiz Renato Paquiela Givigi (2019) nos lembra que para Espinosa, o corpo
não está submetido à mente – mas que também não há privilégio do corpo sobre ela; ambos
36

estão integrados. E completa: “Com efeito, espinosismo e cartesianismo costumam emergir


como duas linhas paralelas quando se trata de considerar as bases de sustentação do pensamento
moderno, bem como das instituições construídas a partir deste” (GIVIGI, 2019, p. 402).

Aliás, Deleuze (2019) mostra que uma das questões mais fundamentais na filosofia e obra de
Espinosa está em torno de discutir de que é capaz um corpo, quando repetidamente ensina que
“nós tagarelamos sobre a alma e sobre o espírito e nós não sabemos o que pode um corpo” (p.
52). Para nos debruçarmos nas próprias palavras do autor, vale citar este conhecido trecho que
aparece logo no início da parte III da Ética – que trata da origem e da natureza dos afetos,
lançada originalmente em 1677, onde Espinosa diz:

[…] os homens […] a tal ponto estão firmemente persuadidos de que o corpo, por um
simples comando da mente, ora se põe em movimento, ora volta ao repouso, e de que
faz muitas coisas que dependem apenas da vontade da mente e de sua capacidade de
arquitetar. O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a
experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis
da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado
pela mente – pode e o que não pode fazer. (SPINOZA, 2009, n. p.)

O que vemos nesses escritos são disputas discursivas produzindo verdades sobre o corpo, sendo
que inevitavelmente algumas ecoam mais que outras. Como temos afirmado aqui, engendrar o
corpo no âmbito da natureza, ou no local de separação com a mente e devendo obediência a ela,
efetiva técnicas de controle que não só fabricam o corpo, como também pretendem controlá-lo.

Olhando para o tempo hodierno, desde pelo menos o século 20, vê-se que de fato as ciências
sociais têm subvertido aquela noção de corpo cujo confronto com a mente é reforçado, mas que
não necessariamente têm abandonando o dualismo; apenas invertem-no quando passam a
entender que o corpo pode conduzir a consciência e não mais ser objeto dela (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO, 2008). Vemos também que a porosidade das fronteiras entre corpo
sujeito/corpo objeto e entre corpo individual/corpo coletivo se tornou mais refinada e complexa
no século em questão (CORBIN, 2008).

Isso, no entanto, não indica que nos nossos dias o discurso da mente como superior ao corpo
não tenha mais aplicação. Porter Roy (1992), analisando as produções históricas do final do
século 20, viu que os estudos na área da História ainda estavam operando
“[…] tipicamente dentro de tradições interpretativas, para as quais os significados que são
mentais, espirituais e ideais assumem uma automática prioridade sobre as questões puramente
materiais, corpóreas e sensuais” (p. 292). E, como é de se esperar, tanto o que é produzido
academicamente influencia na sociedade, como o inverso também é verdadeiro.
37

Podemos ver um exemplo disso na série distópica Years and Years (2019), que retrata um futuro
próximo cuja atmosfera é permeada de avanços tecnológicos. Já no primeiro episódio, Bethany
Bisme-Lyons, uma personagem adolescente, chama os pais para uma conversa e está prestes a
fazer uma revelação íntima a eles, que esperam com certa tranquilidade a filha se assumindo
como transgênero8; mas são surpreendidos porque o tema do diálogo não discorre sobre
identidade de gênero, e sim sobre a revelação de que a filha se identifica como transumana.

Segundo ela, seu corpo é uma “coisa” desconfortável da qual deseja se livrar, e a materialidade
– os braços, as pernas, cada pedaço (como ela mesma enfatiza) – é um impedimento. Sua
vontade é fazer um upload da mente e reciclar o corpo físico, para que dessa forma possa viver
para sempre, contudo em forma de dados. Essa narrativa tão recente é uma atualização do
conflito entre corpo e mente com uma nova roupagem. Ao imaginar um mundo tomado pelo
digital, as saídas ao corpo se remodelam, e mesmo que bem menos profano que outrora, o corpo
ainda permanece em um local de martírio e em antagonismo com a mente, que se mostra como
a única substância com possibilidade de transcender e evoluir.

No entanto, há um outro entendimento9 sobre essa cena, que evoca o conflito da personagem
como um questionamento à organização do corpo, em uma recusa do corpo orgânico como
única possibilidade de vida. Sobre isso, Donna Haraway (2009) coloca em xeque o corpo fixo
no modelo enrijecido, o qual se apresenta como uma forma identitária, e assim escancara as
fronteiras corporais que podem ser assumidas na sociedade contemporânea. Nesse sentido a
autora expõe seu mito do ciborgue: uma possibilidade de não temer identidades parciais,
contraditórias e fundidas com animais e máquinas.

Nesse exercício, ela se propõe à desconstrução dos aspectos “naturais” do humano, e reflete
sobre os binarismos reforçados pelo ocidente: mente e corpo, natureza e cultura, homem e
mulher, senhor e escravos, o eu e o outro, civilizado e primitivo, entre outras sentenças, e diz
que são, na verdade, formas de dominação sobre as mulheres, as pessoas racializadas, os
trabalhadores e os animais. Assim, o ciborgue questionaria tais dominações hierárquicas,
porque se estabelece sob a fluidez das margens, na recusa de um corpo aprisionado no
identitarismo biologizante. O ciborgue, um híbrido entre máquina e organismo, é uma metáfora

8
Transgênero se refere às pessoas que não se conformam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
9
Por nos apresentar essa possibilidade de leitura e o texto que a fundamenta, agradecemos à Izabel Rizzi Mação.
38

da ficção que pode trazer uma possibilidade para a realidade material (HARAWAY, 2009). Sob
esse tópico, Rafael Haddock-Lobo afirma que:

A desconstrução da visão antropológica da tecnologia como o aquilo que estruturaria


as espécies (humano/não humano), os gêneros (masculino/feminino), as raças
(branca/negra) e a cultura (desenvolvidos/ primitivos), mostra como tal binarismo
preserva as hierarquias e garante à filosofia (do) ciborgue um papel fundamental como
um pensamento efetivamente político (HADDOCK-LOBO, 2018, p. 115, grifos do
autor).

Portanto, ao pensar na realidade do nosso mundo atual ou mesmo no contexto fictício e


distópico de Years and Years (2019), ambos os cenários estão imersos nos artefatos
tecnológicos, e podemos dizer que por isso a tecnologia está entranhada por completo em nossas
vidas, no nosso cotidiano e nas nossas relações. Dessa maneira, as máquinas se tornaram
dispositivos protéticos e íntimos, assim revelando a ambiguidade da diferença entre natural e
artificial e, conforme o argumento de Haraway (2009), desfazem inclusive a fronteira entre o
físico e o não físico, por exemplo, com dispositivos microeletrônicos quase invisíveis em toda
parte, inclusive nos corpos.

Haddock-Lobo, analisando as interfaces do trabalho de Paul. B Preciado com o de Donna


Haraway, também diz que o mito do ciborgue, “[…] teria como objetivo representar a ‘guerra
de fronteiras’ que é a relação entre o orgânico e o inorgânico, como condição de possibilidade
para o ultrapassamento de quaisquer fronteiras concernentes ao corpo” (HADDOCK-LOBO,
2018, p. 116). Assim, percebemos que antagonismos, como natureza e cultura (ou natureza e
tecnologia), são fabricações superadas. Paul B. Preciado (2014a), a partir de Haraway, já
apontou a impossibilidade de definir o limite de onde começam e terminam os corpos naturais,
porque segundo o autor, entre o corpo vivo e a as máquinas artificiais, estamos tomados pela
tecnologia.

Nessa perspectiva, Haraway diz então que uma possível saída contra a dominação nas
sociedades mediadas pelo tecnológico está em não apelar a um estado orgânico natural do
corpo, mas antes em utilizar a ciência e a biotecnologia para remodelá-lo, ou seja, para construir
novas relações sociais a partir da corporificação. A cultura high-tech10, da qual inevitavelmente
já fazemos parte, ajuda a contestar os dualismos da dominação e borra a diferença entre máquina
e organismo: “Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina.
Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com

10
High-tech é um termo referente à tecnologia avançada. Utilizamos esse termo para evidenciar que nossa cultura
está tomada de artefatos tecnológicos e a nossas relações sociais com eles estão estabelecidas e entranhadas.
39

práticas de codificação” (HARAWAY, 2009, p. 91). Desse modo, o corpo pós-humano que
Bethany busca na série, poderia, de certa forma, estar em consonância com Haraway, quando
ela diz que:

O gênero, a sexualidade, a corporificação, a habilidade: todos esses elementos são


reconstituídos na história. Por que nossos corpos devem terminar na pele? Por que, na
melhor das hipóteses, devemos nos limitar a considerar como corpos, além dos
humanos, apenas outros seres também envolvidos pela pele? (HARAWAY, 2009, p.
92)

Voltando a atenção para o discurso do corpo submetido à mente e ainda refletindo sobre os
limites entre tecnológico, humano e não-humano, mais um vez fazemos referência ao já citado
filme Her (2016). Em certo momento da trama, a personagem Samantha, o sistema operacional
(OS), finalmente perde sua angústia por não possuir um corpo, e vai além, passa a amar essa
característica, porque consegue entender que nisso reside sua potência: ela não é limitada a uma
forma física, e isso lhe confere a possibilidade de quebrar as fronteiras do tempo e espaço (pode
estar em qualquer lugar ao mesmo tempo). O fato dela não estar presa na finitude do corpo gera
um grande incômodo entre os humanos, e não podemos deixar de notar que, agora, diferente do
que aconteceu no início da história, o OS coloca no corpo a conotação negativa que
tradicionalmente ele vem recebendo.

E não só na ficção o dualismo perdura. Nossa sociedade está tomada por binarismos que se
relacionam ao tema central da nossa discussão. Um exemplo expressivo é a maneira como
separamos trabalho braçal, ou manual, do trabalho considerado intelectual. O que é relacionado
à mente, à formação, é mais valorizado e até mais bem remunerado, expressando a prioridade
da mente diante do corpo. Quando na verdade o trabalho é uma excelente maneira de
percebermos como corpo e mente são totalmente conectados, quer dizer, integrados. Não existe
esforço físico sem pensamento e não há pensamento que não atinja o corpo por completo. Após
um dia de leitura intensa, algo considerado como exercícios mentais, é também a parte corpórea
que se cansa, e qualquer labor físico exige constante pensamento e raciocínio para que seja
executado. Isto é dizer, como demonstra Mariana Toledo de Barbosa (2018), que “[…] quando
o corpo age, a alma (ou mente) age, e quando o corpo padece, a alma (ou mente) padece” (p.
869).

Sem dúvidas compreendemos que a discrepância na remuneração entre os diferentes tipos de


trabalho não tem uma causa única e envolve uma discussão complexa, remetendo às
configurações sociais e históricas na formação do nosso país, diretamente vinculadas às
questões raciais e classicistas (CHIOVATTO, 2016). No entanto, o objetivo com esse exemplo
40

é enfatizar que tal separação também é um efeito da percepção de corpo como inferior à mente,
que como temos discutido, tem perdurado através da história.

Diante do que foi dito, já vimos que no refluxo da Idade Moderna, o corpo foi por muitos tido
como um pedaço de matéria e em um papel secundário, ainda que para outros tivesse uma
relevância expressiva. No entanto, Jean-Jacques Courtine (2008) afirma que apenas no século
20 se deu a invenção do corpo no campo das produções teóricas. O autor argumenta que diversas
correntes filosóficas e áreas do saber estudaram o corpo e discutiram-no exaustivamente, como
a fenomenologia e a antropologia, mas foi a psicanálise de Sigmund Freud que fundiu a imagem
do corpo na formação subjetiva, quando afirmou que o inconsciente fala corporalmente.

Com a influência dessa concepção, o corpo em muitos discursos acadêmicos foi tido como
amarrado ao sujeito, e com isso entrou oficialmente no centro dos debates do século passado.
Especialmente porque desde as décadas de 1960 e 1970, as lutas pelos direitos das minorias
enfatizaram a relação direta do corpo com as opressões que agem sobre os grupos
marginalizados das categorias de raça, classe, gênero e sexualidade (COURTINE, 2008).

Houve, de fato, uma virada a partir do final da década de 1960 devido às intensas
transformações políticas, culturais e sociais que o mundo ocidental viveu nesse período. Assim,
Ana Kiffer (2014) mostra que a questão da corporalidade se manifestou mais intensamente
desde os campos teóricos até aos espaços artísticos, de modo que deixou de ser apenas algo
sobre o que se fala, sobre o que se discute. Isso porque, a partir desse momento, o corpo
apareceu de modo expressivo como ator das manifestações culturais, ou seja, não apenas como
uma representação de conflitos sociais, não restrito a uma encenação e passou a ser
efetivamente percebido como local de produção de subjetividades e lugar de resistência
(KIFFER, 2014).

As mudanças no fluxo da História brevemente registradas aqui confirmam que a dinâmica


histórica guarda em si o paradoxo de carregar, ao mesmo tempo, rupturas e continuidades, por
meio das quais “[…] os modelos corporais, os valores e as utilizações do corpo se transformam,
mas também guardam o registro de sensibilidades vindas de épocas diferentes” (SANT’ANNA,
2005, p. 13).

Dessa maneira, de acordo com o que abordamos, podemos afirmar que a separação entre
natureza e cultura, material e simbólico, objetivo e subjetivo são produtos da sociedade
moderna e da construção do conhecimento ocidental, e que sem dúvidas, se expressam também
41

na concepção que separa corpo e mente. O pensamento moderno se recusa a entregar-se às


hibridações, misturas e relações entre tais elementos; contudo, essas categorias inevitavelmente
caminham nas fronteiras, nas periferias e nas bordas, e são justamente as mestiçagens e
cruzamentos entre elas que compõem a História, pois colocam o fluxo dos acontecimentos em
movimento:

[…] a História não se passa apenas no lugar da natureza, da coisa em si, do


evento, da matéria ou da realidade, nem se passa apenas do lado da
representação, da cultura, da subjetividade, do sujeito, da ideia ou da narrativa,
mas se passa entre elas, no ponto de encontro e na mediação entre elas, no lugar
onde essas divisões ainda são indiscerníveis, onde esses elementos e variáveis
se misturam. […] o que impera é o devir, o fluxo, que desmancha as formas
estabelecidas de objetos e sujeitos, que mistura aspectos que aparecem
separados, classificados e ordenados após as práticas de análise levadas a cabo
pelas ciências. […] A história se passa justo entre elas, a historicidade é
justamente o que impede que essas formas se mantenham intactas, sem
transformações. (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007, p. 28)

Seguindo o pensamento moderno, estivemos acostumados a percorrer uma História


higienizada, incorpórea, pretensamente objetiva, uma história da razão e da verdade. Entretanto,
a História é uma potência criativa capaz de tecer outros sentidos e dar novas formas ao passado
e ao presente. Assim, sabendo que o corpo é uma superfície de inserção de acontecimentos, ou
melhor dizendo, é um acontecimento em si, é preciso recolocá-lo na história, evocando as
marcas produzidas pelo tempo na carne, para que essas cicatrizes sejam também documentos,
experiência históricas e testemunhas dela (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007).

Talvez por isso, no ocidente contemporâneo, o corpo tem ganhado novos contornos. Para
Carmem Lúcia Soares, hoje o corpo revela a mais íntima subjetividade dos sujeitos. Isso não é
o mesmo que afirmar que o corpo armazena a subjetividade, mas sim que ele é “[…] a expressão
mais autêntica do real […]” (2004a, p. 20). O corpo polissêmico, múltiplo de sentidos, alvo de
teorias, recortado e transformado em partes, se constitui como território de disputas discursivas
que almejam enquadrá-lo. Uma história do corpo é possível quando se atenta às maneiras como
certa cultura criou modos de conhecê-lo, controlá-lo e governá-lo (SOARES, 2004a). Uma
perspectiva historiográfica sobre o corpo significa também, entre outras coisas, que o poder
mirou o corpo.

2.2 RELAÇÕES DE PODER E RESISTÊNCIAS NO CORPO


42

Não se pode reduzir o corpo a uma materialidade orgânica e fisiológica. Como vimos, o corpo
comporta um conjunto de práticas e saberes que o produziram em recortes específicos de tempo
e espaço. Tal como aponta Maria Rita de Assis César (2019), na sociedade hodierna não é
diferente, e os novos regimes de verdade da atualidade, que são advindos de diversas fontes
discursivas, permanecem produzindo o corpo e agindo sobre ele. A partir daqui, o que nos
interessa é enfatizar um outro ângulo de abordagem, diferente da feita até agora. Partindo do
entendimento que o corpo esteve sempre imerso nas relações de poder, tentaremos recuperar a
maneira como os dispositivos de poder passaram a incidir mais efetivamente sobre os corpos e
a vida, em um exercício de abordar uma microfísica do corpo e das resistências possíveis a
partir dele.

No século 20, a predominância de algumas perspectivas teóricas – como o marxismo, por


exemplo – colocou o poder em uma posição relativamente fixa e muito vinculado às categorias
econômicas, definindo que determinados grupos ou instituições (seja o Estado, a burguesia ou
a elite) o possuem, e outros grupos (os marginalizados, os trabalhadores pobres, entre outros)
não (SANTOS, 2016). Em contrapartida, o conjunto das obras de Michel Foucault trouxe um
novo entendimento para pensar o poder enfatizando seu caráter relacional:

Trata-se de uma concepção renovadora do entendimento do que é o poder, e capaz de


gerar uma torção desestabilizadora nas bases reducionistas que fazem passar a
inteligibilidade do poder sobre o domínio jurídico e econômico da instância estatal. O
poder em Foucault é pensado como relação, ele raramente usa a palavra poder, mas a
expressão – relações de poder – e quando usa a primeira é sempre no sentido da
segunda. O poder pensado como relações de poder traz a ideia de força. (SANTOS,
2016, p. 262)

Foucault olha para a História tirando o foco das explicações pelo contexto, das narrativas em
torno de heróis e dos macro eventos, os quais incontestavelmente permanecem tendo relevância.
Contudo, há uma ênfase nas análises micro, e isso não quer dizer que está pensando em
instâncias pequenas, mas que as interações sociais estão no centro do estudo, porque o
micropoder opera em toda a sociedade. A partir disso se percebe as relações de poder como
assimétricas, e algumas forças prevalecem à outras constituindo formas de dominação. Todavia
isso não é uma sentença rígida, mas sim algo que tem a possibilidade de ser modificado, porque
as relações de poder são instáveis, reversíveis e permeadas pela liberdade (SANTOS, 2016).

Portanto, nessa concepção ninguém exatamente detém o poder. Antes, o poder circula, está em
movimento, é descentralizado em uma rede de forças que são exercidas sobre outras, e se efetiva
como uma prática entre as pessoas, que ao mesmo tempo fazem uso dele e sofrem sua ação. Ou
43

seja, as relações de poder perpassam todos os corpos e lugares, são imanentes a todo o corpo
social, e permeiam todas as instâncias da sociedade – é impossível pensá-la sem tais relações.
Desse modo, o poder não é uma categoria primeiramente negativa, malvada, dominante,
opressora. Não há juízo de valor, o poder não é bom ou ruim. O poder é um conjunto de relações
que está em todas as esferas sociais, e que atravessa e produz os corpos e os acontecimentos
(FOUCAULT, 1988b).

No entanto, como o próprio Foucault afirma em “O sujeito e o poder” (2009, n. p.), suas
pesquisas não buscaram estudar o poder por si só, mas tentaram “[…] criar uma história dos
diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos”. Com
isso, sua obra atentou-se para o fato de que o homem, enquanto sujeito, só se tornou um objeto
de investigação científica muito recentemente na História; mais precisamente, a partir da
Modernidade. Assim, o autor buscou compreender como esse saber sobre si mesmo se efetivou.

É importante compreender que Foucault constrói seus estudos rejeitando a busca pela origem
do problema enunciado, e se distanciando também das interpretações que pretendem revelar
uma verdade que está oculta. A intenção de sua investigação é compreender como determinado
discurso ecoa tão expressivamente na sociedade que se transforma em verdade (FOUCAULT,
2009). Exemplificando as indagações: o homem se tornou um sujeito reflexivo, ou seja,
passamos a pensar sobre nós como sujeitos; mas de que maneira isso ocorreu? A partir de quais
mecanismos o sujeito passou a se entender como tal? E qual a relação disso com o corpo?

O mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto,
mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une
politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos corpos).
Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado sobre o qual o poder
age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em
funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de
discurso por meio das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”
(PRECIADO, 2020, p. 163, tradução nossa11).

Ou seja, em vez de pensar um corpo que é alvo do poder, é importante pensá-lo como uma
fabricação dele. O corpo é colocado em funcionamento no bojo das relações de poder de modo
tão intenso que, em algum momento, produz uma identidade, afirma-se como um “eu”
(PRECIADO, 2020). Desse modo, a partir de Foucault vemos que a insurgência do homem

11
Texto original: “Lo más importante que aprendimos de Foucault es que el cuerpo vivo (y por tanto mortal) es el
objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (no hay política que
no sea una política de los cuerpos). Pero el cuerpo no es para Foucault un organismo biológico dado sobre el que
después actúa el poder. La tarea misma de la acción política es fabricar un cuerpo, ponerlo a trabajar, definir sus
modos de reproducción, prefigurar las modalidades del discurso a través de las que ese cuerpo se ficcionaliza hasta
ser capaz de decir ‘yo’”.
44

como objeto do saber se localiza historicamente no pensamento moderno ocidental, e esse


reconhecimento de determinado corpo como humano torna-se necessário para ter direito à vida:
“A vida, como o corpo, assume um duplo aspecto: ao mesmo tempo em que são concebidos
como campos de assujeitamento, como instâncias calculáveis, mostram-se espaços éticos de
processos de subjetivação […]” (WIRCKER; KIFFER, 2014, n. p.).

É justamente por conta desse incômodo teórico, de entender como nos tornamos sujeitos, que
os estudos de Foucault se debruçaram sobre as relações de poder – segundo Deleuze (1993),
para Foucault o poder muito mais do que repressor, funciona por normalização e disciplina.
Nesse sentido, o poder é produtivo: é a construção social da realidade (SANTOS, 2016). O
poder cria singularidades, produz sujeitos e modos de vida. Funciona por incitação, ou seja, a
partir de modelos normativos, conduz os sujeitos a se adequarem à norma e a rejeitarem aquilo
que foge dela. As relações de poder não são estáticas: elas estão sujeitas a transformações e de
fato se modificaram no percurso da História (FOUCAULT, 1999). Por isso, atentaremo-nos
brevemente às mudanças na configuração das relações de poder, ainda pensando com as
produções de Michel Foucault.

Uma das formas de exercício de poder se localiza entre o medievo europeu e o fim do Antigo
Regime. Trata-se de um dispositivo de poder de morte: o poder soberano. Especialmente nos
regimes monárquicos da Europa, a maneira de submeter os súditos à vontade do soberano era
exercida por meio da prática do confisco. Os bens, a propriedade, os impostos e, em último
grau, a própria vida eram capturados para que houvesse a execução de uma autoridade absoluta.
Nesse regime, a lei é a vontade do próprio soberano. Ele é quem exige a morte, pois é ele quem
tem o poder de expor à morte. Uma característica importante é que essa exigência não se dava
de maneira vazia de significados. O suplício, o qual se operava como um ritual, era configurado
por punições e torturas públicas, sempre grandiosas e espetaculares (FOUCAULT, 1988a).

Esses suplícios não eram práticas que ocorriam com muita frequência. O próprio monarca não
aparecia tantas vezes em público e a maior parte dos súditos sequer conhecia sua figura. Isso
ocorria devido a diversos fatores, mas principalmente por conta do próprio funcionamento da
Sociedade de Corte, a qual escolhia manter a distância entre os outros grupos sociais como uma
estratégia de distinção. A morte, categoria central naquela sociedade, era extremamente
ritualizada e grandiosa porque estava carregada de simbolismo, já que naquele contexto o súdito
só tinha direito de estar vivo ou morto graças ao soberano, e desse modo, o efeito desse
45

mecanismo de poder sobre a vida é exercido a partir da possibilidade do soberano tirá-la


(FOUCAULT, 1999).

Todavia, a partir do século 17, há uma nova política em curso, que coloca o corpo individual
como alvo, e os dispositivos de poder passaram a agir sobre os corpos e a vida de modo mais
efetivo, e a isso Foucault (1988a) nomeia como tecnologia disciplinar. Essa técnica de poder é
aquela que adestra, regula e aumenta a força útil enquanto diminui a potência política,
docilizando os corpos. As condutas que se dispõem sobre o corpo configuram uma anátomo-
política cuja incidência nos corpos opera de maneira individual e visa à produtividade
(FOUCAULT, 1999).

Em outras palavras, houve uma alteração na dinâmica das relações. Antes, a soberania se
expressava na máxima deixar viver e fazer morrer, ou seja, o soberano poderia provocar a morte
e poderia manter a vida. Passou-se a questionar o horror das punições grandiosas, e em especial,
o direito do soberano sobre a vida dos súditos. Agora, com o poder disciplinar, a tarefa é gerir
a vida, sob a nova máxima deixar morrer e fazer viver: a vida se torna o alvo (MAÇÃO, 2016a).

E na incumbência de reger a vida por meio da atuação sobre o corpo individual, a técnica
disciplinar está centrada na distribuição espacial dos corpos quando os separa, alinha, coloca
em série e vigia. É necessário organizá-los em torno de um campo de visibilidade, de modo que
alguns artifícios, como as hierarquias, as inspeções, os sistemas de vigilância, vão ganhando
protagonismo nas relações. Além da fábrica, do quartel e do hospital, uma expressão da
disciplina está na escola, onde constantemente procedimentos acometem os corpos –
enfileirados, uniformizados, regrados, seguindo horários, numa constante vigilância mútua – a
fim de moldar suas necessidades e desejos para obedecer (FOUCAULT, 1999).

