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Seminário Internacional Desfazendo Gênero

14 a 16 de agosto de 2013, Natal (RN)

Grupo de Trabalho: GT 21 - (Trans) Posições De Sujeitos:


Atravessamentos, Intersecções E Desistências Das Identidades

FEMINISMO TRANS X FEMINISMO RADICAL: DESCONSTRUÇÃO E


PERFORMANCE EM CONFLITO NA GERAÇÃO PÓS-GÊNERO

Autoras:

Júlia Francisca Gomes Simões Moita. Universidade Federal de


Uberlância - UFU

Haline Santiago Thaumaturgo. Faculdades Integradas Hélio Alonso -


FACHA
Introdução

O movimento feminista vive, desde a segunda onda, uma tumultuada


relação com as atrizes sociais que poderiam se constituir como sujeitos das
práticas reclamadas por ele. Se em um primeiro momento parece fácil definir
"mulheres" como o sujeito por excelência da ação feminista, o desenrolar das
práticas de luta nos mostraram que a definição de tal categoria está longe de
ser um assunto acabado dentro do movimento.
Historicamente, as feministas de debateram diante da inclusão de
novas identidades e demandas à sua bandeira de luta. Assumir as causas
lésbicas, por exemplo, foi motivo de intensos debates e resistências ainda na
década de setenta (QUARTIM DE MORAES, 1990)1. A compreensão da
categoria "mulheres" como sujeito político universal é questionada pelas
lésbicas, que denunciaram a experiência da heterossexualidade como modelo
feminista. Outros sujeitos, como as mulheres negras, também questionaram o
etnocentrismo do movimento, já que a opressão das mulheres brancas é
tratada sem qualquer recorte relativo à etnia (DEBERT, 2005).
A partir da década de noventa, aparecem complicadores para esta
questão. Novas identidades resolvem reivindicar um lugar dentro do
movimento, o que se transforma numa imensa discussão interna para as
feministas e amplia o campo teórico das discussões de gênero.
Alguns eventos feministas são considerados fundamentais para a
compreensão dessa discussão. É o caso do 10º Encontros Feministas Latino-
Americanos e do Caribe, realizado no Brasil em 2005 (ADRIÃO e TONELI,
2008). No referido encontro, houve a reivindicação por parte das pessoas trans
de participarem efetivamente como sujeitos políticos no evento, o que causou
intensos debates formais e informais durante o encontro e culminou com a
realização de uma plenária final que decidiu pela participação das trans desde
então (ADRIÃO e TONELI, 2008).

1
A autora relata que nas reuniões da revista feminista Nós, Mulheres, fundada em 1976, já
havia fissuras entre as feministas com relação à temática lésbica (1990). Nos anos oitenta,
Moraes (1996) considera que dois eventos foram paradigmáticos em relação a esse assunto: o
Congresso Feminista de Valinhos, em 1980, e o 3º Congresso da Mulher Paulista, em 1981. A
partir daí, as lésbicas teriam começado a consolidar a participação delas dentro do movimento.
A resistência por parte das feministas pode ser entendida dentro de
um quadro teórico mais amplo. Há uma enorme discordância entre teóricas do
chamado feminismo radical e daquelas envolvidas com a teoria queer, muitas
vezes chamadas de transfeministas.
Os argumentos para a inclusão de travestis e mulheres trans podem
ser encontrados no documento que tais ativistas fizeram circular antes do
encontro e que ainda hoje podem ser utilizados no debate travado entre as
transfeministas e as feministas radicais.
O documento Por que queremos a abertura dos Encontros
Feministas às Pessoas Trans é composto de seis pontos que justificam a
inclusão desta demanda e, ao mesmo tempo, permitem uma reflexão acerca do
movimento feminista. O primeiro ponto do documento afirma que o feminismo é
um movimento social e, dessa forma, ser feminista dependeria de ações e
idéias e nunca de anatomia. O terceiro ponto nos lembra de que há homens,
pessoas trans e mulheres com visão feminista de mundo, não sendo
prerrogativa daquelas que possuem uma vagina.
O segundo ponto diz respeito às identidades. Se gênero é uma
construção e se as identidades são auto-definidas e políticas, alguém que se
define como mulher torna-se mulher, sem que ninguém possa dizer o contrário.
O quarto ponto retoma a questão da identidade, trazendo a reflexão de que
várias travestis e mulheres trans reforçam os estereótipos de gênero e muitas
outras os questionam (e o que o mesmo ocorre entre as cisgêneros).
Os últimos pontos do documento (5 e 6) abordam a necessidade de
espaços abertos à diversidade e de um feminismo mais plural.

