As Origens e Consequências Da Judicialização Da Política PDF

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dos Unidos no século XVIII) e lamentando a au-


As origens e consequências sência de pesquisas empíricas que examinem, para
da judicialização da política além da retórica, as origens e as consequências do
Ran Hirschl. Towards juristocracy: the origins and processo crescente de judicialização da política, o
consequences of the new constitucionalism. Cambridge, autor se propõe a analisar experiências concretas
MA, Harvard University Press, 2007. 296 páginas. em quatro países que nas últimas décadas realiza-
Maria Rita Loureiro ram o que ele chama “revolução constitucional”:
Canadá, Nova Zelândia, Israel e África do Sul.
Em momento como o que vivemos hoje no Em 1982, o Canadá promulgou o Constitucio-
Brasil, quando importantes questões políticas são nal Act, incluindo uma Carta de Direitos e Liber-
decididas por juízes do Supremo Tribunal Federal, dades e estabelecendo restrições formais ao poder
o livro de Ran Hirschl, professor de ciência política Legislativo do parlamento. Em 1992, a democra-
e de direito da Universidade de Toronto, é de enor- cia da Nova Zelândia, considerada, até os anos de
me interesse e atualidade. 1980, o mais perfeito exemplo do modelo de West-
Analisando a transferência de poder das insti- minster, foi modificada com a introdução da Carta
tuições representativas para as judiciárias, o autor de Direitos que marcou uma abrupta mudança no
indica que o fenômeno que ele denomina “juristo- equilíbrio entre os poderes Judiciário, Legislativo e
cracia” é tendência hoje crescente no mundo globa- Executivo. Também neste mesmo ano, a burguesia
lizado, estendendo-se do Leste Europeu à América secular Ashkenazi, de Israel, que sempre rejeitou a
Latina e incluindo sistemas de clara tradição insti- constitucionalização de direitos enquanto domina-
tucional fundada na soberania parlamentar, ou no va a política do país, acabou mudando de atitude
chamado modelo de Westminister, como Canadá, com relação à revisão judicial e acolheu a constitu-
Israel, Nova Zelândia e África do Sul. cionalização de duas leis de direitos civis e liberda-
A expansão do modelo norte-americano, que des e uma emenda à Lei Básica reguladora do go-
atribui a juízes de cortes constitucionais o poder verno. Por fim, a África do Sul promulgou em 1996
de decidir conflitos políticos e assuntos públicos, uma Constituição que apresentava traços inéditos
fundamenta-se na hoje quase sagrada crença na le- na história constitucional do país, estabelecendo
gitimidade de se garantir direitos pela via judicial, supremacia constitucional e uma Carta de Direitos
mesmo contrapondo-se ao poder político emana- soberana, ou seja, tornando inválidos os atos do Le-
do dos parlamentos. Nesse modelo constitucional, gislativo ou do Executivo que forem considerados
a democracia não significa regra da maioria, nem violadores dos direitos humanos fundamentais.
se funda no princípio da soberania parlamentar; ao Diante desse quadro, o autor se propõe a res-
contrário, dá às minorias proteção legal na forma de ponder a três perguntas. Quais as origens da cons-
uma constituição escrita que não pode ser muda- titucionalização dos direitos e do estabelecimento
da nem mesmo por uma assembleia eleita. Ou seja, da revisão judicial, ou seja, esse processo representa
um conjunto de direitos básicos e de liberdades ci- um genuíno avanço democrático ou é um meio de
vis é parte da lei fundamental, e juízes protegidos solucionar disputas políticas já existentes? Qual é
contra pressões da política partidária são os respon- seu real impacto sobre as noções de justiça distribu-
sáveis por sua garantia. tiva? Quais as consequências políticas de se dar po-
Embora a garantia constitucional de direitos der a juízes através da constitucionalização e quais
básicos e a proteção de minorias sejam princípios são suas implicações para os governos democráticos
normativos desejáveis de uma ordem democráti- do século XXI?