No entanto, Michel Foucault revisitava com frequência suas proposições, e já no fim de sua
vida, tensionado por outros autores, mostrou que não foi a disciplina que inaugurou a mira no
corpo. Por mais que antes tenha afirmado que a modalidade da soberania enquanto esquema
organizador deixava escapar coisas no nível dos detalhes e das massas (FOUCAULT, 1999), o
autor acrescentou que no exercício do poder soberano há uma ação conjunta de um outro poder
relacionado, o chamado poder pastoral (FOUCAULT, 2009).

A pastoral é importante para pensarmos como se deu a produção do indivíduo moderno,


consciente de sua humanidade. Sabemos que o poder soberano pende para a morte, mas é o
governo dos vivos, a conduta dos homens, que estava na instância pastoral. O surgimento do
46

Estado Moderno só foi possibilitado a partir da confluência entre o poder soberano e do poder
pastoral, porque o Estado é uma força totalizadora e individualizadora, características advindas
dos tais mecanismos de poder, respectivamente (FOUCAULT, 2009).

O poder pastoral se utiliza de técnicas individualizadoras, entre as quais a confissão é a mais


exemplar. Justamente porque, no momento em que a ovelha se confessa, ao enunciar seu pecado
ela se auto examina e produz uma consciência de si. Ou seja, essa técnica de poder atua sobre
as pessoas no sentido de exigir obediência e submissão, mas além disso, incita-as a olharem
para seus atos e para seus pecados ao longo da vida, e assim elas examinam o passado e a vida
atual. Desse modo, elaboram uma análise constante sobre suas práticas, uma contínua
penitência analítica (FOUCAULT, 2001). É nesse momento que ocorre o irrompimento do
indivíduo.

Já podemos notar na pastoral o corpo como alvo de uma adequação, porque seu objetivo é
impedir o desvio de condutas. O corpo-súdito foi alvo de torturas e condenação pelos confiscos
e suplícios, o corpo-ovelha foi alvo de penitências e produções de verdade sobre si, e ambos
atuavam aliados. Desse modo, o poder pastoral versava sobre a salvação, mas ao longo do
tempo essa salvação ganhou novos contornos, porque esse mecanismo de poder também se
reconfigurou e ultrapassou a instância eclesiástica (FOUCAULT, 2009).

No contexto religioso, a pastoral quis não exatamente promover uma salvação para a vida após
a morte, mas sim conduzir os fiéis a garanti-la ainda na vida terrena, e isso ganha outros
significados no âmbito secular. Na medida em que a pastoral foi perdendo sua força,
instrumentos como a saúde, bem-estar e segurança adquiriram a conotação da palavra salvação,
porque o indivíduo passa a buscá-los ao longo da vida (FOUCAULT, 2009). E, não sem razão,
todos esses aspectos estão, de alguma maneira, vinculados ao corpo.

Contudo, ainda que o poder pastoral também tenha estabelecido uma ação sobre a vida, a
novidade – se é que podemos chamar assim – da técnica disciplinar, reside no fato de que com
ela nenhum detalhe escapa do exercício de poder que incide sobre o corpo individual, o homem-
corpo. “O corpo tomado como máquina: é preciso adestrá-lo, aumentar suas aptidões,
normalizá-lo, torná-lo útil, facilmente administrável e lucrativo. É preciso extrair dessa
máquina biológica o máximo que ela pode produzir” (MAÇÃO, 2016a, p. 73).

Como podemos observar, os dispositivos de poder não são fixos, pois se atualizam e
acompanham as transformações sociais. Após o dispositivo de poder disciplinar, um novo
47

avanço sobre a vida ocorre, mas não mais na instância individual, e sim a partir do ser humano
como espécie. Esse dispositivo não exclui a disciplina, mas a integra e a modifica. Ele é uma
regulamentação, é chamado de biopolítica, e tem como alvo o conjunto de indivíduos, a
população (FOUCAULT, 1999).

Com a razão primeira de proteger a vida, a biopolítica age sob a máxima de fazer viver e deixar
morrer. Opera-se, então, uma gestão do corpo por diversas técnicas, como a medicina, por
exemplo – é nesse momento que os discursos de saúde e higiene se popularizam, e com isso
também a retórica da medicalização. Ou, melhor dizendo, os poderes precisam garantir uma
vida, então se torna importante para a biopolítica quantificá-la, lidar com taxas, estatísticas e
probabilidades, pois o olhar está voltado para o conjunto das pessoas: a população. Desse modo,
o domínio biopolítico se preocupa com problemas como a mortalidade, saúde e possibilidade
do adoecimento, a questão da segurança e prevenção contra acidentes. Ou seja, qualquer assunto
que se apresente como ameaça à população é um risco, um perigo a ser combatido (MAÇÃO,
2016a).

Vemos então que, no contexto europeu, a partir do final do século 18 e especialmente no 19,
emergiu o biopoder, uma coexistência dos poderes descritos por Foucault, que conforme o
próprio autor afirma, foi indispensável para o desenvolvimento do capitalismo (FOUCAULT,
1988a). O biopoder é o poder em sua forma mais avançada e atualizada. Ele atua
“[…] sobre tudo o que se refere à vida, não para potencializar suas forças afirmativas, mas para
controlá-las e fixá-las num território que facilitasse a gestão de suas virtualidades” (PEIXOTO
JR, 2005, p.59).

O biopoder herda do poder soberano a exigência da morte; do pastoral, traz a conduta da


subjetividade; da disciplina, carrega a gestão do corpo-máquina; mas, agora, com a chamada
biopolítica, é o gerenciamento da vida que está em jogo, e não apenas de modo individual, mas
sim regulamentando a população. Na biopolítica, o corpo é uma fronteira entre o social e o
sujeito, e é controlado na forma de uma população. No funcionamento das relações de poder, o
corpo se configura como objeto das forças (MAÇÃO, 2016a).

O biopoder tem como alvo o corpo múltiplo da população, e para efetivar-se sobre ela
implementa a regulamentação dos fenômenos coletivos. Nesse sentido, os mecanismos
reguladores têm a função de otimizar o estado de vida da população, isto é, sua atuação está em
baixar a morbidade e prolongar a vida. Ao contrário de outrora quando a morte era um
48

espetáculo, com a biopolítica ela se torna algo que deve ser escondido, resguardado à instância
privada. Esse choque entre os sistemas de poder se deu porque na ótica da soberania, a morte
era a passagem do poder soberano terreno para o soberano espiritual. O domínio da mortalidade
foi, aos poucos, deixado de lado, porque o biopoder passou a intervir não só organizando a vida
como também aumentando-a (FOUCAULT, 1999).

Nesse contexto, o neoliberalismo expressa uma intensificação do funcionamento do biopoder.


A partir do século 20, na novíssima configuração capitalista é estabelecida uma relação muito
intensa com a subjetividade: o poder produz o corpo, conduz condutas, atua diretamente nas
subjetividades e suga as subjetividades. Como indica Peter Pelbart (2008a), o corpo passa a se
adequar às normas científicas e estéticas, em um desejo obsessivo por saúde e pela beleza do
espetáculo, e tudo isso realizado voluntariamente: “[…] o foco do sujeito deslocou-se da
intimidade psíquica para o próprio corpo. Hoje, o eu é o corpo. A subjetividade foi reduzida ao
corpo, à sua aparência, à sua imagem, à sua performance, à sua saúde e à sua longevidade” (p.
5).

Além disso, a biopolítica visa à recolocação dos corpos nos processos biológicos pela
biorregulamentação. Isso expressa que a disciplina e a biopolítica não se excluem, e na verdade,
se articulam. Sobre isso, Foucault (1999) pontua que o poder incumbiu da vida, porque cobriu
“[…] toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante
o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação,
de outra” (p. 302).

Essa ação conjunta da biopolítica e da disciplina pode ser mais bem compreendida pelo
dispositivo da sexualidade, que no século 19 se tornou um campo de importância estratégica
para o poder. As práticas sexuais são comportamentos corporais, portanto, são alvos do controle
disciplinar individualizador, que requer a autovigilância constante12. Além disso, são também
alvo da regulamentação dada à população na medida em que adquirem efeitos procriadores em
processos biológicos que concernem ao conjunto de indivíduos. Nesse sentido Foucault (1999)
afirma que “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto,
ela depende da disciplina, mas depende também da regulamentação” (p. 300).

12
Nesse sentido, as aulas de Foucault registradas no livro Os anormais (2001) abordam como o conceito de
“anormal” foi tomado pelos meios jurídicos e psiquiátricos no século 19 para pautar (e produzir) comportamentos
sexuais desviantes. Um bom exemplo disso se vê na masturbação, que é tomada como conduta a ser corrigida,
gerando uma vida autovigiada e regrada.
49

Além disso, algumas práticas na esfera do sexo, quando classificadas como anormais,
configuram-se como comportamentos sociais que trazem riscos à população e devem ser
combatidas. E é justamente por isso que a sexualidade permanece sendo objeto da
normalização. Para Foucault (1988a), a noção de sexo une elementos anatômicos, condutas e
prazeres, além da sexualidade ser uma figura histórica que fornece a inteligibilidade ao corpo,
no sentido de que é uma unidade fictícia, que revela a identidade do sujeito, como se fosse um
segredo a ser descoberto, desvendado.

Os estudos de Michel Foucault sobre a biopolítica se tornam ainda mais instigantes se, a partir
de uma visão decolonial, olharmos para o contexto brasileiro em um exercício de tropicalizar a
teoria. Giuseppe Cocco e Bruno Cava (2018) mostram que “[…] no Sul, desde a colonização,
o poder sempre foi biopolítico” (p. 48). O que os autores propõem é que, mesmo que o filósofo
francês tenha relacionado a virada neoliberal à efetivação da biopolítica, bem antes disso,
durante a colonização dos trópicos, os colonizadores dependeram do governo dos corpos em
forma de populações. Além disso, eles também aplicaram uma atenção específica aos territórios
a fim de controlar os fluxos migrantes (COCCO; CAVA, 2018).

Vale destacar que não queremos colocar a colonização como uma causa para o surgimento do
capitalismo neoliberal em uma simplificação histórica, contudo, afirmamos que a empresa
colonial dependeu da biopolítica para funcionar. Nesse entendimento descolonizado sobre
biopolítica que os autores apresentam, voltamo-nos para o modo como as Metrópoles 13 agiam
sobre as colônias, com uma maneira específica de governamentalidade, a qual precisou se
atentar a um espaço transnacional. Para isso as Metrópoles fizeram uso das tecnologias do poder
biopolítico, o que “envolveu toda uma economia de práticas e discursos relacionados à mistura
dos corpos, à composição e criação de raças, à difusão e aprimoramento de dispositivos de
controle no grande aberto espaço colonial” (COCCO; CAVA, 2018, p. 63).

Portanto, o biopoder atlântico começou a ser delineado pela necessidade europeia do comércio
intercontinental através do tráfico de escravizados e do estabelecimento de feitorias14 nas
costas. Foram esses os mecanismos que possibilitaram à Portugal, por exemplo, distender-se
sobre várias regiões do globo. Desse modo, dos dois lados do Oceano Atlântico foi testada uma
nova forma de governar que os europeus ainda não conheciam – a biopolítica – e que foi

13
Chamamos de Metrópole os países, geralmente europeus, que colonizaram o chamado Novo Mundo – América,
África e Ásia. Portugal era a Metrópole do Brasil, sua colônia.
14
As feitorias eram lugares nos portos, que comumente possuíam entrepostos e fortalezas com a função de ter o
comércio sob controle.
50

aprimorada durante séculos diante de muitos empecilhos, como as inúmeras revoltas e rebeliões
que se deram no território brasileiro (COCCO; CAVA, 2018).

Nesse sentido, atentamo-nos ao modo como o dito Novo Mundo funcionou como uma espécie
de laboratório dos colonizadores para testar técnicas de dominação, que mais tarde foram
importadas ao contexto europeu. Para demonstrar com apenas um exemplo, a caça às bruxas
vista na Europa moderna se deu primeiramente na América como forma de perseguições
religiosas aos povos ameríndios. Ainda que nas colônias a noção cristã de demônio fosse
desconhecida, a acusação de adorá-lo já era uma estratégia utilizada pelos missionários para
vilipendiar as populações originárias (FEDERICI, 2017a).

Desse modo, uma série de temas que tiveram matriz nas colônias – como “[…] canibalismo,
oferenda de crianças ao diabo, uso de unguentos e drogas e identificação da homossexualidade
(sodomia) com o diabolismo” (FEDERICI, 2017a, p. 409) – e que foram usados para justificar
a aniquilação corpórea e cultural nos espaços colonizados, foram aplicados posteriormente
contra pessoas acusadas de bruxaria no chamado Velho Mundo (FEDERICI, 2017a). Assim, de
alguma forma, o biopoder veio atuando primeiramente nos territórios coloniais, e depois se
estendeu à Europa.

Além desse, também outros tensionamentos são feitos nas formulações foucaultianas, como
podemos ver quando Deleuze (1993) promove uma inflexão do pensamento de Foucault acerca
dos dispositivos de poder. O autor entende que estes guardam sim um efeito repressivo – não
no sentido de reprimir uma espontaneidade, mas de esmagar as pontas dos agenciamentos de
desejo. Isso quer dizer que os dispositivos de poder codificam e reterritorializam, e não
normalizam e disciplinam, como pensou Foucault em certa fase de sua obra. Desse modo,
Deleuze entende que os dispositivos de poder promovem reterritorializações das linhas de fuga.
Nesse caso, o poder não é produtivo, mas sim reativo.

Acerca disso, de acordo com Peixoto Junior (2005), as linhas de fuga não podem ser entendidas
como uma reação negativa ao poder, mas como forças ativas que se produzem no corpo social,
as quais apresentam uma afirmação que foge aos sistemas de controle, operando outra condição
e novas possibilidades. Esse regime de forças que se produz é afirmativo, ele desterritorializa,
e nisso “[…] se esboça um outro estilo, uma outra sensibilidade, uma outra percepção do
intolerável; é aqui, na reação das ambições nômades a um território já desconfortável em
demasia, que se inicia uma experiência de resistência, que se engendra um devir” (THEMUDO,
51

2002, p. 285). Como apontou Deleuze (1993), é importante perceber que tais linhas de fuga não
são obrigatoriamente revolucionárias, contudo, são elementos de desterritorialização e,
portanto, são elas que os dispositivos de poder perseguem para reterritorializar.

Diante de tudo isso, a partir de agora nos interessa pensar que o biopoder busca constantemente
operar uma reterritorialização nos corpos. Ou seja, os dispositivos de poder estabelecem uma
relação imediata com o corpo, porque, como se verá adiante, o tempo todo tentam
reterritorializá-lo ao impor uma organização (DELEUZE, 1993).

Assim, quando se pensa na contemporaneidade, acontece de interrogar como as resistências


podem ser construídas nessa nova configuração dos mecanismos de poder, especialmente se
compreendemos que o período anterior, a Modernidade, foi marcado por muitos movimentos
subversivos e contestatórios. Nesse sentido, Davis Alvim (2009) traça as contribuições de
Foucault e Deleuze para tecer formulações sobre a resistência.

O autor compreende que em parte dos trabalhos de Michel Foucault, o poder se apresenta em
duas direções (não necessariamente opostas): como disciplinador e normalizador, mas também
como inventivo, se distanciando das concepções de um poder exclusivamente repressivo. Nessa
concepção, o poder é aquilo que incita, que atua nas condutas individuais e que produz uma
subjetividade. As resistências, nesse caso, seriam uma outra face das relações de poder, ou seja,
e estariam em um constante jogo relacional com ele, em uma multiplicidade que aparece em
focos, fragmentada e em pontos transitórios e irregulares (ALVIM, 2009).

Já Gilles Deleuze, inclusive nos trabalhos que escreveu com Félix Guattari, compreendeu as
resistências de outra maneira, o que Alvim (2009) define da seguinte forma: “se para Foucault
as resistências são uma imagem invertida dos dispositivos de poder, para Deleuze a mesma
guarda uma afirmatividade própria” (p. 9). Deleuze e Guattari pensaram a resistência nas “[…]
maneiras como um campo social foge por todos os lados” (ALVIM, 2009, p. 7).

Nesse sentido, os dispositivos de poder, então, atuariam na busca de codificar e reterritorializar


as linhas de fuga das resistências. Ou seja, a resistência nesse caso é molecular, não tem – como
a Modernidade pretendeu – o objetivo de se opor ao Aparelho de Estado ou ao poder, mas antes
ser um fluxo desterritorializante, uma potência de movimento. Isso é dizer que resistir é inventar
novas formas de estar junto, novas composições de comuns, enquanto o poder permanece no
plano da totalidades (ALVIM, 2009).
52

Em outros aspectos, contudo, Deleuze se aproxima das proposições de Michel Foucault e,


inclusive, as completa, como é no caso das hipóteses sobre as configurações sociais. Desse
modo, Deleuze (1992) entende que as sociedades disciplinares descritas por Foucault chegaram
ao apogeu no século 20, e nele experimentaram uma crise. Esse modelo social, como foi dito,
é aquele em que a vida é organizada pelos meios de confinamento, de modo que, durante toda
a existência, os indivíduos estão transitando entre espaços fechados (família, escola, fábrica, e
às vezes hospital e prisão) e, desse modo, organizados para compor uma força-produtiva.

O autor também indica que as tradicionais instituições de confinamento estão condenadas e


que, a partir de então, novas forças se anunciam, as quais denomina de sociedades de controle.
Há aí uma mutação do capitalismo que resulta em uma nova configuração, na qual os
mecanismos de controle rivalizam com os mais duros confinamentos: ao invés dos espaços
fechados, as sujeições operam ao ar livre. “Os confinamentos são moldes, distintas modelagens,
mas os controles são uma modulação, como uma modelagem auto-deformante que muda
continuamente […]” (DELEUZE, 1992, p. 221, grifos do autor).

O poder massificante e individualizante da sociedade da disciplina se desloca na sociedade de


controle, porque o par massa-indivíduo dá lugar a indivíduos divisíveis e aos mercados. Assim,
os controles se modificam a cada instante, concretizando o empresariamento da vida: nessa
sociedade nada termina, e se na fábrica existia horário de trabalho fixo (ainda que prolongado),
na empresa todo o tempo é tomado pela produção. Agora, o mote é a alta produtividade com
baixos salários, em um verdadeiro sistema de prêmios que coloca a rivalidade entre funcionários
como motivação, e essa competitividade contamina todas as esferas da vida (DELEUZE, 1992).

Cabe considerar, como indica Peter Pelbart (2003), que o capitalismo agora opera em rede, em
uma dinâmica que modifica as formas de exploração e exclusão, e como foi dito, seu artifício
atual está na relação invasiva que estabelece com a subjetividade. Se antes a força física era a
principal exigência para realizar o trabalho no campo e na fábrica, em um trabalho
supostamente apenas corpóreo, com as transformações sociais atuais se investe muito mais no
subjetivo.

Isso é dizer que até quem não está vinculado ao processo produtivo também produz, todos nós
produzimos constantemente, e não apenas os assalariados, já que atualmente não vendemos
apenas a força de trabalho, porque é em cima da própria vida que se lucra. Todas as dimensões,
antes reservadas ao espaço privado, hoje são requeridas dos trabalhadores – a inteligência, a
53

inventividade, a imaginação, ou seja, a criação que deve servir ao capital, de modo que a vida
se tornou fonte de valor (PELBART, 2003).

E quando afirmamos que a ação contemporânea do capitalismo investe na subjetividade, não


queremos minimizar o investimento corpóreo, como se fossem âmbitos desconectados. Aliás,
o corpo é cada vez mais central nessa nova exploração capitalista. É nesse sentido que Preciado
(2018) diz que “o verdadeiro motor do capitalismo atual é o controle farmacopornográfico da
subjetividade” (p. 42). Paul B. Preciado ainda afirma que:

Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma sociedade ciber-oral, de
uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para
uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico para
formas de controle microprotéticas e midiático-cibernéticas. Em outros textos, chamei
de farmacopornográfica o tipo de gestão e produção do corpo e da subjetividade
sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade
contemporâneos já não são mais regulados unicamente pela passagem por instituições
disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um
conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais, de transmissão e de
informação (PRECIADO, 2020, p. 171, tradução nossa 15).

Isso nos leva a concluir que o objetivo das tecnologias farmacopornográficas é produzir corpos
que coloquem suas potências para trabalhar, que coloquem suas capacidades de criar e suas
fontes de prazer a serviço da produção capitalista (PRECIADO, 2018).

E é justamente por sabermos que corpo e mente são integrados, que evidenciamos: é também
no corpo que se investe quando se explora a economia imaterial, é também o corpo o alvo dos
avanços sobre a subjetividade. No entanto, no capitalismo fabril das sociedades disciplinares,
o corpo era torturado em uma rigidez intensa. Agora, o capitalismo versa sobre o corpo
superexcitado: “Trata-se nesse contexto, sobretudo, de promover uma estimulação perpétua de
reflexos, de funções e sinais nervosos, configurando um corpo ágil, animado e hiperacelerado”
(FERRAZ, 2002, p. 171). Desse modo, Bruno Cava implica que no

[…] atual estágio, o capitalismo cognitivo, [está] apoiado principalmente no desejo e


não na produção. Não mais a ética parcimoniosa da poupança e diligência dos
capitalistas puritanos, nem o produtivismo desenvolvimentista […], mas a capacidade
de produzir e atravessar subjetividades. Agora, o capital se desloca do chão de fábrica
e dos uniformes cinzas para o colorido da produção de imagens, de formas de vida,
de estéticas de existência (CAVA, 2017, p. 2).

15
Texto original: “Hoy estamos pasando de una sociedad escrita a una sociedad ciberoral, de una sociedad orgánica
a una sociedad digital, de una economía industrial a una economía inmaterial, de una forma de control disciplinario
y arquitectónico, a formas de control microprostéticas y mediáticocibernéticas. En otros textos he denominado
farmacopornográfica al tipo de gestión y producción del cuerpo y de la subjetividad sexual dentro de esta nueva
configuración política. El cuerpo y la subjetividad contemporáneos ya no son regulados únicamente a través de su
paso por las instituciones disciplinarias (escuela, fábrica, caserna, hospital, etcétera) sino y sobre todo a través de
un conjunto de tecnologías biomoleculares, microprostéticas, digitales y de transmisión y de información”.
54

E, como viemos dizendo, nas sociedades de controle contemporâneas, a produtividade não se


restringe a um espaço fixo, ela toma todos os espaços da vida. O poder atua produzindo modos
de vida e capturando os desejos. Conforme Pelbart (2003), nós consumimos, além de bens
concretos, formas de viver: jeitos de sentir, sonhar, pensar e de nos relacionar. O capital penetra
nos mais íntimos setores da existência e os mobiliza, os coloca para trabalhar.

“No capitalismo hoje, é como se vivêssemos iniludivelmente sob um grande modulador do


desejo, um enorme sintetizador de paixões sempre à espreita para maximizar a captura da vida
comum” (CAVA, 2017, p. 5). Assim, podemos afirmar que nossas emoções, desejos e até
prazeres estão obedecendo à lógica do capital, sendo produzidos por ela. Estaríamos, portanto,
programados pelo capital?

Deleuze diz que diante desse novo regime de dominação “não cabe temer ou esperar, mas
buscar novas armas” (1992, p. 220). Não devemos nos enganar, não estamos paralisados,
imobilizados por uma camisa de força. Essa subjetividade não é privada pelo capital de modo
passivo; afinal, a vida é capitalizada, e nisso o sistema se utiliza do corpo por inteiro e da nossa
potência criativa, mas isso não é imposto unilateralmente. As forças vivas nos colocam táticas
de construir alternativas e de criar sentidos, o que Pelbart (2003) coloca nos termos de força-
invenção.

Dessa maneira, Cocco e Cava (2018) mostram que se nos debruçamos sobre a história do
sistema capitalista sob uma ótica mecânica da luta dialética, a qual o coloca como homogêneo,
linear e dependente das categorias de negação, estabelecemos a ideia do capitalismo como algo
muito amplo e extremamente ofensivo – e em contraposição a ele estariam os espaços não-
capitalistas, os que resistem aos ataques. Porém nos desprendemos desse entendimento para
pensar as lutas diante do biopoder, pois estas estão em um arco de positividades e de afirmação.
Desse modo, quando utilizamos o termo resistência não nos referimos ao significado primeiro
que essa palavra comporta, de algo apenas defensivo; antes, entendemos as resistências como
movimentos eruptivos, ativos, criativos e descontínuos (COCCO; CAVA, 2018).

Efetivamente, as forças estão em movimento, os fluxos e passagens perpassam nossos corpos.


E nisso há uma capacidade de produzir o novo, de criar outras subjetividades que não se
sujeitam à captura do capital: ela está na potência inventiva, na imaginação, nos desejos, no que
se acredita, nas formas de cooperação e associação, na afetividade. “A invenção é a potência
do homem comum” (PELBART, 2003, p. 23).
55

Espinosa explica que as coisas são suas potências, são o que elas podem. Somos movidos pelos
afetos, os quais estão submetidos a variações de estado, que aumentam ou diminuem a potência.
Assim, Deleuze afirma que “[…] a potência é sempre em ato, ela é sempre efetuada. São os
afetos que a efetuam. Os afetos são as efetuações da potência. O que eu experimento em ação
ou em paixão, é o que efetua minha potência a cada instante” (2019, p. 121). Quando falamos
sobre a potência, não pretendemos colocá-la como contrária ao poder, e muito menos expressar
a potência com um sentido positivo e poder como algo negativo. Não há um julgamento de
valor sobre tais categoriais. O poder é uma relação e do mesmo modo se dá com a potência, ela
se alastra por todos os corpos e lugares, de maneira que não se separa o poder da potência, e
não há espaços onde só atua um ou outro.

