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DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO II

Exame final – 2ª turma – 5/07/19


Parâmetros de correção

I - Dê uma noção sucinta de:


1 – Comércio de emissões
(2 val.)
Compreendido no âmbito temático do Direito Internacional do Ambiente e previsto no Protocolo de
Quioto para redução das emissões de gases com efeito de estufa, o comércio de emissões é, a par da
implementação conjunta e do mecanismo de desenvolvimento limpo, um mecanismo flexível
(conquanto eticamente questionável) que permite aos países mais industrializados, que excedam os
seus limites de emissão, adquirirem créditos de carbono àqueles (menos desenvolvidos) que fiquem
aquém das suas metas, devendo estes últimos investir os valores obtidos com esse "comércio de
carbono" em tecnologias amigas do ambiente e os primeiros comprometer-se com uma redução
efectiva da emissão de gases para a atmosfera, estando referido nos artigos 6.º e 17.º daquele diploma:
“Com o objectivo de satisfazer os compromissos assumidos ao abrigo do artigo 3.º, qualquer Parte
incluída no anexo I pode transferir para, ou adquirir de, qualquer outra dessas Partes unidades de
redução de emissões resultantes de projectos destinados a reduzir as emissões antropogénicas por
fontes ou a aumentar as remoções antropogénicas por sumidouros de gases com efeito de estufa em
qualquer sector da economia” (art. 6.º, 1), sendo que “Tal comércio será suplementar às acções
nacionais destinadas a satisfazer os compromissos quantificados de limitação e redução de emissões”
(art. 17.º).

II – Distinga:
1 – Reconhecimento de Estados e reconhecimento de governos
Tratando-se o reconhecimento de um ato jurídico unilateral mediante o qual um sujeito de direito,
verificando a existência de determinada situação ou ato jurídico em cuja criação não interveio e
reputando-a(o) lícita(o) face ao ordenamento jurídico internacional, consente que tal lhe seja oponível,
poderá ter natureza jurídica diversa – e, assim, produzir diferentes efeitos jurídicos – a depender do
tipo de situação/ato a que se dirija. Por isso, apesar de serem ambos relevantes para e conexionados
com a consecução das relações internacionais, o reconhecimento de Estados e o reconhecimento de
governos possuem importantes distinções.
Desde logo porque o primeiro dirige-se a um sujeito de direito internacional, cuja própria constituição,
para os partidários do voluntarismo clássico, dependeria da aceitação exprimida através de atos de
reconhecimento dos Estados preexistentes. Reversamente, para os partidários de uma concepção
declarativa, a personalidade jurídica do Estado não dependeria do ato de reconhecimento,
constituindo-se com a “mera reunião, numa determinada entidade, dos três elementos (população,
território e governo)”, muito embora não se possa concluir que o reconhecimento de Estados “se
reconduz a um mero e inócuo formalismo”, porquanto, “no que respeita ao pleno exercício das
competências internacionais do novo Estado”, é tal ato imprescindível.
Quanto ao reconhecimento de governos – que é autónomo relativamente ao primeiro –, a aceitação dos
efeitos que daí decorre refere não à existência de/possibilidade de exercício de competências
internacionais por um sujeito (o Estado); antes, ao órgão estadual habilitado à sua representação e
concreto exercício de tais competências. Por conseguinte, o reconhecimento de governos é pertinente
para “saber em que medida uma autoridade política (…) ascendeu ao poder fora da regularidade ou ao
arrepio dos procedimentos constitucionais normais (v.g., por via revolucionária), e se arvora em
representante desse Estado no plano internacional, o é ou não validamente”. “São tradicionalmente
duas as posições doutrinárias acerca do reconhecimento de governos: a doutrina da legitimidade (…) a
qual sustenta só deverem ser reconhecidos os governos cujo poder seja sancionado, a posteriori, por
sufrágio popular (…); e a doutrina da efectividade, (…) cujos partidários, mais realisticamente
defendem o reconhecimento dos governos que exerçam autoridade sobre o território estadual e
demostrem condições de cumprir os compromissos internacionais”.

2 – Separação e Estado sucessor de recente independência


(4 val.)
Separação e Estado sucessor de recente independência apresentam-se como modalidades de
sucessão de Estados (substituição de um Estado por outro nas responsabilidades das relações
internacionais dos respetivos territórios) que têm em comum não apenas a formação de pelo menos um
novo Estado sucessor, como a continuidade da existência do Estado antecessor.
Diferenciam-se, porém, desde logo, porque, na segunda hipótese, está em causa o exercício do
direito à autodeterminação por um povo não-autónomo (povos colonizados, sob dominação estrangeira
e sujeitos a um regime de discriminação racial), usualmente envolvendo um território geograficamente
separado. Daí decorrem diferenças várias nos regimes jurídicos aplicáveis a um e a outro tipo de
sucessão, principalmente em matéria de transmissibilidade de bens e dívidas e na dimensão das
relações do Estado sucessor com a ordem jurídica internacional, conforme indicado nas CV/78 e
CV/83.

