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LEITURA E COMENTÁRIO DO TEXTO DE CÉLIO GARCIA

Maxsander Almeida de Souza.

DO PROGRAMA, DA CLÍNICA E DO SOCIAL

“Uma Clínica do Social deve aliar a atividade, o interesse e a atenção da clínica


à subjetividade de cada um, articulando esses procedimentos com um programa de
ação política como prática no dia-a-dia do cidadão” (Garcia, 1997, p. 7). A noção de
Clínica do Social, grafada com maiúscula. A clínica psicanalítica como sendo
necessariamente uma clínica do social; o sujeito em seu dizer aporta a clínica o recorte
das incidências sobre si, recorte sempre singular, do que circula no discurso do Outro,
ou poderíamos dizer, das diversas maneiras pelas quais se articulam em seu Tempo o
laço social. Nesse mesmo teor afirmativo, cabe ressaltar que a clínica psicanalítica,
enquanto práxis de discurso, visa operar na direção do laço social, aqui entendido como
uma dentre outras ‘formações humanas’, que servem para refrear o gozo em sua faceta
mortífera. Em outras palavras, a clínica psicanalítica, em sua prática, mira alcançar a
manutenção do laço entre os sujeitos, daí um certo efeito que poderíamos chamar sem
receio normativo, de civilizatório. Isso envolve buscar estratégias para amenizar os
efeitos de segregação produzidos no interior do próprio discurso, em sentido amplo,
inclusos aqueles que regulam as práticas no interior do campo clínico.

Mas, se por um lado, a clínica psicanalítica se articula necessariamente ao campo


do Outro, quer dizer, ao plano do laço social, é porque ela própria não está a deriva de
um determinado tempo, de um determinado modo de agremiação societária, de um
determinado discurso que dita os lugares de uns e de outros e que distribui, mais ou
menos explicitamente, a palavra em seu poder de agenciamento sobre o mundo (sobre
os corpos). Isso quer dizer que a psicanálise, enquanto discurso que age, que exerce
agencia sobre os corpos, recebe retroativamente os efeitos do tempo em que se inscreve,
do tempo histórico, não obstante isso não exclua, em absoluto, o tempo não-cronológico
dos eventos dos quais se ocupa. Esta é uma maneira de ler a afirmação categórica de
Lacan de que um analista deve alcançar no horizonte de sua prática os efeitos que se
exercem na e pela subjetividade de sua época 1. Aqui, proponho pensarmos a ação do

1
Vide “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, In Escritos, 1953/1998, p. 322.
analista, atento ao horizonte de sua época, como exercício de um programa de ação
política, como sugere Célio Garcia.

Célio Garcia define o que chama de programa, na forma de um dispositivo que


permite a ordenação e classificação automática [ou reveladora] de competências a
serem distribuídas pelos diversos agentes que tomam parte na prática em questão. O
reconhecimento das competências não se limitando ao saber dos experts, mas incluindo
no escopo do próprio programa o saberes não imediatamente discerníveis ou
legitimados, os saberes de vida e de morte, ou saberes malditos nas palavras do autor.
Tudo isso, tendo em conta que nas análises correntes de caráter econômico, político ou
sociológico, toma-se, via de regra, em consideração, o nível macro das organizações,
onde os fragmentos de saberes particulares não entram espontaneamente no programa.
Daí a afirmação de Célio Garcia de que o Macro encobriria o fragmento, e que é por
uma lógica, que se poderia chamar de fragmentária, que o particular entra no universal
do programa.

Dito isso, é a própria definição de programa que interessa valorizar, qual seja é
de um plano de ação ‘escrito’ para uso público. Nos interessa uma breve nota
etimológica do termo 'programa': Do latim tardio, 'programma [atis]: publicação por
escrito; do grego: prógramma [atos]: 'ordem do dia'/'inscrição'. Trata-te portanto de
permitir que se ‘inscreva’ na ordenação do discurso que regula as relações entre
diferentes agentes, as partes que se atualizam de uma dada cena historicamente
demarcada, onde se distribuem os elementos particulares, a princípio indiscerníveis.
Mas não nos enganenos, ao supor que a inscrição num programa das partes tende a fazer
um todo homogêneo, ao contrário, tende a permitir que o caráter fragmentário destas
inscrições entrem no programa, no macro, por assim dizer. Mais uma vez, convém
resgatar uma imagem aportada por Lacan, noutro trecho a que há pouco fazíamos
menção, onde a figura do analista é a de um “intérprete na discórdia das línguas”
(Lacan, 1953/1998, p. 322)2.

