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Cristiane Nascimento da Silva

As relações entre o governo português e os


muçulmanos de Moçambique (1930-1970)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812283/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências
Sociais da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Marco Antonio Villela Pamplona

Rio de Janeiro
Setembro de 2010
Cristiane Nascimento da Silva

As relações entre o governo português e os


muçulmanos de Moçambique (1930-1970)

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812283/CA

da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora


abaixo assinada.

Prof. Marco Antonio Villela Pamplona


Orientador
Departamento de História
PUC-Rio

Profª Andrea Barbosa Marzano


Departamento de História
UNIRIO

Prof. Maurício Barreto Alvarez Parada


Departamento de História
PUC-Rio

Profª Mônica Herz


Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio

Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2010.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.

Cristiane Nascimento da Silva

Graduou-se em História pela Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro em 2006. Possui artigos publicados na área
de História, e sua área de interesse é História da África e
mundo muçulmano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812283/CA

Ficha Catalográfica

Silva, Cristiane Nascimento da

As relações entre o governo português e os


muçulmanos de Moçambique (1930-1970) / Cristiane
Nascimento da Silva; orientador: Marco Antonio Villela
Pamplona. – 2010.
101 f.: il.; 30 cm

1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História,
2010.
Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3.


Moçambique. 4. Muçulmanos. 5. Nação. 6. Portugal. 7.
Estado Novo I. Pamplona, Marco Antonio Villela. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de História. III. Título.
CDD: 900

CDD: 900
Agradecimentos
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Agradeço inicialmente ao Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES) pelo auxílio concedido, e ao meu orientador, Professor
Doutor Marco Antonio Villela de Pamplona.
Certamente, tudo seria ainda mais difícil sem o apoio dos Professores
Doutores Marcelo Bittencourt Ivair Pinto e Maurício Barreto Alvarez Parada, que
me auxiliaram durante todo o processo. A eles, minha sincera gratidão.
Sou grata às considerações feitas pela Professora Doutora Adriana de
Resende Barreto Vianna durante a qualificação, pois foram muito importantes para
o rumo do trabalho.
Às amigas Claudiany Pereira, pelo apoio e pela ajuda em Lisboa, e Claudia
Regina Ribeiro, pela insistência na Torre do Tombo para liberação da minha
documentação digitalizada somente cinco meses depois da minha estada lá. A Joice
Santos e Rodrigo Elias, meu sincero obrigada.
À minha família, pela compreensão e carinho durante todo este difícil
processo.
Resumo

Silva, Cristiane Nascimento da; Pamplona, Marco Antonio Villela. As


relações entre o governo português e os muçulmanos de Moçambique
(1930-1970). Rio de Janeiro, 2010. 101p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
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A dissertação “As relações entre o governo português e os muçulmanos de


Moçambique (1930-1970)” tem por objetivo analisar as diferentes posições
adotadas pelo Governo Colonial Português em relação aos muçulmanos de
Moçambique. Desde a fixação dos portugueses na região, no século XVI, até a sua
expulsão, em 1974, o contato com os muçulmanos foi permeado pela antinomia
aliança x oposição. Entre as décadas de 30 e 60, o islamismo em Moçambique foi
visto como uma ameaça ao projeto de nação portuguesa e reprimido das mais
diversas maneiras. No entanto, entre as décadas de 60 e 70, contexto em que os
movimentos de emancipação das colônias portuguesas se fortaleceram e a luta
armada se iniciou, o Estado Novo adotou uma postura diferente em relação à
população muçulmana da província. Criou-se uma estratégia de aproximação,
baseada em um discurso de “diálogo ecumênico”, como fruto de um conhecimento
produzido sobre as diversas comunidades islâmicas existentes no território,
concentradas principalmente no norte país.

Palavras-Chave

Portugal; Moçambique; Muçulmanos; Nação; Religião; Estado Novo.


Abstract

Silva, Cristiane Nascimento da; Pamplona, Marco Antonio Villela


(Advisor). The relations between the Portuguese government and the
Muslims of Mozambique (1930-1970). Rio de Janeiro, 2010. 101p. MSc.
Dissertation – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
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The main purpose of "The relations between the Portuguese government


and the Muslims of Mozambique (1930-1970)" is to examine the different
positions taken by the Portuguese colonial government towards the Muslims of
Mozambique. Since the arrival of the Portuguese in the region in the sixteenth
century, until their expulsion in 1974, the contact between Portuguese and
Muslims was permeated by the antinomy alliance - opposition. Between the 30s
and 60s, Islamism in Mozambique was seen as a threat to the project of the
Portuguese nation and was suppressed in many different ways. However, between
the 60s and 70s, when the emancipation movements of the Portuguese colonies
were strengthened and the armed struggle began, the New State took a different
stance regarding its Muslim population. A strategic approach was created, based
on a discourse of "ecumenical dialogue" and the knowledge acquired about the
various Islamic communities in the territory, concentrated mainly in the north part
of the country.

Keywords

Portugal; Mozambique; Muslims; Nation; Religion; New State.


Sumário

1. Introdução 9

2. O Estado Novo e a Questão Colonial 13


2.1 O Acto Colonial e a legislação do Estado Novo 16
2.2 A Mística Imperial e a obrigação de civilizar 23
2.3. As Missões Católicas e a Educação em Moçambique 28

3. O medo que vem do Islã 34


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3.1. Presença e diversidade islâmica em Moçambique 34


3.2. O Islã ameaça – O olhar dos intelectuais nos anos 30 e 40 42

4. Uma nação fraterna? Aproximações entre governo português e 63


muçulmanos
4.1. O poder colonial em apuros: pressões por autonomia 63
4.2. Nova estratégia: conhecer para cooptar 71
4.3. Novo discurso: Portugal, um império luso tropical 76
4.4. As ações 82

5. Considerações finais 88

6. Referências Bibliográficas 93

7. Anexos 99
Lista de Figuras

Figura 1 – Mapa da região norte de Moçambique..................... 34

Figura 2 – Formação etnolinguística de 69

Moçambique...................

Figura 3 – Visita de peregrinos muçulmanos a Meca,


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provenientes da Guiné, que em passagem por Portugal,


visitaram o palácio de Sintra................................................... 88
1
Introdução

Em 1961 Adriano Moreira, Ministro do Ultramar português, publicou em


seu livro Política Ultramarina1 um tópico sobre a relevância que a religião
muçulmana assumia nos movimentos anticolonialistas não apenas no Oriente
Médio, mas também na África. O ministro alertava para a importância do
“problema”, já que o Islã inspirava o poder político em países como o Sudão,
Moçambique e a Guiné.2
Apesar de as palavras de Moreira serem enfáticas com relação ao perigo
islâmico no continente, a associação entre islamismo e descolonização na África e
na Ásia foi comum apenas em países de maioria muçulmana. Grande parte dos
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estudos sobre o processo de descolonização da África portuguesa sequer


menciona o Islã como um elemento desestabilizador no jogo de poder.
No caso do processo de independência de Moçambique, a maioria dos
pesquisadores costuma enfatizar apenas a oposição política, ideológica e secular
entre os movimentos de libertação nacional, a FRELIMO (Frente de Libertação
Nacional de Moçambique), e o Estado Colonial Português. O fator religioso tem
sido amplamente desconsiderado nesse contexto, apesar de se ter constituído, em
um momento específico da luta armada, elemento fundamental.
Nos anos 60, havia entre a população negra de Moçambique
aproximadamente 1.158.973 muçulmanos, em contraste com os 475.259 católicos
e os 145.261 protestantes3. Apesar de a maioria da população negra ser adepta das
religiões tradicionais, não era possível desconsiderar o grande número de
islamizados no território. Naquele momento, em que começava a luta armada, a

1
Adriano Moreira. “O movimento Islâmico”. In: MOREIRA, Adriano. Política Ultramarina.
Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1961.
2
“Para compreensão da importância do problema deverá lembrar-se que o Islão inspira o poder
político até ao centro da África, onde, no Sudão, acaba de mandar encerrar todas as escolas cristãs,
faz aparecer missionários ao sul do Save [Moçambique] e guarda posições históricas em toda a
Guiné”. MOREIRA, op cit., p. 272.
3
Cabe destacar que a maioria dos negros (incluindo indígenas e assimilados) se enquadrava na
categoria religiosa, denominada pelo censo de Outras, que correspondia a 4.605.118 pessoas. III°
Recenseamento geral da população, Lourenço Marques, Instituto nacional de estatística/INM,
1960, 12 vols. apud. CAHEN, Michel. “L'État Nouveau et la diversification religieuse au
Mozambique, 1930-1974”. Paris, Cahiers d’Études africaines, 158, XL-2, 2000, p. 330.
10

população muçulmana4 não passou despercebida nem pela FRELIMO, nem pelo
governo português.
O Estado português adotou diferentes posturas com relação às populações
islamizadas em Moçambique, durante todo o período de sua presença no
território. Desde a implantação dos portugueses na região, no século XVI, até a
sua expulsão em 1974, o contato entre portugueses e muçulmanos foi permeado
pela antinomia aliança/oposição.
A relação entre Estado Colonial português e populações muçulmanas em
Moçambique, entre os anos 1930 e 1970, é o foco desta dissertação. Com uma
temporalidade tão alargada foi possível identificar dois momentos distintos no
discurso português: o primeiro percebia no islamismo em Moçambique uma
ameaça ao projeto de um Portugal ultramarino e outro defendia a integração e a
aproximação dessas comunidades ao governo.
Nesse primeiro momento, que caracterizamos como o dos anos 30 até os 50,
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José Julio Gonçalves, funcionário do Serviço Colonial Português destacava a sua


preocupação com os rumos do Islã e traçava perspectivas para essa religião em um
futuro próximo. “Se o ritmo das conversões entre os povos negros norte-
moçambicanos mantiver a atual aceleração, é de crer que o islamismo venha a
instalar-se em todas aquelas vastas regiões que situam o norte do Zambeze”.5
A conversão ao islamismo representava uma grande ameaça ao governo
português em Moçambique, e essa “tendência revolucionária” fazia com que o ele
temesse esse “contágio”, acentuando em relação às populações locais, a ideia de
subversão, como ele explicava: “Não percamos de vista o grave perigo que está
implícito neste facto. É que a África Oriental islamizada significa apenas que
haverá maior facilidade de penetração do asiatismo em toda a extensa região leste
africana, incluindo pelo menos a parte norte de Moçambique”.6
O segundo momento analisado na dissertação abrange as décadas de 60 e
70, contexto em que os movimentos de emancipação das colônias portuguesas se
fortalecem e a luta armada se inicia. Considerando essa ameaça, o Estado Novo
adotou uma postura diferente em relação à população muçulmana em

4
Neste momento uso o termo genérico populações muçulmanas, mas ao longo do trabalho será
apresentada a diversidade e complexidade do islamismo em Moçambique.
5
GONÇALVES, José Julio. O mundo árabo-islâmico e o Ultramar Português. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1958, p. 236.
6
Ibidem.
11

Moçambique. Nesse momento, a principal ideia era criar uma estratégia de


aproximação, baseada em um discurso de “diálogo ecumênico”, como fruto de um
conhecimento produzido sobre as diversas comunidades islâmicas existentes no
território, concentradas principalmente no norte país.
Seguindo essa perspectiva, a dissertação foi divida em três capítulos. O
primeiro deles, O Estado Novo e a Questão Colonial, apresenta, de maneira breve,
a inauguração do Regime do Estado Novo em Portugal e as mudanças na política
em relação às colônias, a partir dos anos 30. Discute a importância do Acto
Colonial e da Constituição de 1932 na elaboração do novo mito do Império
Português, que, baseado nas leis, nas práticas políticas e na ideologia, tentava
manter as suas colônias e justificá-las internacionalmente.
O segundo capítulo, O medo que vem do Islã, trata da presença e da
diversidade islâmica em Moçambique e da construção de um saber sobre o Islã
pelos intelectuais portugueses, agentes da administração colonial. Nos livros e nos
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relatórios escritos, os muçulmanos representavam uma ameaça ao Império


Colonial, não apenas pela prática da religião ou pela alfabetização em árabe, mas
também pelas possíveis articulações que poderiam fazer com países vizinhos, em
nome da religião e da libertação do jugo colonial.
O terceiro capítulo, Um Império luso-tropical, analisa a mudança ocorrida
no discurso português, a partir das décadas de 60 e 70, quando os muçulmanos
passam a ser vistos, estrategicamente, como integrantes de uma nação portuguesa,
naquele momento percebida como miscigenada. Analisaremos os fatores que
estimularam essa mudança de postura e quais foram as estratégias ideológicas e as
práticas de cooptação dos muçulmanos para o apoio do governo.
A nova postura se apoiava na construção de um conhecimento mais
sistemático sobre essas populações, na implantação de medidas que permitissem o
apoio irrestrito ao governo e na formação de um discurso que legitimasse todas
essas práticas. É na formação desse discurso que as teorias luso-tropicalistas do
sociólogo pernambucano Gilberto Freyre serão utilizadas.
As dificuldades em trabalhar com esta temática se manifestaram em vários
aspectos, desde a inexistência de uma discussão historiográfica ampliada sobre o
tema, até obstáculos para maior acesso às fontes documentais, que nos
permitissem observar o processo de uma forma mais dilatada, não se restringindo
12

apenas ao discurso oficial. No caso deste trabalho, por falta de acesso e tempo
hábil, optou-se por analisar apenas a documentação oficial portuguesa.
Seguindo essa proposta, foram utilizados como fontes de pesquisa alguns
periódicos oficiais, como o Boletim Geral do Ultramar, publicado pela Agência
Geral do Ultramar entre 1924 e 1974, relatórios e livros de membros da estrutura
colonial, como os Relatórios de Antonio Enes e os livros do missionário e
professor Silva Rego e do professor e Ministro do Ultramar Adriano Moreira.
Além disso, foram utilizados alguns documentos dos Serviços de Centralização e
Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM), órgão criado em 1961
pelo Ministério do Ultramar, com a finalidade de controlar e coordenar as
informações relativas à política, à administração e à manutenção de Moçambique
como território ultramarino, e que estão localizados no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, em Lisboa.
A utilização exclusiva de fontes oficiais foi fator limitador ao trabalho, já
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que restringiu em alguns momentos, uma análise mais ampliada do processo, e o


conhecimento mais consistente sobre as populações muçulmanas envolvidas neste
processo. No entanto, o trabalho com a documentação oficial nos permitiu
estudar as contradições existentes no regime, as modificações e as adaptações
feitas pelo Estado Colonial português, para se adequar às mudanças ocorridas.
Nelas também identificamos os temores e as estratégias de defesa, utilizadas à
época, para dar continuidade à manutenção do Império Português na África.
2
O Estado Novo e a Questão Colonial

É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a


função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e
de civilizar as populações que neles se compreendam,
exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo
Padroado do Oriente (Acto Colonial, Artigo 2, 1930).

