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FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO
MESTRADO ACADÊMICO
FORTALEZA
2021
LISANDRA CRISTINA LOPES
FORTALEZA
2021
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
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LISANDRA CRISTINA LOPES
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Professora Doutora Juliana Cristine Diniz (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________
Professora Doutora Ana Virgínia Moreira Gomes (Programa de Pós-graduação em
Direito – Universidade de Fortaleza)
____________________________________
Professora Doutora Geísa Mattos de Araújo Lima (Programa de Pós-graduação em
Sociologia - UFC)
____________________________________
Professor Doutor José Diniz de Moraes (UFRN)
____________________________________
Professora Doutora Patrícia Maeda
4
Para minha mãe, Ditinha.
Para minha filha, Clarice.
Para as trabalhadoras domésticas do
Brasil.
5
AGRADECIMENTOS
7
papel lançados na minha mesa, com recadinhos, impondo necessários momentos de
desconexão. Pelos momentos em que pediu licença e digitou “miau” no meio do meu
texto. Pelas vezes em que chegou e me deu um abraço silencioso. Clarice, meu amor:
Tudo que eu faço
E acho que talvez seja bonito
É só pra você, é só pra isso
Pra hoje, pra agora
Enquanto posso ouvir
Sua risada sonora
(Zélia Duncan)
Agradeço por você existir, ser fonte de luz na minha vida e motor de tantas
transformações. Eu disse, em tom de desafio, sob seu olhar incrédulo, que deixaria um
“miau” no meio nesta dissertação. Pois aqui está: Miau pra você!
À minha sobrinha Juju, pelas tardes que passou brincando com Clarice,
tornando menos sentida a minha ausência!
8
A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto,
e admirada não consegui – de tal modo ela acabara de me excluir de minha
própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota
em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um
lapso temporário.
Mas seu nome – é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair.
(...)
Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é claro, como
pudera esquecer? Revi o rosto preto e quieto, revi a pele inteiramente opaca
que mais parecia um dos seus modos de se calar, as sobrancelhas
extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e delicados que mal eram
divisados no negror apagado da pele.
Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura:
o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de
ancas. E sua roupa: não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela
não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom
escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível – arrepiei-me ao
descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma
invisível.
(LISPECTOR, 2020, p. 38/39)
9
RESUMO
10
ABSTRACT
This study analyzes the trajectory of work the housekeepers in Brazil from the perspective of
Axel Honneth's struggles for recognition. It begins with the question: Why did housekeepers
take so long to achieve basic rights and why do they remain, so far, without full equality in
relation to other workers? They are identified with care and there is a centrality to human
existence. The concepts of sexual and racial division of work, production and reproduction,
time poverty are presented, in addition to revealing the economic dimension of care. A study
on gender, race and class is carried out, demonstrating the incidence of such narratives on the
worker's body and the importance of intersectionality as an analytical tool. The work is made
with the legislative regulation of domestic work, the struggles for recognition and the degree of
legal protection applied to the category. The research is eminently qualitative. As for the
purpose, it is classified as exploratory and explanatory. The theoretical contribution is
interdisciplinary. Bibliographic, documental, legislative and jurisprudential sources were used.
Its importance is in the intersectional approach to domestic work, which allows a
comprehensive look at the institute, contributing to fill a gap in the legal literature, since most
bibliographic production in this area is limited just to commenting on the legislation. The
conclusions point to the fact that full recognition encounters structural obstacles, bumping into
sexism, racism and class discrimination, and that such structures not only influence work law,
but are present in its own constitution. The historical legal discrimination suffered by
housekeepers challenges the social and protective nature attributed to this right, questioning its
purposes and the real scope of its provisions and principles.
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LISTA DE FIGURAS
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
13
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 16
1.1 Percurso Metodológico.................................................................................. 19
1.2 Referencial Teórico........................................................................................ 21
2 A CENTRALIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO............................... 24
2.1 Um trabalho de cuidado................................................................................ 24
2.2 Uma ética do cuidado?.................................................................................. 31
2.3 Produção, reprodução e divisão sexual do trabalho................................... 34
2.4 Tornando visível o trabalho doméstico........................................................ 40
2.5 Divisão racial do trabalho. Interseccionalidade e consubstancialidade.... 47
2.6 Empregadas Domésticas versus cuidadoras................................................ 53
3 GÊNERO, RAÇA E CLASSE.......................................................................... 55
3.1 O Corpo: sexo e cor........................................................................................ 58
3.2 Representações do corpo: imagens de controle........................................... 60
3.3 Corpo de branco e corpo de preto: o mito da democracia racial.............. 67
3.4 O corpo confinado: quarto de empregada................................................... 70
3.5 O corpo no trabalho: de “mulas do mundo” a androides.......................... 73
3.6. O corpo versus outros corpos: classe, cidadania e invisibilidade............. 76
4 EMPREGADAS DOMÉSTICAS: UMA CATEGORIA EM BUSCA DO
RECONHECIMENTO........................................................................................ 80
14
4.7 Óbices ao reconhecimento............................................................................ 118
4.7.1 Um espaço híbrido...................................................................................... 118
4.7.2 Afetos e ambiguidades................................................................................ 119
4.8 Lutas por reconhecimento jurídico: associações e sindicatos................... 122
5 DIREITO DE AUSÊNCIAS. JURISPRUDÊNCIA DE EXCLUSÕES....... 126
5.1 Uma crítica às ciências.................................................................................. 126
5.2 Crítica ao direito do trabalho....................................................................... 129
5.3 O direito do trabalho e as “desigualdades juridicamente constituídas” 131
................................................................................................................................
15
1 INTRODUÇÃO
16
básicos? Por que, mesmo diante dos princípios da igualdade e da não discriminação,
atualmente consagrados na Constituição, o trabalho doméstico remunerado permanece
sem ser plenamente reconhecido?
Há um recorte espacial quanto à análise, que se limita ao Brasil, embora isso
não impeça a contextualização do tema com dados oriundos de organismos internacionais
e relativos ao contexto global, bem como referências à situação de trabalhadoras
migrantes exercendo serviço doméstico em outros países.
Essa investigação exige um retorno ao passado, às origens do trabalho
doméstico no país, e requer a utilização de ferramentas analíticas capazes de oferecer
perspectivas mais amplas ao estudo, como a interseccionalidade, que conjuga o exame de
opressões de gênero, raça e classe.
A pesquisa faz-se importante para preencher a lacuna existente no
pensamento jurídico, que busca, muitas vezes, examinar institutos e categorias como se
estes constituíssem objetos apartados do mundo, destituídos de contexto. No caso do
serviço doméstico, o tema ainda é pouco discutido na seara jurídica, limitando-se, na
maioria das vezes, a poucas páginas em cursos ou manuais de direito do trabalho, ou ainda
a manuais específicos que se destinam precipuamente ao empregador.
É importante esclarecer, logo na partida, alguns aspectos sobre certas palavras
utilizadas ao longo do texto. Opta-se pela flexão no gênero feminino (trabalhadora,
empregada) , não só em razão da predominância das mulheres na atividade, mas
sobretudo como decorrência da associação entre mulher, trabalho doméstico e
domesticidade. Considera-se que a trabalhadora doméstica é a empregada doméstica
contratada, com vínculo celetista formal ou informal, como também a diarista, que
executa faxina ou algum outro trabalho (a exemplo de lavar e passar roupas) e é
considerada autônoma. Trabalhadora, portanto, é a mulher que executa o trabalho. Já
empregada tem um significado mais restrito, vinculado a um contrato de emprego,
formal ou informal. Na presente dissertação, serão utilizados ambos os termos. Outra
questão relativa à nomenclatura diz respeito à utilização dos vocábulos “trabalho” e
“serviço”. Ambos são de uso corrente, todavia “serviço” costuma ser mais utilizado
quanto se trata de trabalho remunerado. Aqui, essa regra informal será observada, e a
palavra “serviço” será utilizada na hipótese de trabalho remunerado. “Trabalho”, porém,
será usado indistintamente. Uma última observação que se faz necessária diz respeito ao
vocábulo “Doméstica”. Se por um lado ele remete ao ambiente doméstico, residencial,
também traz uma conotação negativa quando se aproxima do sentido de “domesticação”:
17
“amansar”, domesticar animais, domesticar escravizados para se tornarem bons criados.
Esta dissertação procura utilizar uma linguagem que respeite a plena humanidade das
trabalhadoras, todavia as expressões “doméstico” e “trabalhadoras domésticas”
encontram-se presentes na lei e em convenções internacionais, sendo, portanto, muito
difícil evitar o seu uso. Já quanto aos termos “escrava” ou “escravo”, foram substituídos
por “escravizado” ou “escravizada”, para evitar a atribuição de uma identidade fixa à
pessoa que foi vítima do sistema escravista.
Feitos tais esclarecimentos gerais, é chegado o momento de apresentar com
maior especificidade a organização do presente estudo, que se encontra dividido em cinco
capítulos, contando com a presente introdução, a qual, segundo normas da Universidade
Federal do Ceará, também é numerada. Os capítulos 2 e 3 possuem uma estrutura mais
narrativa, expondo conceitos e categorias cujo conhecimento se faz necessário para a
abordagem jurídica do tema. A interdisciplinaridade encontra-se presente ao longo de
todo o trabalho, mas neles aparece de modo mais nítido.
No segundo capítulo, o trabalho doméstico é apresentado como sendo
fundamentalmente um trabalho de cuidado. Cuidado com pessoas (crianças, adultos
dependentes, idosos), cuidado com a casa (limpeza, arrumação), cuidado com a
alimentação (fazer compras, preparar refeições). Cuidado como prática, atitude e ação,
incidente tanto sobre corpos quanto sobre ambientes. Afirma-se a centralidade desse
trabalho, que constitui uma dimensão essencial da vida humana e interpela o mundo do
trabalho “produtivo”, masculinizado, bem como interpela a política e a própria
democracia. São abordados conceitos chave, como ética do cuidado, crise do cuidado,
divisão sexual do trabalho, produção e reprodução, uso do tempo, gratuidade, divisão
racial do trabalho e interseccionalidade. São apresentados dados sobre o valor econômico
do cuidado e é introduzida a discussão sobre os desencontros entre serviço doméstico e
cuidado. Por que as empregadas domésticas não se nomeiam cuidadoras? O que
fundamenta a pretensão de inaugurar uma nova categoria, a dos cuidadores?
O terceiro capítulo apresenta uma dimensão narrativa do gênero, da raça e da
classe, mostrando como tais construções operam no corpo da mulher, em especial da
mulher negra, que no passado foi escravizada e atualmente é presença marcante na
categoria das empregadas domésticas. É analisada a materialidade do corpo marcado pela
cor, pelo sexo e por um lugar social. São abordadas as representações do corpo, plasmadas
nas imagens de controle. Examina-se, também, o mito da democracia racial.
18
O quarto capítulo apresenta a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, que
fundamenta a premissa de que o serviço doméstico não é reconhecido nos planos do
direito e da solidariedade. A seguir, é traçado o percurso histórico desse serviço no Brasil,
que teve origem com a escravidão. São analisadas as progressivas regulamentações
surgidas ao longo dos séculos XIX e XX, até a Convenção n. 189 da OIT, buscando
sentido tanto para os dispositivos legais quanto para a ausência deles em determinados
períodos. O capítulo analisa, ainda, as lutas por reconhecimento no âmbito dos sindicatos
e associações e no que se considera um novo espaço discursivo: a internet.
No quinto capítulo é elaborada uma crítica à ciência e ao direito do trabalho
em específico, com aportes da teoria feminista e dos estudos decoloniais. São analisados
os manuais e cursos de direito do trabalho, a jurisprudência dos tribunais e as interações
entre patroas, empregadas, juízas e juízes do trabalho na primeira instância.
Nas considerações finais, são relatados os principais achados da pesquisa e
busca-se responder à pergunta que serviu de base à presente dissertação.
19
Como afirmam Queiroz e Ferfebaum (2020), há uma tendência para se inserir
capítulos históricos em monografias, dissertações e teses jurídicas, o que os autores
atribuem ao contato dos juristas com os manuais desde a graduação. Muitas vezes, insere-
se um capítulo com a “evolução histórica” de um instituto como se estivesse cumprindo
uma obrigação, e tal capítulo aparece desconectado do texto e da pergunta de pesquisa.
Esse alerta provocou longa reflexão a respeito da necessidade de tratar o serviço
doméstico sob uma perspectiva histórica, no que diz respeito ao retorno às origens
escravocratas e à evolução de sua regulamentação legal. A conclusão foi no sentido de
que a resposta à pergunta de pesquisa exigia tal percurso, uma vez que ele fornece uma
compreensão mais adequada do problema, contextualiza o debate e ilustra ou reforça a
argumentação, observando, assim, os critérios indicados pelos autores acima citados.
O avanço na pesquisa, sobretudo ao tratar da teoria do reconhecimento no
âmbito da solidariedade, que se mostra por meio da estima social, trouxe consigo a
necessidade de olhar para as representações atuais sobre as trabalhadoras domésticas, com
base em artigos científicos, mas também em narrativas surgidas em um espaço
extremamente dinâmico e ao qual o pesquisador precisa estar atento: a internet. Houve,
então, um momento específico no qual foram feitas referências a perfis de redes sociais e
a informações contidas nestas redes; importante salientar que tais informações foram
apresentadas não como verdades científicas, e sim como dados da realidade, aptos a serem
analisados.
No capítulo 05, foram examinados alguns manuais de Direito do Trabalho,
com o objetivo de verificar o espaço conferido ao trabalho doméstico em tais livros, que
são comumente utilizados na graduação. A escolha dos livros observou o critério da
representatividade e da atualidade, excetuando, quanto a esse último item, o “Instituições
de Direito do trabalho”, que embora não seja atual foi trazido à análise por ser um livro
clássico, presente em bibliotecas de universidades e de muitos órgãos públicos. Efetivou-
se, também, uma pesquisa jurisprudencial, com a finalidade de verificar a percepção dos
tribunais quanto aos direitos das trabalhadoras domésticas, valendo-se de um portal de
pesquisa de jurisprudência e de uma compilação de acórdãos da editora Juruá. Na
compilação, foram lidos, no total, 74 acórdãos, provenientes dos seguintes Tribunais
Regionais do Trabalho: 2ª região, 3ª região, 4ª região, 6ª região, 9ª região, 10ª região, 11ª
região, 12ª região, 13ª região, 15ª região, 19ª região, 20ª região, 22ª região, 23ª e 24ª
região. No portal Jusbrasil, foi efetuada a busca com base nas palavras-chave
“doméstica”, “acidente”, “doença” e “insalubridade”.
20
1.2 Referencial Teórico
21
antropólogos e cientistas sociais. Foram visitadas obras clássicas, como Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre, que surge em diversas oportunidades, ora utilizada como
fonte para expor uma determinada realidade, ora para ilustrar a construção de ideias
equivocadas sobre o período colonial, salientando que essa crítica a Freyre é feita por
diversos historiadores. Também aparecem no texto autores como Florestan Fernandes e
Darci Ribeiro, tidos como “intérpretes do Brasil”, todavia é afirmada a sua limitação para
tratar de questões atinentes a gênero.
Uma vez selecionadas as bases teóricas para fundamentar os estudos
interseccionais, restava um desafio: afirmar o não reconhecimento jurídico do trabalho
doméstico exigia um fundamento teórico sólido, e não o simples recurso ao conceito
corrente de reconhecimento. O que é um trabalho reconhecido? Por que o trabalho
doméstico não é reconhecido? Com base em que essa afirmação pode ser feita? A essa
altura, a pesquisa se voltou para as teorias do reconhecimento, sendo escolhida a exposta
por Axel Honneth.
O pensamento de Honneth enquadra-se na tradição da escola de Frankfurt,
que se encontra vinculada à Teoria Crítica. Honneth utiliza o modelo hegeliano de
reconhecimento, que se afasta do padrão marxiano da luta por autoafirmação econômica
e do paradigma meramente produtivista, embora seus escritos observem a centralidade
do trabalho e confiram importância, também, à luta por redistribuição (HONNETH,
2011).
A opção por Honneth, além de respeitar uma coerência teórica, em face de
esse autor dialogar com o marxismo, também oferece a oportunidade de cotejar a sua
teoria com as objeções formuladas por Nancy Fraser, teórica feminista. Mas ainda assim
surge um dilema: se a presente dissertação busca dialogar com o feminismo latino-
americano, tendo como uma de suas referências a brasileira Lélia Gonzalez, por que
buscar a teoria de um homem branco, do Norte? Na realidade, a teoria de Honneth oferece
tão somente o suporte para alocar a história do trabalho doméstico no Brasil em um
percurso. Ela organiza as várias etapas e fornece um referencial para essa trilha. É
instrumental. Além disso, o seu ideal de trabalho como atividade emancipadora,
afastando-se de uma concepção meramente economicista, amolda-se às necessidades das
trabalhadoras domésticas, que, embora não constituam propriamente um grupo
identitário, possuem características identitárias e aproximações com movimentos sociais,
em especial o movimento negro.
22
Importante frisar que alguns conceitos e categorias tiveram uma abordagem
apenas descritiva, sendo manifestada a opção por esta ou aquela definição, sem maiores
problematizações, uma vez que o valor de tais conceitos é instrumental, não sendo
cabível, nos limites desta pesquisa, ampliar discussões quanto a eles.
Por fim, uma observação que se faz necessária diz respeito à presença, nas
referências bibliográficas, de alguns manuais e cursos de direito do trabalho, oferecendo
um contraste com as demais fontes. Tais manuais foram utilizados no último capítulo da
dissertação não como fundamento teórico para a pesquisa, e sim para demonstrar como
esses livros, difundidos entre estudantes de graduação e aspirantes a cargos públicos,
inclusive de juiz, ora silenciam quase que completamente sobre o trabalho doméstico, ora
lhes dedicam poucas páginas e tratam o tema como se não houvesse praticamente
nenhuma problematização, naturalizando um lugar de desigualdade e exclusão.
23
2 A CENTRALIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO
...Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha.
Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.
(JESUS, 2014, p. 81)
24
impõe às mulheres lhes subtrai tempo para se dedicar a essa participação (BIROLI,
2018).
O cuidado é uma dimensão essencial da vida humana. Uma criança só se torna
adulta se receber cuidados; na velhice, eles se tornam ainda mais necessários. Entre a
infância e a velhice, ainda que se tenha a sorte de não possuir nenhuma necessidade
especial, há muito trabalho de cuidado indireto na agenda com a casa e a reprodução
social. Sem tal atividade “não poderia haver qualquer cultura, qualquer economia,
qualquer organização política” (FRASER, 2020, p. 262). Trata-se de uma afirmação que
parece banal, mas que é sempre convenientemente “esquecida”, uma vez que tal dimensão
é desvalorizada na mesma proporção da sua importância. Por mais que permaneça
institucionalmente invisível, o cuidado é uma questão permanente que não pode ser
ultrapassada e cuja negação implica não só a perpetuação, mas o aprofundamento de
graves desigualdades, tanto do ponto de vista do prestador quanto de quem necessita dele
(BIROLI, 2018).
Para designar o ato de cuidar, alguns estudos adotam o termo em inglês care,
por ser dificilmente traduzível e polissêmico, podendo significar, simultaneamente,
prática, atitude e disposição moral (ARAÚJO; HIRATA, 2020). Cuidar implica, ao
mesmo tempo, uma atitude e uma ação; cuidar é prestar atenção, estar vigilante em
relação a uma criança, idoso, doente crônico ou pessoa com deficiência. Mas significa
também agir sobre um corpo e sobre o ambiente. O cuidado pode incidir diretamente
sobre a pessoa, como pode, também, atender suas necessidades de alimento, roupa e
ambiente limpo, daí porque cuidar também abrange as tarefas de cozinhar, limpar, lavar,
passar, dentre outros1. A depender da localidade, inclui atividades como caminhar longas
distâncias para buscar água e lenha (LAWSON et al, 2020).
Trata-se de um trabalho de abrangência mundial, que alimenta hierarquias e
vulnerabilidades, inclusive em países do norte, no qual muitas imigrantes encontram
ocupação atualmente. Profundamente ligado à história da escravidão e do colonialismo,
encontra-se até hoje relacionado à servidão (OIT, 2010). Quando remunerado, é fator de
precarização2 e de clivagens entre mulheres; quando gratuito, é um fator determinante na
1
Por isso a distinção entre “cuidado direto” e “cuidado indireto”.
2
A precarização pode ser definida como um processo de avanço da instabilidade, com perda de direitos
trabalhistas, baixo assalariamento, fragmentação, intermitência e insegurança (RAMALHO E SANTOS,
2016). No caso das mulheres, um traço marcante da precarização é a informalidade.
25
exploração das mulheres no âmbito do sistema capitalista, integrando um ciclo que as
mantém em desvantagem econômica e vulneráveis à violência doméstica (BIROLI, 2018;
FEDERICI, 2019; FEDERICI, 2021; VÈRGES, 2020). Ou seja, trabalho invisível,
mesmo quando remunerado, marcado por indicadores de gênero, raça, classe e
nacionalidade. É também uma das ocupações com maior risco de violência e assédio
(BIROLI, 2018; CEPAL, 2019; VÈRGES, 2020).
Uma das principais razões para a invisibilidade e a ausência de
reconhecimento é a premissa de que o trabalho doméstico é uma espécie de extensão da
mulher, algo feito naturalmente, em consonância com suas características femininas. É
como se as mulheres fossem seres talhados para a domesticidade e o cuidado. Em razão
disso, Federici (2019) diz que qualquer luta será sempre frustrada se não for estabelecido,
em primeiro lugar, um ponto principal: o trabalho doméstico é trabalho. E embora
constitua uma atividade comum a praticamente todas as mulheres, apresenta repercussões
diversas a depender da classe social, da raça e da nacionalidade.
Há uma profunda relação de dependência entre o trabalho doméstico e os
padrões de organização e desregulamentação das relações de serviço remuneradas, visto
que o tempo de trabalho formal e remunerado impacta diretamente no tempo e nas
condições para o desempenho da tarefa de cuidar e vice-versa (BIROLI, 2018). Não por
acaso as mulheres, que gastam muito tempo no ofício de cuidar, possuem menos
disponibilidade para atividades que demandem jornadas mais longas e/ou inflexíveis,
viagens e outros compromissos. Isso impacta diretamente na sua colocação no mercado
de trabalho e deixa “reservadas” para elas funções com menor remuneração e maior
índice de precarização. A desregulamentação das relações trabalhistas e a consagração
no plano legal de formas de trabalho extremamente precarizadas preconizam um mundo
no qual só possui algum valor “de mercado” quem se disponibiliza por inteiro. Em
consequência, a possibilidade de delegação do trabalho doméstico atua como fator de
limite ao êxito da mulher no campo do trabalho remunerado. Como afirma Flavia Biroli:
26
trabalho são conectados e interdependentes, e é preciso haver tempo para ambos
(OLIVEIRA, 2003). Apesar de sua centralidade, o trabalho doméstico permanece sendo
relegado ao âmbito “feminino”, compreendido esse como o domínio das coisas não
importantes, privadas e de interesse restrito.
Uma leitura atenta do tema deveria ensejar a conclusão de que o cuidado é
um direito (CEPAL, 2019), com todas as consequências daí advindas no tocante à
participação do Estado. Todavia, ele se manifesta dessa forma para poucos. Como regra,
o cuidado é simplesmente uma responsabilidade institucionalizada das mulheres
(BIROLI, 2018).
O Estado brasileiro, por meio da Constituição, artigos 205 e 227, promete
solidariedade no cumprimento de funções domésticas, na medida em que assegura às
crianças, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação3,
ao lazer, dentre outros direitos que se vinculam ao ato de cuidar (BRASIL, 1988). Uma
criança não sobrevive sozinha, sem alguém para vigiá-la, alimentá-la (o que inclui a
compra dos alimentos e o preparo das refeições) e educá-la. E, mesmo que boa parte da
educação seja transferida para a escola, para se fazer presente nesse ambiente a criança
precisa ter sido cuidada previamente.
A Constituição também promete, de acordo com o parágrafo primeiro, inciso
II desse mesmo artigo, programas de prevenção e atendimento especializado para pessoas
portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do
adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho
e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos (BRASIL, 1988).
E ainda, no artigo 230, erige mais uma vez a ideia de solidariedade no amparo a pessoas
idosas, dispondo, no parágrafo primeiro, que os programas de amparo serão executados
preferencialmente nos lares (BRASIL, 1988). O problema é que esse amparo não se
concretiza, uma vez que é das mulheres, em sua maior parte, a atribuição solitária de
cuidar dos idosos da família. Quando a mulher não realiza esse trabalho, ela delega a uma
empregada doméstica. Federici (2019), embora sem fazer referência ao sistema jurídico
brasileiro, elabora uma crítica a essa transferência de procedimentos para o lar ao afirmar
3
Quando o STF se defrontou com a missão de julgar a constitucionalidade ou não do home schooling, por
meio do acórdão do Recurso Extraordinário 888.815 (Rio Grande do Sul), restou evidente, nos termos
expostos no julgado, a solidariedade entre família e Estado. Da leitura do voto do ministro Ricardo
Lewandowski é possível perceber o quanto a missão de educar não é algo simples, que deve permanecer
restrita ao âmbito privado, visto que se destina a formar não apenas membros de uma família, e sim cidadãos
de uma república. Percebe-se, portanto, que o trabalho de cuidado desempenhado pelas mulheres possui
uma nítida função social que é sistematicamente negada.
27
que a preocupação que está no cerne desse processo é exclusivamente financeira, havendo
pouca consideração no que toca às estruturas exigidas para substituir os serviços
oferecidos por hospitais ou outras instituições.
De um modo ou de outro, essa transferência completa do cuidado para o
âmbito das responsabilidades privadas revela precariedades: muitas vezes a família se vê
às voltas com cuidados complexos, para os quais nunca recebeu treinamento, e as
cuidadoras são colocadas diante de serviços que podem envolver situações de
insalubridade sem que a legislação trabalhista brasileira lhes permita o acesso ao
respectivo adicional, que continua sendo um direito negado à categoria dos domésticos
até o momento.