ca, o trabalho do professor Ran Hirschl é inovador Para explicar as origens da substituição do mo-
porque mostra outra face desse processo político. delo de democracia fundado na soberania parlamen-
Criticando o paroquialismo dos estudiosos norte- tar pelo modelo constitucional, Hirschl desenvolve
-americanos (que supõem a excelência do modelo a tese da preservação de hegemonia por parte das
de democracia constitucional desenhado nos Esta- elites políticas dominantes. Assim, ele mostra que
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nos quatro países analisados esse processo ocorreu volução constitucional”, ao contrário do que se tem
quando as elites então dominantes sentiram que o reiteradamente afirmado, teve pouco ou nenhum
controle que exerciam sobre as arenas parlamentares impacto na redução das diferenças socioeconômicas
estava ameaçado pela emergência de novos parti- entre pobres e ricos nos países estudados. Isso por-
dos representando novas forças políticas. Mudanças que, como é comprovado no trabalho, o processo
na ordem econômica também ajudam a explicar a de transferência de poder para juízes – assim como
transferência intencional de poder para o Judiciário para outros corpos burocráticos semiautônomos,
por parte de elites políticas ameaçadas, mas ainda como os bancos centrais – ocorre concomitante-
dominantes: esse processo tem sido amplamente mente à expansão de políticas de cunho neoliberal
apoiado por grupos econômicos liberais que veem e ao desmonte de programas de bem-estar social,
na constitucionalização de direitos um meio de im- permitindo entender a razão pela qual a constitu-
pulsionar a desregulamentação da economia, além cionalização dos direitos (definidos predominan-
de, obviamente, promover os próprios membros das temente como liberdades negativas) não foi capaz
altas cortes que vislumbram aí a possibilidade de au- de frear o crescimento das desigualdades sociais na-
mentar sua influência e prestígio internacional. queles países. Os números são bastante expressivos:
Com relação aos impactos efetivos da constitu- em Israel, o índice de Gini que, em 1982, era de
cionalização de direitos e da revisão judicial sobre a 0,222 passou para 0,356 em 2000, transformando
noção e as práticas de justiça, o livro traz os resul- esse país no terceiro mais desigual entre as nações
tados de uma extensa investigação empírica, com- desenvolvidas, só perdendo para os Estados Unidos
parando, nos quatro países analisados, decisões das e a Nova Zelândia. Com relação à África do Sul, os
cortes constitucionais no período anterior e posterior anos 2000 não produziram alteração em seu status
à chamada “revolução constitucional”. As conclusões de país mais desigual do mundo, posto que, infe-
apontam que seus efeitos têm sido muito pouco sig- lizmente, disputa com o Brasil. O próprio Canadá,
nificativos para garantir os direitos positivos e coleti- nação com índice elevado de bem-estar social, viu
vos, ou seja, aqueles cuja realização efetiva depende sua estrutura social intensificar as diferenças entre
de maior ação estatal para contornar falhas de mer- ricos e pobres: em 2000, a parcela mais rica de sua
cado no reino da justiça distributiva, tais como direi- população recebia 44,5% de toda a riqueza nacio-
tos ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia digna nal, enquanto em 1981, um ano antes da adoção
etc. As revisões judiciais tiveram maior efetividade da carta constitucional, essa parcela representava
quando se referiam aos chamados direitos negativos, 41,7%. O quinto mais pobre continuou recebendo
ou seja, aos que impõem restrições à ação do Estado, em 2000 apenas 4,5% da riqueza nacional, como
impedindo-o de interferir nas atividades econômicas em 1981, ou seja, a constitucionalização dos di-
e na vida privada, tais como o direito de expressão, reitos que já havia ocorrido há quase duas décadas
ao devido processo criminal, à igualdade formal em nada melhorou para os mais pobres.
matéria de preferência sexual etc. Hirschl deixa claro ainda que a transferência
Alguns números trazidos pela pesquisa bastam de poder para juízes das cortes constitucionais,
para ilustrar a análise. Eles indicam ser enorme, em permitindo-lhes intervir em questões morais e con-
números absolutos, a diferença entre as taxas de su- trovérsias políticas cruciais de cada país, não po-
cesso dos processos judiciais relativos aos direitos deria ocorrer sem o apoio das elites políticas mais
negativos e as dos processos relativos aos direitos poderosas. Estas decidem delegar poder decisório
positivos: entre 1982 e 2002, a Suprema Corte do para as cortes, mesmo sabendo que a constitucio-
Canadá deu ganho de causa para 137 casos que en- nalização é difícil de ser revertida e que sempre há
volviam direitos negativos e vitória para apenas vin- o risco de que elas julguem em desacordo com as
te casos que envolviam direitos positivos. Na África preferências ideológicas e os interesses políticos dos
do Sul, essa relação foi de quarenta para nove, na que lhes delegaram poder, o que, na verdade, não
Nova Zelândia, de 114 para sete, e em Israel, de parece constituir grande desafio, já que a pesquisa
131 para oito (p. 108). Em suma, a chamada “re- sobre as decisões judiciais de importantes questões
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políticas nos diferentes países revelou que elas não


têm contrariado os valores nem tampouco os inte- A diplomacia brasileira
resses aí dominantes. e a questão africana
Em suma, Hirschl conclui que a constitucio- Jerry Dávila. Hotel trópico: o Brasil e o desafio
nalização e a revisão judicial se tornaram hoje “glo- da descolonização africana, 1950-1980. Tradução
bais”: tudo é passível de ser judicializado, ou seja, de Vera Lúcia Joscelyne. São Paulo, Paz e Terra,
juízes não eleitos e sem responsabilização política 2011. 334 páginas.
estão se constituindo em principal corpo decisório José Alexandre Altahyde Hage
no mundo contemporâneo, o que certamente põe
em questão a ordem democrática. Hotel trópico, do brasilianista Jerry Dávila,
Tais reflexões são sumamente importantes para dedica-se a analisar assunto ainda muito delicado
nós no Brasil de hoje, que vivemos os dilemas cria- para a história da política externa brasileira, bem
dos pela Constituição de 1988. Se, de um lado, ela como para a sociologia nacional. Afinal, quais fo-
procurou garantir direitos básicos em uma socieda- ram os motivos que levaram o Brasil a se aproximar
de historicamente elitista e excludente, de outro, diplomaticamente da África Ocidental nos anos
criou um Supremo Tribunal como uma das cortes 1950? Por que Gilberto Freyre foi intelectualmen-
com mais poderes institucionais do mundo (sendo, te central na triangulação Portugal, Brasil e África
ao mesmo tempo, corte constitucional, revisional lusófona? Terá sido o lusotropicalismo do pensador
e penal). Vem transformando seus juízes em árbi- pernambucano, cujo ponto central é a defesa de
tros supremos em questões centrais da vida coletiva Portugal como nação civilizadora?
e das disputas políticas e incentivando partidos de O assunto não é fácil desdobrar em virtude
oposição a buscar na corte constitucional alternati- de melindres que podem surgir, mesmo sendo
va para afirmar interesses que não conseguem pela relativamente antigo. Assim, Dávila acredita que
via eleitoral ou parlamentar. a ponta de lança para abrir espaço naquele lado
da África foi a obra de Freyre e a influência que
Maria Rita Loureiro ele exercia no Ministério das Relações Exteriores
é professora titular da Fundação Getúlio do Brasil, o Itamaraty. Mas por que Freyre tivera
Vargas (FGV) e da Faculdade de Economia, tanto prestígio na chancelaria, apesar das críti-
Administração e Contabilidade da USP. cas que já se faziam ao autor de Casa grande &
E-mail: <marita.loureiro@gmail.com>.
senzala? Na mesma época Dante Moreira Leite
já opinava que Freyre só interessava a pouquíssi-
mo número de estudiosos, sobretudo aqueles que
negavam as revoluções populares (Leite, 1983).
