Você está na página 1de 9

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/305731542

«UM ALGO A PARTIR DO NADA» TRADUÇÃO DE UM EXCERTO DE SOBRE A


DOUTRINA DE SPINOZA, DE F. H. JACOBI

Research · August 2016

CITATIONS READS

0 46

1 author:

Fernando M. F. Silva
University of Lisbon
48 PUBLICATIONS   5 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Project MC-RISE “Kant in South America” (KANTINSA) View project

Experimentation and Dissidence View project

All content following this page was uploaded by Fernando M. F. Silva on 01 August 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


«UM ALGO A PARTIR DO NADA»
TRADUÇÃO DE UM EXCERTO DE SOBRE A DOUTRINA DE
SPINOZA, DE F. H. JACOBI

Fernando M. F. Silva

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Filosofia

Nota Prévia

O seguinte texto consiste num excerto extraído da obra Über die Lehre des Spinoza in
Briefen an den Herrn Moses Mendelssohn, de Friedrich Heinrich Jacobi; sobre o significado do
excerto na obra, ou sobre a própria obra como um todo, e o que ela contribuiria para uma nova
leitura de Spinoza (e Lessing) nos anos subsequentes, não é aqui a melhor ocasião para
discorrer. Direi apenas que esta é uma obra relevante não só no longo diálogo entre Jacobi e
Mendelssohn, e que viria a ser conhecido por «Pantheismus-Streit», mas também no papel que
assumiria na época do idealismo alemão, mais concretamente na leitura que dela e de Spinoza
fariam os jovens amigos de Tübingen, Hölderlin, Hegel e Schelling (o primeiro, em específico,
faria do excerto traduzido uma (quase) textual transcrição, num fragmento central intitulado «Zu
Jacobis Briefen über die Lehre des Spinoza», em 1790/91).
A edição utilizada para a tradução é a 1ª das três edições que o texto teria, de 1785, na
versão da Felix Meiner Verlag1. Por esta razão, resolvi cingir-me tanto quanto possível à
disposição e apresentação gerais do texto, respeitando o uso de itálicos e negritos tal como eles
são propostos na referida edição. As únicas interrupções ao fluir original do texto são os
parênteses rectos que inseri no corpo deste, contendo em itálico a palavra original, e que faço
incluir apenas quando esta expressão, no alemão, pode contribuir para uma melhor compreensão
da frase. As notas são quase invariavelmente do próprio Jacobi; apenas onde o designo enquanto
tal, mediante a marca «N. T.», a nota é da minha autoria. Por fim, as referências a outras obras
seguem na língua original.

Este pequeno esforço de tradução, dedico-o à Professora Luísa Ribeiro Ferreira, numa
humilde homenagem ao trabalho e estudo em torno da obra de Spinoza, e também ao seu
incessante esforço de divulgação do filósofo em língua portuguesa.

1
Jacobi, Friedrich Heinrich (2000), Über die Lehre des Spinoza in Briefen an den Herrn Moses
Mendelssohn, ed. Klaus Hammacher, Irmgard-Maria Piske, bearb. Marion Lauschke, Felix Meiner
Verlag, Hamburg, pp. 19-36.
Pempelfort bei Düsseldorf, 4 de Novembro de 1783

