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“TUDO SOBRE A DITADURA MILITAR”: MULHERES E ESQUECIMENTO

Carolina Souza Macedo

Resumo: O presente trabalho deseja discutir de que forma o jornal Folha de São Paulo, ao narrar
tempos depois o Golpe de 64 e a Ditadura Militar brasileira mais recente (1964-1985), contribui
para a (re)escrita de uma certa memória onde as mulheres foram elididas da história. Em outras
palavras, tendo como eixo a triangulação entre memória/esquecimento, ditadura militar e mulheres,
o trabalho pretende compreender que construção social da memória da ditadura é feita quase
exclusivamente do ponto de vista masculino e com destaque para homens. Nesse sentido, deve-se
perguntar sobre o apagamento e/ou silenciamento das experiências das mulheres, seja na questão da
vida privada quanto da luta política.

Palavras-chave: Memória individual; memória coletiva; esquecimento; mulheres; teorias


feministas; luta política.

2014 é o ano em que foi “comemorado” – no sentido que Ricoeur (Cf. SILVA, 2002) dá ao
termo – o cinquentenário do Golpe Militar de 64. Diversos veículos da imprensa brasileira, além de
alguns estrangeiros, dedicaram páginas impressas, tempos de rádio e TV, e espaços na internet ao
tema, assim como aos 21 anos de ditadura civil-militar vividos no país. Um dos veículos foi o jornal
Folha de S. Paulo, ainda hoje, um dos mais tradicionais do país. Sediada na capital paulista, ele se
apresenta como uma publicação de referência, com abrangência nacional e liderança em tiragem –
de acordo com a mesma, uma posição consolidada “durante a campanha pela redemocratização do
país, em 1984, quando empunhou a bandeira das eleições diretas para presidente1”.
Entretanto, a Folha escolheu descolar a data e publicar no dia 23 de março um fascículo
especial, encartado no jornal, que recebeu o nome de “Tudo sobre a Ditadura Militar”, disponível
também como “reportagem multimídia2”. Ao todo, o ‘tudo sobre’ impresso reuniu conteúdo em oito
páginas, composto por oito textos – sete deles assinados. Entre os temas abordados, motivações
para o golpe, estruturas de repressão e combate à luta armada, bom desempenho da economia,
resistências no campo cultural, comportamento de órgãos de imprensa e até um espaço para a ficção
– um bloco de “respostas” a perguntas como “E se Jango tivesse resistido ao golpe?”). A compor a
cena, outras unidades redacionais distintas, como infográficos, retrancas, ilustrações, fotografias,
entre outros. Na página 3, o jornal informa que o “site especial da Folha sobre a ditadura vai ao ar
hoje” e nele há também “vídeos, galerias e depoimentos”.

1
Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/circulacao.shtml
2
Acesso em 06/06/2017 folha.com/golpe64

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Uma primeira mirada, ainda que panorâmica, suscita perguntas e caminhos investigativos
iniciais. Cabe indagar, por exemplo, que fatos marcam os principais traços dessa construção. O que
marcam esses textos dos 50 anos sobre a ditadura? O que o tudo comtempla? O que a escolha por
publicar no dia 23 de março – e não 31, que marca o início do golpe – pode nos apontar? Que
valores se apresentam em disputa? Quem fala na Folha nessa construção da memória? No presente
artigo, entretanto, iremos nos ater mais especialmente a construção de uma memória social que
contempla – ou não – a participação/presença de mulheres na história. Para tanto, lançaremos mão
de teorias que pensem a memória enquanto constituidora de poder e de trajetórias e experiências
históricas que, ainda que vislumbradas em lampejos luminosos, deem a ver outras narrativas sobre o
período.