Feminismo Radical, Transfeminismo e conceito de gênero

Para compreender o embate entre o feminismo radical e o


transfeminismo é preciso compreender as discordâncias que os movimentos
partilham em relação ao conceito de gênero. De acordo com Debbie Cameron
(2010), gênero, para as radfem2, é antes de tudo um sistema de relações de
poder estruturadas no modelo binário de homens e mulheres. Já para as
transfem, o aspecto mais relevante do conceito diz respeito à identidade social
atribuída às pessoas no momento do nascimento (também tomando como base
o modelo binário citado). A rigidez do sistema binário de gênero é a fonte de
toda a opressão, dizem as transfeministas. Por sua vez, para as feministas
radicais a subordinação de um gênero pelo outro é o centro da luta e o que
deve ser combatido. É importante ressaltar que as ativistas concordam que
gênero é um conceito que envolve poder e identidade, a diferença ficaria por
conta da ênfase que cada grupo concede a estes aspectos. Por fim, pontua

“Para as feministas radicais, o ideal número de gêneros seria...


Nenhum. (...) Da perspectiva (queer), o número ideal de gêneros
seria... Infinito?” (Cameron, 2010)

Um mundo sem distinções de gênero é um pilar da teoria feminista


desde que a segunda onda assume a reflexão acadêmica a respeito das
condições da mulher e da construção do feminino. Não é verdade que tais
teóricas seriam simplesmente essencialistas e apelariam para singularidades
biológicas da mulher. Pelo contrário, Simone de Beauvoir intuiu o conceito de
gênero mesmo sem tê-lo nomeado. Outras teóricas também acusadas de
essencialistas, na verdade, fizeram referência a questões reprodutivas para
tratar da opressão das mulheres, mas sempre dentro de um quadro que
considerava os caminhos culturais e os impactos sociais envolvidos. É dessa
perspectiva que Cameron insiste que a visão das radicais acerca de gênero é
genuinamente não-essencialista e conclama para que percebamos

2
O ativismo digital utiliza os termos radfem (feminista radical) e transfem (transfeministas).
“(...) o feminismo radical como uma tradição política que
produziu, entre outras coisas, um corpo de textos feministas que
vieram a ser considerados como clássicos..." (Cameron, 2010)

A ativista Joan Scanlon (2010) concorda que a imputação de


essencialismo é injusta com o feminismo radical. E tenta uma explicação para
isso. De acordo com ela, o essencialismo biológico tem sido usado comumente
em campanhas contra a violência doméstica, com o movimento feminista
insinuando que os homens seriam naturalmente violentos. Podemos afirmar
que a própria discussão do feminismo radical de combate ao patriarcado é, em
grande parte das vezes, bastante essencialista ao desenhar a cultura
masculina da violência.

De acordo com Andrea Nye (1995), a concepção de patriarcado já


seria um tanto essencialista para as feministas radicais. Entidade universal, ele
teria características naturalizadas em alguns discursos dessa corrente. Ela
explica que Susan Brownmiller e Andrea Dworkin, por exemplo, desenham de
forma determinista as relações entre homens e mulheres. Brownmiller coloca o
estupro como instrumento de poder do homem, ora historicizando a prática ora
atribuindo-a ao impulso sexual masculino. Dworkin vê na pornografia a
expressão da ideologia de dominação masculina e um elemento central para
consolidar a cultura da violência sexual

