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O PRESÉPIO SERTANEJO

de Crispina dos Santos


Juraci Dórea

a Ensaio Fotográfico: Juraci Dórea


Certa feita, em conversa que foi
registrada pela professora Selma Soares, a
ceramista feirense Crispina dos Santos
confessou que em seus tempos de menina
“jogava o ABC fora, no mato, para ir pegar
no barro” e que chegava até a deixar “de
comer para fazer figuras”. À parte o
arrependimento da ceramista por não ter
aprendido a ler na época em que teve
oportunidade, o depoimento revela o seu
apego, desde cedo, a uma atividade que a
acompanharia praticamente por toda a
vida: a modelagem de pequenas figuras de
barro para o presépio. Hoje, com quase 80
anos de idade e com a saúde debilitada,
ela já não tem condições de trabalhar. Suas
peças, no entanto, podem ser encontradas
na Casa do Sertão, da Universidade
Estadual de Feira de Santana, e em mãos
de uns poucos colecionadores da cidade,
mas, pela fragilidade dos materiais com que
foram confeccionadas, tendem a desapa-
recer. Este ensaio fotográfico é o registro
de uma pequena parte da obra de Crispina
dos Santos e mostra trabalhos realizados
nas décadas de 80 e 90.
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Presépio sertanejo
A cerâmica representava, até poucas décadas atrás, cru destinavam-se, em princípio, aos presépios lo-
uma das mais significativas manifestações da cultu- cais, também conhecidos como lapinhas. Ou seja,
ra popular em Feira de Santana. Como em outras ao contrário de muitos lugares, não eram brinque-
regiões do Estado da Bahia, também na cidade em dos ou simples objetos de decoração, tinham a fina-
que se abrem as portas do sertão, ela assumia duas lidade de dar vida aos cenários criados pelo povo
expressões bem distintas. A primeira, de cunho uti- para evocar o sítio e as circunstâncias do nascimento
litário, era chamada de “louça de barro” e consistia de Jesus Cristo. Assim, em meio a inventivas
em utensílios para uso doméstico, como potes, ambientações – que incluíam musgos, galhos de
panelas, porrões, pratos, frigideiras, tachos, sapateira, gravatás, casario recortado em cartolina,
cuscuzeiros, alguidares, caburés, fogareiros etc. areia, pedras, búzios, montanhas elaboradas com
Esse tipo de cerâmica, no caso específico de Fei- papel pintado, lagos feitos com espelho etc. –, as
ra de Santana, apresentava feição rústica e decoração figuras de barro assumiam papel fundamental, quer
extremamente simplificada. Produzida na zona ru- enriquecendo plasticamente a cena, quer compondo
ral por oleiras que utilizavam procedimentos técni- a iconografia da Natividade, quer estabelecendo a
cos rudimentares e um barro muito poroso, mos- mediação entre o relato bíblico e o imaginário po-
trava, em geral, pouca resistência. Ainda assim, cos- pular sertanejo.