O jornal “plural”
Antes, façamos uma mirada panorâmica sobre como o veículo se articula com seus leitores e
ele próprio se lê/enxerga.
Uma matéria publicada no caderno Poder em 30 de março de 2014 – domingo seguinte ao
fascículo Tudo sobre a Ditadura Militar –, reafirmava a liderança da Folha também para além do
impresso: “A Folha é o jornal de maior circulação e audiência do Brasil, em diferentes plataformas
e métricas. Detém o maior volume de edições pagas, vende mais edições digitais do que seus
concorrentes e recebe mais cliques e visitantes em seu site do que qualquer outro jornal3”.
O movimento de tornar público – reiteradas vezes – a posição de liderança e de “jornal mais
influente do Brasil4” vem acompanhado de um status de verdade que ela reivindica para si. De
alguma maneira, parece dizer que vende mais porque rigoroso, porque rigoroso vende mais. Como
ressalta o pesquisador Claudio Abramo:

A Folha é o jornal brasileiro que mais revela preocupação com a projeção de imagem. Seu
noticiário faz frequentes alusões aos procedimentos que teriam sido executados durante o
levantamento e tratamento das notícias. O jornal edita e comercializa um Manual Geral da
Redação em que se explicitam os princípios que, idealmente, governariam seu processo
produtivo. Mais, existe em operação há alguns anos um "Projeto Folha", que incorpora
ações de marketing, reformas editoriais e de processo de produção, todas elas fartamente
propagandeadas. Como é natural, um dos efeitos de toda essa divulgação é incutir no leitor
a impressão de que o jornal é, de fato, confeccionado de acordo com todos aqueles rigores e
estipulações normativas. É como se a notícia carregasse, como texto subjacente, seu próprio
atestado de veracidade. (ABRAMO, 1991)

3
Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/158930-maior-jornal-do-brasil-folha-e-lider-em-
diferentes-plataformas.shtml
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Acesso em 07/09/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/conheca_a_folha.shtml

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Ao propagandear seus métodos de produção, ela valoriza os “princípios editoriais do Grupo
Folha: independência, jornalismo crítico, pluralismo e apartidarismo”5. O pluralismo, em especial,
parece ser acionado como elogio e, ao mesmo tempo, como defesa para rebater críticas como as que
o jornal recebeu quando publicou, no aniversário de 40 anos do golpe, texto6 assinado pelo general
reformado do Exército, Carlos Meira Mattos, no qual ele afirma:

A derrubada do governo João Goulart não foi um golpe militar, como hoje insistem em
tachar e propagar certos setores políticos e da imprensa. O dia 31 de março de 1964 foi,
sim, o marco que coroou a resposta da grande maioria dos brasileiros, apoiada pelas Forças
Armadas, ante as ameaças e as tentativas de implantação de um regime político
incompatível com a nossa vocação de viver numa sociedade livre e democrática.

A preocupação em se dizer um veículo que abriga diferentes vozes é recorrente, e ganhou


novo grifo com a campanha institucional O que a Folha pensa7, veiculada na mídia impressa, em
canais de TV aberta e fechada e na internet de 2014, mesmo ano do fascículo Tudo sobre a
Ditadura Militar. Às opiniões sobre diferentes assuntos – como aborto, pena de morte e as
manifestações de junho de 2013 – segue-se sempre o mesmo texto: “Concordando ou não, siga a
Folha, porque ela tem suas posições, mas sempre publica opiniões divergentes”.
Mas, afinal, o que o jornal considera divergência? Que vozes cabem no pluralismo da
Folha? O quão elástico é este conceito? Indo adiante, ao narrar o passado, a Folha pretende-se total
porque plural? Se sim, ela se esquece de uma das lições de Walter Benjamin: “articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de
uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224).
Em outras palavras, um olhar sobre o jornal nos estimula a indagar em que medida o
encontro de opiniões que se pretendem plurais implica a construção (e possibilidade) da memória
social da ditadura que esse dispositivo engendra. Ressaltamos aqui que pensar a memória como um
campo social é enfatizar seu empenho em orientar e agir em um campo de lutas simbólicas,
discursivas e relacionais. Neste sentido, a memória social deve ser considerada em seu contexto e
produção sócio-históricos, uma vez que:

A memória se constitui como poder, como um contrato e uma luta pela imposição de uma
hegemonia, não conseguindo e pretendendo “dar conta” da complexidade social e dos
processos em curso. Ao contrário, sua dimensão de poder e, portanto, sua eficácia
dependem da política, cuja pretensão de controlar ou orientar a memória social é expressão
dos interesses em luta. Dessa forma, toda memória social é política. (MORAES, 2005. P.
93)

5
Acesso em 07/11/16 http://www1.folha.uol.com.br/institucional/missao.shtml
6
Acesso em 07/11/16 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3103200409.htm
7
Acesso em 02/11/16 https://www.youtube.com/watch?v=SFHE0_VqT7A