É seu desejo que, devido a certas opiniões que atribuí ao saudoso Lessing em carta a
*** ***, me explique com maior detalhe; e por isso, parece-me melhor dirigir-me directamente
a si, comunicando-lhe o que for capaz a este respeito.
Requer o assunto, ou pelo menos a sua exposição, que faça preceder algo sobre mim. E
enquanto assim a familiarizo comigo, ganharei mais coragem para lhe contar tudo livremente, e
talvez esquecer o que me possa preocupar ou inibir.
Ainda eu usava polaca, quando comecei a angustiar-me com coisas de um outro mundo.
Ao oitavo ou nono ano de vida, o meu pueril sentido profundo [Tiefsinn]2 levou-me a certas e
singulares – visões (não as sei designar de outra maneira) que desde então se me apegaram.
Com os anos, o desejo de alcançar a certeza sobre as melhores expectativas do homem cresceu,
e tornou-se o fio principal a que viria a associar-se o resto do meu destino. Uma índole inata e a
educação que me foi dada uniram-se para me confinarem a uma natural suspeição em relação a
mim próprio, e, por tempo demasiado, a uma tanto maior esperança no que os outros poderiam
alcançar. Vim para Genéva, onde conheci excelsos homens que me acolheram com amor
magnânimo, com verdadeiro zelo paternal. Mais tarde, encontrei outros homens ora de igual,
ora de ainda maior reputação, os quais, porém, estavam longe de a ter para mim, e em cujos
braços me lancei, amiúde em meu grande desfavor. Tudo isto me desiludiria gradualmente, a
ponto de criar alguma confiança em mim próprio; aprendi a reunir as minhas próprias forças, e a
procurar conselho nelas.
Espíritos que investigam a verdade por carência interior – desses, como sabe, há
poucos; mas a cada um deles, também a verdade revelou algo da sua vida interior, de tal
maneira que nenhum destes é tão insignificante que não o possamos ouvir com benefício. Eu
descobri este vestígio; persegui-o entre vivos e mortos, e quanto mais perseverava na procura,
mais intimamente constatava que o real sentido profundo [Tiefsinn] tem uma trajectória comum,
como a gravitação nos corpos; uma trajectória que, todavia, por partir de diferentes pontos da
periferia, resulta em tão poucas linhas paralelas quantas aquelas que se cruzam. Já com o
sentido agudo [Scharfsinn], o qual gostaria de comparar às cordas do círculo, e que é amiúde
tomado por sentido profundo apenas por ser profundo [tiefsinnig] com respeito à forma e ao
exterior, não acontece exactamente o mesmo. Aqui, as linhas entrecruzam-se tanto quanto se
queira, e por vezes, elas são até paralelas entre si. Uma corda pode correr tão perto do diâmetro,
que se pode tomá-la pelo próprio diâmetro; mas ela apenas atravessa uma grande quantidade de
raios, sem tocar as extremidades daqueles por que foi tomada. – Ora, onde ambos faltam: um
rude, pretenso saber sem agudeza [Schärfe] ou profundidade [Tiefe], sem carência e fruição da
própria verdade: o que pode haver mais desprezível?... Perdoai-me, venerandíssima, esta
cangalhada de imagens – chego agora a Lessing.

2
N. T. Jacobi estabelece neste parágrafo, e no seguinte, um diálogo entre as palavras «Tiefsinn» e
Scharfsinn», estendido a «Tiefsinnig», «Scharfe» ou «Tiefe»; «Tiefsinn» evocando o sentido de
pensamento profundo, profundidade, meditação, mas também de melancolia, e até de sagacidade e
subtileza, e «Scharfsinn» evocando o seu sentido próprio de sagacidade, perspicácia ou acuidade de
espírito. Porque aqui se trata originariamente de dois sentidos [Sinne] que pretendem representar duas
imagens geométricas diferentes, decidi optar por uma tradução mais literal dos mesmos, a saber, sentido
profundo [Tiefsinn] e profundidade [Tiefe], e sentido agudo [Scharfsinn] e agudeza [Schärfe]; mas a
tradução literal não só não deverá sonegar, como antes deverá enaltecer o referido horizonte semântico
das palavras.
Sempre venerara o grande homem; mas só a partir das suas disputas teológicas, e após
ler a Parábola, se agitou em mim o desejo de o conhecer melhor. O meu favorável destino fez
com que lhe interessassem os Allwills Papiere; que, a princípio, por intermédio de viajantes, me
enviasse cordiais mensagens, e que por fim, no ano de setenta e nove, me escrevesse. Respondi-
lhe que no início do ano seguinte faria uma viagem que me levaria por Wolfenbüttel, onde
ansiava por invocar nele os espíritos dos muitos sábios que não lograra trazer à fala sobre certas
coisas.
A minha viagem deu-se, e na tarde de cinco de Julho abracei Lessing pela primeira vez.
Ainda nesse dia, falámos sobre muitas coisas importantes; e também de pessoas, morais
e amorais, de ateus, deístas e cristãos.
Na manhã seguinte, Lessing veio ao meu quarto, ainda eu não terminara algumas cartas
que tinha de escrever. Ofereci-lhe várias coisas da minha pasta, para que entretanto ocupasse o
seu tempo com elas. Ao mas devolver, perguntou-me se não tinha algo mais que ele pudesse ler.
«Sim!» disse (estava prestes a lacrar), «aqui tem ainda um poema; – O Senhor já causou tantos
incómodos, bem poderá aceitar um, uma vez que seja.»3

