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Vitória
2020
LYSIA DA SILVA ALMEIDA
Vitória
2020
[Ficha catalográfica]
LYSIA DA SILVA ALMEIDA
COMISSÃO EXAMINADORA
COMISSÃO EXAMINADORA
Agradeço de coração e com a maior sinceridade ao meu orientador, Davis Alvim, escorpiano
que balançou minhas certezas virginianas desde o início, quando me acolheu – e não sei o que
seria de mim se não fosse sua orientanda! Obrigada por não me deixar desistir, por apostar neste
trabalho e por me mostrar que é possível uma relação de orientação sem autoritarismo e
hierarquia. Foi um prazer imenso construir contigo, não só pela grande admiração que tenho
por sua produção acadêmica e atuação como professor, mas também porque tive liberdade de
compor e avançar ao seu lado. Muito obrigada por me ensinar tanto!
Do mesmo modo, agradeço à Bel Rizzi, que mesmo não oficialmente foi quem coorientou este
trabalho com muitas contribuições e leitura atenta. Além disso, sem sua dissertação e suas aulas
no curso de História – UFES eu não teria me aproximado de autores que foram a base deste
texto. Eu me inspiro em você, e se a vida me fizer professora novamente, quero seguir seu
exemplo e criar uma sala de aula que seja um espaço de questionamento das verdades absolutas
instituídas pelo mundo acadêmico. Obrigada pela sua sensibilidade, dedicação e amizade.
Agradeço aos queridos professores que compuseram a banca de qualificação e retornaram para
a defesa. Jésio Zamboni, sempre com comentários astutos para discutir os autores, e que me
colocou muitos movimentos e reflexões nas palestras e reuniões pela vida, mesmo sem saber.
Kátia Castor, que me acompanha desde o primeiro semestre no mestrado, com tanta poesia,
afeição e aconchego. Obrigada aos dois por partilharem conhecimento e contribuírem para
minha trajetória, todos os comentários foram imprescindíveis para a construção do texto.
João, meu amor, meu companheiro de vida. Participou desta pesquisa em absolutamente todos
os momentos: desde os estudos para a prova de seleção e a escrita do pré-projeto; no meio do
processo, quando me ouviu explicar cada autor e texto lido; quando me viu chorando e
paralisada pelo medo de não conseguir; até o final, nas oficinas e na elaboração do produto –
em todos esses momentos só vi incentivo e carinho, jamais julgamento. Não sei como agradecer
à vida pelo nosso encontro… como nossos corpos se tornam potentes juntos! Eu te amo de um
jeito que explode e transborda ao mesmo tempo, e amo desenhar um mundo novo com você
todos os dias. Obrigada por ser um grande parceiro e me ajudar nesta pesquisa e em todo o
resto.
Minha mãe, Noelita, porque sonhou o mestrado comigo e que tantas vezes foi mais impaciente
que eu, agradeço pelo sustento e amor. Levi, que sempre reforço, é irmão e melhor amigo,
obrigada pela camaradagem, pelas conversas e por dividir comigo os anseios e as crises de riso.
Agradeço também à minha sogra, Giselle, e minha cunhada, Ana Eliza, por me receberem na
família com amor e me apoiarem nesses últimos anos. Amo vocês!
Também do mestrado, agradeço profundamente à Marcela Fraga pelo imenso carinho, por ser
tão cuidadosa, atenciosa, e pela coragem de ser rebelde, compondo saberes potentes que não se
submetem aos terrores da ciência rígida – foi uma delícia desobedecer com você! E, é claro,
agradeço à Ariane Guimarães, amiga sem a qual seria impossível concretizar este trabalho –
não tenho palavras para mostrar o quanto sou grata por sua preocupação, pelo seu apoio
emocional nos momentos difíceis e por acreditar em mim mais do que eu mesma.
Aos amigos que sempre fazem meu coração expandir de amor, Luana Vieira, minha caloura
duas vezes, e Thaynan Bandeira, agradeço pela amizade, pelos papos, desabafos, risadas, vinhos
e cervejas, que sempre me lembraram que há vida para além do mestrado, ou melhor, que o
mestrado faz parte da vida. Em vocês encontrei o equilíbrio para falar ao mesmo tempo dos
estudos, de política e de bobagens. Obrigada por terem discutido a pesquisa e participado dela,
cada um ao seu modo.
Aos colegas que participaram das orientações coletivas: Amanda, Antelmo, Bruno Lemos,
Bruno Lotéro, Camila, Isa, Ju, Nel, Sol, meu muito obrigada pela construção em conjunto!
Agradeço em especial à maravilhosa Poli Passos, que desconcertou muitas vezes os rumos desta
pesquisa com suas palavras cortantes, indicações de textos (inclusive literários) e comentários
ácidos, que modificaram profundamente minha vida e meu corpo. Obrigada por me ensinar que
pesquisar é um ato íntimo, pessoal e que traz prazer, mesmo sendo muito difícil.
Agradeço a todes estudantes e professores que compõem o Grupo de Estudos e Pesquisas em
Sexualidades (GEPSs), onde muitos questionamentos deste texto começaram a ser tecidos. E
porque foi ali que aprendi efetivamente que a pesquisa exige liberdade de pensamento.
Agradeço às pessoas que não nomeei mas que em algum momento se fizeram presentes, pois
carrego nessa dissertação muitas palavras de incentivo.
Nas concepções ocidentais, desde pelo menos a Modernidade, ressoa um entendimento de corpo
como algo restrito ao biológico, fragmentado, limitado, separado da mente e inferior a ela. No
entanto, filósofos como Baruch de Espinosa e Gilles Deleuze mostram que não sabemos do que
o corpo é capaz. Sob a ótica de que corpo é potência de afetar e ser afetado, esta pesquisa buscou
experimentar, por meio da arte, o que pode um corpo em contexto educativo. Assim, realizamos
oficinas artísticas de diversas frentes – de criatividade, de colagens, de zine, de expressão
corporal, entre outras, acompanhadas por artistas convidados – no Ponto de Cultura Varal
Agência de Comunicação, localizado em Itararé, Vitória – Espírito Santo. Ali reunimos pessoas
interessadas nessa experimentação, dando prioridade aos moradores da região Poligonal 1 de
Vitória, conhecida como Território do Bem. Sabemos que no capitalismo contemporâneo ainda
tenta-se dominar o corpo, moldando formas de vida fixas e enrijecidas, mas as fugas acontecem.
Por isso, movidos pelos encontros, exercitamos uma prática educativa que pretendeu traçar
resistências: apostamos na arte para ensejar outros modos de viver baseados em compor
alianças. Essa nova forma de vida é da ordem da criatividade, do afeto e do comum. Um dos
resultados da pesquisa foi a elaboração coletiva do produto educativo no formato zine, uma
espécie de livreto, que registrou as produções artísticas dos participantes da pesquisa que foram
feitas durante as oficinas, e também as lições que aprendidas nelas – com a função de ser uma
inspiração, ou melhor, um convite para que práticas educativas afirmativas se multipliquem.
O que se vê nesses trabalhos não é uma negação completa dos aspectos culturais que perpassam
o corpo, o que evidentemente seria uma proposição absurda no contexto das ciências humanas.
Porém, ao mesmo tempo, essa tradição manifesta uma busca pela “essência” do corpo, um
denominador comum que apareceria em todos os corpos de todas as sociedades, aquilo que está
imutável no interior, um aspecto considerado puro a partir do qual a cultura age. E essa noção,
não obstante, acaba por polarizar natureza e cultura.
O corpo não é homogêneo, é aliás atravessado por muitos elementos de ordem econômica,
social, política, cultural e subjetiva. De modo algum é “[…] um dado imutável, antes se
revelando na sua historicidade, sendo a origem e o resultado de um longo processo de
elaboração social” (CRESPO, 1990, p. 8). Também é contraproducente pensar como Carmen
15
Lúcia Soares (2004b) quando afirma que no corpo estão “[…] as últimas fronteiras a serem
desvendadas pela cultura” (p. 18). Ao contrário disso, queremos pôr em dúvida aquilo que é
aparentemente natural, e jamais tomá-lo como pronto e constituído, mas como um processo. É
“[…] inútil retroceder a um suposto grau zero das civilizações para encontrar um corpo
impermeável às marcas da cultura” (SANT’ANNA, 2005, p. 12).
Diante disso, não se pode conceber o corpo como como algo concreto, acabado em si mesmo e
pronto desde o nascimento (LOURO, 2000). Essa compreensão é uma redução do corpo a uma
simples constituição corporal: esse que se entende como puramente biológico, com funções
definidas, fragmentado, cheio de órgãos e submetido à mente. O que este trabalho quer sugerir,
diferente disso, é um corpo que não é só o meu ou o seu corpo, mas é um corpo como
experimentação.
Assim como mostra Gilles Deleuze (2002), Baruch de Espinosa já anunciou: não sabemos o
que pode um corpo. O que Deleuze mostra na companhia da escrita de Espinosa é um corpo
como modelo da filosofia prática, uma filosofia do corpo – ainda que o tempo todo tente-se
dominar o corpo e suas paixões, não se sabe do que ele é capaz. O corpo ultrapassa o
conhecimento que se tem dele (LINS, 2002). Ou seja, aqui não há a pretensão de definir o que
é um corpo, mas mais uma vez evocar o que a filosofia desses autores nos apresentou: o que
pode um corpo?
Temos pistas de que os corpos podem escapar ao controle em linhas de fuga, quando elaboram
outras formas de agir, sentir, pensar e estar no mundo. “Planos de fuga, deserções, nomadismos,
escapatórias; movimentos de resistência plurais, imprevisíveis, multicoloridos, inscritos nos
corpos” (MAÇÃO, 2016b, n.p.).
Deleuze coloca um papel de destaque no corpo durante sua obra, entendendo-o como algo que
não se opõe à mente, mas que é simultâneo a ela. Distante do corpo nas suas formas essenciais,
o filósofo pensa um corpo que é uma relação de forças, um corpo que experimenta, que se move
pela capacidade de afetar e ser afetado (BARBOSA, 2018). Desse modo,
Os afetos básicos, dos quais todos os outros derivam, são a alegria, que nada mais é
do que o aumento da capacidade de agir do corpo, e a tristeza, que consiste na
diminuição desta mesma capacidade. Os afetos são variações da capacidade de agir
do corpo, que pode ser ajudada ou impedida em seus encontros com outros corpos.
Além disso, há afetos passivos, ou paixões, sempre causados por outros corpos, e
afetos ativos, ou ações, dos quais o próprio corpo é a causa formal. As paixões podem
ser alegres ou tristes, mas as ações são sempre alegres, pois denotam necessariamente
um aumento da capacidade de agir do corpo. (BARBOSA, 2018, p. 872)
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Diante disso, esta pesquisa se guiou pelo objetivo geral de buscar a potência de um corpo que
experimenta com arte em um contexto de prática educativa. São muitos os questionamentos
que acompanharam esse querer: o que pode um corpo nos encontros com outros corpos? Como
pode o corpo afetar e ser afetado? O que pode um corpo em experimentação artística nos
espaços educacionais?
Portanto, os capítulos desta dissertação são estruturados de modo a dar conta dos objetivos
específicos da pesquisa. No capítulo “Inventando outros corpos possíveis”, tento rapidamente
investigar o aparecimento do corpo na produção teórica recente, a qual tem operado de modo
a produzir o discurso da dualidade entre corpo e mente, reforçando que o corpo pertence ao
local da natureza, da limitação e da inferioridade. Também aponto como essa concepção
filosófica ainda ecoa na sociedade. Na sequência, apresento uma discussão sobre as relações
de poder que tomam o corpo como alvo, para diante disso, refletir sobre as maneiras que um
corpo pode traçar as resistências. Assim, nessas discussões temos o primeiro e segundo
objetivo específico.
O capítulo “O que pode um corpo quando compõe um comum?”, acompanha outras formas de
pensar o corpo e aumentar sua potência, e visa a compreender como o corpo se coloca nos
processos educativos e atua de modo a escapar das capturas do poder, comportando assim o
terceiro objetivo específico. Na escrita, pretendi estabelecer uma relação com meu próprio
corpo quando se faz professora/pesquisadora e, seguindo essa proposição, registro as apostas
metodológicas.
O último objetivo específico deste trabalho foi construir junto a outros corpos participantes da
pesquisa um material educativo em forma de zine, onde registramos nossos aprendizados e as
produções artísticas (ilustrações, poemas, colagens etc.), originadas nesse percurso. As zines
são livretos sobre temáticas variadas, produzidas com baixo custo e de forma independente. Ao
longo do trabalho volto a explicá-las e a contextualizar a forma como foram desenvolvidas.
Este trabalho está inserido na área de Ensino 1. É comum encontrar na discussão acadêmica uma
diferenciação entre as categorias “educação” e “ensino”, onde se reduz esta a uma mera
transmissão de informações e apresenta aquela como uma formação geral. Ou seja, perspectivas
que entendem o ensino como um campo conteudista ou como um aspecto menor e específico
1
Nesse caso, refiro-me a Ensino como uma das grandes áreas de avaliação da CAPES – Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, encaixada no colégio multidisciplinar.
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vinculado à abrangência da educação. Aqui, uma redução assim não faz sentido, porque
compreendo as “[…] relações entre educação e ensino com base na ideia de enredamento entre
elas” (OLIVEIRA et al., 2012, n.p.).
Desse modo, ora utilizo o termo ensino, ora utilizo educação, mas em ambos os casos tentando
expressar o sentido de ensinoeducação, ampliando os significados dos termos sozinhos e
apontando um caminho possível, o qual aposta nas relações complexas que se formam nas redes
educativas, justamente “[…] porque na constituição das ações educativas cotidianas […] há
sempre e permanentemente ensino e educação, educação e ensino, indissociáveis um do outro”
(OLIVEIRA et al., 2012, n.p.).
Assim, para construir parte dessa prática, me aproximo de um espaço educativo com relevância
social e cultural, o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação, localizado no mesmo
bairro em que moro, Itararé, em Vitória, no Espírito Santo, para com a população da região
Poligonal 1, conhecida pelos moradores como Território do Bem, construir uma
experimentação, por meio da qual uma série de encontros se compõe para pensar sobre um
corpo e um comum.
2
A autora Glória Jean Watkins usa esse pseudônimo nos trabalhos acadêmicos e recomenda que seja grafado em
letras minúsculas, promovendo uma transgressão nas normas linguísticas com a mensagem de que o foco é o texto,
e não quem o escreve.
3
A escolha dessa nomenclatura se deu também porque o trabalho está inserido na linha de pesquisa Práticas
Educativas em Ensino de Humanidades. No Regulamento do PPGEH há a definição: “Práticas Educativas em
Ensino de Humanidades: trata-se da investigação, no campo do ensino de humanidades, que aborda a práxis
educativa em suas diversas formas em espaços educativos formais ou não formais de educação, com o objetivo de
produzir material educativo voltado para o ensino, a ser utilizado por educadores, nas mais diversas circunstâncias”
(PROGRAMA ..., 2017, p. 2).
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Para registrar as produções dos participantes das oficinas, houve a confecção de uma zine
chamada “Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal” 5. Esse material
inicialmente seria apenas uma espécie de exposição artística das produções feitas nos encontros,
mas a partir das provocações da banca de qualificação, ele se transformou em algo que vai além,
e agora traz também marcas de alguns aprendizados que atravessaram a mim e aos outros
participantes. Apesar disso, nele não houve a intenção de traçar um roteiro de como conduzir
oficinas, mas antes, abrir possibilidades de criação que podem motivar experimentações
educativas em outros espaços.
A escolha de falar sobre corpo nos encontros se deu porque esse assunto me toca de modo muito
íntimo e particular. Esse corpo que por tanto tempo no saber acadêmico foi “[…] confinado às
margens, às fronteiras, às zonas de sombra, às alcovas e aos cantos” (DEL PRIORE, 1994, p.
49). Por muito tempo também coloquei meu próprio corpo num local de esconderijo, mas
escrever sobre isso é estar exposta às marcas e cicatrizes que carrego. E mais, ao fazer isso,
acabo por “[…] reabri-las, para delas e com elas me colocar na e pela escrita, e, assim,
(re)atualizar-me. (Re)atualizar, portanto, as marcas e as cicatrizes, compondo assim, um outro
corpo” (SILVA, 2010, p. 21).
Nesse sentido, se “[…] a história do corpo faz pouco caso das fronteiras, sejam estas nacionais
ou disciplinares” (COURTINE, 2008, p. 11), aos moldes de Glória Anzaldúa (2010) afirmo que
“para viver nas fronteiras / é preciso viver sem fronteiras / ser uma encruzilhada” (p. 113). Fazer
do corpo uma encruzilhada é compreender as tensões que se dão nas bordas e periferias, que
4
O detalhamento das oficinas, com as temáticas, carga horária e outras informações importantes está no Apêndice
A.
5
A zine está disponível em formato físico na biblioteca do IFES campus Vitória e na sede da Varal. Seu formato
digital (e-zine) pode ser encontrado no site do PPGEH, na seção de produtos educacionais.
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questionam os limites fixos e de aprisionamento que se atribui a ele, e assim, construir outros
significados.
Sei que esse exercício não se tece de modo solitário, mas apenas num fluxo de muitos corpos
que se relacionam nos encontros. Por isso este trabalho carrega não só a mim e minhas
experiências, mas também as vozes de autores, professores, colegas, obras de arte, museus,
ruas, becos, praças, morros, vielas, filmes, músicas, paisagens, viagens, poesias e, enfim, tantos
acontecimentos que o permitiram ser escrito. Este não é o meu6 corpo, este é um corpo da
multidão.
6
É importante ressaltar que parte da introdução foi escrita na primeira pessoa do singular. Mas devido ao que foi
dito aqui outros trechos do trabalho também serão grafados em primeira pessoa do plural, e essa variação se fará
necessária de acordo com o contexto do que está escrito.
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No filme Her (2013), a personagem Samantha é um sistema operacional (OS) com inteligência
artificial que vive um relacionamento amoroso com Theodore, um humano. Ela expressa várias
vezes seu desejo de possuir um corpo, como se apenas isso fosse capaz de lhe conferir uma
experiência completa, não apenas no romance, como também no mundo. Samantha é um
sistema complexo: possui intuição, personalidade e a habilidade de crescer com os aprendizados
e evoluir a cada momento. A personagem afirma-se como uma consciência. Contudo, sua
incorporeidade é o problema central na história porque, para ela, configura a impossibilidade
de estar viva. É evidente que, nesse caso, a narrativa se constrói em torno do humano biológico
como referencial a ser alcançado.
Entretanto, na contramão dessa personagem do filme, a qual coloca no corpo uma expectativa
positiva, podemos notar que, historicamente, se estabeleceu na filosofia ocidental uma tradição
dualista que opõe natureza e cultura. Essa polarização se expressa na noção de que o corpo e a
mente estão separados, sendo o corpo local daquilo que é passageiro, das penitências, do pecado
e de aprisionamento. A mente, por sua vez, seria onde está a razão e o intelecto (HOOKS, 2013).
Distante disso, pensamos aqui que o corpo está para além de sua redução ao biológico e supera
o dualismo corpo/mente:
O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo superior – uma alma imortal, o
universal, o pensamento – mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da
qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É essa a
grande virtude da nossa definição: não faz sentido definir o corpo diretamente, só faz
sentido sensibilizá-lo para o que são esses outros elementos. Concentrando-nos no
corpo, somos imediatamente – ou antes, mediatamente – conduzidos àquilo de que o
corpo se tornou consciente. (LATOUR, 2008, p. 39)
Para nós, trata-se de um corpo que se produz nas experimentações. Peter Pelbart (2008a), a
partir de Gilles Deleuze, afirma que “[…] um corpo não cessa de ser submetido aos encontros,
com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes – um corpo é primeiramente
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encontro com outros corpos, poder de ser afetado” (p. 12). Corpo não é exatamente algo que
possuímos ou somos, é algo que fazemos – um corpo é algo que fazemos juntos7.
Deleuze diz que Baruch de Espinosa tem duas definições de corpo: “A definição cinética será:
todo corpo se define por uma relação de movimento e de repouso. A definição dinâmica é: todo
corpo se define por certo poder de ser afetado” (DELEUZE, 2019, p. 293). Portando, olhar para
o corpo como poder de ser afetado é compreender que em nós se sucedem ideias em todos os
momentos, e “seguindo esta sucessão de ideias, nossa potência de agir ou nossa força de existir
é aumentada ou diminuída de uma maneira contínua, sobre uma linha contínua; e isto é o que
nós chamamos afeto, o que nós chamamos existir” (DELEUZE, 2019, p. 42).
Espinosa mostra que o corpo está em constante encontro com outros corpos, de modo que nesses
encontros um corpo produz ações ou efeitos sobre o outro, causando uma mistura de corpos,
estado que chama de afecções. A afecção é uma marca de um corpo sobre outro. Esses encontros
entre os corpos podem ser maus, e produzir paixões tristes; ou bons, e produzir paixões alegres.
A alegria e a tristeza, nesse caso, não se referem exatamente aos sentimentos, mas à potência
de ação do corpo: um bom encontro é o que aumenta a potência de agir, e gera alegria; do
mesmo modo, um mau encontro diminui a potência de agir, gerando tristeza. Nesse sentido, é
necessário fazer os encontros que nos convém (DELEUZE, 2019).
Pensar o corpo a partir de uma ética dos afetos é perguntar de que ele é capaz: o que pode? Ou
seja, não temos tanta preocupação em definir o corpo, até porque com essa filosofia aprendemos
a não definir as coisas por sua essência, pelo que elas são, mas por sua potência, pelo que elas
podem (DELEUZE, 2019).
Trata-se de definir as pessoas, as coisas, os animais, qualquer coisa, pelo que cada um
pode. As pessoas, as coisas, os animais, se distinguem pelo que eles podem; isto é,
eles não podem a mesma coisa. O que eu posso? Jamais um moralista definirá o
homem pelo que ele pode, um moralista define o homem pelo que ele é, pelo que ele
é em direito. Então, um moralista definirá o homem por animal racional. É a essência.
Espinosa jamais define o homem como um animal racional, ele define o homem pelo
que ele pode, corpo e alma. […] No nível do animal, vemos muito bem o problema.
Se vocês tomam o que chamamos história natural, […] Ela define o animal pelo que
o animal é. Em sua ambição fundamental, trata-se de dizer o que o animal é. O que é
um vertebrado, o que é um peixe, e a história natural […] está cheia dessa busca da
essência. […] Imaginem estes tipos que chegam e procedem completamente de outro
modo: interessam-se pelo que a coisa ou pelo que o animal pode. Eles vão fazer uma
espécie de registro dos poderes do animal. Este pode voar, aquele come erva, tal outro
come carne. O regime alimentar, vocês sentem que trata-se dos modos de existência.
7
Essa frase é uma referência, ou melhor, uma apropriação de um trecho encontrado no texto “Transfeminismo”,
de Paul B. Preciado, onde ele diz: “Gênero é algo que fazemos, não algo que somos – algo que fazemos juntos.
Uma relação entre nós, não uma essência” (PRECIADO, 2015, p. 4).
22
Uma coisa inanimada também, o que é que ela pode, o diamante, o que ele pode? Ou
seja, de que experiências é capaz? O que suporta? O que ele faz? […] Definimos as
coisas pelo que elas podem, o que abre às experiências. É tudo uma exploração das
coisas, que não tem nada a ver com a essência. É preciso ver as pessoas como
pequenos pacotes de poder. Eu faço uma espécie de descrição daquilo que podem as
pessoas. (DELEUZE, 2019, p. 139)
Nossa pergunta central sempre se voltará para o que pode um corpo. Ainda assim, é interessante
traçar alguns entendimentos sobre ele. Dessa maneira, afirmamos que o corpo é uma construção
social e discursiva. Contudo, não queremos repetir o caminho de determinados construtivismos,
demonstrado por Francisco Ortega (2010), que recaíram na tradição que pretendiam criticar
quando colocaram o corpo como lugar onde a cultura se inscreve, como se fosse um receptáculo
das significações, e desse modo, acabaram por afirmar que há algo de essencial nele.
A aposta aqui, desse modo, é escapar dessas concepções que soam como armadilhas, e não nos
render ao essencialismo nem ao construtivismo. Entendendo, de acordo com Guacira Lopes
Louro, que, na verdade, as redes discursivas inventam um real. Isso não significa que o corpo
material não exista, mas apenas indica que o corpo é uma fabricação: não pode ser entendido
como um elemento pré-discursivo e estritamente natural (LOURO, 2000). O corpo é um sujeito
e objeto histórico, e como certa teoria da história nos mostra, os sujeitos históricos não têm
essência, eles se fazem sujeitos no momento em que atuam na relação e, portanto, não estão
prontos no início da ação, não têm um sentido dado a priori (ALBUQUERQUE-JÚNIOR,
2007).
De modo que nessa produção ele ganha o que Guacira Lopes Louro (2000) chama de marcas,
isto é, as características de distinção entre cada corpo. Isso significa que cada sociedade, em
seu tempo histórico, elege determinadas partes do corpo como relevantes para conferir
inteligibilidade aos indivíduos. Nossa sociedade, por exemplo, diz que a vagina, o pênis e a cor
da pele são partes corpóreas tão importantes que definem verdades sobre o sujeito, de modo
que a partir desses traços a identidade (e também a diferença) é construída.
A autora questiona os motivos de serem essas as características fundamentais para nós, e não
outras, como o tamanho das orelhas ou o formato das mãos, por exemplo. E nisso, podemos ver
notadamente que são as relações de poder que engendram algumas características, colocando-
as com mais valor do que outras. Os corpos são inscritos por marcas da cultura, marcas que
falam dos sujeitos – há a necessidade de compreender a verdade do outro: saber o gênero, a
raça, a sexualidade, acessar uma identidade (LOURO, 2000). Todavia, essas marcas se
transformam ao longo do tempo, e por isso o corpo não está fechado e acabado em um
entendimento restrito. O que nos interessa a partir disso é questionar determinados valores
impostos ao corpo que, na nossa perspectiva, têm se amparado em violências.
