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ESTRATÉGIAS DE SUPERAÇÃO UTILIZADAS POR MULHERES RECÉM-DOUTORAS

EM FÍSICA

Valquiria Gila de Amorim1


Mirleide Dantas2
Maria Eulina Pessoa de Carvalho3

Resumo: Este trabalho pretende mostrar as experiências de mulheres que superaram o leaky
pipeline ougenderfilter. Segundo a literatura internacional, este fenômeno é caracterizado pela
desistência feminina dos níveis mais elevados no âmbito acadêmico ou profissional, comum nas
ciências exatas e naturais. Através da análise de discurso de entrevistas com duas recém-doutoras
em Física, um dos cursos mais masculinos, apontam-se as estratégias utilizadas por essas mulheres
para transpor os obstáculos ao longo de suas trajetórias. Há a percepção de um afunilamento (leaky
pipeline) enfrentado constantemente nesse espaço, em que as mulheres precisam superar, além dos
empecilhos comuns no percurso acadêmico, as práticas sexistas (genderfilter). De maneira sutil e
naturalizada, o filtro de gênero é imposto às mulheres na Física por meio de estereótipos,
preconceitos, discriminações e pressões vivenciadas cotidianamente. A pesquisa revelou a
importância de visibilizar essas experiências, tanto para promover a discussão acerca da temática,
quanto para auxiliar e inspirar as mulheres a persistirem e progredirem aos níveis acadêmicos e
profissionais mais elevados na área em tela. A pesquisa vincula-se a projeto financiado pelo CNPq
sobre relações de gênero em cursos masculinos (Processo: 471892/2014-9).
Palavras-chave: Mulheres na Física. Pós-graduação. Filtro de gênero.

Introdução
A literatura internacional denomina de leaky pipeline (vazamento da tubulação, melhor
entendido como afunilamento)o fenômeno da baixa representatividade das mulheres nas Ciências
Naturais, Tecnologias, Engenharias e Matemática (CTEM), decorrente de um filtro de gênero
(genderfilter) caracterizado por práticas sexistas (BLICKENSTAFF, 2005). Ele se inicia já no
ensino fundamental com a diferenciação da educação de meninas e meninos, expressa na frequente
associação da Matemática aos meninos e não às meninas; na generalização dos estereótipos de
gênero, que vai da educação familiar à escola, restringindo as possibilidades de inserção na
universidade; na interferência de pares e professores/as na escolha de cursos, corroborando o filtro
de gênero(DASGUPTA; STOUT, 2014).
Segundo Saavedra, Taveira e Silva (2010), entre as várias situações em que o fenômeno do
leaky pipeline pode ser identificado, é importante destacar alguns períodos decisivos, a saber: 1º) a

1
Mestra em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil.
2
Doutora em Física pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Adjunta na Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), Campus Cajazeiras/PB, Brasil.
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Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil.

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escolha da carreira ao final do ensino médio; 2º) a passagem da graduação à pós-graduação, ou
desistência; 3º) depois da pós-graduação, a não aprovação como docente universitária na(s)
primeira(s) tentativa(s) de ingresso; 4º) a disposição de concorrer ou não a posições de direção no
ambiente acadêmico ou industrial.
Neste contexto, paulatinamente as mulheres têm avançado em CTEM, ainda que muito
pouco, e no campo da Física esse quadro não é diferente. No Brasil, assim como na maioria dos
países em desenvolvimento, nos últimos 100 anos, foram observados apenas 10% a 12% de
mulheres na Física, permanecendo inalterado esse percentual, mesmo no nível de graduação
(AGRELLO; GARG, 2009).
Em 2011, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no curso de graduação em Física
(licenciatura e bacharelado), registrou no ingresso um total de 118 estudantes, sendo 84,74%
homens e 15,25% mulheres (CARVALHO; RABAY, 2013). Em 2015, de acordo com a
Coordenação do Curso de Física da UFPB, as mulheres continuavam com uma baixa inserção no
curso: em um total de 300 matrículas ativas, 82,33% eram do sexo masculino e 17,67% do sexo
feminino4. Em 2016, o número de alunas decai para 15% das matrículas, no total de 338 estudantes
de graduação. Separando as habilitações dos ingressantes, dos 53 estudantes matriculados no
bacharelado apenas 20,75% eram mulheres; na licenciatura o cenário era ainda pior, pois de 62
estudantes, as mulheres representavam apenas 12%.
Na pós-graduação da UFPB a participação das mulheres se mostra ainda menos
representativa. Em 2014, no mestrado, havia 4 mulheres em um corpo discentes de 26 estudantes; e
no doutorado, elas eram 7 em um total de 63 discentes5. Esse quadro persiste entre no corpo
docente. De acordo com o Departamento de Física, desde o ano 2000 não há ingresso de mulheres
como professoras. Em 2016, eram apenas duas mulheres no quadro docente, ao passo que o número
de homens passou de 27, em 2009, para 30, em 2012, 32 em 2014 e 33 em 2016. Em 2017, já não
há mulheres docentes no Departamento de Física da UFPB, devido à aposentadoria de uma e
transferência de outra, restando 31 homens no corpo docente como professores efetivos. Há uma
professora substituta.
Apesar da escassez de mulheres na Física, esse fenômeno não tem sido investigado – talvez
nem mesmo seja notado! – e as poucas que ousam estudar essa ciência precisam transpor barreiras
nesse ambiente masculino. Segundo Danielsson (2012, p. 25), essa pequena representação feminina,