Desse modo, Pelbart (2003), a partir de Antônio Negri, diz que ao “lado do poder, há sempre a
potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação […]” (p. 27). O poder, sem
dúvida, age sobre a vida na forma do biopoder. Entretanto, a potência política da vida é a
biopotência da multidão: o coletivo se agencia com suas invenções para não submeter a
subjetividade ao capital e, assim, por meio das rachaduras, escapar. Pelbart ainda acrescenta
que o capitalismo fabrica modos de vida nos corpos e os submete a formas fixas, mas os corpos
são plurais e constantemente rejeitam as formas de assujeitamento (PELBART, 2003).

O biopoder tenta reduzir o corpo ao mero biológico, à vida nua, mas nisso se depara com a
recusa dessa limitação e, por sua vez, o corpo e a vida passam a expressar-se como poder de
ação, de afetarem e serem afetados. A vida, então, inclui as singularidades, a coletividade e a
cooperação social. A partir daí opera-se uma inversão no termo biopolítica, apontado não mais
o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. O que se propõe nesse caso não é apenas
uma inversão semântica, pois afirmar que a biopolítica expressa agora a potência da vida é
mostrar que a subjetividade vampirizada pelo capital não está imóvel (PELBART, 2003).

Ou seja, é dizer que aquilo em que o poder investe – o corpo e a vida – se torna território de
resistência. “Ao poder sobre a vida, responde então o poder da vida, a potência do corpo
biopolítico coletivo, capaz de fazer variar suas formas e reinventar seus regimes de enunciação”
(PEIXOTO-JÚNIOR, 2005, p. 62). Nesse sentido, Pelbart (2003) pontua que:

Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano, a vida ao


mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, dissemina-se e se alastra, moleculariza-se e
se totaliza. E ao se descolar de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma
amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetada, na
mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do
56

sentido do termo forjado por Foucault: a biopolítica não mais como o poder sobre a
vida, mas como a potência da vida. (PELBART, 2003, p. 25)

Tais reflexões são fundamentais para pensar o corpo no bojo do capitalismo contemporâneo,
porque a máquina do capital funciona sob a modelagem de corpos e de subjetividades. Sem
dúvida, as instituições, a cultura e a sociedade, ao definir como são os corpos, ditam também
como eles devem ser, atribuindo significados a eles. Entretanto, ao mesmo tempo, existem
outros significados tão múltiplos que o corpo se torna um objeto de disputas, e muitas práticas
discursivas o atravessam. O corpo é inconstante, porque seus desejos e necessidades estão em
permanente transformação (SILVA, 2010).

Ainda que determinadas áreas científicas, como a biologia e a medicina, esquartejem o corpo,
elaborando-o como fragmentado e vazio, ele não pode ser reduzido à forma física, ele é muito
mais do que esse amontoado de células, órgãos, sistemas, aparelhos e funções: “[…] o corpo se
produz continuamente numa composição de ‘estados inéditos’ que vão se constituindo num
fluxo permanente entre um corpo e vários outros” (SILVA, 2010, p. 19).

Como mostra Elenita Silva (2010), é importante reforçar que nas sociedades de controle do
capitalismo contemporâneo, a subjetividade não está mais tão presa à individualidade, e os
sujeitos sociais são mais móveis e flexíveis que antes, configurando uma plasticidade dos
corpos. Isto é, um corpo muda e se transforma quando submetido à tensão, quando encontra
outros corpos e é afetado por eles, e a partir de estímulos vira outro corpo.

Por isso, um novo entendimento de corpo é apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari
quando falam do Corpo sem Órgãos (CsO), que foi utilizado primeiro na obra artística de
Antonin Artaud. O CsO não é uma noção ou conceito, é antes uma prática, uma experimentação
inevitável, um limite, um devir outro corpo (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Para Silva (2010)

O CsO é uma experimentação inevitável que concede aos órgãos uma outra função,
modificando sua função natural, permitindo ver com a pele ou sentir com os olhos.
Nesse corpo, alterado pela tecnologia em toda a sua estrutura (biológica, psíquica,
social etc.), os órgãos são expandidos e retraídos para produzirem movimentos e
estímulos que configuram uma subjetividade que aproxima o humano e as máquinas.
(p. 70)

Desde a pastoral, com as confissões e o exercício de se autoexaminar, que possibilitaram o


aparecimento do sujeito na História, as técnicas de produção de verdade sobre si têm se
esparramado em outros setores mais laicos, como na análise clínica. É nesse ponto que Deleuze
e Guattari invertem: “Onde a psicanálise diz: pare, reencontre seu eu, seria preciso dizer: vamos
mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso
57

eu” (1996, n. p.). Desse modo, se os mecanismos de poder nos assujeitam impondo uma
identidade, um eu, é necessário não se prender a ela e constantemente nos desfazermos para
além dela.

Assim, os autores provocam um pensamento sobre o Corpo sem Órgãos pela via da
dessubjetivação; da experimentação em vez da interpretação. Com isso, querem dizer:
“Trata-se de criar um Corpo sem Órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não
haja mais nem Eu nem o outro, […] em virtude de singularidades que não podem mais ser
consideradas pessoais […]” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, n. p.). Nesse sentido, quando
falamos desse corpo não-orgânico, não estamos na esfera individual: é preciso entender aqui
um corpo como fluxo de várias singularidades, como uma multiplicidade, feito de regiões de
intensidade.

Por isso, entendemos que o CsO se dá no plano da imanência e só pode ser povoado por
intensidades. O Corpo sem Órgãos é uma desterritorialização que acontece a partir da tentativa
de organização do corpo pelos dispositivos de poder, os quais querem territorializá-lo. O CsO,
porém, não é inimigo dos órgãos, ele é contrário apenas ao organismo. E o organismo não é o
corpo, é na verdade a organização dos órgãos, é um estrato sobre o CsO, que bloqueia fluxos e
nos fixa no mundo, que impõe ao corpo formas, funções e organizações hierarquizadas.
“O CsO grita: fizeram-me um organismo! dobraram-me indevidamente! roubaram meu corpo!
O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação,
um sujeito. É ele o estratificado” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, n.p.).

Regina Schöpke (2017) diz que Deleuze e Guattari foram acusados de romantizarem os
drogados, os esquizofrênicos, os loucos e os pervertidos quando abordaram o Corpo sem
Órgãos. Segundo a autora, enquanto a psicanálise colocou nesses processos uma negação de si
ou uma completa autodestruição, eles entenderam-nos como uma “[…] guerra feita contra o
organismo, de um levante, de uma busca desesperada pelas intensidades que foram roubadas,
que foram capturadas para servir a forças que não são as da vida” (SCHÖPKE, 2017, p. 289).
Isso porque esses corpos em desconstrução experimentam novos agenciamentos de forças e
potências que libertam fluxos e intensidades.

Contudo, quando os autores trazem esses exemplos ousados para pensar o CsO, mostram que
na verdade esses corpos não criam o Corpo sem Órgãos, ao contrário, esvaziam-se, são
mutilados, porque não têm domínio do processo. Daí que a experimentação do corpo para
58

constituir um CsO pleno exige prudência e comporta o desafio dos movimentos de


desterritorialização que não se perdem no caos, como acontece com tais corpos (SCHÖPKE,
2017).

É preciso compreender o CsO como matéria não estratificada, como uma unidade do múltiplo.
Os estratos são as camadas que se sobrepõem no corpo organizando-o, são as separações, as
divisões de dominação. Porém, ainda assim, Deleuze e Guattari (1996) mostram que o sujeito
depende do estrato. Tiago Fortes (2010) indica que são três estratos que nos atingem: o
organismo, que é uma estrutura que organiza hierarquicamente; a significância, por meio do
que tudo tem um significado; e a subjetivação, onde tudo parte do eu – e de todos eles é tão
difícil quanto perigoso escapar. Nesse sentido, Deleuze e Guattari alertam que não se pode
desestratificar de modo grosseiro e ríspido, porque um CsO que quebra todos os estratos vira
destruição e morte: um corpo de nada (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Para que o sujeito escape da subjetivação dominante, o que se deve buscar são pontos
momentâneos e efêmeros onde, aos poucos, desfaz-se o organismo, já que o tempo todo o CsO
oscila entre as superfícies que o estratifica e aquelas que o desprende. Quando os autores
discutem sobre desfazer o organismo, isso de modo algum significa se matar,
“[…] mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções,
superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e
desterritorializações […]” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, n.p.).

O pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado – mas


precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós,
mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre
um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar
favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis,
vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por
segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova
terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as
linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades
contínuas para um CsO. Conectar, conjugar, continuar. (DELEUZE; GUATTARI,
1996, n.p.)

Então, como constituir um Corpo sem Órgãos que não se volte para a morte? Como sair dos
modos de subjetivação que servem à dominação? Como fazer isso sabendo que o corpo tem
sido alvo de uma contínua docilização? Essa docilização o coloca cada vez mais em evidência,
sendo apoderado, submetido aos poderes, servindo ao Aparelho de Estado, que atua com suas
máquinas de coerção e punição para que o poder se estabeleça no íntimo de cada um, para assim
sermos mais bem controlados (SCÖPKE, 2017).
59

O indivíduo é um produto do poder, como mostrou Foucault (1977), mas ele também afirmou
que é preciso “‘desindividualizar’ pela multiplicação, o deslocamento e os diversos
agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados,
mas um constante gerador de ‘desindividualização’” (p. 4). Sendo assim, é importante enfatizar
que “[…] o processo de dessubjetivações do Eu não significa mergulhar no caos ou na loucura.
Dissolver o Eu implica num duplo movimento: o de sua desconstrução e o de sua reconstrução
enquanto singularidade” (SCHÖPKE, 2017, p. 303).

Para libertar a vida dos poderes que a tornam fraca é preciso travar uma guerrilha consigo
mesmo, contra aqueles poderes que estão interiorizados em nós. Já sabemos que nesse processo
há o perigo do corpo padecer e sucumbir, mas Regina Schöpke (2017) indica que é pela via da
desconstrução ativa e afirmativa – e não pela desconstrução reativa e niilista – que se inventa
novas formas de viver sem se destruir. O que quer dizer que o corpo deve reverter a ordem que
lhe foi imposta, em uma produção de singularidade, em novas conexões e agenciamentos.

Diante disso, para que haja a ruptura com o governo da individualização, para que a
subjetivação não corresponda a uma linha de força do poder, não devemos considerá-la na
formação do sujeito, “[…] mas no movimento em que a força entra em relação consigo mesma,
afeta a si mesma e quebra a linha do poder, isto é, o exercício de afetar a outrem, em um afetar
a si mesmo para além do governo de si e do outro” (SANTOS, 2016, p. 266).

O Corpo sem Órgãos é uma desconstrução ativa do corpo, que o reconecta à vida pulsante e a
outros corpos, tirando-o da inércia e da fixidez. O CsO estabelece o fim da cisão entre o corpo
dócil ordenado, e do desejo de dissolver outro mundo – pois nessa separação o corpo não é
capaz de existir plenamente. E o CsO é pleno, ele liberta a vida que está encurralada em nós.
Todavia, para constituí-lo é necessário ter a prudência de entender o que nos fortalece e
enfraquece e, assim, fugir dos nossos desejos que nos despotencializam (SCHÖPKE, 2017).

“Se corpo e subjetividade são produzidos pelo poder, tomar para si os processos de subjetivação
e de produção de corpos inscreve-se num movimento de resistência e luta contra os modos de
assujeitamento” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 190). Por isso, quando Espinosa diz que não
sabemos o que pode o corpo, ele não se refere à atividade do corpo; o que se expressa aí é nossa
ignorância acerca de sua potência. E se Deleuze indaga como criar para si um Corpo sem
Órgãos, isso é o mesmo que perguntar: que pode o corpo? (LAPOUJADE, 2002).
60

Dessa forma, entendemos, a partir desses filósofos, que o que se dá no corpo também se dá no
espírito, de modo que a consciência é a conexão do corpo e das ideias, é o corpo pensante. Toda
experimentação do corpo é também experimentação do pensamento. Portanto, Schöpke (2017)
mostra que quando se desconstrói o Eu, quando se destrói a essência do sujeito para afirmar a
singularidade em um Eu nômade, chega-se ao cerne do corpo: o corpo é uma multiplicidade.
Desse modo, construir um Corpo sem Órgãos é apontar a potência da vida, é criar um corpo
mais alegre, forte e resistente.

Diante disso o poder reage e capturas ocorrem, mas há sempre escapes e instabilidade ante às
forças que tentam fixar e controlar, pois a captura das forças do corpo não acontece de modo
integral, e sem dúvidas fomenta lutas e choques que, “[…] devem ser considerados pequenos
fracassos do poder e grandes sucessos de pequenas minorias anônimas” (PEIXOTO JR, 2005,
p. 60). Com isso, afirmamos mais uma vez que a resistência não apenas suporta, porque nunca
está inerte; resistir é criar algo novo.

É pela resistência que a História se move e a resistência se produz em nossos corpos, corpos
que são espaços de luta. Michael Hardt e Antônio Negri (2016) apostam no processo subversivo
da vida como resistência, quando afirmam que os corpos em luta estão em uma produção
alternativa de subjetividade: “Os acontecimentos de resistência têm o poder não só de escapar
ao controle, mas de criar um novo mundo” (n. p.).

Na tentativa de criar esse novo mundo, essa outra forma de subjetividade, despertamos para o
corpo sob a ótica dos conhecimentos dissidentes e subalternos, esses que nos convidam a
experimentar um corpo que escapa dos saberes instituídos na Modernidade e na colonização.
Distante dos dualismos, reducionismos e violências eurocêntricas sobre o corpo, temos então a
visão de um corpo vivo e pulsante, um corpo que abarca linhas de fuga e desterritorializações.
Marcelo de Trói e Leandro Colling (2017) ensinam que se a colonização e o projeto moderno
esboçaram o assentamento das forças do desejo e delinearam um corpo submetido à mente,
reduzido ao estado orgânico, devemos apostar em descolonizar esse corpo, em colocá-lo como
centro do processo decolonial – porque isso é permitir os fluxos da máquina desejante, é
valorizar outras subjetividades e corporeidades, é criar um CsO não atravessado pelo
pensamento colonial.

A potência dessa nova corporalidade está na produção de novas vidas possíveis. Quando
afirmamos isso não nos referimos ao corpo que se mede por uma totalização, que pode ser
61

designado como algo fisiológico, unificado e puramente biológico. Um novo corpo já insurgiu
bem diferente desse: um corpo como lugar minoritário, um devir onde se opera resistências, um
corpo que se expressa pela própria experiência, e possibilita proliferar sensações, passa a ser
intensivo; não em busca de uma identificação nem tampouco de uma submissão, mas que
sempre se permite a novas experimentações corporais (KIFFER, 2014).

Existem sim experimentações que aumentam a potência do corpo, esse que não se reduz ao
organismo, a um conjunto de funções, à consciência, como anuncia Kátia Kasper (2009). Se a
invenção é a potência do homem comum, ousamos inventar outros corpos possíveis, ousamos
criar um novo mundo, ousamos tramar diferentes formas de educar.
62

3 O QUE PODE UM CORPO QUANDO COMPÕE UM COMUM?

Esse é um pequeno espaço de respiro, um


vislumbre de futuro que já estamos construindo,
já estamos vivendo.
Iaiá Rocha

Atualmente, se houver uma busca nos dados oficiais da prefeitura de Vitória, no Espírito Santo,
sobre as regiões e bairros que formam o município, não encontraremos a nomenclatura
Território do Bem. Isso porque Vitória possui uma divisão oficial por regiões administrativas 16,
e uma segunda divisão, que coloca a cidade em dez poligonais, as quais foram definidas a partir
de parâmetros como “[…] o grau de carência em equipamentos e serviços urbanos e sociais, o
nível de fragilidade ambiental, o grau de risco geológico, a precariedade das moradias e os
baixos índices sociais das famílias” (MIRANDA, 2017, p. 109).

Essa repartição por poligonais, de acordo com os dados oficiais (VITÓRIA, 2019), está
vinculada ao Projeto Terra. A classificação surgiu da necessidade de estabelecer políticas
públicas direcionadas ao desenvolvimento social, ambiental e urbanístico com foco nas áreas
de ocupação irregular (HENRIQUES, 2017). Desde 2005, o projeto passou a se chamar Projeto
Terra Mais Igual, como descreve Clara Luiza Miranda (2017):

O Projeto Terra é o “Programa Integrado de Desenvolvimento Social, Urbano e de


Preservação Ambiental em Áreas Ocupadas por População de Baixa Renda do
Município de Vitória”. O programa, quando concebido, pretendeu incorporar ao
tecido urbano da cidade as áreas ocupadas por população de baixa renda, prometendo-
lhe cidadania e pleno direito à cidade. (p. 108)

Segundo a autora, esses objetivos de desenvolvimento estão relacionados ao crescimento que o


munícipio enfrenta desde as décadas de 1980 e 1990 por conta da modernização da cidade de
Vitória. A grande quantidade de indústrias que se instalou na região nesse período atraiu a
população do interior e, sem planejamento urbano, esse evento resultou na ocupação dos morros
da capital de forma rápida e intensificada, de modo que e a cidade passou a sofrer com
problemas de infraestrutura (MIRANDA, 2017).

A região Poligonal 1 de Vitória compreende os bairros e comunidades: Bonfim, Consolação,


Engenharia, Floresta, Gurigica, Itararé (Figura 1), Jaburu, da Penha e São Benedito (Figura 2),

16
A qual determina nove regiões, sendo elas: 1. Centro; 2. Santo Antônio; 3. Jucutuquara; 4. Maruípe; 5. Praia do
Canto; 6. Goiabeiras; 7. São Pedro; 8. Jardim Camburi; 9. Jardim da Penha. O mapa dessa divisão está disponível
em Vitória (2014).
63

e atualmente possui mais de 31 mil habitantes (PESQUISA, 2019). Ainda que esteja localizada
em uma área central da Ilha de Vitória e seja próxima a bairros nobres, “[…] ostenta indicadores
sociais e econômicos significativamente negativos, e sua população é predominantemente
pobre” (MIRANDA, 2017, p. 100).

Figura 1 - Bairro Itararé com vista do Bairro da Penha e São Benedito

Fonte: Gobbo (2020a)

Figura 2 - Bairro São Benedito com vista do bairro Jaburu e da cidade de Vila Velha

Fonte: Gobbo (2020b)

A mídia e a polícia comumente referem-se à Poligonal 1 como Complexo da Penha. Muitos


moradores, contudo, entendem que esse termo é carregado de preconceitos17. Durante os

17
Além dos relatos dos moradores compartilhados no percurso da pesquisa, foram encontradas reportagens em
veículos impressos, online e de televisão comprovando que os representantes das polícias civil e militar usam essa
64

encontros da pesquisa, por vezes diferentes participantes expressaram o incômodo com essa
nomenclatura, reiterando que ela é utilizada de forma estratégica pelo poder público,
especialmente pelas forças policiais, para vincular o espaço a imagens negativas (Diário de
campo da pesquisadora).

Com base nas justificativas de desenvolvimento social e progresso urbano, as periferias têm
sido cada vez mais alvo de intervenção dos governos, e isso é uma das marcas do sistema
capitalista atual, o qual se desenvolveu pelos mecanismos do biopoder. Nesse sentido, Michel
Foucault (1988b) mostra que os corpos são inseridos nos aparelhos produtivos e os fenômenos
da população são ajustados aos processos econômicos.

Todavia, isso não significa que a ação capitalista se restringe à exploração pelo trabalho, que
de fato é intensa, mas que age também pelo controle, apropriando-se da vida por completo
“[…] e, assim, os corpos não são apenas confinados, reprimidos e disciplinados, mas,
sobretudo, experimentam uma condição de liberdade controlada pela máquina capitalística”
(FERRAÇO; DELMONDES, 2019, p. 461).

Essa liberdade controlada se vê em todos os lugares, desde nossa vida íntima até as ruas da
cidade, e não é diferente nas periferias que, aliás, arriscamos dizer que é onde ocorre um
controle mais agressivo. Isso acontece porque a ação biopolítica assume determinados corpos
como ameaças ao estabelecimento da ordem e, nesse processo, as regiões geográficas onde
esses corpos vivem são tomadas como perigosas. Diante disso, a presença do Estado nas favelas
vem com o argumento de melhorias sociais, mas o que observamos é uma atuação agressiva
sobre os corpos.

Diante disso, nos encontros da pesquisa ouvimos muitas reclamações de moradores, dizendo
que hoje as praças não são apenas espaços de lazer, mas também centros de intensa atividade
policial; as escolas não recebem apenas livros e professores, mas também patrulhas fardadas;
até o trânsito está militarizado, com viaturas e carros de guerra circulando ao lado dos pedestres
(Diário de campo da pesquisadora). De modo que toda a vida cotidiana da população vira alvo
de técnicas governamentais – técnicas que agem no corpo. Sobre a leitura de Foucault que se
relaciona a essa questão, Paul B. Preciado (2020) afirma que:

Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas se estendiam como uma rede


de poder que transbordava a esfera legal ou a esfera punitiva, tornando-se uma força

nomenclatura. Isso pode ser exemplificado pela reportagem de 2019 do portal de notícias G1 intitulada “Polícia
procura traficantes em operação no Complexo da Penha, em Vitória” (POLÍCIA…, 2019).
65

“somatopolítica”, uma forma de poder espacializada que se estendia pela totalidade


do território até penetrar no corpo individual. (p. 164, tradução nossa18, grifo nosso)
.
No entanto, o estereótipo de que a periferia é apenas um lugar permeado pelo tráfico, violência,
problemas urbanos, como o lixo, e infraestrutura precarizada é uma imagem preconceituosa que
incomoda, e muito, as comunidades. É justamente para ir contra isso que os moradores da
Poligonal 1 apostam na subversão pela linguagem, nomeando a região como Território do Bem:
o bem que aponta um caminho diferente dos aspectos ruins que tentam imprimir na identidade
do local. Isso mostra que muitos querem criar “[…] novas maneiras de exercer sua potência, de
fazer valer o seu desejo, de pôr para funcionar sua libido coletiva, de redesenhar a lógica da
cidade, da coexistência, inclusive da ruptura, do dissenso, da dissidência, da irrupção do novo
(PELBART, 2015, p. 23).

Nessa busca de incentivar os aspectos positivos nas periferias e fomentar o protagonismo social
dos moradores, ressignificando suas relações com o espaço, a cidade foi tomada por muitas
iniciativas de trabalho comunitário. No caso do Território do Bem, destacamos a Associação
Ateliê de Ideias, que é uma organização social19 sem fins lucrativos. Como mostra Leonora Mol
(2009), essa associação promove vários projetos que visam ao desenvolvimento comunitário
por meio da cidadania ativa, do apoio às ideias envolvendo moradores, e pela assessoria às
iniciativas que pretendem solucionar problemas nas comunidades que formam o território.

Um dos projetos do Ateliê de Ideias com mais visibilidade é o Banco Bem, que desde 2005,
busca circular a riqueza da comunidade dentro do próprio território através da economia
solidária, incentivando os moradores a valorizarem os comerciantes locais e fomentando o
empreendedorismo na região com empréstimos e linhas de crédito. Diferente dos bancos
tradicionais, os benefícios do Banco Bem são concedidos baseados na confiança, o que é
chamado por Mol (2009) de “tecnologia das finanças de proximidade” (n. p.). Isso quer dizer
que o morador é visto mais como um parceiro do que como um cliente, e desse modo a discussão
sobre a viabilidade do benefício é feita com planejamento e com união entre a comunidade e o
banco – ademais, o crédito é antes aprovado pela vizinhança de quem solicita, fortalecendo as
relações entre os moradores da comunidade.

18
Texto original: “Para Foucault, las técnicas gubernamentales biopolíticas se extendían como una red de poder
que desbordaba el ámbito legal o la esfera punitiva convirtiéndose en una fuerza ‘somatopolítica’, una forma de
poder espacializado que se extendía en la totalidad del territorio hasta penetrar en el cuerpo individual.”
19
O Ateliê de Ideias é uma OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
66

O projeto é muito popular no Território do Bem: já beneficiou cerca de 20 mil pessoas desde
que foi fundado e durante esses anos já emprestou mais de R$ 2 milhões de reais, sendo que a
taxa de inadimplência não passa de 2%, segundo reportagem de 2019 do portal de notícias G1
(BANCO…, 2019). No território circula uma moeda social impressa chamada Moeda Bem e
uma moeda digital chamada e-dinheiro. Além disso, o Banco Bem tem um núcleo habitacional
que fornece créditos para reformas e construções dos moradores chamado Bem Morar, projeto
de extrema relevância e impacto social que representa bem a filosofia da organização, que milita
para que todo o desenvolvimento econômico esteja acompanhado de desenvolvimento social e
humano (MIRANDA, 2017).

Todavia, a atuação do Ateliê de Ideias não se restringe à inclusão financeira. A organização


também mobiliza o local fomentando a integração entre os moradores de todas as comunidades
que compõem o território, e como mostra Vitor Taveira (2019), nessa missão está o Fórum Bem
Maior – FBM, um fórum popular que se propõe a pensar atuações sociais unindo a população
e desenvolvendo projetos para se fortalecerem juntos. Em um dos encontros das nossas oficinas,
houveram relatos de moradores dizendo que antes dos projetos do Ateliê de Ideias existia uma
rivalidade entre as comunidades, e que por conta disso eles nem podiam transitar entre os
bairros, mas a presença desses projetos sociais no local fez com que eles se percebessem mais
integrados, tornando os interesses e as lutas mais coletivos, não restritos a um só bairro, mas a
todo o Território do Bem (Diário de campo da pesquisadora).

Segundo os colaboradores do Ateliê de Ideias, a organização possui um grande número de


projetos. Pelos relatos compreendemos que suas atuações se dão em frentes múltiplas, as quais
contribuem para o desenvolvimento comunitário e valorização do território. Seus os enfoques
também são variados: ambiental, étnico-racial, resgate da memória local, entre outros. Há
também muitas abordagens culturais e de protagonismo jovem.