Uma dessas violências apareceu no contexto europeu, na Idade Moderna, quando o corpo
passou a ser visto como traço de demarcação de uma certa humanidade, uma “[…] possibilidade
de ser um território de preservação do humano factível […]” (SOARES, 2004a, n.p.). Sabemos
que o corpo é aberto, mutável e disforme, mas não podemos negar que esteve e ainda está sob
uma concepção regulamentária que se ampara em uma noção normativa de humano
(WIRCKER; KIFFER, 2014).
Ou seja, a Modernidade europeia criou a imagem de determinado corpo e conferiu a ele uma
visibilidade universal, como se representasse o humano: um humano específico e regido por
uma normalidade, isto é, uma categoria de humano excludente (TUCHERMAN, 1999). Foi a
partir dessa conjuntura que se enxergou determinados corpos como dignos desse status de
humano e outros não, como bem explica Paul B. Preciado:
Não sem motivo, portanto, tantas populações nesse período da história não foram consideradas
humanas e, aliás, foram representadas como seres bestiais, sem alma, animais ou demônios,
como foi o caso dos ameríndios (FEDERICI, 2017). Na tentativa de definir aquilo que é inerente
ao ser humano, opera-se um exercício de diferenciação entre as espécies. Disseca-se corpos,
desenha-se teorias, cumprem-se análises a partir de muitos métodos para buscar o que nos torna
uma espécie superior às outras, o que compõe nossa humanidade.
E ainda que essa distinção se estabeleça pela afirmação de uma racionalidade que, em tese, os
outros animais não possuam, com frequência os mecanismos que nos demarcam como humanos
são estabelecidos a partir de alguma característica supostamente intrínseca aos corpos. Vemos,
portanto, que tanto no passado como na atualidade, isso se dá pelos
“[…] processos de assujeitamento, isto é, buscando apropriar-se de uma multiplicidade de
corpos e modos de vida, e, ao mesmo tempo, pedindo aos ‘homens’ que afirmem-se enquanto
tais, reiterando o discurso que os assujeita” (WIRCKER; KIFFER, 2014, n.p.).
Entre as ditas essências que são procuradas para demarcar aquilo chamado de humanidade,
muitos recorrem ao corpo; seja aos aspectos biológicos ou até mesmo às características
subjetivas – que teoricamente estariam resguardadas dentro de uma materialidade orgânica
específica. Esses atributos corporais serviriam para diferenciar os humanos das outras espécies
e, sem dúvidas, colocam-no como superior a elas. Com efeito, Felipe Wircker e Ana Kiffer
(2014) mostram que os limites do que é considerado humano são instáveis, e a todo momento
fogem e se redefinem. Diferente do que se propôs no passado, acreditamos que o corpo não
guarda indícios de uma pretensa humanidade, porque a própria categoria de humanidade é uma
produção que exclui corpos.
O corpo não guarda em si as marcas que definem a categoria de humanidade, como também
não possui em si uma naturalidade estrita, e por isso nos interessa problematizar o que se
pretende natural nele. Como dito, por muito tempo entendeu-se que o corpo possui uma
naturalidade essencial que é sobreposta pela cultura. No entanto,
25
Em uma atualização do conflito entre natureza e cultura, Preciado (2014a) enfatiza que hoje
opera-se uma oposição entre a natureza e a tecnologia. Essa tecnologia de que fala o autor se
trata de “[…] um dispositivo complexo de poder e de saber que integra os instrumentos e os
textos, os discursos e os regimes do corpo, as leis e as regras para a maximização da vida, os
prazeres do corpo e a regulação dos enunciados de verdade (PRECIADO, 2014a, p. 154).
A ação da tecnologia, portanto, reside em produzir a natureza, ou seja, inventa a ideia de que
existem artefatos puramente naturais e intocados por outras instâncias. Desse modo, se falseiam
muitos antagonismos: “O termo tecnologia (cuja origem remete à techné, ofício e arte de
fabricar, opondo-se a physes, natureza) coloca em funcionamento uma série de oposições
binárias: natural/artificial, órgão/máquina […]” (PRECIADO, 2014a, p. 147).
Mais do que apenas inverídica, a separação entre natureza e cultura (ou natureza e tecnologia)
é também injustificada, já que foi historicamente usada de modo que determinados grupos de
pessoas – especialmente provenientes da cultura ocidental – dominassem a natureza, os animais
e também outros grupos de pessoas que são enquadrados nesse espaço. Preciado (2014a) afirma
isso enfatizando que, ao longo da história, alguns pensamentos reduziram determinados corpos
a um natural estrito, para que assim se tornassem passíveis de sujeição. O autor também expõe
como, no contexto da colonização do dito Novo Mundo, o corpo masculino branco europeu,
esse que seria supostamente detentor da cultura, era visto como possuidor de uma razão, e que
por isso deveria domesticar a natureza, domá-la e dominá-la.
E, de fato, esse corpo se utilizou de tal concepção para que outros corpos (femininos e
racializados, por exemplo), fossem colocados em um lugar de inferioridade, como corpos sob
um signo de uma natureza sem razão e, portanto, aculturados. Para explicar isso melhor,
Preciado parte dos estudos de Donna Haraway, e explica que o discurso colonial colocou os
povos indígenas como parte do mundo natural por não terem os mesmos aparatos tecnológicos
que os colonizadores conheciam e, sendo assim, pela lógica colonizadora, poderiam ser
explorados como a natureza (PRECIADO, 2014a).
Isso quer dizer que houve uma construção de verdades que pretenderam situar determinados
corpos nesse lugar dito natural. Esse enunciado, portanto, tentou apresentar que o domínio dos
corpos subalternos é de uma ordem imutável, como se determinados corpos precisassem
26
Desse modo, o que nos move “[…] não é a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é mais
o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos a outros” (PRECIADO,
2014a, p. 21). Compreendemos que até nossas características mais “naturais” estão entranhadas
pelo social e tecnológico, e assim sofrem transformações constantes ou, ainda, fabricações
constantes. Diante disso, não há possibilidade de demarcar precisamente o que é um corpo
natural e o que é tecnologia artificial, justamente porque a tecnologia não é aquilo que modifica
a natureza dada, mas aquilo que produz essa natureza:
Além disso, ainda que a distinção entre natureza e cultura esteja totalmente fincada na
cosmovisão ocidental, podemos, com as devidas críticas, versar sobre os modos como outras
sociedades percebem-na. Eduardo Viveiros de Castro (2004) indica que no pensamento
ameríndio as categorias “natureza” e “cultura” “[…] são parte de um mesmo campo
sociocósmico” (p. 234). Na perspectiva de algumas sociedades indígenas, portanto, diferente
do que foi estabelecido pelo pensamento europeu, não é a cultura que é mutável e age diante de
uma natureza fixa, mas o contrário: a natureza é múltipla e a cultura é una. Ou seja: “Uma só
‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 239).
Para exemplificar esse modo de ver o mundo, olhamos para a corporalidade das sociedades
amazônicas, ou melhor, para a centralidade que o corpo assume no perspectivismo indígena. O
que Viveiros de Castro (2004) demonstra é que o corpo, para tais grupos, é um modo de ser,
aquilo que está entre a materialidade e a subjetividade, um conjunto de capacidades e afecções.
A diferença entre os corpos para esses indígenas só aparece do ponto de vista exterior, isto é,
todos os seres enxergam o mundo da mesma forma, o que se transforma na verdade é o próprio
mundo:
27
Os animais veem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus
corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologia
— quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos —,
mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o
que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou
solitário… A morfologia corporal é um signo poderoso dessas diferenças de afecção,
embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar
ocultando uma afecção jaguar. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 240, grifos
nossos)
Quando o autor se refere à morfologia corporal ocultar uma afecção, está dizendo que para
alguns grupos indígenas, os corpos podem sofrer transfigurações. Nessa concepção, os animais
se veem como gente, e a forma corpórea apresentada pelas espécies esconde a forma humana
interna, que apenas a própria espécie ou os xamãs podem enxergar. Mas isso não indica que na
compreensão indígena há uma essência verdadeira e uma aparência falsa. O corpo transforma
metafisicamente a identidade de quem o veste não para ocultar a essência humana, mas para ser
um instrumento no mundo (VIVEIROS DE CASTRO, 2004).
Além disso, outra característica interessante do entendimento ameríndio sobre o corpo é de que
ele não assume, de imediato, o estado de acabado. A sociedade xinguana, por exemplo, vê a
necessidade da fabricação contínua dos corpos: o corpo precisa se submeter a processos de
feitura, que são constantes e intencionais. Esses processos se relacionam com intervenções
sobre o corpo, que entre outras coisas, consistem nos alimentos que recebe, nos fluidos que
28
pode ou não expulsar e nas tinturas que são marcadas na pele. As mudanças experimentadas
pelo corpo causam mudanças na posição social do indivíduo (VIVEIROS DE CASTRO, 1987).
Nas palavras do autor, o social não se deposita em um corpo inerte, como em geral o ocidente
compreende; para os ameríndios o social de fato cria o corpo: “Desta forma, a natureza humana
é literalmente fabricada, modelada, pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela
sociedade (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 40, grifos do autor). Viveiros de Castro (2004)
completa: “A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito: não há
mudança ‘espiritual’ que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de
suas afecções e capacidades” (p. 247).
Desse modo, mais uma vez aproximando a discussão do corpo ao estatuto da humanidade,
percebemos que no ocidente, essa condição é ambígua: a humanidade é também uma espécie
animal, de modo que a animalidade abarca os humanos, mas ao mesmo tempo, a humanidade
não compreende em si os animais, porque é uma condição moral excludente. Assim,
“[…] nossa cosmologia imagina uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica
entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza,
a segunda, das ciências da cultura” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 241).
Enquanto ocidentais, demarcamos o espírito para nos diferenciar do restante dos animais: o
espírito é a parte que singulariza os humanos entre si e os coloca acima dos bichos. Já o corpo
seria o que nos integra, conecta-nos aos outros seres vivos, e por isso resguardaria em si uma
natureza última dos corpos materiais. Para os ameríndios, por sua vez, o que prevalece é uma
continuação metafísica e uma descontinuidade física. Ou seja, “O espírito, que não é aqui
substância imaterial mas forma reflexiva, é o que integra; o corpo, que não é substância material
mas afecção ativa, o que diferencia” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 242). É evidente que
nessas discussões os pontos de vista ameríndio e ocidental não são compatíveis:
Todavia, diante de tudo isso, chama-nos a atenção que a forma como percebemos o corpo e nos
relacionamos com ele nos parece tão natural porque já está incorporada pelo nosso modo de
vida, e isso modela nossa sensibilidade. Essa naturalidade fabricada e falseada é uma expressão
de que o controle recai sobre o corpo, e tenta naturalizar aquilo que de modo algum pode ser
29
dito como natural; ou seja, “[…] nossos gestos mais ‘naturais’ são fabricados pelas normas
coletivas” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2008, p. 7). Tais normas que atingem os
corpos são os “[…] dispositivos socioculturais, semióticos, tecnológicos, econômicos, morais
etc., que funcionam atualmente de maneira a monitorá-lo, regulá-lo, modelizá-lo, enfim,
controlá-lo, reduzindo o corpo a um insípido organismo” (LINS; GADELHA, 2002, p. 10).
Sem dúvidas, o corpo vem ao longo da história sendo submetido ao adestramento e à disciplina,
em sucessivas crueldades que são impostas a ele, de modo que ele se encontra no limite da
impotência. Todavia, perguntamos o que pode um corpo; pois estamos certos que o corpo
experimenta a potência de resistir. Podemos até dizer que o corpo não aguenta mais tantas
investidas sobre ele, mas, que ainda assim buscamos a potência do corpo, porque
paradoxalmente, isso não indica sua fraqueza, mas ao contrário, exprime a potência que o corpo
tem de suportar, e além disso, criar novas possibilidades. Como mostra David Lapoujade
(2002), o corpo está desde sempre resistindo à organização que tenta lhe impor uma alma, e
nisso revela uma potência própria. Quer dizer, quando se pergunta o que pode o corpo,
concebemos uma potência própria ao corpo.
Isso posto, neste capítulo apresentamos nosso entendimento de corpo e, propomos a partir disso,
um olhar para a maneira como essa categoria emergiu na produção teórica; recuperando
brevemente os modos como as relações de poder historicamente atuam sobre o corpo; além de
reforçar as possibilidades de construir resistências a partir dele.
Segundo a autora, ao se tratar especificamente da História, o corpo entra como objeto de estudo
de maneira relevante a partir da Nova História, corrente que se iniciou na década de 1970,
quando os historiadores passaram a olhar com mais atenção para a vida cotidiana como fonte
de suas produções. Com isso, nas discussões sobre o passado começaram a aparecer os hábitos,
30
Pensamos o corpo como um objeto da História, e nesse sentido aqui o compreendemos como
inventado também por discursos históricos. Não nos centramos em uma história das ideias sobre
o corpo, a qual persegue os significados que foram atribuídos a ele em cada momento – ainda
que utilizemos autores que partem dessa concepção, pois, afinal, suas reflexões são válidas.
Contudo, queremos, na verdade, mostrar que o corpo é um objeto que se dá nas relações, e é
atravessado por fatores culturais, econômicos, subjetivos, e de outras ordens, todos localizados
historicamente. Portanto, falar sobre corpo e as relações sociais com ele em diferentes
sociedades e períodos, indica que as teias discursivas em cada temporalidade produzem
concepções diferentes sobre o corpo, e diferentes modos de interpelá-lo.
Desse modo, utilizar uma história que admite seu aspecto inventivo nos objetos que investiga é
interessante para nosso trabalho, pois, como afirma o historiador Durval Muniz de Albuquerque
Junior (2007), os “objetos e sujeitos se desnaturalizam, deixam de ser metafísicos e passam,
pois, a ser pensados como fabricação histórica, como fruto de práticas discursivas ou não, que
o instituem, recortam-nos, nomeiam-nos, classificam-nos, dão-nos a ver e a dizer” (p. 21).
história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que as
inventam. (ALBUQUERQUE-JÚNIOR, 2007, p. 29)
Dessa maneira, não nos interessa descrever precisamente uma cronologia, estabelecer uma linha
do tempo, nem tampouco descobrir a origem de cada corrente que versou sobre o corpo. Apenas
elencamos algumas percepções na história ocidental que enfatizam uma dicotomia entre corpo
e mente e a redução do corpo à esfera da natureza. Sem a pretensão de dar conta da imensa
complexidade que esse assunto comporta, pretendemos olhar para os rasgos, as exceções,
diferenças, descontinuidades e singularidades que emergem ao longo do tempo, e que assim
questionam a universalidade das ideias e teorias, mostrando uma multiplicidade na escrita da
história e nos acontecimentos históricos em si.
Ademais, acerca do corpo, esse processo não é diferente e, justamente por isso, para
compreender as relações com o corpo na sociedade contemporânea, é fundamental se desdobrar
sobre os modos como ele foi visto e vivido no passado. Também cabe perceber como teorias e
correntes filosóficas há muito tempo tomaram-no como objeto de disputas narrativas, tentando
impor verdades sobre ele – algumas das quais pretendemos questionar, como já adiantamos, a
de que ele pertence à esfera de uma natureza irrestrita, ou de que é submetido à mente.
Sabemos, portanto, que cada grupo social, em sua época, enxerga o corpo de modos diferentes
e isso atinge a maneira como os indivíduos se relacionam com ele. Ou seja, há uma grande
dificuldade em tentar recuperar o conceito de corpo, porque historicamente ele se transforma
(FONTES, 2004). O corpo já foi e ainda é visto de formas muito diferentes, e até contraditórias.
Prova disso é que, dentre as muitas correntes de pensamento no mundo Antigo ocidental,
algumas viam-no como uma extensão do cosmo, ou melhor, um microcosmo inserido em um
macrocosmo. O corpo, nesse sentido, não era entendido como uma entidade autônoma, mas sim
como constituído pelos quatro elementos formadores do mundo natural: água, fogo, terra e ar.
Essa concepção via no corpo uma íntima relação com a natureza, e por isso entendia que sua
saúde dependia de fatores externos como o clima e as estações (SOARES, 2004b).
32
Dessa maneira, essa nova ordem social desenha também uma nova concepção sobre o corpo,
baseando-se em uma filosofia mecanicista. Com objetivo de sujeitar o corpo ao trabalho,
controlá-lo esvaziando-o de suas forças e organizá-lo de modo racional, a corporalidade se torna
alvo de ataques e violências. Nesse contexto, a ideia de um corpo mecânico e produtivo para o
ofício surge e ganha ênfase, reduzindo-o a uma ferramenta passível de manipulação,
principalmente laboral (FEDERICI, 2017a).
O objetivo, com isso, era a construção de um corpo apropriado para o trabalho e reduzido apenas
a essa função, segundo Silvia Federici (2017a). Sob essa óptica, o domínio do corpo e o
autocontrole deveriam estar na mira do modelo de homem moderno, com a repressão dos
desejos e emoções para obter resultados práticos, de modo a se tornar de fato uma máquina de
trabalho. Alguns filósofos tentaram reduzir o corpo a uma matéria mecânica, e no caso de René
Descartes havia também a tentativa de demarcar uma separação abrupta entre o domínio mental
e o físico numa divisão ontológica. Para esse pensador, o corpo deveria ser conquistado nos
aspectos mais íntimos para que a alma se liberasse do condicionamento corporal e pudesse ter,
efetivamente, a soberania sobre o corpo (FEDERICI, 2017a).
A partir dos estudos de Nobert Elias, Federici (2017a) mostra que também nesse momento da
história o corpo se torna alvo de práticas na esfera da vida cotidiana, e não apenas nas discussões
filosóficas e ideológicas. A criação das noções de higiene, etiqueta e boas maneiras se
34
incorporam nos hábitos e um novo modo de se relacionar com o corpo é traçado, o que envolve,
por exemplo, o uso dos talheres à mesa; atenção à formas de se comportar nos gestos, risos,
bocejos; a prudência com a nudez; e uma série de outras intervenções sobre funções corporais
que em períodos anteriores dessa sociedade não tinham tanta atenção (FEDERICI, 2017).
Segundo Federici (2017a), essas mudanças de hábitos colocaram as pessoas diante de sua
animalidade, o que reforçava um cuidado cauteloso com o corpo para discipliná-lo a uma ordem
mais domada: “na medida em que o indivíduo se dissociava cada vez mais do corpo, este último
se convertia em um objeto de observação constante, como se se tratasse de um inimigo. O corpo
começou a inspirar medo e repugnância” (FEDERICI, 2017a, p. 281).
O mundo ocidental foi aos poucos sendo tomado por artefatos tecnológicos, teorias científicas
e concepções filosóficas que, ao agir nas sensibilidades, produziu uma corporalidade abstrata,
e tal qual os espaços do mundo explorado pelos mapas são independentes entre si, o corpo físico
na modernidade foi tido como mensurável sob um eixo de coordenadas. Esse exemplo mostra
que foi construído no período moderno o paradoxo de um corpo desencarnado, regido por leis
imutáveis, inserido na lógica reducionista de causa e efeito e, desse modo, os modernos
concebem a mente como uma atividade racional apenas, avulsa do corpo e superior a ele
(NAJMANOVICH, 2001).
Ou seja, as formas de viver de uma época estão relacionadas às formas de ver o corpo, e mais
do que isso, se relacionam, principalmente, com os mecanismos de controle que recaem sobre
ele em cada um desses contextos. Se no medievo o corpo foi criatura de Deus e lugar da finitude
pecaminosa, o mundo objetivo, obcecado pelo método e pela fantasia da neutralidade científica,
traçou nele uma separação da experiência e das emoções. A visão cartesiana expressa o sujeito
moderno, abstrato e universal, que moldou o jeito de pensar e se relacionar com o mundo, e dá
outra dimensão ao problema corpo-mente, agora apresentado de maneira mais intensa e radical:
o corpo é regido por leis imutáveis, ainda inferior e submetido à mente, que por sua vez é palco
da racionalidade (NAJMANOVICH, 2001).
Evidente que o corpo na Modernidade permanece com referências sagradas, seja por elementos
cristãos que perduram nas sociedades europeias, seja pela presença de curandeiros, feiticeiras e
da medicina popular que ainda tem uma enorme presença nesse contexto (VIGARELLO, 2008).
No entanto, a filosofia mecanicista deste período promoveu uma intensa repulsa à associação
de elementos mágicos ao corpo. A magia esteve presente desde o medievo na Europa, mas a
35
Além disso, a crença de que elementos da natureza e o próprio corpo guardavam em si virtudes,
ou no conceito de um corpo como receptáculo de poderes mágicos, dentre muitas outras
concepções relacionadas à magia, poderiam afastar as pessoas do mundo que se delineava agora
baseado no trabalho, na ciência e no método. Assim, uma série de intervenções estatais
perseguiu crenças e sujeitos, e acreditar em magias tornou-se uma insubordinação, uma
incompatibilidade com a disciplina requerida; a magia naquele contexto representava uma
ameaça social de impedir o processo de mecanização do corpo (FEDERICI, 2017a).
Por isso, a partir das modificações sociais relacionadas à Renascença e às Luzes, o corpo de
certa forma se distancia do misticismo, e é alvo de uma dupla tensão, que o singulariza, mas
também coloca imposições coletivas. A modernidade versa sobre os desejos e produz um corpo
que se preocupa com a duração da vida, o que exige a autovigilância dos gestos, ou seja, uma
vida íntima regrada, e enfim, cerceada pela compostura (VIGARELLO, 2008).
Todavia, como repetido aqui, a História não é uma simples sucessão de acontecimentos, e nem
de longe eles são sequenciais, organizados e contínuos. A história é movimento, ação criativa,
invenção, e por isso as descontinuidades e imprevisibilidades operam nela (ALBUQUERQUE-
JÚNIOR, 2007). Isso é provado quando pensamos que ainda na Modernidade, no século 17,
emergiu uma filosofia que trouxe a quebra do pensamento estabelecido quando Baruch de
Espinosa anunciou a insignificância da dicotomia entre corpo e alma.
Para o filósofo, a alma é a ideia do corpo – e não há mais ideia quando não há corpo. Ou seja,
cada afecção do corpo contém em si uma ideia da alma. Nesse sentido, a alma exprime as
afecções do corpo sob a forma de ideias, mas não as causa. Segundo Daniel Lins (2002), não
existe, para Espinosa, uma supremacia ou dominação de mente sobre o corpo ou o contrário,
porque o poder da alma não é maior que o do corpo, e sendo assim, não há como o corpo querer
algo e a mente querer outra coisa, não há luta entre a razão e as paixões.
Federici (2017a) aponta que enquanto tantos filósofos do século 17, como Descartes, diziam
que nós não somos o corpo e duvidavam que o corpo poderia pensar, afirmando uma soberania
da mente sobre ele, Luiz Renato Paquiela Givigi (2019) nos lembra que para Espinosa, o corpo
não está submetido à mente – mas que também não há privilégio do corpo sobre ela; ambos
36
Aliás, Deleuze (2019) mostra que uma das questões mais fundamentais na filosofia e obra de
Espinosa está em torno de discutir de que é capaz um corpo, quando repetidamente ensina que
“nós tagarelamos sobre a alma e sobre o espírito e nós não sabemos o que pode um corpo” (p.
52). Para nos debruçarmos nas próprias palavras do autor, vale citar este conhecido trecho que
aparece logo no início da parte III da Ética – que trata da origem e da natureza dos afetos,
lançada originalmente em 1677, onde Espinosa diz:
[…] os homens […] a tal ponto estão firmemente persuadidos de que o corpo, por um
simples comando da mente, ora se põe em movimento, ora volta ao repouso, e de que
faz muitas coisas que dependem apenas da vontade da mente e de sua capacidade de
arquitetar. O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a
experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis
da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado
pela mente – pode e o que não pode fazer. (SPINOZA, 2009, n. p.)
O que vemos nesses escritos são disputas discursivas produzindo verdades sobre o corpo, sendo
que inevitavelmente algumas ecoam mais que outras. Como temos afirmado aqui, engendrar o
corpo no âmbito da natureza, ou no local de separação com a mente e devendo obediência a ela,
efetiva técnicas de controle que não só fabricam o corpo, como também pretendem controlá-lo.
Olhando para o tempo hodierno, desde pelo menos o século 20, vê-se que de fato as ciências
sociais têm subvertido aquela noção de corpo cujo confronto com a mente é reforçado, mas que
não necessariamente têm abandonando o dualismo; apenas invertem-no quando passam a
entender que o corpo pode conduzir a consciência e não mais ser objeto dela (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO, 2008). Vemos também que a porosidade das fronteiras entre corpo
sujeito/corpo objeto e entre corpo individual/corpo coletivo se tornou mais refinada e complexa
no século em questão (CORBIN, 2008).
Isso, no entanto, não indica que nos nossos dias o discurso da mente como superior ao corpo
não tenha mais aplicação. Porter Roy (1992), analisando as produções históricas do final do
século 20, viu que os estudos na área da História ainda estavam operando
“[…] tipicamente dentro de tradições interpretativas, para as quais os significados que são
mentais, espirituais e ideais assumem uma automática prioridade sobre as questões puramente
materiais, corpóreas e sensuais” (p. 292). E, como é de se esperar, tanto o que é produzido
academicamente influencia na sociedade, como o inverso também é verdadeiro.
37
Podemos ver um exemplo disso na série distópica Years and Years (2019), que retrata um futuro
próximo cuja atmosfera é permeada de avanços tecnológicos. Já no primeiro episódio, Bethany
Bisme-Lyons, uma personagem adolescente, chama os pais para uma conversa e está prestes a
fazer uma revelação íntima a eles, que esperam com certa tranquilidade a filha se assumindo
como transgênero8; mas são surpreendidos porque o tema do diálogo não discorre sobre
identidade de gênero, e sim sobre a revelação de que a filha se identifica como transumana.
Segundo ela, seu corpo é uma “coisa” desconfortável da qual deseja se livrar, e a materialidade
– os braços, as pernas, cada pedaço (como ela mesma enfatiza) – é um impedimento. Sua
vontade é fazer um upload da mente e reciclar o corpo físico, para que dessa forma possa viver
para sempre, contudo em forma de dados. Essa narrativa tão recente é uma atualização do
conflito entre corpo e mente com uma nova roupagem. Ao imaginar um mundo tomado pelo
digital, as saídas ao corpo se remodelam, e mesmo que bem menos profano que outrora, o corpo
ainda permanece em um local de martírio e em antagonismo com a mente, que se mostra como
a única substância com possibilidade de transcender e evoluir.