4
Informação disponível em: https://sigaa.ufpb.br/sigaa/public/curso/lista.jsf?nivel=G&aba=p-%20graduacao. Acesso
em: 11 ago. 2016.
5
Informação disponível em: <www.fisica.ufpb.br>. Acesso em: 22 jun. 2015.

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que não ocorre apenas no Brasil, “mostra uma grave falta de estudos fundamentados, crítica e
teoricamente, sobre gênero e ensino das ciências”, o que ratifica a relevância da pesquisa ora
proposta, que explora essa ausência e as situações que corroboram a existência do leaky pipeline ou
genderfilter.
Chegamos às participantes da pesquisa pela estratégia denominada por Flick (2009) de bola
de neve, em que um sujeito, inicialmente contatado, leva a outro. As entrevistas foram realizadas
com duas Físicas, doutoras pela UFPB, a primeira em 2015 com Neusa (nome fictício, 30 anos), e a
segunda em 2016, com Amália (nome fictício, 37 anos).
Buscando a disponibilidade das duas, utilizamos dois tipos de estratégias: entrevista
estruturada (presencial) e entrevista estruturada online.Esse tipo de entrevista possibilita imprimir
uma direção aos questionamentos realizados, com uma sequência para levantamento, classificação e
qualificação das informações (GIL, 2012). Cada uma tem vantagens e desvantagens que merecem
ser destacadas.
A entrevista presencial permite uma maior aproximação e percepção dos vários aspectos da
expressão do sujeito, assim como interagir mais amplamente, retornar imediatamente a pontos
pouco claros, explorar respostas dadas de forma repetitiva ou vaga (GIL, 2012).Já a entrevista
online proporciona à entrevistada maior tempo e comodidade para elaborar suas respostas. Desta
forma, “a espontaneidade da troca verbal é substituída pela reflexividade das trocas escritas”. Outra
vantagem é a não necessidade de transcrição da entrevista (FLICK, 2009, p.243).
Neusa optou pela entrevista online, e no processo de coleta dos dados observamos uma
fragilidade em relação à compreensão das questões de gênero, indicando a necessidade da
intervenção da pesquisadora para esclarecimentos. As lacunas em relação aos aspectos de gênero,
interesse central da pesquisa, foram resolvidas em uma segunda entrevista presencial. Por outro
lado, com Amália, que preferiu a entrevista presencial, as lacunas foram mais rapidamente
preenchidas com a intervenção imediata das pesquisadoras.
O percurso da entrevista compreendeu dois momentos: o primeiro sobre as experiências na
infância e na escola com as disciplinas de Matemática e Física; e o segundo sobre a escolha do
curso de Física, as influências de familiares e professores/as, as dificuldades e barreiras em uma
área majoritariamente masculina e as desigualdades de gênero vivenciadas por elas.
O material empírico foi divido em duas categorias: gendramento nas disciplinas iniciais e
questões de gênero em um curso masculinizado. Desta forma, agrupamos as respostas em
semelhantes, diferentes e específicas. Através da análise de discurso fomos dialogando e costurando