Na década de 30, uma antiga ideia ganhou força em Portugal, a de que o


país poderia retomar aos tempos áureos das Grandes Navegações, mesmo diante
de um cenário de crise mundial. E a força motriz para essa mudança estava nas
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colônias.
O discurso sobre a existência de uma função histórica portuguesa de atuar
nos domínios do ultramar e de fazer deles parte integrante de um novo império
colonial foi recuperado durante o Estado Novo de Salazar, e ganhou muita força
nos planos ideológicos e políticos.
Este capítulo apresenta sucintamente a implantação do regime do Estado
Novo e a sua legitimação institucional, através do Acto Colonial e da Constituição
de 1933. Mas, além da base legal, havia também uma construção ideológica desse
império, fundamentada na noção de que existia uma Mística Imperial que era
essencialmente portuguesa.
Essa Mística Imperial estava alicerçada em um governo autoritário e em
uma aliança com a Igreja Católica, que, juntamente com uma política econômica
rígida, seria capaz de não só proteger Portugal das ameaças internas e externas,
como também de superar a crise financeira e manter seus territórios além-mar a
salvo.
O Estado Novo, liderado por Salazar nos anos 30, foi fruto do golpe militar
que extinguiu a República em 1926. Antonio de Oliveira Salazar era professor em
Coimbra e foi convidado para trabalhar, como Ministro das Finanças, no recém-
governo ditatorial. Por sua atuação no controle das finanças portuguesas, tornou-
14

se, em 1932, o Primeiro-Ministro (Presidente do Conselho de Ministros) até 1968,


quando Marcelo Caetano assumiu o poder.
A grande preocupação inicial era amenizar os problemas financeiros de
Portugal. Nesse sentido, a manutenção das possessões além-mar era um
importante instrumento, pois colônias e metrópole poderiam unir-se de maneira a
constituirem um sistema econômico capaz de atingir um grande índice de
autossuficiência.
A administração levada por Portugal pelo regime republicano até os anos 20
refletiu-se na década de 30, trazendo graves consequências para sua economia,
que muito dependia dos investidores estrangeiros, como Alemanha, França,
Bélgica e, principalmente, Inglaterra, com grandes aplicações nas colônias de
Angola e Moçambique.
A política de descentralização na administração das colônias, implantada
por Portugal na primeira década do século XX, era baseada na ampla autonomia
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dos governos coloniais, e demonstrara o seu fracasso com a grande dívida


contraída pelas colônias, a inflação, a desvalorização da moeda local e a
impossibilidade de transferências de fundos para a metrópole.1
No caso de Moçambique, a colônia representava para a metrópole tudo de
errado que o regime republicano poderia ter feito – caos administrativo, falta de
políticas financeiras e econômicas coerentes, inflação elevada e moeda
desvalorizada, atuação estrangeira excessiva e desprestígio internacional. 2
A estratégia de reestruturação econômica de Salazar baseava-se na ideia de
uma moeda forte convertível, orçamentos e balanças de pagamentos excedentes e
redução da dívida externa. O pensamento era que, para alcançar esses objetivos,
Portugal e as colônias deveriam constituir um sistema econômico fechado, com o
intuito de atingir a autossuficiência. Além disso, as colônias serviriam de grandes
mercados para os produtos metropolitanos e o fornecimento de matérias-primas
para as indústrias e os gêneros alimentícios.
Cabe ressaltar que as dificuldades internas, vivenciadas por Portugal nesse
período, tinham como pano de fundo a crise mundial de 1929, em que houve uma
retração nos principais mercados internacionais e as metrópoles foram obrigadas a

1
Cf. Valentim Alexandre, Portugal em África (1825-1974): Uma Perspectiva Global. In: Revista
Penelope: Fazer e Desfazer a História. nº 11, Lisboa, 1993.
2
Cf. Malyn Newitt. História de Moçambique. Mem Martins: Europa-América,1997, p.390.
15

reorientar as suas trocas externas para as colônias. Essa política baseava-se em


medidas protecionistas, que tinham por intuito garantir o escoamento das
produções metropolitanas e o abastecimento de matérias-primas e outros produtos.
Assim como Portugal, outros países europeus lançaram seus olhares para os
domínios coloniais no momento da crise, como a Inglaterra, que, com os acordos
da Conferência Econômica Imperial, ou Conferência Imperial de Ottawa,
realizada entre 21 de julho e 20 de agosto de 1932, restabeleceu a política de
“preferência imperial” com as suas colônias e os países da Commonwealth. E a
França que, a partir de 1931, redescobriu a utilidade econômica das colônias,
operando um movimento de redefinição das suas trocas externas de grande
escala. 3
Além da crise financeira pela qual passava Portugal, o país ainda sofria com
as pretensões expansionistas da África do Sul sobre suas colônias e com a
divulgação dos relatórios negativos a respeito da mão de obra colonial quase
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escrava,4 feitos pela Sociedade das Nações, que fragilizaram as posições de


Portugal na África e eram importantes argumentos para a intervenção externa.
A manutenção dos domínios ultramarinos portugueses era a condição
principal de sobrevivência da nação e da conservação de sua identidade. O novo
projeto colonizador deixava claro para os outros países que Portugal não abriria
mão de suas possessões. Esse temor se concretizou em 1933, quando surgiram
relatos de que a Itália estava negociando com a Inglaterra os territórios de Angola
e Moçambique.
Para manter esse risco afastado, foi necessário cooperar com a Inglaterra, a
África do Sul e, posteriormente, com os Estados Unidos, conservando os
privilégios que desfrutavam e eliminando, imediatamente, as razões de
interferência nos assuntos internos portugueses.
A pressão internacional e a crise financeira que abalaram Portugal e suas
colônias exigiram o fortalecimento do conceito de Império Colonial, e dever-se-ia
criar “uma verdadeira mística imperial, de mobilizar os espíritos, arraigando no
conjunto da população portuguesa o ‘amor’ pelos domínios coloniais”.5

3
Cf. Fernando Rosas. História de Portugal. Lisboa: Estampa,1998, p.284.
4
Um exemplo da exploração de mão de obra em Moçambique foi o Caso da Companhia do
Niassa, que mantinha os seus trabalhadores em condições deploráveis, o que incluía trabalho
forçado.
5
Valentim Alexandre, op. cit., p.62.
16

Diante das ameaças políticas, econômicas e sociais, havia necessidade de


alteração das leis e das práticas nas colônias, desde os primórdios da ditadura
militar, em 1926. A prova disso estava na adoção das novas Bases Orgânicas da
Administração Colonial (a que se seguiram as Cartas Orgânicas das Oito
Colônias) pelo Ministro das Colônias da ditadura militar, João Belo, e a
promulgação do Acto Colonial em 1930.

2.1
O Acto Colonial e a legislação do Estado Novo

Foi a partir da promulgação do Acto Colonial, em 1930, que se inaugurou


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uma nova fase na administração colonial e no projeto político de Salazar. Tratava-


se do Decreto nº 18.570, de 8 de julho, elaborado pelo advogado Quirino de Jesus
e por Armindo Monteiro, que assumiu, de 1931 a 1935, o Ministério das Colônias.
O Acto Colonial substituiu o Título V da Constituição de 19116 e foi,
posteriormente, incorporado ao texto da Constituição de 1933.
Antes do estabelecimento do Acto Colonial, outros documentos já haviam
sido publicados com o intuito de fortalecer uma estrutura jurídica capaz de
racionalizar e também legitimar a atuação portuguesa nas colônias, como o
Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique e as
Bases orgânicas da administração colonial, ambas de outubro de 1926.
No entanto, o arcabouço legal da política implementada pelo Estado Novo
estava presente no Acto Colonial, na Carta Orgânica do Império Colonial
Português,7 promulgados em 1930, e na Constituição de 1933. Como afirma
Omar Ribeiro Thomaz, essa legislação era produto de uma ideologia e uma

6
O artigo 67.o do título V da Constituição de 1911, diz: “Na administração das províncias
ultramarinas predominará o regime de descentralização, com leis especiais adequadas ao estado de
civilização de cada uma delas”.
7
Como afirma A. H. Marques de Oliveira, a Carta Orgânica do Império Colonial Português era um
desdobramento do Acto Colonial e uma adaptação da Constituição Portuguesa às colônias. Cf. A.
H. de Oliveira Marques, Breve História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 2006.
17

tradição do poder colonial português, que tinha por objetivo traduzir como o
império deveria ser e atuar em seus territórios.8
O Acto Colonial e a Carta Orgânica do Império Colonial Português,
reforçaram os princípios legais estabelecidos em 1926. Esses documentos foram
pensados como uma espécie de Constituição para os territórios de além-mar e
tinham como característica principal o ultranacionalismo, típico do governo de
Salazar.
Foi a partir desses diplomas que os territórios ultramarinos portugueses
passaram a ser considerados integrantes do “Império Colonial”, cuja
administração deveria estar centralizada pelo governo de Lisboa, conforme
definiam os artigos 3º, 5º e 6º do Acto Colonial e o 18.º da Carta Orgânica:

Art. 3.º Os domínios ultramarinos de Portugal denomina-se colônias e constituem o


Império Colonial Português.
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Art. 5.º O Império Colonial Português é solidário nas suas partes componentes com
a metrópole.
Art.6.º A solidariedade do Império Colonial Português abrange especialmente a
obrigação de contribuir de forma adequada para que sejam assegurados os fins de
todos os seus membros e a integridade e defesa da Nação.9
Art. 18.º Cada colônia é superiormente administrada, sob a superintendência do
Ministro das Colônias, por um governador; as funções que lhe pertencem exerce-as
este diretamente ou por intermédio dos serviços, autoridades e funcionários seus
subordinados, com a consulta do Conselho de Governo ou da secção permanente
deste, sempre que for de lei.10

De acordo com o Acto Colonial, a metrópole e as colônias formariam uma


“comunidade e solidariedade natural” em suas relações econômicas, e seria função
de Portugal garantir os interesses em comum, considerando as particularidades de
todos os territórios, criando uma organização econômica subordinada à unidade
nacional.

8
Omar Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlântico Sul: Representações sobre o terceiro império
português. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FAPES, 2002, p.71.
9
Acto Colonial, 1945. In: Colectânea de Legislação Colonial. Lisboa: Divisão de Publicações e
Biblioteca Agência Geral das Colônias, 1948.
10
Carta Orgânica do Império Colonial Português. In: Coletânea, op. cit.
18

Apesar de o artigo 26.º do Acto Colonial11 assegurar que as colônias


possuíam descentralização administrativa e autonomia financeira, que fossem
compatíveis com a Constituição, com o seu estado, o seu desenvolvimento e os
seus recursos, na prática a autonomia financeira foi extinta e o orçamento geral
passou a depender da aprovação do Ministro das Colônias, segundo o princípio do
equilíbrio de contas.
Além da extinção da autonomia, as colônias foram proibidas de contratar
empréstimos em países estrangeiros, que, em caso de necessidade, deveriam ser
feitos pela metrópole. As concessões às empresas estrangeiras passaram a ser
restritas, tanto no que diz respeito ao domínio territorial, quanto à exploração de
portos comerciais. O Estado deixaria de conceder a empresas particulares funções
de soberania, como era na 1ª República. Ainda que o Estado fizesse concessões ao
capital estrangeiro, esse ficaria subordinado às determinações nacionais.
A figura dos altos comissários nas colônias foi extinta e substituída pela dos
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governadores gerais ou de colônia, de quem os poderes e a autonomia de decisão


foram consideravelmente reduzidos e centralizados, em tudo o que era essencial,
no Ministério das Colônias ou no governo de Lisboa.
No que diz respeito às populações locais das colônias, desde o período
republicano (1910-1926), com as Leis Orgânicas (que eram uma espécie de texto
constitucional aplicado às colônias) o governo estabeleceu normas básicas para a
relação com os nativos, reconhecendo o direito indígena, aplicado de acordo com
o estágio de civilização africano ou timorense, distinto do metropolitano.
Este ideal de que as leis deveriam ser aplicadas de acordo com o grau
evolutivo dos povos era inspirado em Antonio Enes, organizador da política
colonial em Moçambique no século XIX. Para ele, as sociedades locais não
possuíam capacidade de se auto-governar a partir de um sistema de liberdade
política, e que apenas a tutela dos “mais civilizados” sobre os “primitivos”
poderia retirar os nativos da incivilidade.12De acordo com Enes, não era possível
colonizar as populações locais a partir das mesmas leis que vigoravam na

11
Este artigo define a seguinte norma: “São garantidas às colônias a descentralização
administrativa e a autonomia financeira que sejam compatíveis com a Constituição, o seu estado
de desenvolvimento e os seus recursos próprios, sem prejuízo do disposto no artigo 47.o”.
12
Lorenzo Macagno. Outros Muçulmanos: Islão e Narrativas Coloniais. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais, 2006. p. 40
19

metrópole. Sendo assim, era fundamental que existisse uma legislação que
estivesse de acordo com os hábitos e costumes dos povos.
A distinção entre direito metropolitano e colonial e a aplicação das leis de
acordo com o estágio “evolutivo” das sociedades também foram mantidas pelo
Acto Colonial, que oferecia, de maneira mais sistematizada, os diferentes direitos
e deveres entre os colonos, que eram os nascidos na metrópole, os assimilados e
os indígenas.
Além disso, o Acto Colonial esclarecia os princípios gerais a serem seguidos
por Portugal na sua relação com as colônias, de maneira que, considerando os
seus distintos estágios de evolução, o governo pudesse contribuir para uma
transição gradual do indígena ao cidadão português. A nova legislação instituía
também a “tutela” em relação às populações nativas de São Tomé e Príncipe,
Guiné, Angola, Moçambique e Timor, e, assim, acabava por estabelecer as
diferenças e as hierarquias entre os habitantes do chamado “império colonial
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português”.
Ao examinarmos os artigos do Título II – Dos indígenas do Acto Colonial e
a Carta Orgânica do Império Colonial Português, podemos perceber as
contradições da legislação portuguesa, que tinha por intuito proteger os indígenas
da exploração de mão de obra, silenciando assim as reivindicações internacionais
sobre os abusos do trabalho nativo e, ao mesmo tempo, abria espaço para
diferentes interpretações e assegurava a manutenção do trabalho nativo para obras
do império, conforme se comprova nos trechos a seguir:

Art. 231.º O Estado garante a proteção e defesa dos indígenas das colônias,
conforme os princípios de humanidade e da soberania nacional, as disposições
legais e as convenções internacionais que atualmente vigoram ou venham a
vigorar. As autoridades coloniais impedirão e castigarão conforme a lei os abusos
contra a pessoa e bens dos indígenas.
Art. 233.º Todas as autoridades e colonos devem proteção aos indígenas. É seu
dever velar pela conservação e desenvolvimento das populações, contribuindo, em
todos os casos, para melhorar as suas condições de vida; têm obrigação de amparar
e fornecer as iniciativas que se destinem a civilizar o indígena e aumentar o seu
amor pela Pátria portuguesa.
Art. 240.º O Estado não impõe nem permite que se exija aos indígenas das suas
colônias qualquer espécie de trabalho obrigatório ou compelido para fins
20

particulares, embora não prescinda de que eles procurem pelo trabalho meios de
subsistência.13

No entanto, tanto o Acto Colonial como a Carta Orgânica do Império


Colonial Português apresentavam em seus artigos 20.º e 241.º, respectivamente, a
seguinte norma:

Art. 20.º O Estado somente pode compelir os indígenas ao trabalho em obras


públicas de interesse geral da coletividade, em ocupações cujos resultados lhes
pertençam, em execução de decisões de caráter penal ou para cumprimento de
obrigações fiscais.14

Diante da ambiguidade em relação aos indígenas, é possível constatar que,


embora fossem considerados “súditos portugueses”, eles não faziam parte da
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nação, nem como comunidade cultural, nem como uma associação política de
cidadãos.
A legislação relativa aos indígenas tinha como discurso principal levar a
civilização europeia aos africanos e aos timorenses e incorporá-los à nação
portuguesa, através de uma transformação gradual de seus costumes e valores
considerados pelos portugueses, como incivilizados.
Desde o século XIX, diversos códigos e regulamentos foram criados na
tentativa de sistematizar de maneira eficaz o trabalho dos classificados indígenas.
Mas para se regulamentar o trabalho, era necessário definir o que seria o indígena.
O primeiro diploma da legislação colonial portuguesa, que se preocupou em
caracterizar quem seria classificado como indígena e quem estaria isento de tal
classificação, foi o Decreto de 27 de setembro de 1894, referente à pena de
trabalhos públicos15. O decreto afirmava em seu 1º artigo que “somente são
considerados indígenas os nascidos no Ultramar, de pai e mãe indígenas e que
não se distinguem pela sua ilustração e costumes do comum de sua raça.”.