Lessing. (Após ler o poema, e ao mo devolver) Não é incómodo nenhum; há muito que
o tenho em primeira mão. Eu. Conhece o poema? Lessing. O poema, nunca o li; mas acho-o
bom. Eu. No seu género, também o acho bom; de outro modo, não lho teria mostrado. Lessing.
Não me refiro a isso... O ponto de vista a partir da qual o poema é tomado: esse é o meu próprio
ponto de vista... Os conceitos ortodoxos da divindade não mais são para mim; já não consigo
disfrutar deles. Εν και παν! Não conheço mais nada. Daí parte também este poema; e tenho de
reconhecer que ele muito me apraz. Eu. Então, deve estar muito de acordo com Spinoza.
Lessing. Se tiver de responder por um nome, não conheço nenhum outro. Eu. Spinoza apraz-me
quanto baste: mas é uma fraca sorte, a que encontramos no seu nome! Lessing. Sim! Se assim o
acha!... E porém... Conhece algo melhor?
O director de Dessau, Wolke, entrara entretanto, e fomos juntos para a biblioteca.
Na manhã seguinte, quando, após o pequeno-almoço, voltara ao meu quarto para me
vestir, Lessing veio ter comigo um pouco depois. Eu sentei-me sob o toucador, e entretanto
Lessing instalou-se em silêncio no fundo do quarto, junto a uma mesa. Logo que nos
encontrámos a sós, e eu me sentara no outro lado da mesa onde Lessing estava apoiado, ele
começou: Vim para falar consigo sobre o meu Εν και παν. Ontem assustou-se. Eu. De facto
surpreendeu-me, e devo ter ruborizado e empalidecido, tal a confusão que senti. Não foi susto.
Mas, com efeito, não há nada que suposesse menos do que encontrar em si um spinozista ou um
panteísta. E disse-mo com tal desassombro! Acima de tudo, viera para obter de si auxílio contra
Spinoza. Lessing. Ah, então conhece-o? Eu. Creio ter conhecido poucos tão bem quanto o
conheço a ele. Lessing. Então não há nada a fazer por si. Melhor será que se torne amigo dele.
Não há nenhuma outra filosofia para além da filosofia de Spinoza. Eu. Poderá ser verdade. Pois
se quiser ser coerente, o determinista tem de se tornar um fatalista: depois, o resto dá-se
espontaneamente. Lessing. Vejo que nos entendemos. Tanto mais curioso estou em ouvir de si o
que entende pelo espírito do spinozismo; quer dizer, aquele que era manifesto no próprio
Spinoza. Eu. Esse não terá sido outro que não o primordial: a nihilo nihil fit, o qual Spinoza
tomou em consideração segundo conceitos mais abstractos do que os cabalistas filosofantes, e
outros antes dele. Segundo estes conceitos mais abstractos, ele constatou que mediante cada