tumava fazer parte do cotidiano dos lares feirenses, Sabe-se que a tradição dos presépios chegou ao
sendo procurada por pessoas de todas as camadas Brasil via colonização portuguesa, incorporando-se
sociais. Até hoje reconhece-se que certos pratos tra- definitivamente à cultura nacional a partir do século
dicionais da culinária baiana – moquecas e feijoadas, XVIII. No princípio, os presépios eram ligados ape-
por exemplo – têm sabor especial quando prepara- nas à Igreja. Com o tempo, entretanto, populariza-
dos em vasilhame de barro. ram-se, tornando-se um costume que alcançou as
O consumo da louça de barro chegou a ser tão residências, independentemente da classe social. Nes-
difundido entre a população que na antiga feira livre se sentido, explica a professora Vânia Bezerra de
– que às segundas-feiras ocupava quase todo o cen- Carvalho, a evolução dos presépios assumiu direcio-
tro da cidade – havia um local denominado de “fei- namento duplo: “os das igrejas, que, feitos por ar-
ra das panelas”, onde podiam ser encontrados co- tistas, acompanharam a evolução dos períodos ar-
merciantes dos mais diversos tipos de utensílios tísticos – dita arte erudita – e os que, se introduzin-
cerâmicos e, principalmente, as louceiras da região. do nos lares, passam a serem feitos ao gosto dos
A outra faceta relevante da cerâmica feirense era leigos. Observamos, deste modo, diferentes linhas
representada pelas figuras para presépios. Confecci- de tratamento das imagens e cenários nas represen-
onadas apenas no período que precedia o Natal, tações do presépio, ao longo da sua trajetória.” (Car-
essas pequenas e expressivas peças feitas de barro valho, 1990, p. 6)

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Em outras palavras, o desenvolvimento dos pre- tempo das grandes “fazedeiras de figuras” de Feira
sépios em mais de uma direção, entre outros aspec- de Santana, comenta:
tos, estimulou o surgimento de novas interpreta- “Muitas faziam apenas para o próprio presé-
ções dos componentes típicos da cena da Nativida- pio. Outras acumulavam durante meses em um
de, fazendo-os assumir facetas e expressões varia- quarto, na sala, embaixo da cama e, quando esta-
das, segundo o lugar e o contexto cultural em que vam bem sequinhas, pintavam de alvaiade e anilina
estavam inseridos. de todas as cores e na feira do Natal lá estavam elas
Em Feira de Santana, o costume de armar presé- no passeio do mercado vendendo-as por 500 réis.”
pio perde-se no tempo, mas, nas versões de que se (Bastos, 1977, p. 6)
tem notícia, há constantes alusões à presença das A comercialização das figuras, inicialmente, acon-
figuras de barro. Na década de 50, por exemplo, o tecia dentro do próprio Mercado Municipal, sem-
estudioso Carlos José da Costa Pereira, pesquisando pre no período do Natal. Depois, passou a ser feita
a cerâmica popular realizada na Bahia, registrou na na área externa, no passeio que dá para a praça João
cidade o costume de modelar figuras para o presé- Pedreira. No interior do mercado, as “fazedeiras de
pio. Chamando a atenção para a diversidade temática figuras” arrumavam em linha suas bancas improvi-
de tais figuras, escrevia ele: “temos as peças de Feira sadas, dotando o velho estabelecimento, abarrota-
de Santana, modeladas em barro cru e pintadas com do de sacos de farinha, feijão, milho e de toda sorte
anilina ordinária, descorando-se facilmente. Diver- de produtos regionais, de um colorido todo parti-
sos são os temas explorados – velha fumando ca- cular. E não eram poucas as “fazedeiras de figuras”
chimbo (com a cabeleira de algodão); casal de noi- de Feira de Santana. Com uma ponta de nostalgia,
vos, com vestes de papel crepom, ela com véu de é ainda Lucílio Bastos quem evoca os muitos no-
filó; homem na canoa, casal na praia, jegue com pi- mes: “a minha cabeça ficou povoada de lembran-
pas d’água, galos, bois, cavalos... – sendo que, de ças. Desfilaram uma após outra, Crispina, Caíta,
vez em quando, surgem peças com aplicações de Eulina, Judite, Narcisa, Maria de Ostílio, Antídia,
purpurina.” (Pereira, 1957, p. 119-120) todas fazendo cavalos, bois, homens, mulheres,
Cumpre considerar que a modelagem dessas fi- reis, aves, um mundo de coisas moldadas na argila
guras – seguindo uma tradição já existente na pro- visguenta da pedreira de Dona Pomba, ou de terras
dução da cerâmica utilitária local – era uma atividade lá do DNER, quando a Rio-Bahia ainda não co-
predominantemente feminina. Envolvendo, em nhecia o asfalto. D. Gininha quando estava de
geral, as camadas mais pobres da população, o ato boa maré, também fazia. (Bastos, 1977, p. 6)
de fazer figuras representava para muitas mulheres, No universo acima referido, um nome sempre
no período das festas natalinas, a possibilidade de se destacou entre os demais, não apenas por estar
complemento do sempre apertado orçamento do- associado a uma longa e persistente labuta com o
méstico. O jornalista Lucílio Bastos, que alcançou o barro, mas, sobretudo, pelo caráter inventivo e sin-

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gular de suas figuras: o da ceramista Crispina dos pelas figuras de barro. Apesar das dificuldades, con-
Santos. Nascida num povoado denominado de seguiu estabelecer, ao longo de quase toda a sua
Camondongo, nas proximidades de Humildes, dis- vida, uma rotina que lhe permitia, no período que
trito de Feira da Santana, em 25 de outubro de 19271 , antecedia ao Natal, dedicar-se de corpo e alma à mo-
ela passou a infância na zona rural, onde aprendeu delagem das figuras para presépios.