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A publicação parece nos dar uma pista sobre a memória que ajuda a construir ao convidar
doze figuras consideradas eminentes para responder a pergunta Por que Jango foi deposto em
1964?, uma pergunta direcionada exclusivamente a homens e brancos e ilustrada na matéria
multimídia. A estratégia de aglutinar especialistas de diferentes áreas, que teria como efeito traduzir
pontos de vistas plurais, acaba por (re)ocultar outras tantas histórias possíveis do golpe e dos anos
de regime de exceção. São nessas vozes de autoridade que o poder e a palavra costumam se
encontrar e, como nos lembra Pierre Clastres sobre as sociedades com estado, “há acontecimento
histórico quando, abolido aquilo que os separa e assim os condena à inexistência, poder e palavra se
estabelecem no próprio ato de seu reencontro. Toda tomada de poder é também uma aquisição da
palavra” (CLASTRES, 2003, p. 169). Ainda assim, sabemos que uma pegada no chão pode apontar
caminhos, mas não os determina e, portanto, insistimos na investigação: quem fala na Folha quando
ela quer se lembrar?

Print retirado da página/reportagem multimídia folha.com/golpe64


Léxico da memória
O fascículo impresso oferece, na primeira página, uma leitura sobre os então candidatos à
presidência da república Aécio Neves e Eduardo Campos e da presidenta Dilma Rousseff, leitura
que, apesar de breve, revelam percepções distintas a depender do recorte de gênero. O primeiro é

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apresentado no ano do golpe como “um menino de quatro anos que gostava de brincar com o avô, o
então deputado federal Tancredo Neves”, a segunda como “uma estudante de 16 anos que se
preocupava pouco com política” e o terceiro como alguém que “não tinha nascido, mas se lembra
até hoje das histórias que seu avô Miguel Arraes, à época govenador de Pernambuco, contava sobre
o dia em que foi deposto e levado à prisão pelos militares”. Nas três descrições, é possível perceber
a distinção entre aqueles que, tendo já nascido ou não, têm para si designados uma nobre herança
política e possuem portas abertas à cena política/pública, e entre aquela que supostamente tinha
outros interesses que a política.
O fascículo traz uma topografia de imagens que inclui trinta fotografias da época. Dentre
elas, apenas três é possível ver mulheres: uma pequena fotografia (em close) da escritora Ana
Cristina César, no rodapé da página 7 e acompanhada dos dizeres “Cenas de Abril – Poesia, 1979.
Livro independente da poeta que, com escracho e lirismo, marcou a contracultura nos 70”; uma
imagem localizada na parte debaixo da mesma página 7 contendo seis atores do Teatro Oficina a
encenar a peça O Rei da Vela e em que é possível ver duas atrizes (não identificadas
nominalmente); e um registro de artistas e intelectuais espalhados na Passeata dos Cem Mil,
realizada em 1968, em que, dentre as dez pessoas identificadas, duas delas são Ítala Nandi (“atriz,
atuava em O Rei da Vela”) e Nana Caymmi (“cantora, era casada com Gilberto Gil”).
Já os textos somam quase 45 mil caracteres, assinados por seis jornalistas, cinco homens e
uma mulher (Érica Fraga8). Entre as cerca de mais de sete mil palavras contidas nos textos, a
palavra mulher existe apenas uma única vez; aparece quando é feita menção à resistência ao
governo do presidente João Goulart demonstrada na Marcha da Família com Deus pela Liberdade
(“Mulheres de classe média, líderes religiosos e políticos de oposição estavam na linha de frente da
passeata”). Dentre as pessoas mencionadas, seja protagonizando momentos importantes da história
ou atuando como personagens laterais, seja como sustentação à ditadura ou na resistência e luta pela
democracia, há apenas duas mulheres: a então presidenta Dilma Rousseff e a cantora Nara Leão, na
matéria Da resistência ao showbiz, que cita o musical Opinião (“Dirigido por Augusto Boal, o
espetáculo era assinado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Levava ao
palco Zé Keti, João do Vale e Nara Leão para protestar contra a ditadura que se instalava”).
Não há nenhuma menção a indígena, índio, negra, negro, gay, lésbica, bissexual, feminino,
feminista, entre outros. O grifo à inexistência deste vocabulário não é despropositado; há ações e