No entanto, há um outro entendimento9 sobre essa cena, que evoca o conflito da personagem
como um questionamento à organização do corpo, em uma recusa do corpo orgânico como
única possibilidade de vida. Sobre isso, Donna Haraway (2009) coloca em xeque o corpo fixo
no modelo enrijecido, o qual se apresenta como uma forma identitária, e assim escancara as
fronteiras corporais que podem ser assumidas na sociedade contemporânea. Nesse sentido a
autora expõe seu mito do ciborgue: uma possibilidade de não temer identidades parciais,
contraditórias e fundidas com animais e máquinas.
Nesse exercício, ela se propõe à desconstrução dos aspectos “naturais” do humano, e reflete
sobre os binarismos reforçados pelo ocidente: mente e corpo, natureza e cultura, homem e
mulher, senhor e escravos, o eu e o outro, civilizado e primitivo, entre outras sentenças, e diz
que são, na verdade, formas de dominação sobre as mulheres, as pessoas racializadas, os
trabalhadores e os animais. Assim, o ciborgue questionaria tais dominações hierárquicas,
porque se estabelece sob a fluidez das margens, na recusa de um corpo aprisionado no
identitarismo biologizante. O ciborgue, um híbrido entre máquina e organismo, é uma metáfora
8
Transgênero se refere às pessoas que não se conformam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
9
Por nos apresentar essa possibilidade de leitura e o texto que a fundamenta, agradecemos à Izabel Rizzi Mação.
38
da ficção que pode trazer uma possibilidade para a realidade material (HARAWAY, 2009). Sob
esse tópico, Rafael Haddock-Lobo afirma que:
Nessa perspectiva, Haraway diz então que uma possível saída contra a dominação nas
sociedades mediadas pelo tecnológico está em não apelar a um estado orgânico natural do
corpo, mas antes em utilizar a ciência e a biotecnologia para remodelá-lo, ou seja, para construir
novas relações sociais a partir da corporificação. A cultura high-tech10, da qual inevitavelmente
já fazemos parte, ajuda a contestar os dualismos da dominação e borra a diferença entre máquina
e organismo: “Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina.
Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com
10
High-tech é um termo referente à tecnologia avançada. Utilizamos esse termo para evidenciar que nossa cultura
está tomada de artefatos tecnológicos e a nossas relações sociais com eles estão estabelecidas e entranhadas.
39
práticas de codificação” (HARAWAY, 2009, p. 91). Desse modo, o corpo pós-humano que
Bethany busca na série, poderia, de certa forma, estar em consonância com Haraway, quando
ela diz que:
Voltando a atenção para o discurso do corpo submetido à mente e ainda refletindo sobre os
limites entre tecnológico, humano e não-humano, mais um vez fazemos referência ao já citado
filme Her (2016). Em certo momento da trama, a personagem Samantha, o sistema operacional
(OS), finalmente perde sua angústia por não possuir um corpo, e vai além, passa a amar essa
característica, porque consegue entender que nisso reside sua potência: ela não é limitada a uma
forma física, e isso lhe confere a possibilidade de quebrar as fronteiras do tempo e espaço (pode
estar em qualquer lugar ao mesmo tempo). O fato dela não estar presa na finitude do corpo gera
um grande incômodo entre os humanos, e não podemos deixar de notar que, agora, diferente do
que aconteceu no início da história, o OS coloca no corpo a conotação negativa que
tradicionalmente ele vem recebendo.
E não só na ficção o dualismo perdura. Nossa sociedade está tomada por binarismos que se
relacionam ao tema central da nossa discussão. Um exemplo expressivo é a maneira como
separamos trabalho braçal, ou manual, do trabalho considerado intelectual. O que é relacionado
à mente, à formação, é mais valorizado e até mais bem remunerado, expressando a prioridade
da mente diante do corpo. Quando na verdade o trabalho é uma excelente maneira de
percebermos como corpo e mente são totalmente conectados, quer dizer, integrados. Não existe
esforço físico sem pensamento e não há pensamento que não atinja o corpo por completo. Após
um dia de leitura intensa, algo considerado como exercícios mentais, é também a parte corpórea
que se cansa, e qualquer labor físico exige constante pensamento e raciocínio para que seja
executado. Isto é dizer, como demonstra Mariana Toledo de Barbosa (2018), que “[…] quando
o corpo age, a alma (ou mente) age, e quando o corpo padece, a alma (ou mente) padece” (p.
869).
é enfatizar que tal separação também é um efeito da percepção de corpo como inferior à mente,
que como temos discutido, tem perdurado através da história.
Diante do que foi dito, já vimos que no refluxo da Idade Moderna, o corpo foi por muitos tido
como um pedaço de matéria e em um papel secundário, ainda que para outros tivesse uma
relevância expressiva. No entanto, Jean-Jacques Courtine (2008) afirma que apenas no século
20 se deu a invenção do corpo no campo das produções teóricas. O autor argumenta que diversas
correntes filosóficas e áreas do saber estudaram o corpo e discutiram-no exaustivamente, como
a fenomenologia e a antropologia, mas foi a psicanálise de Sigmund Freud que fundiu a imagem
do corpo na formação subjetiva, quando afirmou que o inconsciente fala corporalmente.
Com a influência dessa concepção, o corpo em muitos discursos acadêmicos foi tido como
amarrado ao sujeito, e com isso entrou oficialmente no centro dos debates do século passado.
Especialmente porque desde as décadas de 1960 e 1970, as lutas pelos direitos das minorias
enfatizaram a relação direta do corpo com as opressões que agem sobre os grupos
marginalizados das categorias de raça, classe, gênero e sexualidade (COURTINE, 2008).
Houve, de fato, uma virada a partir do final da década de 1960 devido às intensas
transformações políticas, culturais e sociais que o mundo ocidental viveu nesse período. Assim,
Ana Kiffer (2014) mostra que a questão da corporalidade se manifestou mais intensamente
desde os campos teóricos até aos espaços artísticos, de modo que deixou de ser apenas algo
sobre o que se fala, sobre o que se discute. Isso porque, a partir desse momento, o corpo
apareceu de modo expressivo como ator das manifestações culturais, ou seja, não apenas como
uma representação de conflitos sociais, não restrito a uma encenação e passou a ser
efetivamente percebido como local de produção de subjetividades e lugar de resistência
(KIFFER, 2014).
Dessa maneira, de acordo com o que abordamos, podemos afirmar que a separação entre
natureza e cultura, material e simbólico, objetivo e subjetivo são produtos da sociedade
moderna e da construção do conhecimento ocidental, e que sem dúvidas, se expressam também
41
Talvez por isso, no ocidente contemporâneo, o corpo tem ganhado novos contornos. Para
Carmem Lúcia Soares, hoje o corpo revela a mais íntima subjetividade dos sujeitos. Isso não é
o mesmo que afirmar que o corpo armazena a subjetividade, mas sim que ele é “[…] a expressão
mais autêntica do real […]” (2004a, p. 20). O corpo polissêmico, múltiplo de sentidos, alvo de
teorias, recortado e transformado em partes, se constitui como território de disputas discursivas
que almejam enquadrá-lo. Uma história do corpo é possível quando se atenta às maneiras como
certa cultura criou modos de conhecê-lo, controlá-lo e governá-lo (SOARES, 2004a). Uma
perspectiva historiográfica sobre o corpo significa também, entre outras coisas, que o poder
mirou o corpo.
Não se pode reduzir o corpo a uma materialidade orgânica e fisiológica. Como vimos, o corpo
comporta um conjunto de práticas e saberes que o produziram em recortes específicos de tempo
e espaço. Tal como aponta Maria Rita de Assis César (2019), na sociedade hodierna não é
diferente, e os novos regimes de verdade da atualidade, que são advindos de diversas fontes
discursivas, permanecem produzindo o corpo e agindo sobre ele. A partir daqui, o que nos
interessa é enfatizar um outro ângulo de abordagem, diferente da feita até agora. Partindo do
entendimento que o corpo esteve sempre imerso nas relações de poder, tentaremos recuperar a
maneira como os dispositivos de poder passaram a incidir mais efetivamente sobre os corpos e
a vida, em um exercício de abordar uma microfísica do corpo e das resistências possíveis a
partir dele.
Foucault olha para a História tirando o foco das explicações pelo contexto, das narrativas em
torno de heróis e dos macro eventos, os quais incontestavelmente permanecem tendo relevância.
Contudo, há uma ênfase nas análises micro, e isso não quer dizer que está pensando em
instâncias pequenas, mas que as interações sociais estão no centro do estudo, porque o
micropoder opera em toda a sociedade. A partir disso se percebe as relações de poder como
assimétricas, e algumas forças prevalecem à outras constituindo formas de dominação. Todavia
isso não é uma sentença rígida, mas sim algo que tem a possibilidade de ser modificado, porque
as relações de poder são instáveis, reversíveis e permeadas pela liberdade (SANTOS, 2016).
Portanto, nessa concepção ninguém exatamente detém o poder. Antes, o poder circula, está em
movimento, é descentralizado em uma rede de forças que são exercidas sobre outras, e se efetiva
como uma prática entre as pessoas, que ao mesmo tempo fazem uso dele e sofrem sua ação. Ou
43
seja, as relações de poder perpassam todos os corpos e lugares, são imanentes a todo o corpo
social, e permeiam todas as instâncias da sociedade – é impossível pensá-la sem tais relações.
Desse modo, o poder não é uma categoria primeiramente negativa, malvada, dominante,
opressora. Não há juízo de valor, o poder não é bom ou ruim. O poder é um conjunto de relações
que está em todas as esferas sociais, e que atravessa e produz os corpos e os acontecimentos
(FOUCAULT, 1988b).
No entanto, como o próprio Foucault afirma em “O sujeito e o poder” (2009, n. p.), suas
pesquisas não buscaram estudar o poder por si só, mas tentaram “[…] criar uma história dos
diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos”. Com
isso, sua obra atentou-se para o fato de que o homem, enquanto sujeito, só se tornou um objeto
de investigação científica muito recentemente na História; mais precisamente, a partir da
Modernidade. Assim, o autor buscou compreender como esse saber sobre si mesmo se efetivou.
É importante compreender que Foucault constrói seus estudos rejeitando a busca pela origem
do problema enunciado, e se distanciando também das interpretações que pretendem revelar
uma verdade que está oculta. A intenção de sua investigação é compreender como determinado
discurso ecoa tão expressivamente na sociedade que se transforma em verdade (FOUCAULT,
2009). Exemplificando as indagações: o homem se tornou um sujeito reflexivo, ou seja,
passamos a pensar sobre nós como sujeitos; mas de que maneira isso ocorreu? A partir de quais
mecanismos o sujeito passou a se entender como tal? E qual a relação disso com o corpo?
O mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto,
mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une
politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos corpos).
Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado sobre o qual o poder
age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em
funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de
discurso por meio das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”
(PRECIADO, 2020, p. 163, tradução nossa11).
Ou seja, em vez de pensar um corpo que é alvo do poder, é importante pensá-lo como uma
fabricação dele. O corpo é colocado em funcionamento no bojo das relações de poder de modo
tão intenso que, em algum momento, produz uma identidade, afirma-se como um “eu”
(PRECIADO, 2020). Desse modo, a partir de Foucault vemos que a insurgência do homem
11
Texto original: “Lo más importante que aprendimos de Foucault es que el cuerpo vivo (y por tanto mortal) es el
objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (no hay política que
no sea una política de los cuerpos). Pero el cuerpo no es para Foucault un organismo biológico dado sobre el que
después actúa el poder. La tarea misma de la acción política es fabricar un cuerpo, ponerlo a trabajar, definir sus
modos de reproducción, prefigurar las modalidades del discurso a través de las que ese cuerpo se ficcionaliza hasta
ser capaz de decir ‘yo’”.
44
É justamente por conta desse incômodo teórico, de entender como nos tornamos sujeitos, que
os estudos de Foucault se debruçaram sobre as relações de poder – segundo Deleuze (1993),
para Foucault o poder muito mais do que repressor, funciona por normalização e disciplina.
Nesse sentido, o poder é produtivo: é a construção social da realidade (SANTOS, 2016). O
poder cria singularidades, produz sujeitos e modos de vida. Funciona por incitação, ou seja, a
partir de modelos normativos, conduz os sujeitos a se adequarem à norma e a rejeitarem aquilo
que foge dela. As relações de poder não são estáticas: elas estão sujeitas a transformações e de
fato se modificaram no percurso da História (FOUCAULT, 1999). Por isso, atentaremo-nos
brevemente às mudanças na configuração das relações de poder, ainda pensando com as
produções de Michel Foucault.
Uma das formas de exercício de poder se localiza entre o medievo europeu e o fim do Antigo
Regime. Trata-se de um dispositivo de poder de morte: o poder soberano. Especialmente nos
regimes monárquicos da Europa, a maneira de submeter os súditos à vontade do soberano era
exercida por meio da prática do confisco. Os bens, a propriedade, os impostos e, em último
grau, a própria vida eram capturados para que houvesse a execução de uma autoridade absoluta.
Nesse regime, a lei é a vontade do próprio soberano. Ele é quem exige a morte, pois é ele quem
tem o poder de expor à morte. Uma característica importante é que essa exigência não se dava
de maneira vazia de significados. O suplício, o qual se operava como um ritual, era configurado
por punições e torturas públicas, sempre grandiosas e espetaculares (FOUCAULT, 1988a).
Esses suplícios não eram práticas que ocorriam com muita frequência. O próprio monarca não
aparecia tantas vezes em público e a maior parte dos súditos sequer conhecia sua figura. Isso
ocorria devido a diversos fatores, mas principalmente por conta do próprio funcionamento da
Sociedade de Corte, a qual escolhia manter a distância entre os outros grupos sociais como uma
estratégia de distinção. A morte, categoria central naquela sociedade, era extremamente
ritualizada e grandiosa porque estava carregada de simbolismo, já que naquele contexto o súdito
só tinha direito de estar vivo ou morto graças ao soberano, e desse modo, o efeito desse
45
Todavia, a partir do século 17, há uma nova política em curso, que coloca o corpo individual
como alvo, e os dispositivos de poder passaram a agir sobre os corpos e a vida de modo mais
efetivo, e a isso Foucault (1988a) nomeia como tecnologia disciplinar. Essa técnica de poder é
aquela que adestra, regula e aumenta a força útil enquanto diminui a potência política,
docilizando os corpos. As condutas que se dispõem sobre o corpo configuram uma anátomo-
política cuja incidência nos corpos opera de maneira individual e visa à produtividade
(FOUCAULT, 1999).
Em outras palavras, houve uma alteração na dinâmica das relações. Antes, a soberania se
expressava na máxima deixar viver e fazer morrer, ou seja, o soberano poderia provocar a morte
e poderia manter a vida. Passou-se a questionar o horror das punições grandiosas, e em especial,
o direito do soberano sobre a vida dos súditos. Agora, com o poder disciplinar, a tarefa é gerir
a vida, sob a nova máxima deixar morrer e fazer viver: a vida se torna o alvo (MAÇÃO, 2016a).
E na incumbência de reger a vida por meio da atuação sobre o corpo individual, a técnica
disciplinar está centrada na distribuição espacial dos corpos quando os separa, alinha, coloca
em série e vigia. É necessário organizá-los em torno de um campo de visibilidade, de modo que
alguns artifícios, como as hierarquias, as inspeções, os sistemas de vigilância, vão ganhando
protagonismo nas relações. Além da fábrica, do quartel e do hospital, uma expressão da
disciplina está na escola, onde constantemente procedimentos acometem os corpos –
enfileirados, uniformizados, regrados, seguindo horários, numa constante vigilância mútua – a
fim de moldar suas necessidades e desejos para obedecer (FOUCAULT, 1999).
No entanto, Michel Foucault revisitava com frequência suas proposições, e já no fim de sua
vida, tensionado por outros autores, mostrou que não foi a disciplina que inaugurou a mira no
corpo. Por mais que antes tenha afirmado que a modalidade da soberania enquanto esquema
organizador deixava escapar coisas no nível dos detalhes e das massas (FOUCAULT, 1999), o
autor acrescentou que no exercício do poder soberano há uma ação conjunta de um outro poder
relacionado, o chamado poder pastoral (FOUCAULT, 2009).
Estado Moderno só foi possibilitado a partir da confluência entre o poder soberano e do poder
pastoral, porque o Estado é uma força totalizadora e individualizadora, características advindas
dos tais mecanismos de poder, respectivamente (FOUCAULT, 2009).
Já podemos notar na pastoral o corpo como alvo de uma adequação, porque seu objetivo é
impedir o desvio de condutas. O corpo-súdito foi alvo de torturas e condenação pelos confiscos
e suplícios, o corpo-ovelha foi alvo de penitências e produções de verdade sobre si, e ambos
atuavam aliados. Desse modo, o poder pastoral versava sobre a salvação, mas ao longo do
tempo essa salvação ganhou novos contornos, porque esse mecanismo de poder também se
reconfigurou e ultrapassou a instância eclesiástica (FOUCAULT, 2009).
No contexto religioso, a pastoral quis não exatamente promover uma salvação para a vida após
a morte, mas sim conduzir os fiéis a garanti-la ainda na vida terrena, e isso ganha outros
significados no âmbito secular. Na medida em que a pastoral foi perdendo sua força,
instrumentos como a saúde, bem-estar e segurança adquiriram a conotação da palavra salvação,
porque o indivíduo passa a buscá-los ao longo da vida (FOUCAULT, 2009). E, não sem razão,
todos esses aspectos estão, de alguma maneira, vinculados ao corpo.
Contudo, ainda que o poder pastoral também tenha estabelecido uma ação sobre a vida, a
novidade – se é que podemos chamar assim – da técnica disciplinar, reside no fato de que com
ela nenhum detalhe escapa do exercício de poder que incide sobre o corpo individual, o homem-
corpo. “O corpo tomado como máquina: é preciso adestrá-lo, aumentar suas aptidões,
normalizá-lo, torná-lo útil, facilmente administrável e lucrativo. É preciso extrair dessa
máquina biológica o máximo que ela pode produzir” (MAÇÃO, 2016a, p. 73).
Como podemos observar, os dispositivos de poder não são fixos, pois se atualizam e
acompanham as transformações sociais. Após o dispositivo de poder disciplinar, um novo
47
avanço sobre a vida ocorre, mas não mais na instância individual, e sim a partir do ser humano
como espécie. Esse dispositivo não exclui a disciplina, mas a integra e a modifica. Ele é uma
regulamentação, é chamado de biopolítica, e tem como alvo o conjunto de indivíduos, a
população (FOUCAULT, 1999).
Com a razão primeira de proteger a vida, a biopolítica age sob a máxima de fazer viver e deixar
morrer. Opera-se, então, uma gestão do corpo por diversas técnicas, como a medicina, por
exemplo – é nesse momento que os discursos de saúde e higiene se popularizam, e com isso
também a retórica da medicalização. Ou, melhor dizendo, os poderes precisam garantir uma
vida, então se torna importante para a biopolítica quantificá-la, lidar com taxas, estatísticas e
probabilidades, pois o olhar está voltado para o conjunto das pessoas: a população. Desse modo,
o domínio biopolítico se preocupa com problemas como a mortalidade, saúde e possibilidade
do adoecimento, a questão da segurança e prevenção contra acidentes. Ou seja, qualquer assunto
que se apresente como ameaça à população é um risco, um perigo a ser combatido (MAÇÃO,
2016a).
Vemos então que, no contexto europeu, a partir do final do século 18 e especialmente no 19,
emergiu o biopoder, uma coexistência dos poderes descritos por Foucault, que conforme o
próprio autor afirma, foi indispensável para o desenvolvimento do capitalismo (FOUCAULT,
1988a). O biopoder é o poder em sua forma mais avançada e atualizada. Ele atua
“[…] sobre tudo o que se refere à vida, não para potencializar suas forças afirmativas, mas para
controlá-las e fixá-las num território que facilitasse a gestão de suas virtualidades” (PEIXOTO
JR, 2005, p.59).
O biopoder tem como alvo o corpo múltiplo da população, e para efetivar-se sobre ela
implementa a regulamentação dos fenômenos coletivos. Nesse sentido, os mecanismos
reguladores têm a função de otimizar o estado de vida da população, isto é, sua atuação está em
baixar a morbidade e prolongar a vida. Ao contrário de outrora quando a morte era um
48
espetáculo, com a biopolítica ela se torna algo que deve ser escondido, resguardado à instância
privada. Esse choque entre os sistemas de poder se deu porque na ótica da soberania, a morte
era a passagem do poder soberano terreno para o soberano espiritual. O domínio da mortalidade
foi, aos poucos, deixado de lado, porque o biopoder passou a intervir não só organizando a vida
como também aumentando-a (FOUCAULT, 1999).
Além disso, a biopolítica visa à recolocação dos corpos nos processos biológicos pela
biorregulamentação. Isso expressa que a disciplina e a biopolítica não se excluem, e na verdade,
se articulam. Sobre isso, Foucault (1999) pontua que o poder incumbiu da vida, porque cobriu
“[…] toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante
o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação,
de outra” (p. 302).
Essa ação conjunta da biopolítica e da disciplina pode ser mais bem compreendida pelo
dispositivo da sexualidade, que no século 19 se tornou um campo de importância estratégica
para o poder. As práticas sexuais são comportamentos corporais, portanto, são alvos do controle
disciplinar individualizador, que requer a autovigilância constante12. Além disso, são também
alvo da regulamentação dada à população na medida em que adquirem efeitos procriadores em
processos biológicos que concernem ao conjunto de indivíduos. Nesse sentido Foucault (1999)
afirma que “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto,
ela depende da disciplina, mas depende também da regulamentação” (p. 300).
12
Nesse sentido, as aulas de Foucault registradas no livro Os anormais (2001) abordam como o conceito de
“anormal” foi tomado pelos meios jurídicos e psiquiátricos no século 19 para pautar (e produzir) comportamentos
sexuais desviantes. Um bom exemplo disso se vê na masturbação, que é tomada como conduta a ser corrigida,
gerando uma vida autovigiada e regrada.
49
Além disso, algumas práticas na esfera do sexo, quando classificadas como anormais,
configuram-se como comportamentos sociais que trazem riscos à população e devem ser
combatidas. E é justamente por isso que a sexualidade permanece sendo objeto da
normalização. Para Foucault (1988a), a noção de sexo une elementos anatômicos, condutas e
prazeres, além da sexualidade ser uma figura histórica que fornece a inteligibilidade ao corpo,
no sentido de que é uma unidade fictícia, que revela a identidade do sujeito, como se fosse um
segredo a ser descoberto, desvendado.
Os estudos de Michel Foucault sobre a biopolítica se tornam ainda mais instigantes se, a partir
de uma visão decolonial, olharmos para o contexto brasileiro em um exercício de tropicalizar a
teoria. Giuseppe Cocco e Bruno Cava (2018) mostram que “[…] no Sul, desde a colonização,
o poder sempre foi biopolítico” (p. 48). O que os autores propõem é que, mesmo que o filósofo
francês tenha relacionado a virada neoliberal à efetivação da biopolítica, bem antes disso,
durante a colonização dos trópicos, os colonizadores dependeram do governo dos corpos em
forma de populações. Além disso, eles também aplicaram uma atenção específica aos territórios
a fim de controlar os fluxos migrantes (COCCO; CAVA, 2018).
Vale destacar que não queremos colocar a colonização como uma causa para o surgimento do
capitalismo neoliberal em uma simplificação histórica, contudo, afirmamos que a empresa
colonial dependeu da biopolítica para funcionar. Nesse entendimento descolonizado sobre
biopolítica que os autores apresentam, voltamo-nos para o modo como as Metrópoles 13 agiam
sobre as colônias, com uma maneira específica de governamentalidade, a qual precisou se
atentar a um espaço transnacional. Para isso as Metrópoles fizeram uso das tecnologias do poder
biopolítico, o que “envolveu toda uma economia de práticas e discursos relacionados à mistura
dos corpos, à composição e criação de raças, à difusão e aprimoramento de dispositivos de
controle no grande aberto espaço colonial” (COCCO; CAVA, 2018, p. 63).
Portanto, o biopoder atlântico começou a ser delineado pela necessidade europeia do comércio
intercontinental através do tráfico de escravizados e do estabelecimento de feitorias14 nas
costas. Foram esses os mecanismos que possibilitaram à Portugal, por exemplo, distender-se
sobre várias regiões do globo. Desse modo, dos dois lados do Oceano Atlântico foi testada uma
nova forma de governar que os europeus ainda não conheciam – a biopolítica – e que foi
13
Chamamos de Metrópole os países, geralmente europeus, que colonizaram o chamado Novo Mundo – América,
África e Ásia. Portugal era a Metrópole do Brasil, sua colônia.
14
As feitorias eram lugares nos portos, que comumente possuíam entrepostos e fortalezas com a função de ter o
comércio sob controle.
50
aprimorada durante séculos diante de muitos empecilhos, como as inúmeras revoltas e rebeliões
que se deram no território brasileiro (COCCO; CAVA, 2018).
Nesse sentido, atentamo-nos ao modo como o dito Novo Mundo funcionou como uma espécie
de laboratório dos colonizadores para testar técnicas de dominação, que mais tarde foram
importadas ao contexto europeu. Para demonstrar com apenas um exemplo, a caça às bruxas
vista na Europa moderna se deu primeiramente na América como forma de perseguições
religiosas aos povos ameríndios. Ainda que nas colônias a noção cristã de demônio fosse
desconhecida, a acusação de adorá-lo já era uma estratégia utilizada pelos missionários para
vilipendiar as populações originárias (FEDERICI, 2017a).