DA EXPERIÊNCIA DE VIDA, DA ESTRATÉGIA DE SOBREVIVENCIA E DA


FORMA DO SABER

2
Vide Nota 1, presente.
Uma oposição bem conhecida convém ser resgatada: a dos saberes instituídos,
reconhecidos, acadêmicos de que são portadores os cidadãos integrados às classes que
detém poder político e econômico, ditos hegemônicos, e os saberes de vida e de morte,
os saberes malditos, não escolarizados, não instituídos como reconhecidamente válidos
no campo da intelectualidade dominante e cujas práticas vinculadas são tomadas no
campo da contravenção. Completa, Célio Garcia: “deve-se levar em conta que, a partir
de um saber maldito (maldito porque repudiado, maldito já que ligado à violência), é
possível chegar-se a articular politicamente esse saber por meio da participação nas
instituições democráticas” (ibid, p. 9). E adiante: “esses saberes podem ser chamados de
saberes que têm a ver com a existência em suas vertentes de vida e morte” (idem).
Donde o mapa de competências, aparelho do programa, é um instrumento, um
instrumento para fazer pensar, um artefato.

DO PODER DAS PALAVRAS E DO DISCURSO

“Foi necessário algum tempo para que as instituições educacionais aceitassem


que o sentido do mundo, da vida, das coisas, não está ao alcance das palavras, não se
deixa conter nas frases pronunciadas” [ibid., p. 11). A tradição em sua pretensão de
dizer o sentido das coisas fundamenta a já desgastada prática que se conhece sob a
alcunha de orientação. Nela está implicada, como bem notado, uma pretensão
injustificável, a de que a uns é dado o acesso a forma secular, a forma verdadeira, de
operar, de classificar, de ler os eventos do mundo e a eles cabe, portanto, por princípio e
direito, prescrevê-la. Assim se classificam o saber dos especialistas, experts, dos mais
velhos, dos mais experimentados, mas também o saber dos que podem aceder ao lugar
de reconhecido saber, onde as formas já bem conhecidas de saber-poder descritas por
um Foucault3 ainda calham serem destacadas em ação.

Nossa época conhece o descalabro de partidos em razão dessa linguagem


sem qualquer consequência [demagogia], consistente só na aparência,
garantida por uma autoridade que já não fica em pé. O destino dessas
mensagens é desaparecer, ou porque desaparecem os regimes políticos
que as patrocinam, ou porque mudou o mundo e, mudando o mundo, é
forçoso admitir que alguma coisa muda nas pessoas (ibid., p. 12).
Célio Garcia também recorre ao dito oracular e sua faceta enigmática, a palavra da
religião, a palavra que condensa valor de verdade, traduzida numa língua desconhecida,
a palavra que vale mais por seus efeitos sonoros, pelo que sugere, sem revelar, embora

3
Vide ‘Os intelectuais e o poder’, In Microfísica do poder, 1978/2014, pp. 129-142.
signifique. Há um inegável poder nesta palavra. E em seguida evoca ainda o discurso
totalitário, bem como seu instrumento de propaganda. Discurso da patologia cínica, que
visa construir, pela hipóstase de uma verdade que se pretende única, um mundo ou
realidade utópicos, do como se. Aqui o falante está privado de seu poder sobre a
palavra, poder cujo assentamento está na indeterminação dos sentidos segundo o uso
que se faz das palavras no jogo da linguagem, a possibilidade sempre aberta de deslizar
entre diferentes sentidos, visto que no regime totalitário há um controle violento dos
sentidos, manutenção forçada da estabilidade de um regime prescritivo de sentido. Há
ainda a palavra fundada na crença de boa vontade da competência comunicacional,
onde a promessa de mútua compreensão entre partes vigora como garantia do exercício
da palavra falada. Panacéia imaginária contra os efeitos de mal-entendido.

A palavra plena e o jogo alusivo; o estatuto de incompletude e a verdade do


sujeito também são evocados: “só o estatuto de incompletude é fonte e margem de
novas nomeações, capazes de lançar e relançar o sujeito nessa busca incessante, graças a
qual ele continua, continua... pois é só o que lhe resta fazer” (ibid., p. 15). Evoca-se
também o discurso político e fala-se da palavra do militante, à qual, Celio Garcia
endereça a seguinte observação, que convém ser ela própria, revista e posta em
perspectiva crítica:

A palavra do militante foi e é até hoje (apesar da crise dos discursos, ela
se conserva intacta) uma palavra presa ao discurso partidário,
eventualmente comprometida com todos os inconvenientes aqui
apontados, ou seja, com o caráter vazio da palavra da tradição, o
autoritarismo do oráculo, as inverdades da demagogia, a violência da
repressão (esta a que se obriga o militante), a boa vontade e o falso
democratismo das atitudes conciliatórias (ibid., p. 16).