8
Jornalista da Folha de S. Paulo desde maio de 2010. Segundo o veículo, é “jornalista com mestrado em Economia
Política Internacional no Reino Unido. Venceu os prêmios Esso, CNI e Citigroup. Mãe de três meninos, escreve sobre
educação, às quartas.”. Acesso em 26/06/2017 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ericafraga/

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fatos históricos que, se ganhassem visibilidade, poderiam oferecer contribuições importantes para
debates atuais. Além disso, sendo o jornal um veículo de comunicação que disputa mercado, ele
poderia ganhar prestígio apresentando um bom trabalho de apuração e pesquisa. Sobre esses
“vocabulários”, há diversos momentos não canonizados, mas não menos importantes. Em 1969, por
exemplo, o Itamaraty instala a Comissão de Investigação Sumária que listou 44 funcionários a
serem cassados, sob a acusação de “prática de homossexualismo” e “incontinência pública
escandalosa”. Nesse mesmo ano, o Reformatório Agrícola Indígena Krenak começa a funcionar no
Posto Indígena Guido Marlière (hoje denominada Terra Indígena Krenak), no município de
Resplendor, Minas Gerais. Comandado por agentes da Polícia Militar mineira, o local é, na verdade,
um campo de trabalhos forçados, com tortura e maus tratos a índios de mais de 15 etnias. Em 1978,
o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) é fundado em ato público
que reúne duas mil pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato denuncia a
violência policial contra negros. Em 1980, treze organizações protestam, no Centro de São Paulo,
contra a Operação Limpeza, comandada pelo delegado José Wilson Richetti, que espancava,
extorquia, torturava e detinha com violência especialmente prostitutas, travestis, lésbicas e gays.
Ainda em 1980, ocorre a primeira marcha gay em São Paulo e surge o primeiro grupo
exclusivamente lésbico do país.

Onde estão as mulheres?


Para quem busca se informar por meio de um caderno que promete apresentar Tudo sobre a
Ditadura Militar possivelmente ficaria com a impressão de que as mulheres não tiveram
atuação/organização política no período. Quiçá existiram na cena pública. Em um exercício de
memória – nem um pouco custoso – é possível lançar mão de uma imagem talvez icônica de
mulheres a frente da Passeata contra a Censura, em que as atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva
Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Norma Bengell caminham de mãos dadas.

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Foto: Gonçalves/Acervo CPDocJB
Quando se fala em imprensa alternativa é também comum trazer à memória veículos como
Pasquim e jornal Movimento, certamente de grande importância para a resistência. Mas assim como
outros, a Folha parece se esquecer de publicações que tiveram mulheres a frente e que, inclusive,
tencionavam as narrativas desses mesmos jornais alternativos.
Na edição 345 do Pasquim, Ivan Lessa escreveu: “Ei, feministas: em primeiro lugar os
direitos humanos. Depois, então, a gente vê o caso de vocês, tá?”. No mesmo ano, Elice Munerato
responde, afirmando a enorme desigualdade entre homens e mulheres em áreas como alfabetização,
salários, escolaridade, etc., e completa: “nem mesmo a imprensa alternativa dá sinais de vida
quando se trata dos direitos das mulheres. [...] numa atitude que tem muito pouco a ver com seu
‘vanguardismo’ intelectual”.
Entre as publicações, vale destacar o Brasil Mulher, primeiro jornal feminista dos anos
1970, feito por mulheres e dirigido especialmente a elas, circulando entre 1975 e 1980. Pouco
depois, surgiu o Mulherio, criado por jornalistas e acadêmicas, com circulação de 1981 a 1988 e
tendo Lélia Gonzalez como uma de suas editoras. Entre vários textos a questionar o mito da
democracia racial, sua reportagem “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”, de 1982, já colocava
em perspectiva a necessidade de se pensar um feminismo interseccional.

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No período ditatorial, as mulheres atuavam não só em grande número em movimentos de
jornalistas e artistas, mas também em entidades estudantis, organizações armadas, e nunca poupadas
pela repressão; são muitos os casos de mulheres que, além de torturadas, sofreram abuso sexual por
parte de agentes do estado.