13
Carta Orgânica do Império Colonial Português. In: Colectânea de Legislação Colonial. Lisboa:
Divisão de Publicações e Biblioteca Agência Geral das Colônias, 1948.
14
Acto Colonial. In: Coletânea, op. cit.
15
Valdemir Donizette Zamparoni. Entre Narros & Mulungos: Colonialismo e paisagem social em
Lourenço Marques c. 1890- c.1940. USP, 1998 (Tese de doutorado) p. 465
21

Outros decretos e regulamentos também foram implementados com este


objetivo, como o Regulamento do Trabalho dos Indígenas nas Colônias, de 1899,
e o Regulamento Geral do trabalho indígenas nas colônias portuguesas, de 1914
16
. No entanto, foi somente em 1917, com o Alvará do Assimilado ou Portaria do
Assimilado17, que se criou uma distinção jurídica e hierarquizada entre indígenas e
não indígenas, os chamados assimilados.
De acordo com o 1º artigo da Portaria seria considerado indígena “o
indivíduo da raça negra ou dela descendente que pela sua ilustração e costumes
se não distingue do comum daquela raça”. O Assimilado seria o indivíduo da raça
negra ou dela descendente que: tivesse abandonado inteiramente os usos e
costumes daquela raça; que falasse, lesse e escrevesse a língua portuguesa;
adotasse a monogamia; exercesse profissão, arte ou ofício, compatíveis com a
“civilização européia” ou que tivesse “obtido por meio lícito” rendimento que
fosse suficiente para alimentação, sustento, habitação e vestuário dele e de sua
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família.
Conforme indica Zamparoni18, aqueles que julgavam estar em condições de
atender aos requisitos para receber o alvará de assimilado, deveriam redigir e
assinar um requerimento que seria acompanhado ainda de um atestado emitido
pelas autoridades administrativas que comprovasse o seu local de residência, o
abandono dos “usos e costumes” da raça negra e a fluência em língua portuguesa.
Além disso, deveriam apresentar a certidão de aprovação no exame de instrução
primária; a certidão civil do casamento ou, caso fossem solteiros, deveriam
apresentar uma declaração de próprio punho em que se comprometiam adotar a
monogamia. No caso dos filhos mestiços, eles não necessitariam do alvará
enquanto vivessem na companhia do pai, europeu, ou se estivessem residindo em
institutos de educação.
A Portaria de 1917 era considerada extremamente rígida e restritiva.
Seguindo estes padrões, nem mesmo grande parte dos colonos brancos
conseguiria atender aos requisitos exigidos, considerando que um terço deles eram
analfabetos, outros muitos desempregados e outros polígamos. Este decreto gerou
inúmeros protestos por parte das elites africanas, que percebiam o conteúdo deste

16
Outros decretos e regulamentos, Cf. Valdemir Donizette Zamparoni. Op. cit
17
Portaria Provincial Nº 317, de 9 de janeiro de 1917, publicado no Boletim Oficial n° 02/1917 e
promulgado pelo Governador Geral Álvaro de Castro.
18
Valdemir Donizette Zamparoni. Op. Cit. p. 470
22

documento como racista e inconstitucional. A indignação das elites locais gerou


algumas alterações na portaria, que em 1927 tornou-se extensiva a Angola e
Guiné. 19
A separação da sociedade entre indígenas e assimilados, permaneceu no
Estado Novo. Sob o pretexto de proteção do trabalho indígena justificava-se ainda
mais a segregação e a exploração da mão de obra local, legitimado pelo Acto
Colonial. Apenas em 1953, foi criado um novo Estatuto dos Indígenas
Portugueses da Guiné, Angola e Moçambique.
A política da assimilação apresentava muitos problemas. O primeiro de
todos estava na classificação arbitrária dessa categoria. Muitos africanos, que
poderiam se enquadrar no status de assimilado recusava-se a requerer, pelo fato
terem que pagar mais impostos. Além disso, um assimilado dificilmente poderia
ser considerado um cidadão de 1ª classe, pois era alvo permanente de
discriminação econômica e social, sendo também ameaçado cotidianamente de
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perder o seu status de assimilado.


Apesar das dificuldades de implantar uma política efetiva de atuação nas
colônias diante de um cenário de falta de recursos, da fraca presença portuguesa
em seus territórios coloniais e da dificuldade de lidar com as populações locais,
era necessário transmitir o discurso de que o pequeno e pobre Portugal era uma
nação forte, que tinha por missão levar o cristianismo e a civilização. Esses ideais
foram insuflados pela construção de uma ideologia nomeada Mística Imperial.

19
Sobre os protestos Cf. Fernanda do Nascimento Thomaz. Os “Filhos da Terra”: discurso e
resistência nas relações coloniais no sul de Moçambique (1890-1930).UFF, 2008 (Dissertação de
mestrado) e Valdemir Donizette Zamparoni. Entre Narros & Mulungos: Colonialismo e paisagem
social em Lourenço Marques c. 1890- c.1940. USP, 1998 (Tese de doutorado).
23

2.2
A Mística Imperial e a obrigação de civilizar

[A mística imperial] É um apetite heroico de acção, uma consciência de energia


que só aceita o que é honesto e puro e que acima de tudo exige a manutenção
integral de tudo quanto se fez ou se conseguiu. [...] É antes uma hóstia de
esperança que o fel amargo dum remédio que se toma à força.20

Essa é a definição que Francisco Alves de Azevedo, em seu pequeno texto


sobre a mística imperial, publicado nos Cadernos Coloniais,21, que apresentava o
sentido da Mística Imperial. Assim como o pensamento português da época, ele
acreditava que a colonização era algo inerente ao espírito português.
Além disso, era forte a ideia dos intelectuais portugueses de que a
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colonização de seu país era diferente de todas as outras e até admirada pelos
estrangeiros, pois não objetivava apenas explorar os territórios, mas colonizar e
cristianizar.
Ao tentar explicar ao máximo o que era a Mística Imperial, F. Alves de
Azevedo conta uma breve estória e afirma que um exemplo é melhor que todas as
definições. Por se tratar de uma história curiosa, vale reproduzir.

Conta um biógrafo de Lyautey – que só por ser de origem portuguesa, foi o maior
colonial da actualidade – que em 1914 o criador do Marrocos recebia do Ministro
da Guerra do seu país ordem de pôr à sua disposição a maior parte das tropas de
ocupação.
O Governo sabia que era impossível manter todo o país com os pequenos efectivos
que ficariam, e por isso pedia-lhe somente para conservar Fez e assegurar a
evacuação dos franceses do sul. Estava bem. Com 100.000 homens podia-se
manter um território determinado com 20.000 devia poder-se conservar a quinta
parte.
Ao ter conhecimento desta ordem que despedaçava tudo quanto fizera em
Marrocos, o marechal não disse uma palavra, encerrou-se no seu gabinete e não
recebeu ninguem durante 24 horas.

20
F. Alves Azevedo. Mística Imperial. In: Cadernos Coloniais, nº 17. Lisboa: Editorial Cosmos,
s/d, p.4.
21
Os Cadernos Coloniais fazem parte de uma coleção de setenta livros, que foram publicados pela
Editora Cosmos, entre 1935-1941, e tinham por objetivo fazer propaganda da obra colonial
portuguesa em seus territórios.
24

Depois de maduramente haver elaborado o seu plano, que ficou célebre com o
nome de plano 20 de Agosto, respondeu à ordem recebida, nos seguintes termos:
‘Dar-vos-ei todos os batalhões que pedis. Não conservarei senão o que fôr
necessário para manter a aparência nos postos, mas a nossa política será a política
do sorriso. Não sómente não estaremos inquietos, mas aos olhos dos indigenas
teremos de ser alegres. Faremos uma feira em Fez. Um homem que trabalha não
pensa em se bater. Cada estaleiro que se abre é uma batalha que se ganha’.
O seu plano executado á risca não falhou num unico ponto. E o mais interessante é
que não foi apenas o que já pertencia aos franceses que se manteve sob o dominio
da França: muitas tribus rebeldes vieram submeter-se para poder gozar as delicias
do Luna Parque de Fez.
Qual a razão deste brilhante exito? Só vislumbramos uma: A mistica imperial de
Lyautey, de facto um dos grandes construtores do império francês.22

A história apresentada anteriormente traz um aspecto curioso, o fato do


Marechal Lyautey ser de origem portuguesa e isto ser a explicação para uma
superioridade estrátegica no que diz respeito aos assuntos da colônia. Trata-se da
construção de uma crença que existe uma ‘raça portuguesa’, que tem em sua
essência o gene da civilização.
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Mais do que convencer ao mundo e aos próprios portugueses que existia um


dom português para os assuntos do ultramar, era fundamental cultivar um amor
pela pátria portuguesa e legitimar ideologicamente a manuntenção dos territórios
coloniais e a luta por eles.

O projeto colonial português sempre esteve atrelado à construção de um


mito que se reformulou de acordo com as necessidades políticas de cada época. O
historiador português Valentim Alexandre defende a ideia de que um dos mitos
ressignificados pelo Estado Novo foi o da “herança sagrada”, que via na
conservação de todas as partes do território como um imperativo histórico o
testemunho da grandeza dos feitos da nação, e que, por esse motivo, não poderiam
ser perdidas. 23

Para o autor, esse “mito da herança sagrada” era resultado de dois elementos
constituintes do nacionalismo português: a consciência das elites políticas
portuguesas da vulnerabilidade de Portugal frente às ameaças externas e a ideia de
22
Ibidem, p.5.
23
Um panorama geral sobre a construção do mito do Império Português é tratado no artigo de
Valentim Alexandre. A África no imaginário político português (séculos XIX-XX). In: A. M.
Hespanha. Penelope no 15. Lisboa: Edições Cosmos, 1995.
25

que a sobrevivência da nação dependia da existência e da manutenção, a qualquer


custo, do império.
Essa ideologia imperial teve como principal teorizador Armindo Monteiro,
Ministro das Colônias de 1931 a 1935. O Império para ele era algo atemporal, que
estava acima de todos os interesses e se misturava com a vontade profunda do
povo. Monteiro argumentava que Portugal poderia ser apenas uma nação que
possuía colônias, ou um império que possuía a certeza da obra que realizou e que
pretendia seguir ininterruptamente, vencendo todas as dificuldades.
Armindo Monteiro tinha por objetivo construir um novo conceito de
império, que pertencia a um tempo organicista e ontológico. Em discurso
publicado no Boletim Geral das Colônias, definia o Império como:

[...] uma criação maravilhosa, cimentada pelo esforço de inúmeros pioneiros


através de séculos, levantando-se para o céu sobre o soco sangrento de muitos
soldados, funantes, missionários, gente de saber e gente de aventura, homens de
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paz e homens de guerra, caídos na luta com o desconhecido dos mares e das
selvas.24

Também afirmava que o Império estava acima de tudo, da política e até da


economia, e que deveria crescer em comunhão com o passado e os sentimentos
nacionais. Para o ministro, o objetivo principal da nação portuguesa era criar uma
harmonia política, com um equilíbrio econômico, financeiro e social entre a
metrópole e o ultramar.
Além disso, havia uma relação íntima entre o “conjunto dos territórios e a
população portuguesa”, que faziam parte de um todo de forma solidária. Sendo
assim, a política colonial deveria estar voltada para uma intensa nacionalização e a
criação de uma mentalidade portuguesa entre os indígenas.
A “missão histórica” de evangelizar e civilizar legitimava o direito de
ocupar e usar as terras das colônias. E a defesa desse direito era compreendida
como condição primordial para a independência nacional, que precisava da “força
atlântica e colonial para resistir à eterna pressão anexionista da Espanha.25

24
Armindo Monteiro. A Actual organização administrativa colonial e os fins da colonização
portuguesa. In: Boletim Geral das Colônias, nº 100, Vol. IX, 1933, p.3.
25
Ver Fernando Rosas. História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p.287.
26

Proteger Portugal das forças anexionistas e expandir o Império eram uma das
promessas do Estado Novo.
Colônias, nação e regime fundiam-se em uma construção mítica, que
possuía uma legitimação constitucional. Dessa aliança surgia uma concepção de
império, que tinha uma cabeça, uma família com um chefe e que se desdobrava
em uma dimensão concreta – a centralização política, administrativa e financeira,
por um lado, e a nacionalização da exploração econômica das colônias, com a
revitalização da política do “pacto colonial”, por outro.26
Esse nacionalismo exacerbado, quase religioso, que formava a mística
imperial construía uma ideia de que o império era intocável, não apenas por
reproduzir um legado histórico, mas, acima de tudo, porque representava o
espírito de missão que dava à nação a sua razão de ser.
A estreita ligação entre a questão colonial, o regime e a identidade nacional
contribuiu significantemente para o processo de sacralização do Império e o
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enfraquecimento das correntes anticolonialistas. O ultramar sempre esteve


presente no conjunto das argumentações políticas portuguesas por causa da sua
íntima relação com a identidade nacional e a própria sobrevivência do Império.
Diferente de outros países, em Portugal qualquer que fosse a causa política que se
defendesse, republicanista ou salazarista, o nacionalismo estava sempre atrelado à
opção ultramarina.
O grande desafio do Estado Novo era materializar a política da
“solidariedade natural” entre a metrópole e as colônias, determinada pelo Acto
Colonial. Por esse motivo, políticos e empresários da época se reuniam, em
congressos e exposições, com o intuito de viabilizar o que proclamavam o Acto
Colonial, a Carta Orgânica do Império Colonial Português e a Constituição de
1933. Havia um esforço de criar uma “política do espírito”, através da divulgação
das obras do Estado Novo em congressos, colóquios, conferências, exposições e
concursos de literatura. Em 1933, foi realizada a Conferência Imperial Colonial,
em 1934, a I Exposição Colonial Portuguesa no Porto e o I Congresso de
Intercâmbio Comercial com as Colônias. Além desses, no mesmo ano
comemorou-se a Semana das Colônias, promovida pela Sociedade de Geografia, e
realizou-se o I Congresso da União Nacional.