3
Por boas razões, não posso apresentar aqui o poema, que se dirige com duras expressões contra toda a
providência. [N. T. O poema referido por Jacobi é «Prometheus»].
surgimento [Entstehen] no infinito, quaisquer que sejam as imagens de que o revistamos;
mediante cada alteração neste, um algo a partir do nada é posto. Por conseguinte, ele rejeitou
toda e qualquer transição do infinito para o finito; rigorosamente todas as causas transitorias,
secundarias ou remotas; e no lugar do Ensoph emanente, ele pôs um Ensoph apenas imanente;
uma causa ínsita, em si eternamente imutável do mundo, a qual, uma vez tomada em conjunto
com todas as suas consequências –, seria Uma e a mesma.
...4
Esta causa ínsita e infinita não tem, enquanto tal, explicite, nem entendimento nem
vontade; pois devido à sua unidade transcendental e à sua contínua e absoluta infinitude, ela
não pode ter nenhum objecto do pensar e do querer; e uma capacidade de produzir um conceito
antes do conceito, ou um conceito que existisse antes do seu objecto e fosse a causa completa
de si próprio, tal como uma vontade que gerasse o querer e se determinasse totalmente a si
própria, são coisas puramente absurdas…
A objecção segundo a qual uma série infinita de efeitos é impossível (os meros efeitos
não o são, pois a causa ínsita existe sempre e por todo o lado) refuta-se a si própria, pois toda a
série que não nasça do nada tem de ser simplesmente infinita. E porque todo o conceito
particular tem de nascer de um outro conceito particular, e de se referir directamente a um
objecto realmente presente, daqui se depreende também que na causa primeira, que é de
natureza infinita, não podem ser encontrados nem pensamentos particulares, nem determinações
particulares da vontade; – mas apenas a interior, a primeira e universal matéria primordial
destes… Tal como a primeira causa não pode agir segundo intenções ou causas finais, também
ela própria não pode existir devido a uma certa intenção ou causa final; e tal como ela não pode
ter um fundamento inicial ou um fim último para ordenar algo, tão-pouco pode haver nela
própria início ou fim… Mas no fundo, o que designamos por consequência ou duração é um
mero delírio; pois uma vez que o efeito real é igual à sua causa real completa, e apenas difere
dela segundo a representação, então a consequência e a duração apenas podem ser, à luz da
verdade, um certo modo de intuir o múltiplo no infinito.
Lessing. Não nos cindiremos, pois, a respeito do nosso credo. Eu. Nem o queremos, em
caso algum. Mas o meu credo não reside em Spinoza. Lessing. Quero acreditar que não reside
em nenhum livro. Eu. Não só isso. Eu creio numa causa intelectual e pessoal do mundo.
Lessing. Oh, tanto melhor! Então ser-me-á dado ouvir algo completamente novo. Eu. Não conte
muito com isso. Eu liberto-me da questão através de um salto mortale; e, por certo, estar de
cabeça para baixo não tende a proporcionar-lhe um especial prazer. Lessing. Não diga isso;
desde que não precise de o imitar. E estou certo de que voltará a aterrar nos seus pés. Ora: – se
não é nenhum segredo – então peço-lhe que mo mostre. Eu. Pode sempre aprender olhando para
mim. Toda a questão consiste no seguinte: a partir do fatalismo, eu concluo imediatamente
contra o fatalismo e tudo o que lhe está associado. – Se só existirem causas eficientes e
nenhumas causas finais, então a faculdade de pensar apenas tem um poder vigilante em toda a
natureza; a sua única tarefa é acompanhar o mecanismo das forças eficientes. A conversa que
agora estamos a ter é apenas uma incumbência dos nossos corpos; e todo o conteúdo desta
conversa é decomposto nos seus elementos: extensão, movimento, graus de velocidade, a par
dos conceitos destes, e os conceitos destes conceitos. No fundo, o inventor do relógio não o
inventou; ele apenas viu o surgimento deste a partir de forças que se desenvolvem cegamente. O