Foto: Arquivo Superior Tribunal Militar

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1975 é instituído pela ONU como Ano Internacional da Mulher, o que possibilitou a
realização, no Rio de Janeiro, do ciclo de debates sobre o papel da mulher na realidade brasileira.
Esse mesmo ano marcaria também o surgimento de um dos mais importantes movimentos na luta
pela anistia: o Movimento Feminino pela Anistia, que conclamava as mulheres a reivindicarem, a
partir de seus papeis de mãe, esposas e filhas, a anistia para seus entes queridos atingidos pela
violência do Estado. Em 1977, Helena Greco9 tornou-se presidente e fundadora do Movimento
Feminino pela Anistia em Minas Gerais, e do Comitê Brasileiro de Anistia/MG (1978).

Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press

Ainda em 1975, o Movimento Feminino pela Anistia é criado por Terezinha Zerbini,
assistente social, advogada e ativista de direitos humanos. Posteriormente, núcleos do movimento
são espalhados pelo país. Em 1978, ele é ampliado com a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia
(CBA), no Rio de Janeiro. Formado por advogados de presos políticos e com apoio da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), o comitê pede a anistia ampla, geral e irrestrita, que viria a ser
conquistada em 1979.

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Em 2005, Helena Greco foi uma das cinquenta e duas brasileiras a integrar a lista do Projeto Mil Mulheres
para o Prêmio Nobel da Paz, iniciativa da Fundação Suíça pela Paz e Associação Mil Mulheres.

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Foto: Imagem da entrevista em vídeo Therezinha Zerbini - Resistir é Preciso..., concedida ao Instituto
Vladimir Herzog (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TU9zGkhRbrc)

Manifestantes nas galerias da Câmara dos Deputados durante a votação da Lei da Anistia.
Foto: Sonja Rego/CPDoc JB.

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Conclusão

Em 1964, sob a bandeira de “tirar Jango do poder, para combinar o resto depois”
(GASPARI, 2002, p. 88), um governo eleito democraticamente foi derrubado pela força das armas,
com respaldo de eminentes grupos conservadores (empresariado, religiosos, políticos estrangeiros,
entre outros) e parte significativa dos brasileiros. O novo governo, recebido nos braços de uma
classe média aliviada por se ver longe do “perigo do comunismo” (vide Marchas da Vitória), logo
no primeiro ano começou a organizar aparatos repressivo e legal próprios, com vistas à manutenção
no poder. Em outras palavras, um conjunto de práticas e normas arbitrárias, mas com valor legal.
Seus dezessete atos institucionais, decretos secretos, leis complementares e instrumentos jurídicos
permitiram que, de forma institucionalizada, fossem praticados atos de censura, fechamento do
Congresso, demissões e exonerações, suspensão de direitos políticos e civis, prisões arbitrárias,
tortura, desaparecimentos forçados e mortes.
Investigar este período (mais de duas décadas), sobre qual repousam perguntas ainda sem
respostas, pode permitir expor redes de cumplicidades e múltiplos níveis de responsabilidade e,
assim, permitir examinar também a sociedade. Como nos lembra a pesquisadora Susana Kaiser, em
seu texto Argentinian Tortures on Trial? How Are Journalists Covering the Hearings’ Memory
Work?, trinta mil pessoas não desaparecem porque um grupo de oficiais militares tomou posse ou,
de forma análoga, um regime de exceção não se sustenta durante 21 anos porque um grupo de
oficiais militares tomou posse:

Thirty thousand people don’t disappear because a group of military officers take over. By detailing
the functioning of state terrorism, activist journalists, as professional witnesses, amplify what
unfolds at the hearings, constantly inviting memory to contextualize new information and counter
denials with proven facts. These rewrites of history expose the networks of complicities and
multiple levels of responsibility, focusing attention on actors beyond those standing trial. In doing
so, they also scrutinize society, revealing inconvenient truths for many 10. (KAISER, pág. 255)

Pode também jogar luz a episódios e lutas que as narrativas oficiais, por vezes, não
contemplam. Esse movimento de olhar para o passado interrogando sobre o futuro, permite ter no

10
Tradução nossa: Trinta mil pessoas não desaparecem porque um grupo de oficiais militares toma posse. Ao detalhar o
funcionamento do terrorismo de Estado, os jornalistas ativistas, como testemunhas profissionais, amplificam o que se
desenvolve nas audiências, constantemente convidando a memória para contextualizar novas informações e contrariar
as recusas com fatos comprovados. Essas reescritas da história expõem as redes de cumplicidades e múltiplos níveis de
responsabilidade, concentrando a atenção em atores além dos que estão em pé. Ao fazê-lo, eles também examinam a
sociedade, revelando verdades inconvenientes para muitos.