26
Ibidem.
27

Essas conferências e esses congressos tinham por intuito reunir diferentes


campos do conhecimento para a produção de um saber colonial capaz de afirmar o
moderno império colonial português, que, através da recuperação de seu passado e
da ação no presente, poderia garantir o futuro da colonização.
No discurso de abertura das Conferências da Alta Cultura Colonial,
realizado em 1936, o Ministro das Colônias da época, Francisco José Vieira
Machado, defendeu a importância do saber colonial como um instrumento de ação
nos territórios ultramarinos. Também fez um apelo aos “sábios” e aos “homens de
ação”, para que se unissem na difícil tarefa de reviver as glórias passadas.27
A dominação colonial pressupunha justificativas que legitimassem a sua
ação. Além de afirmar a função histórica de Portugal, era necessário também
construir imagens dos povos que habitavam aqueles territórios, que eram
fundamentadas no etnocentrismo e no racismo.
A ideia predominante era a de que o negro era um simples receptáculo dos
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valores da civilização europeia e de que Portugal seria o transmissor. Assim


como no século XIX, permaneceu a crença de que as sociedades africanas eram
primitivas, próximas da animalidade, e que seriam incapazes por si mesmas de
produzir elementos válidos no processo civilizacional. Devido a seu estágio
selvagem, estavam entregues à miséria, à superstição e à ignorância, cabendo a
Portugal trazê-las à civilização.
A construção de uma mística imperial capaz de conduzir à civilização foi
fundamental para levar adiante o projeto de atuação efetiva nas colônias. No
entanto, o Estado português necessitou de muito mais que construções teóricas
para pôr em prática seus planos.
Uma das mais importantes alianças que o Estado Novo construiu foi com a
Igreja Católica. A essencial atuação da Igreja através das Missões religiosas nas
colônias era ser um instrumento para levar o cristianismo e a civilização
portuguesa aos nativos e, ao mesmo tempo, combater as ameaças nos territórios.

27
Alfredo Pimenta. O Império Colonial factor de civilização. Conferência do Ciclo de Alta
Cultura Colonial, realizada na tarde de 28 de março de 1936, na Academia das Ciências de Lisboa.
Divisão de Publicações e Biblioteca Agência Geral das Colônias, 1936.
28

2.3
As Missões Católicas e a Educação em Moçambique

Desde 1926, no Estatuto das Missões Católicas Portuguesas, o governo já


demonstrava a intenção de promover auxílio e proteção àquelas missões, sob a
forma de subsídios para a formação de missionários e de concessão livre dos
terrenos em Moçambique. No entanto, foi na Constituição de 1933 que o Estado
Português reforçou o catolicismo como religião oficial da nação portuguesa.
Para Salazar, a Igreja Católica era um elemento que formava a alma da
Nação e um traço dominante do caráter do povo português. O seu papel nas
colônias foi delimitado tanto no texto constitucional, quanto na Carta Orgânica
do Império português, como instituições de educação e, principalmente,
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instrumentos de civilização.

Art. 248º As missões católicas portuguesas do ultramar, instrumentos de


civilização e influência nacional, e os estabelecimentos de formação pessoal para
os serviços delas e do Padroado Português terão personalidade jurídica e serão
protegidos e auxiliados pelo Estado como instituições de ensino.
Parágrafo Único. Nos orçamentos das colônias serão inscritas verbas especiais para
o serviço das missões católicas portuguesas e facultados os meios necessários de
ação junto dos indígenas.28

Contudo, foi somente em 7 de maio de 1940 que o regime português e a


Igreja Católica assinaram um acordo, definindo os vínculos entre si, com a
Concordata de 1940 e pelo Acordo Missionário do mesmo ano, que foram
rapidamente ratificados pela Assembleia Nacional Portuguesa. Em 5 de abril de
1941, foi publicado o Estatuto Missionário, que seria a base legal e regulamentar
da expansão católica.
A ideia vigente era de que, através de um acordo entre Estado e Igreja, seria
possível utilizar o fenômeno religioso como um elemento estabilizador da
sociedade, capaz de reintegrar a Nação Portuguesa à sua unidade moral.
Esses acordos previam a atuação missionária da Igreja Católica nos
domínios do ultramar, encarregada da educação e da civilização dos indígenas,
financeiramente sustentada pelo Estado. Nota-se que a Igreja e o Estado

28
Carta Orgânica do Império Colonial Português.
29

continuavam formalmente separados como na República, mas havia entre eles um


acordo instrumental, em que o esforço do catolicismo estava vinculado ao
empenho de “portugalização dos indígenas”, que era levar a língua e os costumes
portugueses para a população local e não apenas catequizar.
Cabe ressaltar que as missões religiosas no ultramar sempre foram
consideradas de extrema importância para o Estado português, mesmo durante o
período republicano, quando foi promulgada uma lei de Separação entre Igreja e
Estado, em 1911, que previu uma postura anticlerical com a retirada das ordens
religiosas da metrópole. Essa mesma postura não foi imposta com idêntico vigor
nas colônias, e poucos missionários de ordens religiosas tiveram que abandonar
seus postos por causa da legislação republicana.
No período republicano, desenvolveram-se em Moçambique vários centros
estrangeiros de propagação do protestantismo e do islamismo, o que causava certo
temor de uma “desnacionalização”. Pode-se considerar que esse receio também
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foi uma das razões que motivaram uma reaproximação do novo governo com a
Igreja na década de 30.
Michel Cahen29 afirma que a fraqueza da ocupação da Igreja em
Moçambique, antes da Concordata de 1940, teve a ver com a própria dificuldade
de ela se estabelecer no território. O I Congresso da União Nacional, realizado
em 1934, identificou a existência de 602 estabelecimentos missionários
estrangeiros em Moçambique, em comparação a 39 missões portuguesas e 4
missões católicas estrangeiras. Existiam, nesse mesmo período, 54 missionários
católicos, em contraste com 688 protestantes.
Um dos resultados importantes da aliança entre Igreja e Estado, após 1940,
foi uma reestruturação da organização eclesiástica no Império Português, pois
tanto Angola como Moçambique foram considerados arcebispados, e mais duas
dioceses foram lá criadas. Naquele momento, a organização eclesiástica coincidia
com a forma política do império.
Apesar de toda essa estrutura, o número das missões religiosas católicas
nunca foi suficiente para executar uma evangelização em massa. Segundo Oliveira

29
Michel Cahen. L’État Nouveau et La diversification religieuse au Mozambique, 1930-1974. In:
Cahiers d'études africaines, 158, 2000, p.315.
30

Marques30, em Angola, em 1910, existiam apenas 24 missões, 40 na década de 30,


93 nos anos 50, 185 na década de 60 e mais de 200 no início dos anos 70. Em
Moçambique, havia 25 missões católicas em 1910, 30 em 1930, 60 nos anos 40,
120 nos anos 50 e 213 no início dos anos 60.
O relatório de um inspetor administrativo da Zambézia, Augusto Pires, em
1946, foi muito elucidativo sobre a situação das missões nos territórios de
Moçambique, mesmo depois do Acordo entre Igreja e Estado.

As missões estrangeiras constituem um mal político, as missões nacionais [...]


representavam uma quase-nulidade educativa. Geralmente, exceto algumas
exceções muito dignas, não temos bons missionários [...]. É necessário dar o
exemplo e geralmente não é dado; é necessário a grandeza moral e não se
manifesta; é necessário o fervor evangélico e o sacrifício cristão, mas estas virtudes
são bem afastadas da atitude da maioria do clero secular [...]. As escolas
rudimentares [...] são dedicadas geralmente ao abandono e sem a menor
manifestação de interesse e assim sem nenhuma utilidade prática. Não há
preparação de professores e catequistas indígenas e os que poderiam aparecer com
aptidões exploráveis não são estimulados materialmente nem moralmente [...].
Saem das missões para empregos melhor remunerados nos quais perdem as noções
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elementares de moral cristã” (PIRES, 1946).31

O sistema de ensino aplicado no Estado Novo tinha por objetivo teórico


“civilizar e nacionalizar os indígenas da Colônia, difundindo entre eles a língua e
os costumes portugueses, tornando-os mais úteis à sociedade e a si próprios”.32 O
intuito era criar escolas rudimentares e técnicas, encarregadas de expandir o uso
do português na colônia e formar uma pequena camada de quadros técnicos
intermediários, importantes para o funcionamento do sistema colonial.
As disciplinas estudadas eram Língua Portuguesa, Aritmética e Sistema
Métrico, Geografia e História de Portugal, Desenho e Trabalhos Manuais,
Educação Física e Higiene, Educação Moral e Canto Coral. Aos professores de
História fazia-se a recomendação de que os textos de sua disciplina e as
explicações dadas por eles tivessem o intuito de criar nos alunos o amor por
Portugal.

30
A. H. Marques. Nova História da Expansão Portuguesa – O Império Africano (1890-1930).
Lisboa: Editora Estampa, 2001.
31
J. A. Pires. Inspeção à Comissão municipal de Quelimane, Junta Local do Chinde e
circunscrições e seus posto de Alto Molocué, Magnanja da Costa, Mocuba, Namacurra e Pebane,
1946, s/l. In: Arquivo Histórico de Moçambique, Caixa 62, Inspecção superior de administração e
negócios indígenas: 95 e 97, apud, Michel Cahen, op. cit., p.320.
32
Anuário do Ensino, 1930, 1931, Lourenço Marques. p.10-11. In: David Hedges, História de
Moçambique – Moçambique no auge do colonialismo. Maputo: Universidade Eduardo de
Modlane, 1993, p.46.
31

A legislação promulgada nos anos 30 proibiu, de forma categórica, o ensino


em línguas nacionais, com exceção do ensino religioso católico. A educação
primária tornou-se obrigatória para todas as crianças negras entre 7 e 12 anos de
idade, que vivessem a uma distância de três quilômetros de uma escola oficial.
Com essas medidas, Portugal desejava superar a má qualidade do ensino durante o
período republicano, e tornar mais portuguesa a população de Moçambique.
Apesar de as escolas rudimentares das missões católicas terem se expandido
nesse período, assim como as do Estado, a quantidade de escolas criadas era
insuficiente para atender a população, o nível era muito inferior e a ajuda estatal,
muitas vezes, limitava-se apenas ao fornecimento de mão de obra, que, junto com
os alunos da escola, cultivavam algodão e outros bens que poderiam ser vendidos
pela missão para comprar equipamentos e outros produtos.33
Nesse sentido, podemos observar a distância entre o discurso colonial,
presente nas leis e a realidade da colônia. Além disso, é possível observar a
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cumplicidade da Igreja Católica com as ambiguidades existentes no Estatuto do


Indigenato e no Acto Colonial, que proclamaram a defesa dos indígenas contra a
exploração do trabalho, mas criaram situações que permitiam e até incentivavam
diferentes formas de trabalho compulsório. Mais um exemplo dessa atitude foi a
utilização de mão de obra “escrava”, oferecida pelo governo para a construção da
catedral de Lourenço Marques.
A expansão da Igreja Católica, legitimada pelo Estado, contribuiu para a
diminuição da influência e da disseminação das outras religiões no território
moçambicano. Isso pôde ser verificado pela diminuição do número de escolas
rudimentares nas áreas rurais. A proibição do ensino nas línguas locais, com
exceção do ensino religioso, prejudicou significantemente a atuação protestante,
que tinha como método o uso das línguas banto nos primeiros anos de
alfabetização, e seus missionários utilizavam as línguas locais ou o inglês para se
comunicarem.
A vigilância do Estado Novo estendeu-se também às igrejas africanas
independentes, como a Igreja Episcopal Luso-Africana, que foi incentivada pelo
governo a constituir uma associação religiosa com outras igrejas e concentrar suas

33
David Hedges, op. cit., p. 48.
32

atividades de maneira que fossem mais facilmente controladas. Igrejas como essa
representavam um potencial foco de oposição ao governo, pois tinham grande
poder de cooptação das populações locais. Só para se ter uma ideia, a Igreja da Fé
dos Apóstolos congregava mais de 3.000 membros.
Apesar da ameaça iminente, a polícia portuguesa permitia a existência
dessas igrejas e raramente reagia com duras perseguições, como foi o caso dos
membros da comunidade das Testemunhas de Jeová, que, em 1953, foram
proibidos de atuar em Moçambique e exilados para São Tomé.
No que diz respeito às escolas islâmicas existentes no território
moçambicano, o Estado Novo praticou uma política de preocupação. Em 3 de
março de 1937, a direção provincial da administração civil do Niassa emitiu uma
circular confidencial, solicitando que os administradores verificassem se as
escolas corânicas e as mesquitas possuíam “licenças oficiais” de funcionamento.
Como a grande maioria não possuía, alguns administradores exigiram o
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fechamento das escolas, mesmo que não existisse nenhuma outra na região.34
Apesar da liberdade de culto estabelecida pela legislação portuguesa, na
prática existia a incoerência da atuação de um Estado que desejava expandir a sua
dominação colonial e, ao mesmo tempo, se proteger das ameaças trazidas pelas
religiões. Nesse sentido, é possível citar mais algumas medidas restritivas tomadas
em relação ao Islã.
Os muçulmanos moçambicanos de origem indiana, que ocuparam um lugar
de destaque no comércio do norte do país, foram vistos pela administração
colonial como “agentes do Islã”, que desejavam ir contra a expansão do
catolicismo e a dominação portuguesa.
No episódio de fevereiro de 1937,35 em que autoridades coloniais de Cabo
Delgado encontraram cartazes etíopes em circulação, fazendo referências à
independência da Etiópia contra a ocupação italiana, tais cartazes, obviamente,
foram considerados subversivos, e as autoridades coloniais concluíram que eles
tinham entrado no território moçambicano pelas mãos dos muçulmanos do norte.
Por esse motivo, em março do mesmo ano, as mesquitas em Porto Amélia
(Pemba), Ibo, Mocímboa da Praia e Memba foram fechadas. A reabertura só foi

34
A. E. Pinto Correia. Relatório da Inspecção ordinária às Circunscrições do Distrito de
Moçambique, 1936-1937, 2 vols, apud Michel Cahen, op. cit.
35
Ibidem, p.49.
33

permitida em setembro de 1938, para uso exclusivo da colônia asiática, sendo


proibida a propaganda religiosa para os moçambicanos.
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3
O medo que vem do Islã

3.1 Presença e diversidade islâmica em Moçambique

Em Moçambique, a maioria dos estudiosos do Islã aponta que é difícil


saber de maneira precisa a quantidade de muçulmanos no país. Se atualmente
esses números são ainda imprecisos, no século passado a dificuldade era ainda
maior. Em 1962, eram contabilizados aproximadamente 800.000 “islamizados” e
657.871 católicos.1 Desse número, 70% da população muçulmana se
concentravam na região norte do país, nas províncias de Niassa, Cabo Delgado e
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Nampula, sobretudo entre as etnias Macuas e Ajuas,2 o que ocorre ainda hoje.3

Figura 1 - Mapa da região norte de Moçambique.