Como Brownmiller, Dworkin via a sexualidade masculina como


inerentemente violenta. Os homens são os matadores e as
mulheres os judeus nos campos de concentração nazistas,
socializadas na docilidade pela ideologia masculinizante.
(NYE, 1995)

As análises do patriarcado padecem de contradições internas: ao


mesmo tempo em que colocam a opressão sexual como historicamente
construída, recorrem à biologia sexual quando explicam esta opressão. Ao
rejeitarem as explicações essencialistas, as feministas radicais abrem caminho
para que o conceito de gênero seja desenvolvido dentro da teoria feminista,
mas não conseguem evitar tais explicações (principalmente quando discutem a
opressão). De maneira análoga, muitas vezes, acabam por essencializar as
experiências socioculturais. É o que acontece no caso da inclusão das
transgêneras nos espaços feministas. Há uma dificuldade genuína dentro dos
círculos feministas radicais de entendê-las como mulheres e a discussão passa
justamente por um aspecto que é determinista social. As mulheres trans foram
socializadas como homem e ninguém escaparia à socialização.

É o ponto abordado por Janice Raymond (1994), talvez a mais


notável feminista radical a abordar a questão da transexualidade3, ela
considera que o patriarcado não trata as mulheres que nasceram com um
pênis da mesma maneira que trata as "mulheres normais"4. A experiência trans
tem a ver com desejar ser/agir como mulher, o que seria uma experiência
própria da transexualidade e não do feminismo.

Gloria Steinem (1997), já na década de setenta, desconfia da


publicidade que os casos de transexuais recebem da grande mídia. Segundo
ela, desistir do papel de homem para se tornar mulher se torna um álibi para
que a grande imprensa insinue que viver como mulher, mais do que
satisfatório, é também desejável. Além disso, ela faz uma analogia entre as
trans e o livro Black Like me, que conta a história de um branco que escurece a
pele por algum tempo para vivenciar o preconceito. Steinem afirma que uma
trans recebeu treinamento físico e cultural masculino e a experiência de uma
vida não pode ser duplicada porque assim se quer, afirma. Afinada com Janice
Raymond, alega que as pessoas trans estariam excessivamente apegadas à
noção de papéis sexuais. Só em uma sociedade em que pequenas diferenças
anatômicas e genitais determinam o destino dos sujeitos faz sentido afirmar
que alguém, apesar do pênis, "pensa como mulher". A medicalização da

3
O livro The Transsexual Empire foi originalmente publicado em 1979 e até hoje serve de
referência às análises feministas radicais.
4
Aspas dela.
transexualidade emperra a libertação do individuo e proíbe que ele experimente
vivências diversas.

Mesmo se protegermos o direito de cada indivíduo bem


informado de chegar a esta decisão e de ser identificado da
forma que ele ou ela desejar, precisamos deixar claro que, a
longo prazo, esta não é uma das metas feministas. A questão
é que a sociedade se transforme a tal ponto que uma mulher
possa "jogar basquete" e que um homem não precise "ser o
mais forte". (STEINEM, 1997)

O movimento #RadFem

O embate entre feministas radicais e transfeministas já existe há


algum tempo nos EUA e vem ganhando força no Brasil, especialmente nas
redes sociais. Existem dois tipos de posicionamento das feministas radicais
com relação às transfeministas: aquelas que as ignoram como sujeitos políticos
na luta feminista e aquelas que, efetivamente, constroem discursos de repúdio
a aceitação das transexuais como feministas e assumem que certos
posicionamentos do grupo são, de fato, transfóbicos.
No início de 2013 seria realizada uma conferência das webfeministas
radicais, a #RadFem2013. Porém, o local aonde o evento iria acontecer, o
London Irish Center, cancelou a reserva, alegando não ter condições de manter
a segurança das participantes. O centro teria recebido ameaças de grupos
antifeministas. Após o cancelamento, as redes sociais foram invadidas por
ativistas e o debate deixou de ser entre feministas e antifeministas e se tornou
interno, ou seja, diferentes grupos feministas iniciaram uma “guerra virtual”5. O
evento acabou sendo realizado em junho de 2013.