Desse modo, uma série de temas que tiveram matriz nas colônias – como “[…] canibalismo,
oferenda de crianças ao diabo, uso de unguentos e drogas e identificação da homossexualidade
(sodomia) com o diabolismo” (FEDERICI, 2017a, p. 409) – e que foram usados para justificar
a aniquilação corpórea e cultural nos espaços colonizados, foram aplicados posteriormente
contra pessoas acusadas de bruxaria no chamado Velho Mundo (FEDERICI, 2017a). Assim, de
alguma forma, o biopoder veio atuando primeiramente nos territórios coloniais, e depois se
estendeu à Europa.
Além desse, também outros tensionamentos são feitos nas formulações foucaultianas, como
podemos ver quando Deleuze (1993) promove uma inflexão do pensamento de Foucault acerca
dos dispositivos de poder. O autor entende que estes guardam sim um efeito repressivo – não
no sentido de reprimir uma espontaneidade, mas de esmagar as pontas dos agenciamentos de
desejo. Isso quer dizer que os dispositivos de poder codificam e reterritorializam, e não
normalizam e disciplinam, como pensou Foucault em certa fase de sua obra. Desse modo,
Deleuze entende que os dispositivos de poder promovem reterritorializações das linhas de fuga.
Nesse caso, o poder não é produtivo, mas sim reativo.
Acerca disso, de acordo com Peixoto Junior (2005), as linhas de fuga não podem ser entendidas
como uma reação negativa ao poder, mas como forças ativas que se produzem no corpo social,
as quais apresentam uma afirmação que foge aos sistemas de controle, operando outra condição
e novas possibilidades. Esse regime de forças que se produz é afirmativo, ele desterritorializa,
e nisso “[…] se esboça um outro estilo, uma outra sensibilidade, uma outra percepção do
intolerável; é aqui, na reação das ambições nômades a um território já desconfortável em
demasia, que se inicia uma experiência de resistência, que se engendra um devir” (THEMUDO,
51
2002, p. 285). Como apontou Deleuze (1993), é importante perceber que tais linhas de fuga não
são obrigatoriamente revolucionárias, contudo, são elementos de desterritorialização e,
portanto, são elas que os dispositivos de poder perseguem para reterritorializar.
Diante de tudo isso, a partir de agora nos interessa pensar que o biopoder busca constantemente
operar uma reterritorialização nos corpos. Ou seja, os dispositivos de poder estabelecem uma
relação imediata com o corpo, porque, como se verá adiante, o tempo todo tentam
reterritorializá-lo ao impor uma organização (DELEUZE, 1993).
O autor compreende que em parte dos trabalhos de Michel Foucault, o poder se apresenta em
duas direções (não necessariamente opostas): como disciplinador e normalizador, mas também
como inventivo, se distanciando das concepções de um poder exclusivamente repressivo. Nessa
concepção, o poder é aquilo que incita, que atua nas condutas individuais e que produz uma
subjetividade. As resistências, nesse caso, seriam uma outra face das relações de poder, ou seja,
e estariam em um constante jogo relacional com ele, em uma multiplicidade que aparece em
focos, fragmentada e em pontos transitórios e irregulares (ALVIM, 2009).
Já Gilles Deleuze, inclusive nos trabalhos que escreveu com Félix Guattari, compreendeu as
resistências de outra maneira, o que Alvim (2009) define da seguinte forma: “se para Foucault
as resistências são uma imagem invertida dos dispositivos de poder, para Deleuze a mesma
guarda uma afirmatividade própria” (p. 9). Deleuze e Guattari pensaram a resistência nas “[…]
maneiras como um campo social foge por todos os lados” (ALVIM, 2009, p. 7).
Cabe considerar, como indica Peter Pelbart (2003), que o capitalismo agora opera em rede, em
uma dinâmica que modifica as formas de exploração e exclusão, e como foi dito, seu artifício
atual está na relação invasiva que estabelece com a subjetividade. Se antes a força física era a
principal exigência para realizar o trabalho no campo e na fábrica, em um trabalho
supostamente apenas corpóreo, com as transformações sociais atuais se investe muito mais no
subjetivo.
Isso é dizer que até quem não está vinculado ao processo produtivo também produz, todos nós
produzimos constantemente, e não apenas os assalariados, já que atualmente não vendemos
apenas a força de trabalho, porque é em cima da própria vida que se lucra. Todas as dimensões,
antes reservadas ao espaço privado, hoje são requeridas dos trabalhadores – a inteligência, a
53
inventividade, a imaginação, ou seja, a criação que deve servir ao capital, de modo que a vida
se tornou fonte de valor (PELBART, 2003).
Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma sociedade ciber-oral, de
uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para
uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico para
formas de controle microprotéticas e midiático-cibernéticas. Em outros textos, chamei
de farmacopornográfica o tipo de gestão e produção do corpo e da subjetividade
sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade
contemporâneos já não são mais regulados unicamente pela passagem por instituições
disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um
conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais, de transmissão e de
informação (PRECIADO, 2020, p. 171, tradução nossa 15).
Isso nos leva a concluir que o objetivo das tecnologias farmacopornográficas é produzir corpos
que coloquem suas potências para trabalhar, que coloquem suas capacidades de criar e suas
fontes de prazer a serviço da produção capitalista (PRECIADO, 2018).
E é justamente por sabermos que corpo e mente são integrados, que evidenciamos: é também
no corpo que se investe quando se explora a economia imaterial, é também o corpo o alvo dos
avanços sobre a subjetividade. No entanto, no capitalismo fabril das sociedades disciplinares,
o corpo era torturado em uma rigidez intensa. Agora, o capitalismo versa sobre o corpo
superexcitado: “Trata-se nesse contexto, sobretudo, de promover uma estimulação perpétua de
reflexos, de funções e sinais nervosos, configurando um corpo ágil, animado e hiperacelerado”
(FERRAZ, 2002, p. 171). Desse modo, Bruno Cava implica que no
15
Texto original: “Hoy estamos pasando de una sociedad escrita a una sociedad ciberoral, de una sociedad orgánica
a una sociedad digital, de una economía industrial a una economía inmaterial, de una forma de control disciplinario
y arquitectónico, a formas de control microprostéticas y mediáticocibernéticas. En otros textos he denominado
farmacopornográfica al tipo de gestión y producción del cuerpo y de la subjetividad sexual dentro de esta nueva
configuración política. El cuerpo y la subjetividad contemporáneos ya no son regulados únicamente a través de su
paso por las instituciones disciplinarias (escuela, fábrica, caserna, hospital, etcétera) sino y sobre todo a través de
un conjunto de tecnologías biomoleculares, microprostéticas, digitales y de transmisión y de información”.
54
Deleuze diz que diante desse novo regime de dominação “não cabe temer ou esperar, mas
buscar novas armas” (1992, p. 220). Não devemos nos enganar, não estamos paralisados,
imobilizados por uma camisa de força. Essa subjetividade não é privada pelo capital de modo
passivo; afinal, a vida é capitalizada, e nisso o sistema se utiliza do corpo por inteiro e da nossa
potência criativa, mas isso não é imposto unilateralmente. As forças vivas nos colocam táticas
de construir alternativas e de criar sentidos, o que Pelbart (2003) coloca nos termos de força-
invenção.
Dessa maneira, Cocco e Cava (2018) mostram que se nos debruçamos sobre a história do
sistema capitalista sob uma ótica mecânica da luta dialética, a qual o coloca como homogêneo,
linear e dependente das categorias de negação, estabelecemos a ideia do capitalismo como algo
muito amplo e extremamente ofensivo – e em contraposição a ele estariam os espaços não-
capitalistas, os que resistem aos ataques. Porém nos desprendemos desse entendimento para
pensar as lutas diante do biopoder, pois estas estão em um arco de positividades e de afirmação.
Desse modo, quando utilizamos o termo resistência não nos referimos ao significado primeiro
que essa palavra comporta, de algo apenas defensivo; antes, entendemos as resistências como
movimentos eruptivos, ativos, criativos e descontínuos (COCCO; CAVA, 2018).
Espinosa explica que as coisas são suas potências, são o que elas podem. Somos movidos pelos
afetos, os quais estão submetidos a variações de estado, que aumentam ou diminuem a potência.
Assim, Deleuze afirma que “[…] a potência é sempre em ato, ela é sempre efetuada. São os
afetos que a efetuam. Os afetos são as efetuações da potência. O que eu experimento em ação
ou em paixão, é o que efetua minha potência a cada instante” (2019, p. 121). Quando falamos
sobre a potência, não pretendemos colocá-la como contrária ao poder, e muito menos expressar
a potência com um sentido positivo e poder como algo negativo. Não há um julgamento de
valor sobre tais categoriais. O poder é uma relação e do mesmo modo se dá com a potência, ela
se alastra por todos os corpos e lugares, de maneira que não se separa o poder da potência, e
não há espaços onde só atua um ou outro.
Desse modo, Pelbart (2003), a partir de Antônio Negri, diz que ao “lado do poder, há sempre a
potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação […]” (p. 27). O poder, sem
dúvida, age sobre a vida na forma do biopoder. Entretanto, a potência política da vida é a
biopotência da multidão: o coletivo se agencia com suas invenções para não submeter a
subjetividade ao capital e, assim, por meio das rachaduras, escapar. Pelbart ainda acrescenta
que o capitalismo fabrica modos de vida nos corpos e os submete a formas fixas, mas os corpos
são plurais e constantemente rejeitam as formas de assujeitamento (PELBART, 2003).
O biopoder tenta reduzir o corpo ao mero biológico, à vida nua, mas nisso se depara com a
recusa dessa limitação e, por sua vez, o corpo e a vida passam a expressar-se como poder de
ação, de afetarem e serem afetados. A vida, então, inclui as singularidades, a coletividade e a
cooperação social. A partir daí opera-se uma inversão no termo biopolítica, apontado não mais
o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. O que se propõe nesse caso não é apenas
uma inversão semântica, pois afirmar que a biopolítica expressa agora a potência da vida é
mostrar que a subjetividade vampirizada pelo capital não está imóvel (PELBART, 2003).
Ou seja, é dizer que aquilo em que o poder investe – o corpo e a vida – se torna território de
resistência. “Ao poder sobre a vida, responde então o poder da vida, a potência do corpo
biopolítico coletivo, capaz de fazer variar suas formas e reinventar seus regimes de enunciação”
(PEIXOTO-JÚNIOR, 2005, p. 62). Nesse sentido, Pelbart (2003) pontua que:
sentido do termo forjado por Foucault: a biopolítica não mais como o poder sobre a
vida, mas como a potência da vida. (PELBART, 2003, p. 25)
Tais reflexões são fundamentais para pensar o corpo no bojo do capitalismo contemporâneo,
porque a máquina do capital funciona sob a modelagem de corpos e de subjetividades. Sem
dúvida, as instituições, a cultura e a sociedade, ao definir como são os corpos, ditam também
como eles devem ser, atribuindo significados a eles. Entretanto, ao mesmo tempo, existem
outros significados tão múltiplos que o corpo se torna um objeto de disputas, e muitas práticas
discursivas o atravessam. O corpo é inconstante, porque seus desejos e necessidades estão em
permanente transformação (SILVA, 2010).
Ainda que determinadas áreas científicas, como a biologia e a medicina, esquartejem o corpo,
elaborando-o como fragmentado e vazio, ele não pode ser reduzido à forma física, ele é muito
mais do que esse amontoado de células, órgãos, sistemas, aparelhos e funções: “[…] o corpo se
produz continuamente numa composição de ‘estados inéditos’ que vão se constituindo num
fluxo permanente entre um corpo e vários outros” (SILVA, 2010, p. 19).
Como mostra Elenita Silva (2010), é importante reforçar que nas sociedades de controle do
capitalismo contemporâneo, a subjetividade não está mais tão presa à individualidade, e os
sujeitos sociais são mais móveis e flexíveis que antes, configurando uma plasticidade dos
corpos. Isto é, um corpo muda e se transforma quando submetido à tensão, quando encontra
outros corpos e é afetado por eles, e a partir de estímulos vira outro corpo.
Por isso, um novo entendimento de corpo é apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari
quando falam do Corpo sem Órgãos (CsO), que foi utilizado primeiro na obra artística de
Antonin Artaud. O CsO não é uma noção ou conceito, é antes uma prática, uma experimentação
inevitável, um limite, um devir outro corpo (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Para Silva (2010)
O CsO é uma experimentação inevitável que concede aos órgãos uma outra função,
modificando sua função natural, permitindo ver com a pele ou sentir com os olhos.
Nesse corpo, alterado pela tecnologia em toda a sua estrutura (biológica, psíquica,
social etc.), os órgãos são expandidos e retraídos para produzirem movimentos e
estímulos que configuram uma subjetividade que aproxima o humano e as máquinas.
(p. 70)
eu” (1996, n. p.). Desse modo, se os mecanismos de poder nos assujeitam impondo uma
identidade, um eu, é necessário não se prender a ela e constantemente nos desfazermos para
além dela.
Assim, os autores provocam um pensamento sobre o Corpo sem Órgãos pela via da
dessubjetivação; da experimentação em vez da interpretação. Com isso, querem dizer:
“Trata-se de criar um Corpo sem Órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não
haja mais nem Eu nem o outro, […] em virtude de singularidades que não podem mais ser
consideradas pessoais […]” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, n. p.). Nesse sentido, quando
falamos desse corpo não-orgânico, não estamos na esfera individual: é preciso entender aqui
um corpo como fluxo de várias singularidades, como uma multiplicidade, feito de regiões de
intensidade.
Por isso, entendemos que o CsO se dá no plano da imanência e só pode ser povoado por
intensidades. O Corpo sem Órgãos é uma desterritorialização que acontece a partir da tentativa
de organização do corpo pelos dispositivos de poder, os quais querem territorializá-lo. O CsO,
porém, não é inimigo dos órgãos, ele é contrário apenas ao organismo. E o organismo não é o
corpo, é na verdade a organização dos órgãos, é um estrato sobre o CsO, que bloqueia fluxos e
nos fixa no mundo, que impõe ao corpo formas, funções e organizações hierarquizadas.
“O CsO grita: fizeram-me um organismo! dobraram-me indevidamente! roubaram meu corpo!
O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação,
um sujeito. É ele o estratificado” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, n.p.).
Regina Schöpke (2017) diz que Deleuze e Guattari foram acusados de romantizarem os
drogados, os esquizofrênicos, os loucos e os pervertidos quando abordaram o Corpo sem
Órgãos. Segundo a autora, enquanto a psicanálise colocou nesses processos uma negação de si
ou uma completa autodestruição, eles entenderam-nos como uma “[…] guerra feita contra o
organismo, de um levante, de uma busca desesperada pelas intensidades que foram roubadas,
que foram capturadas para servir a forças que não são as da vida” (SCHÖPKE, 2017, p. 289).
Isso porque esses corpos em desconstrução experimentam novos agenciamentos de forças e
potências que libertam fluxos e intensidades.
Contudo, quando os autores trazem esses exemplos ousados para pensar o CsO, mostram que
na verdade esses corpos não criam o Corpo sem Órgãos, ao contrário, esvaziam-se, são
mutilados, porque não têm domínio do processo. Daí que a experimentação do corpo para
58
É preciso compreender o CsO como matéria não estratificada, como uma unidade do múltiplo.
Os estratos são as camadas que se sobrepõem no corpo organizando-o, são as separações, as
divisões de dominação. Porém, ainda assim, Deleuze e Guattari (1996) mostram que o sujeito
depende do estrato. Tiago Fortes (2010) indica que são três estratos que nos atingem: o
organismo, que é uma estrutura que organiza hierarquicamente; a significância, por meio do
que tudo tem um significado; e a subjetivação, onde tudo parte do eu – e de todos eles é tão
difícil quanto perigoso escapar. Nesse sentido, Deleuze e Guattari alertam que não se pode
desestratificar de modo grosseiro e ríspido, porque um CsO que quebra todos os estratos vira
destruição e morte: um corpo de nada (DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Para que o sujeito escape da subjetivação dominante, o que se deve buscar são pontos
momentâneos e efêmeros onde, aos poucos, desfaz-se o organismo, já que o tempo todo o CsO
oscila entre as superfícies que o estratifica e aquelas que o desprende. Quando os autores
discutem sobre desfazer o organismo, isso de modo algum significa se matar,
“[…] mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções,
superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e
desterritorializações […]” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, n.p.).
Então, como constituir um Corpo sem Órgãos que não se volte para a morte? Como sair dos
modos de subjetivação que servem à dominação? Como fazer isso sabendo que o corpo tem
sido alvo de uma contínua docilização? Essa docilização o coloca cada vez mais em evidência,
sendo apoderado, submetido aos poderes, servindo ao Aparelho de Estado, que atua com suas
máquinas de coerção e punição para que o poder se estabeleça no íntimo de cada um, para assim
sermos mais bem controlados (SCÖPKE, 2017).
59
O indivíduo é um produto do poder, como mostrou Foucault (1977), mas ele também afirmou
que é preciso “‘desindividualizar’ pela multiplicação, o deslocamento e os diversos
agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados,
mas um constante gerador de ‘desindividualização’” (p. 4). Sendo assim, é importante enfatizar
que “[…] o processo de dessubjetivações do Eu não significa mergulhar no caos ou na loucura.
Dissolver o Eu implica num duplo movimento: o de sua desconstrução e o de sua reconstrução
enquanto singularidade” (SCHÖPKE, 2017, p. 303).
Para libertar a vida dos poderes que a tornam fraca é preciso travar uma guerrilha consigo
mesmo, contra aqueles poderes que estão interiorizados em nós. Já sabemos que nesse processo
há o perigo do corpo padecer e sucumbir, mas Regina Schöpke (2017) indica que é pela via da
desconstrução ativa e afirmativa – e não pela desconstrução reativa e niilista – que se inventa
novas formas de viver sem se destruir. O que quer dizer que o corpo deve reverter a ordem que
lhe foi imposta, em uma produção de singularidade, em novas conexões e agenciamentos.
Diante disso, para que haja a ruptura com o governo da individualização, para que a
subjetivação não corresponda a uma linha de força do poder, não devemos considerá-la na
formação do sujeito, “[…] mas no movimento em que a força entra em relação consigo mesma,
afeta a si mesma e quebra a linha do poder, isto é, o exercício de afetar a outrem, em um afetar
a si mesmo para além do governo de si e do outro” (SANTOS, 2016, p. 266).
O Corpo sem Órgãos é uma desconstrução ativa do corpo, que o reconecta à vida pulsante e a
outros corpos, tirando-o da inércia e da fixidez. O CsO estabelece o fim da cisão entre o corpo
dócil ordenado, e do desejo de dissolver outro mundo – pois nessa separação o corpo não é
capaz de existir plenamente. E o CsO é pleno, ele liberta a vida que está encurralada em nós.
Todavia, para constituí-lo é necessário ter a prudência de entender o que nos fortalece e
enfraquece e, assim, fugir dos nossos desejos que nos despotencializam (SCHÖPKE, 2017).
“Se corpo e subjetividade são produzidos pelo poder, tomar para si os processos de subjetivação
e de produção de corpos inscreve-se num movimento de resistência e luta contra os modos de
assujeitamento” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 190). Por isso, quando Espinosa diz que não
sabemos o que pode o corpo, ele não se refere à atividade do corpo; o que se expressa aí é nossa
ignorância acerca de sua potência. E se Deleuze indaga como criar para si um Corpo sem
Órgãos, isso é o mesmo que perguntar: que pode o corpo? (LAPOUJADE, 2002).
60
Dessa forma, entendemos, a partir desses filósofos, que o que se dá no corpo também se dá no
espírito, de modo que a consciência é a conexão do corpo e das ideias, é o corpo pensante. Toda
experimentação do corpo é também experimentação do pensamento. Portanto, Schöpke (2017)
mostra que quando se desconstrói o Eu, quando se destrói a essência do sujeito para afirmar a
singularidade em um Eu nômade, chega-se ao cerne do corpo: o corpo é uma multiplicidade.
Desse modo, construir um Corpo sem Órgãos é apontar a potência da vida, é criar um corpo
mais alegre, forte e resistente.
Diante disso o poder reage e capturas ocorrem, mas há sempre escapes e instabilidade ante às
forças que tentam fixar e controlar, pois a captura das forças do corpo não acontece de modo
integral, e sem dúvidas fomenta lutas e choques que, “[…] devem ser considerados pequenos
fracassos do poder e grandes sucessos de pequenas minorias anônimas” (PEIXOTO JR, 2005,
p. 60). Com isso, afirmamos mais uma vez que a resistência não apenas suporta, porque nunca
está inerte; resistir é criar algo novo.
É pela resistência que a História se move e a resistência se produz em nossos corpos, corpos
que são espaços de luta. Michael Hardt e Antônio Negri (2016) apostam no processo subversivo
da vida como resistência, quando afirmam que os corpos em luta estão em uma produção
alternativa de subjetividade: “Os acontecimentos de resistência têm o poder não só de escapar
ao controle, mas de criar um novo mundo” (n. p.).
Na tentativa de criar esse novo mundo, essa outra forma de subjetividade, despertamos para o
corpo sob a ótica dos conhecimentos dissidentes e subalternos, esses que nos convidam a
experimentar um corpo que escapa dos saberes instituídos na Modernidade e na colonização.
Distante dos dualismos, reducionismos e violências eurocêntricas sobre o corpo, temos então a
visão de um corpo vivo e pulsante, um corpo que abarca linhas de fuga e desterritorializações.
Marcelo de Trói e Leandro Colling (2017) ensinam que se a colonização e o projeto moderno
esboçaram o assentamento das forças do desejo e delinearam um corpo submetido à mente,
reduzido ao estado orgânico, devemos apostar em descolonizar esse corpo, em colocá-lo como
centro do processo decolonial – porque isso é permitir os fluxos da máquina desejante, é
valorizar outras subjetividades e corporeidades, é criar um CsO não atravessado pelo
pensamento colonial.
A potência dessa nova corporalidade está na produção de novas vidas possíveis. Quando
afirmamos isso não nos referimos ao corpo que se mede por uma totalização, que pode ser
61
designado como algo fisiológico, unificado e puramente biológico. Um novo corpo já insurgiu
bem diferente desse: um corpo como lugar minoritário, um devir onde se opera resistências, um
corpo que se expressa pela própria experiência, e possibilita proliferar sensações, passa a ser
intensivo; não em busca de uma identificação nem tampouco de uma submissão, mas que
sempre se permite a novas experimentações corporais (KIFFER, 2014).
Existem sim experimentações que aumentam a potência do corpo, esse que não se reduz ao
organismo, a um conjunto de funções, à consciência, como anuncia Kátia Kasper (2009). Se a
invenção é a potência do homem comum, ousamos inventar outros corpos possíveis, ousamos
criar um novo mundo, ousamos tramar diferentes formas de educar.
62
Atualmente, se houver uma busca nos dados oficiais da prefeitura de Vitória, no Espírito Santo,
sobre as regiões e bairros que formam o município, não encontraremos a nomenclatura
Território do Bem. Isso porque Vitória possui uma divisão oficial por regiões administrativas 16,
e uma segunda divisão, que coloca a cidade em dez poligonais, as quais foram definidas a partir
de parâmetros como “[…] o grau de carência em equipamentos e serviços urbanos e sociais, o
nível de fragilidade ambiental, o grau de risco geológico, a precariedade das moradias e os
baixos índices sociais das famílias” (MIRANDA, 2017, p. 109).
Essa repartição por poligonais, de acordo com os dados oficiais (VITÓRIA, 2019), está
vinculada ao Projeto Terra. A classificação surgiu da necessidade de estabelecer políticas
públicas direcionadas ao desenvolvimento social, ambiental e urbanístico com foco nas áreas
de ocupação irregular (HENRIQUES, 2017). Desde 2005, o projeto passou a se chamar Projeto
Terra Mais Igual, como descreve Clara Luiza Miranda (2017):
16
A qual determina nove regiões, sendo elas: 1. Centro; 2. Santo Antônio; 3. Jucutuquara; 4. Maruípe; 5. Praia do
Canto; 6. Goiabeiras; 7. São Pedro; 8. Jardim Camburi; 9. Jardim da Penha. O mapa dessa divisão está disponível
em Vitória (2014).
63
e atualmente possui mais de 31 mil habitantes (PESQUISA, 2019). Ainda que esteja localizada
em uma área central da Ilha de Vitória e seja próxima a bairros nobres, “[…] ostenta indicadores
sociais e econômicos significativamente negativos, e sua população é predominantemente
pobre” (MIRANDA, 2017, p. 100).
Figura 2 - Bairro São Benedito com vista do bairro Jaburu e da cidade de Vila Velha
17
Além dos relatos dos moradores compartilhados no percurso da pesquisa, foram encontradas reportagens em
veículos impressos, online e de televisão comprovando que os representantes das polícias civil e militar usam essa
64
encontros da pesquisa, por vezes diferentes participantes expressaram o incômodo com essa
nomenclatura, reiterando que ela é utilizada de forma estratégica pelo poder público,
especialmente pelas forças policiais, para vincular o espaço a imagens negativas (Diário de
campo da pesquisadora).
Com base nas justificativas de desenvolvimento social e progresso urbano, as periferias têm
sido cada vez mais alvo de intervenção dos governos, e isso é uma das marcas do sistema
capitalista atual, o qual se desenvolveu pelos mecanismos do biopoder. Nesse sentido, Michel
Foucault (1988b) mostra que os corpos são inseridos nos aparelhos produtivos e os fenômenos
da população são ajustados aos processos econômicos.
Todavia, isso não significa que a ação capitalista se restringe à exploração pelo trabalho, que
de fato é intensa, mas que age também pelo controle, apropriando-se da vida por completo
“[…] e, assim, os corpos não são apenas confinados, reprimidos e disciplinados, mas,
sobretudo, experimentam uma condição de liberdade controlada pela máquina capitalística”
(FERRAÇO; DELMONDES, 2019, p. 461).
Essa liberdade controlada se vê em todos os lugares, desde nossa vida íntima até as ruas da
cidade, e não é diferente nas periferias que, aliás, arriscamos dizer que é onde ocorre um
controle mais agressivo. Isso acontece porque a ação biopolítica assume determinados corpos
como ameaças ao estabelecimento da ordem e, nesse processo, as regiões geográficas onde
esses corpos vivem são tomadas como perigosas. Diante disso, a presença do Estado nas favelas
vem com o argumento de melhorias sociais, mas o que observamos é uma atuação agressiva
sobre os corpos.
