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Uma mãe-de-santo obrigada a destruir objetos de sua fé sob a mira de um revólver.

Frequentadores de
terreiro alvejados por pedradas. Locais de culto de crenças afro-brasileiras invadidos e depredados.
Protestos contra o uso de figuras de orixás no espaço público. Repúdio ao ensino do papel das religiões
de matriz africana na história do Brasil. A vinculação do samba ao “culto ao demônio”. São casos
ocorridos nos últimos 15 anos que mostram algumas das faces da intolerância religiosa no Brasil. De
acordo com dados da Secretaria dos Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Justiça, as denúncias de
intolerância religiosa aumentam a cada ano. A maior parte das vítimas é praticante de crenças de matriz
africana. No primeiro semestre de 2016, último dado disponível, o disque-denúncia do órgão computou
196 chamadas sobre casos de intolerância religiosa, mais que os 179 registrados no mesmo período em
2015. A região metropolitana do Rio de Janeiro registrou diversos ataques recentemente, em especial na
Baixada Fluminense. Apenas na cidade de Nova Iguaçu sete terreiros foram depredados nos últimos dois
meses. Um dos casos foi gravado em vídeo e viralizou. Nas imagens, a mãe-de-santo Carmem de Oxum
aparece destruindo estatuetas e objetos para não ser morta por um traficante que a ameaça de morte.
“Taca fogo em tudo, quebra tudo, que o sangue de Jesus tem poder”, afirma a voz do agressor. Em
outubro de 2017, o secretário de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos do Rio de Janeiro,
Átila Alexandre Nunes, apresentou um mapa da intolerância religiosa no estado. Nunes também anunciou
a criação de uma Comissão Mista de Apoio às Vítimas de Ataques a Templos Religiosos para acolher
vítimas e denúncias de perseguição por motivo religioso.

Link para matéria:  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/10/11/Como-a-intoler


%C3%A2ncia-religiosa-tem-se-manifestado-no-Brasil

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9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.