No entanto, o que mais se aproxima desta pesquisa é o da Varal Agência de Comunicação – um


projeto sociocultural que existe desde 2011 com o objetivo de ser um ponto de cultura, espaço
de produção e divulgação de projetos de comunicação, como oficinas, formações, reuniões de
grupos comunitários e eventos culturais. O local está preparado para atender a demanda das
lideranças comunitárias e para ser um espaço de convivência para a comunidade. Sua sede é
uma casa localizada no bairro Itararé, famosa pela laje com vista para os morros do Território
do Bem (VARALCOMUNICA, 2020).
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Sendo moradora do bairro Itararé desde o início de 2019, conheci a Varal pela divulgação online
de uma oficina de fotografia com a fotógrafa e moradora do Território do Bem, Thais Gobbo.
Essa oficina aconteceu no segundo semestre do mesmo ano, e ao ter contato com o espaço e a
equipe que atua no local, me encantei com a possibilidade de atrelar a pesquisa em curso no
mestrado com as atuações sociais que fervilham pela minha vizinhança.

Durante a oficina de fotografia, muitas vezes Thais Gobbo nos colocava a questionar o olhar
que tínhamos estabelecido sobre o Território, convidando-nos a uma visão mais afetuosa sobre
o espaço. As fotografias viraram pano de fundo para uma série de reflexões que passei a carregar
comigo e que se intensificaram. A partir de então consegui compreender melhor o processo que
estava vivendo de ser acolhida pelo local e pelos moradores, diferentemente dos outros bairros
onde já havia morado ao longo da vida.

Diante disso, decidi propor à Marly Rodrigues, técnica de desenvolvimento comunitário que
atua na Varal, uma parceria para pôr em prática o desejo de fazer a pesquisa no local. Não me
esqueço que no primeiro contato eu estava trêmula, gaguejando e muito nervosa, sem conseguir
formular bem as intenções da minha proposta, mas Marly me recebeu dizendo que por ser
moradora do Território eu seria bem-vinda.

A escolha da Varal vai além da relação pessoal, e se dá também por entender o local como um
espaço educativo, ainda que “[…] os saberes que não se baseiam na formalidade educacional
sejam considerados ‘menores’, menos sérios e ingênuos, por operarem muitas vezes em outros
tempos e espaços, que não o da instituição escolar […]” (GARCIA; ROTTA, 2012, n. p.). A
Varal, sendo um ponto de cultura, é aberta a quem deseja construir ali ações que beneficiem a
comunidade e, por conta disso, é palco de diversas oficinas, projetos, conversas e tantas outras
atividades em diversos formatos que podem ser considerados educativos, ainda que fora da
institucionalização.

Partindo do pressuposto de que não existe hierarquia de saberes, não pretendemos de modo
algum menosprezar a função da escola e, sobre esse tópico, cabe ressaltar que estamos em
consonância com a luta por uma educação pública, gratuita, de qualidade e que seja direito de
todas as parcelas da população. Mas se estamos tratando aqui de um espaço educativo diferente
desse, é preciso compreender que ele se organiza de modo próprio, de maneira que não pode
ser medido, comparado ou pensado a partir da lógica institucional. Sem dúvidas, como mostram
Valéria Garcia e Daltro Rotta (2012), existem paralelos, cruzamentos, implicações e
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entrelaçamentos entre educação formal e não-formal; no entanto, a educação não-formal


transita em outro plano – que não é melhor ou pior, mas tem suas próprias características e
propósitos.

Ou seja, as escolas têm um papel fundamental na formação e no acesso ao conhecimento, mas


outros saberes são produzidos independente dela. Digo isso porque a escolha por efetivar a
pesquisa longe de uma instituição do saber formal se desenrolou devido à minha curtíssima
trajetória em sala de aula, na qual meu corpo foi acometido por sensações diversas, boas e ruins.
Experenciei comentários terríveis nas salas de professores, muitas gargalhadas nas cantinas,
corpos colidindo nos recreios, os bons silêncios das bibliotecas, as tensões das reuniões, dor de
estômago por causa do cafezinho antes da sete… Me acostumei a escrever com giz e pincel,
não me acostumei com o calor tão forte, que desmaiava os alunos, e com o frio intenso nas salas
de informática.

Diante de todas essas sensações, nunca abandonei a constante dúvida sobre aquele espaço ser
de fato adequado para mim e se eu conseguiria ser a boa professora que sempre quis ser. Essa
inquietude talvez esteja relacionada às discussões desde a graduação, que, em geral, me deram
uma visão tradicional de que a tarefa do professor é a de formar alunos, educá-los e avaliá-los.
Pelo menos na minha trajetória acadêmica, pouco se falou sobre construir espaços singulares
de aprendizado, esses onde, como mostra Christian Vinci (2018), mais interessante do que
assimilar uma teoria, compreender um conceito e aprender um conteúdo, são os sentimentos
que tais concepções evocam.

De certa forma, para uma jovem professora, pode ser muito assustador pensar que
“não há qualquer certeza pré-estabelecida em uma aula, jamais sabemos se aquilo que estamos
fazendo em classe servirá para alguma coisa e tampouco é possível saber o que irá despertar o
amor ou a alegria em um aluno” (VINCI, 2018, p. 330). Entretanto, esse susto aos poucos se
transformou na potente lição de que é necessário me desprender do objetivo de controlar o
aprendizado dos alunos, porque de fato “não é possível saber ou mensurar como alguém
aprende, sob quais condições e o quanto aprende, tampouco podemos pensar em um método
capaz de garantir um aprendizado eficiente de uma miríade de saberes” (VINCI, 2018, p. 323).

Antes de compreender isso, nas discussões com colegas professores, profissionais que eu
admiro e que me inspiram, eu me sentia culpada, porque sonhei em ser professora durante a
graduação em História, mas desisti quando de fato me tornei uma. Então, como conduzir uma
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pesquisa na área de Ensino se eu não queria mais estar na escola? E mais: como explicar que
reconheço a enorme importância da escola se eu não queria atuar nela?

Houve, então, um bom encontro com os escritos de Silvio Gallo (2008), quando passei a
compreender os processos educativos de outro modo, em um caráter coletivo, como um
conjunto das diferenças, um espaço de multiplicidade. Seguindo assim, não há a necessidade
de se fixar em um lugar material – uma escola, um museu, um ponto de cultura – porque o
processo educativo é imanente, não tem endereço nem hora marcada. A educação está onde as
singularidades se juntam em projetos coletivos que aumentam nossa potência. Educar é lançar
convites (GALLO, 2008).

Portanto, estava posto o desafio: lançar o convite de experimentar um corpo. Pensando nesse
processo educativo imanente, Tomaz Tadeu (2002) se volta aos filósofos Deleuze e Espinosa,
e nos lembra que o plano de imanência é atravessado por duas linhas, a dos movimentos e dos
afetos. E é na confluência dessas linhas, em um encontro, que um corpo se define, onde
descobrimos o que pode um corpo:

Duas linhas atravessam o plano de imanência espinosista traçado por Deleuze. A dos
movimentos e a dos afetos. Em ambas, o que importa é saber o que acontece quando
dois ou mais corpos (quaisquer!, não necessariamente o meu ou o teu) se encontram.
“Encontro” é a palavra-chave. É só num encontro que um corpo se define. Por isso,
não interessa saber qual a sua forma ou inspecionar seus órgãos e funções.
Individualmente, isoladamente, um corpo tem pouco interesse. É na intersecção das
linhas dos movimentos e dos afetos que ficamos sabendo daquilo de que um corpo é
capaz. Sua capacidade, e não sua essência, é o que importa, a não ser que por
“essência” entendamos justamente sua “capacidade”. (TADEU, 2002, p. 53)

A partir daí, dos encontros, apostamos na arte para falar sobre corpo. Em parceria com a Varal,
montamos 20 horas de oficinas artísticas abertas ao público, dando preferência aos moradores
do Território do Bem. Essas oficinas se chamaram “O que pode um corpo?” e aconteceram em
janeiro e fevereiro de 2020. Toda sua organização está detalhada no Anexo A, e a imagem
abaixo mostra a arte utilizada para sua divulgação (Figura 3). Ao longo deste capítulo,
registraremos – não em ordem cronológica, mas na ordem das afetações – como esse projeto se
desenrolou.
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Figura 3 - Imagem de divulgação das oficinas

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

As fotos abaixo (Figuras 4 e 5) expressam uma variedade entre os participantes que


participaram no primeiro e no último dia. Isso ocorreu porque apesar do formulário de
inscrições online ter atraído um número grande de interessados, uma quantidade bem menor de
pessoas compareceu e participou, de fato, da maior parte das oficinas. Essa variação de
participantes aconteceu também porque a Varal, sendo um ponto de cultura, está sempre
movimentada, e em todas as oficinas houve a participação de pessoas que estavam apenas
passando pelo local, ouviram algo que chamou atenção e se ajuntaram para participar.

Figura 4 - Foto do primeiro dia de oficinas.

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.


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Figura 5 - Foto do último dia de oficinas.

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Nos formulários online, encerramos as inscrições com vinte e três inscritos (porque a
capacidade do local é de no máximo vinte pessoas), mas apenas dez participantes cumpriram a
carga horária exigida para certificação. Desses dez, a maioria tem entre 17 e 26 anos, e duas
pessoas têm 36 e 39 anos. Sete deles são moradores do Território do Bem, e outros três,
curiosamente, são de outras regiões periféricas da Grande Vitória. Quatro participantes ainda
estão cursando o ensino médio, e os outros seis estão no ensino superior ou já concluíram
(Diário de campo da pesquisadora).

Entre os inscritos, o interesse pelas oficinas surgiu a partir de motivos variados… houve quem
chegou porque o nome das oficinas fizeram lembrar o filósofo Espinosa – que de fato foi nossa
inspiração; houve quem associou o tema à saúde e tinha interesse nesse viés de discussão, e
vários chegaram buscando a experiência da parte artística e a confecção da zine, que já estava
anunciada na divulgação (Diário de campo da pesquisadora).

Evocando novamente o caráter coletivo da educação, exposto por Gallo (2008), durante as
oficinas pensamos um corpo coletivo. Ao utilizar uma dinâmica com fotografias, foi pedido aos
participantes que fotografassem com o celular um local, ambiente, objeto, pessoas ou qualquer
coisa com a qual eles tivessem uma relação de coletividade. Levamos as fotos reveladas e
pedimos que cada um falasse um pouco sobre elas, e a partir daí muitos assuntos foram surgindo
espontaneamente. Alguns trouxeram fotos da vista que veem das suas janelas, outros trouxeram
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fotos de membros da família, dos colegas de militância, do local de trabalho e até da mesa de
refeições (Diário de campo da pesquisadora).

Quando cada um foi explicando os motivos das imagens os afetarem, muitos repetiram sobre
os bairros em que moram serem retratados de modo depreciativo. Diziam sobre como era bom
morar no Território, sobre as amizades que construíram no local, sobre a convivência
harmoniosa entre as pessoas, os hábitos cotidianos que unem os moradores – o futebol, os
churrascos de domingo e as festas de família (Diário de campo da pesquisadora).
Compartilhando essas histórias, fomos concordando que as tentativas de enquadrar a periferia
em uma redução estereotipada esconde que esses locais estão povoados de pluralidades e
potências.

Outrossim, se o propósito de uma intervenção educativa em um mestrado profissional é


estabelecer um espaço de aprendizado, devemos nos atentar que o aprender é da ordem do
problemático: “[…] o pensamento não é ‘natural’ no ser humano, mas é forçado sempre por um
problema. Pensamos quando nos encontramos com um problema, com algo que nos força a
pensar. E aprendemos quando pensamos” (GALLO, 2012, p. 4). Por isso decidimos começar
os encontros com uma oficina de criatividade, porque ser criativo não é da ordem do natural,
“ninguém nasce criativo”, como tantas vezes o oficineiro alertou (Diário de campo da
pesquisadora), mas cotidianamente somos colocados diante de problemas que exigem soluções,
ou antes, movimentos que nos façam pensar e criar algo novo. E a criação de um novo mundo
é o nosso desafio.

Nesse primeiro encontro, o oficineiro foi João Paulo Rocetti, ilustrador, quadrinista e morador
do Território do Bem. Ele tentava mostrar como já usamos os processos criativos no cotidiano,
e nos chamou atenção para o fato de que a criatividade pode se tornar mais fértil quando
passamos por algum tipo de escassez. Para se fazer entender, ele deu exemplos de como os usos
das ferramentas são transformadas no improviso diante da necessidade – como uma faca virar
uma chave de fenda, um ferro de passar roupa virar uma chapinha de cabelo, ou como as
crianças conseguem construir brinquedos e brincadeiras com os materiais que têm disponíveis,
como uma travinha de futebol feita com chinelos no meio da rua (Diário de campo da
pesquisadora).

Naquela conversa, o artista estava comentando sobre maneiras de usar o que a gente já tem para
produzir arte, para nos expressar. Nesse momento, diante dos exemplos citados, um dos
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participantes compartilhou que muitas vezes as favelas são vistas apenas como mercado
consumidor e não como potência criativa, sendo que na verdade a inventividade nesses lugares
é grande, justamente porque essa população está diante de necessidades que a move e a faz
inventar para sobreviver. Bruno Cava (2012), nesse sentido, aponta que:

A pobreza, por exemplo, contém um paradoxo. Na mesma medida que é privação,


também é potência. Por óbvio, privação e potência não acontecem ao mesmo tempo.
Mas o pobre é aquela força que caminha nesse campo instável, onde pode transitar
por todo o espectro de grau entre uma e outra. Porque a pobreza tem uma dimensão
afirmativa, inventa novos usos, constrói o máximo do mínimo, a favela do lixo, a
poesia das expressões doridas e tensionadas das ruas. Gatos nascem livres e pobres e
recusam a ser chamados pelo nome. Qualquer prescrição de imobilidade não serve
para quem tem de se mover todos os dias para reinventar o mundo, em cuja crise o
pobre vive e se relaciona. Devir pobre ativa a potência insofismável dessa classe
inscrita como agente de produção do capitalismo. (p. 46)

Porém, existe um olhar paternalista sobre os pobres, que busca salvá-los, desaliená-los,
transformar sua mentalidade. Olhar este que desconsidera as potencialidades que circulam
nesses territórios, que quer aniquilar as redes de afeto formadas neles, que não dá espaço para
que as singularidades se multipliquem. Nesse sentido, Alfredo Veiga-Neto (2019) mostra que
o campo da educação está tomado por uma sacralização pedagógica. Com isso, o autor quer
dizer que alguns educadores, guiados por certezas absolutas e caminhos rígidos, se tornaram
“[…] militantes sombrios do pensamento único e totalizante”, e que estão imersos na “[…]
lastimável celebração das verdades únicas anunciadas pelos arautos, que arrogam a si a tarefa
de ‘salvar a educação’ e com isso ‘salvar o mundo’” (VEIGA-NETO, 2019, p. 22).

Em muitos momentos no percurso desta pesquisa, deparamo-nos com discursos e práticas que
tentaram impor as diretrizes de atuação, impor um referencial teórico e impor uma visão de
mundo que segue essa mesma retórica de salvação, descrita por Veiga-Neto (2019), revelando
uma postura condescendente quando afirma que o objetivo de uma pesquisa nas áreas de
educação ou ensino seria promover uma transformação social, uma mudança de pensamento,
uma formação dita crítica e emancipadora.

Aqui, no entanto, a prática se tece de outro modo. As oficinas rascunharam uma formação na
qual os modos de relação dos sujeitos consigo mesmo, com os outros e com o mundo se
construíssem pela via do encontro. Assim, tentamos construir por meio delas uma formação
ética, política e estética que expandisse os limites do conteúdo e não se limitasse à transmissão
da informação. Por isso, à maneira de Inês Barbosa de Oliveira e outros pesquisadores (2012),
recorremos na verdade ao entendimento de um ensinoeducação, onde a formação é a
“possibilidade de conhecimentos prudentes que nos possibilitem uma vida decente, mais do que
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a aceitação de uma educação reduzida à dimensão conteudista do ensino, esvaziada do seu


sentido, esvaziando-se, com isso, o próprio ensino” (OLIVEIRA et al., 2012, n. p.).

No nosso caso, a pesquisa não pretendeu promover uma transformação nos participantes,
tampouco no local onde ocorreram as oficinas. Não que uma pesquisa não possa provocar
mudanças, mas quando ela se propõe a converter o outro, ela pode se tornar um lugar da
mesmice, e não de pulular a diferença. Carlos Skliar (2003) diz que quando falamos em
respeitar o outro, em aceitar o outro, corremos o risco de acolher apenas as visões e vivências
do outro quando convergem com as nossas, e isso é nada mais que uma anulação das potências.

Talvez a educação tenha muito a aprender com as periferias, com seus modos de vida fincados
na convergência das diferenças. As favelas, que são palco da inventividade e força criativa, têm
criado também redes de vida possíveis, além de táticas para sobreviver ao neoliberalismo
agressivo e violento. Estão apontando caminhos de se criar laços e desenhar novas
comunidades.

[…] dada essa potência de vida disseminada por toda parte, dada essa biopotência
presente em cada canto, dada essa força-invenção presente em cada lugar, que novas
redes de vida são possíveis? Que novas possibilidades de se criar laço e também
distância surgem em cada dia e em cada contexto? Que tipo de comunidades são
desenhas no horizonte? (PELBART, 2015, p. 23)

Pensar quais comunidades são desenhadas agora nos faz despertar para o fato de que as
associações políticas hoje não funcionam mais a partir das organizações tradicionais e
hierarquizadas, como outrora foram as organizações sindicais, por exemplo. Donna Haraway
(2009) diz que a luta política na atualidade não pode mais pretender uma identidade fixa, seja
de um sujeito revolucionário, de gênero, raça ou qualquer outra totalizante. As lógicas operam
muito mais próximas da política de alianças e de coalizões, na qual a identidade dá lugar à
afinidade, que no contexto do capitalismo atual, formulam-se em uma luta por sustento e
sobrevivência (HARAWAY, 2009). Nessa composição, o espaço é aberto para a diferença e
para a contradição, que se unem em redes de conexão para lutas em comum.

E é justamente isso que pode ser encontrado em comunidades que historicamente têm sido alvo
de políticas de exclusão e extermínio. Diante de um sistema que explora a vida e o corpo em
todas as instâncias, a alternativa é lançar-se à vida comunitária:

No âmbito da precarização do trabalho e da vida a partir dos anos 1990, por exemplo,
se de um lado fica evidente a que ponto essas condições resultam das injunções
perversas do neoliberalismo, com a vulnerabilidade que dele decorre, de outro, ao
mesmo tempo, criam-se formas de sociabilidade e de cuidado coletivo, de ativismo e
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de amizade que redesenham os modos de vida em comum propostos por vidas


precarizadas em várias partes do globo. (PELBART, 2014, p. 258)

Muitos desses movimentos que se delineiam agora, portanto, estão centrados nas políticas do
comum. Não o comum apropriado pelo capital, como alerta Silvia Federici (2017b), mas o
oposto a esse. O comum que desafia a lógica neoliberal individualizadora, porque é o comum
que olha para as pautas do coletivo e dilui a individualidade. As periferias já produzem o
comum, porque a produção de vida comum é a

[…] potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação


recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas
crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, como diz Maurizio
Lazzarato na esteira de Tarde, que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do
próprio capitalismo. Por isso mesmo este comum é o visado pelas capturas e
seqüestros capitalísticos, mas é esse comum igualmente que os extrapola, fugindo-lhe
por todos os lados e todos os poros. (PELBART, 2008b, p. 4)

Diante das capturas do capitalismo, pensar um comum é criar alternativas de mundos possíveis.
Por isso, neste capítulo decidimos pensar a potência educativa de um corpo que compõe um
comum. De muitos modos os corpos são colocados nos processos educativos, mas nunca
passivamente, e sempre produzem escapes às capturas do poder, porque o aprendizado, em
qualquer espaço – formal ou não-formal – é algo que escapa, criando possibilidades de
resistências, de se opor ao controle, de fugir do controle e inventar algo novo. No comum da
educação “não há objetos, não há ações centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos,
individuações sem sujeito. Todo projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso
também” (GALLO, 2002, p. 176).

Este capítulo evidencia, portanto, a aposta política de compor com a periferia porque
acreditamos em sua potência e rejeitamos os olhares paternalistas sobre ela. Além disso,
buscaremos fazer aqui também as apostas metodológicas para o trabalho e registrar as
experimentações das oficinas artísticas que realizamos em conjunto com a comunidade,
relacionando-as ao modo como entendemos as questões da educação, da docência, do ensinar
e do aprender, mas, como dito, isso não será narrado em ordem cronológica, mas a partir dos
acontecimentos que foram afetando a escrita.
76

3.1 POR ONDE CAMINHA ESTE CORPO?

Em uma das aulas20 do mestrado, ao conversar sobre materiais educativos, as professoras


discutiam sobre a possibilidade de explorar a arte nas nossas pesquisas. Com a turma dividida
em grupos, elas propuseram uma dinâmica na qual cada um recebeu imagens de obras de arte.
Como o objetivo da disciplina na ocasião era nos preparar e inspirar para confeccionar os nossos
próprios produtos educacionais, recebemos também uma lista com uma série de requisitos que
o material deveria atender. De acordo com as anotações da aula, os critérios de avaliação das
imagens eram: forma e conteúdo; intencionalidade do artista; escolhas do artista (tintas,
texturas, enquadramentos etc.); contexto histórico do artista; o que a imagem diz; como cada
um se sente – e, por fim, fomos orientados a analisar as obras a partir dessas premissas.

Essa aula me afetou de muitas formas. Um dos primeiros incômodos surgiu quando me deparei
com aquele roteiro de análise, que pareceu quase um passo a passo sobre como utilizar obras
artísticas com os alunos. Nesse dia, ouvimos o ponto de vista que defende que a realidade é
uma só; que a obra precisa ser contextualizada em sua época; que o mais importante sobre a
arte é entender a crítica social que o artista pretende com ela; que a subjetividade vem depois,
a intenção do artista vem primeiro etc. A partir daí, entendi que, nesse caso, as professoras
partiam de abordagens diferentes da minha em relação ao ensino de arte, amparadas em autores
marxistas que reforçam a busca de uma criticidade no ensino, a qual se guiaria pela
emancipação política nas manifestações artísticas.

No entanto, até mesmo Liev Vigotski (2003), grande referência do marxismo no assunto, afirma
que o ensino de arte se torna caricaturesco quando busca o “[…] sentido fundamental de
qualquer obra pela explicação ‘do que o autor quis dizer’ e do significado moral de cada
personagem separadamente” (p. 227). Ou seja, a tentativa de exprimir significados e dogmas
morais das vivências artísticas, de acordo com o autor russo, recai em uma compreensão
limitada e estreita da educação artística. Portanto, ele parte do princípio de uma educação
estética como um fim em si mesmo, e não apenas como um meio para obter resultados
pedagógicos, e que essa educação deve se preocupar em estimular a criatividade e aptidões
criativas, percepção com a qual concordamos muito.

Contudo, é importante destacar que nos afastamos de diversas proposições elaboradas por
Vigotski (2003) em relação à concepção e à função da arte. Para o autor, a arte é dialética, ela

20
No segundo semestre de 2018.
77

depende das categorias de negação para reconstruir a emoção e se resolver na catarse, processo
que ele entende como uma atividade complexa. Além disso, o objetivo da reação estética seria
superar o real e, portanto, a arte teria a função de transmitir uma verdade transformadora da
realidade. Para nós, isso soa um tanto impositivo, porque estamos mais inclinados a olhar a arte
como um espaço afirmativo, de multiplicidade, diferença, experimentação e afetação – que
podem, evidentemente, causar mudanças. Não necessariamente mudanças da ordem da
configuração social do mundo, mas antes na singularidade do corpo e na vida, criando
possibilidades de existências potentes.

Todavia, não podemos deixar de notar que seus ensinamentos trazem algumas compreensões
interessantes, como o entendimento de que somos todos potencialmente artistas e que o
espectador/leitor pode assumir uma papel ativo diante da arte e que, por isso, o processo de
criação e percepção dela geram estímulos. Além do mais, para nós é imprescindível entender
que não se pode reduzir a educação estética à transmissão de normas morais, ou a um conjunto
de significados:

Subentende-se que, com esse critério, a obra de arte fica desprovida de seu valor
independente, transforma-se em uma espécie de ilustração de uma tese moral geral;
toda a atenção concentra-se justamente nesse último aspecto, e a obra de arte fica fora
da percepção do aluno. Na verdade, com essa concepção não se criam nem educam
atitudes e hábitos estéticos; não se comunica a flexibilidade, a sutileza e a diversidade
das formas às vivencias estéticas; pelo contrário, transforma-se em regra pedagógica
a transferência da atenção do aluno da obra para seu significado moral. (VIGOTSKI,
2003, p. 227)

Para nós, a arte não tem um propósito maior, porque ela não tem compromisso nem com as
concepções de produtividade do capitalismo, e tampouco tem a obrigação de construir um bem
maior, propagar uma revolução, salvar da suposta alienação. Inspirados em Carminda André
(2011), aqui traçamos um sonho, uma utopia de mundo que se expressa em inventar relações
afetivas, modos de produzir afetos como prática ética, que se voltam à coletividade horizontal,
à afirmação da diferença, e à busca por outros possíveis para o corpo, para a vida e para a
própria arte.

A partir disso, não é exagerado dizer que algumas falas naquela aula me atormentaram,
especialmente as constantes indicações de que o lugar do subjetivo era menor do que os outros
critérios. Diante disso, sendo uma pessoa totalmente sem autoridade nos assuntos relacionados
à educação artística (porque não sou da área), questionei silenciosamente as ponderações das
professoras do mestrado. Entendi que, de fato, em um contexto escolar, diante dos currículos,
prazos e documentos oficiais aos quais os docentes devem se atentar, provavelmente as
78

orientações eram coerentes, mas aquele roteiro não serviria para mim se fosse encarado
arbitrariamente.