5
A rede que se formou em torno da hashtag #RadFem2013, no Twitter, é difícil de
compreender e estudar. Alguns recortes são feitos neste trabalho, mas há possibilidade de
perceber que o webativismo que se desenrolou com o episódio traz novos desafios para o
O movimento #RadFem2013 trouxe visibilidade às ideias e
manifestos de um grupo que se coloca como uma vertente radical do
feminismo, baseado na segunda onda, que combate a pornografia, a
prostituição e etc. Através do twitter, a hashtag em questão provocou um
“racha” com as webativistas feministas que se posicionam a favor da inclusão
das transexuais, apoiando e divulgando textos transfeministas.
De acordo com as ativistas do Deep Green Resistance6, as mulheres
trans não podem alegar que perderam os privilégios masculinos, pois os efeitos
da socialização masculinas são imutáveis. Tentam, dessa forma, evitar
acusações de que seriam biologizantes e essencialistas. Se a transexualidade
é cada vez mais entendida pelo viés sociológico, é, também, sociologicamente
que a crítica das feministas radicais está sendo feita.
O relato de Transcultist, uma transexual e ativista que milita ao lado
das feministas radicais, em seu tumblr ilustra a impossibilidade das mulheres
trans lutarem nas fronteiras do feminismo de maneira igualitária:

Listar todos os modos pelos quais ser socializado como


homem afetou minha auto-imagem e conduta antes da minha
transição seria sem dúvidas impossível... Quando jovem, eu
era constantemente elogiada e estimulada a estudar, e eu
nunca tive inserida em mim a ideia de que eu era um objeto
decorativo cujo único propósito era agradar homens. Nunca fui
ensinada que o meu corpo não era meu ou que meus
pensamentos e sentimentos eram irrelevantes, e, por isso, eu
fui protegida dos traumas que frequentemente caracterizam as
experiências de mulheres durante a infância e adolescência.
No começo da adolescência até minha performance de
feminilidade era elogiada porque era supostamente mais
artisticamente executada que a das minhas amigas, que, em
inúmeras ocasiões, me disseram que eu as deixava inseguras
por ser “melhor em ser uma garota”do que elas eram. Por fim,

estudo dos movimentos sociais, uma vez que não há coesão entre as propostas e os membros
de determinada corrente se agrupam e rompem uns com os outros de maneira contínua.
6
Grupo ecofeminista internacional.
eu acabei desenvolvendo um estranho complexo de
superioridade: Eu me odiava, mas ainda me achava superior
que as garotas do meu círculo social porque eu aceitei a ideia
de que eu era mais inteligente e mais bonita que elas.
(TRANSCULTIST, 2013)

O movimento transfeminista, por sua vez, atua defendendo a


participação das transexuais e se defendendo dos ataques das feministas
radicais. Para tal, utiliza o termo “cisgênero”7 para designar pessoas cujo sexo
e gênero são alinhados (se identificam com as performances atribuídas aos
órgãos genitais do nascimento), exigem o uso do x nas palavras que possuem
designação de gênero e cobram inclusão das transexuais nas pautas
feministas.
O conflito das feministas radicais com as transexuais se dá a partir
do momento em que elas se colocam como sujeitos políticos na luta feminista e
não, exatamente, na aceitação de sua transexualidade. Assim como, no
passado, essa polêmica ocorreu com a inclusão das lésbicas. Ironicamente, as
principais opositoras à assimilação das pessoas trans pelo movimento
feminista são as militantes lésbicas. Sheila Jeffreys (2003) faz uma
contundente crítica à teoria queer a partir do ponto de vista lesbo-feminista.
Segundo a autora, a teoria queer levaria as diversas formas de masculinidade
à condição de identidades principais, as mulheres lésbicas ficariam com um
papel subalterno dentro dessa perspectiva, já que tudo que a cultura queer tem
a oferecer são estereótipos masculinos para elas.
O que seria uma mulher? E o que precisa para ser uma mulher
feminista? A falta de identidades estanques que se coloca através dos corpos
transexuais, formando o que Preciado chama de “multidões queer”, confunde
os movimentos tradicionais e desafia o processo identitário criado por eles.