Diante disso, nos encontros da pesquisa ouvimos muitas reclamações de moradores, dizendo
que hoje as praças não são apenas espaços de lazer, mas também centros de intensa atividade
policial; as escolas não recebem apenas livros e professores, mas também patrulhas fardadas;
até o trânsito está militarizado, com viaturas e carros de guerra circulando ao lado dos pedestres
(Diário de campo da pesquisadora). De modo que toda a vida cotidiana da população vira alvo
de técnicas governamentais – técnicas que agem no corpo. Sobre a leitura de Foucault que se
relaciona a essa questão, Paul B. Preciado (2020) afirma que:
nomenclatura. Isso pode ser exemplificado pela reportagem de 2019 do portal de notícias G1 intitulada “Polícia
procura traficantes em operação no Complexo da Penha, em Vitória” (POLÍCIA…, 2019).
65
Nessa busca de incentivar os aspectos positivos nas periferias e fomentar o protagonismo social
dos moradores, ressignificando suas relações com o espaço, a cidade foi tomada por muitas
iniciativas de trabalho comunitário. No caso do Território do Bem, destacamos a Associação
Ateliê de Ideias, que é uma organização social19 sem fins lucrativos. Como mostra Leonora Mol
(2009), essa associação promove vários projetos que visam ao desenvolvimento comunitário
por meio da cidadania ativa, do apoio às ideias envolvendo moradores, e pela assessoria às
iniciativas que pretendem solucionar problemas nas comunidades que formam o território.
Um dos projetos do Ateliê de Ideias com mais visibilidade é o Banco Bem, que desde 2005,
busca circular a riqueza da comunidade dentro do próprio território através da economia
solidária, incentivando os moradores a valorizarem os comerciantes locais e fomentando o
empreendedorismo na região com empréstimos e linhas de crédito. Diferente dos bancos
tradicionais, os benefícios do Banco Bem são concedidos baseados na confiança, o que é
chamado por Mol (2009) de “tecnologia das finanças de proximidade” (n. p.). Isso quer dizer
que o morador é visto mais como um parceiro do que como um cliente, e desse modo a discussão
sobre a viabilidade do benefício é feita com planejamento e com união entre a comunidade e o
banco – ademais, o crédito é antes aprovado pela vizinhança de quem solicita, fortalecendo as
relações entre os moradores da comunidade.
18
Texto original: “Para Foucault, las técnicas gubernamentales biopolíticas se extendían como una red de poder
que desbordaba el ámbito legal o la esfera punitiva convirtiéndose en una fuerza ‘somatopolítica’, una forma de
poder espacializado que se extendía en la totalidad del territorio hasta penetrar en el cuerpo individual.”
19
O Ateliê de Ideias é uma OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
66
O projeto é muito popular no Território do Bem: já beneficiou cerca de 20 mil pessoas desde
que foi fundado e durante esses anos já emprestou mais de R$ 2 milhões de reais, sendo que a
taxa de inadimplência não passa de 2%, segundo reportagem de 2019 do portal de notícias G1
(BANCO…, 2019). No território circula uma moeda social impressa chamada Moeda Bem e
uma moeda digital chamada e-dinheiro. Além disso, o Banco Bem tem um núcleo habitacional
que fornece créditos para reformas e construções dos moradores chamado Bem Morar, projeto
de extrema relevância e impacto social que representa bem a filosofia da organização, que milita
para que todo o desenvolvimento econômico esteja acompanhado de desenvolvimento social e
humano (MIRANDA, 2017).
Sendo moradora do bairro Itararé desde o início de 2019, conheci a Varal pela divulgação online
de uma oficina de fotografia com a fotógrafa e moradora do Território do Bem, Thais Gobbo.
Essa oficina aconteceu no segundo semestre do mesmo ano, e ao ter contato com o espaço e a
equipe que atua no local, me encantei com a possibilidade de atrelar a pesquisa em curso no
mestrado com as atuações sociais que fervilham pela minha vizinhança.
Durante a oficina de fotografia, muitas vezes Thais Gobbo nos colocava a questionar o olhar
que tínhamos estabelecido sobre o Território, convidando-nos a uma visão mais afetuosa sobre
o espaço. As fotografias viraram pano de fundo para uma série de reflexões que passei a carregar
comigo e que se intensificaram. A partir de então consegui compreender melhor o processo que
estava vivendo de ser acolhida pelo local e pelos moradores, diferentemente dos outros bairros
onde já havia morado ao longo da vida.
Diante disso, decidi propor à Marly Rodrigues, técnica de desenvolvimento comunitário que
atua na Varal, uma parceria para pôr em prática o desejo de fazer a pesquisa no local. Não me
esqueço que no primeiro contato eu estava trêmula, gaguejando e muito nervosa, sem conseguir
formular bem as intenções da minha proposta, mas Marly me recebeu dizendo que por ser
moradora do Território eu seria bem-vinda.
A escolha da Varal vai além da relação pessoal, e se dá também por entender o local como um
espaço educativo, ainda que “[…] os saberes que não se baseiam na formalidade educacional
sejam considerados ‘menores’, menos sérios e ingênuos, por operarem muitas vezes em outros
tempos e espaços, que não o da instituição escolar […]” (GARCIA; ROTTA, 2012, n. p.). A
Varal, sendo um ponto de cultura, é aberta a quem deseja construir ali ações que beneficiem a
comunidade e, por conta disso, é palco de diversas oficinas, projetos, conversas e tantas outras
atividades em diversos formatos que podem ser considerados educativos, ainda que fora da
institucionalização.
Partindo do pressuposto de que não existe hierarquia de saberes, não pretendemos de modo
algum menosprezar a função da escola e, sobre esse tópico, cabe ressaltar que estamos em
consonância com a luta por uma educação pública, gratuita, de qualidade e que seja direito de
todas as parcelas da população. Mas se estamos tratando aqui de um espaço educativo diferente
desse, é preciso compreender que ele se organiza de modo próprio, de maneira que não pode
ser medido, comparado ou pensado a partir da lógica institucional. Sem dúvidas, como mostram
Valéria Garcia e Daltro Rotta (2012), existem paralelos, cruzamentos, implicações e
68
Diante de todas essas sensações, nunca abandonei a constante dúvida sobre aquele espaço ser
de fato adequado para mim e se eu conseguiria ser a boa professora que sempre quis ser. Essa
inquietude talvez esteja relacionada às discussões desde a graduação, que, em geral, me deram
uma visão tradicional de que a tarefa do professor é a de formar alunos, educá-los e avaliá-los.
Pelo menos na minha trajetória acadêmica, pouco se falou sobre construir espaços singulares
de aprendizado, esses onde, como mostra Christian Vinci (2018), mais interessante do que
assimilar uma teoria, compreender um conceito e aprender um conteúdo, são os sentimentos
que tais concepções evocam.
De certa forma, para uma jovem professora, pode ser muito assustador pensar que
“não há qualquer certeza pré-estabelecida em uma aula, jamais sabemos se aquilo que estamos
fazendo em classe servirá para alguma coisa e tampouco é possível saber o que irá despertar o
amor ou a alegria em um aluno” (VINCI, 2018, p. 330). Entretanto, esse susto aos poucos se
transformou na potente lição de que é necessário me desprender do objetivo de controlar o
aprendizado dos alunos, porque de fato “não é possível saber ou mensurar como alguém
aprende, sob quais condições e o quanto aprende, tampouco podemos pensar em um método
capaz de garantir um aprendizado eficiente de uma miríade de saberes” (VINCI, 2018, p. 323).
Antes de compreender isso, nas discussões com colegas professores, profissionais que eu
admiro e que me inspiram, eu me sentia culpada, porque sonhei em ser professora durante a
graduação em História, mas desisti quando de fato me tornei uma. Então, como conduzir uma
69
pesquisa na área de Ensino se eu não queria mais estar na escola? E mais: como explicar que
reconheço a enorme importância da escola se eu não queria atuar nela?
Houve, então, um bom encontro com os escritos de Silvio Gallo (2008), quando passei a
compreender os processos educativos de outro modo, em um caráter coletivo, como um
conjunto das diferenças, um espaço de multiplicidade. Seguindo assim, não há a necessidade
de se fixar em um lugar material – uma escola, um museu, um ponto de cultura – porque o
processo educativo é imanente, não tem endereço nem hora marcada. A educação está onde as
singularidades se juntam em projetos coletivos que aumentam nossa potência. Educar é lançar
convites (GALLO, 2008).
Portanto, estava posto o desafio: lançar o convite de experimentar um corpo. Pensando nesse
processo educativo imanente, Tomaz Tadeu (2002) se volta aos filósofos Deleuze e Espinosa,
e nos lembra que o plano de imanência é atravessado por duas linhas, a dos movimentos e dos
afetos. E é na confluência dessas linhas, em um encontro, que um corpo se define, onde
descobrimos o que pode um corpo:
Duas linhas atravessam o plano de imanência espinosista traçado por Deleuze. A dos
movimentos e a dos afetos. Em ambas, o que importa é saber o que acontece quando
dois ou mais corpos (quaisquer!, não necessariamente o meu ou o teu) se encontram.
“Encontro” é a palavra-chave. É só num encontro que um corpo se define. Por isso,
não interessa saber qual a sua forma ou inspecionar seus órgãos e funções.
Individualmente, isoladamente, um corpo tem pouco interesse. É na intersecção das
linhas dos movimentos e dos afetos que ficamos sabendo daquilo de que um corpo é
capaz. Sua capacidade, e não sua essência, é o que importa, a não ser que por
“essência” entendamos justamente sua “capacidade”. (TADEU, 2002, p. 53)
A partir daí, dos encontros, apostamos na arte para falar sobre corpo. Em parceria com a Varal,
montamos 20 horas de oficinas artísticas abertas ao público, dando preferência aos moradores
do Território do Bem. Essas oficinas se chamaram “O que pode um corpo?” e aconteceram em
janeiro e fevereiro de 2020. Toda sua organização está detalhada no Anexo A, e a imagem
abaixo mostra a arte utilizada para sua divulgação (Figura 3). Ao longo deste capítulo,
registraremos – não em ordem cronológica, mas na ordem das afetações – como esse projeto se
desenrolou.
70
Nos formulários online, encerramos as inscrições com vinte e três inscritos (porque a
capacidade do local é de no máximo vinte pessoas), mas apenas dez participantes cumpriram a
carga horária exigida para certificação. Desses dez, a maioria tem entre 17 e 26 anos, e duas
pessoas têm 36 e 39 anos. Sete deles são moradores do Território do Bem, e outros três,
curiosamente, são de outras regiões periféricas da Grande Vitória. Quatro participantes ainda
estão cursando o ensino médio, e os outros seis estão no ensino superior ou já concluíram
(Diário de campo da pesquisadora).
Entre os inscritos, o interesse pelas oficinas surgiu a partir de motivos variados… houve quem
chegou porque o nome das oficinas fizeram lembrar o filósofo Espinosa – que de fato foi nossa
inspiração; houve quem associou o tema à saúde e tinha interesse nesse viés de discussão, e
vários chegaram buscando a experiência da parte artística e a confecção da zine, que já estava
anunciada na divulgação (Diário de campo da pesquisadora).
Evocando novamente o caráter coletivo da educação, exposto por Gallo (2008), durante as
oficinas pensamos um corpo coletivo. Ao utilizar uma dinâmica com fotografias, foi pedido aos
participantes que fotografassem com o celular um local, ambiente, objeto, pessoas ou qualquer
coisa com a qual eles tivessem uma relação de coletividade. Levamos as fotos reveladas e
pedimos que cada um falasse um pouco sobre elas, e a partir daí muitos assuntos foram surgindo
espontaneamente. Alguns trouxeram fotos da vista que veem das suas janelas, outros trouxeram
72
fotos de membros da família, dos colegas de militância, do local de trabalho e até da mesa de
refeições (Diário de campo da pesquisadora).
Quando cada um foi explicando os motivos das imagens os afetarem, muitos repetiram sobre
os bairros em que moram serem retratados de modo depreciativo. Diziam sobre como era bom
morar no Território, sobre as amizades que construíram no local, sobre a convivência
harmoniosa entre as pessoas, os hábitos cotidianos que unem os moradores – o futebol, os
churrascos de domingo e as festas de família (Diário de campo da pesquisadora).
Compartilhando essas histórias, fomos concordando que as tentativas de enquadrar a periferia
em uma redução estereotipada esconde que esses locais estão povoados de pluralidades e
potências.
Nesse primeiro encontro, o oficineiro foi João Paulo Rocetti, ilustrador, quadrinista e morador
do Território do Bem. Ele tentava mostrar como já usamos os processos criativos no cotidiano,
e nos chamou atenção para o fato de que a criatividade pode se tornar mais fértil quando
passamos por algum tipo de escassez. Para se fazer entender, ele deu exemplos de como os usos
das ferramentas são transformadas no improviso diante da necessidade – como uma faca virar
uma chave de fenda, um ferro de passar roupa virar uma chapinha de cabelo, ou como as
crianças conseguem construir brinquedos e brincadeiras com os materiais que têm disponíveis,
como uma travinha de futebol feita com chinelos no meio da rua (Diário de campo da
pesquisadora).
Naquela conversa, o artista estava comentando sobre maneiras de usar o que a gente já tem para
produzir arte, para nos expressar. Nesse momento, diante dos exemplos citados, um dos
73
participantes compartilhou que muitas vezes as favelas são vistas apenas como mercado
consumidor e não como potência criativa, sendo que na verdade a inventividade nesses lugares
é grande, justamente porque essa população está diante de necessidades que a move e a faz
inventar para sobreviver. Bruno Cava (2012), nesse sentido, aponta que:
Porém, existe um olhar paternalista sobre os pobres, que busca salvá-los, desaliená-los,
transformar sua mentalidade. Olhar este que desconsidera as potencialidades que circulam
nesses territórios, que quer aniquilar as redes de afeto formadas neles, que não dá espaço para
que as singularidades se multipliquem. Nesse sentido, Alfredo Veiga-Neto (2019) mostra que
o campo da educação está tomado por uma sacralização pedagógica. Com isso, o autor quer
dizer que alguns educadores, guiados por certezas absolutas e caminhos rígidos, se tornaram
“[…] militantes sombrios do pensamento único e totalizante”, e que estão imersos na “[…]
lastimável celebração das verdades únicas anunciadas pelos arautos, que arrogam a si a tarefa
de ‘salvar a educação’ e com isso ‘salvar o mundo’” (VEIGA-NETO, 2019, p. 22).
Em muitos momentos no percurso desta pesquisa, deparamo-nos com discursos e práticas que
tentaram impor as diretrizes de atuação, impor um referencial teórico e impor uma visão de
mundo que segue essa mesma retórica de salvação, descrita por Veiga-Neto (2019), revelando
uma postura condescendente quando afirma que o objetivo de uma pesquisa nas áreas de
educação ou ensino seria promover uma transformação social, uma mudança de pensamento,
uma formação dita crítica e emancipadora.
Aqui, no entanto, a prática se tece de outro modo. As oficinas rascunharam uma formação na
qual os modos de relação dos sujeitos consigo mesmo, com os outros e com o mundo se
construíssem pela via do encontro. Assim, tentamos construir por meio delas uma formação
ética, política e estética que expandisse os limites do conteúdo e não se limitasse à transmissão
da informação. Por isso, à maneira de Inês Barbosa de Oliveira e outros pesquisadores (2012),
recorremos na verdade ao entendimento de um ensinoeducação, onde a formação é a
“possibilidade de conhecimentos prudentes que nos possibilitem uma vida decente, mais do que
74
No nosso caso, a pesquisa não pretendeu promover uma transformação nos participantes,
tampouco no local onde ocorreram as oficinas. Não que uma pesquisa não possa provocar
mudanças, mas quando ela se propõe a converter o outro, ela pode se tornar um lugar da
mesmice, e não de pulular a diferença. Carlos Skliar (2003) diz que quando falamos em
respeitar o outro, em aceitar o outro, corremos o risco de acolher apenas as visões e vivências
do outro quando convergem com as nossas, e isso é nada mais que uma anulação das potências.
Talvez a educação tenha muito a aprender com as periferias, com seus modos de vida fincados
na convergência das diferenças. As favelas, que são palco da inventividade e força criativa, têm
criado também redes de vida possíveis, além de táticas para sobreviver ao neoliberalismo
agressivo e violento. Estão apontando caminhos de se criar laços e desenhar novas
comunidades.
[…] dada essa potência de vida disseminada por toda parte, dada essa biopotência
presente em cada canto, dada essa força-invenção presente em cada lugar, que novas
redes de vida são possíveis? Que novas possibilidades de se criar laço e também
distância surgem em cada dia e em cada contexto? Que tipo de comunidades são
desenhas no horizonte? (PELBART, 2015, p. 23)
Pensar quais comunidades são desenhadas agora nos faz despertar para o fato de que as
associações políticas hoje não funcionam mais a partir das organizações tradicionais e
hierarquizadas, como outrora foram as organizações sindicais, por exemplo. Donna Haraway
(2009) diz que a luta política na atualidade não pode mais pretender uma identidade fixa, seja
de um sujeito revolucionário, de gênero, raça ou qualquer outra totalizante. As lógicas operam
muito mais próximas da política de alianças e de coalizões, na qual a identidade dá lugar à
afinidade, que no contexto do capitalismo atual, formulam-se em uma luta por sustento e
sobrevivência (HARAWAY, 2009). Nessa composição, o espaço é aberto para a diferença e
para a contradição, que se unem em redes de conexão para lutas em comum.
E é justamente isso que pode ser encontrado em comunidades que historicamente têm sido alvo
de políticas de exclusão e extermínio. Diante de um sistema que explora a vida e o corpo em
todas as instâncias, a alternativa é lançar-se à vida comunitária:
No âmbito da precarização do trabalho e da vida a partir dos anos 1990, por exemplo,
se de um lado fica evidente a que ponto essas condições resultam das injunções
perversas do neoliberalismo, com a vulnerabilidade que dele decorre, de outro, ao
mesmo tempo, criam-se formas de sociabilidade e de cuidado coletivo, de ativismo e
75
Muitos desses movimentos que se delineiam agora, portanto, estão centrados nas políticas do
comum. Não o comum apropriado pelo capital, como alerta Silvia Federici (2017b), mas o
oposto a esse. O comum que desafia a lógica neoliberal individualizadora, porque é o comum
que olha para as pautas do coletivo e dilui a individualidade. As periferias já produzem o
comum, porque a produção de vida comum é a
Diante das capturas do capitalismo, pensar um comum é criar alternativas de mundos possíveis.
Por isso, neste capítulo decidimos pensar a potência educativa de um corpo que compõe um
comum. De muitos modos os corpos são colocados nos processos educativos, mas nunca
passivamente, e sempre produzem escapes às capturas do poder, porque o aprendizado, em
qualquer espaço – formal ou não-formal – é algo que escapa, criando possibilidades de
resistências, de se opor ao controle, de fugir do controle e inventar algo novo. No comum da
educação “não há objetos, não há ações centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos,
individuações sem sujeito. Todo projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso
também” (GALLO, 2002, p. 176).
Este capítulo evidencia, portanto, a aposta política de compor com a periferia porque
acreditamos em sua potência e rejeitamos os olhares paternalistas sobre ela. Além disso,
buscaremos fazer aqui também as apostas metodológicas para o trabalho e registrar as
experimentações das oficinas artísticas que realizamos em conjunto com a comunidade,
relacionando-as ao modo como entendemos as questões da educação, da docência, do ensinar
e do aprender, mas, como dito, isso não será narrado em ordem cronológica, mas a partir dos
acontecimentos que foram afetando a escrita.
76
Essa aula me afetou de muitas formas. Um dos primeiros incômodos surgiu quando me deparei
com aquele roteiro de análise, que pareceu quase um passo a passo sobre como utilizar obras
artísticas com os alunos. Nesse dia, ouvimos o ponto de vista que defende que a realidade é
uma só; que a obra precisa ser contextualizada em sua época; que o mais importante sobre a
arte é entender a crítica social que o artista pretende com ela; que a subjetividade vem depois,
a intenção do artista vem primeiro etc. A partir daí, entendi que, nesse caso, as professoras
partiam de abordagens diferentes da minha em relação ao ensino de arte, amparadas em autores
marxistas que reforçam a busca de uma criticidade no ensino, a qual se guiaria pela
emancipação política nas manifestações artísticas.
No entanto, até mesmo Liev Vigotski (2003), grande referência do marxismo no assunto, afirma
que o ensino de arte se torna caricaturesco quando busca o “[…] sentido fundamental de
qualquer obra pela explicação ‘do que o autor quis dizer’ e do significado moral de cada
personagem separadamente” (p. 227). Ou seja, a tentativa de exprimir significados e dogmas
morais das vivências artísticas, de acordo com o autor russo, recai em uma compreensão
limitada e estreita da educação artística. Portanto, ele parte do princípio de uma educação
estética como um fim em si mesmo, e não apenas como um meio para obter resultados
pedagógicos, e que essa educação deve se preocupar em estimular a criatividade e aptidões
criativas, percepção com a qual concordamos muito.
Contudo, é importante destacar que nos afastamos de diversas proposições elaboradas por
Vigotski (2003) em relação à concepção e à função da arte. Para o autor, a arte é dialética, ela
20
No segundo semestre de 2018.
77
depende das categorias de negação para reconstruir a emoção e se resolver na catarse, processo
que ele entende como uma atividade complexa. Além disso, o objetivo da reação estética seria
superar o real e, portanto, a arte teria a função de transmitir uma verdade transformadora da
realidade. Para nós, isso soa um tanto impositivo, porque estamos mais inclinados a olhar a arte
como um espaço afirmativo, de multiplicidade, diferença, experimentação e afetação – que
podem, evidentemente, causar mudanças. Não necessariamente mudanças da ordem da
configuração social do mundo, mas antes na singularidade do corpo e na vida, criando
possibilidades de existências potentes.
Todavia, não podemos deixar de notar que seus ensinamentos trazem algumas compreensões
interessantes, como o entendimento de que somos todos potencialmente artistas e que o
espectador/leitor pode assumir uma papel ativo diante da arte e que, por isso, o processo de
criação e percepção dela geram estímulos. Além do mais, para nós é imprescindível entender
que não se pode reduzir a educação estética à transmissão de normas morais, ou a um conjunto
de significados:
Subentende-se que, com esse critério, a obra de arte fica desprovida de seu valor
independente, transforma-se em uma espécie de ilustração de uma tese moral geral;
toda a atenção concentra-se justamente nesse último aspecto, e a obra de arte fica fora
da percepção do aluno. Na verdade, com essa concepção não se criam nem educam
atitudes e hábitos estéticos; não se comunica a flexibilidade, a sutileza e a diversidade
das formas às vivencias estéticas; pelo contrário, transforma-se em regra pedagógica
a transferência da atenção do aluno da obra para seu significado moral. (VIGOTSKI,
2003, p. 227)
Para nós, a arte não tem um propósito maior, porque ela não tem compromisso nem com as
concepções de produtividade do capitalismo, e tampouco tem a obrigação de construir um bem
maior, propagar uma revolução, salvar da suposta alienação. Inspirados em Carminda André
(2011), aqui traçamos um sonho, uma utopia de mundo que se expressa em inventar relações
afetivas, modos de produzir afetos como prática ética, que se voltam à coletividade horizontal,
à afirmação da diferença, e à busca por outros possíveis para o corpo, para a vida e para a
própria arte.
A partir disso, não é exagerado dizer que algumas falas naquela aula me atormentaram,
especialmente as constantes indicações de que o lugar do subjetivo era menor do que os outros
critérios. Diante disso, sendo uma pessoa totalmente sem autoridade nos assuntos relacionados
à educação artística (porque não sou da área), questionei silenciosamente as ponderações das
professoras do mestrado. Entendi que, de fato, em um contexto escolar, diante dos currículos,
prazos e documentos oficiais aos quais os docentes devem se atentar, provavelmente as
78
orientações eram coerentes, mas aquele roteiro não serviria para mim se fosse encarado
arbitrariamente.
E mesmo sem discutir nada disso, aparentemente meu grupo também compartilhava desse
sentimento. Ao olhar as obras, antes de analisar se elas eram adequadas como material
educativo, antes de olhar as informações sobre autor, contexto em que foram produzidas, antes
mesmo de olhar a sugestão de uso com os alunos, percorremos aquilo que nos afetava nelas.
Algumas pessoas falavam das cores, outras contavam de quem se lembraram ao ver a imagem,
outras tentaram até inventar uma história para os personagens retratados nas pinturas, e
gastamos a maior parte do tempo compartilhando essas visões de maneira prazerosa.
Naquela ocasião, pensei em todas as escolas em que havia atuado e nas minhas próprias
experiências. Qual a relação dos meus ex-alunos com a arte? Qual a relação que eu mesma tinha
estabelecido com a arte? Lembrei das discussões na graduação sobre os espaços culturais
tradicionais da cidade estarem distantes da população, no sentido de que as pessoas não se
sentem autorizadas a acessar esses espaços. Pensei em como a colonização ainda ressoa nos
imaginários e nos faz acreditar que arte é apenas aquilo que está restrito a um espaço de museu
ou galeria. E com todos esses pensamentos, tantos outros vieram embaralhados e confusos.
A única certeza foi o desejo que surgiu de carregar para minha prática uma abordagem por meio
da arte, porque sabia que dessa forma existia a possibilidade de produzir sensações, reflexões,
incômodos e afetos, assim como meu grupo experimentou na aula. De forma totalmente
inesperada, aquela aula se transformou em uma das melhores que já tive no mestrado,
justamente devido ao imprevisível. Nós recebemos orientações sobre o que fazer com as obras
de arte, havia uma planejamento de como analisá-las, mas de um modo espontâneo as coisas se
modificaram e tomaram outros rumos, porque demos ouvido aos sentimentos e sensações que
nosso corpo experimentou diante das obras.