4
Segundo a ONU, o processo de aumento da expectativa de vida, iniciado no século passado, vem se
mantendo constante até o momento. Embora haja muita variação entre os países, a população ganhou 17
anos de vida nos últimos 55 anos. (apud CEPAL, 2019, p. 134).
28
A crise do cuidado se vê implicada com a questão da imigração. Segundo
Araújo e Hirata (2020), atualmente há um grande contingente de mulheres do sul que
migram para países do norte, nos quais passam a trabalhar com serviços de cuidado, ao
mesmo tempo em que deixam de realizar esse serviço em seu país de origem, que era
feito, muitas vezes, de forma gratuita, em prol de idosos e crianças da família. Figuram
no horizonte também as migrações sul/sul, tendo como beneficiários países como Chile
e Argentina. Essa crise, todavia, atinge os indivíduos de formas diferentes, a partir de sua
localização, classe e raça, havendo mesmo a percepção de que, para as mulheres negras,
pobres e periféricas, ela é permanente, uma vez que tais mulheres, como regra, sempre
tiveram que trabalhar fora de casa e encontrar meios de cuidar de sua casa e seus filhos.
Federici (2019) afirma que a globalização fez surgir uma crise de reprodução
social em diversos países, manifestada através de uma nova divisão internacional do
trabalho. Essa nova divisão aproveita-se da força de trabalho das migrantes, oriundas de
países periféricos, para assegurar os serviços de reprodução social e cuidado nas
“metrópoles”. Enquanto isso, na periferia do capitalismo, são os filhos e idosos das
famílias das migrantes que ficam sem assistência.
Este fenômeno inclui rotas migratórias dentro dos próprios países da região
(das zonas rurais em direção às cidades), entre países da região (por exemplo,
mulheres peruanas que migram à Argentina ou Chile, paraguaias que migram
à Argentina, nicaraguenses que miram à Costa Rica) e até países fora da região
(por exemplo, aos Estados Unidos, Itália e Espanha). Em geral, essas
trabalhadoras sofrem com o maior nível de precariedade laboral e
vulnerabilidade que os trabalhadores locais, visto que a precariedade do
trabalho doméstico se associa também a condição de migrantes, o que as expõe
mais frequentemente às situações de discriminação e violência. (ONU
MULHERES apud CEPAL, 2020, p. 03)
29
transfere a indústria para regiões nas quais as condições de trabalho são mais
precarizadas, recruta mulheres para o trabalho pago e reduz investimentos sociais e
estatais no bem-estar social.
No Brasil, Saffioti (1967) já antevia esse debate, afirmando que, uma vez que
os nascimentos e a socialização das novas gerações constituem interesses da própria
sociedade, deveria esta mesma sociedade “pagar” ao menos parte do preço da
maternidade, encontrando soluções para os problemas que essa maternidade engendra
para a vida profissional das mulheres.
30
Em suma, a questão do cuidado encontra-se no centro do debate feminista,
havendo grandes desafios teóricos. Valorizar e visibilizar esse trabalho, e ao mesmo
tempo retirar seu viés de gênero, é tarefa que implica uma equalização da questão das
diferenças entre homens e mulheres e das diferenças de raça e classe entre as próprias
mulheres, visto que família, maternidade e trabalho remunerado podem possuir
significados bem distintos a depender da mulher da qual se fala. Embora o trabalho
doméstico e de cuidado seja realizado pelas mulheres, as condições em que tal trabalho é
desenvolvido difere para mulheres brancas, negras, ricas e pobres, variando também de
acordo com as diferentes partes do mundo. Há uma verdadeira encruzilhada: valorizar o
trabalho doméstico e de cuidado e ao mesmo tempo fazer a crítica da opressão e das
vulnerabilidades que eles produzem para as mulheres (BIROLI, 2018).
Entre o final dos anos 1970 e a década de 1980, as teóricas Nancy Chorodow,
Carol Gilligan, Jean Betkhe Elshtain e Sara Ruddik desenvolveram uma perspectiva
política e filosófica que deu origem à chamada “Ética do cuidado” (BIROLI, 2018).
Especificamente, a pesquisa de Carol Gilligan - In a Different Voice – Psychological
Theory and Women’s Development - é bastante discutida quando se aborda a questão do
cuidado. Sua obra proporcionou uma inflexão nos estudos sobre desenvolvimento moral.
Ela defendeu uma teoria com uma concepção de maturidade baseada na ética do cuidado.
A autora relata que, ao longos dos anos, todos os estudos mostravam uma disparidade
entre o chamado “desenvolvimento humano” e a experiência das mulheres. A mulher era
enquadrada em rígidos esquemas feitos por homens e era tida sempre como uma figura
desviante. Deste modo, quando ela não correspondia a uma determinada expectativa
psicológica, era dito que havia algo “errado” (GILLIGAN, 1982).
Gilligan (1982) defende que as mulheres não possuem um desenvolvimento
ou um padrão de maturidade “errados”, mas apenas diferente. A suposta fraqueza moral
das mulheres, sua aparente difusão e confusão de julgamento seriam, na realidade,
atribuições da sua força moral, de uma preocupação maior com os outros, com os
relacionamentos e responsabilidades. As mulheres não somente utilizam o contexto de
relacionamento para buscar uma autodefinição, como também avaliam a si mesmas com
base na sua capacidade de cuidar. Os homens, por sua vez, mesmo sendo destinatários do
cuidado, tendem a desvalorizar esse processo e considerar que a preocupação com os
31
relacionamentos é uma fraqueza moral, e não uma força humana. Daí surgem
estereótipos que promovem uma concepção de vida adulta voltada para o trabalho
autônomo, independente, separado da vida “real”, e desvinculada de noções de amor e
cuidado. E assim, habilidades como racionalidade, autonomia e capacidade de decisão
passam a ser tidas como masculinas.
Para Gilligan (1982), as mulheres alteram a lente da observação do
desenvolvimento, focando no apego contínuo como caminho para a maturidade, ao
contrário do caminho masculino, da separação e da realização individual. Ela aponta
evidências de que mulheres interpretam a realidade social de forma diferente dos homens,
e o senso de integridade delas parece se ligar a uma ética do cuidado, de modo que a visão
de si mesmas é uma visão da pessoa em conexões.
32
processos que versavam sobre discriminação contra mulheres5. O livro de Gilligan, em
especial, tornou-se “um dos mais citados e influentes livros feministas dos anos 80, e se
transformou no mais famoso emblema erudito sobre a “diferença” da mulher” (FALUDI,
2001, p. 324). Fora do ambiente acadêmico, foi referenciado em seminários, livros de
autoajuda e revistas:
Assim, a ideia de uma “ética do cuidado” foi utilizada para revalidar posições
de subalternidade feminina. Scott (2019) formula uma crítica a essa teoria, tanto por
haver generalizado conclusões advindas de uma pesquisa feita com uma pequena
amostra, quanto por considerar que nela estão contidas abordagens a-históricas ou mesmo
essencialistas, reforçando o que o movimento feminista procura combater.
Flavia Biroli aponta os riscos da adoção da ideia de uma ética do cuidado ou
de uma voz diferente, com base justamente na distorção e na sua associação a
essencialismos:
5
Um desses casos judiciais foi o “Caso Sears”, iniciado em 1979 e julgado entre 1984 e 1985, que consistiu
na abertura de um processo criminal por discriminação sexual movido pela Equal Employment
Opportunities Commission (EEOC) do governo dos Estados Unidos contra a Sears, Roebuck and Company,
empresa varejista que empregava grande quantidade de mulheres. A acusação era no sentido de que os
homens eram alocados em setores de maior remuneração, como o de vendas por comissão. A tese da Sears
foi que mulheres possuem outros objetivos na vida e outros valores que não estão relacionados à
maximização dos ganhos, característica que seria eminentemente masculina. Historiadoras foram
convocadas como testemunhas e prevaleceu a tese das diferenças, que resultou em perdas para a acusação
e, obviamente, para as trabalhadoras. (PIERUCCI, 1999)
33
pelo trabalho de cuidado. A tese de Gilligan evoca uma mulher universal, como se
houvesse um único “jeito feminino” de ser, com base em alguns achados de pesquisa, e
pode ser utilizada – como efetivamente foi – para construir modelos de cuidado e
maternagem impositivos para as mulheres e liberatórios para os homens. Talvez fosse
mais pertinente buscar-se uma ética da responsabilidade, capaz de impor a
responsabilização institucional de todos, homens e mulheres. Assim, no âmbito desta
pesquisa rejeita-se a ideia de uma ética do cuidado, que contribui somente para reafirmar
diferenças e ratificar posições e papéis sociais.
Nos anos 70, um fato insólito ocorrido no exército suíço mereceu a primeira
página dos jornais de Genebra. Um jovem recruta apresentou-se ao serviço
militar levando no colo um bebê de três meses. (...) Apanhadas de surpresa, as
autoridades tiveram que se confrontar com o seguinte problema: o jovem
declarava ter sido abandonado pela mulher e não contar com nenhuma
possibilidade de apoio familiar. As creches suíças, àquela época, não se
ocupavam de crianças com menos de seis meses. Foi assim que o exército
encontrou-se a braços, literalmente, com um bebê recém-nascido. O fato, que
poderia ter sido tratado de maneira anedótica, foi levado a sério pela mídia e
serviu como demonstração cabal de que o serviço militar só era possível
porque as mulheres se ocupavam das crianças. O efeito pedagógico mais
devastador desse episódio foi a coragem que teve o recruta de afirmar que
preferia ficar junto do filho do que assumir suas responsabilidades
“masculinas” junto ao exército. (OLIVEIRA, 2003, p. 61).
34
Segundo Federici (2018; 2019), a reprodução compreende o complexo das
atividades que possibilitam a reconstituição diária da vida e do trabalho. Nessa categoria
está incluída a própria geração de seres humanos, que constitui a base de todo o sistema
político e econômico; e as atividades cotidianas que compõem o universo doméstico e se
encontram atreladas ao cuidado: limpar, lavar, passar, cozinhar etc. Para a autora, “a
imensa quantidade de trabalho doméstico remunerado e não remunerado, realizado por
mulheres dentro de casa, é o que mantém o mundo em movimento” (FEDERICI, 2019,
p.17). A comida não se faz sozinha, as roupas não se lavam sozinhas, e o trabalhador, que
desenvolve suas atividades na indústria, no comércio ou nos serviços, depende desse
trabalho reprodutivo para poder passar suas horas de trabalho fora de casa e, ao retornar,
poder descansar. São atividades, portanto, que fornecem todo o suporte para a vida diária,
sem as quais não seria possível o trabalho remunerado fora de casa.
Nesse contexto, é oportuno destacar a obra de Engels (2019) sobre as origens
da família, da propriedade privada e do Estado. A despeito de imprecisões históricas e
antropológicas6, ele pesquisou a gênese das desigualdades entre homens e mulheres,
situando-a fora da biologia, e tornando visível a exploração da mulher por meio do
trabalho doméstico, bem como as inúmeras restrições ao exercício da sua liberdade. O
autor busca elementos na história e na antropologia, narrando o processo pelo qual o
homem assumiu o comando dentro de casa, num regime autocrático de família
monogâmica e patriarcal, tornando a mulher “escrava do desejo do homem e mero
instrumento de procriação” (ENGELS, 2019, p. 99). Ele expõe a historicidade dessa
dominação e dos interesses econômicos em jogo, comparando o homem ao burguês e a
mulher ao proletariado. Além disso, expõe também a perda da importância do trabalho
doméstico feminino e a dicotomia entre público e privado que fundamentou boa parte da
produção teórica feminista, cujo slogan pregava que “o pessoal é político”:
Dessa forma, o caminho para a libertação das mulheres seria sua integração
ao processo produtivo (ENGELS, 2019), o que implica dizer, como bem assinala Silvia
Federici (2019 e 2021) , que para o marxismo a mulher estava em uma espécie de situação
6
Uma das imprecisões comumente citadas é a ideia de matriarcado como sistema hegemônico no passado
(ARAÚJO, 2019)
35
pré-capitalista, fora dos esquemas de funcionamento do capital. Entretanto, ressalvadas
as limitações da própria época em que foi escrito, esse trabalho de Engels desnudou as
principais causas da exploração das mulheres7.
As feministas marxistas tentaram examinar as bases concretas da opressão
das mulheres que vivem sob o sistema capitalista, e com tal propósito passaram a estudar
o trabalho doméstico nesse contexto. Pretendia-se incluir o trabalho doméstico nas
categorias de análise. E embora a tônica principal tenha sido a crítica, muitas utilizaram-
se do arsenal teórico produzido pelo materialismo histórico (ANDRADE, 2015). Outras,
como Federici, optaram por ultrapassar o marxismo, embora sem renunciar a alguns
conceitos e categorias marxianas.
Produção e reprodução atuam conjuntamente para movimentar a vida social,
porém a produção, tomada em seu sentido originário, ocorreria somente no espaço
público, no âmbito da indústria, e a reprodução estaria relegada ao âmbito privado.
Produção e reprodução, assim como o dualismo público x privado, articulam-se com o
conceito de divisão sexual do trabalho.
Segundo Kergoat (2009), a noção de divisão sexual do trabalho foi utilizada
inicialmente por etnólogos, designando uma explicação para a estrutura social da família.
Foram as antropólogas feministas que atribuíram um novo conceito à expressão,
observando que essa divisão era estabelecida com base em uma relação de dominação. O
conceito foi adquirindo a forma de uma categoria de análise. Embora o modo como a
divisão se realiza seja variável em cada sociedade, há características comuns, a exemplo
da destinação dos homens à esfera produtiva, com ocupações de maior valor, seja
econômico, seja social, e das mulheres à esfera reprodutiva. Atuam dois princípios
organizadores: a separação, segundo o qual existem trabalhos de homem e trabalhos de
mulher, e o da hierarquização, que indica que os trabalhos de homem valem mais do que
os de mulher (KERGOAT, 2009).
O ponto de partida para esses estudos foi justamente a consideração do caráter
laboral do trabalho doméstico. Em outras palavras, a afirmação de que trabalho doméstico
é trabalho. Kergoat e Hirata (2007) assinalam que, na França, o conceito se aplica a duas
instâncias: a divisão dos ofícios entre homens e mulheres (esfera pública, ou de mercado),
e a divisão do trabalho doméstico entre os sexos (esfera privada). Essa análise possibilita
7
É preciso cuidado, todavia, para não classificar Engels como “feminista”, em um anacronismo
descontextualizado e separado da análise de outras obras, nas quais ele afirma que o trabalho da mulher iria
“desagregar” a família e desestruturar o cuidado com as crianças (ANDRADE, 2015)
36
desnudar a sistematicidade das desigualdades e a hierarquização das atividades, mediante
a qual se produz um sistema de gênero, desmistificando a ideia de que a gratuidade era
justificada pela natureza, pelo amor e pelos deveres inerentes à maternidade (KERGOAT;
HIRATA, 2007).
Assim, o trabalho começou a adquirir um novo significado, para abarcar não
só as atribuições desenvolvidas na esfera profissional, mas também aquelas realizadas no
âmbito doméstico. O conceito pretendia articular essas duas esferas, a “profissional” e a
doméstica. Da mesma forma que se buscou desnaturalizar a família e as obrigações
femininas fundamentadas no aspecto biológico, questionou-se também o modelo do
trabalho assalariado, construído sob medida para o trabalho dito “produtivo”, do homem
branco e qualificado. Desse modo, é situado o referencial teórico em uma perspectiva
dinâmica, observando as relações sociais que se estabelecem entre os sexos, por meio das
quais aos homens é designada a esfera produtiva e as funções de maior valor, seja
econômico, seja social, ao passo que as mulheres são relegadas ao âmbito reprodutivo,
estabelecendo-se a premissa de que o trabalho do homem vale mais do que o da mulher.
(KERGOAT; HIRATA, 2007)
É importante ressaltar que essa divisão não é estanque, modificando-se ao
longo do tempo, sendo dependente de condições políticas e sociais, embora sempre
mantenha a hierarquia. Ela também não incide sobre homens e mulheres da mesma forma
e com a mesma intensidade. Ao contrário, opera conjugada com posições de classe e com
o racismo estrutural, de modo que as formas mais acentuadas de exploração recaem sobre
uma determinada categoria de mulheres, e não sobre todas as mulheres, abstratamente
consideradas.
A divisão sexual assume outros contornos quando se tem em vista a
globalização e as migrações de mulheres do sul para o norte, indo ocupar-se de serviços
domésticos em tais países. Por força desse deslocamento, as mulheres do norte
conseguem “terceirizar” os trabalhos domésticos, e assim ganham tempo para uma maior
dedicação à sua carreira. Um dos efeitos é um apaziguamento nas relações entre os sexos,
uma vez que a delegação do serviço doméstico neutraliza os conflitos em torno da divisão
do trabalho, possibilitando assim, que se esqueça ou pelo menos adie-se a reflexão sobre
a condição precária das migrantes. (KERGOAT; HIRATA, 2007).
Nesse contexto, surge o fenômeno da bipolarização do emprego feminino,
que, nos termos indicados por Hirata (2010), divide as mulheres entre aquelas que
possuem acesso a profissões como as de executiva, servidora pública e outras profissões
37
liberais, e do outro lado as que permanecem em ofícios tipicamente femininos, no
trabalho doméstico e de cuidados, na educação infantil e no setor dos serviços, em
atividades que não exigem qualificação específica. A bipolarização revela clivagens entre
as mulheres e perpetua desigualdades e hierarquias no próprio gênero feminino.
Deste modo, no âmbito público, a divisão sexual produz hierarquias entre os
dois gêneros e entre as próprias mulheres. No âmbito residencial, tido como espaço
reprodutivo, articula-se com os limites e as possibilidades profissionais de cada sexo fora
de casa. O tema encontra-se profundamente vinculado à questão do tempo: tempo para se
dedicar a atividades profissionais, tempo para o desenvolvimento intelectual e subjetivo,
tempo para se dedicar a atividades políticas, consolidando a posição de cidadão/cidadã.
Faz-se fundamental, assim, adentrar na questão da pobreza de tempo. Essa
dimensão da pobreza não se resume à sensação de falta de tempo em decorrência da
velocidade do mundo atual, estando fundamentada na percepção de que nem todas as
atividades diárias da vida são monetizáveis, havendo necessidade de um período mínimo
para realizá-las (FERRITO, 2021). Para Abramo e Valenzuela (2016), ela pode ser
calculada com base na soma das horas necessárias para trabalho remunerado, cuidados
pessoais (higiene, alimentação), transporte, trabalhos domésticos e necessidades
fisiológicas básicas. A pobreza se configura quando não se tem tempo suficiente para tais
atividades. E há déficit de tempo em uma residência quando pelo menos um dos seus
integrantes sofre com a pobreza de tempo. Segundo o relatório da CEPAL, em todos os
países com informação disponível, o tempo total de trabalho das mulheres ocupadas
supera o dos homens. E a sobrecarga de trabalho não remunerado imposto às mulheres
constitui obstáculo tanto ao seu ingresso no mercado de trabalho quanto à ocupação de
postos de trabalho mais valorizados (CEPAL, 2019). Assim, é comum as mulheres
sofrerem com a pobreza de tempo, em razão da divisão desigual das tarefas domésticas.
Muitas vezes, a carga horária total de homens e mulheres é parecida, todavia os homens
possuem mais tempo de trabalho remunerado, o que revela maior tempo livre para o
trabalho produtivo, ao passo que elas precisam abrir mão dessa disponibilidade para se
dedicar a trabalhos reprodutivos, o que é indicador de pobreza de tempo (FERRITO,
2021).
Revelam-se impactos também no âmbito do desenvolvimento político:
38
sujeito na construção da resistência à dominação/exploração. (ÁVILA, 2016,
p. 144)
39
dimensões individuais e sob perspectivas voluntaristas. Embora não existam
impedimentos legais para se buscar outros caminhos, nem o que se possa identificar como
coerção propriamente dita, há uma questão de responsabilização, que atua nos planos
institucional e estrutural. A alocação das responsabilidades por esse trabalho é
institucionalizada e permeia as relações cotidianas (BIROLI, 2018).
Hirata (2004) afirma que, na sociedade brasileira, o modelo de delegação de
cuidados e atividades domésticas superpõe-se ou supera o modelo de conciliação da vida
profissional com a vida familiar. É preciso, todavia, ler com cuidado tal afirmação, uma
vez que, conforme exposto adiante, por meio de dados do IBGE (2020), a delegação
mediante a contratação de empregadas domésticas é acessível a poucas famílias no país,
havendo uma grande massa de mulheres que trabalham fora e chefiam domicílios, tendo
que conciliar tais atividades, embora em algumas situações, com a ajuda de parentes,
filhos mais velhos e da comunidade.
40
os seus fundamentos no livro “O ponto zero da revolução” (2019). Segundo os cânones
do Wages..., os salários para o trabalho doméstico seriam pagos pelo Estado, e não pelo
marido. Para Federici (2019), a questão dos salários estaria longe de se resumir ao âmbito
financeiro; ela rejeita a ideia de salário como “um dinheiro a mais” e suscita o caráter
político da questão: o simples fato de se postular salário para tarefas que eram tidas como
atribuições naturais, decorrência do amor, já acarretaria severo impacto nas expectativas
sociais sobre as mulheres. O objetivo final seria “desgenerificar” o trabalho doméstico.
A luta pelo salário seria, então, uma luta contra o papel social e contra a naturalização
dos serviços domésticos como algo ínsito à mulher (FEDERICI, 2019)
Na própria época em que surgiu, o Wages for Housework sofreu inúmeras
críticas. Se, por um lado, a ideia de pagamentos pelo Estado para trabalhos domésticos
pareceria ainda mais sem sentido no mundo de hoje, não se pode negar a verdade da
assertiva de Federici (2019) no sentido de que conseguir um emprego fora de casa nunca
libertou as mulheres do “primeiro emprego”, a luta diária com os afazeres domésticos.
Mesmo quando as mulheres podem pagar por uma empregada, ainda é como se aquele
trabalho fosse delas, como se elas apenas o estivessem delegando, tanto que a contratação
e a supervisão dos serviços, assim como a organização da rotina da casa, permanecem
sendo atribuições tipicamente femininas. Com ou sem empregada doméstica remunerada,
as mulheres não se libertaram da ideia de que trabalho doméstico é trabalho de mulher, o
que se expressa nessas duas vias: as pessoas que delegam são mulheres; as pessoas que o
exercem, ainda que de forma remunerada, também o são. Nesse sentido, possui total
pertinência a afirmação de Pereira e Nicoli (2020) de que o “Wages...” constituiu uma
importante provocação política.
O movimento é um capítulo na grande luta do movimento feminista para
demonstrar que o trabalho doméstico é trabalho, uma vez que sua classificação como
atividade de mero “valor de uso”, sem finalidade lucrativa e sem impactos econômicos,
condicionava o seu reconhecimento. Além de ser posto à margem do motor da sociedade
capitalista (a geração de lucro), esse mesmo trabalho é tido como não especializado, não
sendo necessária nenhuma competência especial ou qualificação para tal fim, haja vista
que as tarefas de cuidar e limpar são tidas historicamente como desdobramentos naturais
da condição feminina. Como afirma Hirata (2004), por competência entende-se uma
miríade de características atribuídas ao masculino, tais como criatividade, autonomia e
capacidades técnicas. Para ela, o reconhecimento do valor dessas qualidades, que devem
ser alçadas à condição de competências profissionais, constitui um dos momentos
41
fundamentais dessa correlação de forças estabelecida entre os gêneros e as classes sociais.
Ela salienta, todavia, que a mercantilização do trabalho doméstico pode levar tanto à
desvalorização quando ao reconhecimento.
Nesse sentido, é interessante ilustrar com o exemplo abaixo:
Uma das hipóteses suscitadas por essa autora é a de que o trabalho não possui
um valor intrínseco, estando relacionado ao reconhecimento social de quem o faz. A se
confirmar tal hipótese, as mulheres veem-se enredadas em um círculo vicioso, uma vez
que, sempre que conseguirem romper os limites dos nichos tipicamente femininos, todas
as atividades que “tocarem” serão desvalorizadas. Na prática, pode-se observar que o
contrário também acontece: atividades historicamente associadas à condição feminina,
como o ato de cozinhar, tornam-se competência profissional nas mãos de homens, que se
qualificam como “chefs”, e não, cozinheiros.8
Os censos ratificavam esse sistema de invisibilidade, considerando a dona de
casa como economicamente inativa, sem qualquer participação na formação do país e no
seu Produto Interno Bruto (PIB). Para Bruschini (1998), foram dois os elementos que
possibilitaram tornar visível o trabalho feminino: a discussão sobre a inadequação ou
insuficiência do marxismo para analisar e compreender o trabalho feminino; e um alerta
para os equívocos metodológicas nas pesquisas de levantamentos de dados realizadas por
organismos oficiais para coletar informações sobre o trabalho feminino. Os censos
adotavam como referência o trabalho produtivo sob os moldes capitalistas, de modo que
restavam omitidos o trabalho em domicílio remunerado para produção de alimentos e de
roupas, como também o trabalho doméstico. Além disso, utilizava-se o conceito de chefe
de domicílio, sempre associado ao gênero masculino. Além de conter muitos vieses, tanto
nas perguntas quanto na própria abordagem pelos recenseadores, essas pesquisas não
8
O domínio dos homens sobre a cozinha não é fenômeno recente, todavia a eles era destinada a cozinha
“especial”, a comida feita para nobres, enquanto as mulheres ficavam com as cozinhas menos requintadas,
“triviais “e nas quais não se exigissem competências específicas, ou mesmo a confiança. Da mesma forma,
na atualidade a cozinha “lucrativa” é domínio masculino, sendo comum que as mulheres ocupem lugares
subalternos, de mera assistência/ajuda. O ambiente costuma ser agressivo, e favorece a prática do assédio,
tanto moral quando sexual. (BRIGUGLIO, 2017; PENA; SARAIVA, 2019)
42
analisavam dados secundários. Foi somente nos anos 80 que foram sendo introduzidas
modificações nos questionários do IBGE. A partir dos anos 90, a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio (PNAD) sofreu diversas transformações que terminaram
resultando na reconfiguração da própria categoria “trabalho” (BRUSCHINI, 1998).