Transfeminismo e o corpo transgênero

7
Não há um consenso sobre o uso da palavra, mas o webativismo feminista encampa a ideia
das transfeministas a fim de chamar a atenção para a estigmatização dos “tipos” transgêneros.
Além da inescapável socialização masculina, as feministas radicais
se incomodam com o fato de que as transexuais reforçam estereótipos
femininos, que elas combatem, para realizar suas performances. Para serem
reconhecidas como mulheres, as transexuais exacerbam características
consideradas femininas e estariam, segundo as feministas radicais, reforçando
valores e características que não deveriam ser associados como naturalmente
femininos. Ora, se por um lado as transexuais subvertem a ordem considerada
natural dos gêneros, por outro reforçam a divisão de gêneros através de suas
performances “radicalmente” femininas. Sandy Stone, em seu manifesto “The
Empire Strikes Back”8, diz:

Sex and gender are quite separate issues, but transsexuals


commonly blur the distinction by confusing the performative
character of gender with the physical "fact" of sex, referring to
their perceptions of their situation as being in the "wrong body"
(…) It may come as no surprise that all of the accounts I will
relate here are similar in their description of "woman" as male
fetish, as replicating a socially enforced role, or as constituted
by performative gender (STONE, 1995)

Sandy Stone é o que chamam de “insider” na militância transexual


por ser, de fato, uma transexual. Para o transfeminismo é de extrema
importância que os corpos transexuais sejam visíveis e militantes, quebrando a
cultura binária de gêneros e a idéia de “wrong body”. Isso inclui mulheres
“biológicas” que se tornaram homens transexuais, como o teórico queer Jack
Halberstam, que é diretor do Centro de Pesquisa Feminista da Universidade do
Sul da Califórnia e escreveu diversos ensaios importantes para a questão de
gênero. É importante, ainda, reconhecer que transexuais apenas não se
identificam com o gênero associado ao seu órgão genital e nem sempre isso se
dará de forma subversiva no sentido de quebra do binarismo, por isso o

8
Manifesto em resposta ao livro de Janice Raymon: “Transsexual Empire”.
excesso de caracterização feminina ou masculina na tentativa de ser
reconhecida (o).

Por que exigir das pessoas que vivem a experiência transexual


que sejam subversivas, quando também compartilham
sistemas simbólicos socialmente significativos para os
gêneros? Será que a própria experiência já não leva em si um
componente subversivo, na medida em que desnaturaliza a
identidade de gênero? (BENTO, 2002, p. 13).

A teoria queer tem foco na descentralização do sujeito e na idéia de


que “nem gênero e nem sexo são determinados biologicamente, ainda que se
definam em condições biológicas.” (BUTLER, 2003) Tanto o gênero quanto o
sexo seriam construídos no processo de socialização.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio


construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído
quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o
gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero
revela-se absolutamente nenhuma. (...) O gênero seria um
ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de
relações, cultural e historicamente convergentes. (BUTLER,
2003)

Porém, a questão que as RadFem trazem é justamente o fato da


socialização das mulheres ser necessariamente diferente das transexuais e,
portanto, ser mulher e ser trans seriam experiências diferentes. Emi Koyama,
ativista feminista e intersex lésbica, considera que, de fato, são experiências
diferentes e, ainda, que igualar mulheres transexuais operadas a qualquer
outra mulher seria apagar características específicas da identidade trans. Ela
defende que a transexualidade é uma forma de identidade que vai além das
noções tradicionais de gênero e, por isso, é vista como uma ameaça. No
entanto, considera que o argumento das RadFem quanto às experiências
diferentes das transexuais não as exclui ou não deveria excluir, já que as
outras mulheres também não podem constituir um grupo com experiências
iguais, privilégios e opressões, e esse pressuposto seria racista.

