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Vitor Henrique Zanata de Barros Sanches – Nº USP 9337919

História da África
Prof. Dra. Marina de Mello de Souza
Vespertino

Questão 1:

Submeter pessoas à situação de cativeiro, no âmbito do continente africano, não foi uma
novidade introduzida pelos europeus. Já existiam, dentro das próprias comunidades africanas, múltiplas
formas sociais de cativo. Elas eram variadas, e se disseminavam por todo o continente, muito antes da
chegada dos primeiros europeus à África Negra.
Primeiramente, por razão de esclarecimento, mostra-se necessário diferenciar conceitualmente o
que são, no âmbito dos estudos historiográficos, escravo e cativo. O conceito de escravo diz respeito a
alguém que teve a sua liberdade eliminada, e foi reduzido à propriedade de outrem, podendo ser
comercializado ou disposto da forma que seu dono bem entender, seja esse uma pessoa ou uma
instituição. As formas de cativo na sociedade africana, entretanto, são variadas, obedecendo diferentes
lógicas, de forma que referir-se a todos como escravos seria um erro conceitual.
O panorama do aprisionamento das pessoas, todavia, seguia linhas comuns. De forma geral,
havia dois principais meios de aprisionamento: 1) prisioneiros de conflitos militares; 2) cativos por
dívidas. Observa-se, assim, que o fenômeno do aprisionamento humano na sociedade africana segue
formas muito semelhantes às de outras sociedades; como a romana, por exemplo. A diferenciação,
entretanto, se dá na forma as relações sociais com o cativo se configuravam. Na África, os cativos não
eram capturados unicamente para que trabalhassem. Um cativo poderia começar a viver no meio dos
seus capturadores, servindo como uma espécie de troféu pela vitória militar, e, embora tivesse o seu
status social rebaixado, ele não tinha, necessariamente, o seu trabalho explorado. Inclusive, se
eventualmente esse cativo tivesse um filho, o mesmo não carregaria a condição social de seu pai.
Havia, além disso, uma preferência de sexo: a maioria dos cativos eram mulheres, já que os homens,
em geral, morriam na guerra. Elas podiam praticar atividades regulares dentro da sociedade de seus
dominadores, gerando filhos e participando da subsistência.1
Tal lógica de dominação, entretanto, sofre mudanças bruscas com a chegada dos europeus. O
contato das comunidades africanas com a demanda europeia por escravos, que era representada pela
presença de comerciantes ao longo da costa, fez com que cativos, que anteriormente eram ou mortos ou
1 HENRIQUES, I. C. “Reflexões sobre o “escravo” africano”, In: O pássaro do mel, 2003. p. 59-60.
integrados à sociedade de seus conquistadores, começassem a ser vendidos. Mesmo que a obtenção de
cativos no interior das sociedades africanas, pelo menos a princípio, continuasse dando-se do mesmo
modo, a presença dos europeus faz com que aparecesse nessas sociedades a figura do cativo como
mercadoria. Não tardou, portanto, para que o mercado de viventes influenciasse as dinâmicas internas
dessas sociedades, que passaram a fazer a guerra não só por motivações internas, mas para gerar
cativos e inserirem-se na economia e na dinâmica de poder atlântica.
O comércio de cativos ocorreu em várias regiões do continente africano. Formaram-se postos
fortificados europeus em proximidade a comunidades africanas que já haviam organizado o tráfico
internamente. Destacam-se a chamada costa dos escravos, na região do atual Benin, onde ficava o porto
de Ajudá; a região do Congo por um determinado momento; a praça portuguesa de Luanda, que obtinha
o monopólio dos escravizados da região de Angola e do planalto de Benguela; e, por último, o
Moçambique passa a ser uma região fundamental para o tráfico negreiro. Fora desses grandes centros,
todavia, o comércio também se observa, ocorrendo de forma descentralizadas e, por vezes, de maneira
ilegal. Para a obtenção de cativos, os europeus dispunham de mercadorias muito valiosas para os chefes
africanas, que vinham de todas as partes do mundo, como armas de fogo, pólvora, tecidos asiáticos etc.
No caso português, eles traziam produtos têxteis de Goa, na Índia, aguardente, tabaco e ouro, do Brasil,
e outras mercadorias que provinham dos quatro cantos do vasto Império marítimo lusitano.
O desenvolvimento do comércio atlântico fez com que lideres africanos, a partir do século XVI,
construíssem verdadeiros impérios territoriais e comerciais. Tal panorama fez com que o comércio de
cativos se tornasse progressivamente centralizado, com a construção de monopólios africanos. O poder
sobre a negociação, dessa forma, pendia sempre para o lado africano. Se havia competição, ela se dava
entre os europeus. Os portugueses, por exemplo, conseguiam melhores preços em Luanda, onde
também obtinham o monopólio. Entretanto, em outros lugares, como no Golfo da Guiné, havia
competição com mercadores de outras potências europeias. Lá, ao contrário de Luanda, onde os
portugueses negociavam cativos por produtos de menor valor, era necessário que eles dispusessem de
tabaco e de ouro para negociar.2
Sendo assim, com o passar do tempo, e com o crescente contato com os europeus, as formas de
redução de pessoas ao cativeiro passaram por profundas mudanças nas sociedades africanas. Se o
cativo era, primeiro, uma decorrência das guerras; com a abertura do mercado de escravos, ele passa a
ser o motivo das mesmas. Tal panorama leva a um contexto de centralização politica, impulsionada
pelas tentativas de construir monopólios internos no fornecimento de humanos aos europeus. O
2 ACIOLI, G., MENZ, M. M. “Resgate e mercadorias: uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro de escravos
(Angola e Costa da Mina, século XVIII)”. In: Afro-Ásia, n. 37, 2017. p. 50.
comércio, além disso, levou à difusão de novos produtos nas sociedades africanas. Esses, ao longo do
tempo, criaram mercados internos e demanda, tornando o tráfico de escravos cada vez mais integrado à
estrutura dessas sociedades.