Convém, e é até indispensável, distinguir a palavra do militante, aqui entendida


como palavra que se vincula eventualmente às vertentes demagógica, totalitária,
partidarista, tradicionalista do discurso político, da palavra posta em circulação pelos
movimentos atuais de resistência à opressão e a violência segregatícia em suas mais
diversas vertentes e intersecções, cujo teor é o de não gozar esta palavra de estatuto de
reconhecimento, de audibilidade, de consideração pelos saberes instituídos, mas de
forçar, de resistir, de operar sobre o lugar de resto, de contravenção, de saberes que tem
a ver, como aludiu anteriormente Célio Garcia, com a vida e com a morte em sua crua
experiência cotidiana, saberes de povos há muito submetidos à subalternização
fetichizada com que as classes do saber dominante – não raro inclusa uma certa
psicanálise – se lhes dirige a falsa boa vontade travestida de interesse das singularidades
e da pura diferença. Aqui, conviria distinguir como linguagem do fragmento, do resto,
da rasura, potência de um verdadeiro programa político, os esforços de movimentos
como os movimentos negros, feministas, indígenas, de gêneros, etc. E é conveniente
mantê-los distintos, discerníveis, e aliá-los a tomada de posição política do cidadão,
analista ou não. É mesmo um novo sentido para a própria atividade da militância
como programa político aliado ao interesse clínico e social que convém propor, haja
vista que a orientação que não se pode perder de vista é a de não cair na armadilha de
congelar um sentido para um dado termo em nome de um saber instituído. Este sentido
novo, só poderemos colhê-lo, ao conferir, no interior de nosso programa, legibilidade e
reconhecimento à estes saberes e práticas tais quais se verificam, cada um deles, em sua
lida política do dia-a-dia. Ao analista caberá, sobretudo, ouvir. Em seguida:
“procuramos identificar recursos articulados pelo discurso; a Clínica do Social tem que
levá-los em conta” (ibid., p. 19). Noutra passagem, a tese de que o sujeito não é o
cidadão; o cidadão sendo, de início, no dizer do autor, um, qualquer um. O sujeito, por
seu turno, “singularidade que se afirma por ocasião de um acontecimento a que ele
passa a dever fidelidade” (ibid., p. 23). De que acontecimento se trata?

DO INSOLÚVEL PROBLEMA DO PARTICULAR E DO UNIVERSAL OU DA


ALIANÇA DA CLÍNICA E DA POLÍTICA

“[...] quero crer que a dimensão clínica não abandona a política; faço questão de dizer
desde o início que clínica quer dizer prática política; evidentemente que é sem partido,
mas é uma prática política” (ibid., p. 61-62).

De um enlaçamento entre clínica e política. Entre clínica e o programa, para retomar os


termos já postos em circulação desde o início. Mas atente-se, para a particularidade de
uma prática política sem partido [?], adiciono a questão. Sem partidarismo demagógico,
certamente. Sem partido, penso ser pouco pensável, concebível. Tomar partido é o
próprio da política. Tomar partido, tem a ver com tomar um ponto de partida, um lugar
a partir de, de onde o analista, o cidadão, o cidadão analista, portanto, possa endereçar
também seu dizer e, evidentemente, sua escuta. Tomar partido é, portanto, aqui,
propomos, entendido como tomar posição, e a nosso ver, um analista é alguém que
toma posição, a saber, a posição de quem opera a favor das formações humanas, dos
processos civilizatórios e de fretamento do gozo mortífero, da dissolução do
funcionamento paranóico do saber que se pretende definitivo, do laço social e do
fragmento que pode, do particular, tomar parte, ou tomar posição no nível do macro.
Trata-se de tomar partido contra os efeitos de segregação que são subprodutos
metabólicos de todo discurso humano.