Dávila é da opinião de que havia pressupostos
culturais no Itamaraty para que seus diplomatas
advogassem a existência de democracia racial no
Brasil e das peculiaridades positivas de Portugal
como nação colonizadora. Como dizia Freyre, di-
ferentemente da Holanda, da Inglaterra e da Fran-
ça, Portugal era construtor de povos no além-mar,
não um simples explorador de riquezas naturais.
A razão para aquilo é que o povo lusitano era des-
conhecedor de superioridade racial, o que o fazia
viver bem nos trópicos.
Para isso, a década de 1930 foi importante
para a diplomacia brasileira, quando o Itamaraty
se abriu para novos debates culturais advindos da
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Semana de Arte Moderna de 1922 e da pregação não eram fáceis quando o foco era a África lusófona.
industrializante que houve no primeiro governo Isso porque o Brasil era caudatário de Portugal na
Vargas. Amado Cervo e Clodoaldo Bueno indicam política africana. Na realidade, o Itamaraty se en-
que os esforços de modernização da economia na- contrava despreparado para enfrentar questão tão
cional, do projeto de substituição de importações, espinhosa e com traços emocionais. Não havia, de
iniciaram-se também no Itamaraty, o que levou fato, espaço na chancelaria para compreender as-
aquele ministério a ter maior sensibilidade para suntos afro-asiáticos, embora o Itamaraty tenha
fazer tratados mais voltados ao interesse nacional procurado constituir grupos de acompanhamento
propriamente dito, como a construção da usina de ao Terceiro Mundo, como ocorreu na Conferência
Volta Redonda (Cervo e Bueno, 2011). de Bandung em 1955.
Dessa forma, nos aspectos culturais e ideológi- Ademais, é preciso levar em conta o papel que
cos do desenvolvimentismo, o Brasil aproxima-se Portugal ocupava na mente das elites socioculturais
da África nos anos de 1950. O primeiro país a ser brasileiras. Em linhas gerais, o que Lisboa aponta-
reconhecido diplomaticamente foi Gana. Na Áfri- va para a África deveria ser considerado correto, já
ca, o Brasil usava dois meios para melhor adentrar que Portugal era um Estado mais bem preparado
o continente negro. Primeiro, a democracia racial, diplomaticamente, o que sugeria ser também cor-
muito trabalhada por Freyre. Segundo, é a máxima reto para o Brasil adotar a visão da ex-metrópole.
de que o Brasil seria um Estado subdesenvolvido, Mas de onde vinha a influência portuguesa sobre o
mas em franco progresso econômico e, por isso, Brasil? Além da obra de Freyre, não se pode esque-
credenciava-se a ser parceiro dos novos Estados afri- cer da comunidade lusitana, sobretudo no Rio de
canos. Assim escreve o autor: Janeiro, antiga sede do Itamaraty.
Dávila mostra que a comunidade portuguesa
A África era um símbolo da mudança num no Rio de Janeiro, formada por comerciantes, jor-
meio intelectual comprometido com medidas nalistas e políticos, era a mais promissora tanto em
desenvolvimentistas que iam da industrializa- termos regionais quanto em comparação a outros
ção até a reforma agrária e que definiam suces- grupos de imigrantes e, no geral, tinha políticas
so como capacidade de o Brasil sair da sombra controversas. Ela era conservadora a ponto de sus-
dos Estados Unidos e se tornar líder mundial tentar a ditadura Salazar como necessária para Por-
por conta própria (p. 71). tugal e para as províncias do ultramar, como Lisboa
preferia chamar suas posses africanas asiáticas.
Na questão racial a diplomacia brasileira valia- Sob essa condição, a comunidade lusitana do
-se das pregações luso-tropicais do autor de Um Rio de Janeiro conseguia influenciar o Itamaraty
brasileiro em terras portuguesas. A partir desse ins- na defesa de Salazar perante seus críticos e na ma-
trumento conceitual o Brasil se apresentava como nutenção do sistema colonial. Esse arranjo conta-
civilização tropical, resultante do cruzamento entre va com aliados profícuos como o jornalista Carlos
portugueses, índios e negros. Ao contrário das ex- Lacerda, que fora deputado federal e governador
periências inglesas, francesas e holandesas, o lusita- do extinto estado da Guanabara, e com a rede de
no ambientou-se nos trópicos, criando povos, cujo comunicação dos Diários Associados, do lusófilo
ponto central seria a aglutinação entre colonizador Assis Chateaubriand. Ambos ajudavam a afastar
e colonizado para a criação de algo superior: a mis- críticos antissalazaristas e partidários da libertação
cigenação (Freyre, 1953). nacional africana.