“Recebi a informação de que 18 terreiros foram invadidos em um mês em Nova Iguaçu. O estado não tem
essas denúncias, pois, as vítimas têm medo de registrar essas ocorrências”, disse o secretário ao Jornal
do Brasil. Em agosto, o secretário havia declarado que o estado também contaria com uma delegacia
policial especializada em crimes dessa natureza, a Decradi (Delegacia de Combate a Crimes Raciais e
Delitos de Intolerância). O que diz a lei brasileira A liberdade de crença é “inviolável”, de acordo com o
quinto artigo da Constituição. De acordo com a lei, é assegurado a todos os brasileiros o “livre exercício
de cultos religiosos e tendo garantida a proteção aos seus locais de culto e às suas liturgias”. Ainda
segundo a carta, o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem religião oficial nem deveria favorecer uma
religião em detrimento de outra. O artigo 208 do Código Penal trata dos crimes contra o “sentimento
religioso”, como zombar de alguém por motivo de crença religiosa, perturbar ou impedir culto e
desrespeitar ato ou objeto religioso. As penas previstas são multa ou detenção, de um mês a um ano. Se
há uso de violência no ato, a pena aumenta em um terço. Cabem ainda as penas específicas ao ato
violento. A Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, classifica como crime a prática de discriminação ou
preconceito contra religiões. “As pessoas estão preocupadas com a sobrevivência da sua religiosidade” O
Nexo conversou com o professor Vagner Gonçalves da Silva, antropólogo ligado à USP (Universidade de
São Paulo) que estuda religiões afro-brasileiras e casos de intolerância contra essas religiões. Estamos
presenciando um aumento da intolerância religiosa? VAGNER GONÇALVES DA SILVA  Em termos
estatísticos é difícil dizer, não temos censo ou pesquisa sobre isso. Mas, com base na experiência dos
pesquisadores e religiosos, eu diria que tem um aumento sim. Quais os indícios? Primeiro, o próprio
aumento das religiões evangélicas. Se elas têm como proposta o combate [a outras religiões], então
aumenta o sujeito desse combate. O ataque se dá sobretudo com as neopentecostais, faz parte de sua
ideologia religiosa. Não só nelas. Igrejas que antes eram menos belicosas acabam percebendo que esse
ataque tem um efeito proselitista, então também acabam adotando. Já as protestantes históricas
[metodista, batista etc] não têm esse tipo de ação. Elas têm uma visão negativa das religiões afro-
brasileiras, mas isso faz parte do campo religioso, em que cada um defende sua visão de mundo. Só que
elas não saem na rua jogando pedra ou depredando templos. Promover a guerra está mais restrito a
pentecostais ou neopentecostais. E por que pregar intolerância? O que está por trás de ataques desse
tipo? VAGNER GONÇALVES DA SILVA  No caso das pentecostais, faz parte da própria maneira como
veem o mundo, achando que ele está dividido em duas grandes categorias: o bem e o mal. O mal tem
que ser derrotado através de um incessante processo de guerra, que é chamado de batalha espiritual.
Quando começou há umas décadas, ainda estava no plano conceitual. Se você tinha problema com
bebida, eram feitas orações e rituais para tirar esse mal de você. De repente, esse demônio não é mais
virtual e vira real. E onde ele está visível? Nas religiões afro-brasileiras, nas entidades que baixam nas
pessoas. Você vai no terreiro e pode ver lá a entidade no corpo da pessoa. Isso é visto como prova de
que o demônio existe e está no mundo terreno e fazendo coisas. Nessas religiões afro-brasileiras têm
também algumas entidades, como exu e pomba-gira, que já tinham sido associadas ao demônio no
cristianismo. Mesmo que não sejam consideradas o mal absoluto dentro das crenças afro-brasileiras, e
sim relativas. Podem fazer o mal, mas sobretudo fazem o bem. E por que a intolerância é dirigida
principalmente às religiões afro-brasileiras? VAGNER GONÇALVES DA SILVA  Se olharmos dados do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), veremos que apenas 3% da população segue essas
religiões. Não justificaria o ataque do lado evangélico, que hoje deve ser a religião de 25% da população.
Por que chutar o cachorro pequeno então? Por que o grande não dá para chutar. Quando chutaram a
santa [episódio de 1995 em que um bispo da Igreja Universal chutou uma imagem de Nossa Senhora de
Aparecida], deu no que deu. Com Igreja Católica não se brinca, ela é muito forte. As religiões afro-
brasileiras têm sido o cachorro chutado da história do Brasil. Foram perseguidas desde a Inquisição, na
República, pela polícia. E são boas como símbolos pelos motivos que falei acima. Quando o pastor
mostra que é mais forte que o exu, ele mostra que tem poder absoluto, inclusive de fazer com que uma
entidade que toma conta de uma pessoa seja expulsa. É mostrar sua força por meio do ataque, de
exemplificar o seu poder. Qual o sentimento que predomina hoje no meio das crenças afro-brasileiras?
VAGNER GONÇALVES DA SILVA  É um medo associado a um sentimento de luta. Acho que nunca
presenciei, em tantos anos que estudo esse tema, as pessoas tão preocupadas com a sobrevivência da
sua religiosidade. A impressão que dá é que perceberam que estão dormindo com o inimigo. Antes, a
perseguição vinha do Estado, da polícia. Agora pode ser o seu vizinho. É alguém da família que se
converteu para uma igreja evangélica. A comunidade está bastante apreensiva com esse crescimento,
que está atrelado agora a uma violência sem precedentes. Ao mesmo tempo, as comunidades, terreiros,
pais-de-santo, que eram muito autônomas, hoje estão se associando, fazendo frentes de combate à
intolerância, passeatas, caminhadas, indo à televisão, indo falar com o poder público, então existe essa
tentativa de se organizar. O que é bom, porque essas religiões afro-brasileiras nunca tiveram essa
vocação para esse tipo de ação coletiva. Hoje, veem que se não fizerem isso, vão diminuir, como
inclusive têm mostrado os censos, sobretudo a umbanda.

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Brasil tem uma denúncia de intolerância religiosa
a cada 15 horas
 Redação Observatório 3º Setor 7 de fevereiro de 2018
 
 
 
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Religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé, são as mais atingidas