4
Prossigo a minha exposição, e condenso o que posso, sem registar interrupções, pois isso obrigar-me-ia
a ser demasiado pormenorizado. O que se segue, deu-se pois Lessing mencionou como o mais obscuro
em Spinoza aquilo que também Leibniz achara obscuro, e não entendera totalmente (Theod. § 173).
Esta ressalva, faço-a aqui de uma vez por todas, e não a voltarei a repetir sempre que tomar
semelhantes liberdades.
mesmo aconteceu com Rafael, quando esboçou a escola de Atenas; e com Lessing, quando
compôs o seu Nathan. O mesmo se aplica a todas as filosofias, artes, formas de governação,
guerras por água e por terra: em suma, a tudo o que é possível. Pois também os afectos e as
paixões não actuam [würken], na medida em que são sensações e pensamentos; ou antes: – na
medida em que transportam consigo sensações e pensamentos. Apenas cremos ter agido por
ira, amor, magnanimidade ou por decisão racional. Mero delírio! No fundo, o que nos move em
todos estes casos é um algo que nada sabe de tudo isto, e que, nessa medida, é simplesmente
despojado de sensação e de pensamento. Mas estes, a sensação e o pensamento, são apenas
conceitos de extensão, movimento, graus de velocidade, etc. – Ora, quem puder aceitar isto, não
saberei refutar a sua opinião. Mas quem não o puder aceitar, tem de se tornar no antípoda de
Spinoza. Lessing. Noto que gostaria de ter uma alma livre. Eu não desejo uma alma livre.
Sobretudo, o que acabou de dizer não me aterroriza de todo. É próprio do preconceito humano
que consideremos o pensamento como o primeiro e o mais eminente, e queiramos derivar tudo
dele; e isto, todavia, quando tudo – assim como as representações – dependem de princípios
superiores. Extensão, movimento, pensamento, são claramente fundados numa força superior
que está longe de se esgotar nestes. Ela tem de ser infinitamente mais insigne do que este ou
aquele efeito; e, por conseguinte, pode também haver uma espécie de fruição para ela, a qual
não só se eleva sobre todos os conceitos, como reside totalmente fora dos conceitos. Que não
possamos pensar nada disto, não suprime a sua possibilidade. Eu. O Senhor vai mais além do
que Spinoza; para ele, a intelecção [Einsicht] era superior a tudo. Lessing. Para os homens!
Mas ele estava longe de tomar o nosso miserável modo de agir por intenções pelo método
supremo, ou de colocar o pensamento num pedestal. Eu. A intelecção é, para Spinoza, a melhor
parte de todas as naturezas finitas, pois ela é aquela parte mediante a qual toda a natureza finita
vai para além da sua finitude. Em certa medida, poder-se-ia dizer: também ele atribuiu a cada
ser duas almas: uma que se refere apenas à coisa presente e particular; e uma outra que se refere
ao todo.5 A esta segunda alma, ele dá-lhe também imortalidade. Mas no que respeita à infinita
substância Única de Spinoza, esta não tem, por si só, e fora das coisas particulares, nenhuma
existência determinada ou completa. Se ela tivesse para a sua unidade (se assim me posso
exprimir) uma realidade própria, específica e individual; se ela tivesse personalidade e vida,
então também nela a intelecção seria a melhor parte. Lessing. Bom. Mas então, segundo que
espécie de representações toma o Senhor a sua divindade pessoal e extra-mundana? Talvez
segundo as representações de Leibniz? Temo que ele próprio fosse um Spinozista de todo o
coração. Eu. Está a falar a sério? Lessing. E o Senhor, a sério que duvida? – Os conceitos de
verdade de Leibniz foram de tal maneira criados [beschaffen], que ele não poderia tolerar que
lhes fossem impostos limites rmuito exíguos. A partir desta maneira de pensar fluíram muitas
das suas afirmações, e amiúde, até à maior sagacidade é muito difícil divisar a verdadeira
opinião deste. É justamente por isso que o tenho em tão grande estima; isto é, devido a esta
grande maneira de pensar; e não devido a esta ou aquela opinião que ele só parecia ter, ou então
terá tido realmente. Eu. Exactamente. Leibniz gostava de «fazer lume com qualquer seixo».
Mas o Senhor disse de uma certa opinião, a saber, o spinozismo, que Leibniz lhe era afecto de
todo o coração. Lessing. Recorda-se de uma passagem de Leibniz onde se diz de Deus: este
encontra-se em incessante expansão e contracção; e que isto seria a criação e a conservação do
mundo? Eu. Conheço as fulgurações de Leibniz, mas essa passagem é-me desconhecida.