E mesmo sem discutir nada disso, aparentemente meu grupo também compartilhava desse
sentimento. Ao olhar as obras, antes de analisar se elas eram adequadas como material
educativo, antes de olhar as informações sobre autor, contexto em que foram produzidas, antes
mesmo de olhar a sugestão de uso com os alunos, percorremos aquilo que nos afetava nelas.
Algumas pessoas falavam das cores, outras contavam de quem se lembraram ao ver a imagem,
outras tentaram até inventar uma história para os personagens retratados nas pinturas, e
gastamos a maior parte do tempo compartilhando essas visões de maneira prazerosa.

Naquela ocasião, pensei em todas as escolas em que havia atuado e nas minhas próprias
experiências. Qual a relação dos meus ex-alunos com a arte? Qual a relação que eu mesma tinha
estabelecido com a arte? Lembrei das discussões na graduação sobre os espaços culturais
tradicionais da cidade estarem distantes da população, no sentido de que as pessoas não se
sentem autorizadas a acessar esses espaços. Pensei em como a colonização ainda ressoa nos
imaginários e nos faz acreditar que arte é apenas aquilo que está restrito a um espaço de museu
ou galeria. E com todos esses pensamentos, tantos outros vieram embaralhados e confusos.

A única certeza foi o desejo que surgiu de carregar para minha prática uma abordagem por meio
da arte, porque sabia que dessa forma existia a possibilidade de produzir sensações, reflexões,
incômodos e afetos, assim como meu grupo experimentou na aula. De forma totalmente
inesperada, aquela aula se transformou em uma das melhores que já tive no mestrado,
justamente devido ao imprevisível. Nós recebemos orientações sobre o que fazer com as obras
de arte, havia uma planejamento de como analisá-las, mas de um modo espontâneo as coisas se
modificaram e tomaram outros rumos, porque demos ouvido aos sentimentos e sensações que
nosso corpo experimentou diante das obras.

Uma pesquisa também se compõe dessa maneira. Não há pleno controle sobre o que vai
acontecer, ela é o espaço do inesperado, do devir e do intempestivo (FERRAÇO;
DELMONDES, 2019). Por mais que se deva planejar as ações, os acontecimentos se tecem
pelo acaso: “Não se trata, como na ciência, de controlar a vida nem de prevê-la, mas de inventá-
la” (TADEU, 2002, p. 56). Estamos propondo outra forma de pensar a educação artística e,
influenciados por Deleuze (2019), seguimos sem nos guiarmos pela interpretação, mas pela
experimentação.
79

Nas pesquisas de mestrado, em geral, é requisitado que anunciemos quais métodos são
utilizados para sua formulação, quais estratégias são colocadas para cumprir os objetivos
concretos, e como esses procedimentos podem ser articulados e organizados para serem
reproduzidos – sistema que, sem dúvidas, podemos considerar uma herança do pensamento
cartesiano. No entanto, antes de usar uma cartilha com respostas prontas, tentamos ouvir
perguntas diferentes, que nos despertaram para o valor do processo de pesquisar, mais do que
perseguir os resultados que ele pode trazer. Sob essa perspectiva, Durval Muniz de Albuquerque
Júnior (2007) afirma que

A ciência moderna enfatizou exageradamente o resultado final do processo de


produção do conhecimento, o momento em que os objetos e os sujeitos pareciam
bem definidos e classificados, identificados, graças ao processo de análise, de
separação, de ordenamento, de racionalização, silenciando ou escondendo as
etapas intermediárias, as experiências falhadas, os híbridos, os monstros, os elos
perdidos, os erros, as manipulações que foram necessárias antes que se chegasse
ao estado de pureza e separação. (p. 31)

A partir disso, as perguntas que ouvimos foram: então, por onde caminha este corpo? Quais
mapas nos guiam? Estamos certamente caminhando pelas ruas, becos e encruzilhadas da favela,
do Território do Bem, mas não só nele. Nessa caminhada, o corpo brinca com a arte, faz
alianças, compõe um comum e reinventa o bairro, a cidade e o mundo. Como mostrou Oliveira
e outros pesquisadores (2012), não estamos sozinhos, mas andando na companhia do
ensinoeducação. Por isso não caminhamos para ganhar nota, passar de ano ou passar no
vestibular, e sim para percorrer os encontros ou, como Tomaz Tadeu (2002) indica, para nos
encontrarmos com muitos pensamentos.

Nessa andança, não poderíamos estabelecer uma estrada linear porque o caminho se constrói
ao mesmo tempo em que se caminha, e nesse processo vai deixando marcas no corpo, que é
percorrido por sensibilidades. A pesquisa é inerente à vida, faz parte da vida, trata de assuntos
da vida. Diante disso, Flávia Liberman e Elizabeth Lima (2015) mostram que o pesquisador
não é um condutor, mas um guia: não determinamos o percurso, mas acompanhamos na
caminhada. Então, decidimos juntos rasgar as instruções tradicionais e percorrer as pistas dos
afetos. E com isso onde queremos chegar?

O que importa não é o ser, a forma final. Nem o formar-se, o desenvolver-se, o ser
alguém, nem mesmo o devir-alguém – desidérios últimos de toda pedagogia. O que
importa é o devir-outro que não tem nenhuma forma, que é estranho a toda forma, que
é impessoal, que tem a imanência de uma vida. Nenhuma preocupação com o ponto
de partida ou com o ponto de chegada. O que conta é o que se passa no meio. Sempre
no meio. É aqui a morada da diferença. É esta, afinal, a moral: sair da história para
entrar na vida. (TADEU, 2002, p. 52)
80

Algumas dessas pistas, já vimos, aparecem na forma de autores, outras em filmes, algumas até
em poesias, músicas, e em trechos de um Diário de campo, registros que afetaram o corpo-
pesquisadora e por isso chegam na escrita para falar dos encontros da pesquisa. Esses encontros
não seguiram fórmulas, mas de algum modo fizeram o corpo-pesquisadora mobilizar atenção e
sensibilidade. Para que essas qualidades apareçam do próprio corpo, “não existem fórmulas
prontas, apenas uma longa preparação” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 190): uma inspiração
deleuziana.

Portanto, diante da escolha de trabalhar corpo a partir da arte, no primeiro encontro da pesquisa,
durante a oficina de criatividade, iniciamos uma discussão onde expus as motivações de ter me
amparado nesse eixo. Na conversa, demonstrei todos os incômodos já citados aqui, sobre as
visões elitistas de arte com as quais me deparei ao longo da vida. Assim, expus a arte como
uma possibilidade de afetar, tocar, mover e despertar os sentidos do corpo (Diário de campo da
pesquisadora).

Alguns participantes também compartilharam seus entendimentos sobre a arte, e muitos


enfatizaram que a arte é política, é uma forma de expressar suas percepções, deixar sua marca
no mundo. O oficineiro presente complementou o que entedia como arte política, o que para
ele não era algo necessariamente partidário ou vinculado a alguma ideologia, mas que só o fato
de registrar as vivências já era suficiente para politizar a arte. Segundo ele, a arte está em tudo,
no cotidiano, na vida corriqueira, e a produção artística surge daí: quando alguém está sensível
a algo no mundo, compartilha sua sensibilidade em alguma produção artística, e ocasionalmente
encontra outras pessoas que também se sensibilizam com ela, mesmo que de forma diferente
(Diário de campo da pesquisadora).

Nesse mesmo encontro, decidimos passar um conhecido trecho do filme Ó paí, ó (2007), no
qual os personagens Boca (Wagner Moura) e Roque (Lázaro Ramos) estão tendo uma discussão
exaltada sobre dinheiro, quando aparecem falas racistas, que são respondidas de uma forma
brilhante e emocionante. A cena é muito intensa e foi justamente por isso que a escolhemos
para trabalhar na pesquisa. Assim como no trabalho de Mirela Corrêa (2017), chamamos os
participantes a uma experimentação: a fim de fugir de análises e interpretações, porque não
queríamos ouvir respostas supostamente corretas sobre o que seria o real significado da cena,
mas buscávamos quais significados eles dariam à cena. Ou melhor, não queríamos significados
e sim entender qual sentimento a cena despertou, o que os levou a pensar, o que os fez sentir
no corpo, ou qual lugar, cheiro, palavra, ou coisa surgiu ao assistir à cena.
81

Eles responderam “raiva”, “falta de ar”, “sensação de angústia”, “sensação de empoderamento”,


“corte”, “vontade de chorar”, “vontade de rir”, “frio na barriga” e “alívio” (Diário de campo da
pesquisadora). Quando eles começavam a tentar explicar e contextualizar a cena, voltávamos a
atenção novamente às sensações. Experimentar coisas novas é criar um novo corpo. Por isso,
em todos os nossos encontros, em cada dinâmica, o convite foi: não interprete, experimente.

Gilles Deleuze (2019) diz que há “[…] uma fórmula muito célebre de Espinosa, que é a
seguinte: Nós experimentamos… Nós experimentamos. Nós sentimos e nós experimentamos –
ele não diz ‘nós pensamos’. São duas palavras muito carregadas: ‘sentir e experimentar’” (p.
247). Nesse sentido afirmamos que a aposta dessa pesquisa é em experimentar com arte, e por
isso, nesta seção anunciamos a função da arte no trabalho, e o modo como nos relacionamos
com ela ao compor os encontros.

Conforme nos recorda Rodrigo Soler e Edelu Kawahala (2017), para Deleuze, “[…] a arte é o
procedimento por meio do qual o sujeito relaciona-se com a intensidade dos afetos” (p. 2). Isso
é dizer que a arte tem a potência de compor linhas de fugas, criar afetos, multiplicar as
singularidades. Deleuze e Guattari (1992) dizem que a ciência cria funções, a filosofia cria
conceitos e a arte cria blocos de sensações, ela retira do caos afetos e percepções:

A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte,
não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e
perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a
filosofia, mas pensa por afectos e perceptos. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 88)

Ou seja, a arte opera de forma diferente da ciência e da filosofia, mas é igualmente legítima e
tem suas características próprias. A experiência artística gera intensidades, por isso, os afetos
provocados por ela têm a potência de criar novos mundos, as percepções podem causar novas
sensações, e por isso, compor novos corpos. Na verdade,

Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os
experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força
daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres
que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem,
podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao
longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de
arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 213)

A arte existe em si, e dessa maneira, não pode ser reduzida a algo figurativo, a uma
representação, pois ela é uma atividade criadora de blocos de sensações. A arte acontece pelas
percepções e afetações, e por isso não necessita de uma reflexão sobre ela – a potência da arte
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reside nas sensações, porque delas se implica um corpo intensivo, intenso, e com isso “[…] a
arte proporciona um acesso possível ao Corpo sem Órgãos” (DAMASCENO, 2017, p. 142).

O discurso moderno é o que define a arte como representação da realidade. Entretanto, não se
trata aqui de perseguir a arte da representação, não há nenhum problema com a arte que quer
representar. Antes, como mostra André (2011), trata-se de enxergar de outro modo, atentando
para seu aspecto inventivo: “A arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de
revelação de algo que se escondia, mas de tornar presente um vir a ser ali flutuante. Quando o
jogo artístico acontece, a arte inventa realidades” (p. 437).

Entretanto há, sem dúvidas, uma rede discursiva hegemônica que reafirma uma suposta verdade
da arte, que a coloca em um pedestal e muito distante da vida. Porém na contemporaneidade,
as práticas artísticas em vez de se prenderem a definições canônicas e limitadas, têm em comum
“[…] a capacidade de disparar, afetar, remodelar e redistribuir as formas de compreensão a
respeito do quê, quando e por quê algo pode ser chamado de arte […]” (SABINO, 2015, p. 20).

Nesse sentido, cabe destacar que não desconsideramos o lugar da técnica artística, do estudo,
da preparação e da dedicação, que são fundamentais aos processos em artes. Assim como o
trabalho do filósofo e do cientista, no trabalho artístico há muita preparação e atenção. Não se
faz arte de qualquer jeito, porque não se experimenta de qualquer jeito (DELEUZE;
GUATTARI, 1992). Outrossim, nosso tema é a educação artística, e o que tentamos construir
nas oficinas seguiu a proposta de Kelly Sabino (2015), que incita que arte-educação é dar espaço
para a criação de modos de vida. Dessa maneira, concordamos com a autora quando ela diz que
nossa tarefa enquanto educadores não é a de dotar os participantes da pesquisa de capacidades
que eles não têm por meio da transmissão de conhecimentos fincados em valores, modelos
morais e verdades absolutas.

De outro modo, vemos a educação artística como uma fusão da arte com a vida, onde a
experiência não mais se associa “[…] ao simulacro ou à elevação das aparências do mundo,
mas como projeto ético capaz de modelar a experiência tanto política quanto estética dentro da
própria vida”, e que também “[…] é capaz de ser crítica aos discursos totalizantes e radicais
buscando uma visão singular, contingente e parcial, que possibilite tanto a crítica do que nós
somos como a ultrapassagem dos limites que nos constituem” (SABINO, 2015, p. 205).

Dessa forma, a arte deixa de ocupar o lugar daquilo que recebe significados, que deve ser
contemplado, interpretado, compreendido em sua totalidade, contextualizado, para então se
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tornar uma experimentação. Nesse jeito de se relacionar com a arte, de produzi-la, de vive-la,
de aprendê-la e ensiná-la, a própria prática docente se configura em uma estética de vida:

[…] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo em que se
exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente, se vê num plano de
construção ética, estética – e, mais do que pedagógica, política –, atuando na
diferença, sem pretender acabar com ela, mas problematizando o consenso e as ideias
prontas por meio de devires, gestos e inscrições no mundo feitas de potência. Em
suma, essa arte em questão possibilitaria o exercício de outras relações de poder no
interior da aula mantendo, principalmente, uma atitude crítica de si e do outro – da
relação pedagógica –, a fim de experimentar em si e com os outros diferentes modos
de ser. (SABINO, 2015, p. 209)

Ou seja, entendemos que o elemento artístico na educação não pode ser um meio para expressar
um contexto, senão a arte como um fim em si mesmo. A atitude estética diz respeito a não se
prender ao conteúdo fechado: é uma percepção e ação diante do mundo, uma prática em relação
à vida. Em outras palavras, o conteúdo surge da vida, das experiências, da subjetividade e
extrapola as fronteiras dos espaços educativos, ele transborda no cotidiano, faz aparecer a
diferença e o imprevisível no comum (SABINO, 2015).

Além disso, a arte não pertence ao artista que a criou, não está presa ao contexto em que foi
criada, não se reduz a explicações cronológicas e aos significados. Ela é um território de
sensibilidades estéticas, é uma composição que pode nos afetar. Ela também não depende do
espectador ou do artista para explicá-la, mas é um espaço de experimentação, um fluxo de afetos
e percepções:

E ela [a arte] não é dependente do espectador ou do auditor atuais, que se limitam a


experimentá-la, num segundo momento, se têm força suficiente. E o criador, então?
Ela [a arte] é independente do criador, pela autoposição do criado, que se conserva
em si. O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é,
um composto de perceptos e afectos. (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 213)

Por isso, me fazer professora no percurso dessa pesquisa foi uma forma de experimentar o que
Sabino (2015) chama de estética da docência. A pesquisa passou por uma preparação, mas
optou por fugir dos modelos metodológicos prontos e dos discursos enrijecidos da educação. A
educação com a arte extrapola a obra de arte, os espaços tradicionais da arte, e os próprios
artistas. Estive, portanto, assim como a autora, menos preocupada em transmitir conteúdos
estáticos e mais inclinada a ver a arte-educação como uma experimentação de modos de vida,
de criação de modos de vida e, por isso, de resistências.

Portanto, caminhar com arte não é ditar regras sobre o que é ou deixa de ser arte, quem pode
ou não fazê-la, a qual lugar ela pertence – é muito mais uma tentativa de criar um CsO,
84

experiência que nasce, por assim dizer, também no meio das artes, com Antonin Artaud. O
Corpo sem Órgãos é um devir que busca formas novas de experimentar a vida, colocando este
corpo no movimento das sensações e afetações, em uma busca pela composição de
subjetividades outras, as quais não se assujeitam às capturas do controle, que traçam um mundo
novo, que pensa outros modos de ser. Assim, nas palavras de Soler e Kawahala:

[…] resta-nos perceber a arte como uma afetação que envolve a própria ruptura em
relação ao acossamento dos dispositivos de poder, das estratégias de saber e dos
processos de subjetivação. Desse modo, percebe-se como para Deleuze a arte opera
como uma potência, uma potência do viver, pois o que está em jogo em toda a sua
porosidade discursiva são as condições de possibilidade para pensarmos outros modos
de ser. Trata-se, sem sombra de dúvida, de operar a construção de uma bricolagem
sobre as relações do sujeito consigo mesmo por meio dos agenciamentos e das linhas
de fuga (2017, p. 7).

A busca de novos processos de subjetivação a partir da arte acontece no sentido de entendê-la


como um movimento que pode tensionar limites, provocar rasgos e desterritorializar aquilo que
o biopoder organiza. A arte desperta a potência do viver, convida a uma experimentação, enseja
modos de ser e existir (SOLER; KAWAHALA, 2017).

Como dito, na nossa sociedade predomina um modo de existir universal, o qual tentar abortar
a emergência de outros modos. Mas diante disso, Peter Pelbart (2014) enfatiza que é preciso
instaurar a própria existência: “[…] só existimos na medida em que fazemos existir outros, ou
que ampliamos outras existências, ou que vemos alma ou força onde outros nada viam ou
sentiam, e assim fazemos com eles causa comum” (p. 253).

A arte cria possibilidades, explora uma vida possível, trama uma existência potente. Por isso, a
arte – mesmo em um contexto educativo – não pode ser reduzida a uma apresentação de
técnicas, explicação sobre correntes artísticas, análise de obras, componentes de composição
ou cores, pois “[…] um ensino de arte cujo foco esteja centrado nos códigos das linguagens
artísticas pode facilmente tornar-se uma experiência vazia” (SABINO, 2015, p. 40). Desse
modo, trabalhar com arte na educação ou fora dela sempre

[…] é da ordem do sensível, do afeto e da percepção. Assim, um ensino que privilegie


as linhas e observe os planos de imanência, os volumes e suas qualidades, que
enxergue, em suma, o movimento na e da matéria – em vez de propor a sua
sistematização em conteúdos, por vezes, desconectados da vida – tende a ser um
conjunto simples, porém complexo, que tem dentro da aula de arte todo escopo que
recobre a vida”. (SABINO, 2015, p. 43)

A arte, por conseguinte, tem para nós a função de descobrir, criar e inventar possibilidades de
mundo, rascunhar modos de existência, de aumentar a potência de si e do outro, de ser um
85

espaço de sensibilidade e de experimentação de vida (SABINO, 2015). Ademais, escolhemos


praticar arte em conjunto, mas dando espaço para multiplicar as singularidades, porque como
mostra Pelbart (2014), no cruzamento de modos de existência diversos, algo novo pode surgir,
ser gestado.

3.2 PODE UM CORPO SER UM CONVITE À EDUCAÇÃO?

Na esteira de Bruno Latour (2008), quando em uma palestra pediu aos participantes que
anotassem o antônimo da palavra corpo, em um dos nossos encontros também perguntamos aos
participantes o que eles consideravam o contrário de corpo, e pedimos que escrevessem sem
compartilhar uns com os outros no primeiro momento. Ao aplicar a mesma dinâmica do
pesquisador, algumas respostas se aproximaram e outras foram um tanto diferentes: Latour
recebeu as respostas “anticorpo”, “ninguém21”, “insensível” e “morte”. Já nossos participantes
escreveram “mundo espiritual”, “não-forma”, “inerte”, “constância”, “imaterialidade”,
“objeto”, “algo que não tem matéria física” e “inexistir” (Diário de campo da pesquisadora).

Mesmo diante de toda a tradição que impõe um dualismo entre corpo e mente, nenhuma das
respostas colocou a palavra mente como oposição ao corpo. No entanto, muitas das palavras
escritas expressam a dualidade entre algo físico e algo espiritual ou transcendental. Quando
passamos a comentar as respostas, as falas evidenciaram ainda mais essa visão de um corpo
separado e fragmentado, de modo que se confirmou que o entendimento de um corpo apartado
da mente está relacionado a uma forma de ver o mundo, a qual Latour (2008) denomina de
bifurcação da natureza, e explica:

Ou temos o mundo, a ciência, as coisas, e não temos sujeito; ou temos sujeito e não
temos o mundo, aquilo que as coisas são realmente. Está, assim, montado o cenário
para uma longa discussão sobre o problema mente-corpo, bem como para
intermináveis sucessões de argumentos holísticos procurando “reconciliar” o corpo
fisiológico e fenomenológico num todo unitário. (p. 42)

Essa reconciliação de que o autor trata foi muitas vezes evocada nas falas dos participantes.
Um deles, que veio da área da saúde, indicou que muitos problemas mentais são causados por
uma suposta desconexão com o corpo, e que pensar a saúde do corpo é pensar a saúde da mente,
ainda que as pessoas não enxerguem com a mesma relevância os problemas psicológicos. Para

21
Em inglês a palavra ninguém é nobody, enquanto corpo é body.
86

exemplificar seu ponto, ela comentou como o corpo somatiza as emoções, exibindo sintomas
físicos quando passamos por variações emocionais.

Ainda que os argumentos apresentados por ela sejam coerente e verdadeiros, a hipótese de um
corpo desconectado da mente se distancia de nossa proposta. Como já mostramos, entendemos
um corpo integrado, e para além disso, um corpo que não se determina pelo físico, pelo
biológico, e escapa dos reducionismos binários. Sobre isso, de acordo com Latour: “Superar o
dualismo mente-corpo não é uma grande questão fundadora: é apenas resultado da falta de uma
definição dinâmica do corpo como a aprendizagem de ser afetado” (2008, p. 42). Enquanto nas
conversas ouvia-se sentenças como “meu corpo é minha casa” (Diário de campo da
pesquisadora), tentamos mostrar que havia outra forma de compreender o corpo, na qual os
pensamentos, sensações, desejos e sentidos são o corpo, movem o corpo.

Contudo, nessa pesquisa não houve a pretensão de convencer nem os participantes nem a
ninguém. Não pretendíamos com as oficinas modificar suas visões de mundo, confrontar suas
concepções, nem tampouco convertê-los para que passassem a entender em consonância com
os autores que trabalhamos. O objetivo sempre foi provocar uma experimentação, promover
bons encontros, fazer movimento, compor um corpo potente.

A partir disso então questionamos: “O que você acha que quer dizer a pergunta ‘o que pode um
corpo?’”. Muitas respostas chamaram atenção. Uma participante disse que desde o começo
ficou intrigada com isso, pensando que se tratava de um aspecto físico. “Será que meu corpo é
capaz de flutuar, levitar?” (Diário de campo da pesquisadora). Entre muitas risadas, a discussão
seguiu no sentido do que o corpo é capaz de fazer. Nesse momento, uma outra participante
compartilhou sua experiência no teatro, falando das “capacidades ilimitadas” do corpo – nas
palavras dela – para, por exemplo, compor um personagem ou uma cena só a partir de sensações
corporais (Diário de campo da pesquisadora).

Foi aí que uma participante fugiu dos aspectos positivos e falou dos limites do corpo, como ele
é adestrado e controlado. Naquele contexto, fez-me lembrar e compartilhar com o grupo os
exemplos de Michel Foucault (1999) sobre a técnica disciplinar, na qual os espaços de
confinamento (escola, prisão, hospital, quartel) são utilizados para exigir do corpo o máximo
de sua força-produtiva e o adestrar, subordinar e limitar. Comentamos como somos organizados
para seguir regras, obedecer sem questionar, e essas imposições se refletem inclusive no corpo
87

físico, que é domesticado a seguir horários, a se uniformizar e a praticar uma autovigilância


constante.

Mas, como dito, ainda assim, com tantas limitações impostas ao corpo, buscamos sua potência:
experimentar o que o corpo pode é “[…] explorar as condições que atravessam a materialidade
finita dos corpos e sua potência para produzir conexões, experimentar encontros, compor-se
com o ambiente, conhecer e produzir mundos” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 187).

Ao longo dos encontros, percebi que a palavra potência estava muito presente no vocabulário
dos participantes. Ao questionar o que eles entendiam como potência, a definição veio de uma
participante formada em física: “A potência é a energia armazenada capaz de produzir
movimento ou transformação” (Diário de campo da pesquisadora). Essa definição foi muito
interessante, porque de algum modo se relaciona com o que Baruch de Espinosa diz sobre
corpo. O corpo está sempre submetido a aumento ou diminuição da potência, e ela se efetua a
cada instante, movendo nossa capacidade de agir, de nos movimentar ou repousar (DELEUZE,
2019).

Retomamos então que em outro momento, assim como Espinosa, um dos participantes tinha
definido corpo como movimento. Assim, um corpo é aprender a ser “[…] movido, posto em
movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. Quem não se envolve nessa
aprendizagem fica insensível, mudo, morto” (LATOUR, 2008, p. 39, grifos nossos). Quando
perguntamos “O que pode um corpo?”, estamos falando dessa força, daquilo que nos move e
põe em ação, das coisas que nos afetam e aumentam ou diminuem nossa potência de agir.