Como o Brasil seria um caso de sucesso antir- Mesmo intelectuais críticos, como José Ho-
racista, ao contrário dos Estados Unidos e da África nório Rodrigues, titubeavam: se, de um lado, era
do Sul, como se costumava frisar, o país se creden- contra a permanência de colônias na África, de ou-
ciava a ser membro privilegiado da nova ordem tro, também acreditava que havia democracia racial
africana na visão europeia, mas não na perspectiva no modo colonizador português. Com efeito, essa
de Portugal. Isto porque as relações luso-brasileiras combinação do “jeito lusitano de ser”, da malícia di-
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plomática e da pressão política causava indignação, racismo às avessas. Da mesma forma, o presidente
como aponta o desabafo de Afonso Arinos de Mello Nkrumah afirmou na época: “por que esse senhor
Franco, chanceler do governo Jânio Quadros: não foi nomeado para Suécia em sim para Gana?”.
A ideia de que um diplomata negro era útil em um
“[...] a diplomacia salazarista, mais sagaz, mais país de negros não seria positivo; era mais uma re-
firme e menos vacilante do que a nossa, leva de afirmação da fé. Em outras palavras, a diplomacia
arrastão o Brasil, ora explorando o sentimen- nacional não tinha convicção naquilo que pregava.
talismo de parte de nossas elites, ora envol- Em virtude da insatisfação com a nomeação
vendo alguns políticos e intelectuais por meio de um embaixador negro, o Itamaraty passou a
de viagens e honrarias, ora influindo em certa boicotá-lo de várias formas. Seus telegramas não
imprensa, através do poder econômico, princi- eram passados no tempo certo, seus pedidos eram
palmente no Rio de Janeiro” (p. 119). demovidos. E o mais curioso, Dantas não tinha
residência oficial porque o secretário Sérgio Cor-
A célebre Política Externa Independente rea do Lago, diplomata de carreira, se sentia in-
(PEI), formulada no governo Quadros com apoio feriorizado por ter de servir a um superior negro
de João Goulart e do chanceler Santiago Dantas, e ter de ceder-lhe residência da embaixada. Esse
procurou manter distância relativa tanto dos Esta- fato chamava atenção dos diplomatas africanos: o
dos Unidos, potência hegemônica, como de Por- Brasil é uma democracia racial, mas os diplomatas
tugal, potência colonial decadente. Porém, mesmo são todos brancos.
com um programa reformista, como fora a PEI, a Correa do Lago não saia da residência oficial
margem de manobra do Brasil não era tão larga a por melindre e por proteção do espírito de corpo
ponto de firmar seus propósitos e, ao mesmo tem- da carreira. Dantas intuía que algumas coisas fun-
po, suportar pressões. Por isso Dávila observa que cionavam mais como jogo de cena e, para não
as dificuldades com relação ao colonialismo por- agravar o conflito, preferiu morar em hotel até o
tuguês não advinham somente das potências em dia em que se sentiu na obrigação de pedir de-
questão, mas do próprio Itamaraty. missão, findando a única experiência de se ter um
Havia, pois, um paradoxo bem compreendido embaixador negro.
pelo autor. Embora a chancelaria fosse imbuída de Depois disso o programa de democracia ra-
sentimentos a favor da igualdade racial e do justo cial e desenvolvimentista que o Brasil formulara
desenvolvimento ao Terceiro Mundo, sua buro- para a África passou a ser movido por certo ro-
cracia criava dificuldades, até mesmo constrangi- mantismo, voluntarismo e desconfiança. O es-
mentos, quando se tratava de decisões que não lhe critor Antonio Olinto, como adido cultural na
agradassem. Uma parte polêmica do livro retrata a Nigéria, usava recurso financeiro próprio para
nomeação do jornalista Raimundo de Souza Dan- cumprir programas e compromissos. Com o gol-
tas como embaixador brasileiro em Gana. pe político-militar de 1964, o “encanto” africano
Em 1961 o então presidente Jânio Quadros se esvaiu. De fato, o governo Castelo Branco ti-
acreditava que a nomeação de um embaixador ne- nha pouca estima por políticas pan-africanistas e
gro para a África ajudaria a construir a imagem pan-arabistas, além de não cultivar boas relações
de uma nação onde não havia preconceito racial, com países africanos por temor de o Brasil ser en-
em que o negro podia exercer cargo relevante na volvido em atmosfera comunista.
diplomacia; tradicionalmente setor da burocracia Dávila também ressalta o papel desempenhado
federal, preenchido pela elite sociocultural brasi- pelo embaixador Meira Penna na Nigéria em 1964.
leira. Vindo dos baixos estratos sociais, o autodita- Francamente conservador, ele representava o espí-
da Dantas acreditava que podia cumprir bem sua rito da política internacional do governo Castelo
tarefa; enganou-se. Branco: mais realismo, aceitação das vicissitudes
Sua nomeação desagradou até José Honório advindas das relações internacionais e oportunis-
Rodrigues, cuja opinião era a de que aquilo fora mo. Em plena Guerra Fria, por exemplo, o Brasil
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não hesitava em rechaçar políticas reformistas das A grande inflexão, pró-independência, se dá


Nações Unidas para se manter fiel à demanda no governo de Ernesto Geisel em 1975: o chan-
das potências hegemônicas, o que o levava o país a celer Azeredo da Silveira escala dois diplomatas de
apoiar Portugal na África. linha de frente, Ítalo Zappa e Ovídio de Mello,
Vimos que a postura a favor da democracia para negociar pessoalmente com líderes angola-
racial e da igualdade, sugerindo que o Brasil pu- nos e moçambicanos, ainda em clima de guerra
desse ser exemplo de sucesso intrarracial, não era contra Portugal e seus apoiadores, caso da África
exercida por diplomatas veteranos, como Meira do Sul. Mesmo negociando com grupos africanos
Penna, Vasco Leitão da Cunha, Negrao de Lima marxistas, da Frente de Libertação Nacional que,
e mesmo pelo jovem Correa do Lago. Como de- em princípio, contrariavam a política brasileira dos
monstrado por Dávila, não eram valores de gera- militares, o país não mais voltaria atrás.