5
Ainda que apenas por meio deste corpo, que não pode ser nenhum indivíduo absoluto (na medida em
que um indivíduo absoluto é tão impossível quanto um absoluto individual. Determinatio est negatio,
Op.Post., p. 558), antes tem de conter propriedades e qualidades universais e imutáveis, a natureza e o
conceito do infinito. Com esta distinção, tem-se uma das chaves principais para o sistema de Spinoza,
sem a qual apenas se encontra por todo o lado confusão e contradições.
Lessing. Vou procurá-la, e então me dirá o que um homem como Leibniz pôde – ou teve de –
pensar quando a disse. Eu. Mostre-me a passagem. Mas devo dizer-lhe que, apesar de recordar
tantas outras passagens deste mesmo Leibniz, tantas das suas cartas, ensaios, a sua Teodiceia e
os Nouveaux Essais, o seu curso filosófico em geral –, eu hesito perante a hipótese de que este
homem não tenha acreditado em nenhuma causa supra-mundana, mas tão-somente numa causa
intra-mundana do mundo. Lessing. Vistas as coisas por esse prisma, tenho de lhe dar razão. É
também ele que conservará a supremacia; e confesso que já falei de mais. Ainda assim, a
passagem a que me refiro – e ainda muitas outras – continuam a ser singulares. – Mas não
esqueçamos o problema! Afinal, segundo que representações funda a sua crença no anti-
spinozismo? Acha que os princípios de Leibniz lhe põem um termo? Eu. Como o poderia fazer,
se estou firmemente convicto de que o determinista coerente não difere do fatalista?... As
mónadas, a par dos seus vincula, deixam-me a extensão e o pensamento, a realidade em geral,
tão incompreensíveis quanto eu já os tinha; e então, não mais distingo a direita da esquerda… É
como se, para além disso, ainda me fossem tirar algo mais do bolso... De resto, não conheço
nenhum sistema doutrinal que concorde tanto com o spinozismo como o de Leibniz; e é difícil
dizer qual dos seus criadores se ludibriou mais, a nós e a si próprio; com todo o respeito, claro!
... Mendelssohn mostrou claramente que a harmonia præstabilita está em Spinoza. Só por isso,
já se depreende que Spinoza tem de conter muito mais dos ensinamentos fundamentais de
Leibniz; de outro modo, Leibniz e Spinoza (nos quais as lições de Wolff dificilmente dariam
frutos) não teriam sido os espíritos coerentes que indelevelmente foram. Atrevo-me a dizer que,
a partir de Spinoza, é possível expor toda a doutrina da alma de Leibniz… No fundo, ambos têm
a mesma doutrina da liberdade, e apenas uma ilusão distingue as teorias destes. Enquanto
Spinoza (Ep. LXII. Op. Post. pág. 584 f.) esclarece o nosso sentimento de liberdade mediante o
exemplo de uma pedra que pensasse e soubesse que aspira, tanto quanto possível, a prosseguir o
seu movimento, Leibniz esclarece o mesmo (Theod. § 50) com o exemplo de uma agulha
magnética à qual aprouvesse mover-se para Norte, e julgasse que girava independentemente de
outra causa, na medida em que não se apercebia do imperceptível movimento da matéria
magnética. –6 ... As causas finais, explica-as Leibniz mediante um appetitum, um conatum
immanentem (conscientia sui præditum). O mesmo faz Spinoza, que podia perfeitamente
admiti-las neste sentido, e para quem a representação do exterior e o apetite, tal como para
Leibniz, constituem a essência da alma. Em suma, se se penetrar até ao âmago da questão, vê-
se que em Leibniz, tal como em Spinoza, toda a causa final pressupõe uma eficiente... O
pensamento não é a fonte da substância, antes a substância é a fonte do pensamento. Por
conseguinte, algo não-pensante tem de ser assumido como primeiro, antes do pensamento; algo
que tem de ser pensado como primordial, se não na realidade, então segundo a representação, a
essência e a natureza interior. Por isso, foi com sobeja sinceridade que Leibniz designou as
almas por automates spirituels.7 Mas (e, tanto quanto o percebo, falo aqui segundo o sentido