Noutra passagem: “a clínica do social não pode se restringir àquilo que é da


ordem da escolarização, ou do que é o saber da enciclopédia, registrado, depositado nas
bibliotecas, nos museus, nos livros empoeirados e assim por diante”, e continua: “a
clínica do social considera que a existência já nos traz, revela e propicia saberes, mas
contanto que a gente admita a idéia de que esses são saberes de vida e morte” (ibid., p.
63).

Evoca-se ainda o problema da inserção no simbólico, que não seja, ela própria,
moralizante, condicionante, adestramento ou imposição de modos já estabelecidos no
âmbito dos discursos dominantes de ser e ocupar os corpos, ao nível do trabalho. Mais
adiante: "não me interesso de maneira nenhuma em dizer que eu sigo essa ou aquela
escola, me interessa discutir a clinica do social; com quem quiser trabalhar nessa
direção, eu estarei disposto a fazê-lo" (ibid., pp. 68-69), e em seguida: “nós, quando
fazemos clinica do social, estamos expostos muito mais do que no consultório” (ibid., p.
69). O autor evoca o problema da representatividade e da representação. Eleva a
primeiro plano o engodo de crer que alguém pode representar outrem diante de alguém,
quando na verdade, ninguém representa ninguém diante de ninguém. Eis a necessidade,
nos diz ele, de repensar a questão da representação. Novamente se tratará,
oportunamente, de dar novo sentido a questão da representatividade política dos grupos
ditos marginalizados, subalternizados, etc. Não se pode cair no engodo, igualmente
pernicioso ou mesmo mais deletério, de crer que a impossibilidade estrutural da
representação de um em nome de outro resolve, ad principio, o problema da exclusão de
lugares de possibilidade de atuação e fala. Não resolve, ao contrário, mascara. Não há
associação humana sem fundamentação sobre a questão do reconhecimento. Note-se,
dizemos, reconhecimento, e aqui, toda uma dialética do reconhecimento se estende à
questão da inserção simbólica. Quer dizer, a possibilidade de me representar no interior
de um sistema simbólico onde possa ‘supor’ um laço possível, um laço que me inclua
entre outros. Chame-se a isso a questão da identidade ou do identitarismo, não importa,
por hora, senão delinear que rever a questão da representação significa dar novo sentido
a questão da representatividade. Novamente seremos levados a ouvir, enquanto
analistas, o que tem dito os grupos em ação política de nosso tempo. Os analistas que
trabalham em instituições, mormente, em instituições públicas e que conhecem bem o
caos da instituição pública, estão familiarizados com este jogo, onde se repensa a
própria dinâmica da representação e do lugar da palavra. E por isso, estão em geral,
estes analistas, mais abertos ao vivo que nem sempre caberá no modelo estandardizado
do consultório clássico de psicanálise. Isso tem a ver com que se chamará logo adiante,
no movimento do texto, de uma relação singular, de uma relação com o real, por
distinção de uma inserção numa dada ‘realidade’. Uma relação com o real inclui a
possibilidade de por em jogo a questão da representação, e seus limites, evidentemente.
Por isso seria um engano, fechar a questão da representação e, por extensão, da
representatividade à um dado puro, deduzido da dinâmica de formação das identidades,
de teor imaginário. Não nos parece possível tratar da questão reduzindo-a de saída ao
plano do engano. Há intercorrência entre o real do encontro e o plano imaginário em
que se organiza uma dada coletividade, assim como há intercorrência entre este último e
a ordem simbólica que o secciona, e do real sobre o simbólico. Então falaremos de nós,
rizomas, intersecções, diferentes modos de enlaçamento, é o que nos ensina a clínica
analítica. A clínica trata do real; das incidências do real; logo, a clínica não se
divorciando da política, do social, portanto, não poderia senão tratar do real que incide
sobre este plano, do real que incide sobre o social e sobre a política. Não basta fingir
que não há aí um real em jogo. Aos efeitos de segregação dos discursos totalitários, aos
efeitos de exclusão da afirmação de uma soberania qualquer de direito sobre outro
direito, de um modo de fruir a vida, de gozar sobre outro, e ao que disso possa decorrer,
chamaremos pontos de limite, quer dizer, pontos onde nos deparamos com algo de
insuportável, de real. Há então este real, que é o real da violência racista, sexista, de
classe. Por isso se interessa uma Clínica do Social. O programa tendo por fim amenizar
os efeitos destrutivos, desastrosos, perturbadores que decorrem destas formas de
violência. Em nossa prática, caberá, portanto, discutir, alistar, levantar as competências
decorrentes da Clínica do Social que ora pomos em curso.

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