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Leitura e Comentário Do Texto de Célio Garcia
Leitura e Comentário Do Texto de Célio Garcia
1
Vide “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, In Escritos, 1953/1998, p. 322.
analista, atento ao horizonte de sua época, como exercício de um programa de ação
política, como sugere Célio Garcia.
Dito isso, é a própria definição de programa que interessa valorizar, qual seja é
de um plano de ação ‘escrito’ para uso público. Nos interessa uma breve nota
etimológica do termo 'programa': Do latim tardio, 'programma [atis]: publicação por
escrito; do grego: prógramma [atos]: 'ordem do dia'/'inscrição'. Trata-te portanto de
permitir que se ‘inscreva’ na ordenação do discurso que regula as relações entre
diferentes agentes, as partes que se atualizam de uma dada cena historicamente
demarcada, onde se distribuem os elementos particulares, a princípio indiscerníveis.
Mas não nos enganenos, ao supor que a inscrição num programa das partes tende a fazer
um todo homogêneo, ao contrário, tende a permitir que o caráter fragmentário destas
inscrições entrem no programa, no macro, por assim dizer. Mais uma vez, convém
resgatar uma imagem aportada por Lacan, noutro trecho a que há pouco fazíamos
menção, onde a figura do analista é a de um “intérprete na discórdia das línguas”
(Lacan, 1953/1998, p. 322)2.
2
Vide Nota 1, presente.
Uma oposição bem conhecida convém ser resgatada: a dos saberes instituídos,
reconhecidos, acadêmicos de que são portadores os cidadãos integrados às classes que
detém poder político e econômico, ditos hegemônicos, e os saberes de vida e de morte,
os saberes malditos, não escolarizados, não instituídos como reconhecidamente válidos
no campo da intelectualidade dominante e cujas práticas vinculadas são tomadas no
campo da contravenção. Completa, Célio Garcia: “deve-se levar em conta que, a partir
de um saber maldito (maldito porque repudiado, maldito já que ligado à violência), é
possível chegar-se a articular politicamente esse saber por meio da participação nas
instituições democráticas” (ibid, p. 9). E adiante: “esses saberes podem ser chamados de
saberes que têm a ver com a existência em suas vertentes de vida e morte” (idem).
Donde o mapa de competências, aparelho do programa, é um instrumento, um
instrumento para fazer pensar, um artefato.
3
Vide ‘Os intelectuais e o poder’, In Microfísica do poder, 1978/2014, pp. 129-142.
signifique. Há um inegável poder nesta palavra. E em seguida evoca ainda o discurso
totalitário, bem como seu instrumento de propaganda. Discurso da patologia cínica, que
visa construir, pela hipóstase de uma verdade que se pretende única, um mundo ou
realidade utópicos, do como se. Aqui o falante está privado de seu poder sobre a
palavra, poder cujo assentamento está na indeterminação dos sentidos segundo o uso
que se faz das palavras no jogo da linguagem, a possibilidade sempre aberta de deslizar
entre diferentes sentidos, visto que no regime totalitário há um controle violento dos
sentidos, manutenção forçada da estabilidade de um regime prescritivo de sentido. Há
ainda a palavra fundada na crença de boa vontade da competência comunicacional,
onde a promessa de mútua compreensão entre partes vigora como garantia do exercício
da palavra falada. Panacéia imaginária contra os efeitos de mal-entendido.
A palavra do militante foi e é até hoje (apesar da crise dos discursos, ela
se conserva intacta) uma palavra presa ao discurso partidário,
eventualmente comprometida com todos os inconvenientes aqui
apontados, ou seja, com o caráter vazio da palavra da tradição, o
autoritarismo do oráculo, as inverdades da demagogia, a violência da
repressão (esta a que se obriga o militante), a boa vontade e o falso
democratismo das atitudes conciliatórias (ibid., p. 16).
“[...] quero crer que a dimensão clínica não abandona a política; faço questão de dizer
desde o início que clínica quer dizer prática política; evidentemente que é sem partido,
mas é uma prática política” (ibid., p. 61-62).