Questão 2:

A presença de cativos como item comercializável era uma característica de todas as regiões
africanos onde o comércio tivesse se desenvolvido minimamente. A princípio, destaca-se a agencia de
comerciantes muçulmanos, que, desde antes do contato entre europeus e a África negra, já haviam
desenvolvido redes de tráfico de escravos. Quando os europeus entram em cena, essas redes, que antes
se direcionavam ao Norte da África e ao Oceano Índico, se deslocam para aplacar as demandas do
comércio atlântico3.
Os diúlas, grupo mandinga que habita a região subsaariana, desenvolveram uma complexa rede
de trafico de escravos, que abarcava, em determinado momento, toda Costa do Ouro, Serra Leoa,
Libéria e a Costa do Marfim. A extensão dessas redes permitia que cativos do interior do continente
fossem comercializados na costa, e que produtos europeus, em contrapartida, também chegassem aos
confins da África. Onde, entretanto, não houve presença histórica muçulmana, o comércio de cativos
se desenvolveu mais tardiamente4, com a chegada dos europeus, e era coordenada por domínios
territoriais centralizados nas figuras de grandes líderes africanos, que tentavam regular o comércio5.
Os escravizados como mercadoria se tornaram, ao longo dos séculos, e com a crescente
consolidação do comércio atlântico, um item fundamental na estruturação da troca de diversos outros
produtos, como o mel, as armas de fogo, o marfim, o ouro e diversos tecidos 6. Devido a isso, a entrada
no tráfico de negros era algo cobiçado não só pelas potências que dispunham de colônias onde o
trabalho dos mesmos seria explorado, ela era, ao contrário, uma etapa necessária para a inserção de um
novo agente nas dinâmicas do comércio atlântico.
Ao sul da costa ocidental da África, com destaque para a praça forte de Luanda, os portugueses
detinham o monopólio do comércio dos escravizados. Ali se desenvolviam grandes redes de caravanas,
que traziam cativos de das regiões centrais de Lunda, Luba e Cazembe para o litoral 7. Mais ao norte, ao
contrário, tal comércio era disputado por potências europeias diversas, como os holandeses, os ingleses

3 LOVEJOY, Paul E. “A organização do tráfico de escravos 1600-1800”. In: A escravidão na África. 1983. p. 149.
4 Isso não significa afirmar, como foi mostrado na primeira questão, que não existissem cativos antes do contato com os
europeus. A mudança aí é a aparição do cativo como item do comércio.
5 LOVEJOY, Paul E. “A organização do tráfico de escravos 1600-1800”. In: A escravidão na África. 1983. p. 155.
6 Idem. 165-173.
7 Idem. 156.
e os franceses. Nesse caso, ao contrário do caso português, os europeus não podiam construir
fortificações e estruturas que os permitissem instalar-se a longo prazo: ali o contato deveria se dar
diretamente com os lideres locais, através de acomodações de curto prazo.
Por toda a extensão da Costa Ocidental do continente africano se observou, em maior ou menos
grau, processos de centralização politica entre os africanos e tentativas de controlar o comércio de
cativos. Alguns dos principais estados africanos que agiam nesse sentido eram o de Huedá, Aladá,
Daomé, Acuamu e Oió. A tentativa de controle, entretanto, esbarrava em diversas tentativas europeias
de construir redes paralelas, que os colocassem em contato direto com a fonte de cativos8.
Nas regiões mais ao sul da Costa Ocidental, o comércio de escravizados também se refletia na
presença de diversos produtos europeus, que, através das redes de caravanas, alcançavam os reinos e
tribos mais interioranos. Esses produtos chegavam lá através da ação dos lideres dos estados costeiros,
que controlavam de maneira muito eficaz essas trocas, desenvolvendo sistemas de crédito, além de
diversas taxas e impostos9.
Dessa forma, observamos a construção de uma complexa estrutura comercial, que, partindo da
demanda europeia por cativos, acaba por abarcar a troca de inúmeros outros itens, permitindo que eles
se locomovessem por imensas extensões para dentro do continente. A demanda europeia por
escravizados, também, foi responsável por reestruturar relações de cativeiro já existentes, além de
mudar a dinâmica de redes de tráfico de humanos já existentes anteriormente, deslocando o seu eixo
para a Costa atlântica.

Bibliografia:

ACIOLI, G., MENZ, M. M. “Resgate e mercadorias: uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro
de escravos (Angola e Costa da Mina, século XVIII)”. In: Afro-Ásia, n. 37, 2017.

HENRIQUES, I. C. “Reflexões sobre o “escravo” africano”, In: O pássaro do mel, 2003.

LOVEJOY, P. E. “A organização do tráfico de escravos 1600-1800”. In: A escravidão na África. 1983.

8 Idem. p. 158.
9 Ibid.

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