1
António da Silva Rego. Atlas missionário português, Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar,
1962. O 3º recenseamento geral da população, de 1960, aponta um número ainda maior, 1.158.973
muçulmanos e 475.259 católicos. III° Recenseamento geral da população, apud Michel Cahen.
L'État Nouveau et la diversification religieuse au Mozambique, 1930-1974. Paris, Cahiers
d’Études africaines, 158, XL-2, 2000, p.309-349. Lourenço Marques: Instituto Nacional de
Estatística/INM, 1960, 12 vols.
2
Ver Mapa da formação etnolinguística de Moçambique na página 65.
3
Ver, em Anexos: Estatísticas sobre a distribuição da população por religião no último censo, de
2007.
35

Segundo Lorenzo Macagno,4 relatos de alguns líderes muçulmanos


registravam contemporaneamente, na região de Nampula, 48 mesquitas em um
raio de 15 quilômetros. Esse mesmo autor aponta que a Direção de Assuntos
Religiosos do Ministério da Justiça, em 1998, contabilizou aproximadamente
1.266 mesquitas na Província de Nampula, principalmente nas cidades Nampula,
Nacala-Porto, Ilha de Moçambique e nos distritos de Angoche, Moma e Memba.
É possível notar uma grande presença muçulmana em Moçambique,
marcada não apenas por sua quantidade, mas também pela diversidade de “Islãs”
presentes no território. Essa variedade se dá pela maneira como o território
moçambicano foi ocupado antes de os portugueses lá chegarem. A presença
islâmica na Costa Oriental africana teve início no século VII, com a atuação dos
comerciantes e dos navegadores árabes e persas, que formaram centros
populacionais como Sofala, Moçambique, Quíloa e Pemba.
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Esses primeiros “estrangeiros” na região optaram por se estabelecer


primeiramente nas ilhas de Angoche e Moçambique, para se protegerem dos
bantos orientais, e mais tarde ocuparam a Costa. Por esse motivo, a presença
muçulmana na região norte e na costa é até hoje mais intensa.5
A Ilha de Moçambique e outras áreas da costa oriental da África pertenciam
a um extenso sistema comercial e cultural que fazia conexão com vários portos do
Índico. A presença árabe, persa e indiana na região permitiu a formação de um
sistema comercial suaíli,6 formado por uma rede sólida entre o Oriente Médio e a
Ásia.

4
Lorenzo Macagno. Outros Muçulmanos: Islão e Narrativas Coloniais. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais, 2006.
5
Cf. Francisco P. Garcia. O Islão na África Subsariana: Guiné-Bissau e Moçambique, uma análise
comparativa, Africana Studia 6, 2003.
6
Cidades africanas, como Sofala, Angoche, Moçambique, Quíloa, Mafia, Zanzibar, Pemba,
Mombaça, Gedi, Melinde, Manda, Lamu, Pate, Faza Brava, Merca, Mogadixo e outras cidades-
estados integravam uma ampla rede comercial do Índico que, entre os séculos XII e XVII,
negociavam com Comores, Madagascar, Socotorá, Meca, Iêmen, Omã, Pérsia, Índia, Ceilão,
Indonésia e, indiretamente, com a China. Esse comércio era dominado por muçulmanos que
negociavam, entre outros itens, ouro, marfim, peles, madeiras. As relações entre esses mercadores
permitiram não apenas a troca de produtos entre regiões, mas também a interação de religiões,
costumes, línguas e tecnologias, formando, assim, uma rede social que incluía até casamentos. Os
habitantes dessas cidades costeiras africanas e a cultura formada por essa interação ficaram
conhecidos por suaíli ou, em árabe, swahili. Cf. Alberto Costa e Silva. A manilha e o limbambo: a
África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca
Nacional, 2002, p.616-17. Ver Mapa 1, no Anexo.
36

A fixação desses comerciantes muçulmanos no território foi permeada por


inúmeras dificuldades, que iam desde a resistência da população local à entrada de
estrangeiros, a existência de terrenos inóspitos até a falta de centros
populacionais, no interior, com recursos que pudessem atrair o interesse de
mercadores. Apesar disso, a região de Moçambique sempre atraiu um número
maior de comerciantes, que vinham em busca de ouro e marfim.
José Julio Gonçalves7 destaca que, nos primeiros anos da ocupação no
território moçambicano, os muçulmanos não chegaram a converter os africanos de
maneira massificada, pois, apesar de os comerciantes muçulmanos árabes, persas
e indianos terem conseguido arabizar uma grande quantidade de nativos por causa
das relações comerciais, esta islamização foi superficial.8
O autor estabelece duas hipóteses para essa islamização superficial: a
primeira seria a presença autônoma desses comerciantes, sem vínculos com suas
pátrias, ou com sua religião. O interesse seria estritamente comercial. A segunda
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razão estaria relacionada ao fato de os migrantes que ocuparam o território


moçambicano serem provenientes de diferentes lugares, seguidores de diferentes e
até opostas vertentes do Islã. Não haveria nesses comerciantes um sentido de
unidade árabe ou muçulmana na influência religiosa na região.9
Cabe destacar as diferenças existentes entre os termos arabização e
islamização. Por islamização podemos compreender o processo de conversão à
religião islâmica e arabização processo pelo qual os povos ao terem contato com a
cultura árabe, se apropriam de alguns aspectos culturais como a língua. O idioma
árabe possui um papel fundamental na religião islâmica, trata-se da língua da
revelação e nela está escrito o livro sagrado, as leis e as orações.
Apesar de sua importância litúrgica, os processos de arabização e
islamização aconteceram de maneira dissociada nas diferentes regiões da África.
Enquanto que no norte da África a islamização ocorreu concomitantemente com a
arabização, ao sul do Saara apenas o Islã se expandiu.

7
José Julio Gonçalves. O mundo árabo-islâmico e o Ultramar Português. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1958.
8
José Julio Gonçalves denominava de islamização superficial o fato de, apesar de serem
convertidos, os africanos não abraçaram todas as práticas do Islã, misturando-as com suas
tradições locais. Muitos estudiosos afirmam até hoje que muitos países africanos não são
muçulmanos. Essa análise pode ser considerada preconceituosa, já que desconsidera as
possibilidades de apropriações e sincretismos.
9
Cf. J. J. Gonçalves, op. cit., p.206.
37

Em países como Egito e Marrocos, o Islã foi inserido por exércitos árabes
que rapidamente dominaram as cidades e as áreas rurais que se estendiam ao
longo do mediterrâneo. A religião foi imposta juntamente com a língua e os
costumes árabes. Já na África Subsaariana, o Islã chegou à região através de
mercadores que faziam o comércio transsaariano, e se expandiu a partir de três
longos processos10.
Devido a sua importância ritual, algumas palavras em árabe se
disseminaram nas sociedades africanas islamizadas, especialmente as que
caracterizavam religião, governo, guerra e comércio. Mas os muçulmanos
africanos continuaram usando os seus próprios idiomas, como o suaíli, o
mandinka, e várias outras línguas berberes. Eles rapidamente desenvolveram
maneiras de transmitir a sua fé em suas próprias línguas.
Com a chegada dos portugueses à costa oriental africana, em 1498, na
expedição de Vasco da Gama, foram estabelecidos os primeiros contatos entre
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europeus cristãos e muçulmanos no litoral, em Sofala. Nesse primeiro momento,


as relações entre eles não foram intensas, pois os europeus desejavam apenas
obter provimentos necessários para prosseguir a sua viagem em direção à Índia. A
expedição seguiu pela Ilha de Moçambique, depois Mombaça e Melinde.
A presença portuguesa no território moçambicano só se tornou efetiva a
partir do século XIX, quando a Coroa optou pela ocupação ativa do território.
Antes disso, existiam apenas, ao longo da costa oriental, algumas feitorias com
poucos colonos, diante de um número reduzido de portugueses.
Esta ocupação foi marcada por duas grandes operações militares: a que
derrubou o poderoso reino de Gaza, ao sul de Moçambique, nos anos de 1895 e
1897, e a da região do Zambeze, em 1902, em que os portugueses derrotaram o
reino de Barué.11 Nesse mesmo período, Portugal também conseguiu ocupar
Angola, a Guiné portuguesa, as Ilhas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Ao ocupar o território moçambicano, os portugueses tiveram que lidar com
uma grande diversidade de vertentes do Islã, o que se deu pela presença de
comerciantes e outros migrantes provenientes do Oriente Médio, da Índia, das

10
David Robinson. Muslim Societies in Africa History. New York: Cambridge University Press,
2004. p. 27-28.
11
Sobre a conquista de Gaza, cf. Gabriela Aparecida dos Santos. Reino de Gaza: o desafio
português de ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: USP, 2007 (Dissertação de
Mestrado).
38

Ilhas de Zanzibar e Comores. A permanência de pessoas das mais diferentes


regiões de crença muçulmana possibilitou a formação de um complexo mosaico
de ramificações da religião de Maomé, que permanece até hoje.
A maioria dos muçulmanos em Moçambique pertence à vertente sunita. Há
muitos deles de origem indiana, que são chamados genericamente de monhés,
termo que diz respeito aos vários grupos de origem indiana que vivem em
Moçambique, incluindo os muçulmanos, também chamados de mouros, e os
baneanes, que são hinduístas.12
Os muçulmanos monhés possuem tradições ligadas à Índia e ao Paquistão.
Além do árabe, utilizam como língua o urdu, o guzerate e até mesmo o inglês.
Não usam trajes tipicamente islâmicos, como o cofio, por exemplo. Suas roupas
são os sáris indianos para as mulheres, o barrete paquistanês e o turbante branco
para os homens. Suas mesquitas não possuem estilo arquitetônico árabe, mas sim
Moghul, que seria a transposição do islamismo para a arquitetura hindu.
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Essa comunidade de muçulmanos se concentra majoritariamente no sul do


país, e a sua presença foi fruto dos interesses mercantis estabelecidos
primeiramente no norte e que se expandiram para o sul. Sua concentração no sul
do país também se deve à articulação que ocorreu da região sul de Moçambique
com a economia das colônias britânicas.13
Há também em Moçambique os malaios muçulmanos, que estão
concentrados no Sul, em Maputo (antiga Lourenço Marques), Xai-Xai (antiga
João Belo) e Ressano Garcia. Praticam a religião como os monhés, mas não
estabelecem relações diretas com a Índia. Estão ligados às comunidades da África
do Sul, como Durban, Pretória e Joannesburgo
Entre os xiitas, há uma comunidade separatista denominada ismaelitas
duodecimais, que têm como Califa e chefe supremo Karim Aga Khan. Estão em
maior quantidade na Ilha de Moçambique e em Maputo. São indianos ou
paquistaneses, que possuem nacionalidade portuguesa.

12
Cabe ressaltar que a categoria Monhé não engloba os indianos de Goa, que são, em sua grande
maioria, cristãos.
13
Um interessante panorama sobre os monhés pode ser lido em Valdemir Zamparoni. “Monhés,
Baneanes, Chinas e Afro-maometanos: Colonialismo e racismo em Lourenço Marques,
Moçambique, 1890-1940”. Revista Lusotopie, 2000, p.191-222.
39

Segundo Baessa Pinto,14 os ismaelitas de Moçambique eram influenciados


pelos centros ismaelitas de Nairobi, no Quênia, de onde recebiam publicações em
árabe, guzerate e inglês. Até hoje, suas mesquitas são consideradas luxuosas,
construídas em arquitetura indiana e todas elas possuem um trono para Aga Kahn.
Mais que centros religiosos, elas acumulam a função de centro social, colégios e
bibliotecas. Formam uma casta fechada, com pessoas de maior poder aquisitivo e
mais ocidentalizadas. Em termos doutrinários, rejeitam as vestes tradicionalmente
muçulmanas, não peregrinam a Meca e nem jejuam no período do Ramadã.
Além de sunitas e xiitas, Moçambique possui um vasto leque de confrarias
ou irmandade muçulmanas, que se concentram no norte do país e são frutos de
uma rede extensa de lealdades políticas, culturais e religiosas que se formou no
século XIX, na costa oriental africana e em algumas ilhas do oceano Índico. As
Ilhas de Zanzibar e de Comores foram os principais centros de irradiação das
confrarias para o território moçambicano, com intensa atividade pelo menos até
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1974.
As confrarias não estão enquadradas no sunismo ou no xiismo, mas sim na
tradição sufi do islamismo. De acordo com o The Oxford Dictionary of Islam,15 o
sufismo diz respeito ao misticismo islâmico relacionado à internalização e à
intensificação da fé e da prática islâmica. Os seguidores do sufismo privilegiam
mais a contemplação do que a ação, o desenvolvimento espiritual do que o
legalismo, o cultivo do espírito do que a interação social.
Ao contrário dos exercícios de teologia e jurisprudência que dependem de
uma razão, o sufismo depende da emoção e da imaginação no relacionamento
entre Alá e o Homem. Não se relaciona com escolas de jurisprudência, classes
sociais, gênero, geografia ou conexões familiares. Está intimamente ligado ao
mesmo tempo com as expressões mais populares e mais ortodoxas dos
ensinamentos islâmicos.