Então somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e de ser afetado,
e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de
experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa. Vamos
aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que
com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o
que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui e, por conseguinte,
o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros,
e a compor, é uma grande arte. A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição
de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir.
[…]. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois polos, essas
subidas e descidas, elevações e quedas. (PELBART, 2008b, p. 1)

Em outra conversa, explicando sobre o discurso da modernidade que hierarquiza corpo e mente,
colocando o corpo como inferior (NAJMANOVICH, 2001), um dos participantes discordou
dizendo: “Eu tenho um problema, eu acredito que meu corpo manda na minha mente” (Diário
de campo da pesquisadora). Argumentou com um exemplo pessoal que mesmo quando está
cansado do trabalho, tem energia para beber, e se vai para uma festa com amigos, tem disposição
88

para se divertir – e que se estivesse trabalhando, estaria exausto e sem conseguir realizar as
tarefas (Diário de campo da pesquisadora). A partir desse comentário, passamos a discutir sobre
como o ambiente afeta o corpo, com o entendimento que Peter Pelbart (2008a) traz a partir de
Deleuze, de que os encontros dos corpos não se restringem aos outros corpos humanos, mas
atingem também os objetos, a luz, os sons, os alimentos. Ou seja, o poder de ser afetado
acontece, no exemplo do participante, também pelos estímulos que o corpo recebe, e faz agir
de maneiras diferentes.

Dando continuidade às conversas, movida pelo desejo de trabalhar com arte para falar de corpo,
resolvi utilizar o mesmo material que minha turma teve acesso naquela citada aula, porém com
uma abordagem diferente. Trata-se de um material elaborado pelo Núcleo de Ação Educativa
da Pinacoteca do Estado de São Paulo 22 e distribuído gratuitamente para professores com
objetivo de realizar atividades em sala de aula. O material é formado por uma série de envelopes
coloridos (Figura 6), que foram desenvolvidos em épocas diferentes, e contém obras que estão
no acervo fixo do museu ou passaram por lá temporariamente, e junto às obras existem textos
que instigam reflexões e debates sobre elas, de modo que são um convite a conhecê-las e aos
artistas responsáveis.

Figura 6 - Foto de alguns dos envelopes utilizados na pesquisa

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

22
A Pinacoteca de São Paulo é um museu brasileiro administrado pelo governo do estado de São Paulo. São
vinculados à instituição muitos projetos focados em arte-educação, atividades educativas e formação de
professores.
89

Figura 7 - Foto de obra contida em um dos envelopes; do verso de outra obra com informações detalhadas; e do
texto de apoio que acompanha o material

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Nos envelopes encontramos também um texto de apoio (Figura 7) no qual estão orientações aos
educadores e propostas de usos. Em um deles, elaborado por Mila Chiovatto (2016), chama
atenção um incentivo aos professores à percepção do ensino de arte como um estímulo na
construção de sentidos a partir das experiências. Sendo assim, o próprio material ressalta que
nenhuma utilização rígida pode se impor à obra, porque o encontro com a arte é singular. Diante
disso, o professor se torna um mediador e criador de possibilidades para que os alunos percebam
as obras criando sentidos para elas a partir de sua singularidade (CHIOVATTO, 2016).

Isso me aqueceu o coração porque confirmou que os anseios faziam algum sentido. A arte pode
ser um excelente espaço de criação, experimentação e produção de novas subjetividades. Nas
oficinas, levamos alguns desses envelopes e entregamos aos participantes sem mostrar o
conteúdo previamente. Quando cada um abriu seu envelope, foi pedido que eles se imaginassem
dentro da cena que encontraram. O desafio era criar uma história onde eles fizessem parte
integral daquela obra, antes mesmo de ler as informações sobre ela, só a partir dos sentimentos
e afetações provocados pela arte.

Decidimos intencionalmente não cumprir as exigências tradicionais de analisar uma obra a


partir das perguntas clássicas – qual histórico do autor? em qual contexto a obra foi produzida?
qual intenção o autor teve ao fazer essa obra? Já que essas questões fizeram parte da experiência
de muitos quando alunos de ensino médio, conforme os participantes da pesquisa relataram
(Diário de campo da pesquisadora). Entretanto, fizemos a tentativa de não dissolver a
singularidade em uma grade conceitual, em categorias homogeneizadoras e totalizantes. O
contexto pode ser importante em outro momento, ali pretendíamos dar palco à surpresa, ao
90

acaso e ao improvável. Especialmente dar palco ao modo como a arte afeta cada corpo e com
isso produz uma subjetividade.

E tantas experiências boas tivemos nessa dinâmica. Um participante, diante da obra Parede da
Memória (1994-2015) de Rosana Paulino (Figura 8), inventou que aquela exposição era sobre
sua própria família, que tentava recuperar sua ancestralidade (Diário de campo da
pesquisadora). Essa obra específica usa fotos antigas de famílias negras registradas em patuás,
com aquarela e bordados nos detalhes. O mais interessante é que quando resolvemos ler as
informações no verso sobre a autora e a obra, se aproximava muitíssimo da história inventada
pelo participante. Paulino faz uma crítica intensa à falta de representação negra nas artes visuais,
acentuando o modo racista como a sociedade brasileira se constitui, invisibilizando a população
negra – todos esses elementos geraram muitos debates nas oficinas.

Figura 8 - Detalhe da obra Parede da Memória (1994-2015), de Rosana Paulino

Fonte: Paulino (2018)

No entanto, houve outro registro muito diferente que também afetou o grupo. Uma participante
escolheu uma obra abstrata para criar sua história. Tratava-se da Ascenção definitiva de Cristo
(1932), de Flávio de Carvalho (Figura 9). Ela contou então que o que viu na obra, sem ler o
título e as informações, foi a imagem do seu subconsciente. Visivelmente emocionada, disse
que aquilo para o mundo era algo muito confuso, incompreensível e impreciso, mas para ela
era uma tentativa de se entender (Diário de campo da pesquisadora).
91

Figura 9 - Obra Ascenção definitiva de Cristo (1932), de Flávio de Carvalho.

Fonte: Carvalho (1932)

Esses dois exemplos de experiências nas oficinas podem dar alguns indícios do que, para nós,
tem a arte a ver com corpo. A arte se relaciona com a vida, ela pode nos provocar a ultrapassar
os limites que nos constituem, inspirar-nos a buscar uma visão singular que foge dos discursos
totalizantes. A arte movimenta afetos e sensações que fazem a matéria vibrar (SABINO, 2016).
Nas oficinas, a arte apareceu em cena no meio das discussões, foi entrelaçada por elas, e com
isso traçamos um modo de fazer arte como uma experiência estética e educativa. Fizemos isso
partido do argumento de Carminda André (2013), quando ensina que a arte coloca em risco a
concepção que temos de nós mesmos e, assim, ajuda-nos a escapar do corpo disciplinado,
moldado e limitado, porque nos chama à invenção e reinvenção constante de nós.

Nessa mesma dinâmica com as obras da Pinacoteca do Estado de São Paulo, diante de uma
fotografia de 1976 de Cristiano Mascaro (Figura 10), uma participante narrou a história de uma
manequim que ganha vida, mas não consegue se adaptar ao mundo, não consegue viver a
liberdade. Na fotografia em preto e branco vemos uma mulher segurando uma porta rollmatic23
e olhando para fora. Ao fundo, vemos o que aparenta ser uma galeria de lojas, e dentro dos
vidros, manequins femininos.

23
Porta de ferro ou aço, de rolar, comum nos comércios brasileiros.
92

Figura 10 - Fotografia sem título (1976), de Cristiano Mascaro

Fonte: Mascaro (1976).

O conto criado pela participante diz assim:

“Tinha acabado de me dar conta: todas eram iguais. Figuras perfeitamente moldadas
em suas vestimentas e cortes de cabelo. Todas falavam com o tom de voz ligeiramente
agudo e amaciado e fingiam frivolidade, enquanto em seus olhos eu procurava suas
almas. Olhei para mim. Percebi que era uma versão caricata e disforme dessas
mulheres que sequer tinha certeza que existiam. Procurei por todos os lados uma saída
[…] Olhei vacilante para o grande papel em branco que era poder ser qualquer coisa
que não um manequim. Desenhar a mim mesma livre. Sem saber o que fazer, voltei
para a caixa e tentei colar a porta, mas ela não encaixava mais.” (Diário de campo da
pesquisadora, com poucas alterações gramaticais).

Uma outra participante chegou no momento em que começamos a falar sobre esse conto, e a
partir dele, desabafou sobre questões relacionadas ao seu corpo e às pressões estéticas que as
mulheres sofrem na sociedade. O conto, que enfatizou a dificuldade da mulher-manequim de
viver fora da prisão de ser manequim, gerou debates sobre como as mulheres do grupo se
sentiam sufocadas e pressionadas a cumprir uma feminilidade com exigências impossíveis,
especialmente relacionadas à magreza.

Nesse momento, fui tomada por um incômodo por perceber que o grupo sempre puxava a
conversa para o aspecto físico e biológico do corpo. Em relação a isso, Maria Rita de Assis
César (2019) nos ajuda a entender que:

As estratégias disciplinares e biopolíticas descritas por Michel Foucault, as quais


conformaram os corpos desde os primórdios da modernidade, permitiram a
possibilidade de conceber um corpo que já não seria mais uma materialidade orgânica
e fisiológica, tal como descrita pelo discurso médico e biológico. A partir de Foucault
e outros historiadores, passamos a compreender o corpo como um conjunto de práticas
e saberes que o produziram em recortes específicos de tempo e espaço. Entretanto, a
despeito de quase meio século da produção histórico-discursiva sobre a invenção do
corpo, os regimes de verdade contemporâneos permanecem imersos em uma cultura
somática, em vista da qual os corpos ganham visibilidade e inteligibilidade em função
93

de sua materialidade física mais primária, como o volume, a forma e a superfície.


Nessa perspectiva somática, o alvo das estratégias de controle e produção subjetiva é
ainda o corpo, como também já o era na modernidade disciplinar. No entanto, o corpo
contemporâneo é ainda mais plástico e maleável, pois a ele se destina um número
quase infinito de intervenções visando a produzi-lo como mais jovem, mais magro,
mais flexível, mais leve, mais ágil, mais versátil e mais rápido. (CÉSAR, 2019, p. 269)

Entrar nesse terreno de discussões foi especialmente delicado para mim, tendo em vista minha
trajetória na luta contra a gordofobia. Eu não queria discutir padrões de beleza com o grupo por
considerar um assunto íntimo demais, que me comove e me tira do eixo. Porém, o não planejado
aconteceu, e não se pode controlar o que germina nos encontros. Essa foi uma das conversas
mais inflamadas das oficinas, e todos compartilharam histórias pessoais e exemplos famosos
de gordofobia que estavam em foco na mídia.

Diante disso, uma participante que é da área da saúde, colocou ponderações sobre o “perigo”,
segundo ela, de se “fazer uma apologia à obesidade” (Diário de campo da pesquisadora). No
entanto, em cima disso se teceram críticas aos modelos de saúde e beleza impostos pelo
capitalismo. Tentei mostrar, ainda que superficialmente, como o entendimento sobre o que é
saúde não é um consenso na comunidade científica ou na sociedade em geral. Como explica o
médico Benilton Bezerra Júnior (2006), essa noção muda drasticamente a partir de inúmeras
variáveis, e não só ainda está em alteração como vai permanecer se transformando, porque é
uma ideia sempre tensionada por outras ideias. Isso nos tira os parâmetros objetivos para
classificar uma pessoa como saudável ou não, e em muitos aspectos coloca essa classificação
sob critérios subjetivos (BEZERRA-JÚNIOR, 2006).

Dessa forma, na discussão acalorada, após muitas discordâncias, concordamos em um ponto:


associar pessoas gordas à doença e pessoas magras à saúde é algo aprendido pela cultura, e que
muitos parâmetros para fazer essa classificação são morais e estéticos. Desse modo, pensamos
juntos em consonância com Virgie Tovar (2018), quando afirma que é necessário uma ótica de
justiça social sobre este tema, colocando-o em um panorama mais complexo: “O verdadeiro
problema é uma cultura que usa o peso como indício de humanidade e moralidade […]” (n.p.).

O discurso que patologiza o corpo gordo é um efeito da biopolítica, porque o controle do


tamanho do corpo não se restringe às pessoas gordas, mas se amplia à população em geral,
levada à constante autovigilância e autopunição para se adequar, mesmo que isso exija
sacrifícios e, ironicamente, a perda da saúde. Sobre isso, muitas participantes comentaram como
chegaram a adoecer fazendo dietas restritivas e exercícios além do recomendado para encaixar
o corpo em um padrão (Diário de campo da pesquisadora).
94

O corpo pode ser uma potência educativa? Apostamos que sim. Nos encontros, não foram raras
as vezes em que as marcas do corpo trouxeram ensinamentos. Pensamos como a política
perpassa os corpos, seja com a questão da gordofobia citada acima, seja com as questões raciais
que apareceram diversas vezes nas discussões. Em uma das oficinas, enquanto
experimentávamos com as colagens24, uma das participantes procurava nas revistas imagens
positivas de pessoas negras, e diante da dificuldade de encontrar, começou uma discussão sobre
a predominância da estética branca nos meios de comunicação, e como isso é uma forma de
violência aos corpos negros.

Na verdade, o racismo foi uma pauta recorrente nos encontros. Em 2019, a pesquisa “Saberes,
fazeres e perfil dos moradores do Território do Bem” entrevistou 400 famílias da região, e
constatou que entre os entrevistados, 30% se declara como preto e 51% como pardo
(PESQUISA..., 2019). Nas nossas oficinas, em nenhum momento aplicamos questionários para
traçar o perfil dos participantes, e também não nos preocupamos em interrogar suas identidades.

Mas, estudando o Diário de campo, percebemos que em todos os dias houve comentários
relacionados à temática racial. Desde relatos duros e emocionantes sobre a violência policial e
a ação estatal na comunidade, até menções sobre o preconceito destinado às religiões de matriz
africana. Pudemos constatar, portanto, que o peso da racialização nos corpos teve uma
expressividade relevante para as discussões. Pois, como bem sabemos,

À luz do racismo, inferioriza-se o outro como raça; o racismo normaliza a ação de


policiais de elite invadindo favelas para limpar a área, torturar e matar jovens
infratores com vida desqualificada; o racismo faz aceitável o enclausuramento dos
desqualificados como forma de correção; só o racismo pode justificar o extermínio da
cultura indígena sob a alegação de atraso cultural; só o racismo nos faz acreditar que
certas etnias são mais suscetíveis ao crime. O racismo – com seu poder de corte, de
segregação social – gera medo com a presença do outro. Quase todos se tornam
suspeitos. Isso nos priva de conhecer laços afetivos coletivos; priva-nos de ter o outro
como parente; priva-nos da compaixão, se a compreendemos como a dor do outro
sendo minha também. (ANDRÉ, 2011, p. 430)

Em um dos encontros, uma participante falou sobre a criminalização da cultura da periferia, e


como ela havia percebido uma repulsa ao funk até nos espaços LGBT25 que frequenta fora da
comunidade, com a justificativa de serem músicas machistas. Nesse dia, comentamos sobre
como a música negra sempre é perseguida e vista com maus olhos pela sociedade, e que esse
fenômeno não é recente, mas aconteceu também com o samba em meados do século 20 e com

24
Que trataremos mais adiante neste capítulo.
25
A sigla LGBT corresponde a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros. É o movimento de luta pela
liberdade sexual e por identidades de gênero plurais.
95

o rap nos anos 1990 e 2000. Depois das reflexões, o encontro acabou com música, batidas e
ritmos diversos, porque outra participante, que é cantora, foi convidada pelo grupo a cantar e
tocar conosco o que os participantes definiram como funk feminista, que gerou muita interação
e confraternização (Diário de campo da pesquisadora).

Também tivemos discussões sobre como os corpos são agenciados a partir das normas de
gênero. Em um dos encontros, uma participante expressou que sua cirurgia de retirada das
mamas por causa de um câncer a fez questionar a imposição de gênero na nossa sociedade.
Segundo ela, o processo de ver a transformação de seu corpo colocou em xeque o que entendia
até então por ser mulher e ser homem. Ela disse que pelo fato de ser alta, muito magra e agora
sem mamas, frequentemente é confundida com travestis, e isso inclusive a expõe a violências
transfóbicas – mesmo sendo uma pessoa cisgênero 26. Na verdade, nas oficinas, ela27 expressou
que não tem certeza se está encaixada no binarismo de gênero, e gostaria de talvez recusá-lo.

Isso nos leva a pensar nos trabalhos de Paul B. Preciado (2014a) que mostram a identidade
sexual como um efeito da biopolítica, que impõe que o corpo só tem sentido se operado na
lógica sexuada. O que define essa identidade, de acordo com o autor, não são os fatores
biológicos, cromossômicos e anatômicos, mas sim uma atuação do poder que tenta construir
um corpo inteligível a partir da coerência entre o visual e o discursivo. Ou seja, ainda que exista
uma pretensa naturalidade naquilo que denominamos como sexo biológico, nem a categoria
sexo, tampouco gênero, guardam em si uma natureza. Tanto sexo quanto gênero são atribuídos
pela tecnologia sexual, que recorta zonas corporais definindo-as como órgãos, e que ainda vai
além, permitindo que tais órgãos ditem uma verdade e produzam uma subjetividade
(PRECIADO, 2014a).

É interessante observar que quando se trata de discussões sobre questões de gênero, ainda que
se assuma tal categoria como uma construção social, recorre-se frequentemente à busca de uma
naturalidade intrínseca ao corpo, o que se classifica como sexo. Portanto, características
anatômicas e fisiológicas como pênis, vagina, útero, hormônios e cromossomos são assumidos
na esfera da natureza, como fenômenos estáticos e puramente biológicos que compõem uma
realidade orgânica. Não obstante, nessa lógica, não se considera que sexo seja tão fabricado
quanto gênero, porque a “natureza” dessas partes corpóreas se relaciona constantemente com

26
Cisgênero se refere às pessoas que estão em conformidade com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
27
A participante não se incomoda com o uso dos pronomes femininos e não exigiu pronomes neutros no seu
tratamento.
96

tecnologias sociais, culturais, históricas e econômicas, as quais atravessam os corpos,


produzindo-os. Dessa maneira,

Atos de profanação se fazem necessários, e já é tempo de perguntar: seria possível


borrar a fronteira que separa o corpo orgânico dos mecanismos de produção? Ou
ainda, as tecnologias socioculturais teriam um impacto direto na carne? […] Trata-se
de captar como o sexo biológico ou natural opera discursivamente e em que medida
ele atua enquanto engrenagem fundamental para a manutenção de verdades unívocas
sobre os corpos e sobre as identidades. É tempo de questionar os poderes que se
fundamentam a partir da naturalidade, atentando para como e em que sentido é
possível fazê-los funcionar de outras maneiras. (MAÇÃO; ALVIM; RODRIGUES,
2019, p. 118, grifos dos autores)

Mesmo que muitos dos exemplos discutidos aqui versem sobre as opressões que recaem sobre
os corpos, sabemos que novos ensinos são fundamentais – ou estaremos fadados à paralisação,
a remoer as exclusões e discriminações. Muitas lutas se compõem a partir do corpo, e por isso
se faz necessário olhar para um corpo que ensina para além do sofrimento e da dor. Sabemos
que resistir não é apenas aguentar, mas também criar possibilidades de futuro, criar algo novo
(PELBART, 2003). Pensando nisso, as oficinas propostas foram uma tentativa de pensar corpos
lutando de um modo afirmativo e criativo. Corpos coabitando e construindo um comum nos
encontros… um corpo que se encontra com outros e se faz potência.

Para construir a prática educativa de um modo afirmativo e potente, convidamos artistas para
guiar algumas das oficinas – ainda que a arte não esteja presa ao domínio deles:
“O artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto
deve ficar de pé sozinho. […] Manter-se de pé sozinho […] é somente o ato pelo qual o
composto de sensações criado se conserva em si mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
214). Mas pensamos que, enquanto professores, “[…] deveríamos aprender com os artistas a
inventar a nós mesmos, a não nos conformarmos com o que somos, desconfiando das verdades
instituídas, em busca de compor com nossos alunos uma experiência […]” (SABINO, 2016, p.
154).

A experimentação é uma atitude artística diante do mundo, aquela que se inventa a si o tempo
todo e não busca anular ou policiar a diferença, mas sim compor potências com ela. No contexto
educativo, essa experimentação artística possibilita novas relações, possibilita uma docência
afirmativa e uma vida-docente como obra de arte, que é da “[…] ordem do estranhamento, e
não da conformação e da identificação. Um rasgo no caos, uma fissura como possibilidade do
novo, do intempestivo” (SABINO, 2016, p. 155).
97

Uma das oficinas que mais movimentou os participantes foi a de colagens, com a artista
capixaba Alice Kiefer. Segundo ela, a colagem é uma técnica artística que consiste em colar
algum material (recorte de revista, retalhos de roupas, papel, madeira, objetos etc.) em alguma
superfície (Diário de campo da pesquisadora). Na ocasião, espalhamos dezenas de revistas,
cola, papéis coloridos e outros materiais para nos desafiar a fazer as obras (Figuras 11 e 12).

Figura 11 - Foto da oficina de colagens

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 12 - Foto dos participantes com suas colagens

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Todos sentiram uma imensa liberdade de criar diante dos incentivos da artista, e
experimentamos um momento prazeroso. Prova disso é que essa foi uma das oficinas mais
elogiadas. O que nos impressionou foi o modo como a oficina foi conduzida, porque a artista
em nenhum momento fez um tutorial ou aplicou um passo a passo de como fazer tal arte.
Apenas se sentou no chão junto com os participantes, falou brevemente sobre sua trajetória e
apresentou algumas possibilidades. Logo nos convidou a mergulhar nas próprias produções,
98

confirmando que “a colagem é uma linguagem que contrapõe o sentido das imagens para
elaborar novos significados, sendo imprescindível percorrer o mundo do sensível e coletar
curiosidades que serão transformadas em algo novo, algo híbrido e fragmentado” (RICO, 2017,
p. 113).

Alguns participantes, de imediato, sentiram medo de arriscar, repetindo continuamente que não
sabiam fazer, que não conseguiriam elaborar algo artístico que nunca fizeram antes, que não
tinham habilidade com a tesoura, e pediam muitas vezes uma direção mais explícita sobre o que
realizar naquela atividade (Diário de campo da pesquisadora). Quando isso acontecia, a artista
se sentava ao lado deles e apenas apresentava possibilidades: não assumia o controle nem fazia
por eles, perguntava qual história eles gostariam de contar na colagem, abria as revistas e
sugeria caminhos, dava ideias e os incentivava a procurar sozinhos imagens com as quais se
identificassem, para assim seguir sua própria trajetória na composição daquela obra,
especialmente aproveitando o processo, sem uma cobrança sobre o resultado.

Essa postura da artista nos lembra que o aprendizado tem uma dimensão de imprevisibilidade,
de indômito, porque ele acontece singularmente com cada um, ainda que a pedagogia
tradicional, como indica Gallo (2012), coloque o ato educativo em uma perspectiva científica,
na qual o aprendizado é supostamente controlado. Ou seja, onde só se aprende o que é ensinado,
seguindo métodos com objetivo de alcançar o saber em si.

Contudo, mais importante que atingir a posse do conhecimento é o processo do aprendizado,


que se dá a partir de encontros. E, além disso, aprender é algo que muitas vezes vivemos sem
nos dar conta e, portanto, é impossível medir os movimentos de aprendizagem. Não há métodos
para aprender – no aprendizado nós não imitamos, pois nunca se aprende fazendo como alguém;
fazemos com, fazemos juntos, mas da nossa maneira (GALLO, 2012), e foi exatamente isso
que presenciamos na oficina de colagens com a ação da oficineira. Portanto,

Qualquer relação, com pessoas ou com coisas, possui o potencial de mobilizar em nós
um aprendizado, ainda que ele seja obscuro, isso é, algo de que não temos consciência
durante o processo. É apenas ao final que aquele conjunto de signos passa a fazer
sentido; e, pronto, deu-se o aprender, somos capazes de perceber o que aprendemos
durante aquele tempo, que nos parecia perdido. (GALLO, 2012, p. 3)
99

Outra oficina que causou muitos impactos no grupo foi a de expressão corporal (Figuras 13 e
14). Com uma artista que tem atuação na área circense com foco no Teatro do Oprimido 28 fomos
chamados a experimentar movimentos diferentes dos usuais com nossos corpos. A escolha
dessa oficina aconteceu porque, de acordo com Marcelo de Trói e Leandro Colling (2017), o
fazer teatral coloca o corpo como centralidade, um corpo vivo e pulsante que se entrega às
possibilidades de experiências.

Figura 13 - Foto dos participantes na oficina de expressão corporal realizando movimentos

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 14 - Foto da oficina de expressão corporal

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

28
É um método de teatro desenvolvido por Augusto Boal, que utiliza exercícios e técnicas que se aproximam da
filosofia do educador brasileiro Paulo Freire. Agradecemos à Marly Rodrigues – atriz formada pelo método – por
essa definição.
100

Os exercícios propostos foram maravilhosos. Todos os presentes foram afetados de diversos


modos ao realizar as práticas teatrais, que foram muito intensas, pois envolviam movimentos
diferentes. Desde o contato mais demorado e profundo com o olhar do outro, até deitar-se no
chão, dobrar-se, caminhar em velocidades diferentes a partir de comandos sonoros não
corriqueiros, e dar novas funções ao corpo (por exemplo, tentando se levantar sem usar os pés
e braços, apenas com as ancas e o tronco). Para um dos participantes, essa oficina mostrou
partes do próprio corpo que não conhecia de si mesmo, e permitiu descobrir ações e movimentos
do corpo antes desconhecidos (Diário de campo da pesquisadora).

No meio de uma experimentação tão díspar para a maioria dos participantes, foi inevitável o
aparecimento de risadas, piadas e implicâncias. Muitos participantes já eram amigos antes das
oficinas, já se conheciam, e mesmo os que estavam se conhecendo por conta da nossa prática
conseguiram se tornar colegas em pouco tempo. Mas esse comportamento de intimidade e
brincadeiras gerou incômodo e repreensão. Fomos advertidos, em voz alta, de que esse não era
o objetivo da oficina, que ali era um espaço sério e ninguém estava lá para “perder tempo”
(Diário de campo da pesquisadora).