com sua mãe, Lúcia dos Santos, uma das muitas Algumas das figuras criadas pela ceramista
louceiras do município, a lidar com o barro. feirense, naturalmente, nasceram de suas vivências
Em entrevista gravada pelo professor rurais. Outras surgiram da observação do ambiente
Raymundo Luiz Lopes, na década de 80, ela explica: urbano de Feira de Santana, numa fase em que a
“Com idade de 8 a 9 anos2 eu comecei a aprender, cidade tinha feições e costumes bem diferentes dos
mãe fazia louça, eu fazia um bocado de caburé, mãe de hoje em dia. Ainda estão vivos, na memória de
fazia, eu fazia tombém, depois mãe fazia figura, eu Crispina dos Santos, os motivos que a inspiravam
tombém fazia figura”. (Santos, 1982, p. 89) e, também, a maneira como ela foi incorporando ao
Algumas louceiras, é verdade, na época do Na- seu repertório criativo o mundo que a cercava. Diz
tal, além das peças utilitárias, costumavam confecci- que ao chegar em Feira de Santana já sabia fazer figu-
onar as figuras destinadas aos presépios. Desse am- ras, e acrescenta: “mas eu num fazia todos passo
biente teria nascido o contato da pequena Crispina que tô fazeno hoje. Eu aprendi mais olhando as-
com a cerâmica e, em especial, com as figuras de sim, quando eu via no pasto um bocado de vaca
barro. Com a morte de sua mãe, entretanto, ela foi parida, eu gravava, chegava em casa pegava um bolo
forçada a mudar-se para a cidade de Feira de Santana, de barro e fazia igual, via um carneiro, via um cavalo,
perdendo, ainda adolescente, os vínculos com as via um bode, eu fazia igual, via uma cachorra parida,
atividades e com o mundo de sua infância. A vida eu olhava, gravava e fazia. Eu tinha vontade, gosta-
urbana não lhe permitiu, obviamente, dar segui- va de olhar pra poder fazer as figura. (Santos, 1982,
mento ao ofício de louceira, porém não conseguiu p. 89)
apagar de todo suas vivências no esquecido povoa- Essa vontade de apreender os elementos do co-
do de Camondongo. Prova disso é que, logo em tidiano remete ao processo de criação da ceramista,
seguida, ela descobriria que também em Feira de porém, mais do que isso, contribui para dar às suas
Santana havia espaço, na época do Natal, para a mo- figuras um ar de vida e graça, distanciando-as do
delagem de figuras de barro. A partir daí, Crispina aspecto repetitivo que normalmente baliza o traba-
dos Santos nunca mais parou de fazer figura. lho artesanal. Não é difícil perceber que ela chegou a
Não se deve pensar, no entanto, que a trajetória um estilo muito particular, distinto do praticado
da ceramista desenvolveu-se com facilidade, pois pelas demais “fazedeiras de figuras” feirenses, e que
inúmeros foram os percalços de ordem doméstica suas peças alcançaram um nível expressional com-
que ela teve de superar para manter a sua paixão parável ao dos grandes ceramistas brasileiros.