Atualmente, utiliza-se a expressão “economia do cuidado” para conferir
visibilidade ao trabalho doméstico, ignorado pela economia tradicional. A economia do
cuidado lida com todo trabalho não remunerado, realizado no âmbito das residências,
como também o trabalho de cuidado remunerado desempenhado na esfera do mercado,
abrangendo todo o valor que é gerado pelos serviços e atividades atinentes à existência e
à reprodução das pessoas e da própria vida social. Seu estudo permite que se analisem as
cadeias de cuidado e que se compreendam os fatores que contribuem para diversificar a
estrutura de produção e o crescimento econômico sob uma perspectiva de
sustentabilidade, como também favorece o desenvolvimento de políticas públicas
voltadas à criação de uma sociedade mais justa. (CEPAL, 2019).
Esse reconhecimento foi extremamente importante, mas na prática o trabalho
doméstico segue desvalorizado e a responsabilização institucional por desempenhá-lo
continua sendo das mulheres.
Outro recurso que auxilia na visibilização da atividade é a pesquisa sobre o
uso do tempo. Seu objetivo é descobrir quais as tarefas nas quais as pessoas empregam o
seu tempo em um determinado período, sendo utilizado, geralmente, o dia como
parâmetro. Desse modo, a pesquisa, por meio do uso de metodologias diversas, consegue
traçar “orçamentos de tempo”, muitas vezes com informações sobre as atividades
realizadas e quem se beneficiou delas (RAMOS, 2009). No Brasil não há pesquisa
orientada exclusivamente para tal finalidade, mas a PNAD contínua passou a revelar
alguns dados nesse sentido a partir da década de 2000. Em 2008, foi criado um comitê
técnico de estudos de gênero e uso do tempo (CGUT) para estimular a utilização dessa
perspectiva na produção e na análise das estatísticas do país. (MELO; CONSIDERA; DI
SABBATO, 2016)
Embora não seja objetivo deste trabalho fazer uma comparação rigorosa
quanto ao uso do tempo, é possível, por meio de amostragens básicas, observar como o
uso do tempo em tarefas domésticas sempre foi maior pelas mulheres. Na última pesquisa
divulgada, no ano de 2020, as mulheres ainda despendiam, em média 10 horas a mais do
que os homens em afazeres domésticos (IBGE, 2020).
43
Essa diferença na alocação do tempo implica graves limitações ao exercício
de tarefas remuneradas fora de casa, tolhendo oportunidades e reduzindo ganhos salariais.
Ao mesmo tempo, torna invisível tudo o que cerca o trabalho de cuidado realizado por
mulheres. Em 1970, a economista Ester Boserup publicou estudo tratando sobre a divisão
sexual do trabalho, mostrando como o cálculo do produto nacional ignorava a produção
de subsistência familiar – realizada, em sua maioria, por mulheres. Essa crítica inicial foi
ampliada pelas feministas com a tendência de visibilização do trabalho doméstico. A
partir de então, foram vários estudos estimando o valor do trabalho doméstico (MELO;
CONSIDERA; DI SABBATO, 2016).
Em janeiro de 2020, foi publicado o relatório “Tempo de Cuidar”, da Oxfam
Brasil9, revelando grandes disparidades nas relações de gênero e raça. Um dos destaques
foi a estimativa do trabalho de cuidado não remunerado:
Essa renda, que pode ter sido subestimada, pois calculada com base apenas
no salário-mínimo, tem seus benefícios revertidos para os mais ricos. Esse mesmo
relatório indica que mulheres e meninas, sobretudo as que vivem em condição de pobreza,
dedicam 12,5 bilhões de horas por dia realizando trabalhos de cuidado gratuito, sem
contar as horas de trabalho com remuneração muito baixa. Essa situação faz parte de um
contexto de grande concentração de renda, encontrando-se no topo um grupo pequeno de
pessoas, composto predominantemente por homens. Se a extrema pobreza é feminina, a
extrema riqueza é masculina: os homens detêm, no mundo, 50% a mais de riqueza do que
as mulheres (LAWSON et al, 2020).
As mulheres desempenham mais de três quartos dos trabalhos de cuidado não
remunerado no mundo inteiro, e dois terços do trabalho remunerado nesse setor. As que
vivem em comunidades rurais e de baixa renda dedicam tempo cinco vezes maior do que
os homens no trabalho de cuidado não remunerado. Ainda segundo esse mesmo relatório,
em todo o mundo, 42% das mulheres em idade ativa encontram-se fora do mercado de
trabalho em razão de suas atividades não remuneradas, ao passo que isso ocorre apenas
9
Organização da sociedade civil criada em 2014, sem fins lucrativos e independente. In:
https://www.oxfam.org.br/historia/. Acessado em maio, 2021.
44
com 6% dos homens (LAWSON et al, 2020). Trata-se de um ciclo: as meninas que
precisam realizar o trabalho de cuidado não remunerado apresentam índice de
absenteísmo na escola maior do que as demais, permanecendo com poucas chances de
mobilidade social ao longo da vida, em razão da baixa escolaridade.
A situação muito se agrava com os cortes de serviços públicos, a privatização
de serviços diversos, como educação e saúde, que redundam em mais trabalho para as
mulheres. O envelhecimento da população e as mudanças climáticas delineiam um
cenário de piora. Ainda segundo o relatório da Oxfam Brasil (LAWSON et al, 2020), até
2025, um total de 2,4 bilhões de pessoas no mundo poderão viver em lugar sem água, o
que forçará mulheres e meninas a ter que caminhar cada vez mais para buscá-la.
Quando se trata de trabalho doméstico remunerado, os dados são também
desalentadores. Na América Latina, o Brasil é um dos países que possui a maior
proporção de mulheres ocupadas com o serviço doméstico remunerado. Considerando
América Latina e Caribe, estima-se que existam entre 11 e 18 milhões de pessoas nessa
ocupação, e, dessas, 93% são mulheres. Mais de 77% dessas mulheres trabalham em
condições de informalidade, ao largo de qualquer proteção trabalhista. A Organização
Internacional do Trabalho (OIT) estima que 17,2% das trabalhadoras domésticas são
migrantes. Segundo dados da CEPAL, com base no censo de oito países, 63% dessas
pessoas são afrodescentes. (ONU MULHERES, OIT, CEPAL, 2020).
Segundo o relatório da Oxfam Brasil (LAWSON et al, 2020), apenas 10%
das trabalhadoras domésticas possuem proteção legal na mesma medida dos outros
trabalhadores e somente cerca de metade possui acesso a salário-mínimo. Isso significa
que 90% delas são privadas de benefícios de previdência e assistência social. Para mais
da metade delas, não há previsão de limitação de jornada de trabalho na legislação, o que
foi o caso do Brasil até recentemente. Há ainda o trabalho análogo à condição de
escravidão, estimando-se que anualmente cerca de 8 bilhões deixem de ser pagos a essas
mulheres, que vivem em residências nas quais toda a sua vida é controlada.
O IBGE publicou recentemente um relatório com os destaques da evolução
do mercado de trabalho no Brasil, destacando dados da PNAD contínua de 2012 a 2020,
e os resultados foram os seguintes:
45
retração dessa população, que passou de 6,2 milhões em 2019 para 5,1 milhões
de pessoas em 2020: queda de 19,2%.
(...)
46
negras. Entre as domésticas negras em situação de extrema pobreza, 59,3% são
chefes de domicílio, enquanto entre as não negras extremamente pobreza,
53,7% o são. (DIEESE, 2020, p. 9 e 10)
47
uma estrutura social estratificada de forma rígida: os trabalhos “nobres”, qualificados,
eram exercidos pelos brancos, enquanto o trabalho “sujo”, braçal, era feito pelos negros.
De modo similar, Gonzalez (2020) afirma que essa divisão faz com que, no Brasil, a
população negra ocupe-se predominantemente de posições laborais subalternas. A
mobilidade das pessoas negras, segundo ela, caracteriza-se por ocorrer em termos
individuais, ou seja, são pessoas que, por alguma razão particular, conseguem ascender
socialmente, a exemplo de jogadores de futebol. Assim, não é por acaso que a força de
trabalho negra permanece confinada em atividades que pagam mal e exigem pouca
qualificação, sendo fruto de uma sistemática discriminação.
Articuladas, a divisão sexual e a racial estabelecem nichos, lugares pré-
determinados para homens e mulheres, em especial as mulheres negras. O serviço
doméstico tem subsistido como um nicho para mulheres negras.
Lidar, por exemplo, com a divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a
correspondente ao nível racial é cair em uma espécie de racionalismo universal
abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco. Falar de opressão ã
mulher latino-americana é falar de uma generalidade que esconde, enfatiza,
que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam
um preço muito alto por não serem brancas. (GONZALEZ, 2020, p. 142).
Lélia Gonzalez afirma que, no que diz respeito ao período posterior à década
de 1950, houve o fechamento de muitas fábricas têxteis, prejudicando a condição da
mulher negra operária. Embora novas perspectivas tenham sido abertas em setores
burocráticos mais baixos, essas atividades ainda exigiam algum nível de escolaridade,
que tais mulheres não possuíam. Em paralelo, tais profissões exigiam, também, “boa
aparência”10, expressão que, a seu ver, constitui “um código cujo sentido indica que não
há lugar para a mulher negra” (GONZALEZ, 2020, p. 57/58).
Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam “lidar com o
público”? Ou seja, atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de
emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas das
madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira, e raramente
copeira? Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas,
supermercados, hospitais etc. e tal? (GONZALEZ, 2020, p. 85).
10
No terceiro capítulo haverá menção a essa questão da aparência, abordando o sentido da expressão “cara
de empregada doméstica”.
48
Gonzalez (2020) aponta uma grande contradição do movimento feminista
brasileiro, uma vez que, quando se denunciava a exploração das empregadas domésticas,
era gerado um intenso mal-estar, sendo visível a existência de um “racismo por omissão”,
com base em visões de mundo eurocêntricas e neocolonialistas.
No caso da empregada doméstica, ela passava por um processo de
internalização da diferença e da suposta inferioridade que seria típica de sua condição.
Além disso, enfrentava a dupla jornada:
49
Importante registrar que, no Brasil, Lélia Gonzalez já antecipava as ideias do
que viria a se chamar interseccionalidade.
No artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black
Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist
Politics (CRENSHAW, 1989), Kimberle Crenshaw analisa alguns julgamentos para
demonstrar como a experiência das mulheres negras não é percebida pelo judiciário. No
caso de Graffenreid vs. General Motors, a GM foi acusada de não haver contratado
mulheres negras durante certo período, e alegava que não houve discriminação sexual,
porque foram contratadas mulheres (brancas). Não teria havido, também, discriminação
racial, pois havia homens negros trabalhando. A corte afirmou que a ação deveria ser
examinada para ver se era encontrada uma causa para discriminação racial OU
discriminação sexual, mas não uma combinação de ambas. As discriminações foram
examinadas de forma separada e estanque, resultando em vitória da GM. Segundo o
julgado, não há nenhuma proteção especial para a categoria “mulheres negras”.
A autora segue analisando outros casos, e formula a célebre imagem de uma
avenida que possui quatro direções e fluxos. Caso ocorra um acidente, ele pode ser
causado por um veículo que vem em qualquer das direções, e, às vezes, veículos vindos
de todas elas. (CRENSHAW, 1989). Assim, as mulheres negras encontram-se no centro
dessa avenida, podendo sofrer discriminações diferentes daquelas que são
experimentadas por homens negros e mulheres brancas, com efeitos combinados de
práticas que discriminam com base em raça e sexo, de modo que as opressões enfrentadas
por esse grupo são mais amplas do que aquilo que é ofertado pelo discurso sobre a
discriminação.
Para Creenshaw (2012), as discriminações de sexo e de gênero operam em
conjunto, funcionando como limitações ao sucesso de mulheres negras. A
interseccionalidade pode então ser uma ponte entre várias instituições e eventos, e uma
categoria de análise nos discursos a respeito dos direitos humanos. A autora cita como
exemplos a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (Cedaw) que se volta ao tema dos direitos humanos das mulheres
(abordagem de gênero) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial (abordagem de raça), podendo ser
encontrados, com o apoio da interseccionalidade, mecanismos para que as instituições
operem em conjunto, abordando simultaneamente as duas formas de discriminação. A
50
interseccionalidade torna visível o fato de que existem grupos sobrepostos, e que a mulher
negra está no centro desse grupo (CREENSHAW, 2002; CREENSHAW, 2012).
Para Collins e Bilge (2021), Crenshaw defende a interseccionalidade como
um constructo de justiça social; seu artigo encontra-se atado a um ethos de justiça social,
que pressupõe que fazer análises mais abrangentes dos problemas sociais possibilita que
se pensem e se produzam ações mais eficazes. Lembremos que a análise de Crenshaw se
deu no âmbito jurídico. No caso do trabalho doméstico, podem ser vislumbrados os
benefícios caso tivesse sido utilizada a interseccionaldiade como ferramenta analítica,
tanto no momento da produção legislativa quanto, também, na prática das varas e
tribunais trabalhistas.
Akotirene (2018) entende a interseccionalidade de forma ampla, incluindo
outros marcadores de opressão, tais como a heterossexualidade, e articulando a discussão
com os estudos decoloniais. A autora enfatiza a necessidade de se afastar a visão de uma
hierarquia de opressões e sofrimentos, uma vez que todas as vias dessa estrutura encontra-
se conectadas.
A esta altura, faz-se necessário mencionar outra ferramenta analítica possível,
a consubstancialidade, mobilizada por Danièle Kergoat desde as décadas de 1970-1980.
Seus estudos partem da análise da divisão social de trabalho em três dimensões: classe,
gênero e origem (norte/sul). Ela busca compreender a sociedade com base na ideia de
relações sociais, sempre com perspectivas dinâmicas. As relações sociais, ao contrário
das intersubjetivas, são abstratas e opõem grupos numa disputa; são somente essas
relações que podem originar formas de resistência e apontar caminhos para mudanças.
Para a autora, toda relação social é conflituosa e coextensiva: em seu próprio
desenvolvimento, elas se reproduzem e se coproduzem mutuamente. A coextensividade
aponta para esse dinamismo, essa produção mútua. (KERGOAT, 2010).
Como se vê, a consubstancialidade apresenta diversos pontos de contato com
a interseccionalidade, com a diferença de que, enquanto a interseccionalidade foi
desenvolvida no contexto estadunidense, a consubstancialidade o foi na França. A própria
Kergoat (2010) aponta algumas distinções entre ambos. Ela afirma que, na
interseccionalidade, o cruzamento privilegiado se dá entre raça e gênero, sendo a classe,
muitas vezes, meramente uma citação obrigatória. Ela menciona, ainda, o pensar
“cartográfico”, explícito no artigo de Creenshaw, que pensa as categorias em posições
fixas, dissociadas das relações sociais nas quais foram construídas. Embora reconheça o
mérito do feminismo negro e dos estudos pós-coloniais, no sentido de desnudar a
51
heterogeneidade das mulheres e desconstituir o falso universalismo das teorias, ela
questiona se é suficiente falar sobre esses antagonismos entre as mulheres, quando há a
possibilidade de questionar o próprio gênero, construído de modo diferente de acordo
com as posições de raça e classe:
52
2.6 Empregadas domésticas versus cuidadoras
53
Embora possua relação com o acesso a direitos, essa busca por uma
regulamentação própria ultrapassa o aspecto meramente material, revelando uma faceta
identitária, com as cuidadoras procurando se afastar do status do trabalho doméstico, tido
como desqualificado.
54
3 GÊNERO, RAÇA E CLASSE
55
nos padrões de produção e controle do saber e no controle do trabalho, bem como de seus
insumos e produtos, de modo que a raça e a divisão (racial) do trabalho reforçam-se
mutuamente (QUIJANO, 2005). Para Lugones (2020, p. 56), a invenção da raça
proporcionou uma “guinada profunda”, um verdadeiro giro, que reorganizou as relações
de superioridade e inferioridade e deu ensejo a novas formas de dominação.
O conceito de classe tem origem marxista, identificando estratificações
sociais, estando relacionado tanto ao tema da mudança histórica quanto à “cisão do
caminho pelo qual a história avançou dialeticamente” (SCOTT, 2019). Trata-se também
de uma categoria de análise, forjada para tentar compreender a realidade experenciada no
mundo dos fatos (MATTOS, 2019).
A alocação em uma determinada classe, o pertencimento de gênero e o
étnico/racial não dão conta, isoladamente, de explicar a exploração e a opressão que
podem sujeitar um indivíduo. O processo é tão dinâmico que se torna praticamente
impossível dizer o que vem primeiro, de modo que se mostra certeira a defesa das
feministas interseccionais da inexistência de hierarquia de opressão.
Trata-se, portanto, de três conceitos que identificam construções sociais,
políticas e econômicas, relacionadas ao plano da cultura e do fazer humano. São
categorias históricas, que o próprio direito ajudou a construir. Entretanto, é sobre o corpo
que o gênero, a raça e a estratificação de classe incidem. As narrativas culturais encontram
nele a sua base material.
Supiot (2016, p. 70) afirma que “ao nosso direito repugna encarar os corpos,
i.e., a dimensão biológica dos sujeitos de direito”. Há, diz o autor, uma repulsa do corpo
do trabalhador no âmbito do pensamento jurídico. Dentre os muitos significados que se
pode atribuir a essa rejeição, uma visão possível é a de que “descer” ao nível do corpo
implica entrar em contato com situações de discriminação ocultadas.
Falar sobre o corpo das mulheres que no passado executaram o trabalho
doméstico no Brasil, e das que o executam na atualidade, é de suma importância. Embora
existam mulheres brancas na atividade, esse trabalho ficou associado, no imaginário, à
mulher negra. Não se trata de perceber “herança” escravocrata, mas sim de ver que as
ideias e os conceitos foram sendo permanentemente atualizados, amoldados às situações
emergentes, porém conservando estruturas de poder. Em outras palavras, é a permanência
da colonialidade do poder, que persiste atualmente, mesmo depois de finda a
colonização.
56
O corpo da escravizada doméstica traz inúmeros indicativos de como é
pensado o corpo atual da empregada doméstica: um corpo de mulher, que pode ser
branco, mas que é, em sua maioria, negro; que sofre a incidência de imagens de controle;
que se vê confinado a espaços específicos: o “quarto de empregada”, a entrada de serviço,
o elevador de serviço; que se movimenta incessantemente para lidar com a limpeza e o
cuidado, despendendo energia em uma atividade que se modifica ao longo do tempo,
mas que não apresenta perspectiva concreta de ser substituída pela tecnologia; e o corpo
invisível, que se vê excluído da dimensão da cidadania.
É importante ressaltar que não há aqui a ideia de retorno a um pensamento
essencialista, e sim a constatação de que, em se tratando de serviço doméstico, é preciso
falar sobre a materialidade do corpo, uma vez que é esse corpo que se debate na jornada
de trabalho. É sobre o corpo e sobre o sexo dessas mulheres que as construções culturais
e as narrativas incidem. Como é pensado o corpo das mulheres que se dedicaram e se
dedicam a esse trabalho? O que fez de uma mulher uma mucama, uma ama de leite ou
cozinheira? O que faz de uma mulher uma empregada doméstica ou faxineira nos dias
de hoje?
O corpo não constitui essência, tampouco destino; todavia, é a localização
primária da pessoa no mundo, sua primeira inscrição perante a realidade (BRAIDOTTI,
1991). Como instância primária, ele é também a base sobre a qual é construída a
identidade, inclusive a identidade que nega aquela que lhe foi atribuída biologicamente.
É no corpo que se inscrevem as estruturas de dominação e submissão. O corpo sente dor;
ele é concreto, pode ser oprimido, preso, violado, escravizado e explorado.
(CALDWELL; LEIGHTON, 2018).
Trata-se, portanto, do corpo não enquanto categoria estanque e/ou critério de
definição de identidades, e sim enquanto matéria, superfície que sofre ações de
disciplinamento e de governo (MENDES, 2006). Campo de intersecção de forças
materiais e simbólicas (BRAIDOTTI, 1991), que se encontra totalmente implicado no
âmbito político e é utilizado com finalidades econômicas. Para tanto, sofre a ação de
diversas tentativas de disciplinamento e moldagem, geralmente com o objetivo de torná-
lo dócil e apto à exploração. Para Foucault (2015, p. 237) “nada é mais material, nada é
mais físico, mais corporal que o exercício do poder ...”
57
contrapartida, a sua constituição como força de trabalho só é possível se estiver
integrado num sistema de sujeição (em que a necessidade é também um
instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o
corpo só se torna força útil se for simultaneamente corpo produtivo e corpo
submetido.” (FOUCAULT, 2015, p. 58)
Eu fêmea-matriz
Eu força-motriz
Eu-mulher
Abrigo da semente
Moto-contínuo
Do mundo.
(EVARISTO, 2019, p. 61).
58
2019a). Eles eram submetidos a uma série de humilhações durante o processo de venda,
com exames corporais minuciosos, inclusive das partes íntimas:
Depois de todo esse processo, não era raro que, ao chegar ao local onde iriam
trabalhar, recebessem castigos corporais “pedagógicos”, para desde logo aprenderem
quem manda (GOMES, 2019). Os homens geralmente iam trabalhar no campo, mas
alguns eram escolhidos para serviços domésticos. As mulheres poderiam ficar no campo
ou no serviço doméstico. Hooks (2019a) afirma que as mulheres negras eram tão
espancadas quanto os homens, mas tinham que suportar ainda os sofrimentos adicionais
relativos à sua vulnerabilidade sexual, sendo vítimas frequentes de estupro, e não só por
parte de homens brancos, mas também negros. Como se não bastasse, além da violência
sexual, tinham que suportar a hostilidade e a raiva das esposas brancas, que não raro se
manifestavam com elevado índice de crueldade (FREYRE, 2006; HOOKS, 2019a).
Adicionalmente, algumas eram tidas como reprodutoras, seus corpos utilizados para
fornecer mais força de trabalho, e seu leite para servir de alimento aos filhos dos senhores
(DEL PRIORE, 2009; COLLINS, 2019; HOOKS, 2019a).
O corpo da mulher escravizada era também um corpo silenciado. Grada
Kilomba (2019) aponta a máscara de metal colocada na boca dos escravos como símbolo
do silêncio imposto pelo colonialismo. Esse silenciamento “material” exercido contra o
corpo repercutiu sobre toda a estrutura de conhecimento, persistindo como silenciamento
epistemológico e como diferenciação entre as narrativas que podem circular e obter algum
tipo de chancela, e as demais, reprimidas e permanecendo sempre à margem.
Esse corpo que já havia enfrentado rituais de humilhação e controle, e que
estava sujeito ao uso exaustivo no trabalho, no sexo, na reprodução e no cuidado dos
filhos dos senhores, era também, frequentemente, comparado/equiparado a animais,
sendo muito comum o recurso a esse tipo de expediente para negar a humanidade e a
subjetividade dessas pessoas, buscando justificar o tratamento degradante que lhes era
conferido. Mulheres negras eram equiparadas a mulas, porcas, e dizia-se que podiam ter
filhos com a mesma facilidade dos animais (COLLINS, 2019). Em anúncios de jornais11
11
Esse modo pejorativo de se referir aos escravizados pode ser conferido por meio da leitura de anúncios
de jornais da época: Trocavam-se animais e coisas por escravos: cabras-bicho por cabras-pessoas, canoas
por negras, cavalos por molecões. Dentre os anúncios que ilustram esse gênero de comércio, é muito
59
era por vezes difícil saber se a venda ou troca de uma “cabra de bom leite” se referia a
amas de leite ou a animais (FREYRE, 2012, p. 101).
Davis (2016) afirma que a postura dos senhores em relação às mulheres era
baseada na conveniência: em determinado momento, extraíam a sua força de trabalho
muscular, da mesma forma que faziam com os homens; em outro, quando a exploração e
a punição eram peculiares ao corpo feminino, eles as reduziam à condição de fêmeas.
Embora o período da escravidão tenha sido longo e a condição das mulheres
escravizadas tenha variado bastante no decorrer do tempo, em especial no século XIX,
esse uso exauriente do corpo marcou de forma muito negativa a imagem da mulher negra,
tida como devassa, depravada, imoral, permissiva ao sexo, emergindo o estereótipo da
negra como “selvagem sexual”, ao mesmo tempo em que se consolidava uma espécie de
hierarquia sexual (Hooks, 2019a). São esses estereótipos, que funcionam como
justificativas morais para diversos tipos de violência, que serão abordados no próximo
tópico.
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
(BANDEIRA, 2013).
expressivo o seguinte: “[...] uma negra que saiba cozinhar e engomar ou um escravo que sirva para pajem,
por uma canoa grande que carrega 1.500 tijolos [...]” (D. P., 4/2/1834). Igualmente expressivo é este
outro: “[...] troca-se, fazendo o preço nos seus valores, um negro cozinheiro e socador de açúcar, e para
todo o mais serviço, por uma negra que saiba cozinhar e engomar e sem vícios” (D. P., 31/1/1834). E não
raras vezes os anúncios de escravos à venda parecem referir-se a simples animais. Em 1830 vendiam-se
no Recife “três escravos, hum macho e duas fêmeas, ambas lavadeiras” (D. P., 22/4/1830). Em 1836,
desapareceu na mesma cidade, do Sítio do Bebedor, “huma cabra, bonita figura, julga-se já ter parido por
estar prenhe”, que não se sabe se era animal ou mulher (D. P., 21/4/1836). (FREYRE, 2012)
60
e que nutria grande amor pelas pessoas brancas. Ela tudo permitia, a todos obedecia,
amava os senhores e reconhecia sua própria inferioridade (HOOKS, 2019 b).