14
Maria João Baessa Pinto. O Islamismo em Moçambique no contexto da liberalização política e
económica (anos 90): a província de Nampula como estudo de caso. (Dissertação) Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa, 2002, p.73.
15
John L. Esposito (ed.). The Oxford Dictionary of Islam. Oxford University Press: New York,
2003, p.301.
40

Para Dias Farinha,16 a mística impõe uma experimentação pessoal dos


métodos que possam conduzir o crente para próximo de Deus. Trata-se de um
caminho (tarīq) que leva ao aperfeiçoamento e ao estudo contínuo em direção ao
Ser Divino. As escolas ou confrarias se formaram a partir do exercício da imitação
dos seus mestres, em que os aprendizes (murȋd) procuravam conhecer o vínculo
com o Deus supremo.
Mais do que considerar o caráter místico das confrarias, cujos rituais
envolvem cânticos, danças e transes, é importante atentar para a estrutura social,
política e moral. Macagno17 chama atenção para o fato de que, tanto em
Moçambique quanto nas áreas costeiras do Índico, as confrarias funcionavam
como “verdadeiros sistemas clientelísticos de ajuda mútua”. Ao enviar membros
das confrarias para comercializar na costa moçambicana, os califas estabeleciam
laços de comprometimento, já que todos os comerciantes enviados estavam
ligados pelo juramento de fidelidade ao califa. Desse modo, é possível afirmar que
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as primeiras confrarias que se estabeleceram ao norte de Moçambique formaram


um sistema social em que a religião, a moral, a política e o comércio eram
indissociáveis.
As confrarias também são conhecidas como Turuq (Tariqa, no singular),
que significam via ou caminho. Macagno alerta para o fato de que, nas fontes
portuguesas, as confrarias ou irmandades em alguns momentos são chamadas de
tuaricas. Uma confraria (tarȋqa) é sempre iniciada por um mestre, cuja reputação e
carisma são capazes de atrair seguidores.
Esse chefe espiritual também é chamado de chehe. Sua legitimidade é dada
por uma cadeia genealógico-espiritual de mestres, que representa um vínculo de
parentesco espiritual, ligando o chehe aos seus antecessores, aos mestres e aos
santos fundadores do grupo e, em última instancia, ao profeta Maomé. Essa cadeia
possui o nome de silsila. A silsila é comprovada por um documento em que o
atual líder da confraria concede poder ao seu sucessor, e isso legitima a sua
autoridade espiritual perante os seus seguidores, murides.18

16
António Dias Farinha. “O Sufismo e a islamização da África Subsariana”. In: Antonio Custódio
Gonçalves Alves (cord.). O Islão na África Subsariana: Actas do 6º Colóquio Internacional,
Estados, Poderes e Identidades na África Subsariana. Universidade do Porto, 2003.
17
Lorenzo Macagno, op. cit., p.164.
18
Ibidem, p.84.
41

A figura dos santos fundadores, ou marabus, é muito comum no sufismo.


Eles geralmente são mestres de confraria que, em vida, são modelos de virtude.
Os seus discípulos procuram seguir as suas palavras e ser iniciados por eles nos
“mistérios” do caminho (tarîqa) sufi. Quando morrem, os túmulos desses mestres
transformam-se em lugar de peregrinação, onde os fiéis vão à procura de bênçãos
(baraka).
Segundo Alpers (2001), em Moçambique as mais antigas confrarias são as
Shadhiliyya Yashrutiyya e a Qadiriyya. 19 A primeira foi criada pelo shaykh
Sayyid Muhammad Ma’rouf Bin Shaykh Ahmad ibn Abu Bakr (1853-1905) e
levada para a Ilha de Moçambique em 1896 por um comerciante da Ilha de
Comores, shaykh Amir B. Jimba. Após um ano de instalação, Amir Bin Jimba
nomeou dois líderes locais para serem adjuntos da Shadhiliyya Yashrutiyya
[Liaxuruti], em Moçambique.
Essa nomeação foi alvo de disputa entre os líderes, e a confraria acabou
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fracionando-se em três, nos anos de 1924 e 1936,20 formando então a Shadhiliyya


Yashrutiyya [Liaxuruti], já existente, a Shadhiliyya Madania e a Shadhiliyya
Itifaque. 21
A confraria Qâdiriyya foi fundada em Bagdá, no Iraque, por Abd al-Qâdir
al-Qîlânî ou al-Jîlânî, que faleceu no ano de 1166. Essa confraria foi difundida por
muçulmanos provenientes da Árabia, do Egito e do norte da África e atualmente
está espalhada por todo o mundo muçulmano, do Marrocos até a China.
Essa confraria possuía inúmeras ramificações na África Oriental, uma delas,
conhecida como Sadat, foi implantada em Moçambique em 1905 pelo shaykh Isa
Bin Ahmad, proveniente da Ilha de Comoros, mas que viveu muitos anos em
Zanzibar. O shaykh permaneceu em Moçambique até 1925 e, ao regressar a
Zanzibar, ordenou a Umar Uways Bin Muhammad al-Barawi, seu representante,
que assumisse a liderança da Tariqa.
Em 1934, por rivalidades internas, a Tariqa Qadiriyya se dividiu em um
novo grupo, Qadiriyya Bagdad. Em 1945, foi formada, também na Ilha de

19
Liazzat J. K. Bonate afirma que existe uma confraria mais antiga que a Shadhiliyya e a
Qadiriyya em Comores e em Zanzibar, que é a Rifa’iyya. É pouco conhecida, mas há registros de
seus rituais no século XIX. Cf. Liazzat J. K. Bonate. Roots of diversity in Mozambican Islam.
Lusotopie, Vol. 14, No 1, 2007, p.136.
20
Fernando Amaro Monteiro. As comunidades Islâmicas de Moçambique: Mecanismos de
Comunicação. Revista Africana. Univesidade Portucalense: Porto, 1989, p.87.
21
Mais detalhes sobre esta disputa, ver Bonate, op. cit., p.139.
42

Moçambique, a Qadiriyya Jailane. Em 1953, ocorreu outro cisma na Qadiriyya


Bagdad e, então, surgiu a Qadiriyya Saliquine. Em 1963, com uma nova
dissidência no ramo da Qadiriyya Sadat, foi formada uma quinta confraria, a
Macheraba. 22

3.2

O Islã como ameaça – O olhar dos intelectuais nos anos 30 e 40

A breve descrição sobre as inúmeras vertentes do Islã e o surgimento de


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diversas ramificações sufis no território moçambicano, desde o século XIX até os


anos 70 do século XX, nos permitem perceber a complexidade religiosa com a
qual os agentes da administração portuguesa tiveram que lidar.
Desde a efetiva ocupação de Moçambique pelos portugueses, no século
XIX, a presença muçulmana sempre foi vista como empecilho à expansão
europeia. Os protagonistas da ação portuguesa em Moçambique, Mouzinho de
Albuquerque e Antonio Enes, 23 organizadores da política colonial portuguesa
naquele país, já demonstravam uma percepção por parte do Islã de ser uma
ameaça a presença portuguesa no território.

22
Lorenzo Macagno, op. cit., p.88.
23
Antonio Enes e Mouzinho de Albuquerque pertenceram a “Geração de 95”, nome dado
posteriormente aos militares, administradores e governadores que lideraram o processo de
ocupação efetiva do território moçambicano por Portugal no século XIX. Antonio Enes foi
governador-geral de Moçambique entre 1891-1895. Foi considerado o grande reorganizador da
política colonial, se destacando pela promoção da descentralização administrativa, em que as leis
na colônia seriam de acordo com o grau de “evolução das populações locais”, se diferenciando
assim da lei vigente na metrópole. Outro feito importante foi a reforma referente ao trabalho na
colônia. Mouzinho de Albuquerque era visto como um “herói nacional”. Iniciou sua carreira
administrativa na Índia, em 1890 foi nomeado governador do distrito de Lourenço Marques,
derrotou o chefe de Gaza nas guerras de 1895 e tornou-se governador do recém conquistado
distrito. Entre 1896 e 1898 foi governador-geral de Moçambique, sucedendo Antonio Enes. Cf. O.
R. Thomaz. Ecos do Atlântico Sul: Representações sobre o Terceiro Império Português. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002; e Lourenço Macagno. O discurso colonial e a fabricação dos usos e
costumes: Antonio Enes e a “Geração de 95”. In: Peter Fry (org). Moçambique: Ensaios. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2001. 61-90
43

Mouzinho argumentava que no Norte de Moçambique a propaganda


maometana era uma ameaça à conversão do indígena. Já Antonio Enes criticava a
ineficácia da atuação católica no território e argumentava que o Islã se adaptava
melhor às arcaicas instituições dos negros.24
O relatório de Antonio Enes na função de alto comissário em Moçambique,
publicado em 1893, é muito elucidativo a respeito da visão do Islã por parte do
governo português nesse período e, por esse motivo, vale a pena transcrever parte
dele abaixo:

Se o cristianismo só vegeta como planta exótica, o maometanismo alastra-se como


escalracho. Não se semeia, não se cultiva, nas próprias rochas cava raízes, não há
monomocaia [furacão] que o arranque. Sem auxílio de poderes civis, e sem armas,
sem riquezas, sem autoridades, sem exemplos prestigiosos, quase sem culto
ostensivo, sem sacerdócio profissional vai ganhando ao seu proselitismo todos os
distritos setentrionais da província de Moçambique, e no de Inhambane, onde está
mais organizado como seita e como culto, conserva multidões arrebanhadas e
educa gerações.
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A par das igrejas católicas despovoadas, atulham-se as mesquitas de crentes


respeitosos que à entrada lavam os pés descalços em celhas de água, e lá dentro
cantam versículos do Koran em línguas que não entendem. [...] Todavia os focos
de propaganda mahometana mal se descobrem; o que dá nas vistas sãos seus
efeitos. A não ser em Inhambane, onde os filhos dos mouros recebem uma tal ou
qual educação literária e religiosa, em escolas que parecem berços abrigados por
toldos de olas de palmeira, não dou notícia de que o Islão tenha em Moçambique
institutos de catequização que se comparem com os das nossas missões. A
catequização faz-se por si, e ajudam-na todos os crentes, espalham-na correntes
simpáticas. Uma macua que me serviu durante muito tempo e que era monhé, não
chamava ao mahometanismo uma religião, chamava-lhe uma moda, e de facto tem
ele o poder de irradiação das modas. Especialmente no Norte os indígenas jazem-se
muçulmanos por imitação, e a imitação é estimulada pelo amor próprio, porque a
cabaia branca adquiriu não sei por que artes, fóros de distinção. Mas a moda não e
só uma exterioridade, não é apenas uma roupa; também faz aceitar práticas de
caráter religioso, e impõe aos seus adeptos deveres de solidariedade, regras de
sujeição, espírito de seita.25

Em seu relatório, Enes fez um diagnóstico da situação religiosa em


Moçambique, em que apontou uma decadência do catolicismo em decorrência da
expansão islâmica no território. Essa expansão era reflexo da política levada no
período republicano, em que a Igreja foi separada do Estado. No momento de sua

24
Sobre este ponto desenvolveremos no tópico sobre ameaça islâmica.
25
António Enes. Moçambique. Relatório Apresentado ao Governo. Lisboa: Divisão de
Publicações e Bibliotecas, Agência Geral das Colônias, 1946.
44

análise, Enes apontou a incapacidade de penetração do Estado e da Igreja Católica


nessa região.
O espanto de Enes com relação à expansão islâmica reflete o seu
desconhecimento a respeito desse longo e antigo processo de difusão do
islamismo, que se iniciou do litoral para o interior e é anterior à ocupação
portuguesa na região.
Apesar do recorte temporal do trabalho não abranger o século XIX, é
necessário mencioná-lo, bem como, ainda que de maneira breve, as visões sobre o
Islã nesse período. É necessário enfatizar que a visão do Islã como ameaça, em
Moçambique, não foi uma invenção do Estado Novo. O que houve de inovador
nesse período foi o início da busca de um saber mais aprofundado sobre o mundo
islâmico, com o intuito de compreender e solucionar o que eles consideravam
problema. Antonio Enes foi um dos precursores na análise sobre o Islã e o seu
relatório serviu de referência indispensável aos estudiosos do Islã a partir dos anos
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30.
No entanto, uma das diferenças que podemos estabelecer entre Enes e os
administradores dos anos 30 é que o primeiro se colocava cético com a
possibilidade de assimilação total das populações africanas, enquanto o Estado
Novo defendia isso a qualquer custo. Como já discutido no capítulo anterior, o
objetivo da missão do Estado português era civilizar e nacionalizar os indígenas
das colônias, e essa civilização dizia respeito à assimilação dos costumes, da
língua portuguesa e da religião católica.
Uma das primeiras evidências de que o Islã era tido como um problema, na
década de 30, para o Estado colonial, foi o relatório de Dom Teodósio,
Administrador do distrito de Nacala, em 1937.26 O texto do bispo relatava a
respeito da circulação de panfletos, em vários assentamentos na região costeira de
Moçambique, que se referiam à defesa da Etiópia contra a invasão italiana. Os
panfletos citavam como inspiração a vitória dos abissínios contra os italianos, na
Adwa, em 1896. A fonte desses panfletos foi descrita pelo bispo como sendo de
um moçambicano descendente de árabes.
Assim como Antonio Enes, no final do século XIX e início do XX, Dom
Teodosio também criticava a atuação católica no norte de Moçambique e dizia

26
Edward Alpers. Islam in the Service of Colonialism? Portuguese Strategy during the Armed
Liberation Struggle in Mozambique. Lusotopie, 1999.
45

que essa ineficácia permitia que os nativos fossem cativados por “cherifes” e pela
multiplicação incessante das escolas e das mesquitas, e isso era essencialmente
contra a crença europeia pregada.27 O religioso também afirmava que não se devia
deixar iludir pela fidelidade dos africanos, pois isso poderia comprometer a
integridade do domínio do império português.
Diante desse episódio, as autoridades portuguesas, em 1937, esboçaram
algumas estratégias para lidar com esse fato. Uma das possibilidades apresentadas
foi a de fechar as mesquitas e as escolas corânicas. Embora esses estabelecimentos
não fossem considerados como centros de difusão anticolonial na defesa de
folhetos etíopes, a literatura religiosa estudada nesses locais poderia, de certa
forma, comprometer a frágil lealdade africana em relação aos portugueses.
Mas ao final, essa estratégia foi vista como inadequada, porque os africanos
poderiam voltar-se contra os portugueses. “Autorizadas ou não, as mesquitas e
escolas representam o sustento necessário para a mente natural – algo que
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podemos orientar, mas que será um contrassenso reprimir”. 28 Acreditavam que, na


falta de um sistema de ensino católico no norte do país, era possível permitir as
escolas corânicas, mesmo que não fossem totalmente confiáveis.
Nas décadas de 30 e 40, eram os membros do clero católico os principais
produtores da visão sobre o Islã, vigente na época. Essa visão era sempre
construída por um olhar pejorativo e por um tom de ameaça, como vimos no
relatório do Bispo Dom Teodósio. Essa visão pejorativa se tornou em muitos
momentos a base para o discurso colonial português. Os trabalhos mais
representativos sobre esta postura estavam nas obras dos padres Antonio Silva
Rego e Frederico José Peirone. 29
Como afirma Vakil (2003), o missionário Frederico José Peirone
desenvolveu em Moçambique um trabalho de campo de natureza etnográfica para
o Estudo da Missionologia Africana, chefiada por Silva Rego. Peirone defendia,
em seus artigos, que o missionário deveria ter conhecimento do árabe, das línguas
e dos costumes africanos. Apesar de seus estudos sobre os islamismos serem
baseados nas ciências aplicadas, ele via essa religião como um erro.