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O elemento norteador de todo o trabalho de das nas Escrituras, ora na tradição oral, definindo os
Crispina dos Santos era, sem dúvida, o presépio, elementos essenciais do presépio. Assim é que, ao
mas isso estava longe de ser, tanto na forma quanto cabo de certo tempo, certas presenças tornaram-se
nos significados, uma limitação. Primeiro, pela vi- obrigatórias nos cenários concebidos para evocar a
são pessoal que a ceramista tinha a respeito do as- chegada do Messias, entre elas: o Menino, o boi, o
sunto; segundo, porque o presépio concebido por burro, os anjos, os pastores, Maria, José, os reis
ela estava visivelmente atrelado ao imaginário serta- magos, a estrela e a gruta ou manjedoura.
nejo. Ou seja, acrescentava ao episódio de Belém Inicialmente esculpida ou pintada, a cena da Na-
também as cores, os personagens e os conteúdos tividade ainda passaria pela famosa encenação feita
regionais. por São Francisco de Assis, em 1223, na aldeia de
A iconografia católica que representa a Nativida- Greccio, antes de assumir, no século XVI, uma for-
de, convém lembrar, não surgiu da noite para o dia. ma mais próxima da concepção que se tem hoje do
Foi, aos poucos, sendo consolidada, firmando-se presépio, com figuras ou grupos de figuras isoladas
na tradição oral e nas manifestações artísticas, em e sofisticados cenários.
princípios da nossa era. A celebração do nascimento Dentre os elementos anteriormente relaciona-
do Menino Jesus pelos cristãos, a rigor, inicia-se em dos, integravam o presépio idealizado por Crispina
finais do século III, pois “é precisamente dessa dos Santos apenas o boi, o pastor, o anjo, os magos
altura que datam os primeiros testemunhos re- e o Menino. Cada uma dessas figuras, no entanto,
ferentes a peregrinos que se dirigiam ao local do era interpretada pela ceramista de um modo peculi-
nascimento de Cristo, a gruta de Belém.” ar, explicitando, por um lado, jeitos e conteúdos ser-
(Gockerell, 1998, p. 7) tanejos e, por outro, a sua maneira de lidar com o
A primeira representação artística da Natividade, sagrado. Note-se que no seu presépio não havia,
no entanto, segundo o estudioso Cláudio Pastro, além do Menino, outras figuras de santos. Ela nun-
foi realizada, no início do século IV, na tampa de ca se arriscou, por exemplo, a fazer as imagens de
um sarcófago. Trata-se de um baixo-relevo que se José ou da Virgem Maria – e mesmo o seu Menino
encontra no Museu das Termas, em Roma. Nessa era elaborado de forma estilizada e em escala reduzi-
imagem, observa Pastro, há uma árvore que “indica da. “Eu não gostava de fazer porque... santo, agente
a cabana, um pastor que medita apoiado a um bas- fazer... fazer Nosso Senhor de barro!... Aí eu dizia:
tão; um rústico cocho com folhas, no qual é coloca- não faço não, que é um pecado... eu tinha medo...”