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os trechos da entrevista, levando em consideração a interlocução e a construção social atravessada
por questões de gênero, classe, educação, valores e normas, bem como o que é expresso ou não
nesse diálogo (FAIRCLOUGH, 2001).
A análise permitiu visibilizar que as histórias de sucesso de Neusa e Amália foram pautadas
em experiências de desconstrução de gênero durante sua educação na infância, e durante o seu
percurso na Física. Há ocorrências de segregação nas disciplinaspor sexo e gênero, preconceitos,
discriminações e relações hierárquicas, implícitas e explicitas. Mas todas foram ultrapassadas por
elas que, com muitos sacrifícios, passaram pelo funil ou filtro de gênero, persistindo na carreira.

Trajetórias de sucesso de mulheres em um campo masculinizado

As Físicas entrevistadas revelaram que logo cedo despertaram o interesse pelas disciplinas
de cálculo na educação básica. No entanto, a escolha por um curso masculino foi carregada de
experiências e sentimentos nem sempre expressos por elas. Os relatos de superação dos empecilhos
(preconceitos, discriminação e assédio) nesta área corroboram o leaky pipeline.
Neste trabalho dividimos esses empecilhos em dois filtros: o primeiro compreende os
modelos, as crenças e os estereótipos presentes na Educação Básica; e o segundo, na gradução e
pós-graduação em Física, corresponde ao clima frio, falta de credibilidade, imagem do Físico e
assédio.

Primeiro Filtro: os modelos, as crenças e estereótipos na Educação Básica

Assim que comecei a ter contato com os números, já apresentei facilidade em realizar as
operações fundamentais, sempre tive facilidade com Matemática. Aos 8 anos de idade já
sabia toda a tabuada (...) ficava escrevendo-os, em folhas e mais folhas, até que me dei
conta que eles não tinham fim (Neusa, 2015).

De acordo com Meltzozz (2015), entre os seis e oito anos de idade os meninos apresentam
mais habilidade com a matemática do que as meninas, mesmo que expostos às mesmas experiências
escolares, ou seja, o filtro de gênero já está presente nesta fase. Neusa desconstrói o modelo
dicotômico de gênero, em que as meninas não possuem interesse e facilidade com cálculo; e diverge
do gendramento aprendido nas práticas sociais, educacionais, familiares e institucionais, assim
como Amália:

Sempre fui a melhor aluna na matemática. Eu lembro que era uma coisa muito simples, eu
não questionava. Acho que quando você é criança faz as coisas que tem que fazer, eu
lembro que era uma coisa simples e que eu gostava de fazer (Amália, 2016).

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Nas palavras de Amália, matemática é algo simples e que dá prazer. Segundo Lima (2013,
p.170) a habilidade de aprender matemática é igual em ambos os sexos, a diferença seria a
subjetividade (“aptidão, gostar”) que difere em cada indivíduo.
Na infância as crianças aprendem os modelos de gênero a serem seguidos e as expectativas
sociais depositadas nessas performances. No entanto, Neusa e Amália demonstravam não
corresponder às crenças de que meninas não gostam ou não têm boa performance em raciocínio
lógico, expressas em frases rotineiras que reforçam a desigualdade de gênero: “meninas são meigas,
gostam de bonecas, não gostam de matemática”. Esses estereótipos, logo nos primeiros anos
escolares, induzem as meninas a desconfiar das suas habilidades com cálculo (BARTHELEMY,
McCORMICK e HENDERSON, 2016). Neste contexto muitas meninas/mulheres incorporam
inconscientemente crenças e estereótipos de gênero que podem influenciar seu desempenho futuro,
mesmo quando inicialmente apresentam resultados positivos nos exames das disciplinas de ciências
exatas (DASGUPTA; STOUT, 2014).
Segundo Velho e Leon (1998), até os 12-13 anos de idade alunas e alunos apresentam
desempenho igual nas diferentes disciplinas e áreas do conhecimento. No entanto, depois desta fase
são instituídos obstáculos sutis e diretos, sobretudo para as meninas se aproximarem das ciências
exatas e tecnologias. As razões para isso seriam: a) as crenças e valores socioculturais estabelecidos
pelos modelos aprendidos e reproduzidos por pais, mães, irmãos/irmãs, professores/as e outros, que
incutem e controlam os interesses e as expectativas das crianças e jovens; b) as representações de
feminilidade e masculinidade associadas aos cursos, ocupações e profissões, que afastam ou atraem
meninas e meninos, afetando sua confiança e autoeficácia; c) a prevenção de questionamentos e
incômodos, conflitos e atritos na relação família-trabalho (OLINTO, 2011; SAAVEDRA,
TAVEIRA e SILVA, 2010).
A influência, inspiração e apoio de pessoas próximas e influentes, como familiares e
professores/as, são importantes na descoberta de uma afinidade e escolha atípica da Física por uma
menina, bem como na sua persistência, como relata Neusa:

Meu interesse com a Física começou antes mesmo de estudá-la, quando minha irmã mais
velha começou a cursar o 1º ano do Ensino Médio. Ela tinha um professor muito bom, ela
falava muito bem dele, dizia que era uma disciplina difícil, mas que o professor a tornava
mais interessante, fazendo experimentos para mostrar a aplicação desta ciência no
cotidiano. A partir de então comecei a ler os livros de Física da minha irmã e não via a
hora de estudar esta disciplina (Neusa, 2015).

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Em 2006, o American InstituteofPhysics (AIP) realizou um estudo com mais de 1.350
mulheres Físicas de 70 países, incluindo 44 Físicas brasileiras, revelando que a maioria das
mulheres optou pelo curso de Física como carreira profissional durante o Ensino Médio
(TEIXEIRA e COSTA, 2009), demonstrando a importância de encorajar as meninas nesse período.

Segundo Filtro: clima frio, falta de credibilidade, imagem masculina do físico e assédio na
Graduação/Pós-graduação
A presença de mulheres no curso de Física ainda causa estranhamento, de acordo com Fox-
Keller (1985). Elas são consideradas “incompatíveis” e, por muito tempo, essa incompatibilidade
foi explicada como “incapacidade” intelectual; as características femininas e as diferenças
biológicas foram utilizadas para justificar a “falta de interesse” e ao mesmo tempo distanciá-las das
ciências (BARTHELEMY, McCORMICK e HENDERSON, 2016; DANIELSSON, 2012;
SCHIEBINGER, 2001).
Nesse contexto, as mulheres vivenciam um clima frio ou hostil, seja na entrada, seja durante
a vida acadêmica em cursos masculinos (Física, Matemática, Engenharias e Computação). Elas nem
sempre têm colegas mulheres para compartilhar suas experiências e muitas fazem disciplinas
sozinhas, como relata Amália.

Eu fiz quase toda a minha graduação sozinha.... Teve um professor que eu sempre achei
muito babaca, ele fazia diferença por eu ser mulher, mas nunca me incomodou muito. Eu
nunca fui uma pessoa que achava que isso aqui é muito difícil porque eu sou mulher, não
está feito para mim. Sempre tentei não me ligar com essas coisas (Amália. 2016).

Além do percurso solitário, Amália descreve que, por ser mulher, percebia um tratamento
diferenciado de alguns professores, mas não desanimou. Bernice Sandler (1982) denominou “clima
frio” o tratamento diferenciado na educação de meninas/mulheres, das várias formas de
desvalorização aos estereótipos negativos e baixas expectativas depositadas nelas, bem como o
assédio vivenciado por elas em suas trajetórias (SANDLER, 2005). Para auxiliar a reconhecer o
clima frio, Sandler (2005) criou um guia para educar gestores/as e professores/as, prevenindo
mulheres para identificar e eliminar em seu cotidiano comportamentos tais como: exprimir
expectativas mais baixas para as mulheres, potencializando a influência de estereótipos
internalizados; exclui-las da participação em reuniões e conversas; tratá-las de forma diferenciada
quando seus desempenhos ou realizações são iguais; proporcionar a elas menos atenção e estímulo
intelectual; desmotivá-las mesmo através de “boas maneiras”; identificá-las pelo seu sexo; de forma

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direta ou indireta, aceitar expressões hostis em relação a elas e desvalorizá-las; proclamar o poder
masculino.
A literatura internacional tem visibilizado questões relacionadas ao clima frio, no intuito de
reprimir discriminações e diminuir as problemáticas de gênero, no entanto o sexismo não tem sido
discutido ou identificado na Física (BARTHELEMY, MCCORMICK e HENDERSON, 2016). De
forma nem sempre consciente, mulheres e homens assimilam normas e padrões de comportamento
que reproduzem uma imagem negativa do sexo feminino (DASGUPTA, 2016; DANIELSSON,
2012). Assim, falta credibilidade às mulheres na Física, como relata Neusa:

Agora, o que se percebe é certa falta de credibilidade nas mulheres, um olhar um pouco
diferente, que lhe ‘obriga’ a mostrar que você é tão capaz quanto um homem ou até mais.
Se espera menos das mulheres, que, por sua vez, para garantir seu espaço, sempre têm que
se esforçar mais, mostrar mais resultado para poder se afirmar. Você tem que se esforçar
para ser acima da média, pois, em geral, se espera um resultado negativo das mulheres
(Neusa, 2015).

Neusa confirma que na Física as mulheres necessitam afirmar permanentemente a sua


capacidade, exibindo performance acima da média para serem respeitadas, o que pode gerar
ansiedade e insegurança (SKIBBA, 2016; ROSA, 2013). No depoimento de Amália se percebe o
efeito da pressão sofrida pelas mulheres nos campos masculinos, que afetava a sua autoconfiança.
Ela revelou que gostaria que o doutorado tivesse durado mais tempo para se sentir mais segura em
relação ao título.

Pensei: já me doutorei, não tenho cara de doutora, eu não sou doutora, e eu não
me sinto doutora, não tenho certeza de tudo que eu faço (Amália, 2016).

O excesso de autocrítica e a falta de conhecimento crítico sobre as relações de gênero nas


ciências (de discriminação explícita ou não) têm contribuído para a baixa autoestima das mulheres
(TABAK, 2006). Outro fator é a associação da imagem da Física ao sexo masculino: não há modelo
de “Físico” do sexo feminino. Por isso, as mulheres ainda são vistas como inadequadas e sua
presença é constantemente examinada e comparada (BARTHLEMEY, McCORMICK e
HENDERSON, 2016; DANIELSSON, 2012; SCHIEBINGER, 2001). Esse estranhamento diante de
uma Física do sexo feminino é sentido por Amália, quando diz:

A maioria das pessoas que me conhece diz: “Você é Física!? Você não parece
Física”(Amália, 2016).

Ela mesma afirma que associava a Física à imagem de Einstein e pensava estar distante
dessa representação e das características associadas ao sexo masculino, especialmente quando as

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pessoas mais próximas expressavam a admiração por ela ser uma Física. Compreende-se então que
muitas mulheres na Física tentem se masculinizar para serem aceitas como iguais, na busca de
confiabilidade entre seus pares (BARTHLEMEY, MCCORMICK e HENDERSON, 2016). As
palavras de Amália confirmam as vivências de muitas mulheres na Física:

Não queria chamar atenção [...] eu ia de calça folgada, coisas assim [...] Eu tinha uma
roupa para a universidade e uma roupa para viver! (Amália, 2016).

Amália procurava uma forma de não parecer mulher (uma estranha) e de não despertar o
interesse sexual dos seus pares. Ainda assim, sofreu mal-estar com os comentários de professores
sobre sua aparência física.

Professores que comentavam sobre minha aparência física... Achava isso estranho, não
eram coisas que eles tinham que fazer. Um deles, em particular, várias vezes falou que eu
era muito magra... Achei tão fora de lugar que o cara me falasse isso(Amália, 2016).

Esse “corpo estranho” pode desagradar ou agradar, nesta conjuntura muitas mulheres
podem encontraro assédio sexual. Embora possa ocorrer com homens e mulheres, segundo
pesquisas realizadas no Brasil e no exterior as mulheres são mais propensas a sofrerem com piadas
sexistas, comentários, gestos ou olhares de teor sexual, inclusive na educação superior, onde a
probabilidade pode ser maiornas áreas masculinas (HILL e SILVA, 2005). Neusa viveu essa
experiência, mas não se submeteu:

Um professor me assediou. Por não ter sido correspondido, passou a me constranger em


sala de aula, fazendo perguntas insistentes quando ministrava aula e todas direcionadas
apenas a mim. Ele era meu orientador, mas depois do assédio deixei de realizar pesquisas
com ele (Neusa, 2015).