Uma pesquisa também se compõe dessa maneira. Não há pleno controle sobre o que vai
acontecer, ela é o espaço do inesperado, do devir e do intempestivo (FERRAÇO;
DELMONDES, 2019). Por mais que se deva planejar as ações, os acontecimentos se tecem
pelo acaso: “Não se trata, como na ciência, de controlar a vida nem de prevê-la, mas de inventá-
la” (TADEU, 2002, p. 56). Estamos propondo outra forma de pensar a educação artística e,
influenciados por Deleuze (2019), seguimos sem nos guiarmos pela interpretação, mas pela
experimentação.
79
Nas pesquisas de mestrado, em geral, é requisitado que anunciemos quais métodos são
utilizados para sua formulação, quais estratégias são colocadas para cumprir os objetivos
concretos, e como esses procedimentos podem ser articulados e organizados para serem
reproduzidos – sistema que, sem dúvidas, podemos considerar uma herança do pensamento
cartesiano. No entanto, antes de usar uma cartilha com respostas prontas, tentamos ouvir
perguntas diferentes, que nos despertaram para o valor do processo de pesquisar, mais do que
perseguir os resultados que ele pode trazer. Sob essa perspectiva, Durval Muniz de Albuquerque
Júnior (2007) afirma que
A partir disso, as perguntas que ouvimos foram: então, por onde caminha este corpo? Quais
mapas nos guiam? Estamos certamente caminhando pelas ruas, becos e encruzilhadas da favela,
do Território do Bem, mas não só nele. Nessa caminhada, o corpo brinca com a arte, faz
alianças, compõe um comum e reinventa o bairro, a cidade e o mundo. Como mostrou Oliveira
e outros pesquisadores (2012), não estamos sozinhos, mas andando na companhia do
ensinoeducação. Por isso não caminhamos para ganhar nota, passar de ano ou passar no
vestibular, e sim para percorrer os encontros ou, como Tomaz Tadeu (2002) indica, para nos
encontrarmos com muitos pensamentos.
Nessa andança, não poderíamos estabelecer uma estrada linear porque o caminho se constrói
ao mesmo tempo em que se caminha, e nesse processo vai deixando marcas no corpo, que é
percorrido por sensibilidades. A pesquisa é inerente à vida, faz parte da vida, trata de assuntos
da vida. Diante disso, Flávia Liberman e Elizabeth Lima (2015) mostram que o pesquisador
não é um condutor, mas um guia: não determinamos o percurso, mas acompanhamos na
caminhada. Então, decidimos juntos rasgar as instruções tradicionais e percorrer as pistas dos
afetos. E com isso onde queremos chegar?
O que importa não é o ser, a forma final. Nem o formar-se, o desenvolver-se, o ser
alguém, nem mesmo o devir-alguém – desidérios últimos de toda pedagogia. O que
importa é o devir-outro que não tem nenhuma forma, que é estranho a toda forma, que
é impessoal, que tem a imanência de uma vida. Nenhuma preocupação com o ponto
de partida ou com o ponto de chegada. O que conta é o que se passa no meio. Sempre
no meio. É aqui a morada da diferença. É esta, afinal, a moral: sair da história para
entrar na vida. (TADEU, 2002, p. 52)
80
Algumas dessas pistas, já vimos, aparecem na forma de autores, outras em filmes, algumas até
em poesias, músicas, e em trechos de um Diário de campo, registros que afetaram o corpo-
pesquisadora e por isso chegam na escrita para falar dos encontros da pesquisa. Esses encontros
não seguiram fórmulas, mas de algum modo fizeram o corpo-pesquisadora mobilizar atenção e
sensibilidade. Para que essas qualidades apareçam do próprio corpo, “não existem fórmulas
prontas, apenas uma longa preparação” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 190): uma inspiração
deleuziana.
Portanto, diante da escolha de trabalhar corpo a partir da arte, no primeiro encontro da pesquisa,
durante a oficina de criatividade, iniciamos uma discussão onde expus as motivações de ter me
amparado nesse eixo. Na conversa, demonstrei todos os incômodos já citados aqui, sobre as
visões elitistas de arte com as quais me deparei ao longo da vida. Assim, expus a arte como
uma possibilidade de afetar, tocar, mover e despertar os sentidos do corpo (Diário de campo da
pesquisadora).
Nesse mesmo encontro, decidimos passar um conhecido trecho do filme Ó paí, ó (2007), no
qual os personagens Boca (Wagner Moura) e Roque (Lázaro Ramos) estão tendo uma discussão
exaltada sobre dinheiro, quando aparecem falas racistas, que são respondidas de uma forma
brilhante e emocionante. A cena é muito intensa e foi justamente por isso que a escolhemos
para trabalhar na pesquisa. Assim como no trabalho de Mirela Corrêa (2017), chamamos os
participantes a uma experimentação: a fim de fugir de análises e interpretações, porque não
queríamos ouvir respostas supostamente corretas sobre o que seria o real significado da cena,
mas buscávamos quais significados eles dariam à cena. Ou melhor, não queríamos significados
e sim entender qual sentimento a cena despertou, o que os levou a pensar, o que os fez sentir
no corpo, ou qual lugar, cheiro, palavra, ou coisa surgiu ao assistir à cena.
81
Gilles Deleuze (2019) diz que há “[…] uma fórmula muito célebre de Espinosa, que é a
seguinte: Nós experimentamos… Nós experimentamos. Nós sentimos e nós experimentamos –
ele não diz ‘nós pensamos’. São duas palavras muito carregadas: ‘sentir e experimentar’” (p.
247). Nesse sentido afirmamos que a aposta dessa pesquisa é em experimentar com arte, e por
isso, nesta seção anunciamos a função da arte no trabalho, e o modo como nos relacionamos
com ela ao compor os encontros.
Conforme nos recorda Rodrigo Soler e Edelu Kawahala (2017), para Deleuze, “[…] a arte é o
procedimento por meio do qual o sujeito relaciona-se com a intensidade dos afetos” (p. 2). Isso
é dizer que a arte tem a potência de compor linhas de fugas, criar afetos, multiplicar as
singularidades. Deleuze e Guattari (1992) dizem que a ciência cria funções, a filosofia cria
conceitos e a arte cria blocos de sensações, ela retira do caos afetos e percepções:
A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte,
não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e
perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a
filosofia, mas pensa por afectos e perceptos. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 88)
Ou seja, a arte opera de forma diferente da ciência e da filosofia, mas é igualmente legítima e
tem suas características próprias. A experiência artística gera intensidades, por isso, os afetos
provocados por ela têm a potência de criar novos mundos, as percepções podem causar novas
sensações, e por isso, compor novos corpos. Na verdade,
Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os
experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força
daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres
que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem,
podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao
longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de
arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 213)
A arte existe em si, e dessa maneira, não pode ser reduzida a algo figurativo, a uma
representação, pois ela é uma atividade criadora de blocos de sensações. A arte acontece pelas
percepções e afetações, e por isso não necessita de uma reflexão sobre ela – a potência da arte
82
reside nas sensações, porque delas se implica um corpo intensivo, intenso, e com isso “[…] a
arte proporciona um acesso possível ao Corpo sem Órgãos” (DAMASCENO, 2017, p. 142).
O discurso moderno é o que define a arte como representação da realidade. Entretanto, não se
trata aqui de perseguir a arte da representação, não há nenhum problema com a arte que quer
representar. Antes, como mostra André (2011), trata-se de enxergar de outro modo, atentando
para seu aspecto inventivo: “A arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de
revelação de algo que se escondia, mas de tornar presente um vir a ser ali flutuante. Quando o
jogo artístico acontece, a arte inventa realidades” (p. 437).
Entretanto há, sem dúvidas, uma rede discursiva hegemônica que reafirma uma suposta verdade
da arte, que a coloca em um pedestal e muito distante da vida. Porém na contemporaneidade,
as práticas artísticas em vez de se prenderem a definições canônicas e limitadas, têm em comum
“[…] a capacidade de disparar, afetar, remodelar e redistribuir as formas de compreensão a
respeito do quê, quando e por quê algo pode ser chamado de arte […]” (SABINO, 2015, p. 20).
Nesse sentido, cabe destacar que não desconsideramos o lugar da técnica artística, do estudo,
da preparação e da dedicação, que são fundamentais aos processos em artes. Assim como o
trabalho do filósofo e do cientista, no trabalho artístico há muita preparação e atenção. Não se
faz arte de qualquer jeito, porque não se experimenta de qualquer jeito (DELEUZE;
GUATTARI, 1992). Outrossim, nosso tema é a educação artística, e o que tentamos construir
nas oficinas seguiu a proposta de Kelly Sabino (2015), que incita que arte-educação é dar espaço
para a criação de modos de vida. Dessa maneira, concordamos com a autora quando ela diz que
nossa tarefa enquanto educadores não é a de dotar os participantes da pesquisa de capacidades
que eles não têm por meio da transmissão de conhecimentos fincados em valores, modelos
morais e verdades absolutas.
De outro modo, vemos a educação artística como uma fusão da arte com a vida, onde a
experiência não mais se associa “[…] ao simulacro ou à elevação das aparências do mundo,
mas como projeto ético capaz de modelar a experiência tanto política quanto estética dentro da
própria vida”, e que também “[…] é capaz de ser crítica aos discursos totalizantes e radicais
buscando uma visão singular, contingente e parcial, que possibilite tanto a crítica do que nós
somos como a ultrapassagem dos limites que nos constituem” (SABINO, 2015, p. 205).
Dessa forma, a arte deixa de ocupar o lugar daquilo que recebe significados, que deve ser
contemplado, interpretado, compreendido em sua totalidade, contextualizado, para então se
83
tornar uma experimentação. Nesse jeito de se relacionar com a arte, de produzi-la, de vive-la,
de aprendê-la e ensiná-la, a própria prática docente se configura em uma estética de vida:
[…] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo em que se
exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente, se vê num plano de
construção ética, estética – e, mais do que pedagógica, política –, atuando na
diferença, sem pretender acabar com ela, mas problematizando o consenso e as ideias
prontas por meio de devires, gestos e inscrições no mundo feitas de potência. Em
suma, essa arte em questão possibilitaria o exercício de outras relações de poder no
interior da aula mantendo, principalmente, uma atitude crítica de si e do outro – da
relação pedagógica –, a fim de experimentar em si e com os outros diferentes modos
de ser. (SABINO, 2015, p. 209)
Ou seja, entendemos que o elemento artístico na educação não pode ser um meio para expressar
um contexto, senão a arte como um fim em si mesmo. A atitude estética diz respeito a não se
prender ao conteúdo fechado: é uma percepção e ação diante do mundo, uma prática em relação
à vida. Em outras palavras, o conteúdo surge da vida, das experiências, da subjetividade e
extrapola as fronteiras dos espaços educativos, ele transborda no cotidiano, faz aparecer a
diferença e o imprevisível no comum (SABINO, 2015).
Além disso, a arte não pertence ao artista que a criou, não está presa ao contexto em que foi
criada, não se reduz a explicações cronológicas e aos significados. Ela é um território de
sensibilidades estéticas, é uma composição que pode nos afetar. Ela também não depende do
espectador ou do artista para explicá-la, mas é um espaço de experimentação, um fluxo de afetos
e percepções:
Por isso, me fazer professora no percurso dessa pesquisa foi uma forma de experimentar o que
Sabino (2015) chama de estética da docência. A pesquisa passou por uma preparação, mas
optou por fugir dos modelos metodológicos prontos e dos discursos enrijecidos da educação. A
educação com a arte extrapola a obra de arte, os espaços tradicionais da arte, e os próprios
artistas. Estive, portanto, assim como a autora, menos preocupada em transmitir conteúdos
estáticos e mais inclinada a ver a arte-educação como uma experimentação de modos de vida,
de criação de modos de vida e, por isso, de resistências.
Portanto, caminhar com arte não é ditar regras sobre o que é ou deixa de ser arte, quem pode
ou não fazê-la, a qual lugar ela pertence – é muito mais uma tentativa de criar um CsO,
84
experiência que nasce, por assim dizer, também no meio das artes, com Antonin Artaud. O
Corpo sem Órgãos é um devir que busca formas novas de experimentar a vida, colocando este
corpo no movimento das sensações e afetações, em uma busca pela composição de
subjetividades outras, as quais não se assujeitam às capturas do controle, que traçam um mundo
novo, que pensa outros modos de ser. Assim, nas palavras de Soler e Kawahala:
[…] resta-nos perceber a arte como uma afetação que envolve a própria ruptura em
relação ao acossamento dos dispositivos de poder, das estratégias de saber e dos
processos de subjetivação. Desse modo, percebe-se como para Deleuze a arte opera
como uma potência, uma potência do viver, pois o que está em jogo em toda a sua
porosidade discursiva são as condições de possibilidade para pensarmos outros modos
de ser. Trata-se, sem sombra de dúvida, de operar a construção de uma bricolagem
sobre as relações do sujeito consigo mesmo por meio dos agenciamentos e das linhas
de fuga (2017, p. 7).
Como dito, na nossa sociedade predomina um modo de existir universal, o qual tentar abortar
a emergência de outros modos. Mas diante disso, Peter Pelbart (2014) enfatiza que é preciso
instaurar a própria existência: “[…] só existimos na medida em que fazemos existir outros, ou
que ampliamos outras existências, ou que vemos alma ou força onde outros nada viam ou
sentiam, e assim fazemos com eles causa comum” (p. 253).
A arte cria possibilidades, explora uma vida possível, trama uma existência potente. Por isso, a
arte – mesmo em um contexto educativo – não pode ser reduzida a uma apresentação de
técnicas, explicação sobre correntes artísticas, análise de obras, componentes de composição
ou cores, pois “[…] um ensino de arte cujo foco esteja centrado nos códigos das linguagens
artísticas pode facilmente tornar-se uma experiência vazia” (SABINO, 2015, p. 40). Desse
modo, trabalhar com arte na educação ou fora dela sempre
A arte, por conseguinte, tem para nós a função de descobrir, criar e inventar possibilidades de
mundo, rascunhar modos de existência, de aumentar a potência de si e do outro, de ser um
85
Na esteira de Bruno Latour (2008), quando em uma palestra pediu aos participantes que
anotassem o antônimo da palavra corpo, em um dos nossos encontros também perguntamos aos
participantes o que eles consideravam o contrário de corpo, e pedimos que escrevessem sem
compartilhar uns com os outros no primeiro momento. Ao aplicar a mesma dinâmica do
pesquisador, algumas respostas se aproximaram e outras foram um tanto diferentes: Latour
recebeu as respostas “anticorpo”, “ninguém21”, “insensível” e “morte”. Já nossos participantes
escreveram “mundo espiritual”, “não-forma”, “inerte”, “constância”, “imaterialidade”,
“objeto”, “algo que não tem matéria física” e “inexistir” (Diário de campo da pesquisadora).
Mesmo diante de toda a tradição que impõe um dualismo entre corpo e mente, nenhuma das
respostas colocou a palavra mente como oposição ao corpo. No entanto, muitas das palavras
escritas expressam a dualidade entre algo físico e algo espiritual ou transcendental. Quando
passamos a comentar as respostas, as falas evidenciaram ainda mais essa visão de um corpo
separado e fragmentado, de modo que se confirmou que o entendimento de um corpo apartado
da mente está relacionado a uma forma de ver o mundo, a qual Latour (2008) denomina de
bifurcação da natureza, e explica:
Ou temos o mundo, a ciência, as coisas, e não temos sujeito; ou temos sujeito e não
temos o mundo, aquilo que as coisas são realmente. Está, assim, montado o cenário
para uma longa discussão sobre o problema mente-corpo, bem como para
intermináveis sucessões de argumentos holísticos procurando “reconciliar” o corpo
fisiológico e fenomenológico num todo unitário. (p. 42)
Essa reconciliação de que o autor trata foi muitas vezes evocada nas falas dos participantes.
Um deles, que veio da área da saúde, indicou que muitos problemas mentais são causados por
uma suposta desconexão com o corpo, e que pensar a saúde do corpo é pensar a saúde da mente,
ainda que as pessoas não enxerguem com a mesma relevância os problemas psicológicos. Para
21
Em inglês a palavra ninguém é nobody, enquanto corpo é body.
86
exemplificar seu ponto, ela comentou como o corpo somatiza as emoções, exibindo sintomas
físicos quando passamos por variações emocionais.
Ainda que os argumentos apresentados por ela sejam coerente e verdadeiros, a hipótese de um
corpo desconectado da mente se distancia de nossa proposta. Como já mostramos, entendemos
um corpo integrado, e para além disso, um corpo que não se determina pelo físico, pelo
biológico, e escapa dos reducionismos binários. Sobre isso, de acordo com Latour: “Superar o
dualismo mente-corpo não é uma grande questão fundadora: é apenas resultado da falta de uma
definição dinâmica do corpo como a aprendizagem de ser afetado” (2008, p. 42). Enquanto nas
conversas ouvia-se sentenças como “meu corpo é minha casa” (Diário de campo da
pesquisadora), tentamos mostrar que havia outra forma de compreender o corpo, na qual os
pensamentos, sensações, desejos e sentidos são o corpo, movem o corpo.
Contudo, nessa pesquisa não houve a pretensão de convencer nem os participantes nem a
ninguém. Não pretendíamos com as oficinas modificar suas visões de mundo, confrontar suas
concepções, nem tampouco convertê-los para que passassem a entender em consonância com
os autores que trabalhamos. O objetivo sempre foi provocar uma experimentação, promover
bons encontros, fazer movimento, compor um corpo potente.
A partir disso então questionamos: “O que você acha que quer dizer a pergunta ‘o que pode um
corpo?’”. Muitas respostas chamaram atenção. Uma participante disse que desde o começo
ficou intrigada com isso, pensando que se tratava de um aspecto físico. “Será que meu corpo é
capaz de flutuar, levitar?” (Diário de campo da pesquisadora). Entre muitas risadas, a discussão
seguiu no sentido do que o corpo é capaz de fazer. Nesse momento, uma outra participante
compartilhou sua experiência no teatro, falando das “capacidades ilimitadas” do corpo – nas
palavras dela – para, por exemplo, compor um personagem ou uma cena só a partir de sensações
corporais (Diário de campo da pesquisadora).
Foi aí que uma participante fugiu dos aspectos positivos e falou dos limites do corpo, como ele
é adestrado e controlado. Naquele contexto, fez-me lembrar e compartilhar com o grupo os
exemplos de Michel Foucault (1999) sobre a técnica disciplinar, na qual os espaços de
confinamento (escola, prisão, hospital, quartel) são utilizados para exigir do corpo o máximo
de sua força-produtiva e o adestrar, subordinar e limitar. Comentamos como somos organizados
para seguir regras, obedecer sem questionar, e essas imposições se refletem inclusive no corpo
87
Mas, como dito, ainda assim, com tantas limitações impostas ao corpo, buscamos sua potência:
experimentar o que o corpo pode é “[…] explorar as condições que atravessam a materialidade
finita dos corpos e sua potência para produzir conexões, experimentar encontros, compor-se
com o ambiente, conhecer e produzir mundos” (LIBERMAN; LIMA, 2015, p. 187).
Ao longo dos encontros, percebi que a palavra potência estava muito presente no vocabulário
dos participantes. Ao questionar o que eles entendiam como potência, a definição veio de uma
participante formada em física: “A potência é a energia armazenada capaz de produzir
movimento ou transformação” (Diário de campo da pesquisadora). Essa definição foi muito
interessante, porque de algum modo se relaciona com o que Baruch de Espinosa diz sobre
corpo. O corpo está sempre submetido a aumento ou diminuição da potência, e ela se efetua a
cada instante, movendo nossa capacidade de agir, de nos movimentar ou repousar (DELEUZE,
2019).
Retomamos então que em outro momento, assim como Espinosa, um dos participantes tinha
definido corpo como movimento. Assim, um corpo é aprender a ser “[…] movido, posto em
movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. Quem não se envolve nessa
aprendizagem fica insensível, mudo, morto” (LATOUR, 2008, p. 39, grifos nossos). Quando
perguntamos “O que pode um corpo?”, estamos falando dessa força, daquilo que nos move e
põe em ação, das coisas que nos afetam e aumentam ou diminuem nossa potência de agir.
Então somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e de ser afetado,
e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de
experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa. Vamos
aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que
com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o
que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui e, por conseguinte,
o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros,
e a compor, é uma grande arte. A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição
de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir.
[…]. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois polos, essas
subidas e descidas, elevações e quedas. (PELBART, 2008b, p. 1)
Em outra conversa, explicando sobre o discurso da modernidade que hierarquiza corpo e mente,
colocando o corpo como inferior (NAJMANOVICH, 2001), um dos participantes discordou
dizendo: “Eu tenho um problema, eu acredito que meu corpo manda na minha mente” (Diário
de campo da pesquisadora). Argumentou com um exemplo pessoal que mesmo quando está
cansado do trabalho, tem energia para beber, e se vai para uma festa com amigos, tem disposição
88
para se divertir – e que se estivesse trabalhando, estaria exausto e sem conseguir realizar as
tarefas (Diário de campo da pesquisadora). A partir desse comentário, passamos a discutir sobre
como o ambiente afeta o corpo, com o entendimento que Peter Pelbart (2008a) traz a partir de
Deleuze, de que os encontros dos corpos não se restringem aos outros corpos humanos, mas
atingem também os objetos, a luz, os sons, os alimentos. Ou seja, o poder de ser afetado
acontece, no exemplo do participante, também pelos estímulos que o corpo recebe, e faz agir
de maneiras diferentes.
Dando continuidade às conversas, movida pelo desejo de trabalhar com arte para falar de corpo,
resolvi utilizar o mesmo material que minha turma teve acesso naquela citada aula, porém com
uma abordagem diferente. Trata-se de um material elaborado pelo Núcleo de Ação Educativa
da Pinacoteca do Estado de São Paulo 22 e distribuído gratuitamente para professores com
objetivo de realizar atividades em sala de aula. O material é formado por uma série de envelopes
coloridos (Figura 6), que foram desenvolvidos em épocas diferentes, e contém obras que estão
no acervo fixo do museu ou passaram por lá temporariamente, e junto às obras existem textos
que instigam reflexões e debates sobre elas, de modo que são um convite a conhecê-las e aos
artistas responsáveis.
22
A Pinacoteca de São Paulo é um museu brasileiro administrado pelo governo do estado de São Paulo. São
vinculados à instituição muitos projetos focados em arte-educação, atividades educativas e formação de
professores.
89
Figura 7 - Foto de obra contida em um dos envelopes; do verso de outra obra com informações detalhadas; e do
texto de apoio que acompanha o material
Nos envelopes encontramos também um texto de apoio (Figura 7) no qual estão orientações aos
educadores e propostas de usos. Em um deles, elaborado por Mila Chiovatto (2016), chama
atenção um incentivo aos professores à percepção do ensino de arte como um estímulo na
construção de sentidos a partir das experiências. Sendo assim, o próprio material ressalta que
nenhuma utilização rígida pode se impor à obra, porque o encontro com a arte é singular. Diante
disso, o professor se torna um mediador e criador de possibilidades para que os alunos percebam
as obras criando sentidos para elas a partir de sua singularidade (CHIOVATTO, 2016).
Isso me aqueceu o coração porque confirmou que os anseios faziam algum sentido. A arte pode
ser um excelente espaço de criação, experimentação e produção de novas subjetividades. Nas
oficinas, levamos alguns desses envelopes e entregamos aos participantes sem mostrar o
conteúdo previamente. Quando cada um abriu seu envelope, foi pedido que eles se imaginassem
dentro da cena que encontraram. O desafio era criar uma história onde eles fizessem parte
integral daquela obra, antes mesmo de ler as informações sobre ela, só a partir dos sentimentos
e afetações provocados pela arte.
acaso e ao improvável. Especialmente dar palco ao modo como a arte afeta cada corpo e com
isso produz uma subjetividade.
E tantas experiências boas tivemos nessa dinâmica. Um participante, diante da obra Parede da
Memória (1994-2015) de Rosana Paulino (Figura 8), inventou que aquela exposição era sobre
sua própria família, que tentava recuperar sua ancestralidade (Diário de campo da
pesquisadora). Essa obra específica usa fotos antigas de famílias negras registradas em patuás,
com aquarela e bordados nos detalhes. O mais interessante é que quando resolvemos ler as
informações no verso sobre a autora e a obra, se aproximava muitíssimo da história inventada
pelo participante. Paulino faz uma crítica intensa à falta de representação negra nas artes visuais,
acentuando o modo racista como a sociedade brasileira se constitui, invisibilizando a população
negra – todos esses elementos geraram muitos debates nas oficinas.
No entanto, houve outro registro muito diferente que também afetou o grupo. Uma participante
escolheu uma obra abstrata para criar sua história. Tratava-se da Ascenção definitiva de Cristo
(1932), de Flávio de Carvalho (Figura 9). Ela contou então que o que viu na obra, sem ler o
título e as informações, foi a imagem do seu subconsciente. Visivelmente emocionada, disse
que aquilo para o mundo era algo muito confuso, incompreensível e impreciso, mas para ela
era uma tentativa de se entender (Diário de campo da pesquisadora).
91
Esses dois exemplos de experiências nas oficinas podem dar alguns indícios do que, para nós,
tem a arte a ver com corpo. A arte se relaciona com a vida, ela pode nos provocar a ultrapassar
os limites que nos constituem, inspirar-nos a buscar uma visão singular que foge dos discursos
totalizantes. A arte movimenta afetos e sensações que fazem a matéria vibrar (SABINO, 2016).
Nas oficinas, a arte apareceu em cena no meio das discussões, foi entrelaçada por elas, e com
isso traçamos um modo de fazer arte como uma experiência estética e educativa. Fizemos isso
partido do argumento de Carminda André (2013), quando ensina que a arte coloca em risco a
concepção que temos de nós mesmos e, assim, ajuda-nos a escapar do corpo disciplinado,
moldado e limitado, porque nos chama à invenção e reinvenção constante de nós.
Nessa mesma dinâmica com as obras da Pinacoteca do Estado de São Paulo, diante de uma
fotografia de 1976 de Cristiano Mascaro (Figura 10), uma participante narrou a história de uma
manequim que ganha vida, mas não consegue se adaptar ao mundo, não consegue viver a
liberdade. Na fotografia em preto e branco vemos uma mulher segurando uma porta rollmatic23
e olhando para fora. Ao fundo, vemos o que aparenta ser uma galeria de lojas, e dentro dos
vidros, manequins femininos.