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horizonte exercícios bastante salutares como refletir o atual debate sobre a corrupção, palavra
mencionada uma única vez no fascículo Tudo sobre a Ditadura Militar e como alegação (“Acabar
com a corrupção e extirpar a influência esquerdista do governo Jango eram as alegações de
militares e setores civis para dar o golpe”), apesar dos notórios escândalos durante o período, como
Lutfalla e o Caso Delfin11. Ou, como discutido no presente artigo, fomentar uma (re)escrita da
memória social onde as mulheres não sejam mais elididas da história, nem suas experiências sejam
apagadas ou silenciadas, quer na questão da vida privada ou da luta política.
Ainda que saibamos que, “dos pontos de vista fenomenológico e psicanalítico, o
esquecimento efetivamente cria a memória” (HUYSSEN, 2014. P. 157) – que, portanto, ele faz-se
necessário – e que evitemos o binarismo de opostos irreconciliáveis, talvez seja preciso reconhecer
aquilo que não se pode esquecer, algo que vai além da história que queremos contar. É reconhecer
que as temporalidades são imbricadas e não lineares, reconhecer que existe algo terrível quando se
quer esquecer-se de tudo ou de lembrar-se de muito pouco, congelando o futuro do passado, o
presente do passado e o futuro do presente.
Nesse sentido, não nos parece que a Folha não se lembra ou se esqueceu completamente. Ao
articular memória/esquecimento, ao mesmo tempo em que ela não se esquece do golpe, algumas
experiências seguem apagadas e algumas de suas consequências parecem apaziguadas,
principalmente consequências que incutem na atualidade.

“As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.”


Cartilha da cura, poema de Ana Cristina César.

Referências

ABRAMO, Claudio. IMPÉRIO DOS SENTIDOS - CRITÉRIOS E RESULTADOS NA FOLHA DE


S. PAULO. Novos Estudos CEBRAP São Paulo, Nº 31, outubro 1991, pp. 41-67.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. In: Obras
escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.

CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify,
2003.

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Acesso em 26/06/17 http://memoriasdaditadura.org.br/corrupcao/index.html

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FOLHA DE S. PAULO. Manual de Redação. São Paulo: Publifolha, 2001.

GASPARI, Elio. As ilusões armadas. Vol. 1 – 5. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014-2016.

GONDAR, Jô & DODEBEI, Vera (Org.). O que é memória social?. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 200.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da


memória. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, Museu de Arte do Rio, 2014.

KAISER, Susana. Argentinian Tortures on Trial? How Are Journalists Covering the Hearings’
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Memory. Londres: Palgrave Macmillan, 2014.

QUADRAT, Samantha Viz & ROLLEMBERG, Denise (Org.). História e memória das ditaduras
do século XX. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2015.

QUADRAT, Samantha Viz & ROLLEMBERG, Denise (Org.). A construção social dos regimes
autoritários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2010.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora
Unicamp, 2007.
___________________ “O que é um texto?”; “Explicar e compreender” e “O modelo do texto: a
acção sensata considerada como texto” Do texto à acção. p.139-212.

“Tudo sobre a Ditadura Militar”: women and forgetfulness

Astract: The present paper wishes to discuss how Folha de São Paulo newspaper, describing the
Coup of 64 and the most recent brazilian military dictatorship (1964-1985), contributed to the (re)
writing of a certain memory where women were elided of history. In other words, focusing on the
triangulation between memory / forgetting, military dictatorship and women, the paper intends to
understand that social construction of the memory of the dictatorship is made almost exclusively
from the masculine point of view and with prominence for men. In this sense, one must ask about
the erasure and / or silencing of women's experiences, whether in the question of private life or
political struggle.
Keywords: Individual memory; collective memory; forgetfulness; women; feminist theories;
Political struggle;

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