O assédio sexual provém de uma relação desigual, nesse caso professor-aluna,


caracterizada por “comportamentos, palavras, atos, gestos, que podem causar danos àpersonalidade,
à dignidade ou à integridade física e psíquica de uma pessoa” (HIRIGOYEN, 2002, p.55). E nessa
perspectiva pode virar assédio moral, uma forma de violência simbólica, ou seja, por vingança por
não atingir seus desejos, o agressor usufrui do convívio para exercer tortura psicológica em sua
vítima, constrangendo, perseguindo e perturbando-a (SILVA, 2005).
Numa cultura sexista, em ambientes em que são minoria, é comum que mulheres sofram
com linguagem e piadas sexistas ou assédio moral e sexual, deixando-as mais desconfortáveis e
fragilizadas. Todavia, essa problemática não tem sido reconhecida, discutida ou combatida nesses
espaços (BARTHELEMY, McCORMICK e HENDERSON, 2016; DASGUPTA, 2016).

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Considerações finais
A metáfora do leaky pipeline foi utilizada neste artigo para visibilizar como funciona esse
vazamento, que começa cedo e continua em várias etapas da vida de meninas e mulheres na Física,
entre outros cursos de CTEM. De acordo com Blickenstaff (2005) o filtro de gênero decorre da falta
de incentivo positivo às meninas e de modelos femininos na ciência, da irrelevância do currículo
para algumas meninas e das práticas pedagógicas que favorecem os estudantes do sexo masculino,
do clima frio existente para as meninas/mulheres nos cursos de CTEM, da pressão cultural para a
conformidade ao tradicional modelo de gênero feminino, e da visão masculina inerente à
epistemologia da ciência.
As mulheres de sucesso entrevistadas neste trabalho superaram o leaky pipeline passando
pelos filtros anteriormente discriminados. Tanto Neusacomo Amália resistiram à dicotomia da
educação de meninos e meninas, às crenças e aos estereótipos comuns nos espaços familiares e
escolares, transpondo o primeiro filtro, graças ao gosto pela Matemática e/ou incentivo de
familiares para a Física. No entanto, no segundo filtro, na Gradução/Pós-graduação, enfrentaram o
clima frio em sua trajetória, a falta de credibilidade por serem mulheres em uma área dominada por
homens, o assédio sexual ou moral. Suas experiências demonstram que as mulheres, para superarem
oleaky pipeline e o genderfilter, necessitam resistir a vários empecilhos, além de demostrarem
aptidão.
De acordo com os números apresentados neste trabalho, ás mulheres estão longe de atingir a
paridade na Física, e isso se reflete tanto na ausência de diversidade nas pesquisas nas ciências,
como na perda de talentosas e valiosas Físicas.

Referências

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ssoes_mulher_cienc.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2016.
TABAK, F. Sobre avanços e obstáculos. In: BRASIL. Presidência a República. Secretária Especial
de Políticas para as Mulheres. In: Pensando Gênero e Ciência. Encontro Nacional de Núcleos e
Grupos de Pesquisas, 2006. p.27-40.
VELHO, L.; LEÓN, E. A construção social da produção científica por mulheres. Cadernos Pagu,
v.10, p. 309-344, 1998.

Coping mechanisms used by newly female Physics PhDs

Abstract: This paper aims to show the experiences of women who have surpassed the leaky
pipeline or gender filter, a common phenomenon in the exact and natural sciences, characterized by
female dropout during progression to the highest levels of academic or professional fields. Two
young women, who recently obtained their PhDs in Physics, one of the most masculine scientific
fields, were interviewed about the strategies they used in order to overcome the obstacles along
their trajectories. Discourse analysis revealed the perception of a bottleneck, constantly faced in this
space, in which women have to overcome sexist practices, besides the common obstacles in the
academic path. Subtle and naturalized, the gender filter is imposed on women in Physics through
stereotypes, prejudices, discriminations and pressures experienced daily in this field.The overall
research, supported by CNPq, indicates the importance of making these experiences visible, both in
order to promote the discussion about the subject and to help and inspire women to persevere and
progress to the highest academic and professional levels in Physics. This research is linked to a
project funded by CNPq on gender relations in male programs in higher education (Process: 471892
/ 2014-9).
Keywords: Women in Physics, graduate studies, gender filter.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X

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