23
Porta de ferro ou aço, de rolar, comum nos comércios brasileiros.
92
“Tinha acabado de me dar conta: todas eram iguais. Figuras perfeitamente moldadas
em suas vestimentas e cortes de cabelo. Todas falavam com o tom de voz ligeiramente
agudo e amaciado e fingiam frivolidade, enquanto em seus olhos eu procurava suas
almas. Olhei para mim. Percebi que era uma versão caricata e disforme dessas
mulheres que sequer tinha certeza que existiam. Procurei por todos os lados uma saída
[…] Olhei vacilante para o grande papel em branco que era poder ser qualquer coisa
que não um manequim. Desenhar a mim mesma livre. Sem saber o que fazer, voltei
para a caixa e tentei colar a porta, mas ela não encaixava mais.” (Diário de campo da
pesquisadora, com poucas alterações gramaticais).
Uma outra participante chegou no momento em que começamos a falar sobre esse conto, e a
partir dele, desabafou sobre questões relacionadas ao seu corpo e às pressões estéticas que as
mulheres sofrem na sociedade. O conto, que enfatizou a dificuldade da mulher-manequim de
viver fora da prisão de ser manequim, gerou debates sobre como as mulheres do grupo se
sentiam sufocadas e pressionadas a cumprir uma feminilidade com exigências impossíveis,
especialmente relacionadas à magreza.
Nesse momento, fui tomada por um incômodo por perceber que o grupo sempre puxava a
conversa para o aspecto físico e biológico do corpo. Em relação a isso, Maria Rita de Assis
César (2019) nos ajuda a entender que:
Entrar nesse terreno de discussões foi especialmente delicado para mim, tendo em vista minha
trajetória na luta contra a gordofobia. Eu não queria discutir padrões de beleza com o grupo por
considerar um assunto íntimo demais, que me comove e me tira do eixo. Porém, o não planejado
aconteceu, e não se pode controlar o que germina nos encontros. Essa foi uma das conversas
mais inflamadas das oficinas, e todos compartilharam histórias pessoais e exemplos famosos
de gordofobia que estavam em foco na mídia.
Diante disso, uma participante que é da área da saúde, colocou ponderações sobre o “perigo”,
segundo ela, de se “fazer uma apologia à obesidade” (Diário de campo da pesquisadora). No
entanto, em cima disso se teceram críticas aos modelos de saúde e beleza impostos pelo
capitalismo. Tentei mostrar, ainda que superficialmente, como o entendimento sobre o que é
saúde não é um consenso na comunidade científica ou na sociedade em geral. Como explica o
médico Benilton Bezerra Júnior (2006), essa noção muda drasticamente a partir de inúmeras
variáveis, e não só ainda está em alteração como vai permanecer se transformando, porque é
uma ideia sempre tensionada por outras ideias. Isso nos tira os parâmetros objetivos para
classificar uma pessoa como saudável ou não, e em muitos aspectos coloca essa classificação
sob critérios subjetivos (BEZERRA-JÚNIOR, 2006).
O corpo pode ser uma potência educativa? Apostamos que sim. Nos encontros, não foram raras
as vezes em que as marcas do corpo trouxeram ensinamentos. Pensamos como a política
perpassa os corpos, seja com a questão da gordofobia citada acima, seja com as questões raciais
que apareceram diversas vezes nas discussões. Em uma das oficinas, enquanto
experimentávamos com as colagens24, uma das participantes procurava nas revistas imagens
positivas de pessoas negras, e diante da dificuldade de encontrar, começou uma discussão sobre
a predominância da estética branca nos meios de comunicação, e como isso é uma forma de
violência aos corpos negros.
Na verdade, o racismo foi uma pauta recorrente nos encontros. Em 2019, a pesquisa “Saberes,
fazeres e perfil dos moradores do Território do Bem” entrevistou 400 famílias da região, e
constatou que entre os entrevistados, 30% se declara como preto e 51% como pardo
(PESQUISA..., 2019). Nas nossas oficinas, em nenhum momento aplicamos questionários para
traçar o perfil dos participantes, e também não nos preocupamos em interrogar suas identidades.
Mas, estudando o Diário de campo, percebemos que em todos os dias houve comentários
relacionados à temática racial. Desde relatos duros e emocionantes sobre a violência policial e
a ação estatal na comunidade, até menções sobre o preconceito destinado às religiões de matriz
africana. Pudemos constatar, portanto, que o peso da racialização nos corpos teve uma
expressividade relevante para as discussões. Pois, como bem sabemos,
24
Que trataremos mais adiante neste capítulo.
25
A sigla LGBT corresponde a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros. É o movimento de luta pela
liberdade sexual e por identidades de gênero plurais.
95
o rap nos anos 1990 e 2000. Depois das reflexões, o encontro acabou com música, batidas e
ritmos diversos, porque outra participante, que é cantora, foi convidada pelo grupo a cantar e
tocar conosco o que os participantes definiram como funk feminista, que gerou muita interação
e confraternização (Diário de campo da pesquisadora).
Também tivemos discussões sobre como os corpos são agenciados a partir das normas de
gênero. Em um dos encontros, uma participante expressou que sua cirurgia de retirada das
mamas por causa de um câncer a fez questionar a imposição de gênero na nossa sociedade.
Segundo ela, o processo de ver a transformação de seu corpo colocou em xeque o que entendia
até então por ser mulher e ser homem. Ela disse que pelo fato de ser alta, muito magra e agora
sem mamas, frequentemente é confundida com travestis, e isso inclusive a expõe a violências
transfóbicas – mesmo sendo uma pessoa cisgênero 26. Na verdade, nas oficinas, ela27 expressou
que não tem certeza se está encaixada no binarismo de gênero, e gostaria de talvez recusá-lo.
Isso nos leva a pensar nos trabalhos de Paul B. Preciado (2014a) que mostram a identidade
sexual como um efeito da biopolítica, que impõe que o corpo só tem sentido se operado na
lógica sexuada. O que define essa identidade, de acordo com o autor, não são os fatores
biológicos, cromossômicos e anatômicos, mas sim uma atuação do poder que tenta construir
um corpo inteligível a partir da coerência entre o visual e o discursivo. Ou seja, ainda que exista
uma pretensa naturalidade naquilo que denominamos como sexo biológico, nem a categoria
sexo, tampouco gênero, guardam em si uma natureza. Tanto sexo quanto gênero são atribuídos
pela tecnologia sexual, que recorta zonas corporais definindo-as como órgãos, e que ainda vai
além, permitindo que tais órgãos ditem uma verdade e produzam uma subjetividade
(PRECIADO, 2014a).
É interessante observar que quando se trata de discussões sobre questões de gênero, ainda que
se assuma tal categoria como uma construção social, recorre-se frequentemente à busca de uma
naturalidade intrínseca ao corpo, o que se classifica como sexo. Portanto, características
anatômicas e fisiológicas como pênis, vagina, útero, hormônios e cromossomos são assumidos
na esfera da natureza, como fenômenos estáticos e puramente biológicos que compõem uma
realidade orgânica. Não obstante, nessa lógica, não se considera que sexo seja tão fabricado
quanto gênero, porque a “natureza” dessas partes corpóreas se relaciona constantemente com
26
Cisgênero se refere às pessoas que estão em conformidade com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
27
A participante não se incomoda com o uso dos pronomes femininos e não exigiu pronomes neutros no seu
tratamento.
96
Mesmo que muitos dos exemplos discutidos aqui versem sobre as opressões que recaem sobre
os corpos, sabemos que novos ensinos são fundamentais – ou estaremos fadados à paralisação,
a remoer as exclusões e discriminações. Muitas lutas se compõem a partir do corpo, e por isso
se faz necessário olhar para um corpo que ensina para além do sofrimento e da dor. Sabemos
que resistir não é apenas aguentar, mas também criar possibilidades de futuro, criar algo novo
(PELBART, 2003). Pensando nisso, as oficinas propostas foram uma tentativa de pensar corpos
lutando de um modo afirmativo e criativo. Corpos coabitando e construindo um comum nos
encontros… um corpo que se encontra com outros e se faz potência.
Para construir a prática educativa de um modo afirmativo e potente, convidamos artistas para
guiar algumas das oficinas – ainda que a arte não esteja presa ao domínio deles:
“O artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto
deve ficar de pé sozinho. […] Manter-se de pé sozinho […] é somente o ato pelo qual o
composto de sensações criado se conserva em si mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
214). Mas pensamos que, enquanto professores, “[…] deveríamos aprender com os artistas a
inventar a nós mesmos, a não nos conformarmos com o que somos, desconfiando das verdades
instituídas, em busca de compor com nossos alunos uma experiência […]” (SABINO, 2016, p.
154).
A experimentação é uma atitude artística diante do mundo, aquela que se inventa a si o tempo
todo e não busca anular ou policiar a diferença, mas sim compor potências com ela. No contexto
educativo, essa experimentação artística possibilita novas relações, possibilita uma docência
afirmativa e uma vida-docente como obra de arte, que é da “[…] ordem do estranhamento, e
não da conformação e da identificação. Um rasgo no caos, uma fissura como possibilidade do
novo, do intempestivo” (SABINO, 2016, p. 155).
97
Uma das oficinas que mais movimentou os participantes foi a de colagens, com a artista
capixaba Alice Kiefer. Segundo ela, a colagem é uma técnica artística que consiste em colar
algum material (recorte de revista, retalhos de roupas, papel, madeira, objetos etc.) em alguma
superfície (Diário de campo da pesquisadora). Na ocasião, espalhamos dezenas de revistas,
cola, papéis coloridos e outros materiais para nos desafiar a fazer as obras (Figuras 11 e 12).
Todos sentiram uma imensa liberdade de criar diante dos incentivos da artista, e
experimentamos um momento prazeroso. Prova disso é que essa foi uma das oficinas mais
elogiadas. O que nos impressionou foi o modo como a oficina foi conduzida, porque a artista
em nenhum momento fez um tutorial ou aplicou um passo a passo de como fazer tal arte.
Apenas se sentou no chão junto com os participantes, falou brevemente sobre sua trajetória e
apresentou algumas possibilidades. Logo nos convidou a mergulhar nas próprias produções,
98
confirmando que “a colagem é uma linguagem que contrapõe o sentido das imagens para
elaborar novos significados, sendo imprescindível percorrer o mundo do sensível e coletar
curiosidades que serão transformadas em algo novo, algo híbrido e fragmentado” (RICO, 2017,
p. 113).
Alguns participantes, de imediato, sentiram medo de arriscar, repetindo continuamente que não
sabiam fazer, que não conseguiriam elaborar algo artístico que nunca fizeram antes, que não
tinham habilidade com a tesoura, e pediam muitas vezes uma direção mais explícita sobre o que
realizar naquela atividade (Diário de campo da pesquisadora). Quando isso acontecia, a artista
se sentava ao lado deles e apenas apresentava possibilidades: não assumia o controle nem fazia
por eles, perguntava qual história eles gostariam de contar na colagem, abria as revistas e
sugeria caminhos, dava ideias e os incentivava a procurar sozinhos imagens com as quais se
identificassem, para assim seguir sua própria trajetória na composição daquela obra,
especialmente aproveitando o processo, sem uma cobrança sobre o resultado.
Essa postura da artista nos lembra que o aprendizado tem uma dimensão de imprevisibilidade,
de indômito, porque ele acontece singularmente com cada um, ainda que a pedagogia
tradicional, como indica Gallo (2012), coloque o ato educativo em uma perspectiva científica,
na qual o aprendizado é supostamente controlado. Ou seja, onde só se aprende o que é ensinado,
seguindo métodos com objetivo de alcançar o saber em si.
Qualquer relação, com pessoas ou com coisas, possui o potencial de mobilizar em nós
um aprendizado, ainda que ele seja obscuro, isso é, algo de que não temos consciência
durante o processo. É apenas ao final que aquele conjunto de signos passa a fazer
sentido; e, pronto, deu-se o aprender, somos capazes de perceber o que aprendemos
durante aquele tempo, que nos parecia perdido. (GALLO, 2012, p. 3)
99
Outra oficina que causou muitos impactos no grupo foi a de expressão corporal (Figuras 13 e
14). Com uma artista que tem atuação na área circense com foco no Teatro do Oprimido 28 fomos
chamados a experimentar movimentos diferentes dos usuais com nossos corpos. A escolha
dessa oficina aconteceu porque, de acordo com Marcelo de Trói e Leandro Colling (2017), o
fazer teatral coloca o corpo como centralidade, um corpo vivo e pulsante que se entrega às
possibilidades de experiências.
28
É um método de teatro desenvolvido por Augusto Boal, que utiliza exercícios e técnicas que se aproximam da
filosofia do educador brasileiro Paulo Freire. Agradecemos à Marly Rodrigues – atriz formada pelo método – por
essa definição.
100
No meio de uma experimentação tão díspar para a maioria dos participantes, foi inevitável o
aparecimento de risadas, piadas e implicâncias. Muitos participantes já eram amigos antes das
oficinas, já se conheciam, e mesmo os que estavam se conhecendo por conta da nossa prática
conseguiram se tornar colegas em pouco tempo. Mas esse comportamento de intimidade e
brincadeiras gerou incômodo e repreensão. Fomos advertidos, em voz alta, de que esse não era
o objetivo da oficina, que ali era um espaço sério e ninguém estava lá para “perder tempo”
(Diário de campo da pesquisadora).
A oficineira trouxe nesse dia duas colegas de outros países da América do Sul para participar
do encontro, e elas ainda não falavam muito bem o português. A comunicação ficou um pouco
travada, e alguns participantes estavam imitando o sotaque do espanhol. Percebi que para uma
101
das convidadas da oficineira essa imitação soou mal, deixando-a envergonhada. Pedi algumas
vezes que eles parassem e, sem sucesso, já atordoada pelo que tinha acontecido, falei de modo
muito rígido que aquele comportamento era preconceituoso e racista.
Essa minha fala foi o ápice para deixar alguns dos participantes ainda mais estressados. Eles
disseram, aborrecidos, que a Varal não era de modo algum um espaço de preconceito, que ali
não se tolerava esse tipo de comportamento. Apontaram para um quadro onde estava escrito
“aqui tudo é permitido, menos racismo, capacitismo, LGBTfobia, gordofobia e qualquer
discriminação” (Diário de campo da pesquisadora).
Após esse conflito, me aproximei daqueles que se incomodaram com minha fala e pedi
desculpas repetidamente. Eles me disseram que não queriam que as convidadas tivessem uma
impressão errada sobre a Varal, que o modo como me expressei soou como se eles fossem
intolerantes, quando na verdade eles só achavam o sotaque bonito e engraçado (Diário de campo
da pesquisadora). Eu me arrependi de ter tido uma postura impulsiva, e expliquei como as
pessoas latinas são malvistas ao redor do mundo. A partir disso, tivemos um papo proveitoso
sobre racismos e as formas como eles aparecem na sociedade.
Mesmo com essa boa conversa, com os exercícios teatrais tão interessantes e com o encontro
tendo terminado em músicas típicas latinas, para mim não houve sentimento de festividade,
pois eu saí de lá arrasada. Me senti absolutamente despreparada, afinal, esse conjunto de
encontros foi minha primeira experiência organizando oficinas, e a preocupação de que eu não
era uma boa professora, que tantas vezes me perturbou, havia aparecido novamente.
Ter chateado os participantes depois de dias tão bons foi desmotivador. Questionei minhas
práticas, minha comunicação, meu ímpeto em aniquilar a diferença com agressividade. Sobre
isso, lembrei de Michel Foucault (1977), quando alerta que o fascismo não é apenas aquele
evento localizado na História dos grandes líderes autoritários, mas também aquele que está em
nós e no nosso cotidiano, mesmo sendo militantes. São os comportamentos que nos fazem
“desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 1977, p. 2). Assim, faz-se
necessário expulsar todas as formas de fascismo que perpassam nossos corpos, e para que isso
ocorra, entre tantos outros conselhos, o autor diz: “Prefira o que é positivo e múltiplo; a
diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas”
(FOUCAULT, 1977, p. 3).
102
Tanto a experiência ruim com o posicionamento da oficineira quanto minha exaltação no grupo
faz lembrar que nossos corpos são movidos por afetos, às vezes tristes. Acerca disso Deleuze
afirma que “o mais belo é viver sobre as bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado,
com a condição de que esse seja o limite alegre, pois há o limite da alegria e o limite da tristeza”
(2019, p. 63). No encontro entre os corpos, há poder de ser afetado, mas nesses encontros,
aquilo que não me convêm me afeta de tristeza, ou seja, diminui a potência de agir. A
diminuição de potência decompõe as relações. A potência está justamente em compor relações:
Eu encontro os corpos, meu corpo não cessa de encontrar os corpos. Os corpos que
encontro têm, ora relações que se compõem, ora relações que não se compõem, com
a minha. O que se passa quando eu encontro um corpo cujas relações não se compõem
com a minha? […] Eis o que vou dizer: minha potência diminui. […] É uma
quantidade de potência imobilizada. […] De qualquer maneira, uma parte de minha
potência está fixada, é isto que quer dizer: uma parte de minha potência diminui. Com
efeito, sou subtraído de uma parte de minha potência, ela não está mais em minha
posse. […]
Ao contrário, na alegria, é muito curioso. A experiência da alegria tal como Espinosa
a apresenta, por exemplo eu encontro alguma coisa que convém, que convém com
minhas relações. (DELEUZE, 2019, p. 176)
Como desde o início apostamos na experiência de compor com arte, outra oficina realizada foi
a de elaboração de zines. Segundo João Paulo Rocetti, que além da oficina de criatividade
assumiu também esse encontro, as zines são uma espécie de livreto ou revista; são uma
ferramenta de publicações independentes, autônomas, de baixo custo e de fácil elaboração
(Diário de campo da pesquisadora).
E, de acordo com Omar Rico (2017), as zines são publicações alternativas porque surgiram da
necessidade dos artistas de se autopublicarem com total liberdade de expressão, e não
dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do seu material artístico.
Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo investimento financeiro,
já que não são produzidas de modo industrializado, ou seja, a confecção usa técnicas artesanais,
lançando mão de recursos acessíveis como fotocopiadora e costura manual ou com grampeador,
por exemplo.
Ainda conforme Rico (2017), as zines abarcam vários estilos de publicação: divulgação de
bandas e artistas, notícias sobre quadrinhos, desenhos, poesias, histórias eróticas, diários de
fotografia, histórias autobiográficas, entre muitos outros. Inclusive, grande parte das
publicações em forma de zine têm um caráter contestatório e fortemente militante: uma “[…]
ligação constante com movimentos anarquistas, ambientalistas, de gênero, ou que manifestam
103
algum tipo de reivindicação social” (RICO, 2017, p. 110), até porque não precisam se submeter
às exigências comerciais.
Todavia, a escolha por confeccioná-las nas oficinas se deu principalmente porque apostamos
na “[…] capacidade dos indivíduos de criar as suas próprias narrativas, de gerar conhecimento,
tomando por fonte de inspiração o próprio cotidiano, subjetivando-se […]” (RICO, 2017, p.
109). Assim, na oficina de produção de zines, cada participante confeccionou a sua própria
(Figura 15).
Compreendemos que as zines quebram um pouco as lógicas tradicionais de fazer arte. Estamos
acostumados com a ideia de que a obra deve ser um material grandioso, perfeito, bem acabado,
feito a partir de muitos recursos, por vezes até padronizado. A zine, por sua vez, é um material
da ordem da simplicidade e do possível. Sua formatação, seu processo de produção e suas
104
variadas formas nos ensinam que não precisamos ter acesso a materiais rebuscados e muitos
recursos. Basta o desejo de produzir, e se produz a partir dos materiais disponíveis.
O desconforto que surgiu para alguns no início, aos poucos foi sumindo. O clima naquele dia
foi agradável, todos mais um vez juntos no chão, conversando de vários assuntos enquanto
criávamos, e ao mesmo tempo concentrados em fazer o próprio material. No final, cada um
apresentou o que havia produzido, e vimos uma diversidade de temas: em uma zine havia um
tutorial de como fazer tofu, cheio de reflexões sobre veganismo e crítica à exploração
ambiental; outra fez um registro da paixão pelo futebol; em outra encontramos uma ode ao
cérebro; uma falou sobre os limites que a sociedade impõe ao corpo; outra teve o tema corpo
coletivo; uma sobre corpo como um comum; e até tivemos uma zine com uma história ilustrada
sobre transplante de mentes.
Além dessas individuais, as produções artísticas feitas durante os encontros compuseram uma
zine coletiva, que é nosso material educativo. Ou seja, por estarmos no contexto de um mestrado
profissional na área de Ensino, além da pesquisa resultante na dissertação, é requisitada a
elaboração de um produto29 com caráter educacional. Entendemos que o melhor formato seria
a zine, até porque desde a divulgação das oficinas, a possibilidade de criar uma zine coletiva
foi algo que chamou a atenção dos participantes, gerando expectativa dessa elaboração e
tornando-se um desejo do grupo, que não poderíamos abandonar.
Portanto, esse material é uma expressão das vivências coletivas que tivemos. No primeiro
momento, pensamos que ele seria apenas um registro dos processos criativos em artes, uma
espécie de exposição das artes feitas pelos participantes. Porém, para além disso, com as
provocações da banca de qualificação ele se transformou também em um pequeno compilado
de lições que aprendemos nesse processo. Resolvemos chamá-lo “Um corpo em comum: lições
que aprendemos em oficinas na Varal”. Podemos até dizer que ele é um guia de como fazer
29
De acordo com a CAPES/MEC, os mestrados profissionais exigem a elaboração de um produto e, seguindo o
Documento da Área de Ensino de 2016, tais produtos recebem um enfoque educativo e podem ter um caráter
variado: mídias educacionais; material textual; materiais interativos; atividades de extensão; entre outras
possibilidades.
105
Esse produto educacional passou por três etapas de validação 30. A primeira, na banca de
qualificação desta pesquisa, tendo sido avaliado por doutores especialistas em Educação e
Ensino, os quais se atentaram para a coerência do material com os assuntos tratados na
dissertação; a segunda etapa foi uma avaliação pelos pares, e se deu entre colegas 31 da área, que
julgaram a aplicabilidade do produto em contextos educativos; a terceira, e última etapa,
aconteceu entre os próprios participantes da oficina, que fizeram sugestões estéticas e de
conteúdo, e por isso eles também aparecem como autores do material. Em todas essas etapas o
produto foi refeito para conseguir se adequar às críticas e sugestões, na medida do possível.
Desse modo, além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, essa
pesquisa também se perguntou o que podemos enquanto corpo coletivo, o que se encontra no
material educativo produzido em conjunto. Podemos criar outras formas de agir, sentir, pensar,
estar no mundo? O que podemos compor juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos
durante todo o percurso da pesquisa e, por esse motivo, a atuação durante os encontros apostou
em colocar os participantes não como objetos de estudo, e sim como componentes na
construção do trabalho.
Para nós, criar um trabalho educativo comunitário é também recorrer à centralidade do corpo,
e além disso, à experiência coletiva da corporalidade, porque nesses atos educacionais, os
pensamentos são coletivos, são comuns. Assim, um espaço educativo é o local
“[…] cujo elemento principal é o pensamento – e não a busca por respostas corretas às perguntas
estabelecidas, pois isso é da ordem da representação. Pensar é tarefa de criação, é travar lutas
entre sentidos, buscar aquilo que está do seu lado exterior” (SABINO, 2015, p. 208). Trata-se,
mais uma vez em uma inspiração espinosista, do pressuposto de que corpo e mente são uma
unidade e, por isso, o pensamento só forma ideias do que se passa no corpo. Ou, dito de outro
modo, “[…] os pensamentos e as ideias que a mente é determinada a formar tem as afecções do
corpo como conteúdo […]” (GIVIGI, 2019, p. 408).
30
Por conta da necessidade de isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, todas essas etapas
aconteceram de forma online.
31
A maioria desses colegas são professores do ensino básico das redes pública e privada; todos são pesquisadores
das áreas de Ensino ou Educação em diversas temáticas.
106
Luiz Givigi (2019) mostra que para Espinosa não só o pensamento é um afecção do corpo,
como também o pensamento é relacionado ao plano coletivo, do comum, e de modo algum está
isolado na consciência humana, ao privado, mas antes dá palco à composição de corpos. Nesse
sentido, nossa prática educativa se distancia do já mencionado paradigma cartesiano, o qual
“[…] concebe a mente como substancialidade independente e separada do corpo, isto é, do
conhecimento como oposto ao afeto; e, por outro lado, concebe o indivíduo como apartado da
coletividade” (GIVIGI, 2019, p. 408).
Ainda assim, por vários momentos ocorreu o anseio de qual conteúdo tratar nas oficinas. E não
temos dúvidas de que muitos foram abordados, seja da filosofia, da história, das ciências sociais,
dos estudos sobre a cultura, entre outras áreas. Mas tentamos constituir ali uma pedagogia do
comum, onde para além da cognição, é mais potente exercer uma educação que visa relação
dos corpos e de como eles se afetam nessa relação. Ou melhor, onde conhecimento e afeto
operam simultaneamente. Com isso, queremos dizer aliados a Luiz Givigi (2019), que um
ambiente de aprendizado mútuo é aquele onde a construção do conhecimento se dá no plano
afetivo de composição dos corpos. Nessa composição, o conhecimento aumenta a potência de
agir e a capacidade de inteligir, o que se passa em um plano comum.
Por isso, sentir e pensar são tão unidos quanto mente e corpo, e teoria e prática. Sobre isso, a
autora estadunidense bell hooks (2013), a partir da ótica feminista e negra, mostra que em
contextos educativos, subverter a cisão entre corpo e mente significa estar presente por inteiro
no processo de ensinar e aprender, permitindo a sensibilidade guiá-lo: trazer a paixão e não se
reduzir à transmissão de informações, o que proporcionaria “[…] aos alunos modos de saber
que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente no mundo […]” (HOOKS,
2013, p. 257).