Por: Isabela Alves

A intolerância religiosa vem crescendo no Brasil. Apenas entre janeiro de 2015 e o fim do primeiro
semestre de 2017, o disque 100, canal que reúne denúncias, recebeu 1.486 queixas. Isso significa que o
Brasil registra uma denúncia do tipo a cada 15 horas.
Segundo a análise da Secretaria Especial de Direitos Humanos, os principais alvos das discriminações
religiosas são as religiões afro-brasileiras, com 39% das denúncias.
“As religiões de matriz africana, por terem nascido com os escravos, carregam uma história de minoria,
um estigma de que se nasceram com os escravos não são boas. Se hoje ainda existe o preconceito na
questão racial, lógico que isso vai ser refletido no campo religioso”, opina João de Freitas, 27 anos, ator,
professor de idiomas, e frequentador da umbanda há 27 anos.
A umbanda surgiu nos subúrbios do Rio de Janeiro e depois se estendeu para a América Latina. Suas
crenças misturam elementos do candomblé, do espiritismo e do catolicismo. Segundo um estudo
do IBGE, apenas 0,2% dos brasileiros são adeptos a essa religião. No entanto, ela se encontra em
primeiro lugar no ranking das religiões mais discriminadas.
“A intolerância religiosa tem aumentado, mas ela vem desde os primórdios. Eles sempre colocaram a
umbanda e o candomblé como religião da macumba, religião que faz coisas erradas”, comenta Paulo
Roberto Ferracina, de 49 anos, Sacerdote Umbandista da Tenda de Umbanda Caboclo Pele Vermelha e
Pai Xangô.
O preconceito gera ódio e pode incitar à violência. Santos são quebrados, templos invadidos e destruídos,
há agressões verbais e físicas, e até tentativas de homicídio.

Os fiéis que lutam pelo direito de expressar sua fé


Maria Gabriella Cadete de Lima, de 22 anos, auxiliar de veterinária, teve seu primeiro contato com a
religião no início de 2016, quando seu amigo a chamou para ir a um centro de umbanda. No início ela não
se adaptou à religião, mas levou aquele primeiro momento como experiência. Depois de algumas
situações que ocorreram na sua vida, ela decidiu entrar para a umbanda de vez.

“Minha vida mudou completamente. Eu sofria de depressão, síndrome do pânico, ansiedade. Em dois
anos, houve várias tentativas para tirar minha vida e desde que eu entrei na umbanda eu me curei de
tudo isso, encontrei forças para mudar e hoje não tenho mais nada do que eu tinha antes”, conta.
Sua família, que consiste em mãe, pai e irmão, é católica. No início, Gabriella escondeu da família a sua
religião e só depois de muita conversa eles a aceitaram. Posteriormente, a moça descobriu que a avó e a
bisavó também praticavam a umbanda e o candomblé. Assim que soube, teve coragem de assumir sua
religião para o resto dos familiares. Mas, mesmo assim, ela sentiu certo preconceito.

“Eles ficavam perguntando ‘A Gabi está indo naquela religião? Ela não estava bem e ainda vai para esses
lugares?’”,  relata.
Fora do contexto familiar, a jovem nunca sofreu preconceito por causa da religião, por ser reservada em
relação a sua vida espiritual, mas conta que muitos praticantes sofrem no cotidiano. Um exemplo que
pode ser citado é quando os umbandistas e candomblecistas são chamados de macumbeiros quando
usam suas vestes na rua. Nestes contextos, o termo é carregado de preconceito, remetendo a feitiçarias
ou charlatanismo.