Bel Hooks aponta ainda o mito da mulher negra masculinizada, de grande
força, capaz de suportar trabalho pesado e privações. Esses mitos perduraram e moldaram
a imagem da mulher negra. Seu corpo se tornou “o campo de convergência entre racismo
e sexualidade” (HOOKS, 2019b, p. 129).
Tais mitos foram estudados em profundidade por Patricia Hill Collins (2019),
que sistematizou o conceito de “imagens de controle”, que seriam justificativas
ideológicas para as opressões de raça, gênero e sexualidade. Bueno (2020) as define como
“dimensão ideológica do racismo e do sexismo compreendidos de forma simultânea e
interconectada”. As imagens de controle perpetuam estereótipos e mitos para naturalizar
as injustiças sociais, fazendo com que pareçam inevitáveis e que despontem como fatos
decorrentes de culpa da própria vítima. Por meio do recurso a esses estereótipos, as
mulheres negras permanecem sendo “o outro”. (COLLINS, 2019).
Essas imagens se diferenciam dos meros estereótipos, pois a sua articulação
ocorre por força do poder dos grupos dominantes (BUENO, 2020). Collins listou os mitos
da mammy ou da mãe preta, da matriarca, da mãe negra sustentada pela assistência social
e de Jezebel. A mammy é a “serviçal fiel e obediente” (Collins, 2019, p. 16), a
trabalhadora que se entrega totalmente à família da qual cuida. Ela própria não tem
família, nem aspira a isso, sendo seu único desejo o de servir. É a trabalhadora amada por
todos, sobretudo por “conhecer seu lugar”, ser obediente e diligente.
Gilberto Freyre retratou a “tradução” da mammy, chamada no Brasil de mãe
preta, romantizando sua relação com a família branca:
61
ela jamais assumiu o status econômico daquela família, que pôde desfrutar do serviço
barato e da dedicação exclusiva da trabalhadora.
A mãe preta foi imortalizada na literatura infantil brasileira por meio da figura
da Tia Nastácia, da obra de Monteiro Lobato. Tia Nastácia é a cozinheira no sítio do Pica-
Pau Amarelo, totalmente devotada às crianças e à matriarca, Dona Benta. Não tem
família, vive no local, é querida por todos, na medida em que cumpre sua função de ser
totalmente subserviente e amorosa, sendo frequentes as passagens nas quais seu intelecto
é “amorosamente” depreciado12. Nos Estados Unidos, a figura da “Tia Jemima” também
ficou famosa, sendo seu rosto usado desde 1893 como símbolo comercial de uma mistura
para fazer panquecas. (LOPES, J. 2020).
Nessas análises das imagens de controle percebe-se a força instrumental da
interseccionalidade. A obra de Monteiro Lobato retrata o sítio do Pica Pau Amarelo como
um local quase que de reinado matriarcal, com a soberana Dona Benta na figura de líder.
Utilizando o mesmo raciocínio da corte de Chicago que julgou o caso Graffenreid vs.
General Motors, referido no primeiro capítulo desta dissertação, Lobato dificilmente
poderia ser acusado de machismo ou discriminação sexual, por exaltar a figura de uma
mulher. Somente quando se analisa a dimensão da raça é que se percebe o papel
subalterno designado à Tia Nastácia, mascarado pela subserviência voluntária e pela
aceitação amorosa dos comentários jocosos e discriminatórios que lhes são dirigidos.
Sales Júnior (2006) chama de “complexo de tia Anastácia” a articulação de
certas caraterísticas da sociedade brasileira, tais como cordialidade, patrimonialismo e
clientelismo, através da qual a trabalhadora negra surge como pessoa “quase da família”,
em um processo de integração subordinada, que valida a presença da mulher negra, desde
que ela mantenha o “pacto de silêncio” que fundamenta essa relação.
Outra figura analisada por Collins é da matriarca, ou a mãe negra “má”,
agressiva, castradora, que não dá aos próprios filhos a atenção que devota aos filhos dos
patrões, o que acarreta sérios problemas na vida da criança, culminando com a possível
criminalidade. Por força desse estereótipo, as mães se tornam culpadas pelo resultado
“desastroso” da conduta dos filhos (COLLINS, 2019).
12
Sobre a depreciação da Tia Nastácia por outros personagens, veja-se: GOUVÊA, Maria Cristina Soares
de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005. Disponível em https://www.redalyc.org/pdf/298/29831106.pdf.
Acesso em 09 de abril de 2020.
62
A terceira imagem de controle é da mãe dependente do Estado, visão que
atualiza a imagem da negra escravizada que atuava como reprodutora. É a mãe passiva,
de elevada fecundidade, que depende da assistência social proporcionada pelo governo e
não transmite aos filhos uma ética do trabalho. Essa imagem ataca mulheres negras
justamente quando elas conseguem acesso a alguns benefícios sociais (COLLINS, 2019).
A autora examina também a imagem da “dama negra”, mulher negra que
ascende socialmente, mas cujo sucesso é atribuído à utilização de ações afirmativas,
“roubando” vagas pertencentes aos brancos (COLLINS, 2019).
A última imagem de controle é a de Jezebel, prostituta ou hooche. Segundo
Collins (2019), a função dessa imagem era justificar os ataques sexuais de homens
brancos às mulheres negras. Por serem portadoras de uma sexualidade insaciável, elas
instigavam os homens à prática do ato sexual.
A romantização do sadismo e da violência praticada contra essas mulheres
encontra-se firmada no imaginário do século XX, com ecos até os nossos dias. Veja-se o
poema “Essa negra fulô”, de Jorge de Lima (1893-1953), considerado um clássico da
poesia brasileira, tendo figurado na coletânea “Os cem melhores poemas brasileiros do
século”. Ele narra, de forma ritmada e romantizada, o momento no qual a “negra fulô”,
uma “negra bonitinha”, mucama, vai sofrer castigos corporais em razão da acusação de
furto de objetos da sinhá. No momento em que ela é despida para ser açoitada, o senhor
magicamente por ela se apaixona, e ao final o eu lírico a acusa de haver “roubado” o
referido senhor13 (LIMA, 2001). A excessiva sexualização do corpo da mulher negra e a
lembrança do passado escravocrata serviram à prática de assédio de patrões e de iniciação
sexual dos filhos destes com as trabalhadoras domésticas.
Sobre a perpetuação das imagens de controle, Collins (2019) afirma que o
modo como as trabalhadoras domésticas eram tratadas nos Estados Unidos refletia sua
objetificação, uma vez que eram compelidas a trabalhar como se fossem animais ou
“mulas do mundo”. A autora faz menção também a rituais de deferência, como chamá-
las de meninas para infantilizar e tratar como um ser humano menos capaz, o que pode
conduzir à invisibilização.
13
É interessante observar que esse poema foi “reescrito” na década de 1990, tendo como protagonista uma
outra Fulô (ou, quem sabe, a mesma, porém com atitude diversa). Nele, Fulô decide utilizar seu corpo,
único instrumento de que dispunha, para seduzir o senhor e então matá-lo, fugindo, em seguida, com um
homem negro com quem estava se relacionando. Por expressarem tão bem esse antagonismo, essa disputa
narrativas, ambos os poemas encontram-se no anexo da presente dissertação.
63
Gonzalez (2020) menciona que, no Brasil, as principais imagens da mulher
negra foram a da mulata, doméstica e mãe preta. A mulata concretiza, no carnaval, a
reencenação do mito da democracia racial, quando se transforma em rainha, devorada por
olhares e consagrada. Entretanto, a outra face do endeusamento, ela afirma, ocorre no
cotidiano dessa mesma mulher, nos outros dias de não-carnaval, quando ela se
“transfigura” na empregada doméstica, de modo que mulata e doméstica constituem
atribuições de um mesmo sujeito. E a doméstica representa, justamente, esse contrário,
esse oposto da exaltação.
Diversos registros da naturalização da posição subalterna das empregadas
domésticas podem ser encontrados na imprensa brasileira. Foi realizada uma pesquisa
nos arquivos digitalizados do jornal “O pasquim”, que circulou entre os anos de 1969 e
1991. O critério de busca foi o vocábulo “doméstica”. O referido jornal tornou-se famoso
pelo humor ácido e por suas críticas à ditadura, sendo considerado um veículo de
imprensa de contestação, afinado com movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo,
promovia muitas críticas ao feminismo, e a mais forte delas se devia à desconsideração
das empregadas domésticas. Todavia, de forma ambígua, ao mesmo tempo em que
denunciava as condições de vida e trabalho das domésticas, também reproduzia a visão
racista e colonialista sobre essas trabalhadoras. Serão transcritos, a seguir, trechos de
entrevistas com convidados que relatam a iniciação sexual por meio de trabalhadoras
domésticas. Em entrevista na edição de 1972, diz o entrevistado:
64
“O serrano. Começo da década de cinquenta. Tempos duros. Ou você encarava
namoro de aluguel, se virava numa doméstica gonorreica ou tinha que sair na
mão contigo mesmo”. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, O
Pasquim, 1981, edição 00651, p. 21)
A DOMÉSTICA
De Maluco e Penteado
65
menos sistematizada, menos frequente e menos conhecida nas comunidades
sociais industrializadas. (ALMEIDA, 1969, p. 63).
A autora do livro relata que uma pessoa de sua família estava escandalizada
com o exercício da “dupla função” de uma empregada doméstica, e ela tentava mostrar
que sempre foi assim, evocando "a tradição dos seios fartos e dos braços suntuosos da
mães pretas e as facilidades, o comodismo, a indulgência de respeitáveis famílias que
procuram iniciar sadiamente seus rebentos” (ALMEIDA, 1969, p. 64).
É possível notar, portanto, uma linha de continuidade entre a “dupla função”
desempenhada pela mulher escravizada e pela empregada doméstica, tida como um corpo
disponível para o sexo. Isso repercute no assédio sexual sofrido pela trabalhadora,:
instigado por esse imaginário e pela posição de maior subordinação, o assédio é mais
presente (DIAS, 2008; SILVA; BRASIL, 2020) e mais “direto”, com toques e
abordagens ríspidas14.
Grada Kilomba (2019) traz um exemplo do quão eloquente é o corpo da
mulher negra, ao narrar o que lhe aconteceu quando tinha entre 12 e 13 anos. Gripada,
ela foi ao médico, e, na saída, quando se dirigia à porta, esse médico a chamou de volta e
disse que ele, a esposa e seus dois filhos, de 18 e 21 anos, iriam viajar de férias, e então
perguntou se ela não poderia acompanhá-los, para cozinhar as refeições diárias, limpar a
casa e eventualmente lavar suas roupas.
Nesse cenário, a jovem menina não é vista como uma criança, mas sim como
uma servente. O homem transformou nossa relação médico/paciente em uma
relação senhor/servente: de paciente eu me tornei servente negra, assim como
ele passou de médico a um senhor branco simbólico, uma construção dupla,
ambas fora e dentro. Nessas construções binárias a dimensão do poder entre as
oposições é duplamente invertida. Não se trata apenas de “paciente negra,
médico branco”, ou “paciente mulher, médico homem”. Trata-se de uma
relação “paciente mulher negra, médico homem branco” – o duplo poder de
um em relação a outra (...). Parece que estamos presas/os em um dilema
teórico: é racismo ou sexismo?” (KILOMBA, 2019, p. 93 e 94).
14
Os acórdãos listados a seguir evidenciam essa abordagem brusca:
1) BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª região. RO 10326-2010-013-09-2. Relator: Marco
Antônio Vianna Mansur. Julgado em 06 de junho de 2012.
2) BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 1ª região. RO 01009589120175010471. Relator
Ângelo Galvão Zamorano. Julgado em 22 de maio de 2018.
66
E se a ênfase estava no gênero, então como a esposa, uma mulher como eu,
poderia me “possuir” como serva e não ser uma serva ela mesma? Se como
mulheres nós somos iguais, como ela poderia se tornar minha sinhá virtual e
eu a escrava figurativa? Quanto sua ausência teria um papel ativo na minha
servidão? E o que dizer sobre a filha, que é referida na proposta, como ela,
sendo mais velha, é protegida como uma criança, enquanto uma menina negra
muito mais jovem que ela é explorada como uma adulta? (KILOMBA, 2019.
p. 95).
67
O poema de Minka, transcrito na epígrafe deste tópico, traz uma referência
implícita ao “negro de alma branca”15, expressão que se refere ao negro bondoso e
subserviente. O Brasil, ele diz, rejeita o “negro de alma negra”, aquele que se reconhece
em sua negritude. O país nega “o negro que não se nega” porque insiste em considerar
que não há racismo, numa tradição conhecida até hoje como mito da democracia racial.
A colonização criou a raça. A raça impôs determinações ao corpo, mesmo
depois de abolida a colonização. As imagens de controle se impuseram ao corpo das
mulheres negras, e no âmbito coletivo o correspondente a essas imagens foi o mito da
democracia racial.
Para a persistência de um sistema estruturalmente racista como o brasileiro,
era vital que se obtivessem justificativas. Nascimento (2016) afirma que, por séculos, o
sistema escravista desfrutou da fama de ser “benigno”, de caráter humano. Eram
utilizados argumentos como a preexistência de escravidão na própria África, a
inferioridade natural dos africanos, supostamente sentida até por eles próprios, e a
influência da igreja católica, que “humanizava” as relações. Essa ideia de benignidade do
sistema teria sido um mito fundamental para a propagação de outro mito: o da democracia
racial (NASCIMENTO, 2016; SCHWARCZ, 2012).
O Brasil, no fim do século XIX, era apontado como país multiétnico,
colorido, paraíso da miscigenação. Aqui dentro, a miscigenação era encarada como um
caminho para o branqueamento, o que se revela pela análise de documentos e congressos
eugenistas que ocorreram no início do século. As teorias sobre a raça aportaram no país
entre os anos de 1870 e 1930, onde foram muito bem acolhidas. (SCHWARCZ, 1993).
Em 1911, foi realizado o I Congresso Internacional das Raças, e na ocasião o
Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, apresentou sua tese
que afirmava que os mestiços e os negros despareceriam do país quando viesse o novo
século, de modo que o Brasil seria “contemplado” com o advento do branqueamento.
(SCHWARCZ, 2012). Já em 1929, no I Congresso Brasileiro de Eugenia, o antropólogo
15
Há um campo de estudo sobre a identidade branca, ou simplesmente a branquitude, que no Brasil teve
seu início de forma mais sistemática por meio da tese de Maria Aparecida da Silva Bento: “Pactos narcísicos
no racismo: Branquitude e Poder nas Organizações empresariais e no Poder Público”, embora outros
autores tenham tratado do tema anteriormente, como Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento
(MUNANGA, 2017). Pode-se acrescentar, ainda, a própria Lélia Gonzalez. A branquitude pode ser
definida como um lugar social, o mais elevado da hierarquia racial, decorrente do pertencimento étnico
racial a uma categoria expressa pela brancura, mas não limitada ao fenótipo. A branquitude confere o poder
de classificar os outros e de ser beneficiário de privilégios raciais, tanto materiais quanto simbólicos
(CARDOSO e MULLER, 2017).
68
Roquette-Pinto afirmaria que o Brasil seria progressivamente um país mais branco. Ele
defendia a chamada “ciência do melhoramento racial”. (SCHWARCZ, 2012, p. 26).
Importante destacar que a Constituição de 1934 dispunha, em seu artigo 138,
alínea b, que competia à União, estados e municípios “estimular a educação eugênica”
(BRASIL, 1934).
Na década de 1930, “Casa Grande & Senzala” consolidava a imagem do país
como “paraíso racial”, propagando a ideia de uma escravidão “branda”. A Unesco, sob
a influência da obra de Gilberto Freyre, pretendia apresentar o Brasil como modelo de
democracia racial. Financiou, então, estudos sobre o tema na década de 1950. Os
resultados, todavia, não se coadunaram com as expectativas. Alguns autores, tendo como
expoente Florestan Fernandes, ao invés de confirmarem a ideia do paraíso racial,
mostraram que no país havia indicadores claros de racismo e discriminação, embora o
racismo fosse dissimulado. (FERNANDES, 2007; SCHWARCZ, 2012; MOURA, 2019).
Ainda assim, a ideia de democracia racial persistiu. Seu principal trunfo, no
dizer de Abdias Nascimento, é a mulata (NASCIMENTO, 2016). Nesse mesmo sentido,
Gonzalez (2020) afirma que o mito da democracia racial é reencenado com toda a força
no carnaval, na figura da mulata, endeusada ao longo da festa, mas que volta à sua
realidade subalterna, geralmente como empregada doméstica, tão logo cessa o carnaval.
Some-se a isso o suposto caráter “cordial”16 do brasileiro, e surge o cenário
de encobrimento, que leva, como mencionado por Florestan Fernandes, a que o brasileiro
tenha o “preconceito de não ter preconceito”(Fernandes, 2008, p. 155). No ano de 1988,
foi feita em São Paulo uma pesquisa, na qual se chegou ao resultado de que 97% dos
entrevistados disseram não ter preconceito, e 98% afirmaram conhecer pessoas que
tinham preconceito, o que significava que “ninguém nega que exista racismo no Brasil,
mas sua prática é sempre atribuída a outro” (SCHWARZ, 2012, p. 30 e 31).
A sociedade repelia a ideia de que o país fosse racista, enquanto todos os
indicadores econômicos e sociais mostravam a segregação das pessoas negras. Afirmar
que essa segregação existia não significa afirmar que nenhuma pessoa negra conseguisse
obter mobilidade social. É evidente e notório que havia casos de ascensão. E é justamente
16
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, são características do homem cordial: a hospitalidade; a
generosidade; o emprego do diminutivo para se aproximar de pessoas e objetos; a forma de convívio que
tem como base uma “ética de fundo emotivo”, além do “horror às distâncias”. A hospitalidade e a
generosidade não devem ser confundidas com indicativos de boas maneiras, sendo muito mais uma “forma
natural e viva” do desejo de estabelecer intimidade, (HOLANDA, 2019, p. 177, 178 e 180)
69
nesse movimento que se cria a representação do “negro de alma branca”, que poderia
circular entre a classe mais alta, desde que aceitasse as prescrições morais da classe
dominante (FERNANDES, 2007).
Atualmente, o mito da democracia racial permanece presente, apesar de todas
as estatísticas que mostram a predominância de pessoas negras, em especial mulheres,
em posições subalternas, denotando a existência de estruturas fortes, que impedem os
avanços. Lopes, J (2020) registra a tradução desse mito para o âmbito jurídico na ideia
de que não havia, no país, dispositivos legais racistas, o que não se coaduna com a análise
da legislação que desde o século XIX disciplinou o trabalho doméstico, em especial as
Posturas Municipais, que serão vistas no capítulo 3.
70
O padrão geral do mobiliário da maioria das dependências de empregados era
muito menos confortável. Com frequência, eram mobiliados com refugos e
calculados para não dar à criada nenhuma chance de sentir que poderia haver
motivo para comparação entre ela e sua patroa. (FORTY, 2007, p. 115).
Falo apenas das milhares de mulheres que trabalham num trabalho ainda
escravo, nas cozinhas de 2x2 de Copacabana, Botafogo (e bairros semelhantes
pelo Brasil afora) e, sustentadas por um salário indigno, vão dormir, depois de
12 a 14 horas de trabalho diário, num quarto-de-empregada em que só é
possível mesmo dormir em pé. (...) Exijam, dos jovens arquitetos (todos os
que conheço, em teoria são socializantes, mas, na prática, não sei de um que
se revele contra as grandes construtoras no tratamento desumano das serventias
de empregadas), que não aceitem construir quartos de empregadas com menos
de 3 x 3 (...).E é bom eu parar porque, é claro, o problema não cabe numa lauda
de papel. Mas cabe a afirmativa, que sempre repito: não respeito nenhum
movimento feminino que não cuide, em primeiro lugar, dessas desgraçadas
domésticas, até hoje ainda tratadas como caso de polícia. (FUNDAÇÃO
BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1973, edição 00197, p. 03).
Na edição 00169, do ano 1974, esse mesmo jornal traz uma série de pequenas
crônicas sob o título “O quarto de guardar crioula”:
71
banheiro social (dois), copa, cozinha, área de serviço, sobra um negocinho
mirrado, um quadradinho avaro: o quarto de empregada, um depósito de gente.
Mas empregada, ainda, por cima, tem necessidades, são umas ortodoxas do
metabolismo e precisam de banheiro. Desloca-se o tanque um pouco para lá.
Na planta é tão pequeno que não cabe o nome todo – banheiro de empregada,
nem mesmo ban. Emp – e vira WC, essa sofisticada e diabólica expressão.
Ambos, WC e depósito, constituem o binômio conhecido como dependência
de criados.
O WC
Para utilizar-se de tal compartimento, é necessário ler a bula que o recinto traz
afixado à entrada. Deve-se proceder assim: entra-se, sobe-se na privada
(existente no WC para fins metabólicos). Em seguida, a usuária abandona seu
posto sobre o vaso e atinge o chão. É importante prever a posição que se quer
ocupar, de acordo com as necessidades, antes de entrar no WC. Se é para ficar
de costas, deve-se entrar de costas; de lado, de lado; de frente, de frente. Se o
objetivo é banho, é fundamental esvaziar antes o recinto que, na esmagadora
maioria dos casos (100%), também, é um depósito de bacias, tabua de passar
roupa, desentupidor de pia, lata velha, enceradeira, barraca de praia, material
de limpeza, garrafas, jornais etc. O banho deve ser tomado com a usuária
agachada sobre a tampa do vaso, sendo o “Manual prático Zanine para usar o
Water closet”. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1974,
edição 00169, p. 06)
72
3.5 O corpo no trabalho: de “mulas do mundo” a androides
17
O episódio mencionado pode ser assistido na plataforma de vídeos Youtube. Disponível em <
https://www.youtube.com/watch?v=hnoEpUrucwE> Acessado em fevereiro de 2021.
73
sexualização da segunda androide, seja no aspecto de mammy atribuído a Rosey
(COUTO, 2015).
O desejo de libertação do trabalho doméstico acompanha o movimento
feminista, não havendo consenso sobre de que modo isso pode ser alcançado. Já o desejo
de libertação da dependência de trabalhadoras domésticas surgiu ainda no período
escravocrata, com o medo da transmissão de doenças e “más-influências”, medo este que
iria antecipar o pensamento eugenista brasileiro do século XX (RONCADOR, 2008).
Além disso, essa categoria paradoxalmente incômoda e necessária foi se tornando
“onerosa” à medida em que foi conquistando direitos mínimos. O desenho animado “The
Jetsons” traduz, então, esse desejo dos patrões através da materialização de um ser que
pode servir sem limitações de horário (e sem fazer jus a qualquer direito trabalhista), sem
vínculos familiares, sem memória, “e, portanto, sem corporeidade social que o faça
assomar como “um”, permanecendo um “outro” inoperante porque inofensivo, invisível
porque a-histórico” (COUTO, 2015, p. 175).
Os androides constituem uma aspiração distante dos lares brasileiros; é o
corpo humano que realiza boa parte dos serviços. Os próprios eletrodomésticos e/ou
eletroportáteis não são acessíveis a todas as famílias, embora seu consumo tenha crescido
muito nas últimas décadas (SILVA, 1988).
A tecnologia doméstica é classificada em três grupos: serviços de
infraestrutura, tais como eletricidade, coleta de lixo, água encanada; eletrodomésticos;
mercadorias, englobando produtos processados ou semiprocessados (SILVA, 1998). A
literatura sobre trabalho doméstico e uso de eletrodomésticos também é relativamente
escassa no Brasil.
O trabalho doméstico sofreu grandes modificações ao longo do tempo, mas
continua a exigir grande movimentação do corpo: varrer, esfregar, passar pano, cortar
alimentos, cozinhar, cuidar de pessoas. Matos (1994) analisa o cotidiano das
trabalhadoras em São Paulo, no período de 1890 a 1930, com rotinas rígidas que incluíam,
além da limpeza diária, tarefas como encerar pisos, vasculhar tetos, bater tapetes, passar
sapólio em metais, lavar cristais e globos de luz. A canalização da água e os fogões a gás
reduziram o trabalho, mas nesse período ocorreram surtos de epidemias18, surgindo novas
18
A pandemia de Covid 19, declarada em 2020, também trouxe diversas normas de higiene que acresceram
atividades às tarefas domésticas, tais como o uso intensivo do álcool e a limpeza minuciosa das compras,
antes de guardar. A presença das crianças em casa, com aulas remotas, também representou um acréscimo
de trabalho.
74
técnicas de higiene, que exigiam lavagem geral das casas e uso de produtos desinfetantes
mais agressivos. A cozinha também requeria muitas horas:
75
É possível inferir que a tecnologia tem tido papel conservador no Brasil. Silva
(2010) destaca que os eletrodomésticos, em domicílios de classe média, costumavam ser
utilizados nos finais de semana, quando a empregada estava ausente, ou então, mesmo
que a empregada pudesse utilizar, eram impostas diversas regras pela patroa.
“Por mais que se divulguem boatos alarmistas, que ondas de pessimismo soem
de quando em quando, nós, as donas de casa, estamos protegidas pelo
analfabetismo, pela pobreza, pela assistência social deficiente, pela lentidão do
progresso industrial. Se assim não fosse, estaríamos com as nossas vidas
arruinadas, a nossa segurança doméstica desmoronada” (ALMEIDA, 1969, p.
17).
76
doméstica, materializada na ausência de uma empregada. Este tópico irá analisar tais
diferenças, e um dos “atributos” das classe mais baixas: a invisibilidade.
Embora a noção de classe seja central na teoria marxista, nem Marx nem
Engels chegaram a fazer uma sistematização do seu conceito. A classe se forma como
uma decorrência de desigualdades e estratificações econômicas, sendo a luta de classes a
força motriz da história, atuando em prol do seu movimento dialético (BOTTOMORE,
2001).