27
Alpers, op. cit., p.167.
28
Ibidem, p.168.
29
AbdoolKarim Vakil. Questões Inacabadas: Colonialismo, Islão e Portugalidade. In: Margarida
Calafate Ribeiro & Ana Paula Ferreira (orgs.). Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário
Português Contemporâneo. Porto: Afrontamento, 2003, p.22.
46

O padre Antonio da Silva Rego,30 em seu livro O Oriente e o Ocidente,31


afirmava que o Islã era “uma religião simplista por excelência, favorecendo os
instintos animais do homem”. Para ele, Maomé possuía uma vida desregrada e
uma moral laxa. Além disso, era moral e filosoficamente um adversário temeroso
da civilização europeia.
A visão do Islã defendida por Silva Rego também estava institucionalizada
em seus cursos de missionologia, ministrados na Escola Superior Colonial desde
1946. Apesar de ser bastante difundido, o seu pensamento obteve uma projeção
ainda maior quando foram publicadas as suas Lições de Missionologia,
desenvolvidas no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, numa iniciativa de
Adriano Moreira,32 em 1956. Apesar de ter sido publicado na década de 50,
apresenta de forma substancial a mesma síntese do Islã que ele apresentava nos
anos 30.
O livro Alguns problemas sociológico-missionários da África Negra, 33
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publicado por Silva Rego na década de 60, demonstra ainda essa visão de
desconhecimento e desejo de combate ao Islã:

A táctica antimuçulmana consistirá, portanto, em barrar o caminho ao avanço do


Islamismo, por meio da fundação de missões em lugares previamente escolhidos,
como escolas, etc. E multipliquem-se os postos missionários de 50 ou 60
quilômetros de profundidade. Onde houver este cuidado, dificilmente o Islamismo
penetrará para além desta barreira (p. 113).

A mesma postura pode ser observada na Carta Pastoral de 1947, de D.


Sebastião Soares de Resende, o primeiro bispo da Beira. A carta afirmava que “o
islamismo não é, e nem pode ser, uma verdadeira religião”. O profeta Maomé era
visto pelo bispo como imoral e impuro, “precursor dos provocadores da psicose
da guerra”.34

30
Silva Rego, a convite de Marcello Caetano, na época ministro das colônias, integrou o corpo
docente da Escola Superior Colonial, atualmente Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
da Universidade Técnica de Lisboa. Ele lecionou desde 1946 a cadeira de Missionoligia na
referida universidade.
31
António da Silva Rego. O Oriente e o Ocidente: Ensaios. Lisboa, 1939. p.42-59.
32
Professor de Ciências Sociais do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, Adriano Moreira
foi Ministro do Ultramar entre 1961 e 1963.
33
Antonio da Silva Rego. Alguns problemas sociológico-missionários da África Negra. Estudos
de Ciências Políticas e Sociais nº 32. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1960.
34
Vakil, op. cit.
47

Vakil afirma que a atuação pastoral de D. Sebastião foi movida pela


urgência de agir diante da “iminência do perigo de virem a cair nas malhas
ardilosas dos sequazes de Mafoma”. Além do perigo para os fiéis, os muçulmanos
representavam um perigo à nação: “Indígenas caídos no islamismo são quase
perdidos para a Igreja, e oxalá o não sejam também para Portugal. Quem obedece
a movimentos estranhos não é da casa”.35
O medo do Islã não vinha apenas dos membros da Igreja, também estava
presente nos relatórios dos administradores das diversas circunscrições de
Moçambique, que, além de vê-lo como ameaça, se esforçavam para conter o seu
crescimento. Um exemplo disso foi a atitude dos administradores de Cabo
Delgado, na região de Porto Amélia, que fecharam as escolas e as mesquitas em
março de 1937.36
O mesmo temor foi notado em um memorando escrito pelo administrador
local de Memba, em Cabo Delgado, também em 1937. Ele considerava o
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islamismo uma doutrina corruptiva e tão prejudicial quanto o bolchevismo.


Dentro dessa perspectiva, se o bolchevismo representava uma ameaça a todas as
nações, ele temia que o islamismo representasse um segundo câncer, que poderia
pacientemente “corroer” as possessões portuguesas, pois a religião não admitia
desigualdades raciais e nem reconhecia fronteiras políticas37.
O caráter transnacional do islamismo era algo ameaçador para muitos
administradores locais, pois o Islã não era apenas uma religião, mas uma
organização política que continha diversas conexões com outros países, como
Tanganica, Niassalândia e Kenya, além dos tradicionais laços com Zanzibar e
Comores, que foram importantes centros de instrução para as elites muçulmanas
moçambicanas, lugar de estudos teológicos avançados e literários em árabe,
mesmo no período de dominação colonial em Zanzibar, colônia britânica com
independência até 1963, e Comores, território ultramarino francês até 1965.

35
Ibidem, p.164.
36
Alpers, op. cit., p.167.
37
J. da Silviera. Relatórios sumários e respectiva documentação, referentes à inspecção ordinária
feita na Provincia do Niassa em 1943, I, doc. no 9, copiado por Aristides Alves de Faria para o
Provincial Director of Civil Administration of Niassa, Memba, 12 September 1937. In: AHM,
Fundo ISANI, Cx. 96, apud Alpers, op. cit.
48

Há um sentimento de pertencimento partilhado por todos os seguidores do


Islã, expressado pelo conceito Umma38, a comunidade de todos os fiéis
muçulmanos; este vínculo não está limitado por fronteiras territoriais ou culturais,
pois se trata de uma aliança indissociável, que a crença em Alá, no profeta e em
seu livro produzem.
Diante disso, criava-se o temor de que esse conceito religioso da Umma
adquirisse o significado político de uma “nação”. A ideia de uma nação islâmica
era algo por demais ameaçador ao projeto nacional português, que passava pela
língua, pela religião e pela crença na mística imperial.
Essa apropriação política, entretanto, já estava sendo feita nos anos 30 por
alguns movimentos, como a Irmandade Muçulmana, no Egito, a Jamaat-i-Islami,
na Índia, o movimento operário Étoile Nord-Africaine na Argélia e na França, e
até mesmo nos Estados Unidos, com os muçulmanos negros da Nation of Islam.39
Esses grupos tinham em comum a necessidade de apontar caminhos para
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organização e reestruturação da sociedade conduzida pelo Islã, caminhos esses


que pudessem revitalizar social e politicamente a sociedade. Era a partir de fontes
islâmicas que pretendiam aperfeiçoar a conduta muçulmana através de recitação e
meditação do Alcorão e do estudo da Hadith.40 Objetivavam implantar uma
reforma moral e religiosa que pudesse normatizar noções como responsabilidade
pública, mudança jurídica, participação popular e reforma educativa.

Esses vínculos internacionais e a expansão da religião no território eram


uma ameaça à soberania nacional, que exigia, por parte da administração,

38
The Oxford Dictionary of Islam define Umma como um conceito fundamental no Islã, que
expressa a unidade essencial e a igualdade teórica entre todos os muçulmanos, independente da
diversidade Geográfica e Cultural (p. 327). É comumente traduzida como comunidade religiosa ou
comunidade dos fiéis. No entanto, o conceito é mais complexo e fluido historicamente do que o de
comunidade religiosa judaica ou cristã. A idéia de Umma está presente desde os primórdios do Islã
para designar inicialmente os pertencentes ao grupo de seguidores do profeta, independente de sua
filiação tribal. No entanto, o termo ultrapassou essa conotação inicial e o sentido religioso,
estendendo-se para a vida social e política. Sendo assim, o conceito de Umma tem a ver com uma
comunidade islâmica de valores, religiosos ou não, que possui implicações políticas e que
ultrapassa as fronteiras nacionais . Cf. Robert A Saunders. “The ummah as nation: a reappraisal in
the wake of the ‘Cartoons Affair’”. In. Nations and Nationalism 14 (2), 2008. p. 307. , Fred
Halliday. “The politics of the Umma: States and Community in Islamic Movements”. In.
Mediterranean Politics, 7 (3) 2002 p. 24.
39
Cf. Espósito, op. cit., e Albert Hourani. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
40
Trata-se de um corpo de leis, lendas e histórias que reúnem as tradições orais dos muçulmanos.
Diz respeito às palavras e feitos do profeta Muhammad.
49

estratégias que pudessem conter esse avanço. Em termos práticos, exigia-se da


administração colonial algumas medidas para o controle do avanço muçulmano
não apenas pelo “contágio político”, mas pela educação. Por isso, após a
Concordata de 1940,41 ocorreu uma redução do número de escolas rudimentares
nas áreas rurais de Moçambique, tornando-se obrigatório e exclusivo o uso do
português no ensino. A proibição do ensino nas línguas locais, com exceção do
ensino religioso, prejudicaria significantemente a atuação protestante e islâmica.
Dos protestantes porque tinham como método o uso das línguas banto nos
primeiros anos de alfabetização, e as escolas islâmicas porque utilizavam o
árabe.42

Entre os empecilhos colocados pela administração colonial havia as


dificuldades burocráticas na concessão de terrenos, e os professores nativos eram
com frequência escolhidos para o trabalho forçado e o serviço militar. Os
materiais didáticos eram destruídos e exercia-se uma grande pressão para que as
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crianças frequentassem as missões católicas. 43

Além de práticas diretas de combate à expansão islâmica, algumas atitudes


conciliadoras também foram pensadas. Pinto Correia, um inspetor administrativo
de Cabo Delgado, escreveu em seu relatório para o administrador do Conselho da
Ilha de Moçambique em 1938, que seria impossível destruir a fé muçulmana
naquela região, mas que se deveria retardar esse avanço e submeter os interesses
muçulmanos aos da soberania portuguesa.

Ele argumentava que era necessário nacionalizar os indígenas muçulmanos


e, para isso, era importante conquistar-lhes a confiança. Pinto Correia defendia a
reforma da Mesquita de Mecufi e a criação da Caixa Portuguesa Maometana, que

41
Na concordata de 1940, a Igreja Católica assumiu o monopólio legal da educação dos africanos
em Moçambique.
42
Diante do contexto de acordo entre Igreja Católica e o Estado português, cabe ressaltar que não
era apenas o Islã que era ameaçador. As igrejas não católicas, como as Igrejas independentes
africanas eram consideradas anticolonialistas e incentivadoras do ódio contra os brancos e as
protestantes faziam oposição a atuação missionária dos católicos portugueses, criticavam vários
aspectos da atuação católica, como por exemplo, a escolaridade separada para os “indígenas”.
Sobre o papel das missões protestantes em Moçambique, ver Teresa Cruz e Silva. Igrejas
protestantes no sul de Moçambique e nacionalismo: o caso da Missão Suíça (1940-1974).
Maputo: Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane.
43
José Luis Cabaço. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora
UNESP, 2009, p.214.
50

seria formada a partir dos impostos locais e apoiariam projetos como os de


reforma. 44 Para ele, essa era uma estratégia que fazia parte da batalha do
cristianismo contra o Islã.
Considerados como inimigos pela Igreja católica e pelos administradores
coloniais, os muçulmanos também eram malvistos pela elite assimilada
moçambicana, que acreditava na necessidade de extermínio da civilização árabe
em Moçambique. É possível perceber isso no artigo de J. Cantine, publicado no
jornal moçambicano O Brado Africano,45 em 1933:

Jamais largaremos de mão este assunto tão importante para o nativo maometano
que, desde há muito, vive agarrado aos usos e costumes dos árabes em pleno
território português, tornando deste modo infrutífero todo o esforço de
nacionalização das populações nativas da Colônia de Moçambique.

As demais Missões Religiosas Estrangeiras cumprem à risca as leis do Governo


Português, mas as Missões árabes nesta província não têm feito nenhum caso das
mesmas leis, no que diz respeito à civilização do nativo. E nós, como nativos que
somos, não podemos continuar silenciosos em face do que se está passando nas
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escolas maometanas da Colônia de Moçambique, que não fazem outra coisa senão
arabizar o nativo português.

Quem se der ao trabalho de ir à Malanga ou à Munhuana terá ocasião de ver nossos


nativos e nativas completamente arabizados, o que não pode continuar, porque não
estamos numa colônia árabe; mas numa colônia portuguesa de lei. Isto durará
enquanto as autoridades escolares não submeterem as escolas maometanas ao
regime das Missões religiosas, que, além da religião, são obrigadas a nacionalizar e
civilizar os indígenas das suas Missões. [...] É de absoluta necessidade a
exterminação da civilização árabe na Colônia de Moçambique. 46

Se, durante os anos 30 e 40, auge do governo de Salazar, o islamismo era


tratado como uma ameaça que deveria ser contida, nos anos 50 e 60 essa visão
alcançou a sua radicalidade. Isso ocorreu devido ao enfraquecimento do regime
salazarista após a Segunda Guerra Mundial.