Speaking from the perspective and the tradition of lesbians of


color, most if not all rationales for excluding transsexual women
is not only transphobic, but also racist. To argue that
transsexual women should not enter the Land because their
experiences are different would have to assume that all other
women's experiences are the same, and this is a racist
assumption. Even the argument that transsexual women have
experienced some degree of male privilege should not bar them
from our communities once we realize that not all women are
equally privileged or oppressed. To suggest that the safety of
the Land would be compromised overlooks, perhaps
intentionally, ways in which women can act out violence and
discrimination against each other. Even the argument that "the
presence of a penis would trigger the women" is flawed
because it neglects the fact that white skin is just as much a
reminder of violence as a penis. The racist history of lesbian-
feminism has taught us that any white woman making these
excuses for one oppression have made and will make the same
excuse for other oppressions such as racism, classism, and
ableism (KOYAMA, 2006)

Segundo Butler, “pensar os corpos diferentemente é parte da luta


conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar relacionado
também a questões de sobrevivência” (BUTLER, 1996).
Preciado (2002) defende a idéia de corpos subversivos que não são
identificados pelos gêneros. Os corpos transgêneros seriam, então, uma
espécie de “pós-gênero”, inclassificáveis e impossíveis de serem entendidos
através da matriz heterossexual e binária. Transgênero seria aquele que
subverte reunindo elementos femininos e masculinos, incorporando isto ou
aquilo, “que embaralha a fronteira entre o natural e o artificial, entre o real e o
fictício.” (BENTO, 2006). E, a partir deste conceito, que rompe com as
identidades estanques, não haveria definição do que é uma mulher ou um
homem, mas um processo de identificação fluido.

(...) as operações de mudança de sexo nunca servirão para


que os corpos se re-inscrevam novamente na ordem de uma
coerência masculina ou feminina; consoante a isso, a contra-
sexualidade pretende ser uma tecnologia de produção dos
corpos não heterocentrados, onde serão estudados e
promovidos, pelas equipes de investigação, muitas
intervenções queer, como a exploração virtual das mudanças
de gênero e sexo graças aos corpos travestis, como cross-
dressing, internet-drag, identidade cyber etc.; a produção in-
vitro de um cyber-clitóris para ser implantado em diferentes
artes do corpo e a transformação dos diferentes órgãos do
corpo, não só o antebraço e a coxa, em dildos enxertos.
(PRECIADO, 2002)

O grande desafio queer é romper com os modelos e ao mesmo


tempo assegurar as especificidades de cada “tipo” transgênero sem fazer uso
das identidades estanques. O transfeminismo reivindica uma pauta de inclusão
sem que, para isso, precise se identificar com gêneros estanques, mas
compartilhar lutas semelhantes, através de corpos diferentes. Sobre a exclusão
das transexuais das pautas feministas, Koyama ressalta que o processo de
socialização masculina e seus possíveis privilégios não descredibilizam o
feminismo desses sujeitos políticos.

The fact that many transexual women have experienced some


form of male privilege is not a burden to their feminist
consciousness and credibility but an asset – that is, provided
they have the integrity and conscience to recognize and
confront this and other privileges they may have received
(KOYAMA, 2006).
O movimento transfeminista no Brasil é bem mais recente que nos
USA e vem se consolidando especialmente através das redes sociais. Apesar
de inúmeros alinhamentos com o movimento feminista tradicional, elas
possuem pautas específicas como a despatologização das identidades trans e
os privilégios das pessoas “cisgêneras”. No entanto, algumas correntes do
movimento LGBTT se colocam contra a despatologização, já que a mesma é
utilizada como estratégia para garantia de assistência médica à população
transgênera. Se por um lado, o diagnóstico de transtorno garante direitos, por
outro impede a concepção de corpos transgêneros livres de regulação. Uma
das idéias centrais do movimento feminista é a autonomia dos corpos.
Recentemente, o caso de Indianara Siqueira, uma das organizadoras
da Marcha das Vadias, ilustra bem a conexão das transexuais com o
feminismo. Indianara foi acusada de ultraje público ao pudor por permanecer
na rua com os seios expostos durante a marcha. Ao mesmo tempo em que o
Estado não a reconhece como mulher, a condenou como mulher e o caso
acabou tendo uma repercussão no sentido de questionar os direitos das
próprias mulheres. Por que seria atentado ao pudor?