As relações de classe se fundamentam na diferenciação, e a partir delas há
uma distribuição desigual de direitos e de poderes sobre os recursos da sociedade e os
seus produtos. Esse acesso diferenciado gera uma desigualdade no recebimento das
recompensas econômicas e sociais. A perspectiva de explicação da classe é relacional, ou
seja, uma classe opera sobre a outra, sendo que a base dessa relação é a exploração. O
pertencimento a uma classe delimita as oportunidades, as possibilidades de trabalho, de
consumo e, em última instância, de vida (SANTOS, 2008). Institutos de pesquisa
costumam estabelecer uma escala com base no uso de letras (classe A, classe B etc.),
delimitando a capacidade de consumo, o que pode ser considerado um reducionismo,
impedindo a compreensão da dinâmica relacional (MATTOS, 2019). Opta-se, nesta
dissertação, pelo uso da expressão “classe trabalhadora”, que revela uma dimensão mais
ampla.
As empregadas domésticas encontram-se em uma posição peculiar: o trabalho
por elas realizado ainda não é, em sua totalidade, considerado um verdadeiro trabalho; e
apesar dos esforços das associações e sindicatos, insiste-se em considerá-la pessoa
“quase” da família. Deste modo, elas são situadas no limbo do “quase”, não sendo
compreendidas como integrantes da classe trabalhadora, não lhes sendo reconhecidos, até
o momento, os mesmos direitos destinados aos demais trabalhadores, resultando em um
trabalho precário, isso quando não totalmente informal.
Santos (2008) realizou estudo de base estatística, utilizando dados da PNAD,
chegando à conclusão de que, entre os segmentos de classe considerados oprimidos, as
mulheres se concentram mais na categoria dos trabalhadores por conta própria precários
e dos empregados domésticos, o que indica a presença maciça e a força precarizante do
serviço doméstico.
O trabalho precário conduz à desigualdade social, e esta, por sua vez, resulta
em um déficit de cidadania e em invisibilidade pública. Cidadania é um conceito
complexo, mas sua presença costuma ser aferida por meio da observação da titularidade
77
e do exercício de direitos civis, políticos e sociais (CARVALHO, 2016). A invisibilidade
possui relação não com a presença ou ausência física, e sim com um sentido social. Um
dos exemplos é o dos nobres e senhores que ficavam despidos diante de seus escravos ou
serviçais, pois era como se eles de fato não estivessem ali. Essa forma ativa de
invisibilizar um indivíduo pode ser sintetizado na expressão “olhar através” (HONNETH,
2011). O olhar perpassa o outro, atravessa-o sem o reconhecer.
Trata-se de uma condição que, de modo geral, aplica-se a pessoas pobres,
sendo muito frequente nos serviços de limpeza em geral. A invisibilidade pública
encontra-se profundamente atrelada à ideia de humilhação social, uma “humilhação
crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais” (GONÇALVES FILHO,
1998). Isso implica a exclusão do espaço da intersubjetividade, da iniciativa e da palavra.
Gonçalves Filho define a humilhação como “uma modalidade de angústia disparada pelo
enigma da desigualdade de classes” (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 15)
Se esse autor trabalha sobretudo com a questão da classe, por força de sua
filiação teórica ao marxismo, não se pode esquecer que a interseccionalidade desvendou
que a opressão não possui somente uma via; se o pobre sofre com a humilhação social, o
homem pobre e negro a sofre de forma mais intensa, e a mulher negra pobre ainda mais,
estando ela na base da pirâmide social.
Gonçalves Filho (1998) trata ainda da falta de percepção desse sofrimento por
quem é beneficiário dos privilégios, que frequentam com desenvoltura ambientes
públicos nos quais a presença dessas pessoas pobres não conta, a menos que seja na
posição de subalternidade. Com base nesse aporte teórico, o que dizer das entradas e
elevadores de serviço que as empregadas domésticas utilizam? Trata-se de um
mecanismo de exclusão. Tais trabalhadoras não se deslocam carregando materiais nem
sob qualquer condição que justifique o uso do elevador de serviço ou de uma entrada
apartada. A própria dependência de empregada, situada na área de serviço das residências,
é um indicativo da sua ausência de permissão para circular no ambiente, a menos que
esteja em serviço.
Tratando da questão da invisibilidade, Fernando Braga dispõe:
78
A humilhação social apresenta-se como um fenômeno histórico, construído e
reconstruído ao longo de muitos séculos, e determinante do cotidiano dos
indivíduos das classes pobres. É expressão da desigualdade política, indicando
exclusão intersubjetiva de uma classe inteira de homens do âmbito público da
iniciativa e da palavra, do âmbito da ação fundadora e do diálogo, do governo
da cidade e do governo do trabalho. Constitui, assim, um problema político.
A exclusão política fabrica sintomas, infestando o afeto, o raciocínio, a ação e
o corpo do homem humilhado. Assume poder nefasto: ao mesmo tempo que
molda a subjetividade do indivíduo pobre, caracterizando-o muitas vezes como
um ser que não pode criar mas que deve repetir, esvazia-o das condições que
lhe possibilitariam transcender uma compreensão imediata e estática da
realidade. (BRAGA, 2012, p. 67-68)
79
4 EMPREGADAS DOMÉSTICAS: UMA CATEGORIA EM BUSCA DO
RECONHECIMENTO
No ano de 1973, o cantor Odair José, conhecido pelo estilo “brega”, ganhava
as paradas e emplacava a música “Deixe essa vergonha de lado”, através da qual
dialogava com uma empregada doméstica que procurava esconder dele a sua condição:
80
A premissa de que o serviço doméstico constitui um trabalho não reconhecido
possui seus fundamentos na teoria de Axel Honneth, que trata do reconhecimento como
um parâmetro normativo de justiça.
81
cultural da diferença que possam ser combinadas com a política social da igualdade”.
(FRASER, 2006, p. 231). O debate teórico resultou em um livro escrito por ambos, no
qual são discutidos os pressupostos teóricos do reconhecimento. Em resposta a Fraser,
Honneth afirma que considera muito problemática a restrição de “reconhecimento” às
demandas de minorias culturais, e que a resistência a uma determinada ordem social é
impulsionada pela experiência moral de não receber o que se considera o justo
reconhecimento. Para ele, a própria distinção entre redistribuição e reconhecimento não
se mostra útil, pois dá a impressão de que as demandas por redistribuição econômica
podem ser entendidas como desvinculadas da falta de respeito social (HONNETH, 2006).
A teoria de Honneth oferece um bom suporte para a compreensão do status
do serviço doméstico no Brasil. Rúrion Melo, estudioso da obra do autor, afirma que
uma das principais contribuições dessa teoria é a possibilidade de conduzir um projeto
emancipatório no qual a fundamentação crítico-normativa da teoria da sociedade esteja
ancorada no diagnóstico das relações sociais de dominação (MELO, 2013). Além disso,
é importante destacar que Honneth busca defender um conceito emancipatório de
trabalho, com um caráter mais humano, e advoga que o trabalho esteja, também, no centro
das reflexões críticas, porém desvinculado de uma mentalidade estritamente produtivista
(HONNETH, 2008).
Honneth trabalha com três formas de reconhecimento: o amor, o direito e a
solidariedade. Esse reconhecimento possui relação com uma expectativa recíproca de
comportamento e ação. O amor é analisado sob uma perspectiva psicanalítica, tendo por
base as relações primárias, as ligações emotivas fortes entre as pessoas, tais como as
desenvolvidas pais e filhos, entre um casal e entre amigos. Ele utiliza Winnicott como
um dos principais teóricos para dar base à fundamentação do amor como uma das esferas
do reconhecimento, que teria sua concretização através da dedicação emotiva, sobretudo
da figura materna. O amor, segundo Honneth, daria origem à autoconfiança do indivíduo.
A recusa do amor, que se configura sobretudo com os maus tratos e com os danos à
integridade física, impede que se configure essa primeira forma de reconhecimento
(HONNETH, 2009).
O reconhecimento em sua dimensão jurídica confere imputabilidade moral ao
indivíduo e a condição de membro de igual valor no âmbito de uma comunidade jurídica,
apto a participar da formação discursiva da vontade. Isso ocorre quando as pessoas se
veem diante da possibilidade de reivindicar certas pretensões, e quando podem contar
com a satisfação de tais pretensões de forma legítima (HONNETH, 2009). Reclamar
82
direitos permite que o indivíduo se expresse simbolicamente, e o caráter público dos
direitos possibilita que seu portador pratique uma ação que possa ser visualizada,
percebida pelos demais, e é isso que tornará possível a constituição do autorrespeito, que
seria essa condição de poder se referir a si mesmo de um modo positivo (HONNETH,
2009). O autorrespeito está para a relação jurídica assim como a autoconfiança está para
a relação amorosa.
Honneth cita Joel Feinberg, para quem ter direitos é o que nos capacita a nos
manter como pessoas, a possuir um autorrespeito mínimo, necessário para ser digno do
amor e da estima dos outros. Assim, a dignidade humana pode constituir justamente a
“capacidade reconhecível de afirmar pretensões” (HONNETH, 2009, p. 196).
83
objetivos comuns, chamada de solidariedade. Assim como o direito, a solidariedade é
aqui apresentada como situada no âmbito da vida pública. Um modo de concretizar o
reconhecimento pela via da solidariedade é dispensar estima social aos indivíduos, que
vai despertar neles o sentimento de autoestima.
O modo de reconhecimento da solidariedade, que é a estima social, direciona-
se às propriedades particulares que diferenciam as pessoas. À medida que os objetivos
éticos de uma sociedade se abrem a diversos valores, à medida que uma ordenação
hierárquica e estamental cede seu lugar a uma concorrência horizontal, tanto mais a
estima social irá criar relações simétricas. A estima social aparece, portanto, como a
possibilidade de considerar que seus valores, ou valores de seu grupo, são igualmente
significativos para a práxis comum, criando relações solidárias (HONNETH). Dejours
(2007, p. 34) estabelece um forte nexo entre reconhecimento e sofrimento, e ainda entre
reconhecimento e construção da identidade, identidade que constitui, nas palavras do
autor, “a armadura da saúde mental”.
Para melhor entendimento, a teoria pode ser organizada com base nos
seguintes pilares abaixo (Figura 1):
Amor
Direito
Solidariedade
(Fonte: Elaborada pela autora com base na interpretação dos conceitos de Honneth (2009))
84
econômicos terminam por pertencer, de forma constitutiva, a essa luta por
reconhecimento (HONNETH, 2009)
Finalmente, a recusa do reconhecimento e a experiência do desrespeito
constituem fontes emotivas e cognitivas para a ocorrência de resistência e de levantes
coletivos. A tese de Honneth procura evidenciar, assim, como diz o próprio título do livro,
a gramática moral dos conflitos sociais, que são conflitos que podem ser entendidos pelo
viés da busca da construção da identidade, da dignidade humana e da preservação da
integridade física (IASINIEWICZ, 2017).
A ausência de reconhecimento do serviço doméstico no Brasil será analisada
tanto sob a perspectiva do direito quanto da solidariedade, uma vez que as duas instâncias
se comunicam em um sistema de retroalimentação e mútua influência.
4.2. Como tudo começou: o trabalho doméstico escravizado como exemplo primário
de reconhecimento denegado
Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a
gente pretende caracterizar. A gente está falando das noções de consciência e
de memória. (GONZALEZ, 2020, p. 78)
85
dias presentes, por mais que seja repleto de descontinuidades, lutas, rupturas individuais
e desvios que nem sempre cabem na pesquisa.
No período colonial, possuir pessoas escravizadas era uma forma de ostentar
luxo e riqueza (LIMA, 2021; PRADO JÚNIOR, 2011). Os trabalhadores domésticos no
período escravocrata ocupavam funções bastante diversificadas. Tratava-se de outro
mundo: não havia instalações sanitárias, eletrodomésticos, e o trabalho era bem mais
pesado. Era necessário cortar lenha, alimentar o fogo, buscar água, lavar manualmente
uma grande quantidade de roupa, cuidar do bem-estar dos senhores (o que incluía o
transporte em liteiras, cadeirinhas, redes), amamentar e criar seus filhos, além de realizar
toda uma gama de atividades para manter a casa grande em funcionamento (LIMA, 2021).
Dentre tais tarefas, uma das mais degradantes era a do tigre:
Havia uma certa hierarquia entre os cativos. Lima (2021) registra que essa
hierarquia era determinada pelo grau e especialização das tarefas e pelo status de cada
ocupação, havendo também uma distribuição com base na cor da pele: quanto mais
retinta, mais recôndita ficava a pessoa escravizada.
86
constatou que havia uma divisão sexual do trabalho doméstico escravo, e embora
houvesse muitos homens na função, nela predominaram as mulheres. Além disso, os
homens terminaram tendo oportunidades melhores nesses ofícios, pois para eles exercer
a função de cozinheiro tornava mais fácil o engajamento em atividades comerciais
remuneradas após a abolição (LIMA, 2021)
87
É importante salientar que o período escravocrata durou muito tempo, e não
pode ser considerado de forma monolítica. Foram inúmeras as transformações ocorridas,
em especial no século XIX, de modo que existiram diversas formas de viver e de
trabalhar. Durante certo período predominou a visão da chamada “família patriarcal”, tão
bem descrita por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, na qual o patriarca ocupava
espaço central, de onde emanava o poder sobre a esposa, filhos, noras, genros,
escravizados e agregados. Todavia, conforme assentam estudos de historiadores, esse não
era o único modelo, pois existiram arranjos familiares os mais diversos (SBRAVATI,
2008; LIMA, 2021). Del Priore (2009) também registra que havia muitos maridos
ausentes, mulheres chefiando lares e crianças sendo criadas com a ajuda de outras
mulheres, fossem da família, fossem da vizinhança. A autora afirma que a situação das
mulheres de classe baixa era totalmente distinta da descrição desenhada por Freyre.
Ao longo do século XIX também existiam trabalhadores domésticos livres,
com sutis diferenças em relação às condições dos escravizados (RONCADOR, 2008).
Como regra, os contratos ficavam no domínio puramente do privado e da livre negociação
entre as partes, com todas as restrições que a palavra “livre” poderia ter, em se tratando
de negociação entre ricos senhores e trabalhadores pobres. Segundo Carvalho (2016), a
essa população livre faltavam condições para o exercício dos direitos civis, em especial
a educação. Eles dependiam dos grandes proprietários para morar, trabalhar e sobreviver.
Sbravati (2008 ) examinou alguns contratos de locação de serviços, e estes muitas vezes
se davam com ex-escravizados, que tomavam de empréstimo certa quantia dos senhores
para comprar a alforria, e se comprometiam a pagar o valor mediante a prestação de
serviços, sendo que em tais casos era comum a cláusula segundo a qual os locatários
deveriam servir aos locadores como se ainda fossem cativos. Marques (2020) registra
também a existência de um mercado de trabalho para imigrantes pobres vindas de
Portugal, de aldeias do Minho.
Os costumes dessa época geraram uma associação entre trabalho manual e
escravidão19. Gilberto Freyre mostra o surgimento do desprezo pelo trabalho manual
19
Essa mesma relação pode ser encontrada nas crônicas do Padre Carapuceiro (Frei Miguel do Sacramento
Lopes Gama), que circularam entre os anos de 1832 e 1847:
“Há sem dúvida entre nós senhores de engenho ativos e laboriosos, que dispõem a tempo e acertadamente
do seu serviço, que vão muitas vezes vê-lo e dirigi-lo etc. Mas quantos não há por aí verdadeiros vadios e
fiéis retratos de Sardanapalo? Estes deixarão aos feitores a disposição do trabalho, que raramente visitam,
e tudo esperam dos míseros escravos, em tanto que suas senhorias jazem ressupinos em uma rede,
engrossando a pança, e adelgaçando as pernas. (...) Eu conheço mulherzinha que na linguagem econômica
é só consumidora; porque come abundantemente, veste com luxo, e não se emprega no mais pequeno
88
numa curiosa passagem na qual narra a “amizade” dos senhores pelas suas redes, das
quais não se levantavam nem para dar ordens aos escravizados; andavam em redes,
viajavam em redes, sempre carregados, sempre servidos, o que ocorria, também, com
seus descendentes (FREYRE, 2006, p. 518).
Caio Prado Junior refere semelhante característica negativa associada ao
trabalho manual, legada pela escravidão colonial, e sua contrapartida: o estímulo dos
senhores para a ociosidade.
trabalho. Fica-lhe a quartinha a dez passos de distância, e se tem sede, há de chamar a pretinha para lhe
trazer água, porque a senhora está repimpada em um canapé e incomodar-se-ia se se ergresse. O sapato que
lhe caia do pé há de ser apanhado pela escrava etc. etc. (...) Aqui finalmente uma não pequena parte da
gente livre e da liberta entende que o trabalho só é próprio do escravo, e em consequência despreza-se tudo
que é serviço corporal”. (LOPES, 1996, p. 192, 193, 198 e 199)
89
transição do trabalho escravo para o trabalho livre operou-se de forma gradual, mantendo
estruturas de poder e de mando, e conservando condições de subalternidade. Nesse
sentido, é fundamental atentar para a historiografia mais recente, que aponta uma série de
avanços e recuos ao longo do século XIX, com suas múltiplas leis abolicionistas, todas
parciais, e com a concessão de alforrias, que iam tentando reduzir as tensões do
escravismo, ao mesmo tempo em que perpetuavam laços de dependência e dominação,
gerando vínculos de gratidão e dívida pessoal. Se assim foi com os ex-escravizados em
geral, com muito mais razão essa dominação foi mantida no âmbito doméstico. A
libertação gradativa se tornou, assim, um mecanismo que evitava lutas que pudessem
precipitar um fim brusco para a escravidão (LIMA, 2021)
Quando sobreveio a abolição total (em seu sentido formal), estabeleceu-se,
segundo Moura, (2019, p. 89), uma “ponte ideológica” entre a miscigenação (fato
biológico, facilmente aferível) e a democratização, esta um fato sociopolítico, que não
guarda qualquer tipo de afinidade necessária com a miscigenação. Essa ponte criava a
falsa ideia de democracia racial e de existência de boas possibilidades de mobilidade
social, quando na realidade a população negra foi relegada ao abandono e ao preconceito.
Nas palavras do autor, eles eram tidos como “indolentes, cachaceiros, não persistentes
no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o
modelo de perseverante, honesto...(...)”. (MOURA, 2019, p. 99). Paralelamente,
estabeleceu-se a política de imigração, gerando disputas por trabalho.
Idêntica constatação faz Fernandes (2007), ao afirmar que a miscigenação foi
considerada um índice de integração social e sintoma de fusão e igualdade, quando, na
realidade, todas as investigações antropológicas, sociológicas e históricas indicam que
ela só produz esse efeito quando ocorre em ambiente livre de estratificações sociais, o
que nem de longe foi o caso do Brasil, país no qual a antiga ordem escravista e o sistema
de dominação dos senhores converteram-se justamente em fatores de estratificação.
Assim, o pós abolição perpetuou a divisão racial do trabalho, permanecendo
os brancos com trabalhos qualificados, intelectuais, enquanto o subtrabalho, aquele
braçal, considerado sujo e muito mal remunerado sobrou para os negros livres, da mesma
forma que antes eram desempenhados por escravizados (MOURA, 2019, p. 103). Lélia
Gonzalez também trata da divisão racial do trabalho, através da qual o racismo denota a
sua eficácia estrutural:
90
mecanismos de recrutamento para a posições na estrutura de classes e no
sistema de estratificação social. Desnecessário dizer que a população negra,
em termos de capitalismo monopolista, é que vai constituir, em sua grande
maioria, a massa marginal crescente. Em termos de capitalismo industrial
competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico), ela se configura como
exército industrial de reserva. (GONZALEZ, 2020, p. 35)
91
A escravidão e a liberdade tiveram significados distintos para o homem e para
mulher escravizados. A descrição dos futuros papéis a serem exercidos pelas mulheres
outrora escravizadas era restrita a poucas possibilidades, e uma delas era a de
trabalhadoras domésticas nos domicílios de outras pessoas. (COWLING, 2018).
Apesar da manutenção da dominação colonial, as trabalhadoras domésticas
não se conformaram às tentativas de impor um regime senhorial. Muitas estratégias de
resistência foram utilizadas. Ainda no período escravocrata, essas estratégias iam desde
a dissimulação, a lentidão na realização das tarefas, o uso de ervas para preparar “poções”
e temperos prejudiciais, até a fuga. Entre as libertas, era comum a alta rotatividade nos
trabalhos, com o abandono das casas nas quais sofriam maus tratos, a realização do
trabalho de modo lento e irregular e os furtos. (LIMA, 2021; TELLES, 2013).
Se antes ter vários escravizados domésticos era símbolo de status, no período
pós abolição operou-se uma inversão dessa lógica, com o doméstico sendo apontado
como símbolo de contaminação e ameaça à saúde da família, tanto física quanto moral
(RONCADOR, 2008)
O fim da escravidão intensificou o medo que as elites tinham dos
escravizados:
92
escravidão. Houve, ao contrário, seu apagamento, por meio da incineração de documentos
efetuada em 1899 por determinação do Ministro das Finanças, Rui Barbosa
(NASCIMENTO, 2016; LOPES, 2020).
Diante desse contexto, nada mais propício do que a fala de Gonzalez, que
iniciou este tópico: é preciso falar de consciência e memória, que constituem uma chave
para a compreensão de problemas estruturais e persistentes.
20
Essa lei não era, ainda, numerada, e oficialmente é chamada apenas “Lei de 13 de setembro de 1830”.
93
para o prestador de serviço que não cumprisse sua obrigação, podendo permanecer preso
até indenizar o contratante:
Art. 4º Fóra do caso do artigo precedente, o Juiz de Paz constrangerá ao
prestador dos serviços a cumprir o seu dever, castingando-o correccionalmente
com prisão, e depois de tres correcções inefficazes, o condemnará a trabalhar
em prisão até indemnizar a outra parte.
Art. 5º O prestador de serviços, que evadindo-se ao cumprimento do
contracto, se ausentar do lugar, será a elle reconduzido preso por deprecada do
Juiz de Paz, provando-se na presença deste o contracto, e a
infracção. (BRASIL, 1830).
21
Segundo Salles (2018, p. 126), os ingênuos eram as pessoas nascidas livres mas que, “por força da lei,
poderiam permanecer sob tutela de seus senhores até os 21 anos, se estes assim o desejassem, como ocorreu
em 95% dos casos”.
94
escravocrata, como a proibição do tráfico em 1850 e a lei do ventre livre. Havia uma
preocupação com uma transição “prudente”.
Essa regulamentação do trabalho livre iria dar origem, de forma mais visível
no século XX, a uma classe trabalhadora. Se essa regulação legal foi marcada pela
tentativa de manter estruturas de dominação, o caso do serviço doméstico é ainda mais
emblemático, pois eles se viram excluídos, ao longo de muito tempo, de direitos
concedidos à classe trabalhadora, estando alijados, na verdade, da própria integração a
essa categoria, sendo tratados na vida social e no mundo jurídico como uma classe
“especial”.
O serviço doméstico era regido por normas municipais, as chamadas Posturas
Municipais. Já no período pré-abolição, diversos municípios expediram regulamentos de
trabalho doméstico para o trabalhador livre, tornando os contratos mediados pela
secretaria de polícia, prevendo condutas para patrões e empregados, e punições como
multas para empregadores e prisão para trabalhadores. Mas um óbice a essa
regulamentação era a violação da privacidade no âmbito doméstico e da autoridade
pessoal dos patrões (TELLES, 2013).
No pós abolição, as posturas municipais tinham como base os relatórios do
Ministro da justiça, cujo objetivo maior era assegurar a ordem no ambiente das famílias
e coibir a vadiagem. Assim, as empregadas domésticas, comumente chamadas de “criadas
de servir”, eram submetidas a regras rígidas, e a um controle que era realizado por meio
da polícia (RODRIGUES, 2020). Os contratos de trabalho eram assentados perante o
delegado, em livros de inscrição de empregados e livros de certificados (TELLES, 2013).
Os “criados” possuíam uma caderneta na qual constavam registros de sua conduta moral,
trajetória de vida e de trabalho, bem como o motivo de eventuais dispensas. Havia, ainda,
um livro de inscrição do criado e um livro de registro. Existiam criadas que não recebiam
salário, apesar de isso haver sido estipulado na lei, trocando seus serviços apenas por
alimentação e moradia (COSTA, 2013). Em muitos códigos de postura, a trabalhadora
estava sujeita à demissão se ficasse doente ou se saísse à noite sem autorização, sendo
nítida, então, a intenção de controle (LOPES, J. 2020).
A domesticidade e o paternalismo também figuravam como elementos de
controle, e era no serviço doméstico que os senhores conseguiam manter mais forte a sua
ideologia, tanto que o trabalho doméstico prosseguiu sendo regido por uma lógica
escravista, mesmo quando livre. As leis da época já impunham uma série de restrições
sobre os trabalhadores, e os domésticos se submetiam a condições ainda piores, de modo
95
a se poder afirmar que o escravismo foi o paradigma que norteou o serviço doméstico,
mesmo quando livre (LIMA, 2021)
Entretanto, assim como as pessoas escravizadas construíam seus mecanismos
de resistência, também as trabalhadoras livres buscavam se opor aos abusos. Em 09 de
fevereiro de 1890 foi realizado um comício de criadas e criados do Rio de Janeiro,
mobilizando-se contra as leis que regulamentavam os serviços de criados e amas de leite.
Tal mobilização teve como gatilho um edital publicado, exigindo a presença de todos eles
à delegacia de polícia, portando suas cadernetas, sob pena de serem considerados
vagabundos e punidos na forma da lei (COSTA, 2013).
Telles (2013) afirma que esse controle sobre as empregadas domésticas,
apesar de tudo, não foi sistemático nem duradouro, e que elas conseguiam opor
resistências diversas, por meio de mobilidade, ócio e furtos. A autora registra que o jornal
“O comércio de São Paulo”, em abril de 1903, trazia a lume a preocupação com a
identificação dos criados e com as cadernetas, para facilitar a prisão em caso de fuga ou
furto. Em 1914, outro jornal sugeria a aprovação de regulamento dos empregados
domésticos, sobretudo em razão da dificuldade dos patrões para controlá-los e para fazer
frente a questões como o furto.