ção, mas sim de setores sociais. A independência da África lusófona era ques-
Por outro lado, o que contribuiu para que tão de tempo. E o Brasil aproveitou para mudar sua
alguns diplomatas se tornassem “africanófilos”? imagem perante a África: foi o primeiro país a reco-
Alberto da Costa e Silva se destacava nesse gru- nhecer a independência de Angola e Moçambique –
po simpático ao Terceiro Mundo, sendo um en- senso de oportunidade de Zappa e Mello. Pode ser
tusiasmado estudioso das questões africanas, a que nos dias atuais o prestígio de ter sido o primeiro
ponto de ser autoridade sobre o tema nos dias não signifique muita coisa, mas em 1975 foi algo
atuais. Também Frederico Carlos Carnaúba foi que contrariava os Estados Unidos; Henry Kissinger
tão anticolonialista que chegou a ser vigiado foi a Brasília para convencer Silveira a abandonar tal
de perto pela polícia política portuguesa, a Pide ideia. O Brasil estaria comungando com os comu-
do governo salazarista. nistas ou havia ali outros interesses em jogo?
Com efeito, não havia homogeneidade na Contudo, mesmo em clima instável, acirra-
diplomacia brasileira exercida durante o regi- do pela Revolução dos Cravos em Portugal, em
me militar. Em 1968, o lusitanismo de Castelo 1974, a figura de Gilberto Freyre ainda persistia
Branco já não era atraente no governo Costa e como articulador válido na questão africana. Um
Silva, que procurava ser mais autônomo em al- Freyre passe-partout podia ser citado à direita, pelo
gumas questões. Na década de 1970, a política salazarismo, mas também à esquerda, pelo novo
brasileira começava a procurar meios de se dis- ministro, do Partido Socialista, Mário Soares, que
tanciar de Portugal, na tentativa de neutralizar as timidamente incorporava em seus discursos a ima-
críticas concernentes à indiferença que marcara gem “do mundo que o português criou”. Ainda
Brasília em relação à África. Com o falecimen- que fosse questão controversa, Soares não podia se
to de Salazar, não havia condições políticas para desvencilhar da questão colonial por dois motivos:
bancar o colonialismo. o problema dos “retornados” a Portugal e o que
Alguns acreditam que a preocupação brasilei- fazer com Macau.
ra de se aproximar da África lusófona era parte Por fim, Hotel trópico preenche uma lacuna
do grande projeto geopolítico dos militares, in- nos estudos de sociologia e relações internacionais
cluindo Castelo Branco, qual seja, tornar o Brasil brasileiras. De forma simples, mas bem documen-
o substituto de Portugal quanto à influência nas tado, o livro contribui para o debate histórico acer-
antigas colônias africanas: uma espécie de refe- ca não só dos dilemas enfrentados pela diplomacia
rência político-econômica que Angola e Moçam- brasileira, mas também das disputas envolvendo
bique, entre outras, necessitariam em face de uma importantes intelectuais do país. Grande mérito
potência regional ascendente. Na verdade, havia para o autor por ter adentrado em terreno movedi-
quem acreditasse que aquilo era plano arquiteta- ço, sobretudo no momento em que o Brasil ensaia
do pelo general Golbery, gestado na Escola Su- nova inserção internacional, mais caprichosa, com
perior de Guerra, mas com apoio do Itamaraty objetivo de aproveitar as vantagens econômicas e
(Schiller, 1981). estratégicas que podem existir na África.
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Bibliografia
Geoffroy de Lagasnerie:
CERVO, Amado & BUENO, Clodoaldo. (2011),
uma polêmica leitura neoliberal
História da política exterior do Brasil. Brasília,
de Foucault
Editora da UnB. Geoffroy de LAGASNERIE. A última lição de
FREYRE, Gilberto. (1953), Um brasileiro em terras Michel Foucault: sobre o neoliberalismo, a teoria e a
portuguesas. Rio de Janeiro, José Olympio. política. Tradução de André Telles. São Paulo, Três
LEITE, Dante Moreira. (1983), O caráter nacional Estrelas, 2013. 165 páginas.
brasileiro. São Paulo, Pioneira. Elton Corbanezi
SCHILLER, Paulo. (1981), O expansionismo brasi-
leiro. São Paulo, Global. A última lição de Michel Foucault: sobre o neoli-
beralismo, a teoria e a política é um polêmico livro do
José Alexandre Altahyde Hage sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie. Não sem
é doutor em ciência política pela Unicamp ousadia, o objetivo do livro é definido claramente:
e professor do Departamento de Relações trata-se de recorrer ao curso Nascimento da biopolí-
Internacionais da Universidade Federal
tica, proferido por Michel Foucault no Collège de
de São Paulo. E-mail: <alexandrehage@
hotmail.com>. France em 1978-1979, a fim de mostrar como o
filósofo francês teria se voltado aos teóricos formu-
ladores do neoliberalismo alemão e norte-americano
com a intenção de explorar a potencialidade crítica
e emancipadora dessa doutrina contemporânea. Se-
guindo esse propósito, o autor defende, porém, que
não se trata de afirmar uma suposta conversão de
Foucault ao neoliberalismo, tampouco de sustentar,
como o próprio objetivo do livro já evidencia, que o
autor de Vigiar e punir estaria reiterando a obsessiva
crítica ao neoliberalismo tal como formulada pela
esquerda que Lagasnerie concebe como usual.