do o menino envolto em faixas; e inclinados sobre (Santos, 2004), justificava-se. Igual sentimento di-
ele, as cabeças do burro e do boi.” (Pastro, 1993, p. ante do sagrado parecia ter também o famoso
224) ceramista brasileiro mestre Vitalino, que, segundo
A partir do século IV, surgiram outras represen- registro do estudioso René Ribeiro, “respeitava tan-
tações plásticas do nascimento de Jesus, ora apoia- to o sagrado que nunca modelou nenhum santo

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como boneco “ (Ribeiro, 1985, p. 74). Assim como oso da população, as boiadas atravessavam a cidade
a ceramista de Feira de Santana, mestre Vitalino em direção ao Campo do Gado. As baianas reme-
dissociava a criação de suas figuras da atividade dos tem à Festa de Santana e, em particular, aos antigos
santeiros, dizendo: “Isso fica para os imaginário”. desfiles da Lavagem da Igreja e da Levagem da Le-
(Ribeiro, 1985, p. 74) nha. Os anjos, sempre pintados de branco ou de
Em contrapartida, Crispina dos Santos enriquecia azul ultramar, evocam a indumentária das crianças
seu presépio com um mundo de coisas e seres ins- na tradicional procissão de Senhora Santana. Há ain-
pirados no cotidiano sertanejo. Disso resulta um da o burrinho d’água, lembrança dos aguadeiros e
repertório diversificado, cheio de poesia e imagina- do tempo em que Feira de Santana não contava ain-
ção, que pode ser reunido em cinco núcleos temáticos. da com água tratada. Finalmente, as cenas de traba-
São eles: lho são retratos contundentes do nosso cotidiano
rural.
1. Animais: boi, onça, pavão, galo, cobra, galinha, Toda a preparação do material para a confecção
cágado, coelho, carneiro, girafa, lagartixa, camaleão, das figuras, inclusive a escolha do barro, sempre foi
pato, jumento, tatu, cisne, veado etc. feita pela própria ceramista. Como as peças não iam
2. Formas humanas. Subdividido em: ao forno, era preciso ter cuidados especiais com o
- Cenas de trabalho: mulher carregando lenha, mulher tipo de barro utilizado, pois dele dependia a resis-
com pote na cabeça, mulher pilando milho, mu- tência das peças. Com a prática, ela passou a distin-
lher carregando cesta de frutas, mulher fazendo guir com facilidade um bom barro para fazer figu-
renda etc. ras, em geral uma argila de aspecto avermelhado,
- Tipos regionais: violeiro, vaqueiro, caboclo, velha fu- encontrada em vários pontos da cidade.
mando cachimbo, baiana etc. Nas vizinhanças dos lugares em que ela residiu
- Personagens bíblicos: Deus Menino, reis magos etc. em Feira de Santana, tanto no Calumbi como no
- Outros: marinheiro, padre, estudante etc. Tanque da Nação, era comum esse tipo de argila. No
3. Imagens míticas: sereia, anjo, Papai Noel. início, o barro vinha dos terrenos de D. Pomba,
4. Grupos de figuras: pastor, pombal, vaca parida, ca- hoje bairro da rua Nova; depois, começou a ser reti-
samento, galinha com pintos etc. rado do Horto, nas proximidades da rua da Aurora.
5. Registros urbanos: burrinho d’água. Com o crescimento da cidade e a conseqüente urba-
nização dessas áreas, a ceramista passou a utilizar
As figuras de Crispina dos Santos chamam a material proveniente do Centro de Abastecimento,
atenção pela expressividade, pelo colorido vistoso onde os cortes feitos no terreno para a implantação
e, também, pelo teor documental, vez que flagram da obra deixavam a argila exposta em vários pon-
os vários elementos identitários de Feira de Santana. tos.
O vaqueiro e o boi, por exemplo, estão profunda- O preparo do barro envolvia várias etapas. Pri-
mente enraizados no passado pastoril do municí- meiro, ele era pisado e, depois, molhado até adquirir
pio. Lembram uma época em que, sob o olhar curi- plasticidade. Em seguida, amassado, fase em que

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todas as impurezas deviam ser retiradas. Após esse pecialmente pelo uso do amarelo, do vermelho e do
processo, o barro estava pronto para o uso, trans- azul ultramar. Deve-se notar que Crispina dos San-
formando-se em pequenos bolos, que, recobertos tos nunca abandonou o uso dessas tintas, mas com
por um pano úmido, iam sendo pouco a pouco o tempo ampliou seu universo cromático, recorren-
utilizados. do às tintas industrializadas, utilizadas principalmen-
Modeladas sem a ajuda de instrumentos, as fi- te para realçar os detalhes.