Havia muita alternância entre um trabalho e outro, uma casa e outra, e em São
Paulo, apesar de haver previsão de “justa causa” nas posturas municipais, dificilmente
essas causas eram mencionadas nas cadernetas, pois a recusa dessas trabalhadoras em
permanecer era, em grande parte, decorrência das tentativas de impor disciplina
semelhante à da escravidão. (TELLES, 2013)
Finalmente, com a edição do Código Civil de 1916, a prestação de serviço
doméstico ficou sob sua tutela, capítulo IV, seção II, que dispunha sobre a locação de
serviços. Nos termos do citado código, artigo 1216, “Toda a espécie de serviço ou
trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição.”
(BRASIL, 1916).
96
A retribuição, que ainda não se chamava “salário”, seria objeto de acordo
entre as partes; não havendo acordo, seria fixada por arbitramento, em conformidade com
o costume local, o tempo e a qualidade do serviço, sendo paga depois de terminado o
serviço, salvo existência de alguma convenção em contrário (artigos 1212 e 1219). Havia
prazo limite de quatro anos para o contrato, podendo, porém, ser rescindido mediante
aviso prévio (BRASIL, 1916).
Ao mesmo tempo em que era altamente desvalorizado, o trabalho doméstico
surgia como fonte de renda de muitas brasileiras. Em conformidade com recenseamento
realizado em 1920, na cidade de São Paulo, os brasileiros ocupavam predominantemente
os setores de serviços, sobretudo atividades de correios, telégrafos e telefones, força
pública, administração pública, profissões liberais e serviços domésticos. Havia cerca de
10 mil trabalhadoras nessa função (domésticas), o que fornecia uma ideia tanto da má
distribuição de renda quanto da quantidade de pessoas “excedentes”, visto que o trabalho
doméstico costuma ser tido como uma ocupação residual. (BARBOSA, 2008).
Fausto (1984) afirma que era mais comum acharem-se as empregadas
domésticas em processos criminais do que em processos cíveis. Ele relata que, entre 1880
e 1924, classificando-se as vítimas de crimes sexuais, 41% eram empregadas domésticas
e 19,5% eram mulheres em “serviços domésticos”, que corresponderiam a lavadeiras,
passadeiras, faxineiras e costureiras que não residiam na casa dos patrões. O autor salienta
que, embora as mulheres pobres fossem vítimas mais frequentes desse tipo de crime,
havia ainda uma relação explicativa especial: o abusador quase sempre era patrão ou filho
do patrão. Na maioria dos casos, a defesa se focava na desqualificação da empregada, em
contraste com o perfil “sério e promissor” do acusado. A sociedade considerava normais
as “brincadeiras” dos jovens com as empregadas, e quando se chegava a um processo, a
finalidade maior era proteger os rapazes. Quando o acusado era o patrão, as mulheres
geralmente acobertavam. Os demais empregados se esquivavam, quando não defendia
abertamente o patrão e seus familiares
Era frequente, também, a prisão de lavadeiras, a maioria ex-escravizadas,
acusadas de vagabundagem (TELLES, 2013). Nos anos de 1912, 1915, 1917 e 1920, as
empregadas domésticas perfaziam a incrível porcentagem de 80% das mulheres presas
no decorrer de um mês (SOUZA, 2013) .
Não há uma base de dados unificada para se realizar pesquisa jurisprudencial
em relação a esse período, a fim de aferir a posição do judiciário em relação ao serviço
doméstico e a eventuais demandas judiciais de tais trabalhadoras. Seu acesso à justiça,
97
suas postulações nesses primeiros anos do século XX, tudo isso parecem ser questões
ainda pouco exploradas. Merece destaque, todavia, um acórdão localizado por meio de
pesquisa na hemeroteca digital, nos arquivos do jornal do Commercio do Rio de janeiro,
no qual é reconhecida a prestação de serviços domésticos em detrimento da alegação de
concubinato22. Mais ainda: o acórdão dispõe que todo trabalho lícito, como a da criada,
presume-se remunerado:
22
Uma cópia do documento consta em anexo da presente pesquisa, gentilmente cedida por email enviado
ao Centro de Pesquisa Histórica, mediante pagamento de valor módico.
98
Embora o acórdão sedimente o “lugar” da mulher casada, ele possui diversos
elementos que o destacam como um pronunciamento judicial à frente do seu tempo, pois
reconhece, em primeiro lugar, a diferença entre trabalho e “amor’, nos moldes postulados
por autoras feministas contemporâneas como Silvia Federici, e afirma que esse trabalho
presume-se remunerado, ou seja, na visão da corte, já existe um pré-consenso no sentido
de que há um significado econômico-financeiro embutido no serviço doméstico23.
Até o ano de 1923, o serviço doméstico continuou sendo regulado pelo
Código Civil. Em 06 de janeiro de 1923, a lei 4.632 instituiu a carteira de identidade para
os domésticos. Nesse mesmo ano, foi aprovado o Decreto nº 16.107, de 30 de Julho de
1923, que regulamentava a locação dos serviços domésticos, definindo como domésticos:
23
Muitos julgados atuais deixam de reconhecer a relação de trabalho quando há uma relação familiar.
Existem vários acórdãos que deixam de reconhecer até mesmo o vínculo da esposa do caseiro com o dono
da propriedade, mesmo que ela trabalhe em benefício daquele. Por trás da argumentação, percebe-se a ideia
de que esse trabalho é desempenhado por uma espécie de “senso de colaboração”, ou ainda como se a
mulher fosse mera extensão do marido. Nesse sentido, o acórdão: EMENTA: RELAÇÃO DE EMPREGO.
MULHER DE CASEIRO. INEXISTÊNCIA. É bastante comum a esposa auxiliar o marido nas tarefas
diárias ou, esporadicamente, em afazeres domésticos, tanto de seu lar como da casa-sede da Fazenda.
Pode-se até dizer que é um costume e que a esposa, muitas vezes, o faz por sua própria liberalidade. Para
que reste configurado o vínculo empregatício em situação tão peculiar, faz-se necessária produção de
prova robusta que demonstre a presença simultânea dos requisitos principais (art. 3º da CLT). Recurso
desprovido. (TRT18, RO - 0010085-94.2015.5.18.0001, Rel. GERALDO RODRIGUES DO
NASCIMENTO, 1ª TURMA, 04/12/2015)
99
a ruptura do contrato por ambas as partes, e possibilitava a ruptura, mesmo sem causa,
mediante a concessão de aviso prévio (BRASIL, 1923).
É importante destacar que, a essa altura, já se constituía no Brasil um
movimento feminista atuante, que chegou a pautar, sem sucesso, a inclusão das
domésticas na lista de beneficiárias de certos direitos buscados para as “operárias”. Com
o advento da era Vargas, notou-se grande evolução nos direitos trabalhistas em geral, com
regulamentação de férias, reconhecimento de normas coletivas, limitação de jornada, e a
própria instalação de juntas de conciliação e julgamento, que dariam origem à justiça do
trabalho, que obteve pleno funcionamento no ano de 1943. Mas, no que diz respeito às
domésticas, mais uma vez elas foram tidas como alheias à classe trabalhadora.
MARQUES (2020) recupera um pouco dessa história, examinando o debate em torno da
regulamentação do serviço doméstico no âmbito do primeiro governo de Getúlio Vargas.
Para ela, a exclusão de tais trabalhadoras da proteção legal foi uma escolha política,
construída por vários atores, como, evidentemente, os parlamentares, mas também setores
da igreja católica e o próprio movimento feminista, por meio da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPV), que terminou recuando das posições defendidas no começo
da década de 1930.
Em março de 1931, foi editado o Decreto 19.770, que regulou a sindicalização
das classes operárias e patronais, fazendo constar, em seu artigo 11, a exclusão de quem
prestava serviços domésticos (BRASIL, 1931). Essa exclusão do direito à sindicalização
perdurou por longo tempo.
Em março de 1932, o decreto nº 21.175, instituiu a Carteira de Trabalho para
empregados do comércio e da indústria, tacitamente excluindo trabalhadores domésticos.
Em maio desse mesmo ano, surgiu o Decreto-lei 21.417, regulando “condições do
trabalho das mulheres nos estabelecimentos industriais e comerciais”, sem qualquer
referência às trabalhadoras domésticas (BRASIL, 1932; MARQUES, 2020).
Finalmente, em 1933, Bertha Lutz, feminista atuante no país, incluiu as
domésticas em seu discurso eleitoral, afirmando que o direito de trabalho igual para
salário igual deveria se estender a todas as trabalhadoras. Todavia, na Constituinte de
1934, direitos como o afastamento após o parto alcançavam apenas a operária. O
deputado João Beraldo, próximo a Bertha, questionou a não extensão de tal direito às
100
domésticas, sendo aparentemente24 o autor da emenda que estendia esse benefício a essas
trabalhadoras (BRASIL, 1934; MARQUES, 2020).
Com a Constituição de 1934, foi consagrada a competência da União para
regulamentar as relações de trabalho e foram instituídos muitos direitos sociais. Todavia,
se a Constituição não se referia expressamente à exclusão das domésticas quanto a tais
direitos, a legislação ordinária já o fazia. Da mesma forma, a legislação previdenciária
deixava de fora os trabalhadoras domésticas, que além disso, não eram sindicalizadas, o
que, para Carvalho (2016), era decorrência de uma concepção de política social como
privilégio, e não como direito, pois, se direito fosse, deveria beneficiar a todos.
Em 1936, a lei n. 185 instituía um salário-mínimo sem excluir expressamente
os trabalhadoras domésticos, o que gerou repercussão na imprensa, onde reverberou a
preocupação com o orçamento das famílias (BRASIL, 1936; MARQUES, 2021)
Em fevereiro de 1941, foi editado o Decreto-lei 3.078, de âmbito nacional,
que assegurava a carteira de trabalho ao doméstico e o definia como aquele que, mediante
remuneração, prestava serviço em residências particulares ou em benefício destas. O
contrato deveria ser anotado na carteira, e o Ministério do Trabalho deveria promover os
estudos necessários para a inclusão de tais trabalhadores na previdência. O decreto previa,
ainda no artigo 7º, “a”, que era dever do empregado “prestar obediência” e respeito ao
empregador, além de zelar pelos interesses dele (alínea e). Os serviços de identificação e
de expedição de carteiras profissionais permaneciam a cargo das polícias, nos termos do
artigo 11 (BRASIL, 1941).
Em 1943, desponta a Consolidação das leis do Trabalho, um marco na
história dos direitos sociais no Brasil, e dessa consolidação as empregadas domésticas são
excluídas expressamente, por força do artigo 7, “a” (BRASIL, 1943).
Marques (2021) registra que, a essa altura, as feministas da Federação
Brasileira para o Progresso feminino haviam recuado completamente de sua posição
crítica, chegando ao ponto de a feminista Maria Luiza Bitetencourt afirmar que, para
regular contratos domésticos, os costumes seriam suficientes.
Em 1949, adveio a lei 605, que disciplinava o repouso semanal remunerado,
e dele as trabalhadoras domésticas também foram excluídas expressamente, por força do
artigo 5º, inciso a, revogado apenas por meio da lei 11324/2006. (BRASIL, 1949).
24
Marques atribui a autoria da emenda ao deputado pelo fato de ter sido ele o primeiro signatário.
(MARQUES, 2020, pág. 192).
101
Safiotti (1978) registra que, até 1956, os locadores de serviços que
trabalhavam em condomínios sofriam com idêntica privação de direitos, por serem
considerados domésticos, todavia, a lei 2.757/56 passou a distinguir esses trabalhadores,
que foram incorporados à CLT.
Em 1960, os empregados domésticos passaram a ser considerados segurados
facultativos da previdência social, nos termos do artigo 161 da lei 3.807/60 (BRASIL,
1960)
Em 1963 surgiu o projeto de lei 181/63, de autoria do senador Vasconcelos
Torres, que pretendia estender aos domésticos os benefícios previstos na CLT. Por meio
do parecer 843/68 o relator, Sr. Bezerra Neto, opinou pela rejeição. Na justificativa,
alegou que a reparação das injustiças já vem sendo feita ao longo do tempo, por meio da
inclusão desses trabalhadores em regimes de previdência e por força da proteção quanto
a acidentes de trabalho. Argumentou que eles foram excluídos da CLT em razão de não
poderem as famílias arcar com os custos decorrentes de um contrato celetista (SENADO,
1968).
Nesse mesmo ano, novo projeto de lei dispôs sobre a criação do instituto da
empregada doméstica, com a finalidade de educá-la e distribuí-la em agências de
emprego. Para educar, seriam criadas escolas de aprendizagem. Havia previsão de
pagamento de uma taxa pelas empregadas que fossem alocadas em trabalhos, e os patrões
teriam a obrigação de lhes fornecer “tratamento humano”, além de pagar férias e conceder
licença remunerada para tratamento de saúde por até 15 dias. O projeto foi assinado por
Adalgisa Neri, parlamentar integrante dos quadros do PSB (Partido Socialista Brasileiro),
e conhecida por sua atividade como escritora e poeta. (CPDOC, 1968)
Ainda, surgiu o projeto Franco Montoro (836/63) para criar uma fundação de
previdência e assistência para cuidar da proteção a essas trabalhadoras. Para analisar tal
projeto, constituiu-se uma comissão de empregadas, donas de casa e assistentes sociais.
Nas discussões, foi feito o registro de que o empregado doméstico “encontra-se
praticamente à margem de qualquer proteção social, em situação de verdadeiro abandono.
Suas relações de trabalho guiam-se, antes pelos usos e costumes, do que pelas leis”
(CPDOC, 1963).
Importante registrar que, na ocasião, a Casa das Domésticas enviou ao
deputado uma pesquisa feita sob patrocínio da casa e da escola de serviço social da
Universidade Católica de Minas Gerais, que aferia, dentre outras coisas, o quanto as
trabalhadoras sentiam-se valorizadas e úteis para a sociedade. Os resultados foram os
102
seguintes: 85% das domésticas se acham úteis à sociedade; 51% gostam da profissão;
54% se sentem diminuídas nela; 33% acham que a sociedade lhes dá valor; 5% desejam
deixar a profissão; 18% estão satisfeitas com o salário que recebem atualmente; 98%
estão dispostas a lutar para reivindicar seus direitos. No tocante aos empregadores, foi
noticiado que 75% das famílias “ricas”, 95% das de classe média e 54% das de classe
média “inferior” eram favoráveis à proteção previdenciária para domésticas (CPDOC,
1963). Esse documento constitui um registro importante da atuação das empregadas
domésticas na luta por direitos.
Nesse mesmo ano de 1963, a associação das empregadas domésticas de São
Paulo enviou para apreciação parlamentar, especificamente para a câmara dos deputados,
um projeto de lei disciplinando o trabalho doméstico e outro buscando estender-lhes o
FGTS. A jornada é limitada a dez horas diárias, com duas horas de intervalo intrajornada
e com 10 horas de intervalo interjornada. O projeto assegura, também, descanso semanal
remunerado de 24 horas ininterruptas, devendo recair em domingo ao menos uma vez por
mês. Prevê férias remuneradas de 20 dias úteis e 13º salário, chamado de gratificação
anual. Ainda: licença de quatro semanas à gestante, com indenização de um salário caso
ela seja demitida em razão do estado gravídico, possibilidade de formação de associações
profissionais, inclusão como segurados obrigatórios da previdência, com instituição de
seguro obrigatório para os casos de acidentes de trabalho e moléstias profissionais. Na
fundamentação, a associação expõe as dificuldades encontradas pela categoria, incluindo
a falta de limitação do horário, o trabalho sem descanso e sem a possibilidade de se voltar
para outras atividades “que o tornem plenamente humano”. Nesse mesmo documento é
ressaltada a dificuldade do doméstico de obter provas para serem utilizadas na Justiça do
Trabalho ( CPDOC, 1963).
Parecer da Comissão de Constituição e Justiça examinou conjuntamente os
projetos 237/63, 1.477/63, 2.573/65 e 836/63, todos tratando da situação dos empregados
domésticos, separando-os em dois blocos: regulamentação da profissão e extensão da
cobertura previdenciária. Decidiu-se examinar somente o da cobertura previdenciária,
pois havia promessa do executivo de remeter um projeto disciplinando a profissão. E
assim se passaram longos anos sem que o legislativo atendesse aos apelos da categoria
(CPDOC. Parecer, 1963).
Em 1964, foi enviado ao Ministério da justiça um anteprojeto do Código do
Trabalho, que mencionava os empregados domésticos em 16 artigos, mas que
regulamentava a profissão em termos vagos no tocante a horário e concedia férias
103
reduzidas, de no máximo 15 dias consecutivos, além de simplificar bastante os motivos
para rescisão (SAFIOTTI, 1978).
Em 1972, adveio a lei 5.859/72, definindo o trabalhador doméstico como
aquele que prestava serviços de natureza contínua e finalidade não lucrativa a pessoa ou
família, no âmbito residencial destas. A lei trazia direito a férias remuneradas de 20 dias
úteis, ao invés dos 30 dias corridos usuais, e excluía diversos direitos, tais como o FGTS.
Tornou o empregado doméstico segurado obrigatório da previdência (BRASIL, 1972).
Essa primeira lei, mesmo negando vários direitos, suscitou reações negativas
por considerar que se estava concedendo “demais” a essas trabalhadoras. Juristas se
dividiam e demonstravam ceticismo quanto à definição de empregada doméstica.
Discursos anunciando um futuro catastrófico para as trabalhadoras domésticas eram
publicados em alguns jornais, prognosticando redução drástica de postos de trabalho e
aumento de prostituição. Empregadores também reagiam, demonstrando que as
domésticas já auferiam diversos benefícios extras, como moradia e alimentação. Por outro
lado, tais empregadas tinham, já, as suas associações constituídas, as quais professavam
um discurso de inclusão plena das domésticas como efetivas trabalhadoras. Mas a não
inclusão de tais trabalhadoras na CLT era defendida pelo próprio Ministro do Trabalho,
que afirmava que o país não estava preparado para tanto (KOFES, 2011).
104
ordem social, presidida pelo deputado Edme Tavares, do Partido da Frente Liberal-PB25
(LACERDA et all, 2018; PILLATI, 2019). O anteprojeto, no tópico sobre direitos dos
trabalhadores, dizia respeito a todas as categorias, incluindo as domésticas. Na ocasião, a
representante dessas trabalhadoras, Lenira de Carvalho, entregou à assembleia um
documento – Carta das Trabalhadoras Domésticas aos Parlamentares constituintes -
diretamente a Ulysses Guimarães, presidente da assembleia constituinte. Ela proferiu um
discurso no qual são perceptíveis os anseios de reconhecimento, nos termos dispostos por
Honneth:
É por isso que vimos, hoje, cobrar, como todos os trabalhadores estão
cobrando, porque nós, domésticas, também votamos. Trabalhamos e fazemos
parte deste País, muito embora não queiram reconhecer o nosso trabalho,
porque não rendemos e não produzimos. Mas, estamos conscientes de que
produzimos e produzimos muito. E achamos que, numa hora em que há uma
Constituinte, uma nova Constituição para fazer, acreditamos, temos a
esperança de que vamos fazer parte dessa Constituição. Não acreditamos que
façam uma nova Constituição sem que seja reconhecido o direito de 3 milhões
de trabalhadores deste País. Se isso acontecer, achamos que, no Brasil, não há
nada de democracia, porque deixam milhares de mulheres no esquecimento
(LACERDA et all, 2018, p. 95 e 98)
Exmos.Srs.
Deputados Federais e Senadores Constituintes
(...) Somos a categoria mais numerosa de mulheres que trabalham neste país,
cerca de 1⁄4 (um quarto) da mão-de-obra feminina, segundo os dados do V
Congresso Nacional de Empregadas Domésticas, de janeiro de 1985. Fala-se
muito que os trabalhadores não produzem lucro, como se lucro fosse algo que
se expressasse, apenas e tão somente, em forma monetária.
Nós produzimos saúde, limpeza, boa alimentação e segurança para milhões de
pessoas. Nós, sem termos acesso à instrução e cultura, em muitos casos,
garantimos a educação dos filhos dos patrões. Queremos ser reconhecidos
como categoria profissional de trabalhadores domésticos e termos direitos de
sindicalização, com autonomia sindical. Reivindicamos o salário-mínimo real,
jornada de 40 (quarenta) horas semanais, descanso semanal remunerado, 13o
salário, estabilidade após 10 (dez) anos no emprego ou FGTS (Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço) e demais direitos trabalhistas consolidados.
Extensão, de forma plena, aos trabalhadores domésticos, dos direitos
previdenciários consolidados. Proibição da exploração do trabalho do menor
25
Atualmente, o partido se denomina Democratas
105
com pretexto de criação e educação. Que o menor seja respeitado em sua
integridade física, moral e mental. Entendemos que toda pessoa que exerce
trabalho remunerado e vive desse trabalho é trabalhador e consequentemente,
está submetido às leis trabalhistas e previdenciárias consolidadas.
Como cidadãs e cidadãos que somos, uma vez que exercemos o direito de
cidadania, através do voto direto, queremos nossos direitos assegurados na
nova Constituição”
(RAMOS, 2018, p. 61).
“Como se fosse da família”, portanto, não parece ser exatamente uma escusa
às exigências que estavam sendo feitas pelas trabalhadoras domésticas, mas
uma espécie de álibi para se desresponsabilizar da condição de vulnerabilidade
generalizada a que elas estavam submetidas. Ao argumentar que fazem as
mencionadas concessões generosas àquelas que prestam serviço em suas casas,
tentam deslocar o debate para uma questão pessoal, desonerando a dimensão
de disputa de poder que a permeia.
(RAMOS, 2018, p. 75/76)
106
A Constituição, em 1988, estendeu às domésticas mais alguns direitos, porém
elas continuaram compondo uma categoria “especial”, excluída, por exemplo, das
determinações atinentes à jornada. De 34 diretos assegurados à classe trabalhadora,
somente nove foram estendidos, também, às domésticas (BRASIL, 1988).
Após a Constituição, a lei dos domésticos sofreu algumas alterações ao longo
dos anos, tornando facultativa a inclusão da trabalhadora no FGTS (e consequentemente
também o acesso ao seguro-desemprego) e concedendo estabilidade provisória à
empregada gestante.
Em 1991, a categoria foi incluída na Lei n° 8.212/91, sendo-lhes assegurados
diversos benefícios previdenciários.
Por fim, através da Emenda Constitucional 72/2013 foram estendidos outros
direitos, como a limitação da jornada de trabalho, reconhecimento das convenções e
acordos coletivos, dentre muitos outros, mas ainda subsistiram algumas desigualdades,
não havendo previsão para pagamento de adicional de insalubridade, periculosidade e
penosidade, piso salarial proporcional à extensão e complexidade do trabalho, jornada
para turnos de revezamentos (que poderia ser aplicada a cuidadores) e proibição de
distinção quanto a trabalho manual, técnico e intelectual. A Emenda Constitucional teve
grande impacto midiático, sendo chamada, por alguns, de “nova abolição”. Por outro
lado, especulou-se que elevaria os custos para os empregadores e poderia redundar em
demissões e informalidade, sendo ressaltada, também, a dificuldade de fiscalização da
jornada (BRASIL, 1991; BRASIL, 2013).
Em 2015 foi publicada a lei complementar n. 150, de 01.06.2015, que
passou a ser o novo regulamento do serviço doméstico no país. Essa lei pôs fim à
controvérsia judicial da distinção entre empregada e diarista, firmando, de modo
pragmático (dir-se-á, também, aleatório) que só terá vínculo a empregada que trabalhar
na mesma residência por mais de dois dias na semana. Traz disposições sobre horas
extras, adicional noturno, e diversos outros direitos, regulamentando o que fora fixado
na Constituição.
Em fevereiro de 2018, o Brasil ratificou a Convenção 189 da OIT, sobre
trabalho doméstico, aprovada pelo decreto n. 172, de 2017, que dispõe, dentre outros
itens, sobre a proteção aos direitos humanos dos trabalhadores domésticos, liberdade de
associação e liberdade sindical, eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou
obrigatório, erradicação efetiva do trabalho infantil, eliminação de discriminação em
matéria de emprego e ocupação, condições equitativas de emprego, condições de trabalho
107
decentes, respeito à privacidade para aqueles que residem no emprego, informações sobre
as condições de emprego e preferência com contrato escrito, com disposição especial para
o caso dos trabalhadores migrantes, além de garantir inúmeros outros direitos (BRASIL,
2017).
O trabalho decente, nos termos dispostos pela OIT, articula-se com o trabalho
digno. Mas o que é um trabalho digno? Tem o mesmo significado de trabalho decente?
Há uma longa discussão sobre o próprio conceito de “dignidade”, não cabendo, nos
limites desta pesquisa, investigações filosóficas profundas sobre o tema, de modo que de
antemão será adotada a concepção de Gosdal (2006), para quem a dignidade é uma
construção histórica, vinculada ao pensamento da modernidade e ao surgimento do
trabalho sob a forma capitalista. Trata-se de uma categoria aberta, de caráter dinâmico,
permanentemente atualizada. (GOSDAL, 2006).
Ainda segundo Gosdal (2006), a dignidade, em conformidade com um
enfoque trabalhista, pode ser entendida a partir da noção de trabalho decente da OIT.
Nesse mesmo sentido, Proni e Rocha (2010) dispõem que a dignidade está no cerne da
agenda de trabalho decente da OIT.
108
Se tanto trabalho decente quanto trabalho digno encontram-se entrelaçados
na agenda da OIT, percebe-se que o trabalho decente está mais assentado em condições
materiais, tais como remuneração, jornada e segurança, enquanto o trabalho digno
encontra-se mais associado à noção de reconhecimento social, a uma comunidade de
valores morais. Assim, a noção de reconhecimento possui um papel importante na
articulação entre as categorias trabalho decente e trabalho digno (ROSENFIELD e
PAULI, 2012).
109
Há uma romantização do cotidiano doméstico, tido como local seguro e isento
de riscos. Entretanto, isso não se coaduna com a realidade, como se vê na conclusão de
pesquisa específica sobre o tema:
110
A ausência de reconhecimento no plano da solidariedade será abordada no tópico
seguinte.