6
Atque hæc humana illa libertas est, quam omnes habere jactant, & quæ in hoc solo consistit, quod
homines sui appetitus sunt conscii, & causarum, à quibus determinantur, ignari – diz Spinoza na mesma
63ª Carta.
A Spinoza de modo algum faltava o conceito daquela inflexão com que os deterministas pensam
evitar o fatalismo. Mas ela afigurava-se-lhe de um tão mau carácter filosófico, que até o arbitrium
indifferentiæ, ou a voluntas æquilibrii, lhe eram preferíveis. Veja-se, entre outros, na 1ª Parte da Ética, a
2ª Schol. da 33ª Prop., no fim. Para além disso, na 3ª Parte, a Schol. da 9ª Prop., e especialmente o
Prefácio à 4ª Parte.
7
A mesma designação está também em Spinoza; embora não na sua Ética, mas no fragmento De
intellectus emendatione. O passo merece que o transcreva. At ideam veram simplicem esse ostendimus,
aut ex simplicibus compositam, & quæ ostendit, quomodo, & cur aliquid sit, aut factum sit, & quòd ipsius
effectus objectivi in anima procedunt ad rationem formalitatis ipsius objecti; id, quod idem est, quod
mais profundo e completo de Leibniz) como pode o principium de todas as almas subsistir por
si próprio e actuar...; o espírito preceder a matéria; o pensamento preceder o objecto? Este
grande nó, que ele deveria ter desfeito para realmente nos socorrer, este grande nó deixou-o ele
tão intrincado como estava...
Lessing. ... Não o deixo em paz, o Senhor tem de clarificar esse paralelismo… E no
entanto, as pessoas continuam a falar de Spinoza como de um cão morto… Eu. Seja como for,
sempre falariam assim dele. Entender Spinoza, isso exige do espírito um esforço demasiado
longo e obstinado. E ninguém o entendeu a quem uma linha da Ética permaneceu obscura, ou
que não compreenda como este grande homem podia ter uma tão sólida e íntima convicção da
sua filosofia, quanto aquela que tão frequentemente e tão enfaticamente manifestava. Já no fim
dos seus dias, ele escreveu: … non praesumo, me optimam invenisse philosophiam; sed veram
me intelligere scio8. – Uma tão grande paz de espírito, um tal céu no entendimento como o que
esta cabeça lúcida e pura hauriu para si, poucos o poderão ter saboreado. Lessing. E não é o
Senhor spinozista, Jacobi! Eu. Não, pela minha honra! Lessing. Pela sua honra, e a sua
filosofia, então o Senhor tem de virar costas a toda a filosofia. Eu. Porquê virar costas a toda a
filosofia? Lessing. Bem, então o Senhor é um perfeito céptico. Eu. Bem pelo contrário; eu
subtraio-me de uma filosofia que torne necessário o perfeito cepticismo. Lessing. E subtrai-se…
para onde? Eu. Em direcção à luz, de que Spinoza diz iluminar-se a si própria e também à
escuridão. – Eu amo Spinoza pois, mais do que qualquer outro filósofo, ele conduziu-me à
perfeita convicção de que certas coisas não podem ser desenvolvidas; perante as quais, por
conseguinte, não podemos fechar os olhos, antes temos de as tomar tal como as encontramos.
Nenhum conceito me é mais íntimo do que o das causas finais; nenhuma convicção mais viva
do que aquela segundo a qual eu faço o que penso; em vez de apenas dever pensar o que faço.
Por certo, ao fazê-lo, tenho de assumir uma fonte do pensar e do agir que permaneça para mim
totalmente inexplicável. Mas se eu quiser simplesmente explicar, então tenho de incorrer na
segunda proposição, cuja aplicação a casos particulares, e uma vez considerada em todo o seu
alcance, é quase insuportável para um entendimento humano. Lessing. O Senhor exprime-se de
maneira quase tão audaz quanto a Dieta de Augsburg; mas eu permaneço um luterano honrado,
e atenho-me «ao erro e à blasfémia mais bestiais do que humanos, segundo os quais não existe
uma vontade livre»: um erro no seio do qual, todavia, também o espírito lúcido e puro do seu
Spinoza se sabia orientar. Eu. Também Spinoza não teve de se torcer pouco, a fim de ocultar o
seu fatalismo na aplicação à conduta humana, sobretudo nas suas 4ª e 5ª partes, onde se poderia
dizer que aqui e ali ele se avilta à condição de sofista. – E é justamente isto que afirmei: que até
o maior espírito, quando quer simplesmente explicar tudo, quando quer fazer concordar umas
coisas com as outras segundo conceitos distintos, e nada deixar valer que não isto, tem de se
deparar com coisas absurdas. Lessing. E quem não quer explicar? Eu. Quem não quer explicar
o que é incompreensível, mas apenas conhecer os limites de onde ele parte, e apenas saber que
ele existe: um tal homem, creio, ganha em si o máximo de espaço para a genuína verdade
humana. Lessing. Palavras, caro Jacobi, palavras! Os limites que quer estabelecer não podem
ser determinados. E por outro lado, está a oferecer campo aberto ao devaneio, ao absurdo e à
cegueira. Eu. Creio que esse limite deveria ser determinado. Não quero estabelecer nenhum,