Desse modo, Lagasnerie pretende um projeto
ambicioso, no qual estaria implicada a necessidade
de “reinventar a esquerda” (p. 14) e seus postulados
críticos direcionados a esse alvo que se tornou co-
mum, o neoliberalismo. Segundo o autor, a percep-
ção “fortemente enraizada nos cérebros” de que o
paradigma neoliberal se colocaria do lado do status
quo é totalmente fundada “num desconhecimen-
to profundo dessa tradição” (p. 38). Tudo se passa
então como se a esquerda, desprovida de qualquer
criatividade, estivesse sofrendo de uma “paralisia
das faculdades intelectuais” ou até mesmo de um
“anti-intelectualismo” (p. 12), evidenciados pela
uniformização e limitação críticas.
De saída, importa sublinhar que Lagasnerie
sustenta sua ideia independentemente de Foucault.
Sem fazer referência ao filósofo, Lagasnerie (2011)
já havia afirmado em artigo publicado no Le Monde
antes de seu livro:
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Precisamos fabricar uma nova teoria crítica que de “genealogia da ideia da política como ordena-
não funcionaria como uma máquina de denun- mento” (p.72): trata-se de mostrar como o projeto
ciar o materialismo, o individualismo e mesmo, de sociedade, de Rousseau a Amartya Sen, passando
simplesmente, a liberdade, a ponto de fazer o por Kant, Durkheim, John Rawls e Habermas,
elogio da ordem, do Estado, da norma coletiva. sempre esteve limitado a um “monismo” social em
[...] Precisamos hoje romper com a crítica pré- função de noções centrais como ordem, unidade,
-liberal do neoliberalismo. O que nos exigiria controle, coerência e coletividade. Inversamente, a
colocarmo-nos resolutamente do lado da desor- doutrina neoliberal intencionaria desconstruir todo
dem, da dissidência e, portanto, da emancipa- pensamento fundado nesses termos, de modo a dis-
ção [tradução nossa]. solver “a própria noção de ‘sociedade’ no sentido de
uma instância que aglutinaria as pessoas para além
Essa será também a tese central de A última lição de suas diferenças” (p. 79). Mais através de uma
de Michel Foucault. Entretanto, é preciso desde já di- apropriação de neoliberais como Hayek e Isaiah
zer que, a fim de fundamentar sua própria argumen- Berlin do que de uma leitura do próprio curso de
tação, Lagasnerie lança mão de maneira um tanto ar- Foucault,1 Lagasnerie pretende então mostrar que o
bitrária de Foucault, visto que o leitor de Nascimento neoliberalismo se colocaria “do lado da desordem,
da biopolítica não encontrará no curso, em momento da imanência – e, logo, do pluralismo”; um mundo
algum, a enunciação do neoliberalismo como dou- neoliberal, afirma o autor, “jamais poderá ser unifi-
trina emancipatória. Nesse sentido, somos levados a cado, totalizado” (p. 88).
crer que A última lição de Michel Foucault consiste Contudo, Lagasnerie também faz uso de con-
antes de tudo em uma interpretação e radicalização ceitos efetivamente caros à perspectiva foucaultiana,
operadas por Lagasnerie a fim de sustentar sua pró- tais como “imanência”, “heterogeneidade” e “mul-
pria tese. Mas qual procedimento o autor utiliza para tiplicidade”, os quais intitulam, aliás, o oitavo capí-
apresentar e fundamentar sua ideia? tulo do livro. Assim, o sociólogo pode argumentar
Em um primeiro momento, depois de apre- estrategicamente que “a imagem de um mundo por
sentar o aspecto utópico do projeto neoliberal, La- essência desorganizado, de um mundo sem centro,
gasnerie evidencia, a partir de Foucault, a diferença sem unidade, sem coerência, sem sentido”, teria “se-
dessa doutrina em relação ao liberalismo clássico de duzido” Foucault (pp. 93-94). Embora reconheça
Adam Smith, Ricardo e Say. Se estes pretendiam que tal aspecto sedutor não tenha significado uma
a separação da política e da economia, o neolibe- “adesão tácita” (p. 95) do autor de Vigiar e punir
ralismo, ao contrário, terá como característica a ao neoliberalismo, o sociólogo defende que tais
subordinação da racionalidade política à econômi- premissas neoliberais – acrescidas da suspeita fun-
ca. O fundamento neoliberal de tal subordinação damental de que sempre se governa em excesso – te-
consistiria, segundo teóricos tais como Friedrich riam fortalecido a perspectiva e a atitude críticas de
Hayek e Ludwig von Mises, no argumento técnico Foucault a respeito das pulsões de ordem, unidade e
e científico relativo à maior eficácia da economia de controle, as quais orientam, inclusive, teorias totali-
mercado e da lógica concorrencial, de modo que, zadoras como o marxismo e a psicanálise.
