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TEMPO

por Felipe Priore

“A Grande Serpente que fertilizou os ovos no início de tudo, não pode ser

nomeada porque o tempo não pode ser verdadeiramente contido, fixado ou rotulado.”

Quando o Viajante surgiu nos Reinos de Faraó, foi levado para conhecer a tamanha
opulência que havia tomado o início da Civilização. Dinastia pós Dinastia se
assegurou que o Reino e sua extensão fosse perpetuada da forma mais suntuosa do
que seus antepassados. E seria cada vez mais grandiosa com os herdeiros dos
herdeiros.

O Viajante quis ver Toth, nomeado como Deus do Conhecimento. O Guardião da


Sabedoria de todas as Eras. Meio homem, meio Íbis, em sua forma magistral de três
metros de altura, longilineo e alguns diziam onisciente.

Thot não se incomodava com visitas, desde que soubesse que não era perda de seu
precioso tempo. Dava preferência àqueles que pudessem mostrar-lhe coisas novas
ou formular paradigmas difíceis de serem decifrados.

A curiosidade começou quando não sabia nada a respeito do forasteiro que se dizia
um Viajante e que pediu tão elegantemente uma audiência consigo. Sua onisciência
nada dizia, e sua intuição havia ficado muda.

Três batidas se fizeram audíveis no Templo de Toth. E ele sabia que a hora tinha
chegado. Observou a biblioteca magistral que tomava a maior parte de seu domínio.
Sentiu o gosto da incerteza com certo amargor na boca e em seu âmago teve medo
por sua reputação inabalável.

Outras três batidas se fizeram ouvidas e as portas gigantescas da Biblioteca foram


abertas para que o Viajante fosse levado ao Deus Íbis. O ser divinal, vestido de sua
toga celeste o receberia na sala de visitas, onde uma mesa estava posta com
guloseimas e outras delícias que os mortais raramente podiam ver.

- Bom Dia, Celeste Thot! Venho em paz, cansado pela viagem e renovado por
conhecer tão maravilhoso reduto. – disse o Viajante, adentrando a sala preparada
do banquete ímpar.
A cabeça do Ibis se moveu em direção ao forasteiro e seus olhos não puderam dizer
absolutamente nada. O bico longilineo abriu-se e fez soar um grunhido rouco.

- Seja bem vindo, Viajante. Sente-se e partilhe minha refeição e suas histórias. A
que devo essa visita? – Thot grasnou de forma eloquente, ocultando em sua voz a
curiosidade desemedida.

O Viajante sorriu e sentou-se. Observou a mesa montada e seu anfitrião com um


olhar terno e sábio. Serviu-se de água apenas. Tomou dois copos de forma a aplacar
a sede, e só então se pronunciou.

- Agradeço sua hospitalidade, Querido Guardião da Sabedoria. Apenas quero ter o


prazer de ver as constelações surgirem em seu olhar e presenciar o tempo de
outrora e aquele vindouro. – o Viajante carregava uma voz cansada e absolutamente
calma, transitando entre tonalidades joviais e cadências de um ancião.

Thot sentiu-se lisonjeado e um pouco orgulhoso. Cada vez mais curioso do Viajante
entender aspectos seus que mortais jamais comentaram e que muitos de seus
irmãos jamais perceberam. Comeu um pouco, limpou o bico e cruzou as pernas.

- Bem. Se percebe a constelação e o tempo passando em meus olhos, deve saber o


peso que existe na Guarda desse local, tanto para o ontem como para aqueles que
virão e perpetuarão após nossas inúmeras partidas e retornos. – falou de forma
enigmática e retórica.

- O tempo não é linear, é circular. Então essa conversa poderia ocorrer em qualquer
parte de nossas historias. O que o tempo é para ti, Mestre Thot? – as palavras
moderadas seguiram-se de mais um copo de água refrescante.

O Deus Ibis parou por alguns instantes e contemplou as palavras, saboreando o


gosto daquilo tudo. Nunca haviam lhe questionado tais questões.

- Para mim, o tempo é Inevitável. Um fluxo sem início, meio ou fim. – respondeu de
forma a ser entendido.

O Viajante levantou e tomou seu último copo de água. Reverenciou o Deus Ibis e
começou a ir embora. Thot ficou ainda mais surpreso e incrédulo com aquela
situação. Imaginou o que poderia ter acontecido.

- Mas, por que parte? Sem nem terminar a conversa ou partilhar suas histórias. –
indagou o Deus Ibis começando a se sentir desrespeitado.
O Viajante hesitou e virou-se. Abriu o manto e a luz que se fez era chegante até
mesmo para o Guardião do Cosmo como Thot.

- O que mais eu posso contar? Estivemos sempre juntos, sem início, meio ou fim.
Sabe quando eu nasci, cresci e morri para renascer em mim mesmo. Assim como
tua consciência não consegue me entender porque eu apenas sou, inevitável. – O
viajante fechou o manto e partiu.

O Deus Ibis chorou ao ser tocado pelo tempo, se reconheceu naquilo tudo e
entendeu. Quanto mais tempo passamos tentando entender o tempo e suas ações,
menos aproveitamos o próprio tempo. Percorremos a história para entender seu
início, de onde viemos e para onde iremos, sem entender a jornada e a extensão
daquilo que somos perante o tempo.

A humanidade é o que é. Nem mais, nem menos. Apenas é. Sempre esteve e sempre
estará, até o momento que o fluxo faça o retorno ao uno e comece tudo de novo, de
outra forma.

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