guras de Crispina dos Santos revelam certa simplifi- A pintura sempre foi, sem dúvida, um pontos
cação formal. Nelas não se percebe, por exemplo, o marcantes das figuras criadas pela ceramista. Nesse
rigor com os detalhes e, muito menos, a manuten- sentido, chamam a atenção a sua preferência pelas as
ção das proporções verdadeiras dos objetos e seres cores vibrantes e o seu paciente labor ornamental.
que imitam. Ainda que baseadas na interpretação Percebia-se o cuidado com que “saía bordando” as
naturalista da realidade, revelam elementos figuras, como costumava dizer, trabalhando cada de-
abstratizantes, deformações e, até, de um certo grau talhe, complementando com as tintas e as cores os
de estilização. O tratamento decorativo muito ela- vazios deixado pela modelagem. Para dar mais
borado surge aqui como uma espécie de contraponto expressividade às peças, ela ainda costumava agregar
para essa tendência simplificadora, mas termina ao barro materiais como algodão, renda, pena de
enfatizando ainda mais o caráter metafórico das pe- galinha areia prateada, gravetos etc.
ças. Crispina dos Santos normalmente começava a
Outro aspecto: as figuras não eram queimadas. fazer figuras a partir do mês de setembro. Em prin-
Após a fase da modelagem, simplesmente ficavam cípios de dezembro quase todas as peças já estavam
dias e dias a secar à sombra, espalhando-se por to- prontas. Só então iniciava a fase da pintura. Às ve-
dos os cômodos da casa. Na concepção da ceramista, zes, uma data, em particular, determinava esse iní-
a queima tiraria a beleza das peças. “Se quiser quei- cio: 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Con-
mar alguma figura, bota a queima, mas não fica bo- ceição. A comercialização das figuras vinha em segui-
nita... porque se queimar não tem a vestimenta” da, nas proximidades do Natal, uma ou duas feiras
(Santos, 2004), diz ela. antes.
A “vestimenta” é na verdade a pintura, etapa No passado, isso ocorria no Mercado Municipal,
que ela iniciava após a secagem completa das peças. no centro da cidade. Com a mudança da feira livre,
Também nessa fase, a ceramista preparava seus ma- em 1977, e a conseqüente transformação do velho
teriais. Os pincéis, amarrando chumaços de algodão mercado em Mercado de Arte Popular (MAP), para-
em taliscas de madeira. As tintas, agregando cola a doxalmente as figuras passaram a ser vendidas no
pigmentos variados adquiridos no comércio de Fei- Centro de Abastecimento. Mesmo assim, não era
ra de Santana. No princípio, ela usava tabatinga e fácil para a ceramista encontrar um canto em que
alvaiade. Mais tarde, a tabatinga foi substituída pe- pudesse armar sua barraca, sem ser importunada
los tradicionais pigmentos Xadrez, o que contribuiu pelos fiscais. Nos últimos anos, ela havia deixado
para enfatizar ainda mais o colorido das figuras, es- também de ir ao Centro de Abastecimento e as pe-

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ças passaram a ser adquiridas apenas em sua residên- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cia, na rua Farmacêutico José Alves, 439, no bairro
do Tanque da Nação. BASTOS, Lucílio (1977). O presépio está morren-
Hoje, essa casa, que no período do Natal dava ao do! Feira Hoje, Feira de Santana, 08 jan.