111
Dentre esses manuais, desponta o de Tania Kaufmann, intitulado “A aventura
de ser dona de casa”:
112
táticas de manipulação, fazendo jus à ideia inicial do manual, de ajudar as patroas na
“luta” contra a doméstica.
É claro que não vamos esperar gratidão em troca do que fizemos pelo bem da
empregada. Fazemo-lo por humanidade, por espírito de solidariedade, por
impulso de ajudar, porque é mais compensador ser bom do que ser mau, por
simpatia e, finalmente, por conveniência nossa, para conservar a empregada no
nosso serviço. (KAUFMANN, 1975, p. 67).
Uma médica amiga contou-me que ao admitir uma empregada dizia-lhe, logo
de início, que o delegado de Polícia do Distrito era seu primo, sempre disposto
a ajudá-la em qualquer embaraço que surgisse...Dizia isso a todas as novas
empregadas e, segundo me garantiu, o truque dava ótimo resultado, pois sua
conta de perdas & danos estava sempre insignificante. (KAUFMANN, 2015,
p. 125).
113
Um momento em especial foi bastante marcado por tais discursos: o da
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 72, de 2013, conhecida como “PEC
das domésticas”. Dentre os vários enunciados surgidos nessa época, destaca-se o que
afirmava que o serviço doméstico “não é um trabalho como qualquer outro”, o que
“impediria um processo de universalização das predicações que determinam a
designação trabalho”. (BRASIL, 2013; FONTANA, 2017, p. 128).
Na mesma época, conforme narra Fontana (2017), surgiram reportagens com
a ministra Delaíde Mirante Arantes, integrante do Tribunal Superior do Trabalho, que já
havia exercido a função de empregada doméstica, enquadrando a sua história como um
caso de sucesso e superação, organizada no formato de “trajetória de herói”:
Segundo Fontana (2017), foi conferido pouco espaço para a fala das
trabalhadoras. Quando elas apareciam, eram “emolduradas" pelas edições das
reportagens.
Nesse mesmo ano, no mês de agosto, a jornalista norte-rio-grandense
Micheline Borges publicou em uma página de rede social um comentário sobre as
médicas cubanas que estavam no Brasil a serviço do programa “Mais médicos”26. Ela
disse que as médicas tinham “cara de empregada doméstica”, e não de médicas. Com base
na “cara”, ela questionou até mesmo se seriam médicas e ainda exclamou: “coitada da
população”. (DINIZ, 2014, p. 85; CESTARI; FONTANA, 2014, p. 168).
O tema “cara de empregada doméstica” merece algumas considerações. A
diferenciação entre patroas e empregadas é uma preocupação antiga, que atravessa
diversos âmbitos, como o do uso do uniforme, a segregação espacial, padrão do
mobiliário das dependências (FORTY, 2007). Qual seria, então, a diferença entre a
“cara” de uma médica e a de uma empregada?
26
O Programa Mais Médicos (PMM) foi criado pelo governo federal, com participação de estados e
municípios, com o objetivo de melhorar e ampliar o atendimento dispensado aos usuários pelo Sistema
único de Saúde – SUS. Uma das formas de atuação é mediante o envio de profissionais para regiões de
escassez ou mesmo ausência de médicos. Médicos cubanos participaram desse programa em razão de
acordo internacional entre Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde. (BRASIL. GOVERNO
FEDERAL. Programa Mais Médicos. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/conheca-programa.
Acesso em: 25 jan. 2021)
114
“Cara de empregada doméstico é metáfora de quê? Se retomamos a tradição
brasileira de anúncios de emprego que exigem “boa aparência”, denunciada
insistentemente pelo movimento de mulheres negras, nos aproximaremos dos
sentidos de feias, negros, pobres para as que não se encaixam nesses anúncios
que sem explicitar os critérios raciais de seleção para suas vagas resistem a
contratação de trabalhadoras negras. Poderíamos também retomar uma outra
expressão corrente usada para qualificar certos espaços da cidade - os
chamados “lugares de gente bonita”. Se nos perguntamos quem são as pessoas
bonitas, novamente veremos o que os critérios para avaliação estética dizem a
respeito das posições sociais e raciais. Essa divisão da sociedade e do direito a
circular por seus espaços e a ocupar determinados postos de trabalho, que opõe
gente bonita, de boa aparência, com postura, capazes, bem formados, bem
vestidos a gente feia, burra, sem postura, descabelados, mal vestidos tem raízes
profundas na história brasileira, que produziu o discurso de democracia racial,
por meio do qual silencia e dissimula a violência das relações de exploração
econômica e de exclusão racial e social que dão uma cara ao Brasil.
(CESTARI; FONTANA, 2014, p. 176).
115
assédio sexual e as ofensas morais, inclusive com acusações de furtos e/ou utilização de
“testes” de honestidade, como o clássico ato de deixar dinheiro à vista da empregada para
ver se ela se apropriava ou não.
Foi bastante mencionado, também, o trabalho infantil (tanto por filhas/filhos
e netas, quanto em primeira pessoa). A palavra “escrava” foi bastante utilizada. Outra
presença marcante foi a questão alimentar: o não poder se alimentar com a comida da
casa, o ter que se alimentar em horário inadequado, em locais inadequados, porque
somente era permitido fazer refeição depois de todos; o alimentar-se com sobras e/ou
alimentos estragados, as repreensões por ousar comer algo que lhe era vedado, e mesmo
acusações de comer sem que a trabalhadora tivesse praticado tal ato. Outro elemento de
destaque é a marcação de uma posição diferenciada, o desestímulo à formação da
trabalhadora e/ou de seus filhos, sendo considerada uma pretensão infundada, por
exemplo, a de um filho de empregada doméstica cursar uma universidade. O uso do
banheiro também aparece como questão relevante, com a proibição absoluta de utilizar
o da residência. Essa separação era praticada também, muitas vezes, em relação aos
utensílios de cozinha. “Humilhação”, “humilhada” e “humilhando” aparecem 87 vezes
ao longo dos relatos. “Escrava” tem 15 ocorrências, e “escravizada” tem 3. “Lixo” surge
em quatro ocasiões para significar como a pessoa era tratada ou como se sentia.
Atualmente, Preta-Rara segue com perfil em redes sociais, como facebook e
Instagram, denunciando condições abusivas de trabalho e de ofertas de emprego, sendo
um canal aberto para a voz das empregadas domésticas.
Mas elas ainda querem falar mais. Em 2019, o ilustrador Leandro Assis, em
parceria com a escritora Triscila Oliveira, criou a série em quadrinhos “Os Santos”, com
a primeira tirinha publicada no Instagram em 05 de dezembro de 2019, e um dos
destaques da trama é o tratamento humilhante dispensado às empregadas domésticas. O
perfil de Leandro, onde as tirinhas são publicadas, foi ganhando visibilidade, e foi criada
mais uma série, “Confinada”, com a primeira tirinha publicada em 11 de abril de 2020,
tendo seu foco na relação entre Fran, uma rica influenciadora digital, e Ju, sua empregada
doméstica, que fica sozinha com ela ao longo da quarentena decorrente da Covid 19. Esse
primeiro episódio, no dia 14 de maio de 2021, contava com quase cinco mil comentários
de usuários da rede Instagram. Ao longo da história, Fran tenta passar para seu público a
imagem de uma pessoa requintada, que cultiva hábitos saudáveis e transmite mensagens
positivas. Nos bastidores, Ju é tratada com menosprezo e passa por diversas dificuldades.
Ela, todavia, em nenhum momento se mostra passiva ou submissa a seu suposto destino,
116
embora suporte algumas situações adversas e privações. Sua imagem não é a da
empregada doméstica inculta e submissa. Ela se afasta tanto da imagem da “mãe preta”
quanto da “mulata”, figurando como heroína da trama.
Deste modo, atualmente uma boa parte da luta visível pelo reconhecimento
está sendo travada em um novo espaço discursivo, o espaço da internet. Preta-Rara,
Leandro Assis e Triscila constituem exemplos de autores de contra narrativas, que
enfrentam as visões coloniais, racistas e elitistas a respeito das empregadas domésticas,
abrindo espaço para que suas vozes sejam ouvidas.
Nessa luta, o discurso oficial permanece sendo o da segregação, o que pode
ser ilustrado por uma cena de 2020, com o ministro da economia indignado com a
empregada doméstica que viaja para a Disney (LOPES, 2020).
Os riscos dessa disputa que assume ares identitários são bastante discutidos.
Para Fontana (2017), ao contrário do que ocorre no âmbito das entidades associativas e
sindicais, essa luta privilegia a enunciação de uma identidade e a legitimação de um lugar
de fala, em detrimento da busca por igualdade jurídica e da própria dimensão política,
histórica e social das relações. Embora considere que esse seja um movimento necessário
por trazer para o debate as práticas de exploração e humilhação, para Fontana (2017) há
o que ela chama de paradoxo discursivo:
117
4.7 . Óbices ao reconhecimento
118
A fiscalização constitui uma ação indispensável para coibir ilegalidades. No
âmbito do trabalho doméstico, ela se depara com uma aparente impossibilidade, em razão
do disposto na Constituição brasileira, artigo 5º, XI, que assegura a inviolabilidade do
domicílio. Uma primeira saída para esse impasse seria a realização de uma fiscalização
indireta, com envio de notificação para que o empregador compareça em dias e horários
determinados a fim de prestar esclarecimentos. Existem, todavia, situações nas quais
somente uma fiscalização direta poderá ser efetiva, como no caso de trabalho em
condições análogas à escravidão, ou ainda, trabalho infantil (BRASIL, 1988; COSTA e
GOMES, 2016).
Nesses casos, como afirmam Costa e Gomes (2016, p. 09), há necessidade de
sopesar tais valores, com base no princípio da proporcionalidade:
Sobre o tema dos afetos, a ambiguidade é uma marca das relações de trabalho
domésticas ainda presente na atualidade. Por um lado, são comuns situações nas quais se
formam laços, todavia tais laços são condicionados e limitados pela hierarquia e pelas
desigualdades entre patroa e empregada (BRITES, 2007). Para Kofes (2001), a
desigualdade se revela principalmente por meio das doações e dos favores que partem da
empregadora em direção à empregada, mas tal desigualdade não impede o surgimento de
embates e eventuais inversões de poder. Ela chama a atenção para o termo “amiga”,
comumente invocado pelas trabalhadoras para se referir às empregadoras com as quais
possuem maior interação, sendo que, em sua pesquisa, não encontrou empregadoras
119
utilizando esse termo. Com “amiga”, as empregadas se referiam a uma maior proximidade
social, tolerância em razão de certas necessidades de sua vida pessoal (exemplo: ter filhos
pequenos e precisar, por vezes, faltar), dando uma ideia de identidade entre mulheres.
120
Rodrigues (2020) questiona se utilizar o recurso de a trabalhadora ser “quase
da família” constitui de fato uma concepção ou uma estratégia discursiva, e afirma que
essa cordialidade fornece a regulação para um sentimento de gratidão, que se articula com
o consequente sentimento de dívida. A autora, em sua tese, analisa o discurso de
empregadoras, observando a ambiguidade em diversos momentos, quando ora a
empregada é tratada como “funcionária”, ora como “quase da família”, ora como “braço
direito”. Outra circunstância diga de nota é que a empregada é “incorporada” à família
sem que seja questionada quanto a esse desejo de supostamente pertencer, mas sem
pertencer de fato, inclusive porque ela tem seus próprios familiares, que não são objeto
dessa mesma integração. Pode carecer de repetição por ser óbvio, mas as condições de
vida de quem é “quase da família” são totalmente distintas de um membro efetivo da
família. Isso se encontra muito bem retratado na fala de uma trabalhadora doméstica
sindicalizada, reproduzida a seguir:
121
É sobre a luta pelo reconhecimento fora da ambiguidade do “quase da
família” que trata o tópico seguinte, abordando a questão das associações e sindicatos.
122
(2001) destaca que foi no curso oferecido pelo Mobral, com alcance em todo o território
brasileiro, que a formação da empregada doméstica apareceu com base contratual,
definida efetivamente como um trabalho.
Na década de 1960, a igreja católica, por meio da juventude operária, realizou
uma conferência nacional, o Primeiro Encontro Nacional de Jovens Empregadas
Domésticas do Rio de Janeiro. No ano seguinte, o Primeiro Congresso Regional, em
Recife, reuniu trabalhadoras também de outros estados. Como resultado dessa atuação da
juventude operária, surgiram associações de trabalhadoras domésticas pelo país
(BERNARDINO-COSTA, 2015). O sindicato das trabalhadoras domésticas do Recife
encontra-se bastante ligado, em suas origens, à Juventude operária católica.
Em maio de 1961, Laudelina, já residente em Campinas, fundou uma
associação de empregadas domésticas na cidade, a Associação Profissional Beneficente
das Empregadas Domésticas de Campinas, que tinha ligações com o movimento negro,
por meio do Teatro Experimental do Negro, tendo realizado diversas atividades culturais,
além da defesa dos interesses gerais das trabalhadoras. A associação foi fechada em 1964,
e a partir daí passou a atuar como uma entidade de caráter beneficente (MAEDA, 2021).
Bernardino-Costa transcreve uma carta anônima recebida por Laudelina, na qual o
subscritor afirma que as empregadas vestem-se melhor do que as patroas, as quais
precisam enfrentar o preço elevado dos alimentos e os baixos salários dos maridos, e
acrescenta:
A patroa, que para Kauffman era “escrava” da empregada, aqui aparece como
mártir. Percebe-se nesse discurso a indignação do subscritor com a possibilidade de uma
empregada doméstica utilizar seu tempo – que pertence à patroa – para ir a serviços que
lhe são “inadequados”, como cabeleireiro e manicure. O “atrevimento” da trabalhadora
doméstica é um item recorrente na revolta dos patrões.
Laudelina estendeu sua atuação a nível nacional, visitando o presidente da
república e o Ministro do Trabalho para expor as demandas da categoria. A associação,
todavia, teve um período de paralisação, a partir de 1968, retornando em 1979 e
formalizando as atividades em 1983. Após a reabertura, teve grande atuação, inclusive
123
junto à assembleia constituinte. E logo após a promulgação da Constituição, tornou-se
sindicato (BERNARDINO-COSTA, 2015).
Entre os anos de 1968 e 2011 foram realizados dez congressos nacionais de
trabalhadoras domésticas (BERNARDINO-COSTA, 2015; MAEDA, 2021). A partir da
década de 1980 último foram excluídas as reivindicações que tinham por base a
filantropia e o paternalismo, a fim de dar à reunião um caráter mais político, de busca da
construção de uma identidade de trabalhadora. Em tais congressos foram discutidas
questões pertinentes à previdência, aos direitos e condições de trabalho (KOFES, 2011).
Para obstar essa luta, foi criado em São Paulo, por uma advogada, um
sindicato de empregadores domésticos. A fundadora concedeu uma entrevista a um jornal
de Campinas em 30 de abril de 1989, valendo destacar parte desse discurso:
A análise revela que sua subscritora considera arrogante qualquer postura que
busque, não uma sobreposição, mas uma posição de igualdade. Assim, se uma empregada
doméstica reivindica seus direitos, é considerada “atrevida”, ingrata. Percebe-se franca
indignação com a pretensão delas a terem direitos; ora, se ela, mulher “que luta nas
demais profissões”, está com dificuldades, como então essas trabalhadoras podem querer
exigir alguma coisa?
Bernardino-Costa (2015) afirma que, até meados da década de 80, a luta das
empregadas era compreendida, inclusive no âmbito da igreja católica, como luta de
classes. Embora articulações envolvendo gênero e raça estivessem presentes, sobretudo
pela associação do quarto de empregada à senzala, a bandeira era a integração à classe
trabalhadora e a equiparação às demais categorias em termos de direitos. Uma meta a ser
alcançada pelas associações era a interação com a CUT. Quanto à integração com o
movimento feminista, consolidou-se na constituinte, quando as feministas encamparam
o projeto de lei das trabalhadoras domésticas. Entre 1985 e 1988 houve grande
mobilização entre elas, com idas frequentes ao congresso. Com a Constituição, muitos
direitos ainda foram deixados de lado, mas elas ganharam o direito à sindicalização.
124
No ano de 1985, houve o V Congresso Nacional das Trabalhadoras
domésticas em Olinda, no qual se elaboraram as principais reivindicações trabalhistas da
categoria. Há registro, também, de passeatas e manifestações públicas (BERNARDINO-
COSTA, 2015).
Um dos pontos comuns às campanhas era o pleito para que as trabalhadoras
morassem em suas próprias casas, e não com as patroas.
Em 1997 foi criada a Fenatrad - Federação Nacional das trabalhadoras
domésticas, que, segundo seu site, é uma associação composta por 22 sindicatos e mais
uma associação. As entidades filiadas à Fenatrad possuem sede nos estados do Acre,
Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Paraná, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. (FENATRAD – Federação
Nacional das trabalhadoras domésticas).
Segundo Bernardino-Costa (2015), a partir de 2001, do oitavo congresso
nacional das trabalhadoras domésticas, a gestão da federação tem buscado
reposicionamento de seus vínculos com os movimentos negro e feminista, embora sem
descuidar do relacionamento com o próprio movimento sindical. Passa a haver, também,
a busca de parcerias com atores internacionais, como a ONU mulheres, rede internacional
de trabalhadoras domésticas (International Domestic Work Network) e a própria
Organização Internacional do Trabalho.
O intuito da apresentação desse percurso histórico da atuação sindical foi
demonstrar que, nos termos prescritos por Axel Honneth, houve, ao longo do tempo, uma
luta por reconhecimento. As dificuldades impostas pela dinâmica da profissão eram
muitas: longas jornadas, baixos salários, isolamento social, ausência de espaços diários
de interlocução, bem como o fato de muitas morarem no próprio local de trabalho, o que
constituía um elemento de limitação à mobilidade. Ainda assim, houve mobilizações,
envios de projetos de lei, congressos, dentre outras ações.
Nesse sentido, o movimento sindical das empregadas domésticas representa
no Brasil um “movimento social de resistência à colonialidade do poder e reexistência
das trabalhadoras domésticas” (BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 58), buscando não
somente o reconhecimento jurídico, mas também uma sociedade mais igualitária.
125
5 DIREITO DE AUSÊNCIAS. JURISPRUDÊNCIA DE EXCLUSÕES.
126
outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que
compreendemos em que consiste o conhecimento. (FOUCAULT, 2013, p. 31).
127
fazendo a interpelação entre o público e o privado, e considerando a mulher como sujeito
político.
128
A crítica ao conhecimento e à ciência formulada pelas feministas fornece o
aporte teórico e a “coragem epistêmica” para elaborar uma crítica ao próprio direito do
trabalho, crítica esta que não é isenta de ambiguidades, como se verá adiante, mas que se
mostra extremamente necessária.
129
Esse discurso atende a uma lógica muito específica. Como afirma Dejours
(2007), paira sobre o país a ideia de uma constante ameaça de derrocada econômica, numa
conjuntura que muito nos lembra a de uma guerra, estando sempre em perigo a própria
sobrevivência da nação. Para tempos de guerra, medidas extremas. Austeridade e
controle. Ajustes fiscais, redução de direitos. E a exclusão social passa a ser vista com
uma naturalidade cada vez maior, como um mero efeito colateral dessa guerra. Ainda
com Dejours, desvincula-se a pobreza e a exclusão da ideia de injustiça:
130
Nos termos expostos por Lugones (2020, p. 57), a colonialidade não se refere
apenas à raça, pois “toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade e do
trabalho existe em conexão com a colonialidade”.
Deste modo, decolonialidade e interseccionalidade se complementam, uma
vez que o eixo da colonialidade necessita de uma ferramenta capaz de dar conta também
dos aspectos relativos ao gênero (LUGONES, 2020; PEREIRA e VIEIRA, 2015).
27
A expressão encontra-se entre aspas porque foi extraída do artigo de Pereira e Nicoli (2020), referenciado
ao final desta dissertação.
131
“especiais” de proteção à mulher, de modo que, como em todas as ciências, as mulheres
são tratadas como o desvio do padrão masculino. É preciso, então, despender tempo
pensando em soluções para os “problemas femininos”: maternidade, amamentação etc.,
numa dinâmica segundo a qual as questões relativas à reprodução da vida são tidas como
uma espécie de lapso, entrave ou exceção, ao invés de constituírem elementos
indispensáveis e inseparáveis da organização da vida laboral ( VIEIRA, 2018). Nesse
sentido, é pertinente observar que mesmo essas normas especiais, desviantes, contidas na
CLT, foram feitas para “um certo tipo” de mulher: a mulher branca, heterossexual, no
geral casada, de classe média. Eram normas que vedavam o acesso a diversos tipos de
trabalho, marcando territórios masculinos, e protegiam não propriamente as mulheres, e
sim a “honra” de seus maridos, impedindo-as, por exemplo, de trabalhar à noite (LOPES,
2020).
Quanto às empregadas domésticas, elas constituem as “outsiders within” do
direito do trabalho. Estão dentro e fora ao mesmo tempo. Possuem vínculo empregatício,
mas estão excluídas da CLT. São trabalhadoras subordinadas, mas não são totalmente
equiparadas às demais classes trabalhadoras. Integram um grupo “particular”,
desempenham uma função “específica”. O direito do trabalho não foi feito para elas; suas
principais categorias não pensaram as empregadas domésticas e o serviço por elas
prestado. O trabalho doméstico resulta, assim, no que Pereira e Nicoli (2020, p. 519)
denominam uma “desigualdade juridicamente constituída”.
Existem muitos indícios dessa desigualdade juridicamente constituída. Vieira
(2018) chama a atenção para o fato de que o trabalho doméstico não remunerado é posto
na esfera do direito de família, de modo a enfatizar a separação e a incomunicabilidade
entre tais atividades e o mundo do trabalho “verdadeiro”, reforçando uma ideia que se
encontra fortemente atrelada à desvalorização da categoria das domésticas: a ideia de que
o trabalho doméstico não constitui trabalho, já amplamente debatida no primeiro capítulo
desta dissertação. Além disso, o direito do trabalho reforça a dicotomia entre público e
privado, remunerado e não remunerado, dirigindo-se a um trabalhador abstrato, que
aparentemente não possui nenhum encargo familiar além de assegurar o sustento por meio
do salário, e pode destinar a sua vida ao trabalho.
O próprio conceito de salário foi fundamental para essa separação, constituído
com a pretensão de ser suficiente para sustentar a família, criando a figura do “provedor”.
Como já retratado no capítulo 1, a mulher era tida nos censos como “inativa”. Já o salário
da mulher, quando existente, era considerado um simples “complemento”. A partir dos
132
anos 1980, mesmo com o maior ingresso das mulheres no mercado de trabalho e a
falência prática do “homem provedor”, as diferenças de remuneração persistiram
(VIEIRA, 2018).
Outro conceito que favorece a discriminação das trabalhadoras domésticas é
o da onerosidade, que normalmente é interpretada como sinônimo de expectativa de
contraprestação, ou seja: mesmo que um trabalho seja realizado e não seja pago, ainda
assim a onerosidade estará presente, só que terá havido um descumprimento consistente
nessa ausência de pagamento. No caso do trabalho doméstico, em especial o de cuidado,
feito por uma mulher integrante da família, o direito pressupõe essa ausência de
expectativa de contraprestação, afirmando que ele foi realizado em nome do amor e/ou
da responsabilidade. Segundo Pereira e Nicoli (2020) só se imagina a existência de
onerosidade no caso do trabalho doméstico contratado, terceirizado. Os autores citam
jugado do TRT de Minas Gerais, do ano de 2019, no qual uma senhora ingressa com ação
trabalhista alegando ter sido cuidadora de seu irmão mais velho, que vem a falecer. Tanto
a sentença de primeira instância quanto o acórdão negam o vínculo, sob o argumento de
que há presunção de que a “ajuda” decorreu de relação de parentesco e que não havia
intuito de compor uma relação de emprego. É curioso, aliás, como o julgador elabora
uma presunção de que não havia o intuito de formar vínculo empregatício contrariando a
prova desse intuito, que é o próprio ajuizamento da ação em busca do reconhecimento.
No que diz respeito ao tempo, o direito do trabalho se apropriou de uma noção
meramente quantitativa, quando o tempo do trabalho doméstico possui também
dimensões qualitativas, relacionadas a tarefas e a um estado mental de atenção,
responsabilidade e disponibilidade, estados esses que são contínuos (VIEIRA, 2018).
Importante destacar, como afirmam Pereira e Nicoli (2020), que aquilo que o direito do
trabalho entende como tempo, e como valor, é algo de natureza mercantil e inserido em
uma estrutura sexista. Os autores defendem que o tempo do cuidado não é linear, e é
muito mais do que contínuo: é permanente. “Ou seja, quem cuida se vê permanentemente
atravessada pelo cuidado”(PEREIRA; NICOLI, 2020, p. 524).
Os direitos possuem uma forte carga de instabilidade, e obter alguns, em dado
momento histórico, não significa que a partir daí a situação esteja resolvida e que não
surjam outras demandas ou questões. Assim, se por um lado a delimitação da jornada em
horas foi uma conquista fundamental para a classe trabalhadora no momento histórico em
que foi obtida, por outro lado a crítica feminista ao direito do trabalho convida a
133
reimaginar esse instituto, revolvendo o que constitui um dos seus pilares: o tempo.
Pereira e Nicoli (2020) trazem importantes questionamentos quanto a isso:
134
08 livros28, além de um manual escrito por um magistrado29, porém dedicado ao
empregador doméstico, e mais um livro específico sobre “Igualdade de gênero” no âmbito
laboral30. Nos manuais e cursos, além do espaço reduzido, não há qualquer discussão ou
problematização, limitando-se a uma rápida análise dos direitos que são devidos às
empregadas. Já no livro que trata da igualdade de gênero, não há nenhum capítulo ou
tópico sobre as trabalhadoras domésticas; fala-se da mulher “universal”, a trabalhadora
branca, e em nenhum momento há qualquer preocupação com o destino de todo o trabalho
doméstico que ela deixou (ou não) de realizar para estar presente na empresa.