Infelizmente, um momento de experimentação descontraída foi lido como deboche, falta de


compromisso e de concentração. Os participantes ficaram assustados com a agressividade com
que foram chamados atenção, ao ponto de uma participante revidar firmemente, argumentando
que esse era seu jeito de interagir e que não era desrespeitoso. Na minha percepção, e mais tarde
soube que os participantes concordaram comigo, a oficineira não aceitou bem essa resposta,
nem as outras críticas que fizemos à oficina (Diário de campo da pesquisadora).

Essa desaprovação me deixou desconfortável enquanto pesquisadora. Naquele momento eu não


soube intervir, não soube como trazer um equilíbrio ao espaço. Acredito que não soube,
inclusive, antes da oficina, explicar à convidada os objetivos daquela prática e o contexto em
que ela aconteceria. Falhei em não dar as diretrizes e em não explicar que a risada e as boas
relações entre os participantes deveriam ser valorizadas. Os gritos e broncas também agiram
sobre meu corpo, de uma forma que me senti perdida e impotente. Por conta desse desconforto
pairando entre todos, outras situações ruins aconteceram.

A oficineira trouxe nesse dia duas colegas de outros países da América do Sul para participar
do encontro, e elas ainda não falavam muito bem o português. A comunicação ficou um pouco
travada, e alguns participantes estavam imitando o sotaque do espanhol. Percebi que para uma
101

das convidadas da oficineira essa imitação soou mal, deixando-a envergonhada. Pedi algumas
vezes que eles parassem e, sem sucesso, já atordoada pelo que tinha acontecido, falei de modo
muito rígido que aquele comportamento era preconceituoso e racista.

Essa minha fala foi o ápice para deixar alguns dos participantes ainda mais estressados. Eles
disseram, aborrecidos, que a Varal não era de modo algum um espaço de preconceito, que ali
não se tolerava esse tipo de comportamento. Apontaram para um quadro onde estava escrito
“aqui tudo é permitido, menos racismo, capacitismo, LGBTfobia, gordofobia e qualquer
discriminação” (Diário de campo da pesquisadora).

Após esse conflito, me aproximei daqueles que se incomodaram com minha fala e pedi
desculpas repetidamente. Eles me disseram que não queriam que as convidadas tivessem uma
impressão errada sobre a Varal, que o modo como me expressei soou como se eles fossem
intolerantes, quando na verdade eles só achavam o sotaque bonito e engraçado (Diário de campo
da pesquisadora). Eu me arrependi de ter tido uma postura impulsiva, e expliquei como as
pessoas latinas são malvistas ao redor do mundo. A partir disso, tivemos um papo proveitoso
sobre racismos e as formas como eles aparecem na sociedade.

Mesmo com essa boa conversa, com os exercícios teatrais tão interessantes e com o encontro
tendo terminado em músicas típicas latinas, para mim não houve sentimento de festividade,
pois eu saí de lá arrasada. Me senti absolutamente despreparada, afinal, esse conjunto de
encontros foi minha primeira experiência organizando oficinas, e a preocupação de que eu não
era uma boa professora, que tantas vezes me perturbou, havia aparecido novamente.

Ter chateado os participantes depois de dias tão bons foi desmotivador. Questionei minhas
práticas, minha comunicação, meu ímpeto em aniquilar a diferença com agressividade. Sobre
isso, lembrei de Michel Foucault (1977), quando alerta que o fascismo não é apenas aquele
evento localizado na História dos grandes líderes autoritários, mas também aquele que está em
nós e no nosso cotidiano, mesmo sendo militantes. São os comportamentos que nos fazem
“desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 1977, p. 2). Assim, faz-se
necessário expulsar todas as formas de fascismo que perpassam nossos corpos, e para que isso
ocorra, entre tantos outros conselhos, o autor diz: “Prefira o que é positivo e múltiplo; a
diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas”
(FOUCAULT, 1977, p. 3).
102

Tanto a experiência ruim com o posicionamento da oficineira quanto minha exaltação no grupo
faz lembrar que nossos corpos são movidos por afetos, às vezes tristes. Acerca disso Deleuze
afirma que “o mais belo é viver sobre as bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado,
com a condição de que esse seja o limite alegre, pois há o limite da alegria e o limite da tristeza”
(2019, p. 63). No encontro entre os corpos, há poder de ser afetado, mas nesses encontros,
aquilo que não me convêm me afeta de tristeza, ou seja, diminui a potência de agir. A
diminuição de potência decompõe as relações. A potência está justamente em compor relações:

Eu encontro os corpos, meu corpo não cessa de encontrar os corpos. Os corpos que
encontro têm, ora relações que se compõem, ora relações que não se compõem, com
a minha. O que se passa quando eu encontro um corpo cujas relações não se compõem
com a minha? […] Eis o que vou dizer: minha potência diminui. […] É uma
quantidade de potência imobilizada. […] De qualquer maneira, uma parte de minha
potência está fixada, é isto que quer dizer: uma parte de minha potência diminui. Com
efeito, sou subtraído de uma parte de minha potência, ela não está mais em minha
posse. […]
Ao contrário, na alegria, é muito curioso. A experiência da alegria tal como Espinosa
a apresenta, por exemplo eu encontro alguma coisa que convém, que convém com
minhas relações. (DELEUZE, 2019, p. 176)

Como desde o início apostamos na experiência de compor com arte, outra oficina realizada foi
a de elaboração de zines. Segundo João Paulo Rocetti, que além da oficina de criatividade
assumiu também esse encontro, as zines são uma espécie de livreto ou revista; são uma
ferramenta de publicações independentes, autônomas, de baixo custo e de fácil elaboração
(Diário de campo da pesquisadora).

E, de acordo com Omar Rico (2017), as zines são publicações alternativas porque surgiram da
necessidade dos artistas de se autopublicarem com total liberdade de expressão, e não
dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do seu material artístico.
Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo investimento financeiro,
já que não são produzidas de modo industrializado, ou seja, a confecção usa técnicas artesanais,
lançando mão de recursos acessíveis como fotocopiadora e costura manual ou com grampeador,
por exemplo.

Ainda conforme Rico (2017), as zines abarcam vários estilos de publicação: divulgação de
bandas e artistas, notícias sobre quadrinhos, desenhos, poesias, histórias eróticas, diários de
fotografia, histórias autobiográficas, entre muitos outros. Inclusive, grande parte das
publicações em forma de zine têm um caráter contestatório e fortemente militante: uma “[…]
ligação constante com movimentos anarquistas, ambientalistas, de gênero, ou que manifestam
103

algum tipo de reivindicação social” (RICO, 2017, p. 110), até porque não precisam se submeter
às exigências comerciais.

Todavia, a escolha por confeccioná-las nas oficinas se deu principalmente porque apostamos
na “[…] capacidade dos indivíduos de criar as suas próprias narrativas, de gerar conhecimento,
tomando por fonte de inspiração o próprio cotidiano, subjetivando-se […]” (RICO, 2017, p.
109). Assim, na oficina de produção de zines, cada participante confeccionou a sua própria
(Figura 15).

Figura 15 - Foto das zines individuais produzidas em um encontro da pesquisa

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

O oficineiro ensinou algumas técnicas de fabricar as zines, e depois dispomos os materiais no


chão, folhas brancas e coloridas, canetas, lápis de cor… e convidamos cada um para criar a sua,
com a temática livre – que poderia ter ou não relação com o que estávamos debatendo já nos
outros dias. Dessa vez, os participantes não tiveram tanto medo de arriscar, a maioria já
começou se aventurando nos materiais e nas ideias que queriam compartilhar. Mas alguns
novamente sentiram falta de um direcionamento sobre o que fazer, e o desafio da temática livre
causou desconforto (Diário de campo da pesquisadora).

Compreendemos que as zines quebram um pouco as lógicas tradicionais de fazer arte. Estamos
acostumados com a ideia de que a obra deve ser um material grandioso, perfeito, bem acabado,
feito a partir de muitos recursos, por vezes até padronizado. A zine, por sua vez, é um material
da ordem da simplicidade e do possível. Sua formatação, seu processo de produção e suas
104

variadas formas nos ensinam que não precisamos ter acesso a materiais rebuscados e muitos
recursos. Basta o desejo de produzir, e se produz a partir dos materiais disponíveis.

O desconforto que surgiu para alguns no início, aos poucos foi sumindo. O clima naquele dia
foi agradável, todos mais um vez juntos no chão, conversando de vários assuntos enquanto
criávamos, e ao mesmo tempo concentrados em fazer o próprio material. No final, cada um
apresentou o que havia produzido, e vimos uma diversidade de temas: em uma zine havia um
tutorial de como fazer tofu, cheio de reflexões sobre veganismo e crítica à exploração
ambiental; outra fez um registro da paixão pelo futebol; em outra encontramos uma ode ao
cérebro; uma falou sobre os limites que a sociedade impõe ao corpo; outra teve o tema corpo
coletivo; uma sobre corpo como um comum; e até tivemos uma zine com uma história ilustrada
sobre transplante de mentes.

Essa variação mostra que o processo de confeccioná-la é o de explorar experiências subjetivas:


“Zine passa a ser uma forma de pesquisa intuitiva sobre as travessias ao longo da vida” (RICO,
2017, p. 113). A liberdade para fabricá-la “[…] remete à potência criadora de cada indivíduo”
(RICO, 2017, p. 117).

Além dessas individuais, as produções artísticas feitas durante os encontros compuseram uma
zine coletiva, que é nosso material educativo. Ou seja, por estarmos no contexto de um mestrado
profissional na área de Ensino, além da pesquisa resultante na dissertação, é requisitada a
elaboração de um produto29 com caráter educacional. Entendemos que o melhor formato seria
a zine, até porque desde a divulgação das oficinas, a possibilidade de criar uma zine coletiva
foi algo que chamou a atenção dos participantes, gerando expectativa dessa elaboração e
tornando-se um desejo do grupo, que não poderíamos abandonar.

Portanto, esse material é uma expressão das vivências coletivas que tivemos. No primeiro
momento, pensamos que ele seria apenas um registro dos processos criativos em artes, uma
espécie de exposição das artes feitas pelos participantes. Porém, para além disso, com as
provocações da banca de qualificação ele se transformou também em um pequeno compilado
de lições que aprendemos nesse processo. Resolvemos chamá-lo “Um corpo em comum: lições
que aprendemos em oficinas na Varal”. Podemos até dizer que ele é um guia de como fazer

29
De acordo com a CAPES/MEC, os mestrados profissionais exigem a elaboração de um produto e, seguindo o
Documento da Área de Ensino de 2016, tais produtos recebem um enfoque educativo e podem ter um caráter
variado: mídias educacionais; material textual; materiais interativos; atividades de extensão; entre outras
possibilidades.
105

oficinas, mas não no sentido de se conduzir os procedimentos, ser um roteiro ou propor um


passo a passo para reproduzir nossa prática; mas porque ele acompanha marcas que trouxemos
nos corpos por conta dos encontros, e pode, por isso, inspirar outras práticas educativas.

Esse produto educacional passou por três etapas de validação 30. A primeira, na banca de
qualificação desta pesquisa, tendo sido avaliado por doutores especialistas em Educação e
Ensino, os quais se atentaram para a coerência do material com os assuntos tratados na
dissertação; a segunda etapa foi uma avaliação pelos pares, e se deu entre colegas 31 da área, que
julgaram a aplicabilidade do produto em contextos educativos; a terceira, e última etapa,
aconteceu entre os próprios participantes da oficina, que fizeram sugestões estéticas e de
conteúdo, e por isso eles também aparecem como autores do material. Em todas essas etapas o
produto foi refeito para conseguir se adequar às críticas e sugestões, na medida do possível.

Desse modo, além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, essa
pesquisa também se perguntou o que podemos enquanto corpo coletivo, o que se encontra no
material educativo produzido em conjunto. Podemos criar outras formas de agir, sentir, pensar,
estar no mundo? O que podemos compor juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos
durante todo o percurso da pesquisa e, por esse motivo, a atuação durante os encontros apostou
em colocar os participantes não como objetos de estudo, e sim como componentes na
construção do trabalho.

Para nós, criar um trabalho educativo comunitário é também recorrer à centralidade do corpo,
e além disso, à experiência coletiva da corporalidade, porque nesses atos educacionais, os
pensamentos são coletivos, são comuns. Assim, um espaço educativo é o local
“[…] cujo elemento principal é o pensamento – e não a busca por respostas corretas às perguntas
estabelecidas, pois isso é da ordem da representação. Pensar é tarefa de criação, é travar lutas
entre sentidos, buscar aquilo que está do seu lado exterior” (SABINO, 2015, p. 208). Trata-se,
mais uma vez em uma inspiração espinosista, do pressuposto de que corpo e mente são uma
unidade e, por isso, o pensamento só forma ideias do que se passa no corpo. Ou, dito de outro
modo, “[…] os pensamentos e as ideias que a mente é determinada a formar tem as afecções do
corpo como conteúdo […]” (GIVIGI, 2019, p. 408).

30
Por conta da necessidade de isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, todas essas etapas
aconteceram de forma online.
31
A maioria desses colegas são professores do ensino básico das redes pública e privada; todos são pesquisadores
das áreas de Ensino ou Educação em diversas temáticas.
106

Luiz Givigi (2019) mostra que para Espinosa não só o pensamento é um afecção do corpo,
como também o pensamento é relacionado ao plano coletivo, do comum, e de modo algum está
isolado na consciência humana, ao privado, mas antes dá palco à composição de corpos. Nesse
sentido, nossa prática educativa se distancia do já mencionado paradigma cartesiano, o qual
“[…] concebe a mente como substancialidade independente e separada do corpo, isto é, do
conhecimento como oposto ao afeto; e, por outro lado, concebe o indivíduo como apartado da
coletividade” (GIVIGI, 2019, p. 408).

Ainda assim, por vários momentos ocorreu o anseio de qual conteúdo tratar nas oficinas. E não
temos dúvidas de que muitos foram abordados, seja da filosofia, da história, das ciências sociais,
dos estudos sobre a cultura, entre outras áreas. Mas tentamos constituir ali uma pedagogia do
comum, onde para além da cognição, é mais potente exercer uma educação que visa relação
dos corpos e de como eles se afetam nessa relação. Ou melhor, onde conhecimento e afeto
operam simultaneamente. Com isso, queremos dizer aliados a Luiz Givigi (2019), que um
ambiente de aprendizado mútuo é aquele onde a construção do conhecimento se dá no plano
afetivo de composição dos corpos. Nessa composição, o conhecimento aumenta a potência de
agir e a capacidade de inteligir, o que se passa em um plano comum.

Por isso, sentir e pensar são tão unidos quanto mente e corpo, e teoria e prática. Sobre isso, a
autora estadunidense bell hooks (2013), a partir da ótica feminista e negra, mostra que em
contextos educativos, subverter a cisão entre corpo e mente significa estar presente por inteiro
no processo de ensinar e aprender, permitindo a sensibilidade guiá-lo: trazer a paixão e não se
reduzir à transmissão de informações, o que proporcionaria “[…] aos alunos modos de saber
que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente no mundo […]” (HOOKS,
2013, p. 257).

Nesse sentido, nós aprendemos e ensinamos de maneiras diversas e muitas vezes inesperadas:
com a convivência, com a presença, com as paixões. Estamos iludidos quando acreditamos que
o aprender é simplesmente da ordem do inteligível; o aprendizado, na verdade, se relaciona
mais com o sensível, porque aprender é um movimento com o corpo todo, um movimento na
sensibilidade. Aprender é um acontecimento encarnado, singular e inventivo, que
“[…] demanda presença, demanda que o aprendiz nele se coloque por inteiro. E exige relação
com o outro. Entrar em contato, em sintonia com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por
eles, na mesma medida em que os afeta e produz outras afecções (GALLO, 2012, p. 6).
107

Ainda acompanhados de bell hooks (2013), acreditamos na construção coletiva de uma


educação como prática da liberdade, a qual entende os alunos como sujeitos ativos no processo
de aprendizado. Justamente por isso, o último encontro foi a oportunidade de ouvir as críticas
e sugestões dos participantes aos momentos que construímos nas oficinas, porque a tarefa da
escuta, de entender as experiências da vida cotidiana dos estudantes, é fundamental para
construir um espaço educativo acolhedor, afetivo e menos hierarquizado. Ouvir coletivamente
mostra a diversidade de experiências e pensamentos e, portanto, durante essa caminhada
tentamos enfatizar o valor da multiplicidade de vozes.

Uma das principais críticas que os participantes fizeram foi o pouco aprofundamento dado aos
conceitos trabalhados na dissertação. Eles disseram que tinham interesse em entender melhor o
que os autores falam, de ouvir mais as minhas visões enquanto pesquisadora. Apesar de todos
terem discutido amplamente suas percepções, ficaram muitas dúvidas sobre o meu
entendimento sobre as temáticas abordadas nas conversas (Diário de campo da pesquisadora).

De fato, por conta das minhas experiências na educação e por medo de repetir os
posicionamentos autoritários com os quais tive que lidar durante o mestrado, acabei silenciando
muitas falas. Quando tentei explicar que eu não queria estragar a experimentação, nem
transformar o espaço das oficinas em um lugar de transmissão de conteúdo, um dos
participantes argumentou que “sozinhos a gente só repete o que já sabe” (Diário de campo da
pesquisadora). Percebi, portanto, que tive receio de ser o que Silvio Gallo (2002, p. 170) chama
de professor profeta, “que do alto de sua sabedoria diz aos outros o que deve ser feito”, mas
isso trouxe consequências entendidas como ruins para os participantes da pesquisa.

Pensando o contexto da educação e da pesquisa em um caminho de construção coletiva, não só


os estudantes falam, mas também o professor/pesquisador tem contribuições. Gallo (2002),
sugere que sigamos a figura de um professor militante, aquele que produz a possibilidade de
futuro, que lança convites à educação, que incentiva a construção do conhecimento.

Qual o sentido hoje desse professor militante, o que seria ele? Penso que seria não
necessariamente aquele que anuncia a possibilidade do novo, mas sim aquele que
procura viver as situações e dentro dessas situações vividas produzir a possibilidade
do novo. Nesse sentido, o professor seria aquele que procura viver a miséria do
mundo, e procura viver a miséria de seus alunos, seja ela qual miséria for, porque
necessariamente miséria não é apenas uma miséria econômica; temos miséria social,
temos miséria cultural, temos miséria ética, miséria de valores. Mesmo em situações
em que os alunos não são nem um pouco miseráveis do ponto de vista econômico,
certamente eles experimentam uma série de misérias outras. O professor militante
seria aquele que, vivendo com os alunos o nível de miséria que esses alunos vivem,
108

poderia, de dentro desse nível de miséria, de dentro dessas possibilidades, buscar


construir coletivamente. (GALLO, 2002, p. 171)

Não obstante, elogios também foram tecidos sobre as oficinas. Uma participante apontou que a
principal mudança causada pelos encontros foi que conseguiu experimentar sem medo, sem
saber o porquê ou para quê, e para ela isso foi uma boa experiência. Todos elogiaram o espaço
acolhedor que conseguimos construir juntos, sem julgamentos uns sobre os outros, e como o
grupo construiu uma intimidade muito rápido, apesar do curto tempo das oficinas (Diário de
campo da pesquisadora).

Uma das participantes compartilhou que o que mais gostou nas oficinas foi elas terem se
tornado o que chamou de espaço de cura, porque nelas nós não falávamos apenas das dores,
mas também das coisas boas que produzimos juntos (Diário de campo da pesquisadora). Nessa
fala, ela se lembrou do livro Um corpo para o futuro, de Iaiá Rocha (2019), outra artista do
Território do Bem. O livro é um projeto fotográfico que usa a estética e filosofia do
afrofuturismo 32 para criar outras narrativas e subjetividades sobre o corpo negro, onde esse
corpo enxerga possibilidades de futuro no qual é alvo de felicidade, e não de extermínio.

Essa fala me emocionou profundamente e me mobilizou a pensar sobre o que estávamos


construindo ali juntos. Diante das leituras para compor essa pesquisa, vimos que de fato o poder
tomou de assalto a vida e subjugou o corpo na sua esfera mais íntima, na inventividade, e nesse
sentido, Peter Pelbart (2005) mostra que até mesmo a imaginação sobre o futuro está
colonizada. Porém, do mesmo modo, o autor garante – e esta pesquisa tende à concordar com
isso – que novas associações e formas de cooperação podem traçar um comum e produzir o
novo, fazer a vida comum germinar, de modo que não se anule a singularidade e, pelo contrário,
reúna múltiplas singularidades.

3.3 CORPOS PERIFÉRICOS EM ALIANÇA

Ainda é possível o sonho com um futuro diferente do que nos é imposto pelas forças neoliberais.
Por isso, tentamos fazer nos encontros da pesquisa um espaço potente, onde vidas extremas
apostam sua sobrevivência na construção de um futuro possível (PELBART, 2015), afinal,

32
Uma das definições para o conceito de afrofuturismo se refere às manifestações estéticas, filosóficas, artísticas,
literárias e intelectuais que se dedicam a pensar o futuro a partir das produções e percepções da negritude após a
diáspora africana, e assim imaginar e compor o futuro dessa população de forma afirmativa. Por essa explicação,
agradecemos ao artista João Paulo Rocetti (Diário de campo da pesquisadora).
109

resistir não é apenas suportar as dores, mas também criar uma nova vida, e nisso lembramos de
Judith Butler.

Sabemos que, sob alguns aspectos, os trabalhos da autora têm sido questionados por
supostamente não conseguirem colocar a concretude do corpo nas teorias desenvolvidas sobre
gênero, e argumenta-se que Butler reduz as identidades a efeitos discursivos, menosprezando
seu nível material, ou seja, corpóreo (HADDOCK-LOBO, 2018). O livro Corpos em aliança e
a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia, de Judith Butler (2018),
contudo, é uma tentativa de dar conta dessas críticas. Para nós, interessa olhar alguns aspectos
que a autora tensiona na obra, os quais ajudam a pensar a corporalidade no Território do Bem
e muitos assuntos que emergiram nas oficinas.

Nesse sentido, Butler (2018) diz do momento em que vivemos, no qual as consequências da
moralidade neoliberal nos impõem lógicas individualizadoras, colocando as pessoas sujeitas à
precarização. Isso significa dizer que o mercado molda as relações sociais a ponto de que cada
indivíduo se perceba como responsável apenas sobre si mesmo, sem considerar que toda vida
apenas é vivida em conjunto e de modo social. Com efeito, alguns que não têm condições de
autossuficiência são tomados como corpos dispensáveis para o sistema.

Em um contexto de injustiças econômicas cada vez mais aterrorizantes, setores essenciais


abandonados colocam vidas em risco e aceleram sua condição precária. Ou seja, a condição
precária está imposta a todas as pessoas, porque todos estamos sujeitos a situações de risco,
vulnerabilidade e morte. No entanto, grupos específicos são induzidos à precariedade quando
questões urgentes como alimentação digna, moradia segura, saneamento básico, acesso total à
saúde, fim da violência policial e empregos estáveis são negligenciados. A estrutura social que
permite e provoca exclusões faz com que determinadas populações se tornam descartáveis
(BUTLER, 2018).

De fato, estamos no meio de uma situação biopolítica na qual diversas populações


estão cada vez mais sujeitas ao que chamamos de “precarização”. Geralmente
induzido e reproduzido por instituições governamentais e econômicas, esse processo
adapta populações, com o passar do tempo, à insegurança e à desesperança; ele é
estruturado nas instituições do trabalho temporário, nos serviços sociais destruídos e
no desgaste geral dos vestígios ativos da social-democracia em favor das modalidades
empreendedoras apoiadas por fortes ideologias de responsabilidade individual e pela
obrigação de maximizar o valor de mercado de cada um como objetivo máximo de
vida. (BUTLER, 2018, p. 21, grifos nossos)

Nesse sentido, a autora questiona o fato de haver no sistema capitalista uma distinção entre
quais vidas devem ser protegidas e quais não devem, e a partir disso retoma a gestão da vida e
110

da morte explicada por Michel Foucault nos termos do biopoder. Entretanto, ela parte também
do conceito de necropolítica, de Achille Mbembe, para informar que mais uma vez os
mecanismos de poder de fato efetuam-se em determinadas populações sob o caráter de uma
política de morte. Sob a máxima de fazer morrer e deixar morrer, paira agora nos discursos
dominantes a ideia de que algumas populações não devem ter a vida garantida, o que na prática
significa que merecem morrer e, por conseguinte, as ações do Estado são conduzidas para esse
fim.

Ao perceber que as situações de precariedade são uma condição social que atinge a muitos, as
pessoas passam a se aliançar para garantir as condições de vida. Segundo Butler (2018), a ação
política tem uma dimensão agregadora, na qual corpos que em outros contextos não estariam
juntos, propõem-se a conviver e a agir de forma aliada. A ação, nesse caso, pressupõe garantir
as condições mínimas de existir, e se faz necessária a coabitação para lutar diante das situações
de precariedade. A autora cita então exemplos de assembleias públicas e reivindicações
coletivas corpóreas que pautam uma vida mais vivível.

À vista disso, para nós, um exemplo expressivo de corpo coletivo em aliança são as periferias,
inclusive o Território do Bem, porque percebermos que nesses espaços os corpos têm se aliado
para lutar por uma vida menos injusta e insuportável no dia a dia. As associações, as redes de
solidariedade e as mobilizações comunitárias garantem uma atuação política em grupo. Na
semana seguinte às oficinas, por exemplo, um jovem do Território foi assassinado pela polícia
perto de casa, enquanto estava reunido com amigos. Moradores (dentre eles vários participantes
desta pesquisa) organizaram uma série de aparições públicas reivindicando o direito dessa vida
ser enlutada e denunciando a política de morte promovida pelo Estado. A reação da imprensa
capixaba foi de colocar as manifestações como atos de vandalismo e de associar o jovem a
organizações ditas criminosas, corroborando para a retórica de que algumas vidas são passíveis
de extermínio 33.