como se percebe, a própria ciência cumpriria, nesse A despeito da ressalva de que Foucault não seria
caso, uma função política estratégica. “ingênuo” a ponto de negligenciar os mecanismos
Assim, Lagasnerie ratifica e torna central em de poder, de controle e de hierarquização instaura-
sua exposição a ideia de que a “forma-mercado”, dos pelo próprio neoliberalismo – os quais consti-
própria do dispositivo neoliberal, não apenas se vol- tuiriam a base crítica comum da maioria dos estu-
ta constantemente contra o governo, como consiste dos sobre a questão (p. 113) –, Lagasnerie afirma
também numa maneira efetiva de produzir modos que a intenção do filósofo seria “modificar nossa per-
de vida diferentes, contrariamente ao projeto ilumi- cepção espontânea do discurso neoliberal” (p. 114).
nista e contratualista de uniformização da vida em Seguindo esse pressuposto, o sociólogo pretende
sociedade. Eis o motivo para realizar uma espécie então sustentar que uma das ideias centrais de Nas-
resenhas  197

cimento da biopolítica seria, enfim, mostrar “que há ao mercado. Sendo assim, em vez de emancipador,
alguma coisa de liberador, de emancipador, de crí- o neoliberalismo analisado por Foucault se caracte-
tico que se elabora e também se instaura através do riza pela condução da vida voltada exclusivamente
neoliberalismo” (p. 114). Com esse viés, os últimos à lógica concorrencial de mercado, que teria como
capítulos do livro tratam especialmente do suposto consequência menos a produção efetiva da diferença
projeto emancipador do neoliberalismo em relação do que de vidas tão só economicamente – e apenas
a governamentalidades centradas no dispositivo por decorrência social e existencialmente – desi-
de Estado. Para isso, o autor evoca, por exemplo, guais. Afinal, o próprio Foucault (2008, p. 198) as-
a positividade multiplicadora, não totalizável e in- sim diz a propósito do ordoliberalismo alemão: “só
governável do homo oeconomicus como sujeito de há uma política social verdadeira e fundamental: o
interesse contrário à negatividade renunciadora do crescimento econômico”. Sustentando, ao contrário
homo juridicus; assim, Lagasnerie pode afirmar que de Lagasnerie, que a “armadura original” do neoli-
os conceitos de “mercado”, “racionalidade econô- beralismo consiste num tipo específico de interven-
mica”, homo oeconomicus etc. teriam sido percebi- ção governamental, Foucault não deixa dúvidas a
dos por Foucault como formas críticas capazes de respeito do aspecto regulador do mercado:
desqualificar o aspecto restritivo do direito, da lei,
do contrato e da vontade geral (p. 138). Ele [o governo neoliberal] tem de intervir sobre
Construído esse cenário, Lagasnerie avança a própria sociedade em sua trama e em sua es-
ainda um pouco mais. Com a advertência quase pessura. No fundo, ele tem de intervir nessa so-
retórica de que Foucault sabia que tal projeto cons- ciedade para que os mecanismos concorrenciais,
titui “uma pura construção intelectual” (p. 161) e a cada instante e em cada ponto da espessura
imprimindo ilimitada positividade ao homo oeco- social, possam ter o papel de reguladores – e é
nomicus, Lagasnerie afirma, de maneira conclusiva, nisso que a intervenção vai possibilitar o que é o
que a reconstituição do neoliberalismo por Fou- seu objetivo: a constituição de um regulador de
cault não seria um objetivo em si, mas uma estraté- mercado geral da sociedade [Idem, p. 199].
gia para “a elaboração de práticas de ‘dessujeição’”
dirigidas contra as sociedades disciplinares (p. 162). Percebe-se então que na governamentalidade
Ou seja, em vez de homogeneização normalizadora neoliberal todas as dimensões da vida dos indiví-
que pretende suprimir as diferenças, como ocorre duos se tornam unidas e reduzidas à esfera do mer-
com o modelo disciplinar de sociedade, o neolibe- cado. Nesse sentido, criticando também o objetivo
ralismo teria “fascinado” Foucault (pp. 18, 37) em de Lagasnerie em seu livro, Boccara (2013, s. p.)
função de sua radicalidade no que diz respeito tan- afirma com razão:
to à crítica às noções de ordem e unidade quanto à
promoção da diversidade dos modos de existência. Pois se para os neoliberais a diversidade deve
Fechado o livro, cabe ao leitor de A última lição ser respeitada e mesmo fomentada, é porque
de Michel Foucault perguntar se o objeto escolhido no coração do cultural, do social ou da identi-
corresponde efetivamente ao propósito do autor. dade encontra-se sempre o econômico. Dife-
Ora, em que pese o aspecto “sedutor” dessa elucu- rentes por nossas práticas e por nossas “esco-
bração puramente teórica do neoliberalismo, bem lhas” identitárias, sexuais, de gênero ou ainda
como sua efetiva pretensão referente à produção de étnicas, nós seremos todos finalmente unidos
diferenças e práticas minoritárias,2 Lagasnerie parece pelo mercado! Essa é a base do capitalismo
desconsiderar um aspecto crítico central que atra- neoliberal diferencialista [tradução nossa].
vessa Nascimento da biopolítica. Trata-se da reiterada
enunciação de Foucault sobre a contrapartida da Um exemplo paradigmático explorado por Fou-
produção de liberdade objetivada pelo neoliberalis- cault sobre essa absoluta “mercadização” da vida é
mo, já que, paradoxalmente – ou não –, assiste-se à o homo oeconomicus da teoria do “capital humano”
extensão dos mecanismos de controle circunscritos formulada pelo neoliberalismo da Escola de Chica-
198  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 84

go. Diferentemente do modelo clássico, o homo oe- no que ela era suscetível de produzir e de repro-
conomicus contemporâneo não se caracterizaria mais duzir, de inculcar e de fazer interiorizar [Bocca-
apenas por relações de troca, produção e consumo, ra, 2013, s. p., tradução nossa].