veteres dixerunt, nempe veram scientiam procedere a causa ad effectus; nisi quod nunquam, quod sciam,
conceperunt, uti nos hic, animam secundum certas leges agentem, & quasi aliquod automa spirituale. (Op.
Post., p. 384) A derivação da palavra αύτοματον, e o que Bilfinger dela diz, não me é desconhecido.
8
Na sua carta a Albert Burgh. Ele acrescenta: «Quomodo autem id sciam, si roges, respondebo, eodem
modo, ac tu scis tres angulos Trianguli æquales esse duobus rectis, & hoc sufficere negabit nemo, cui
sanum est cerebrum, nec spiritus immundos somniat, qui nobis ideas falsas inspirant veris similes: est
enim verum index sui & falsi.» – Spinoza fazia uma grande diferença entre estar certo e não duvidar.
apenas encontrar o que já está estabelecido, e deixá-lo como está. E com respeito ao absurdo, ao
devaneio e à cegueira… Lessing. Esses estão em casa onde quer que imperem conceitos
confusos. Eu. Mais ainda, onde imperem conceitos fictícios. Até a mais cega, a mais absurda
crença, senão mesmo a mais obtusa, tem aí o seu nobre trono. Pois aquele que vier a apaixonar-
se por certas explicações, aceita cegamente toda a consequência extraída de uma conclusão que
não seja capaz de enfraquecer – e isto, nem que tenha de andar sobre a sua cabeça.
… A meu ver, o maior mérito do investigador é o de desvelar e revelar a existência. A
explicação é para ele meio, caminho em direcção ao objectivo, o mais imediato – mas nunca o
último fim. O seu último fim é o que não pode ser explicado: o irresolúvel, o imediato, o
simples.
… Um exagerado vício de explicar faz-nos procurar o comum com tal fervor, que
tendemos a descurar o diferente; queremos sempre associar, quando, amiúde, seria
incomparavelmente mais benéfico que separássemos. Para além disso, na medida em que
compomos [zusammen stellen] e conectamos [zusammen hängen] o que é explicável nas
coisas, surge também uma certa lucidez na alma, que a ofusca mais do que a ilumina. Então,
sacrificamos o que Spinoza – profunda e sublimemente – designa pelo conhecimento do género
supremo, em detrimento dos géneros inferiores; fechamos o olho da alma, com o qual ele se vê
a si própria e a Deus, a fim de ver tanto mais apuradamente apenas com os olhos do corpo.
Lessing. Bem, muito bem! Também eu posso usar tudo isso; mas não posso fazer o
mesmo com isso. Em geral, o seu salto mortale não me desagrada, e compreendo como um
homem de espírito pode recorrer a esta espécie de cabeça para baixo para avançar na questão.
Leve-me consigo, se for possível. Eu. Basta que queira posicionar-se no ponto elástico que me
impulsiona, e isto dá-se por si próprio. Lessing. Mas também isso requeriria um salto que não
posso exigir das minhas velhas pernas, ou da minha cabeça pesada.

View publication stats

Você também pode gostar