III – Comente a seguinte afirmação:


1 - «A hierarquização da normatividade internacional ocasionou, simultaneamente, a sua
diluição».
(6 val.)
A hierarquização (material) da normatividade internacional relaciona-se com a “teoria do ius
cogens, que, partindo da ideia de ordem pública internacional – defensável a partir do momento em
que se admite a existência de um núcleo de valores reputados de fundamentais e indisponíveis pela
consciência jurídica geral da comunidade internacional – assenta numa summa divisio entre normas
imperativas e normas simplesmente obrigatórias (…) Ao conceito de ius cogens está, pois, associada
uma ideia de «escala da normatividade» (P. Weil), em tais termos que as normas imperativas, por
tutelarem interesses fundamentais da comunidade internacional, são hierarquicamente superiores às
demais que integram o corpus do Direito Internacional vigente. (…) Também a teoria das obrigações
erga omnes contribuiu decisivamente para a ideia de uma «normatividade graduada». (…) Haveria
actualmente um núcleo de obrigações internacionais de cada estado para com a comunidade
internacional no seu conjunto. A sua particular natureza, rectius, o seu específico conteúdo,
determinaria que elas dissessem respeito a todos os Estados, a todos conferindo, nessa conformidade,
idênticos direitos de proteção”.
O fenómeno da hierarquização da normatividade, tal como explicitado, ocasionou,
simultaneamente, a diluição da normatividade, desde logo pela indefinição do conteúdo preciso das
normas de ius cogens (relevando aqui a divergência doutrinária quando à incorporação, ou não, do
direito natural naquele conceito) e das obrigações erga omnes (incertezas quanto à definição de quais
seriam delitos mais graves).
Mais, relativamente aos titulares e destinatários das normas, “a identificação de uma espécie
de «super-normatividade», com as teorias do ius cogens e das obrigações erga omnes, pôs em causa,
de modo particularmente impressivo, o voluntarismo que caracterizava o Direito Internacional
clássico; sobretudo parece ter, em larga medida, esvaziado de conteúdo a regra tradicional da
individualização dos sujeitos activos e passivos das normas de Direito Internacional. (…) [A] partir do
momento em que se admite a existência de «tratados quase universais», que, quando adoptados por um
número suficiente de Estados, têm, supostamente, a virtualidade de criar os chamados «costumes
instantâneos», ou quando, ao menos, se aceita que um tratado possa codificar normas de ius cogens –
por definição, dotadas de uma relevância erga omnes – toma-se patente a «erosão» sofrida” pelo
princípio da relatividade dos efeitos dos tratados e da lógica bilateral em que assentava o modelo
clássico de Westfália.
O que acaba por culminar, igualmente, na indeterminação acerca das “concretas
consequências jurídicas específicas” passíveis de decorrer pela violação de normas hierarquicamente
superiores ou inferiores e dos sujeitos legitimados a levá-las a efeito.

IV – Considere a seguinte hipótese:


Ao longo de vários meses, o Estado A criou as condições propícias para a entrada no território
de B de pequenos contingentes humanos, constituídos por forças irregulares e mercenários, que se têm
dedicado à prática de actos de violência contra pessoas e bens, com o fim último do derrube das
respectivas autoridades oficiais.
Em resposta, B decidiu intervir militarmente em A, invocando o seu direito inerente de
legítima defesa. Comportamento este que o Estado A prontamente reputou de ilícito, visto não ter
ocorrido qualquer agressão prévia.
Pergunta-se:
a) - Foi validamente exercido o direito de legítima defesa por parte de B? [3 valores]
Não ocorreu, por parte do Estado A, qualquer agressão armada direta ao Estado B, na medida em que
os actos de violência contra pessoas e bens, com o fim último do derrube das respectivas autoridades
oficiais, foram praticados por forças irregulares e mercenários.
Convoca-se, assim, para análise do caso, o conceito de agressão armada indireta, realizada por forças
não-oficiais do Estado, a qual se pode configurar em sentido impróprio ou próprio a depender do grau
de participação, controle e envolvimento do Estado no recrutamento, treinamento, envio, gestão
estratégica, orientação ideológica, financiamento, acolhimento, proteção e cobertura destas forças.
Aqui, a jurisprudência internacional (TIJ, USA vs. Nicarágua), ora refletida no art. 3.º, g), da
Resolução 3314 da AG/ONU e no art. 8.º da minuta de convenção internacional em matéria de
responsabilidade do Estado pela prática de atos internacionalmente ilícitos, já estabeleceu os
parâmetros para equiparar (em sentido impróprio) ou não (em sentido próprio) a conduta das forças
irregulares e mercenários a condutas do próprio Estado, eventualmente imputando a estes os atos por
aqueles praticados.
Caso os actos sejam imputáveis ao Estado – o que parece ser a hipótese, dados o nível de
envolvimento e controle, bem como o interesse do Estado A nas acções das forças irregulares –, tem o
Estado agredido – na hipótese, B – direito de empregar a força em reação (art. 51.º CNU), cujo
exercício se legitima desde que comunicado ao Conselho de Segurança da ONU e seja proporcional e
até que tal órgão tome as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança.