A análise será iniciada pelo livro de Carlos Henrique Bezerra Leite, autor que
faz um grande investimento teórico na questão dos direitos sociais, considerando-os
componentes da dimensão da cidadania. Ele define o próprio direito do trabalho com base
em uma perspectiva de igualdade material, como sendo um ramo que:
28
Foram eles: GARCIA, Gustavo Filipe. Manual de Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 2015.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: saraiva, 2019.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sandra Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 29
ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
RESENDE, Ricardo. Direito do Trabalho. 8 ed. São Paulo: Método, 2019.
SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 20. ed. São Paulo: Ltr, 2002. Atualizada
por Arnaldo Sussekind e Lima Teixeira.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. São Paulo: Ltr, 2018.
MARTINS, Sérgio. Pinto. Manual do trabalho doméstico. São Paulo: atlas, 2004.
SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto. O novo direito do trabalho doméstico. São Paulo: Saraiva, 2015.
29
FONSECA, José Geraldo. Vá procurar seus direitos! Tudo sobre empregados domésticos. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2005
30
BARBUGIANI, Luiz Henrique. Igualdade de gênero. O redimensionamento da concepção da igualdade
material no âmbito laboral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015
135
gênero: trabalhadoras), quantas estão na informalidade e quantas são chefes de família.
No mais, remete a disciplina do contrato à lei 5.859/72. (SUSSEKIND et al, 2002).
Apesar de ter escrito manuais genéricos, Sérgio Pinto Martins elaborou um
“Manual do trabalho doméstico”, no qual especifica os direitos e conceitos estabelecidos
pela lei. Em nota introdutória, ele afirma que a grande discussão quanto aos direitos dos
domésticos diz respeito à aplicação ou não da CLT, havendo necessidade de um estudo
para esclarecer tal ponto para o empregador e para o próprio empregado (MARTINS,
2004). Mas o que se vê ao longo da obra é que o intuito é meramente técnico, e fornece
subsídios somente ao empregador, sem qualquer intenção de se comunicar com a
trabalhadora, trazendo inclusive modelos de recibos e contratos.
Outro livro frequentemente indicado para estudantes é o Curso de Direito do
Trabalho, do ministro do TST Maurício Godinho Delgado. Nele encontramos, logo no
início, diversas referências à “especificidade” do contrato de trabalho doméstico:
136
requisito o trabalho em pelo menos três dias da semana. Estabeleceu-se, assim, a regra de
segundo a qual quem trabalhasse em pelo menos três dias da semana era empregada
doméstica, e quem trabalhasse apenas dois era diarista, independente de haver ou não a
subordinação31. Definiu-se, portanto, que um dos pilares fundamentais do contrato de
emprego, a subordinação, ainda que presente, não seria suficiente para configurar o
vínculo. Muitas instruções processuais se baseavam, então, em procurar saber em
quantos dias a trabalhadora se fazia presente. Importante observar que para os demais
trabalhadores, geralmente bastava a não eventualidade, de modo que a interpretação
conferida à continuidade consistiu em mais um fator de exclusão.
Em 2015, a lei complementar 150 incorporou tal orientação à definição do
empregado doméstico, considerado “aquele que presta serviços de forma contínua,
subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no
âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana” (BRASIL, 2015).
Deste modo, além de não possuir, ainda, todos os direitos adjudicados aos
trabalhadores “normais”, a empregada doméstica possui, em sua própria definição, um
requisito a mais, não previsto para outros trabalhadores.
Prosseguindo na análise dos manuais, passa-se ao livro de Amauri Mascaro
do Nascimento. O autor considera que o trâmite da Emenda Constitucional 72 foi “muito
precitado, desencadeando inúmeros questionamentos e críticas”. Ele assevera que a
emenda “confundiu” o empregador doméstico, “pessoa física e, em sua grande maioria,
de classe média, assalariado ou aposentado”, com uma empresa. Afirma que o trabalho
doméstico não gera lucro e, sendo assim, deve ter tratamento diferenciado. Mostra-se
contrário à limitação da jornada e adicional noturno, visto que o trabalho noturno decorre,
por exemplo, da natureza do trabalho da babá (NASCIMENTO, 2014, p. 2.114). Mas o
mesmo autor não questiona, em nenhum momento, o adicional noturno para o vigia
noturno, que teoricamente também teria o trabalho nesse horário como sendo
“decorrência lógica” da sua atividade. Ele se insurge, também, com a extensão de direitos
atinentes a segurança e saúde, pontuando que o esforço deveria ser para incentivar a
formalização desses empregos e para obter o acesso da categoria aos seus direitos
“enquanto domésticos”, sendo isso suficiente para “dignificar” a profissão
31
Vejam-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos:
1) TST - RR: 2717620125240072, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento:
25/11/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/12/2015;
2) TST - AIRR: 11636220115020482, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento:
04/02/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: 06/02/2015
137
(NASCIMENTO, 2014, p. 2.115). Em suma, para Nascimento, os direitos existentes são
suficientes.
Entre “cursos”, manuais e outros títulos, merece destaque o livro intitulado
“Vá procurar seus direitos! Tudo sobre empregados domésticos”, de 2005, escrito por
José Geraldo da Fonseca, que atuou como magistrado do trabalho. Na abertura, ele
explica que o livro foi escrito para que os amigos deixassem de “encher o saco na fila do
banco 24 horas, no elevador do prédio, no catamarã ou nas festinhas de crianças por causa
das picuinhas de suas empregadas domésticas” (FONSECA, 2005, p. 11). E acrescentou
que é uma obra para “gente simples”, e não para o sujeito de “terno e gravata, anel de
grau, juridiquês fluente”.
Essa nota introdutória traz duas visões acerca das empregadas domésticas:
são pessoas que criam “picuinhas” e são um assunto menor, que não interessa àquele
sujeito masculino (pois de terno e gravata) que utiliza seu juridiquês para tratar de
assuntos do direito. Emprego doméstico é tema prático, menor, cotidiano.
No primeiro capítulo, ao tratar da demissão, o autor desenha um cenário de
caos familiar em razão da ausência da empregada e da atribuição de toda a
responsabilidade pela contratação à esposa. É à esposa que o livro se reporta. É com a
mulher que ele dialoga em linguagem “simples” sobre as empregadas domésticas, numa
curiosa atualização dos manuais para noivas e esposas citados no capítulo 02 desta
dissertação.
O livro ainda “brinca” comparando a empregada doméstica a objetos, e
ratifica a desconfiança generalizada sobre as profissionais:
138
ele compara um contrato de experiência a um teste feito em veículos, antes de tomar a
decisão da compra.
139
advogados, tanto em suas petições quanto nas audiências. Em suma, a Justiça do
Trabalho se torna uma justiça menos formal32.
Ainda assim, a percepção que as partes têm desse local pode ser muito
diferente. Há poucas pesquisas enfocando essa relação que se estabelece entre os
litigantes e a figura da juíza ou do juiz em audiência. No caso específico de empregadas
domésticas, Fábio de Medina da Silva Gomes realizou uma pesquisa empírica e
interdisciplinar entre novembro de 2013 e agosto de 2014, assistindo a 37 audiências
relativas a litígios domésticos, encontrando exclusivamente mulheres em todas elas, tanto
no polo ativo quanto passivo. O autor discute, em alguns artigos e na sua dissertação de
mestrado, o entrelaçamento das emoções na vivência da relação de trabalho e na Justiça
(GOMES, 2015). Aqui, o enfoque será sobre o sentimento de trabalhadoras e patroas em
relação à Justiça, e a percepção das juízas e dos juízes em relação a tais litígios.
No tocante à dinâmica judicial, Gomes (2015) relata ter presenciado uma
grande quantidade de acordos, sendo que em relação a alguns deles a empregada não
concordava, sendo depois “convencida” pelo advogado, com o apoio do julgador ou
julgadora. Sua percepção foi de que tais acordos geralmente eram em valores mais baixos
em relação a processos de outros tipos.
O autor (2015) destaca a distinção entre cenas e bastidores; a cena ocorria no
interior da sala de audiência e se tornou repetitiva:
Nos bastidores, ele registrou o choro, muitas vezes com o apoio de amigos
e/ou familiares que aguardavam o término da sessão. O sentimento, após a audiência, era
de ruptura, da certeza do fim de uma relação íntima. A maioria das empregadas
entrevistadas relatou algum sentimento de perda em razão de se considerar “parte da
32
Tais constatações são fruto da vivência da pesquisadora, que exerce a profissão de juíza do trabalho desde
junho de 2001, tendo, ao longo desse período, trabalhado em diversas varas do interior e da capital dos
estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte. Tal experiência é trazida à presente pesquisa com a
“permissão” de todas as teóricas feministas que criticaram o ideal de total afastamento entre pesquisador e
objeto. Cumpre salientar, também, que GOMES (2014, p. 15) chegou a semelhante conclusão em sua
pesquisa empírica, apontando que sofreu estranhamento inicial com essa informalidade, ressaltando o
aspecto das vestimentas dos advogados e advogadas, o diálogo “menos frio” entre juízes e advogados e
uma maior simpatia dos juízes em relação às partes.
140
família”, o que redundava no sentimento de humilhação por estar no judiciário. Uma
das entrevistas afirmou:
Eu me senti muito mal aqui na Justiça, me senti traída, porque eu a tinha como
uma amiga. Pior do que o diagnóstico de câncer foi vir aqui. Não era
necessário. Não dá pra confiar em ninguém. Em ninguém. (GOMES, 2015, p.
298).
Não obstante a pesquisa tenha sido feita há alguns anos, o tema das
intrincadas amizades entre patroas e empregadas permanece extremamente atual. Essa
pesquisa mostrou como as emoções são trazidas ao judiciário, e como o sentimento de
ser “quase da família” se desdobra em rancor de formas diferentes para trabalhadoras (a
ruptura, a humilhação) e empregadoras (a traição, a perda da confiança).
Além de um local de ruptura, a sala de audiência aparecia como um ambiente
para reviver situações difíceis, de humilhação e rancor, por meio dos depoimentos das
partes e testemunhas. Em relação aos juízes e juízas, ele registrou que muitos lhe
disseram que julgar um processo de domésticas se equiparava a julgar um caso de
divórcio numa vara de família. Sobre a prevalência de emoção ou tecnicidade, uma juíza
lhe respondeu que tudo era emoção, enquanto outra relatou que a relação seria emocional,
mas o julgamento era técnico. (GOMES, 2015).
Sobre a percepção das entrevistadas em relação aos juízes, o autor relata que
algumas mencionaram sensação de desamparo e medo. Em suas conclusões, ele afirma
que “as emoções não são bem recebidas no espaço do judiciário”. (GOMES, 2015, p.
310). Em outro momento, relata que uma entrevistada, empregada, disse ter se sentido
“sozinha” na frente da juíza, e que a representação dela sobre a figura da magistrada era
de uma pessoa dotada de muito poder. Para ele, o judiciário, na visão das empregadas, é
um espaço formal, repleto de símbolos ininteligíveis (GOMES, 2014).
Em síntese, o judiciário surge como um espaço hostil, de simbologias
desconhecidas e de rupturas. Não foram localizadas pesquisas empíricas recentes que
pudessem ensejar comparação com os resultados obtidos por Gomes, e a pandemia de
141
Covid 19, com a suspensão de todos os atos presenciais na Justiça do Trabalho, tornou
impossível a realização de pesquisa específica para a presente dissertação.
O autor afirma ainda:
Uma frase muito repetida entre os juízes do trabalho era “Eu não posso
sobrecarregar o empregador doméstico na mesma medida que eu penalizo uma
empresa.” Esse discurso ratifica as desigualdades, desmerecendo as tarefas
domésticas e justificando os valores pequenos dos acordos entre domésticas e
patroas.
Nesse caso, mais do que uma desigualdade, uma invisibilidade. No judiciário,
quase sempre se opta por acordos, com valores pequenos, se comparados aos
de outros trabalhadores. Na verdade, todo trabalho ligado à reprodução carrega
a representação de desimportante.
(GOMES, 2015b, p. 41)
Esse mesmo autor (GOMES, 2015 b) chama a atenção para uma situação
presenciada: uma juíza teve que modificar sua rotina de audiências porque a empregada
doméstica faltou ao trabalho. Com base nisso, ele traz reflexões a respeito de duas
“feminilidades” detectadas, duas formas de ser mulher, que não são apenas diferentes,
mas também hierárquicas. As empregadas domésticas normalmente são associadas à
pouca formação e à ausência de mérito: vai trabalhar em serviço doméstico quem não
estudou, quem não “venceu na vida”. Já a juíza é tida como figura de autoridade, alguém
que conseguiu alcançar um objetivo e se destacar no âmbito profissional. Uma, entretanto,
depende da outra para poder fazer seu trabalho: a juíza depende da empregada doméstica,
e, no entanto, o trabalho doméstico é invisibilizado.
Percebe-se, então, que as empregadas domésticas quase não possuem espaço
no direito do trabalho, e quando ingressam em juízo para disputar a pequena parte que
lhe cabe carregam consigo todas as representações que incidem sobre a profissão,
havendo a possibilidade de que isso resulte em prejuízos financeiros, como a realização
de acordos em valores mais baixos.
142
de 15 tribunais diferentes33. A justificativa para utilizar esse livro antigo é justamente o
recorte que se deseja analisar: o período anterior à emenda constitucional n. 72/2013 e à
lei n. 11.324/2006, que concedeu estabilidade à gestante empregada doméstica. A busca
teve como finalidade principal verificar qual o tratamento jurídico concedido a pedidos
de horas extras e estabilidade quando não havia previsão expressa na lei, observando se
havia alguma discussão que envolvesse a aplicação do princípio da igualdade ou a
declaração de inconstitucionalidade difusa de lei. Outro foco diz respeito às disputas pela
condição de empregada doméstica quando há alegação de que a trabalhadora é diarista, e
a possibilidade de pagamento de salário inferior ao mínimo legal por força da incidência
de descontos relativos a moradia e alimentação. No que diz respeito ao portal Jusbrasil,
o alvo da busca foi adicional de insalubridade, doença profissional e acidente do trabalho.
Ao longo da pesquisa, defrontou-se com alguns outros temas, que, em
consideração à relevância, também serão aqui expostos
Com base nos acórdãos pesquisados, foi constatado que sempre houve
disputas judiciais a respeito da concessão de certos direitos, negados pela lei, não tendo
existido uma conformação à ideia de exclusão.
A expressão “aventura jurídica” tornou-se uma espécie de bordão utilizado
em peças processuais para designar uma ação ou um pedido específico em relação ao qual
não haja, supostamente, nenhum tipo de base legal. Uma das propostas deste tópico é
discutir a existência de pedidos de direitos que eram expressamente negados pela
lei. Tais pedidos podem ser interpretados como “aventura jurídica” ou como uma
forma de resistência e de tensionamento do sistema judicial, com a finalidade de
tentar provocar alterações e criar teses?
Uma primeira leitura da compilação da editora Juruá, a fim de selecionar os
julgados que seriam citados, revelou a utilização, em quase todos os acórdãos do livro,
de expressões como “inaplicabilidade”, “exclusão”, “indevido”, “indevidas”, “não faz
jus”, “não há previsão legal”. Também a ideia de não extensão (“não se estendem aos
domésticos...”). Uma jurisprudência, portanto, composta por muitas ausências, negativas
e exclusões.
Constatou-se a ocorrência de muitas disputas em torno do vínculo
empregatício e do enquadramento como doméstica ou diarista, e quanto ao
33
A jurisprudência é proveniente dos seguintes Tribunais Regionais do Trabalho: 2ª região, 3ª região, 4ª
região, 6ª região, 9ª região, 10ª região, 11ª região, 12ª região, 13ª região, 15ª região, 19ª região, 20ª região,
22ª região, 23ª e 24ª região. Total de acórdãos lidos: 74.
143
enquadramento como doméstico e outras atividades, como trabalhador(a) rural,
recepcionista e vigia. Nota-se uma gradação em busca de maior proteção legal:
trabalhadoras informais, tratadas como diaristas, buscam o reconhecimento do vínculo
como empregadas domésticas. E trabalhadores que realizam atividades que não se
restringem às tradicionais buscam uma reclassificação para excluir a condição de
doméstico.
O tema das horas extras mostrou-se muito presente. Partindo de um acórdão
que citava o nome de José Serson como doutrinador que admitia o pagamento das horas
extras às trabalhadoras domésticas, foi possível localizar um livro escrito por esse autor,
no qual ele defendia que a empregada doméstica fazia jus ao pagamento da diferença das
horas trabalhadas a mais, uma vez que o valor do salário-mínimo era fixado para uma
jornada de 220 horas mensais. Assim, embora ela não tivesse direito ao adicional de horas
extras, poderia receber o pagamento da hora na forma simples, sem o adicional.
(SERSON, 1994).
Essa tese, todavia, não encontrava ressonância nos julgamentos, embora isso
não signifique que não fosse invocada. Em acórdão do TRT da 9ª Região, foi encontrada
seguinte fundamentação:
Nem o parágrafo único do art. 7º da CF/88, nem a Lei 5.859/72, assegura aos
trabalhadores domésticos o direito à limitação da jornada laboral. Portanto,
data vênia do ilustre José Serson, o salário daquela categoria não se encontra
dimensionado para o cumprimento de 220 horas de trabalho mensal, eis que
não há restrição legal à duração de sua prestação de serviços. As únicas
limitações temporais ao trabalho doméstico são o direito ao repouso semanal
remunerado e o direito às férias, o que, de forma alguma, conduz à conclusão
a que chegou o respeitável doutrinador. (BRASIL, TRT 9, 1994, p. 59).
144
ocorrida no oitavo mês de gestação (e a alegação da empregadora de que desconhecia tal
fato). Grávida, dispensada em decorrência da gestação, mas sem nenhum amparo legal.
Um tema que não havia sido objeto de pesquisa proposital, mas que, uma vez
localizado, foi trazido para a presente dissertação, em decorrência de sua relevância, foi
a visão da subordinação da trabalhadora doméstica, expressa nesse julgado do TRT da 2ª
região:
34
Spivak, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
145
Em outra situação, pronunciou-se o Tribunal da 12ª região:
146
“humanitário” são os únicos ganhos possíveis, visto que a declaração de
inconstitucionalidade de uma lei claramente discriminatória é tida como “um absurdo”.
Outro tema sensível diz respeito à saúde e segurança. A naturalização das
tarefas domésticas (tidas como simples, do tipo que qualquer um pode realizar) cria vieses
de julgamento a ponto de o julgador decidir contra o laudo pericial, com base apenas em
suas convicções pessoais35. A atividade é tida como sendo isenta de riscos ergonômicos36.
No que diz respeito às trabalhadoras que residiam no local, muitos tribunais
possibilitavam o pagamento de salário inferior ao mínimo legal com base na possibilidade
de o empregador descontar o valor a título de alimentação, material de higiene e, em
alguns casos, moradia. Importante verificar que aqui havia uma inversão do discurso
segundo o qual a CLT não se aplica aos domésticos. Tal discurso, fartamente usado para
indeferir direitos, era escamoteado quando se tratava de negar:
No acórdão acima transcrito, como visto, a CLT foi utilizada por força de
analogia para indeferir uma pretensão da pare autora.
Entre negativas e exclusões, as trabalhadoras sempre tentaram obter direitos
pela via judicial. Merece destaque, pela excepcionalidade, acórdão do TRT da 13ª região
35
Um exemplo: “Como se vê, o fundamento apresentado pelo laudo de que a doença (bursite/tendinite
do ombro direito) teve como fator agravante o trabalho não pode ser aceito, até porque baseado apenas
na experiência do perito, uma vez que nem sequer especificou as atividades da autora que possam ter
acarretado as lesões.
O trabalho executado na reclamada não pode ser considerado um fato certo acelerador da doença, sem a
análise do caso concreto, na medida em que as atividades realizadas pela autora (limpar, cozinhar, cuidar
de idoso) faz parte do cotidiano doméstico. (TRT2. Processo Nº RO-1002342-64.2016.5.02.0053
Relatora: Bianca Bastos).
36
TRT-11 - RO: 00007333320175110003, Relator: Jose Dantas de Goes, Data de Julgamento:
13/12/2018, 3ª Turma, Data de Publicação: 18/12/2018)
147
que, ao tratar de um pedido relativo a férias, fundamentou com base nos princípios da
igualdade e da não discriminação:
148
5.7 Por um direito do trabalho antidiscriminatório e decolonial
(...) concluímos que jamais haverá verdadeira emancipação das mulheres por
meio da positivação de direitos e da tutela estatal, por uma questão lógica de
que, estruturalmente, direito e Estados foram projetados para reproduzir um
valor masculino. (LEITE, 2020, p. 458).
149
O direito antidiscriminatório apresenta todo um aporte teórico plenamente
aplicável a direito do trabalho, uma vez que ele não constitui uma disciplina autônoma,
estanque, e sim um estudo que atravessa todos os “Direitos”.
Conforme registra Moreira (2017), há muitos normas jurídicas no país
vedando a discriminação, todavia tais normas utilizam uma linguagem que mostra o
manejo de uma concepção de discriminação intencional e arbitrária. Essas normas
regulam determinados comportamentos que de modo intencional iriam impedir o
exercício de algum direito.
Nesse sentido, Moreira (2020), afirma que legisladores e doutrinadores
entendem a discriminação basicamente em sua manifestação direta, mediante a imposição
a outro de um tratamento de desvantagem com base em um critério que a lei considera
inválido. Assim, faz-se necessário um avanço para detectar as assimetrias estruturais e o
papel do direito na reprodução de tais assimetrias.
A história das trabalhadoras domésticas é uma história de discriminação, que
tem suas bases em sistemas de dominação nos quais racismo, sexismo e desigualdades
se articulam. Essa história desafia o direito do trabalho, interpela seu caráter protetivo e
sua abrangência. Quando Sojouner Truth, mulher negra, proferiu seu célebre discurso em
1852, em Akron, Ohio, suscitou um questionamento que ressoa até hoje no movimento
feminista : “E eu não sou uma mulher?”:
“Olhem pra mim! Olhem para meu braço! [...] Eu lavrei e plantei e juntei os
grãos no celeiro e nenhum homem conseguia passar na minha frente – e eu não
sou uma mulher? Eu conseguia trabalhar tanto quanto qualquer homem
(quando conseguia trabalho), e aguentar o chocote também – e eu não sou uma
mulher? Pari cinco crianças e vi a maioria delas ser vendida para a escravidão,
e quando chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu – e eu não
sou uma mulher?”(HOOKS, 2019, p. 253)
150
se buscar um outro mundo, no qual elas possam redigir novos capítulos da luta por
redistribuição, reconhecimento e justiça social.
151
CONSIDERAÇÕES FINAIS
152
vieses que moldam a visão de grande parte dos juristas, os quais reproduzem a
naturalização das discriminações e as repassam às novas gerações de estudantes do
direito.
No que diz respeito ao nexo de continuidade entre trabalho escravo e serviço
doméstico, restou evidente o quanto a constituição da categoria de trabalhadoras
domésticas livres buscou preservar sistemas de dominação e mando. Se a classe
trabalhadora brasileira foi se formando em um contexto de tentativa de preservação de
estruturas coloniais, a classe de trabalhadoras domésticas, sempre um passo atrás, sentiu
ainda com mais força os efeitos de um processo de abolição que se deu unicamente no
interesse dos brancos.
O direito e as relações sociais são inseparáveis, e há uma retroalimentação
entre a discriminação jurídica e o sistema de exclusão social, apontando para tais
trabalhadoras lugares pré-determinados de exclusão e humilhação. Constatou-se, todavia,
que nunca houve uma total conformação a esse lugar, ao contrário do que prega o senso
comum. O acesso a fontes documentais revelou a apresentação de projetos de lei, que
jamais foram aprovados, e uma mobilização associativa e sindical que refletiu uma
intensa resistência, ante todas as dificuldades para a militância, impostas pela falta de
condições financeiras, pelo isolamento das trabalhadoras e pela falta de tempo para
participar das atividades políticas, sobretudo em épocas nas quais era grande o número
de residentes no trabalho. Foi identificada, também, uma resistência narrativa, que agora
conta histórias de empregadas domésticas, lhes confere o acesso a espaços de fala e
constrói novas representações, confrontando estereotípicos, imagens de controle e lhes
dando protagonismo.
Ao final, tornou-se necessária uma crítica ao próprio direito do trabalho, sem
fugir da ambiguidade e do desconforto de criticar um direito socialmente relevante, em
diversos aspectos uma grande conquista da classe trabalhadora, mas que por outro lado
possui uma estrutura de pensamento que naturaliza hierarquias e exclusões.
A conclusão da pesquisa é no sentido de que o direito precisa da
interdisciplinaridade para poder observar os institutos com uma visão mais abrangente.
Nesse sentido, ele precisa, também, conhecer e fazer uso de uma ferramenta analítica
muito eficiente, a interseccionalidade. A histórica discriminação das trabalhadoras
domésticas desponta como um desafio a esse direito, pois questiona seu caráter protetivo
e a real abrangência de suas disposições e princípios.
153
Há uma nova geração de juristas atenta a esses temas, produzindo trabalhos
científicos nesse sentido, divulgando por meio da publicação em livros, da discussão em
podcasts e em redes sociais. No que diz respeito ao trabalho doméstico, essa produção é
extremamente necessária. Espera-se que a presente pesquisa possa se juntar a tais
trabalhos, constituindo um material de estudo e reflexão para auxiliar na construção das
transformações que ainda estão por vir, rumo à plena igualdade da categoria.
154
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174
ANEXOS
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
175
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".
176
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
177
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
178
ANEXO B – Poema Outra nega Fulô, de Oliveira Silveira.
179
ANEXO C – Cópia do Acórdão extraído do Jornal do Commercio, 1930
180
181
ANEXO D: Cópia da pesquisa de 1963, sobre direitos das empregadas domésticas, com
vistas à aprovação de projeto para incluí-las como seguradas perante a Previdência Social.
182