Evoca-se ainda o problema da inserção no simbólico, que não seja, ela própria,
moralizante, condicionante, adestramento ou imposição de modos já estabelecidos no
âmbito dos discursos dominantes de ser e ocupar os corpos, ao nível do trabalho. Mais
adiante: "não me interesso de maneira nenhuma em dizer que eu sigo essa ou aquela
escola, me interessa discutir a clinica do social; com quem quiser trabalhar nessa
direção, eu estarei disposto a fazê-lo" (ibid., pp. 68-69), e em seguida: “nós, quando
fazemos clinica do social, estamos expostos muito mais do que no consultório” (ibid., p.
69). O autor evoca o problema da representatividade e da representação. Eleva a
primeiro plano o engodo de crer que alguém pode representar outrem diante de alguém,
quando na verdade, ninguém representa ninguém diante de ninguém. Eis a necessidade,
nos diz ele, de repensar a questão da representação. Novamente se tratará,
oportunamente, de dar novo sentido a questão da representatividade política dos grupos
ditos marginalizados, subalternizados, etc. Não se pode cair no engodo, igualmente
pernicioso ou mesmo mais deletério, de crer que a impossibilidade estrutural da
representação de um em nome de outro resolve, ad principio, o problema da exclusão de
lugares de possibilidade de atuação e fala. Não resolve, ao contrário, mascara. Não há
associação humana sem fundamentação sobre a questão do reconhecimento. Note-se,
dizemos, reconhecimento, e aqui, toda uma dialética do reconhecimento se estende à
questão da inserção simbólica. Quer dizer, a possibilidade de me representar no interior
de um sistema simbólico onde possa ‘supor’ um laço possível, um laço que me inclua
entre outros. Chame-se a isso a questão da identidade ou do identitarismo, não importa,
por hora, senão delinear que rever a questão da representação significa dar novo sentido
a questão da representatividade. Novamente seremos levados a ouvir, enquanto
analistas, o que tem dito os grupos em ação política de nosso tempo. Os analistas que
trabalham em instituições, mormente, em instituições públicas e que conhecem bem o
caos da instituição pública, estão familiarizados com este jogo, onde se repensa a
própria dinâmica da representação e do lugar da palavra. E por isso, estão em geral,
estes analistas, mais abertos ao vivo que nem sempre caberá no modelo estandardizado
do consultório clássico de psicanálise. Isso tem a ver com que se chamará logo adiante,
no movimento do texto, de uma relação singular, de uma relação com o real, por
distinção de uma inserção numa dada ‘realidade’. Uma relação com o real inclui a
possibilidade de por em jogo a questão da representação, e seus limites, evidentemente.
Por isso seria um engano, fechar a questão da representação e, por extensão, da
representatividade à um dado puro, deduzido da dinâmica de formação das identidades,
de teor imaginário. Não nos parece possível tratar da questão reduzindo-a de saída ao
plano do engano. Há intercorrência entre o real do encontro e o plano imaginário em
que se organiza uma dada coletividade, assim como há intercorrência entre este último e
a ordem simbólica que o secciona, e do real sobre o simbólico. Então falaremos de nós,
rizomas, intersecções, diferentes modos de enlaçamento, é o que nos ensina a clínica
analítica. A clínica trata do real; das incidências do real; logo, a clínica não se
divorciando da política, do social, portanto, não poderia senão tratar do real que incide
sobre este plano, do real que incide sobre o social e sobre a política. Não basta fingir
que não há aí um real em jogo. Aos efeitos de segregação dos discursos totalitários, aos
efeitos de exclusão da afirmação de uma soberania qualquer de direito sobre outro
direito, de um modo de fruir a vida, de gozar sobre outro, e ao que disso possa decorrer,
chamaremos pontos de limite, quer dizer, pontos onde nos deparamos com algo de
insuportável, de real. Há então este real, que é o real da violência racista, sexista, de
classe. Por isso se interessa uma Clínica do Social. O programa tendo por fim amenizar
os efeitos destrutivos, desastrosos, perturbadores que decorrem destas formas de
violência. Em nossa prática, caberá, portanto, discutir, alistar, levantar as competências
decorrentes da Clínica do Social que ora pomos em curso.