Em outro genocídio em curso, o da pandemia de Covid-19, as lideranças nacionais se recusam


a prover as condições básicas de enfrentamento: não garantem a possibilidade de isolamento
social oferecendo recursos econômicos suficientes aos mais pobres, nem incentiva as medidas
de proteção individual, como o uso de máscaras. Nesse contexto, em muitas favelas pelo Brasil,

33
Houve, no período, muitas reportagens na televisão e nos jornais tentando associar a imagem do jovem à
criminalidade e também deslegitimando os protestos da comunidade. Um exemplo vem do portal de notícias
Gazeta Online, cuja reportagem foi intitulada “Quem era o adolescente morto que desencadeou ataques em
Vitória” (QUEM..., 2020).
111

e da mesma forma no Território do Bem, se espalham ações coletivas para assegurar que
populações marginalizadas recebam suprimentos, produtos de higiene e orientações para se
protegerem.

Seja em eventos específicos, como esses citados, seja no cotidiano, as favelas têm resistido aos
avanços sobre a vida arduamente. Por isso, compreendemos que os saberes localizados nesses
territórios não dependem da presença de uma pesquisa para se efetivarem, eles ocorrem
independente de intervenções, porque são da ordem da necessidade e da urgência. O que o
Território do Bem tem produzido com suas alianças são afetos e aprendizados. Nossas oficinas
foram apenas um período efêmero de reunião corpórea que serviram não para ensinar algo, mas
na verdade, para aprender algumas possibilidades de se aliar.

Nesse sentido, Iaiá Rocha (2019, n.p.) traz um grande ensinamento: “[…] sejamos no agora o
corpo que queremos para o futuro”. Pode ser que não vejamos esse mundo novo que falamos
tanto ao longo do texto, mas criar um futuro possível não é uma sentença messiânica que
aguarda milagres. Compor um novo mundo significa viver uma vida melhor hoje, criar em
conjunto possibilidades para isso e, assim, construir futuros onde a vida é boa e vivível.
112

4 A ESCRITA DESSE CORPO NÃO CHEGA AO FIM

Escrever não é sobre estar na sua mente,


é sobre estar em seu corpo.
Gloria Anzaldúa

As ciências tradicionais privilegiam a mente em detrimento do corpo. Todavia, o que isso


significa na prática? Qual é a relação das produções teóricas, dos embates acadêmicos e dos
escritos filosóficos na vida material? Um bom caminho para pensar nessas perguntas é
apresentado por Paul B. Preciado (2016) quando mostra que as práticas sociais (incluindo a
ciência e a filosofia) são máquinas de produção de verdades, ou seja, têm a função de inventar
a verdade, fabricá-la. Assim, segundo o autor, essas máquinas ao mesmo tempo nos inventam
e nos pertencem, e é nossa tarefa nos apropriar de tais tecnologias, compartilhá-las e produzir
a partir delas verdades mais plurais, que não sejam capturadas pelo neoliberalismo e que
permaneçam abertas e múltiplas.

Quando criança, pensava que ciência fosse algo muito distante, muito abstrato, que envolvia
fórmulas frias, jalecos e frascos. Depois, na graduação, descobri que existiam as Ciências
Humanas, e que as análises sobre o mundo, os homens e a vida social eram um outro jeito de
fazer ciência, que, aliás, esgoela-se muito para provar seu caráter científico. Mais recentemente,
me encontrei com autores que não reivindicam para si essa tal cientificidade, os métodos, as
conclusões cheias de respostas explicativas. Esse modo diferente de se relacionar com a
pesquisa me intrigou: para que serve uma investigação acadêmica que não vai explicar nada?
Qual sua utilidade?

Tomados por tais lógicas produtivas, permitimos que nossas pesquisas sejam conduzidas pela
busca de resultados e não pelo desejo, abalos e descobertas que o processo traz nos nossos
corpos. Dessa maneira, no âmbito científico, o corpo é apagado: não há espaço para intimidade
e para o prazer, e assim se efetua uma violenta exclusão corpórea. As violências ao corpo se
expressam academicamente, por exemplo, na pretensão de neutralidade na pesquisa, o que sem
dúvidas está atrelado a uma marca histórica, é fruto de um mundo criado pela Modernidade. As
convicções modernas, não obstante, ensinaram também que a mente é palco da intelectualidade,
e que não devemos olhar o corpo, porque ele seria uma espaço de natureza estrita e de
inferioridade.

Se esse trabalho tem um teor científico ou não, não me cabe dizer, nem me interessa. O que
posso adiantar é que, de fato, ele não traz hipóteses, análises nem resultados; além disso, passa
113

bem longe de ser neutro, porque carrega consigo uma aposta política de desenhar um mundo
novo, um mundo onde a vida é possível de ser vivida em comunidade. Sem dúvidas, nesse novo
mundo movido pela ética dos afetos, o corpo se faz central, e os corpos em encontros coabitam
na luta que abre possibilidades inimagináveis. Neste trabalho, buscamos a potência do corpo, e
assim descobrimos que ainda não sabemos o que ele pode:

Não sabemos o que pode um corpo. Mas não porque o corpo seja um mistério
indecifrável ou um transcendente inatingível. Bem pelo contrário. Nenhum
esoterismo. Puro pragmatismo. Não sabemos o que pode um corpo, de que ele é capaz,
até que ele faça alguma coisa, até que ele faça alguma coisa a outro ou até que outro
lhe faça alguma coisa. É para isso que serve uma cartografia, um diagrama, um plano
de imanência. Para saber o que pode um corpo. Quais são os afectos de um corpo?
(TADEU, 2002, p. 54)

Mesmo compreendendo que o corpo é tomado como alvo das forças neoliberais, que sugam
seus sonhos e vampirizam seus aspectos mais íntimos, ele pode, por exemplo, se aliançar por
meio da arte e fazer surgir estéticas que se recusam a um modo de vida único, que apostam nos
processos criativos singulares fervilhando pelos espaços. Com isso, neste trabalho percebemos
que as criações e inventividades são resistências corpóreas, que nesse caso, atuam desde os
espaço educativos até às ruas da periferia. As oficinas artísticas que fizemos foram um modo
de experimentar isso, e aconteceram para compartilhar vivências e afetos.

Também não se encontra neste trabalho uma postura salvacionista e, de modo algum, os
encontros se propuseram a levar a arte para o Território. Até porque a arte já está ali em diversas
formas, nas pichações dos muros, na música das casas, nos blocos de carnaval da comunidade,
enfim, a arte se esparrama por todos os lugares. Não quisemos, portanto, ensinar a fazer ou
compreender algo, apenas montamos um espaço de aprendizado.

E aprendemos. O Território do Bem nos ensinou a criar, no hoje, alianças que desenham um
futuro em comum. Por isso, na pesquisa também não tivemos intenção de “dar voz” a ninguém.
A favela já tem uma voz bem ativa, sua ação política acontecia muito antes de minha presença,
e continua acontecendo independentemente deste trabalho.

Minha função, portanto, foi apenas a de escrever. Mas colocar tudo isso em palavras não é
pouca coisa; a escrita é uma tecnologia de produção de subjetividade, e quando escrevemos
estamos inventando novas práticas de subjetivação e, assim, fazemos uma parte
importantíssima do processo de traçar o mundo novo, porque a escrita é um ato imaginativo, é
uma invenção:
114

Para mim, escrever é um gesto do corpo, um gesto de criatividade, um trabalho de


dentro para fora. Meu feminismo não se baseia em uma abstração incorpórea, mas nas
realidades corporais. O corpo material é o centro e é central. O corpo é a base do
pensamento. O corpo é um texto. Escrever não é sobre estar na sua mente; é sobre
estar em seu corpo. O corpo responde fisicamente, emocionalmente e intelectualmente
a estímulos externos e internos, e escreve registros, ordens e teoriza sobre esses
estímulos. Para mim, escrever começa com o impulso de ultrapassar fronteiras,
moldar ideias, imagens e palavras que viajam pelo corpo e ecoam na mente,
transformando-se em algo que nunca existiu. O processo de escrita é o mesmo
processo misterioso que usamos para criar o mundo. (ANZALDÚA, 2015, p. 5,
tradução nossa34)

Gloria Anzaldúa está falando nesse trecho sobre sua atuação como escritora feminista, mas
pego suas palavras emprestadas para dizer da minha atuação como jovem escritora, professora
e pesquisadora. No texto Escrebiendo para idear ela mostra que idear é uma palavra da língua
espanhola que significa, entre outras coisas, imaginar, inventar. Nesse processo de idear, a
autora afirma que seu trabalho questiona os paradigmas predominantes na sociedade ao
desenvolver teorias que não apenas os afetam, como também tem a capacidade de mudá-los.

Do mesmo modo, sonhamos em mudar discursos teóricos violentos e ações práticas que
engendram os corpos. Queremos inventar outro corpo, múltiplo, alegre e comum. Existem
muitas formas de fazer isso, e um caminho está justamente na escrita, porque o processo de
colocar as ideias, o processo de pensar (que é corpóreo e coletivo) traça horizontes. Essa
dissertação, portanto, não passa de um registro de experiências que mostram que é possível
construir hoje um novo mundo.

34
Texto original: “For me, writing is a gesture of the body, a gesture of creativity, a working from the inside out.
My feminism is grounded not on incorporeal abstraction but on corporeal realities. The material body is center,
and central. The body is the ground of thought. The body is a text. Writing is not about being in your head; it’s
about being in your body. The body responds physically, emotionally, and intellectually to external and internal
stimuli, and writing rec ords, orders, and theorizes about these responses. For me, writing begins with the impulse
to push boundaries, to shape ideas, images, and words that travel through the body and echo in the mind into
something that has never existed. The writing pro cess is the same mysterious pro cess that we use to make the
world.”
115

OUTROS CORPOS DA PESQUISA

ALBUQUERQUE-JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.


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VIGARELLO, Georges. História do corpo v. 1: da Renascença às Luzes. Petrópolis: Vozes,
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125

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Periódicus, Salvador, v. 1, n. 1, maio/out., 2014. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/10174/7262. Acesso em: 10
out. 2019.

YEARS AND YEARS (Anos e anos). Direção: Russell T. Davis. Nova Iorque: Home Box
Office, 2019 (6 episódios, exibida pela HBO, son., color. Acesso em: 04 set. 2019.
126

ANEXO I – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Eu,________________________________________________________________________,
CPF_________________, estou participando voluntariamente do projeto “O que pode um
corpo?”, inserido na pesquisa de mestrado “Corpo como potência educativa”, vinculada à linha
de pesquisa práticas educativas do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades
(PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), campus Vitória - ES, realizado pela
pesquisadora Lysia da Silva Almeida, sob a orientação do professor Dr. Davis Moreira Alvim,
em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação.
Entendi que o projeto consiste em oficinas artísticas que resultarão na elaboração coletiva de
um material educativo em forma de zine, o qual conterá as produções vivenciadas nesse
processo, e autorizo a utilização e divulgação das minhas produções tanto na dissertação da
pesquisadora quanto no material educativo desenvolvido.
Além disso, fui devidamente informado(a) que minha privacidade será respeitada, e meu nome
será alterado para outro fictício ou será mantido em sigilo, a menos que eu mesmo(a) faça
questão de ter minha participação identificada. Fui assegurado(a) que me é garantido o livre
acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas consequências,
enfim, tudo o que eu queira saber antes, durante e depois da minha participação. Também fui
informado(a) de que posso me recusar a participar do estudo ou retirar meu consentimento a
qualquer momento, sem precisar me justificar, e me foi garantido que não virei a sofrer nenhum
tipo de represália.
As informações que eu fornecer para a pesquisa serão armazenadas por meio de registros
pessoais da pesquisadora. Nenhuma informação será utilizada em meu prejuízo ou de outras
pessoas. Os dados serão mantidos sob sua guarda e responsabilidade por um período de cinco
anos após o término da pesquisa, ficando assegurado de que os mesmos serão utilizados
somente para fins de pesquisa, restrita aos conhecimentos científicos e acadêmicos, observando
as normas éticas da pesquisa.
Entendo que ao participar da prática educativa, receberei um certificado de 20h que será emitido
pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação em parceria com o Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES). Me comprometo a ter frequência
mínima de 75%, bem como a participação efetiva nas atividades propostas, estando ciente de
que o descumprimento desses critérios acarretará o não recebimento da certificação.
127

Em qualquer etapa do estudo, terei acesso à pesquisadora Lysia da Silva Almeida, cujo contato
poderá ser feito pelo e-mail lysiaalmeida@gmail.com, assim como seu orientador, Prof. Dr.
Davis Moreira Alvim, pelo e-mail davis.alvim@ifes.edu.br. Ainda será possível contatar o
Programa de pós-graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES), no endereço Av.
Vitória, 1729, Jucutuquara - Vitória/ES; pelo telefone (27) 3331-2277 ou e-mail:
ppgeh.vi@ifes.edu.br.
Li todas as informações aqui descritas, e manifesto meu livre consentimento em participar
voluntariamente da prática educativa da pesquisa, estando totalmente ciente de que não há
nenhuma gratificação financeira a receber ou a pagar por minha participação.

( ) Desejo ter o meu nome identificado na pesquisa.


( ) Não desejo ter meu nome identificado e gostaria de ser identificado com o nome fictício
de minha escolha: ___________________________________________________________
( ) Não desejo ter meu nome identificado mas não tenho interesse em escolher um nome
fictício para me representar, podendo a pesquisadora escolher.

Vitória, ES, _________ de ____________________ 2020.

___________________________________________________________

Assinatura do(a) participante

________________________________ ________________________________

Prof. Dr. Davis Moreira Alvim Lysia da Silva Almeida


Orientador Pesquisadora
128

ANEXO II – TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TALE

Eu, _______________________________________________________________________,
CPF________________, responsável por _____________________________________,
CPF________________, autorizo sua participação no projeto “O que pode um corpo?”,
inserido na pesquisa de mestrado “Corpo como potência educativa”, vinculada à linha de
pesquisa práticas educativas do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades
(PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), campus Vitória - ES, realizado pela
pesquisadora Lysia da Silva Almeida, sob a orientação do professor Dr. Davis Moreira Alvim,
em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação.
Entendi que o projeto consiste em oficinas artísticas que resultarão na elaboração coletiva de
um material educativo em forma de zine, o qual conterá as produções vivenciadas nesse
processo, e afirmo que o menor sob minha responsabilidade autorizou a utilização e divulgação
de suas produções tanto na dissertação da pesquisadora quanto no material educativo
desenvolvido.
Além disso, fui devidamente informado(a) que a privacidade do menor sob minha
responsabilidade será respeitada, e seu nome será alterado para outro fictício ou será mantido
em sigilo, a menos que ele faça questão de ter sua participação identificada. Fui assegurado(a)
que me é garantido o livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o
estudo e suas consequências, enfim, tudo o que eu queira saber antes, durante e depois da
participação do menor sob minha responsabilidade. Também fui informado(a) de que posso
retirar minha autorização a qualquer momento sem precisar me justificar, e me foi garantido
que não virei a sofrer nenhum tipo de represália.
As informações que o menor sob minha responsabilidade fornecer para a pesquisa serão
armazenadas por meio de registros pessoais da pesquisadora. Nenhuma informação será
utilizada em prejuízo do menor sob minha responsabilidade ou de outras pessoas. Os dados
serão mantidos sob a guarda da pesquisadora por um período de cinco anos após o término da
pesquisa, ficando assegurado de que os mesmos serão utilizados somente para fins de pesquisa,
restrita aos conhecimentos científicos e acadêmicos, observando as normas éticas da pesquisa.
O menor sob minha responsabilidade entende que ao participar da prática educativa, receberá
um certificado de 20h que será emitido pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação
em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES), e
se compromete a ter frequência mínima de 75%, bem como a participação efetiva nas atividades
129

propostas, estando ciente de que o descumprimento desses critérios acarretará o não


recebimento da certificação.
Em qualquer etapa do estudo, terei acesso à pesquisadora Lysia da Silva Almeida, cujo contato
poderá ser feito pelo e-mail lysiaalmeida@gmail.com, assim como seu orientador, Prof. Dr.
Davis Moreira Alvim, pelo e-mail davis.alvim@ifes.edu.br. Ainda será possível contatar o
Programa de pós-graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES) no endereço Av.
Vitória, 1729, Jucutuquara - Vitória/ES; pelo telefone (27) 3331-2277 ou e-mail:
ppgeh.vi@ifes.edu.br.
Li todas as informações aqui descritas, e manifesto minha autorização para que
____________________________________________________ possa participar
voluntariamente da prática educativa da pesquisa, estando totalmente ciente de que não há
nenhuma gratificação financeira a receber ou pagar por sua participação.

( ) Desejo ter o meu nome identificado na pesquisa.


( ) Não desejo ter meu nome identificado e gostaria de ser identificado com o nome fictício
de minha escolha: ___________________________________________________________
( ) Não desejo ter meu nome identificado mas não tenho interesse em escolher um nome
fictício para me representar, podendo a pesquisadora escolher.

Vitória, ES, _________ de ____________________ 2020.

________________________________________________________________

Assinatura do(a) participante

________________________________________________________________

Assinatura do(a) responsável

________________________________ ________________________________

Prof. Dr. Davis Moreira Alvim Lysia da Silva Almeida


Orientador Pesquisadora
130

ANEXO III – TERMO DE CESSÃO DE IMAGEM E VOZ PARA FINS


EDUCACIONAIS

Eu, ___________________________________________________, inscrito sob o CPF nº


___________________, AUTORIZO o uso de minha imagem e voz (ou do menor
_______________________________________ sob minha responsabilidade) para ser
utilizada na pesquisa de mestrado “Corpo como potência educativa”, vinculada ao Programa de
pós-graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo
(IFES), na linha de pesquisa práticas educativas, realizado pela pesquisadora Lysia da Silva
Almeida, sob a orientação do professor Dr. Davis Moreira Alvim, em parceria com o Ponto de
Cultura Varal Agência de Comunicação.
É concedida ao IFES e a Varal a autorização de utilizar minha imagem e/ou voz, ou do menor
sob minha responsabilidade, captada por meio de fotografias, gravações de áudios e/ou
filmagens de depoimentos, declarações, entrevistas e/ou ações outras realizadas a serem
utilizados com fins educacionais e também para fins de pesquisa, restrita aos conhecimentos
científicos e acadêmicos. Afirmo ter ciência que esta autorização é concedida em caráter total,
gratuito e não exclusivo, não havendo impedimento para que os pesquisadores utilizem o
material captado como desejarem, como por exemplo em reprodução, representação, tradução,
distribuição, entre outras formas, sendo vedada qualquer utilização com finalidade lucrativa.
Declaro que o IFES está autorizado a utilizar minha IMAGEM e VOZ, ou do menor sob minha
responsabilidade, por prazo indeterminado, e os resultados do referido material produzido
podem ser utilizados de forma ilimitada no que se refere à concessão de direitos autorais.
Declaro ainda que renuncio a qualquer direito de fiscalização ou aprovação do uso da imagem
e outras informações ou de utilizações decorrentes da mesma. Reconheço que o MEC confiará
nesta autorização de forma absoluta e concordo não exigir qualquer indenização relacionada ao
exercício das autorizações concedidas por meio deste instrumento.
Vitória – ES, ____ de ________________________ de 2020.

______________________________________________________________________
Assinatura do(a) participante

_______________________________________________________________________
Assinatura do(a) responsável (para menores de 18 anos)
131

APÊNDICE A – PROPOSTA DE PRÁTICA EDUCATIVA

I – IDENTIFICAÇÃO
Projeto: O que pode um corpo?
Público-alvo: 20 participantes, a partir de 14 anos, prioritariamente dos bairros do Território
do Bem (região Poligonal 1 de Vitória – Espírito Santo).
Período de realização: janeiro e fevereiro de 2020.
Local: Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação (Itararé, Vitória – Espírito Santo).
Carga horária: 20 (vinte) horas subdivididas em 6 (seis) encontros presenciais de 3 (três) horas
cada, e atividades não presenciais com duração de 2 (duas) horas.
Periodicidade e horário de realização: Duas semanas de encontros realizados às segundas,
quartas e sextas-feiras, das 15:30 às 18:30.
Divulgação: Imagens informando sobre a prática, critérios de participação e inscrição
confeccionados pela mestranda e divulgados pelo Ponto de Cultura Varal Agência de
Comunicação por meio das redes sociais.
Inscrições: realizadas de forma online pela mestranda em parceira com a equipe do Ponto de
Cultura Varal Agência de Comunicação, preenchidas de acordo com a ordem de chegada.
Certificação: realizada pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação em parceira com
o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades – PPGEH/IFES.

II – BREVE RESUMO
Esta proposta de prática educativa faz parte da pesquisa “Corpo como potência educativa”,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) do
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), sob a orientação do professor dr. Davis Moreira
Alvim. A aposta é, a partir do coletivo, problematizar questões relacionadas à temática corpo.
Além disso, por meio de rodas de conversas e oficinas, dar vasão à experimentações que
possibilitem criar um material educativo em forma de zine, de modo a acolher as produções
artísticas (ilustrações, textos, poemas, colagens etc.) originadas ao longo do percurso, com o
intuito de inspirar práticas educativas outras em espaços.

III – OBJETIVOS
o Compor um espaço-tempo educativo, tendo como locus o Ponto de Cultura Varal
Agência de Comunicação, para pensar e dialogar acerca da temática corpo.
132

o Promover experimentações coletivas para pensar o corpo de modo diferente do habitual,


para além da redução ao biológico e da fragmentação: pensar o corpo coletivo que se
move pelos afetos, um corpo como espaço político.
o Construir coletivamente uma zine, contendo material produzido pelos participantes ao
longo do processo de realização da práticas educativa.

IV – METODOLOGIA
A prática educativa se realizará por meio de experimentações a partir de instrumentos
metodológicos como rodas de conversa e oficinas artísticas, através dos quais serão compostos
os textos, imagens, músicas, pinturas, poemas e relatos de experiência – ou seja, diversas
produções serão desenvolvidas pelos participantes da pesquisa. A organização se dará em seis
encontros presenciais e algumas atividades não presenciais, conforme indicado abaixo:

ENCONTRO/ CARGA
TEMA
DATA HORÁRIA
1° Encontro
Apresentação e oficina de criatividade 3 horas
27/01/2020
2° Encontro Experimentação com fotografia, vídeo e obras
3 horas
29/01/2020 de arte
3º Encontro
Oficina de colagens 3 horas
31/01/2020
4° Encontro
Oficina de zine 3 horas
03/02/2020
5º Encontro
Oficina de expressão corporal (teatro) 3 horas
05/02/2020
6º Encontro
Curadoria da zine coletiva e encerramento 3 horas
07/02/2020
ATIVIDADES NÃO
Atividades relacionadas às oficinas 2 horas
PRESENCIAIS
20 horas
TOTAL DA CARGA HORÁRIA

Observação: esta proposta não é uma ideia fechada. É um convite à construção coletiva em
conjunto com a equipe da Varal e com os outros participantes da pesquisa, sendo que todos
podem intervir nela com sugestões para uma composição comunitária, portanto, a programação
pode ser alterada antes e durante seu percurso.
133

DETALHAMENTO METODOLÓGICO

1º Encontro:
o Apresentação da proposta de pesquisa; assinatura TCLE/TALE e autorização de uso de
imagem e voz; critérios de participação, frequência e certificados; apresentação dos
participantes.
o Primeiras conversas para provocar os participantes a falarem o que eles entendem como
corpo e por que eles acham que esse tema é relevante para ser discutido. Nisso serão
traçadas as primeiras pistas para compor coletivamente as oficinas.
o Oficina de criatividade com o ilustrador João Paulo Rocetti, que objetiva abordar uma
concepção de corpo e mente integrados. Nesse momento surgirão algumas discussões
sobre como a arte pode ser uma ferramenta para abordar a temática principal dos
encontros.

2º Encontro:
o Momento de utilizar dinâmicas com arte para envolver mais o grupo na discussão
central e poder explorar as concepções de cada participante no coletivo.

3º Encontro:
o Dinâmica: Pedir a cada participante que extraiam de revistas e jornais aquilo que
simboliza ou descreve sua história e a forma como pensam o corpo a partir das nossas
discussões até aqui. Para isso, levaremos a artista Alice Kiefer, colagista capixaba, para
ministrar uma oficina de colagens, explicando como essa expressão artística pode ser
uma ferramenta política e de pronunciar a si e o coletivo.

4º Encontro:
o Provocação: todos os corpos poder fazer arte?
Novamente com o artista João Paulo Rocetti como convidado, faremos discussões sobre
como a arte é apresentada de maneira elitizada na nossa sociedade. Assim,
trabalharemos em um exercício que todos podemos fazer arte e nos expressar
artisticamente. O objetivo é pensar a vida como arte e buscar como colocar o corpo na
arte, nos processos criativos. Nessa oficina serão compartilhadas técnicas de produção
de uma zine – por ser uma ferramenta artística relativamente fácil de ser produzida,
134

economicamente acessível e com propósito de grande circulação. Cada participante


neste encontro comporá uma zine individual.

5º Encontro:
o Com uma atriz com experiência na área circense, realizaremos uma oficina de expressão
corporal com o objetivo de contagiar os participantes da pesquisa por meio de técnicas
e dinâmicas teatrais que os farão repensar os limites e usos do corpo.

6º Encontro:
o Curadoria coletiva para compor a zine.
No encontro de encerramento, os participantes produzirão relatos de experiências (da
maneira em que se sentirem confortáveis, seja oralmente, seja de outro modo) sobre as
vivências nesse coletivo, podendo manifestar as críticas e sugestões sobre as oficinas.
Além disso, escolheremos em conjunto quais produções vão compor a zine coletiva do
projeto.

Atividades não presenciais:


o A partir das provocações de cada encontro, os participantes serão convidados a construir
narrativas em formatos variados (prosa, poema, música, fotografia, gravuras, pinturas,
colagens e etc.) para se expressarem artisticamente acerca da potência do corpo – e essas
produções irão compor o produto educativo em formato de zine.

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