Dia 13 de junho as 10h30, local Rua Humberto de Campos


315 /2° andar- Jecrim do Leblon,eu Indianara Siquei ra serei
julgada por Ultraje Público Ao Pudor.

Depois das “confusões” criadas na Marcha Das Vadias e criar


o protesto “Meu Peito, Minha Bandeira, Meu Direito” onde
algumas trans me seguiram, policiais ficaram atentos até
conseguirem me deter. Após receber voz de prisão por
desacato ao me negar a assinar o B.O e liberada após
pagamento de fiança feito por companheirxs Vadixs, recebi a
intimação do julgamento.

Independente do resultado do julgamento e mais que uma


pessoa ou um coletivo, o que estará sendo julgado é o gênero,
a imagem do feminino que não tem o mesmo direito que o
masculino. A justiça criará também um dilema.
Se me condenar estará reconhecendo legalmente que
socialmente eu sou mulher e o que vale é minha identidade de
gênero e não o sexo declarado em meus documentos e isso
então criará jurisprudência para todas xs pessoas trans serem
respeitadxs pela sua identidade de gênero e não pelo sexo
declarado ao nascer.

Se reconhecer que sou homem como consta nos documentos


estará me dando o direito de caminhar com os seios desnudos
em qualquer lugar público onde homens assim o façam, mas
também estará dizendo que homens e mulheres não são
iguais em direito. To be or no to be (Depoimento de Indianara
Siqueira no facebook, 20139)

As transexuais não só reivindicam serem aceitas como


transfeministas e reconhecidas pelo feminismo tradicional, como acreditam
poder contribuir para as pautas tradicionais do feminismo. A forma subversiva
com que seus corpos se apresentam pode ser mais uma estratégia para a luta
feminista.

Conclusões

O debate entre as feministas radicais e os teóricos queer ganhou


novos contornos com o webativismo. O intenso material produzido por ambos
os grupos colocam para a academia desafios inesperados. Os textos contém
reflexões teóricas, depoimentos e ativismo. Parecem incitar os leitores/as
(leitorxs?) a tomarem posição. A urgência do debate, nos blogs e tumblrs, se
torna dramática. É preciso perceber, em meio a discursos tão inflamados, quais
os pontos concordantes para que possamos, politicamente, construir
alternativas à estrutura opressiva em que os gêneros estão inseridos.

9
Disponível na página pessoal da autora e em http://iconoclastia.org/2013/06/10/indianara-
siqueira-a-trans-que-pode-mudar-a-lei-brasileira/ Acesso 02/08/2013.
Se Debbie Cameron tem razão e a meta do feminismo radical é a
erradicação dos gêneros enquanto que a teoria queer pretende vê-los
multiplicados, é hora de pensarmos nos efeitos de tais posturas. Talvez a
multiplicidade seja um tipo de erradicação. Ao nos confrontarmos com uma
infinitude de possibilidades estaremos mais perto do fim do sistema binário de
gêneros. Pois talvez seja ele, o sistema binário, que deva ser discutido.

Bibliografia

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privilege-as-experienced-by

RESUMO

O conflito entre a política de identidade criada pelos movimentos (feminista e


LGBTT) e a política de identificação que é proposta atualmente pelos estudos
de gênero, é o que pretendemos estudar neste artigo. Para tal, vamos analisar
dois movimentos webativistas que vêm ganhando visibilidade nas redes
sociais: Transfeminismo e Feminismo Radical (RADFEM).
Palavras-chave: Feminismo. Transfeminismo. RadFem. Webativismo.
Performance.

ABSTRACT

The conflict between identity politics created by the movements (the feminist
and the LGBTT ones) and the identification politics that is currently proposed by
the gender studies, is what we intend to study in this article. To this end, we will
analyze two web-activism movements that have been gaining visibility in social
networks: Transfeminism and Radical Feminism (RADFEM).

Keywords: Feminism. Trans-Feminism. RadFem. Web-Activism. Performance.

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