Tanque da Nação um colorido especial, encontra-se CARVALHO, Vânia Bezerra (1990). Presépios na
fechada. Crispina do Santos está morando atualmen- Bahia. A Tarde Cultural, Salvador, 06 jan.
te com sua filha e recupera-se de uma cirurgia no FROTA, Lélia Coelho (1986). Mestre Vitalino. Reci-
ombro. Já faz alguns anos que ela deixou de fazer fe: FUNDAJ / Massangana.
figuras, mas ainda alimenta a esperança de, um dia, GOCKERELL, Nina (1998). Presépios; trad. Ruth
ainda voltar a trabalhar com o barro. Correia. Lisboa: Taschen.
Apesar de ter tentado passar sua experiência para PASTRO, Cláudio (1993). Arte sacra: o espaço sagrado
algumas crianças do bairro, ao que parece, ela não vai hoje. São Paulo: Loyola.
PEREIRA, Carlos José da Costa (1957). A cerâmica
deixar discípulos. É pena, pois isso significa que está
Popular da Bahia. Salvador: Progresso.
se apagando uma das mais fortes expressões cultu- RIBEIRO, René (1985). O estilo da cerâmica de
rais desta nossa desajeitada cidade sertaneja: as figu- Vitalino. In: GUERRA, Flávio (Coord.). Antolo-
ras de barro para presépios. gia de folclore e cultura popular nordestina. Recife: ASA.
Já que assim é, registre-se, ao menos, a relevância SANTOS, Crispina (1982). Crispina, artesã feirense.
da contribuição da ceramista para a arte de Feira de Sitientibus. Feira de Santana: UEFS, n. 1, jul./
Santana. Cite-se seu nome entre os grandes criado- dez. Entrevista concedida a Raymundo Luiz
res feirenses, uma vez que agora, como disse Lélia Lopes.
Coelho Frota, referindo-se ao mestre Vitalino, “es- SANTOS, Crispina (2004). Entrevista inédita con-
tão ultrapassados os obstáculos epistemológicos que cedida a Juraci Dórea. Feira de Santana. 26 mar.
consideravam inferior, à erudita, a arte do povo” (
Frota, 1986, p. 9). E mais: assim como a produção
do mestre de Caruaru, a arte de Crispina dos Santos
“tem autoria, padrões de gosto e fruição estética pró-
prios, equiparando-se às dos artistas da norma culta
Juraci Dórea é artista plástico e poe-
a sua força de representação simbólica e a sua inven- ta. Arquiteto diplomado pela Univer-
ção formal.” (Frota, 1986, p. 9) sidade Federal da Bahia e Especialista
em Desenho, Registro e Memória Vi-
 sual pela UEFS é mestrando do Pro-
grama de Pós-Graduação em Literatu-
ra e Diversidade Cultural da UEFS.
NOTAS Participou, a partir dos anos 60, de
numerosas exposições no Brasil e no
1 Não há certeza quanto ao ano do nascimento exterior, dentre as quais: 19ª Bienal
de Crispina dos Santos. 1927 é o que consta em Internacional de São Paulo (1987), 43ª
seus documentos, mas se trata de uma data aproxi- Bienal de Veneza (1988), 3ª Bienal de
mada, estabelecida por sua filha, Margarida Neuza Havana (1989), Pintura e Escultura do
Ribeiro Machado, para efeito de registro civil, com Nordeste do Brasil, Lisboa (1996) e
base em certos acontecimentos da vida da ceramista. Projeto Terra, Université Paris 8,
2 Trata-se também aqui de idade aproximada. Vincennes Saint-Denis (1999). Publi-
Considerando-se a tradição rural, em que as crianças cou: Eurico Alves, poeta baiano (1978),
começam a trabalhar muito cedo, a ceramista prova- O cavalo sépia (1979) e Terra (1985).
velmente iniciou o seu contato com o barro antes
dos 8 ou 9 anos.

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DÓREA, Juraci.
O presépio sertanejo
de Crispina dos Santos.
Légua & meia:
Revista de literatura
e diversidade cultural.
Feira de Santana: UEFS,
v. 3, nº 2, 2004,
p. 101-114.

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