mas pela conversão de todas as relações – inclusive
as não econômicas como, por exemplo, as relações Com efeito, sendo a governamentalidade “a
afetivas e familiares – em cálculos mercadológicos. maneira como se conduz a conduta dos homens”,
No contexto em que o mercado governa a vida ou Foucault (2008, pp. 258, 345, 369) logo conclui-
a vida é calculada para o mercado, a potencialização rá que, no caso neoliberal, “o homo oeconomicus é
das individualidades não deveria ser confundida com aquele que é eminentemente governável”.4
emancipação. Sendo o ethos do homo oeconomicus o Para concluir, gostaríamos de dizer que nosso es-
modelo empresarial, cabe lembrar que, não à toa, forço crítico evidentemente não pretende reivindicar
a “forma-empresa” – com sua inerente e terrível no- uma – ou, o que seria pior, a – interpretação abso-
ção de “formação permanente”, elaborada por De- lutamente verdadeira de Nascimento da biopolítica.
leuze (1992b) em um importante texto de 1990 – é Com sua construção teórica, a riqueza do livro de
o correlato indispensável das chamadas “sociedades Lagasnerie consiste também no fato de o autor fazer
de controle”.3 Preciso, o diagnóstico deleuzeano ver como toda grande pesquisa e obra se encontram
não é arbitrariamente construído, mas desdobrado, realmente abertas a distintas apropriações e interpre-
como se sabe, do próprio Foucault, já que teria sido tações, mostrando assim como a célebre noção fou-
ele “um dos primeiros a dizer que as sociedades dis- caultiana de “caixa de ferramentas” comporta a possi-
ciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, bilidade de diferentes usos e finalidades, para o bem
o que já não somos” (Deleuze, 1992a, pp. 215-216). ou para o mal, conforme a perspectiva avaliadora.
Talvez Lagasnerie tenha, como suspeita
Guillaume Boccara (2013), operado uma subversão
na ideia de positividade própria à concepção fou- Notas
caultiana de poder, a ponto de adjetivar a governa-
mentalidade neoliberal como positiva, no sentido 1 Irônico, Guillaume Boccara (2013) afirma, corrobo-
progressista do termo. Vejamos o que diz o antro- rando assim nossa interpretação, que Lagasnerie se tor-
pólogo pesquisador do multiculturalismo neolibe- na, em seu livro, leitor não da última lição de Michel
ral em uma elucidativa nota de rodapé: Foucault, mas da primeira lição de Friedrich Hayek.
2 Vale dizer que, depois de enunciar no final da aula
Ora, pensar a “positividade” do neoliberalis- de 21 de março de 1979 a “otimização dos siste-
mas de diferença” e a maior “tolerância concedida
mo no sentido que Michel Foucault dava a
aos indivíduos e às práticas minoritárias”, Foucault
esta noção (não reprimir os indivíduos, mas (2008, p. 354) não retorna à questão na aula subse-
orientá-los, dirigi-los, guiá-los, influenciá-los e quente, ao contrário do que havia anunciado.
governá-los através da própria liberdade vigiada
3 A noção deleuzeana de “formação permanente” pode
deles) não equivale, parece-me, a ver na dou- encontrar sinonímia no curso de Foucault (2008, p.
trina neoliberal uma teoria progressista, positiva 335) em expressões como “relação formativa” ou “re-
ou emancipadora. Seria a concepção que esse lação educacional”, por exemplo.
autor [Lagasnerie] faz da positividade que trans- 4 Ver a esse respeito o caso das “técnicas comportamen-
formaria Foucault em arauto do neoliberalismo? tais” norte-americanas que são utilizadas por Foucault
Autores como Nikolas Rose, Wendy Brown, (2008, p. 369) de maneira a exemplificar e elucidar o
Thomas Lemke, Colin Gordon, Christian La- modo neoliberal de governar condutas. Em 1973, Fou-
val ou ainda Pierre Dardot jamais se colocaram cault (1994) publicou Le monde est un grand asile, um
a questão de saber se Michel Foucault tinha se breve artigo cujo título e ideia expressam, de modo sig-
tornado “neoliberal”. Para eles, a coisa era clara. nificativo, uma questão constante em sua obra, a saber,
Tratava-se de apreender a governamentalidade a de que a governamentalidade, seja ela política, econô-
mica, terapêutica ou pedagógica, tem como finalidade
neoliberal em toda sua complexidade e, assim,
ou consequência sempre conduzir condutas.
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Bibliografia

BOCCARA, Guillaume. (2013), “Geoffroy de La-


gasnerie, la dernière leçon de Michel Foucault:
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Tradução de Peter Pál Pelbart, in G. Deleuze,
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Pelbart, in G. Deleuze, Conversações, São Pau-
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Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo,
Martins Fontes.
LAGASNERIE, Geoffroy de. (2011), “Vive
l’individu dissident!”. Le monde, Idées,
26/09/2011. Disponível em <http://www.
lemonde.fr/idees/article/2011/09/24/vive-l-
-individu-dissident_1577250_3232.html>.

Elton Corbanezi
é doutorando em sociologia pela
Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), bolsista do CNPq e integrante
do grupo de pesquisa Conhecimento,
Tecnologia e Mercado (CTeMe). E-mail:
<eltoncorbanezi@hotmail.com>.

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