b) - Supondo que, durante a intervenção armada, vários militares de B se envolveram na


prática reiterada de actos de homicídio e de tortura contra membros das forças armadas de A, como
qualificar tais comportamentos à luz do Estatuto de Roma do TPI? [1,5 valores]
Sendo tais condutas praticadas em contexto de conflito armado internacional (entre dois Estados) e
considerando que as vítimas são membros das forças armadas de A – logo, não civis –, é possível
qualificar tais condutas como crimes de guerra, à luz do art. 8.º, n.º 2, al. a), i) e ii) do Estatuto de
Roma, particularmente por terem sido praticadas de modo reiterado por “vários militares de B”, o que
aponta para um contexto de cometimento “como parte integrante de um plano ou de uma política” (art.
8.º, n.º 1).

c) - Caso os subordinados de um chefe militar de B tivessem praticado, sem o conhecimento


deste, infracções graves contra a população civil de A, poderia ele ser responsabilizado nos termos do
art. 28.º do Estatuto de Roma do TPI? [3,5 valores]
Particularmente quanto à responsabilidade do superior militar, estabelece o art. 28.º do ETPI que “a) O
chefe militar, ou a pessoa que actue efectivamente como chefe militar, será criminalmente responsável
por crimes da competência do Tribunal que tenham sido cometidos por forças sob o seu comando e
controlo efectivos ou sob a sua autoridade e controlo efectivos, conforme o caso, pelo facto de não
exercer um controlo apropriado sobre essas forças, quando: i) Esse chefe militar ou essa pessoa tinha
conhecimento ou, em virtude das circunstâncias do momento, deveria ter tido conhecimento de que
essas forças estavam a cometer ou preparavam-se para cometer esses crimes; e ii) Esse chefe militar
ou essa pessoa não tenha adoptado todas as medidas necessárias e adequadas ao seu alcance para
prevenir ou reprimir a sua prática ou para levar o assunto ao conhecimento das autoridades
competentes, para efeitos de inquérito e procedimento criminal”, consagrando, assim, a possibilidade
de os superiores hierárquicos militares serem responsabilizados tanto por negligência consciente
quanto inconsciente.
Sendo assim, “caso os subordinados de um chefe militar de B tivessem praticado, sem o conhecimento
deste, infracções graves contra a população civil de A, poderia ele ser responsabilizado”. Contudo, a
responsabilização nesta última hipótese depende de averiguar, cumulativamente, se tal chefe militar,
“em virtude das circunstâncias do momento, deveria ter tido conhecimento de que essas forças
estavam a cometer ou preparavam-se para cometer esses crimes” e se “tenha [ou não] adoptado todas
as medidas necessárias e adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática ou para
levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de inquérito e
procedimento criminal”.
Em qualquer hipótese, a conduta praticada pelos subordinados deve ser típica (art. 22.º).
Diante disso e conexionado com o primeiro requisito, porquanto ofensas e ataques à população civil
(em geral, nada se referindo no enunciado quanto a grupos especialmente protegidos) podem, na
hipótese, que tem subjacente um conflito armado, ser tanto crimes de guerra quanto crimes contra a
humanidade, deve-se analisar que tipo de infrações estão em causa e em que extensão.
O art. 8.º, n.º 2, por exemplo, institui como crime de guerra, por exemplo, “b) Outras violações graves
das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no quadro do direito internacional,
a saber, qualquer um dos seguintes actos: i) Atacar intencionalmente a população civil em geral ou
civis que não participem directamente nas hostilidades”. No entanto, porque os crimes de guerra
podem ser configurados com um único ato (não sistemático, portanto) que não seja de grande escala
(não generalizado, portanto), pode-se tornar difícil provar a possibilidade de o chefe militar ter tomado
conhecimento de que os seus comandados estavam a cometer ou preparavam-se para cometer tal acto.
Ao revés, quanto mais se revestirem as infrações de natureza reiterada/sistemática e/ou
generalizada/em larga escala (podendo, inclusive, vir a enquadrar-se como crimes contra humanidade
ex vi do art. 7.º, n. 1.º), maior a probabilidade de restar satisfeito o referido pressuposto legal.
Todavia, caso não seja possível demonstrar que o superior poderia ou deveria ter sabido de tais crimes
e/ou se o superior comprovar que adotou as medidas necessárias e adequadas para prevenir e reprimir
a sua prática ou levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de
inquérito e procedimento criminal, não poderá ser responsabilizado.
De anotar, por fim, que a responsabilidade de cada um dos agentes – superior e subordinados – é
individual e autónoma (art. 25.º, n.º 2) e, as sanções, proporcionais à gravidade das condutas
perpetradas (art. 78.º)
Justifique as suas respostas. (8 val.)

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