Nesse sentido, nós aprendemos e ensinamos de maneiras diversas e muitas vezes inesperadas:
com a convivência, com a presença, com as paixões. Estamos iludidos quando acreditamos que
o aprender é simplesmente da ordem do inteligível; o aprendizado, na verdade, se relaciona
mais com o sensível, porque aprender é um movimento com o corpo todo, um movimento na
sensibilidade. Aprender é um acontecimento encarnado, singular e inventivo, que
“[…] demanda presença, demanda que o aprendiz nele se coloque por inteiro. E exige relação
com o outro. Entrar em contato, em sintonia com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por
eles, na mesma medida em que os afeta e produz outras afecções (GALLO, 2012, p. 6).
107
Uma das principais críticas que os participantes fizeram foi o pouco aprofundamento dado aos
conceitos trabalhados na dissertação. Eles disseram que tinham interesse em entender melhor o
que os autores falam, de ouvir mais as minhas visões enquanto pesquisadora. Apesar de todos
terem discutido amplamente suas percepções, ficaram muitas dúvidas sobre o meu
entendimento sobre as temáticas abordadas nas conversas (Diário de campo da pesquisadora).
De fato, por conta das minhas experiências na educação e por medo de repetir os
posicionamentos autoritários com os quais tive que lidar durante o mestrado, acabei silenciando
muitas falas. Quando tentei explicar que eu não queria estragar a experimentação, nem
transformar o espaço das oficinas em um lugar de transmissão de conteúdo, um dos
participantes argumentou que “sozinhos a gente só repete o que já sabe” (Diário de campo da
pesquisadora). Percebi, portanto, que tive receio de ser o que Silvio Gallo (2002, p. 170) chama
de professor profeta, “que do alto de sua sabedoria diz aos outros o que deve ser feito”, mas
isso trouxe consequências entendidas como ruins para os participantes da pesquisa.
Qual o sentido hoje desse professor militante, o que seria ele? Penso que seria não
necessariamente aquele que anuncia a possibilidade do novo, mas sim aquele que
procura viver as situações e dentro dessas situações vividas produzir a possibilidade
do novo. Nesse sentido, o professor seria aquele que procura viver a miséria do
mundo, e procura viver a miséria de seus alunos, seja ela qual miséria for, porque
necessariamente miséria não é apenas uma miséria econômica; temos miséria social,
temos miséria cultural, temos miséria ética, miséria de valores. Mesmo em situações
em que os alunos não são nem um pouco miseráveis do ponto de vista econômico,
certamente eles experimentam uma série de misérias outras. O professor militante
seria aquele que, vivendo com os alunos o nível de miséria que esses alunos vivem,
108
Não obstante, elogios também foram tecidos sobre as oficinas. Uma participante apontou que a
principal mudança causada pelos encontros foi que conseguiu experimentar sem medo, sem
saber o porquê ou para quê, e para ela isso foi uma boa experiência. Todos elogiaram o espaço
acolhedor que conseguimos construir juntos, sem julgamentos uns sobre os outros, e como o
grupo construiu uma intimidade muito rápido, apesar do curto tempo das oficinas (Diário de
campo da pesquisadora).
Uma das participantes compartilhou que o que mais gostou nas oficinas foi elas terem se
tornado o que chamou de espaço de cura, porque nelas nós não falávamos apenas das dores,
mas também das coisas boas que produzimos juntos (Diário de campo da pesquisadora). Nessa
fala, ela se lembrou do livro Um corpo para o futuro, de Iaiá Rocha (2019), outra artista do
Território do Bem. O livro é um projeto fotográfico que usa a estética e filosofia do
afrofuturismo 32 para criar outras narrativas e subjetividades sobre o corpo negro, onde esse
corpo enxerga possibilidades de futuro no qual é alvo de felicidade, e não de extermínio.
Ainda é possível o sonho com um futuro diferente do que nos é imposto pelas forças neoliberais.
Por isso, tentamos fazer nos encontros da pesquisa um espaço potente, onde vidas extremas
apostam sua sobrevivência na construção de um futuro possível (PELBART, 2015), afinal,
32
Uma das definições para o conceito de afrofuturismo se refere às manifestações estéticas, filosóficas, artísticas,
literárias e intelectuais que se dedicam a pensar o futuro a partir das produções e percepções da negritude após a
diáspora africana, e assim imaginar e compor o futuro dessa população de forma afirmativa. Por essa explicação,
agradecemos ao artista João Paulo Rocetti (Diário de campo da pesquisadora).
109
resistir não é apenas suportar as dores, mas também criar uma nova vida, e nisso lembramos de
Judith Butler.
Sabemos que, sob alguns aspectos, os trabalhos da autora têm sido questionados por
supostamente não conseguirem colocar a concretude do corpo nas teorias desenvolvidas sobre
gênero, e argumenta-se que Butler reduz as identidades a efeitos discursivos, menosprezando
seu nível material, ou seja, corpóreo (HADDOCK-LOBO, 2018). O livro Corpos em aliança e
a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia, de Judith Butler (2018),
contudo, é uma tentativa de dar conta dessas críticas. Para nós, interessa olhar alguns aspectos
que a autora tensiona na obra, os quais ajudam a pensar a corporalidade no Território do Bem
e muitos assuntos que emergiram nas oficinas.
Nesse sentido, Butler (2018) diz do momento em que vivemos, no qual as consequências da
moralidade neoliberal nos impõem lógicas individualizadoras, colocando as pessoas sujeitas à
precarização. Isso significa dizer que o mercado molda as relações sociais a ponto de que cada
indivíduo se perceba como responsável apenas sobre si mesmo, sem considerar que toda vida
apenas é vivida em conjunto e de modo social. Com efeito, alguns que não têm condições de
autossuficiência são tomados como corpos dispensáveis para o sistema.
Nesse sentido, a autora questiona o fato de haver no sistema capitalista uma distinção entre
quais vidas devem ser protegidas e quais não devem, e a partir disso retoma a gestão da vida e
110
da morte explicada por Michel Foucault nos termos do biopoder. Entretanto, ela parte também
do conceito de necropolítica, de Achille Mbembe, para informar que mais uma vez os
mecanismos de poder de fato efetuam-se em determinadas populações sob o caráter de uma
política de morte. Sob a máxima de fazer morrer e deixar morrer, paira agora nos discursos
dominantes a ideia de que algumas populações não devem ter a vida garantida, o que na prática
significa que merecem morrer e, por conseguinte, as ações do Estado são conduzidas para esse
fim.
Ao perceber que as situações de precariedade são uma condição social que atinge a muitos, as
pessoas passam a se aliançar para garantir as condições de vida. Segundo Butler (2018), a ação
política tem uma dimensão agregadora, na qual corpos que em outros contextos não estariam
juntos, propõem-se a conviver e a agir de forma aliada. A ação, nesse caso, pressupõe garantir
as condições mínimas de existir, e se faz necessária a coabitação para lutar diante das situações
de precariedade. A autora cita então exemplos de assembleias públicas e reivindicações
coletivas corpóreas que pautam uma vida mais vivível.
À vista disso, para nós, um exemplo expressivo de corpo coletivo em aliança são as periferias,
inclusive o Território do Bem, porque percebermos que nesses espaços os corpos têm se aliado
para lutar por uma vida menos injusta e insuportável no dia a dia. As associações, as redes de
solidariedade e as mobilizações comunitárias garantem uma atuação política em grupo. Na
semana seguinte às oficinas, por exemplo, um jovem do Território foi assassinado pela polícia
perto de casa, enquanto estava reunido com amigos. Moradores (dentre eles vários participantes
desta pesquisa) organizaram uma série de aparições públicas reivindicando o direito dessa vida
ser enlutada e denunciando a política de morte promovida pelo Estado. A reação da imprensa
capixaba foi de colocar as manifestações como atos de vandalismo e de associar o jovem a
organizações ditas criminosas, corroborando para a retórica de que algumas vidas são passíveis
de extermínio 33.
33
Houve, no período, muitas reportagens na televisão e nos jornais tentando associar a imagem do jovem à
criminalidade e também deslegitimando os protestos da comunidade. Um exemplo vem do portal de notícias
Gazeta Online, cuja reportagem foi intitulada “Quem era o adolescente morto que desencadeou ataques em
Vitória” (QUEM..., 2020).
111
e da mesma forma no Território do Bem, se espalham ações coletivas para assegurar que
populações marginalizadas recebam suprimentos, produtos de higiene e orientações para se
protegerem.
Seja em eventos específicos, como esses citados, seja no cotidiano, as favelas têm resistido aos
avanços sobre a vida arduamente. Por isso, compreendemos que os saberes localizados nesses
territórios não dependem da presença de uma pesquisa para se efetivarem, eles ocorrem
independente de intervenções, porque são da ordem da necessidade e da urgência. O que o
Território do Bem tem produzido com suas alianças são afetos e aprendizados. Nossas oficinas
foram apenas um período efêmero de reunião corpórea que serviram não para ensinar algo, mas
na verdade, para aprender algumas possibilidades de se aliar.
Nesse sentido, Iaiá Rocha (2019, n.p.) traz um grande ensinamento: “[…] sejamos no agora o
corpo que queremos para o futuro”. Pode ser que não vejamos esse mundo novo que falamos
tanto ao longo do texto, mas criar um futuro possível não é uma sentença messiânica que
aguarda milagres. Compor um novo mundo significa viver uma vida melhor hoje, criar em
conjunto possibilidades para isso e, assim, construir futuros onde a vida é boa e vivível.
112
Quando criança, pensava que ciência fosse algo muito distante, muito abstrato, que envolvia
fórmulas frias, jalecos e frascos. Depois, na graduação, descobri que existiam as Ciências
Humanas, e que as análises sobre o mundo, os homens e a vida social eram um outro jeito de
fazer ciência, que, aliás, esgoela-se muito para provar seu caráter científico. Mais recentemente,
me encontrei com autores que não reivindicam para si essa tal cientificidade, os métodos, as
conclusões cheias de respostas explicativas. Esse modo diferente de se relacionar com a
pesquisa me intrigou: para que serve uma investigação acadêmica que não vai explicar nada?
Qual sua utilidade?
Tomados por tais lógicas produtivas, permitimos que nossas pesquisas sejam conduzidas pela
busca de resultados e não pelo desejo, abalos e descobertas que o processo traz nos nossos
corpos. Dessa maneira, no âmbito científico, o corpo é apagado: não há espaço para intimidade
e para o prazer, e assim se efetua uma violenta exclusão corpórea. As violências ao corpo se
expressam academicamente, por exemplo, na pretensão de neutralidade na pesquisa, o que sem
dúvidas está atrelado a uma marca histórica, é fruto de um mundo criado pela Modernidade. As
convicções modernas, não obstante, ensinaram também que a mente é palco da intelectualidade,
e que não devemos olhar o corpo, porque ele seria uma espaço de natureza estrita e de
inferioridade.
Se esse trabalho tem um teor científico ou não, não me cabe dizer, nem me interessa. O que
posso adiantar é que, de fato, ele não traz hipóteses, análises nem resultados; além disso, passa
113
bem longe de ser neutro, porque carrega consigo uma aposta política de desenhar um mundo
novo, um mundo onde a vida é possível de ser vivida em comunidade. Sem dúvidas, nesse novo
mundo movido pela ética dos afetos, o corpo se faz central, e os corpos em encontros coabitam
na luta que abre possibilidades inimagináveis. Neste trabalho, buscamos a potência do corpo, e
assim descobrimos que ainda não sabemos o que ele pode:
Não sabemos o que pode um corpo. Mas não porque o corpo seja um mistério
indecifrável ou um transcendente inatingível. Bem pelo contrário. Nenhum
esoterismo. Puro pragmatismo. Não sabemos o que pode um corpo, de que ele é capaz,
até que ele faça alguma coisa, até que ele faça alguma coisa a outro ou até que outro
lhe faça alguma coisa. É para isso que serve uma cartografia, um diagrama, um plano
de imanência. Para saber o que pode um corpo. Quais são os afectos de um corpo?
(TADEU, 2002, p. 54)
Mesmo compreendendo que o corpo é tomado como alvo das forças neoliberais, que sugam
seus sonhos e vampirizam seus aspectos mais íntimos, ele pode, por exemplo, se aliançar por
meio da arte e fazer surgir estéticas que se recusam a um modo de vida único, que apostam nos
processos criativos singulares fervilhando pelos espaços. Com isso, neste trabalho percebemos
que as criações e inventividades são resistências corpóreas, que nesse caso, atuam desde os
espaço educativos até às ruas da periferia. As oficinas artísticas que fizemos foram um modo
de experimentar isso, e aconteceram para compartilhar vivências e afetos.
Também não se encontra neste trabalho uma postura salvacionista e, de modo algum, os
encontros se propuseram a levar a arte para o Território. Até porque a arte já está ali em diversas
formas, nas pichações dos muros, na música das casas, nos blocos de carnaval da comunidade,
enfim, a arte se esparrama por todos os lugares. Não quisemos, portanto, ensinar a fazer ou
compreender algo, apenas montamos um espaço de aprendizado.
E aprendemos. O Território do Bem nos ensinou a criar, no hoje, alianças que desenham um
futuro em comum. Por isso, na pesquisa também não tivemos intenção de “dar voz” a ninguém.
A favela já tem uma voz bem ativa, sua ação política acontecia muito antes de minha presença,
e continua acontecendo independentemente deste trabalho.
Minha função, portanto, foi apenas a de escrever. Mas colocar tudo isso em palavras não é
pouca coisa; a escrita é uma tecnologia de produção de subjetividade, e quando escrevemos
estamos inventando novas práticas de subjetivação e, assim, fazemos uma parte
importantíssima do processo de traçar o mundo novo, porque a escrita é um ato imaginativo, é
uma invenção:
114
Gloria Anzaldúa está falando nesse trecho sobre sua atuação como escritora feminista, mas
pego suas palavras emprestadas para dizer da minha atuação como jovem escritora, professora
e pesquisadora. No texto Escrebiendo para idear ela mostra que idear é uma palavra da língua
espanhola que significa, entre outras coisas, imaginar, inventar. Nesse processo de idear, a
autora afirma que seu trabalho questiona os paradigmas predominantes na sociedade ao
desenvolver teorias que não apenas os afetam, como também tem a capacidade de mudá-los.
Do mesmo modo, sonhamos em mudar discursos teóricos violentos e ações práticas que
engendram os corpos. Queremos inventar outro corpo, múltiplo, alegre e comum. Existem
muitas formas de fazer isso, e um caminho está justamente na escrita, porque o processo de
colocar as ideias, o processo de pensar (que é corpóreo e coletivo) traça horizontes. Essa
dissertação, portanto, não passa de um registro de experiências que mostram que é possível
construir hoje um novo mundo.
34
Texto original: “For me, writing is a gesture of the body, a gesture of creativity, a working from the inside out.
My feminism is grounded not on incorporeal abstraction but on corporeal realities. The material body is center,
and central. The body is the ground of thought. The body is a text. Writing is not about being in your head; it’s
about being in your body. The body responds physically, emotionally, and intellectually to external and internal
stimuli, and writing rec ords, orders, and theorizes about these responses. For me, writing begins with the impulse
to push boundaries, to shape ideas, images, and words that travel through the body and echo in the mind into
something that has never existed. The writing pro cess is the same mysterious pro cess that we use to make the
world.”
115
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126
Eu,________________________________________________________________________,
CPF_________________, estou participando voluntariamente do projeto “O que pode um
corpo?”, inserido na pesquisa de mestrado “Corpo como potência educativa”, vinculada à linha
de pesquisa práticas educativas do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades
(PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), campus Vitória - ES, realizado pela
pesquisadora Lysia da Silva Almeida, sob a orientação do professor Dr. Davis Moreira Alvim,
em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação.
Entendi que o projeto consiste em oficinas artísticas que resultarão na elaboração coletiva de
um material educativo em forma de zine, o qual conterá as produções vivenciadas nesse
processo, e autorizo a utilização e divulgação das minhas produções tanto na dissertação da
pesquisadora quanto no material educativo desenvolvido.
Além disso, fui devidamente informado(a) que minha privacidade será respeitada, e meu nome
será alterado para outro fictício ou será mantido em sigilo, a menos que eu mesmo(a) faça
questão de ter minha participação identificada. Fui assegurado(a) que me é garantido o livre
acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas consequências,
enfim, tudo o que eu queira saber antes, durante e depois da minha participação. Também fui
informado(a) de que posso me recusar a participar do estudo ou retirar meu consentimento a
qualquer momento, sem precisar me justificar, e me foi garantido que não virei a sofrer nenhum
tipo de represália.
As informações que eu fornecer para a pesquisa serão armazenadas por meio de registros
pessoais da pesquisadora. Nenhuma informação será utilizada em meu prejuízo ou de outras
pessoas. Os dados serão mantidos sob sua guarda e responsabilidade por um período de cinco
anos após o término da pesquisa, ficando assegurado de que os mesmos serão utilizados
somente para fins de pesquisa, restrita aos conhecimentos científicos e acadêmicos, observando
as normas éticas da pesquisa.
Entendo que ao participar da prática educativa, receberei um certificado de 20h que será emitido
pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação em parceria com o Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES). Me comprometo a ter frequência
mínima de 75%, bem como a participação efetiva nas atividades propostas, estando ciente de
que o descumprimento desses critérios acarretará o não recebimento da certificação.
127
Em qualquer etapa do estudo, terei acesso à pesquisadora Lysia da Silva Almeida, cujo contato
poderá ser feito pelo e-mail lysiaalmeida@gmail.com, assim como seu orientador, Prof. Dr.
Davis Moreira Alvim, pelo e-mail davis.alvim@ifes.edu.br. Ainda será possível contatar o
Programa de pós-graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES), no endereço Av.
Vitória, 1729, Jucutuquara - Vitória/ES; pelo telefone (27) 3331-2277 ou e-mail:
ppgeh.vi@ifes.edu.br.
Li todas as informações aqui descritas, e manifesto meu livre consentimento em participar
voluntariamente da prática educativa da pesquisa, estando totalmente ciente de que não há
nenhuma gratificação financeira a receber ou a pagar por minha participação.
___________________________________________________________
________________________________ ________________________________
Eu, _______________________________________________________________________,
CPF________________, responsável por _____________________________________,
CPF________________, autorizo sua participação no projeto “O que pode um corpo?”,
inserido na pesquisa de mestrado “Corpo como potência educativa”, vinculada à linha de
pesquisa práticas educativas do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades
(PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), campus Vitória - ES, realizado pela
pesquisadora Lysia da Silva Almeida, sob a orientação do professor Dr. Davis Moreira Alvim,
em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação.
Entendi que o projeto consiste em oficinas artísticas que resultarão na elaboração coletiva de
um material educativo em forma de zine, o qual conterá as produções vivenciadas nesse
processo, e afirmo que o menor sob minha responsabilidade autorizou a utilização e divulgação
de suas produções tanto na dissertação da pesquisadora quanto no material educativo
desenvolvido.
Além disso, fui devidamente informado(a) que a privacidade do menor sob minha
responsabilidade será respeitada, e seu nome será alterado para outro fictício ou será mantido
em sigilo, a menos que ele faça questão de ter sua participação identificada. Fui assegurado(a)
que me é garantido o livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o
estudo e suas consequências, enfim, tudo o que eu queira saber antes, durante e depois da
participação do menor sob minha responsabilidade. Também fui informado(a) de que posso
retirar minha autorização a qualquer momento sem precisar me justificar, e me foi garantido
que não virei a sofrer nenhum tipo de represália.
As informações que o menor sob minha responsabilidade fornecer para a pesquisa serão
armazenadas por meio de registros pessoais da pesquisadora. Nenhuma informação será
utilizada em prejuízo do menor sob minha responsabilidade ou de outras pessoas. Os dados
serão mantidos sob a guarda da pesquisadora por um período de cinco anos após o término da
pesquisa, ficando assegurado de que os mesmos serão utilizados somente para fins de pesquisa,
restrita aos conhecimentos científicos e acadêmicos, observando as normas éticas da pesquisa.
O menor sob minha responsabilidade entende que ao participar da prática educativa, receberá
um certificado de 20h que será emitido pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação
em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH/IFES), e
se compromete a ter frequência mínima de 75%, bem como a participação efetiva nas atividades
129
________________________________________________________________
________________________________________________________________
________________________________ ________________________________
______________________________________________________________________
Assinatura do(a) participante
_______________________________________________________________________
Assinatura do(a) responsável (para menores de 18 anos)
131
I – IDENTIFICAÇÃO
Projeto: O que pode um corpo?
Público-alvo: 20 participantes, a partir de 14 anos, prioritariamente dos bairros do Território
do Bem (região Poligonal 1 de Vitória – Espírito Santo).
Período de realização: janeiro e fevereiro de 2020.
Local: Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação (Itararé, Vitória – Espírito Santo).
Carga horária: 20 (vinte) horas subdivididas em 6 (seis) encontros presenciais de 3 (três) horas
cada, e atividades não presenciais com duração de 2 (duas) horas.
Periodicidade e horário de realização: Duas semanas de encontros realizados às segundas,
quartas e sextas-feiras, das 15:30 às 18:30.
Divulgação: Imagens informando sobre a prática, critérios de participação e inscrição
confeccionados pela mestranda e divulgados pelo Ponto de Cultura Varal Agência de
Comunicação por meio das redes sociais.
Inscrições: realizadas de forma online pela mestranda em parceira com a equipe do Ponto de
Cultura Varal Agência de Comunicação, preenchidas de acordo com a ordem de chegada.
Certificação: realizada pelo Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação em parceira com
o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades – PPGEH/IFES.
II – BREVE RESUMO
Esta proposta de prática educativa faz parte da pesquisa “Corpo como potência educativa”,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) do
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), sob a orientação do professor dr. Davis Moreira
Alvim. A aposta é, a partir do coletivo, problematizar questões relacionadas à temática corpo.
Além disso, por meio de rodas de conversas e oficinas, dar vasão à experimentações que
possibilitem criar um material educativo em forma de zine, de modo a acolher as produções
artísticas (ilustrações, textos, poemas, colagens etc.) originadas ao longo do percurso, com o
intuito de inspirar práticas educativas outras em espaços.
III – OBJETIVOS
o Compor um espaço-tempo educativo, tendo como locus o Ponto de Cultura Varal
Agência de Comunicação, para pensar e dialogar acerca da temática corpo.
132
IV – METODOLOGIA
A prática educativa se realizará por meio de experimentações a partir de instrumentos
metodológicos como rodas de conversa e oficinas artísticas, através dos quais serão compostos
os textos, imagens, músicas, pinturas, poemas e relatos de experiência – ou seja, diversas
produções serão desenvolvidas pelos participantes da pesquisa. A organização se dará em seis
encontros presenciais e algumas atividades não presenciais, conforme indicado abaixo:
ENCONTRO/ CARGA
TEMA
DATA HORÁRIA
1° Encontro
Apresentação e oficina de criatividade 3 horas
27/01/2020
2° Encontro Experimentação com fotografia, vídeo e obras
3 horas
29/01/2020 de arte
3º Encontro
Oficina de colagens 3 horas
31/01/2020
4° Encontro
Oficina de zine 3 horas
03/02/2020
5º Encontro
Oficina de expressão corporal (teatro) 3 horas
05/02/2020
6º Encontro
Curadoria da zine coletiva e encerramento 3 horas
07/02/2020
ATIVIDADES NÃO
Atividades relacionadas às oficinas 2 horas
PRESENCIAIS
20 horas
TOTAL DA CARGA HORÁRIA
Observação: esta proposta não é uma ideia fechada. É um convite à construção coletiva em
conjunto com a equipe da Varal e com os outros participantes da pesquisa, sendo que todos
podem intervir nela com sugestões para uma composição comunitária, portanto, a programação
pode ser alterada antes e durante seu percurso.
133
DETALHAMENTO METODOLÓGICO
1º Encontro:
o Apresentação da proposta de pesquisa; assinatura TCLE/TALE e autorização de uso de
imagem e voz; critérios de participação, frequência e certificados; apresentação dos
participantes.
o Primeiras conversas para provocar os participantes a falarem o que eles entendem como
corpo e por que eles acham que esse tema é relevante para ser discutido. Nisso serão
traçadas as primeiras pistas para compor coletivamente as oficinas.
o Oficina de criatividade com o ilustrador João Paulo Rocetti, que objetiva abordar uma
concepção de corpo e mente integrados. Nesse momento surgirão algumas discussões
sobre como a arte pode ser uma ferramenta para abordar a temática principal dos
encontros.
2º Encontro:
o Momento de utilizar dinâmicas com arte para envolver mais o grupo na discussão
central e poder explorar as concepções de cada participante no coletivo.
3º Encontro:
o Dinâmica: Pedir a cada participante que extraiam de revistas e jornais aquilo que
simboliza ou descreve sua história e a forma como pensam o corpo a partir das nossas
discussões até aqui. Para isso, levaremos a artista Alice Kiefer, colagista capixaba, para
ministrar uma oficina de colagens, explicando como essa expressão artística pode ser
uma ferramenta política e de pronunciar a si e o coletivo.
4º Encontro:
o Provocação: todos os corpos poder fazer arte?
Novamente com o artista João Paulo Rocetti como convidado, faremos discussões sobre
como a arte é apresentada de maneira elitizada na nossa sociedade. Assim,
trabalharemos em um exercício que todos podemos fazer arte e nos expressar
artisticamente. O objetivo é pensar a vida como arte e buscar como colocar o corpo na
arte, nos processos criativos. Nessa oficina serão compartilhadas técnicas de produção
de uma zine – por ser uma ferramenta artística relativamente fácil de ser produzida,
134
5º Encontro:
o Com uma atriz com experiência na área circense, realizaremos uma oficina de expressão
corporal com o objetivo de contagiar os participantes da pesquisa por meio de técnicas
e dinâmicas teatrais que os farão repensar os limites e usos do corpo.
6º Encontro:
o Curadoria coletiva para compor a zine.
No encontro de encerramento, os participantes produzirão relatos de experiências (da
maneira em que se sentirem confortáveis, seja oralmente, seja de outro modo) sobre as
vivências nesse coletivo, podendo manifestar as críticas e sugestões sobre as oficinas.
Além disso, escolheremos em conjunto quais produções vão compor a zine coletiva do
projeto.