“A sociedade usa o termo como se fosse um xingamento, uma maneira de agredir o outro. Aí você
percebe que muitas vezes o problema não é a palavra em si, mas como é utilizada”, explica Gabriella.
O ator e professor de idiomas João Freitas teve seu primeiro contato com a religião antes de nascer,
segundo ele. Seu avô é presidente do terreiro que ele frequenta há quase 50 anos. “Eu lembro de
pequeno que eu sempre quis participar, sempre me encantei, sempre aquilo me fez bem. Quando você é
criança, você não entende muito, mas me lembro que eu sempre quis muito ir”,lembra.
João conta que nunca precisou esconder a sua religião. “Eu me considero privilegiado, porque essa não é
a realidade para a maioria dos umbandistas”. No entanto, João lembra que chegou a sofrer preconceito
por uma parte da sua própria família. Alguns parentes que pertenciam à umbanda, mas depois se
tornaram evangélicas. Assim que entraram em outra religião, começaram a menosprezar a fé do rapaz.
“Eu já cheguei a escutar que me amavam muito, mas que não iam compactuar com a minha adoração ao
diabo. É muito duro você ouvir isso. Para mim a pessoa que fala isso não tem nenhuma religião, ela acha
que tem, ela acha que está fazendo o certo, mas está perdida. É uma violência gratuita e muito ódio”,
desabafa.
Para João, a educação é a chave fundamental para causar verdadeiras mudanças. Não é necessário
enaltecer uma religião, mas sim discutir e deixar claro que respeitar a fé do próximo é necessário. “Eu
trabalho em escola e eu sei o quanto as crianças chegam com muito preconceito. Vem de casa, vem da
família, vem da educação, vem do templo religioso que elas frequentam. Mas eu acredito que a escola
tem o poder de integrar”, conclui.
O que diz a lei
De acordo com o quinto artigo da Constituição, o brasileiro tem direito ao “livre exercício de cultos
religiosos e tendo garantida a proteção aos seus locais de culto e às suas liturgias”. As penas previstas no
Código Penal para crimes de intolerância religiosa são multa ou detenção, de um mês a um ano. Se
ocorre algum ato de violência, a pena aumenta em um terço. No entanto, a intolerância continua
ocorrendo no país.
“Foi divulgado que existem comunidades hoje no Rio de Janeiro em que é proibido a pessoa ter roupas,
colares e imagens de santos. Se eles pegam, eles vão quebrar. Em determinadas comunidades, não se
pode expressar outra fé além da evangélica”, conta João de Freitas.
Atualmente existe também o projeto de lei 790/2017, que visa penalizar a intolerância contra religiões de
origem africana em São Paulo. Será multado quem causar danos aos objetos de culto, perturbar a prática
religiosa ou depredar templos e terreiros.
Caso o projeto seja aprovado, os infratores ficarão de fora de concursos públicos da capital paulista por
três anos e terão que pagar multa de R$ 2 mil, em caso de reincidência. O projeto aguarda avaliação da
Comissão de Constituição e Justiça desde dezembro do ano passado, e após as comissões, o projeto
ainda precisará passar por duas votações na Câmara antes de ser enviado para ser sancionado ou
vetado pelo prefeito João Doria (PSDB)
Devido aos recentes casos de violência contra praticantes de religiões de matriz
africana, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) lançou uma nota
contra a discriminação por conta da fé. No texto, o órgão diz não à intolerância e afirma
que "o fundamentalismo religioso não pode ser reconhecido como prática do
Evangelho".

Leia a declaração na íntegra:

"Na semana passada, acompanhamos pelas redes sociais e também jornais várias
notícias sobre a destruição de terreiros, espaços sagrados para as religiões de matriz
africana. De acordo com as informações, líderes religiosos dessas tradições foram
forçados a destruir seus símbolos, identificados como “coisa do demônio”. As ações
foram perpetradas por grupos armados com cassetetes e armas de fogo.
A responsabilidade pelos ataques foi creditada a chefes do tráfico de drogas que
estariam vinculados a igrejas evangélicas. A pretexto de realizar uma “faxina
espiritual” dos morros do Rio de Janeiro, recorreram a práticas de crime de
intolerância religiosa para ampliar seu território, verdadeiro motivo de suas ações.
Para o CONIC, além de identificar e responsabilizar quem realiza tais atos de
violência, é necessário que se realize uma profunda discussão sobre o papel da religião
na sociedade brasileira. Como igrejas que dialogam ecumenicamente, não podemos
aceitar nenhum tipo de intolerância e violência em nome da fé em Jesus Cristo. Cremos
que essa fé nos conduz para o encontro com o outro, como fruto do amor ao próximo.
Não podemos ignorar que a perseguição contra comunidades religiosas afro-
brasileiras se manifesta de diferentes maneiras. O relatório Direitos Humanos e Estado
Laico da Plataforma de Direitos Humanos DHESCA (2016) aponta casos em que
foram negados atendimentos na rede pública de saúde para pessoas que portavam o
colar que identifica um Orixá. Crianças também têm sofrido discriminação nas escolas
por causa da sua fé.
É lamentável que anos de pregação demonizando os adeptos da Umbanda e do
Candomblé tenham produzido o pior dos mundos: a manifestação de um cristianismo
leniente com o narcotráfico e agressivo contra os adeptos de outra religião. O
fundamentalismo religioso não pode ser reconhecido como prática do Evangelho. Jesus
nos desafia para a prática do amor e condena a promoção do ódio, conforme está
escrito nos Evangelhos.
Assim sendo, nos colocamos ao lado do povo de terreiro para dizer não à intolerância.
Reconhecemos que essas iniciativas criminosas não são coerentes com o Evangelho e
violam a Constituição.
Queremos expressar a nossa solidariedade, o nosso amor fraternal e sororal a todas as
comunidades religiosas afro-brasileiras, comprometendo-nos com a denúncia dos atos
de intolerância, promovendo o diálogo para a superação dos preconceitos e
reafirmando o estado laico como uma condição essencial para a promoção do respeito
entre as religiões.
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil"

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