44
Alpers, op. cit., p.168.
45
Jornal moçambicano dirigido por João e José Albasini. Este jornal foi um dos primeiros a serem
escritos por negros e mestiços assimilados em Moçambique. Sua linha editorial era nativista,
voltado para as populações locais. Era bilíngue, português e em ronga (língua banta local) e entre
os anos de 1919 e 1920 também foi publicado também em inglês. Funcionou entre 1918 e 1974.
Até a década de 30, fazia criticas as práticas do governo colonial, mas com o regime de Salazar,
tornou-se apologético ao Estado Novo. Cf. Fernanda do Nascimento Thomaz. “Os “Filhos da
Terra”: discurso e resistência nas relações coloniais no sul de Moçambique (1890-1930)”. (UFF,
2008). Dissertação de mestrado.
46
Este trecho faz parte do artigo A indigência maometana em Moçambique, publicado
inicialmente no jornal O Brado Africano. Este artigo também foi publicado no Boletim Geral das
Colónias, nº 100, Vol. IX, 1933, p.201.
51

Foi essa guerra que trouxe a ameaça ao controle português e ao das outras
metrópoles estrangeiras sobre os territórios africanos. Hobsbawm afirma que,
além de sua magnitude, foi também interimperialista em que, até 1943, os grandes
impérios europeus estavam do lado perdedor. Os japoneses conseguiam invadir as
colônias britânicas, holandesas e outras, no Sudeste Asiático e no Pacífico
Ocidental. Os alemães conseguiram chegar ao norte da África e ocupar até quase a
cidade de Alexandria, no Egito.
Mesmo com a vitória dos aliados, a Segunda Guerra mostrou que os brancos
e os seus Estados poderiam ser derrotados. A guerra havia desgastado demais as
metrópoles para que pudessem manter as suas posições de preponderância. Além
disso, os dois países que mais se fortaleceram com o conflito, Estados Unidos e
União Soviética, eram, por motivos diferentes, hostis ao “velho colonialismo”.47

Depois da Segunda Guerra, Síria e Líbano se tornaram independentes da


França em 1945, a Índia e o Paquistão em 1947. Em 1952, Nasser liderou a
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revolução dos Oficiais Livres no Egito, desafiou a aliança franco-britânica na


região com a questão do Canal de Suez e insuflou o sentimento de um
nacionalismo árabe e uma propaganda pan-arabista.

Na África, entre os anos de 1952 e 1962, mais de 36 países se declararam


independentes. Nesse período, ocorreu o surgimento de movimentos, partidos e
líderes na África Ocidental e em Tanganica reivindicando reformas que tendiam à
independência, assim como protestos em massa na África do Sul, devido à
institucionalização do regime do apartheid.

Essas independências ocorreram de modos distintos, variando desde a


concessão da independência de maneira pacífica, mas com dependência
econômica e cultural, como o caso de Gana, em 1957, até o uso da luta armada,
como no Quênia, em que houve uma forte insurreição popular e guerra de
guerrilha com o movimento do Mau Mau, em 1952-1956.
O império português sobreviveu às tempestades de independência no
continente, porém a agitação política também chegou às terras lusas, causando
preocupação ao governo colonial. O primeiro confronto entre portugueses e

47
Cf. Eric Hobsbawm. Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p.214.
52

nativos após a Segunda Guerra Mundial ocorreu em São Tomé, quando o aumento
do valor internacional do café e do cacau exigiu um maior uso de mão de obra,
que foi adquirida à força, causando resistência da população em 1953.
Foi na década de 1950 que tiveram início os movimentos defensores da
independência de Angola, baseados na ideologia marxista e compostos por
intelectuais formados em Portugal, como Agostinho Neto e Mário Pinto de
Andrade. Entre os anos de 1955 e 1956, formou-se o que ficou conhecido como
Movimento Popular de Libertação de Angola.
Em termos de política na metrópole, após a Segunda Guerra o direito civil
português passou por reformulações e, em 1951, a Constituição foi revisada,
sendo substituído o termo colônia pela antiga denominação Província
Ultramarina. Essa substituição de termos práticos refletia a reivindicação do
regime pelos territórios africanos, pois trazia a ideia de que Portugal e suas
províncias constituíam uma unidade indivisível.
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Salazar também optou por amenizar o caráter fascista do Estado Novo e


adotar medidas que pudessem ser vistas como práticas democráticas aos olhos do
Ocidente, como as eleições para presidente da República em 1958. Além disso,
em 1961 o Estatuto do Indígena foi revogado e os habitantes de Moçambique
receberam em teoria os direitos de cidadania portuguesa. Todas essas medidas nos
mostram o esforço político de Portugal de combater a crescente campanha
internacional e os movimentos surgidos dentro das colônias contra o seu
domínio.48
Neste cenário turbulento, uma onda de nacionalismo muçulmano
assombrava os governantes das colônias na África com o fortalecimento da Liga
Árabe, fundada em 1945. O temor era de que, na liga árabe, os países africanos
dominados pelas potências européias, pudessem encontrar poderosa orientadora, e
que o Islã poderia influenciar movimentos expansionistas político-religiosos de
difícil contenção.
Nesse contexto, em que o Islamismo ganhou maior repercussão no mundo,
inicia-se em Portugal a grande necessidade de fomentar estudos islâmicos no país,
com o intuito de conhecer melhor esse perigo para combatê-lo de maneira efetiva.
Autores como Eduardo Dias e José Julio Gonçalves foram dos primeiros a discutir

48
Cf. Malyn Newitt. História de Moçambique. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p.410.
53

sobre questão islâmica, buscando uma certa objetividade, apesar de suas


concepções também apresentarem um certo desconhecimento e preconceito como
os religiosos das décadas de 30 e 40.
Eduardo Dias era considerado em Portugal como um “erudito islamólogo”,
e escreveu, ainda nos anos 40, uma obra em três volumes, Árabes e
Muçulmanos,49 em que o próprio autor denominava “o primeiro ensaio em língua
portuguesa sobre várias das complexas e arriscadas matérias concernentes ao
problema do Islão”. Dias também publicou O Islão na Índia50 e alguns clássicos
da literatura árabe, em português, como as Mil e uma noites.51
Em suas traduções e análises sobre o islamismo, era preponderante o seu
olhar eurocêntrico, fundamentado em uma visão pejorativa do mundo árabe.
Eduardo Dias afirmava que Maomé não tinha a intenção de fundar uma religião e
que, sendo assim, o islamismo deveria constituir-se apenas como um fenômeno
político e ideológico e não como uma religião que se pretendia universal. O autor
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denominava o Jihad como um eufemismo para o “extermínio implacável dos


adversários”.
Todos os textos de Dias apresentavam de alguma maneira um enfoque
alarmista sobre a questão islâmica nas colônias portuguesas. A religião islâmica
seria um entrave à formação de uma identidade religiosa e civilizacional
portuguesa. Afirmava também que o “perigo turco” e o “perigo vermelho” eram
doutrinas que se articulavam em uma frente comum contra o colonialismo e
contra os europeus. O islamismo representava uma ameaça poderosa ao domínio
europeu na África.
Outros autores também compartilhavam dessa posição e é possível notar,
em textos como A ameaça Islâmica na Guiné Bissau, de Sousa Franklin (1956), A
Ameaça Afro-Asiática, artigo publicado no Diário de Lisboa, em 2.10.1956, de
Joaquim Correia da Costa. O artigo O perigo do Islão em África, publicado no
Boletim Geral do Ultramar, é muito elucidativo com relação a esse ponto de vista:

Hoje a questão torna-se ainda mais angustiosa: o Islão já se não contenta em


desenvolver-se em terreno pagão por intermédio de simples viajantes. Hoje o Islão
ambiciona tornar-se uma força de expansão. [...] Já não resta dúvida que nos

49
Eduardo Dias. Árabes e Muçulmanos. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1940.
50
Idem. O Islão na Índia. Colecção Gládio – Estudos Religiosos e Filosóficos. Lisboa: Livraria
Clássica Editora. 1942.
51
As Mil e Uma Noites, Trad. Eduardo Dias. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1949, 6 vols.
54

encontramos em presença de uma campanha sistemática de penetração, realizada


por militantes unidos e bem organizados.
Em 1954, durante uma peregrinação a Meca, efectuaram-se conferências entre os
chefes políticos do Egipto, do Paquistão e da Arábia Saudita, que decidiram passar
à acção, estabelecendo um plano de conquista muçulmana do continente africano.
[...]
As conversações de Meca não foram letra morta. Recentemente criou-se uma
comissão central em Dar El Salam e a Universidade Islâmica de El Azhar, no
Egipto, é hoje um centro de formação missionária de primeira ordem, iniciando um
programa de acção que abrange a Uganda, a Nigéria, a Somália, a Eritréia e
Adém. 52

Além das obras dos mais variados autores, publicados em periódicos e


revistas dos mais diversos segmentos, o impacto da ameaça do Islã foi sentido
com grande profundidade na Academia, alterando o seu campo de estudos. O
Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação Científica do
Ultramar, criado em 1956 e dirigido por Adriano Moreira, que se tornará em
1961, Ministro do Ultramar, realizou, nas décadas de 50 e 60, diversos colóquios
e trabalhos sobre a temática.
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Em fevereiro de 1957, o Centro de Estudos criou a Missão de Estudos das


Minorias Étnicas do Ultramar Português, que tinha como objetivo utilizar os
conhecimentos de Antropologia e Missionologia Aplicada para conhecer de
maneira mais aprofundada o “problema islâmico”.
A Escola Superior Colonial também realizou, em 1953 e 1954, conferências
sobre a temática do Islã. Duas delas foram proferidas pelo arabista José Domingos
Garcia Domingues, a convite do Diretor Mendes Correia. Esses trabalhos
tentavam utilizar conhecimentos especializados sobre o Islã, diante da situação
colonial portuguesa e internacional. 53 A construção do discurso, apesar de ser
centrada em uma análise geopolítica e em uma visão teoricamente fundamentada,
estava ideologicamente comprometida com os anseios e os preconceitos do
regime de Salazar.
Aos poucos, é possível notar uma mudança nesses estudos, pois os
pesquisadores começaram a se preocupar em analisar de maneira mais empírica as
realidades locais, e documentar historicamente os seus argumentos. Essas
alterações nos rumos das pesquisas estavam fundadas na percepção de que os
estudos feitos até o momento eram ineficazes para a prática colonial. Diante das

52
Boletim Geral do Ultramar , Ano 32, nº 378 (Dezembro 1956), p.104-106.
53
Vakil, op. cit., p.14-17.
55

ameaças que se impunham, começava-se a ter a ideia de que era necessário


conhecer melhor “o inimigo” para combatê-lo com mais eficácia.
Essa nova postura com relação ao islamismo estava influenciada não apenas
pelos acontecimentos na África e no Oriente Médio, mas em toda a Ásia. A
Conferência de Bandung, realizada em abril de 1955, reuniu vários países
africanos e asiáticos com o objetivo de instaurar uma cooperação econômica e
cultural entre os dois continentes, colocando-se em oposição ao colonialismo.
Participaram desse movimento líderes como Nasser, do Egito, Nehru, da União
Indiana, e Sukarno, da Indonésia.
A preocupação com Bandung aparece nos raros textos em que Adriano
Moreira escreve, sobre islamismo,54 conforme o trecho abaixo:

Enquanto todo este movimento nacionalista põe em perigo a Euráfrica, pelo


mecanismo normal dos ressentimentos unidos da luta e da passada situação
colonial, são frequentes as declarações de intelectuais dos povos colonizadores no
sentido de que a mentalidade islâmica é absolutamente impenetrável, o que
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demonstra o perigoso equívoco em que pode perder-se a solidariedade do mundo


árabe para Euroáfrica. Por isso, se Bandung representou um acontecimento
fundamental do nosso tempo, não deve esquecer-se que os povos ali reunidos
pretendem voltar a encontrar-se no Cairo, parecendo que aqui se joga o futuro da
própria África Negra. Para compreensão da importância do problema deverá
lembrar-se que o Islão inspira o poder político até o centro da África, onde, no
Sudão, acaba de mandar encerrar todas as escolas cristãs, faz aparecer os seus
missionários ao sul do Save e guarda posições históricas em toda a face da Guiné. 55

A obra de José Julio Gonçalves56 também compartilhava da visão dos


autores referidos acima e até utilizou como bibliografia o trabalho de Eduardo
Dias. No entanto, o trabalho de Gonçalves merece um maior destaque por ter- se
tornado versão mais completa e utilizada sobre o Islã, à época. Até hoje não há
um único trabalho sobre islamismo na África lusófona que não lhe faça referência.
José Julio Gonçalves também alertava para o perigo dos centros de difusão
do islamismo na África, como a Universidade Al-Azhar no Egito, centro

54
São eles: As elites das Províncias Portuguesas de Indigenato (Guiné, Angola e Moçambique).
In: Garcia da Orta - Vol. IV, nº 2 (1956), p.159-189, e O movimento Islâmico. In: Política
Ultramarina. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1961.
55
Adriano Moreira. Política Ultramarina. Junta de Investigações do Ultramar, Estudos de
Ciências Políticas e Sociais, nº 1, Lisboa: 1961, p.271-272.
56
Foi funcionário do serviço colonial, professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e
Política Ultramarina, membro do Centro de Estudos Luso – Árabes da Sociedade de Geografia de
Lisboa, membro do centro de Estudos da Guiné Portuguesa.
56

tradicional de ensino corânico, a Universidade Islâmica de Tunes, e cidades como


Rabat, no Marrocos, Meca, na Arábia Saudita, Nairobi, no Quênia, Zanzibar e
Dar-es-Salam, na Tanzânia, Acra, em Gana, Tombuctu, em Mali, e Dacar, no
Senegal. Essas cidades atuavam na opinião do autor como centros de preparação
de “missionários” que buscavam cooptar os “negros africanos animistas”. Além
disso, para ele, a opulência dessas cidades seduzia os negros para a civilização
muçulmana.
A compatibilidade entre as instituições muçulmanas e algumas instituições
nativas também é um aspecto que o autor considerava. Gonçalves relacionava
afinidades existentes entre o modus vivendi dos muçulmanos e dos negros
africanos. Afirmava que era nisto que residia o poder de penetração da religião
muçulmana na região. Uma das maiores dificuldades enfrentada pelos
missionários católicos, segundo o autor, era adaptar a sua doutrina ao habitat
africano, atuando de maneira que negros mudassem a sua conduta social, que
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incluía o abandono de práticas milenares, como a poligamia. Para ele, o Islã


possuía uma maleabilidade capaz de se adaptar a outras instituições indígenas, o
que seria inadmissível para o Cristianismo. 57
Gonçalves analisava de maneira reducionista o fenômeno religioso islâmico
na África, caracterizando-o de “Islão Negro”.58 Diante do expansionismo
crescente no norte de Moçambique e na Guiné Bissau, o autor defendia a
necessidade de neutralizar a islamização, que, para ele, era deseuropeizante. Para
isso, argumentava que o governo português deveria tomar algumas atitudes, como
fomentar divisões entre as inúmeras vertentes do Islã existentes na região, criar
estudos especializados da religião muçulmana, incentivar a ação missionária
católica e combater a difusão do árabe.

57
O aspecto da Maleabilidade do Islã também está presente na obra de Gilberto Freyre, que será
discutida no próximo capítulo.
58
Para AbdoolKarim Vakil, palavras como “islamismo negro”, “Islão africanizado” e “neo-
islamismo” representam mais do que uma diferenciação do Islã vindo do Oriente Médio, com a
sua tradição textual, considerado por muitos como “puro”. Há nos termos do Islã negro, para o
autor, um rebaixamento entendido como um abastardamento sincrético. Existe uma concepção de
que na expansão do Islã na África mantiveram-se o substrato animista e a superficialidade. É por
conta disso, que podemos ver em quase toda literatura sobre as populações muçulmanas nas
colônias o uso do termo islamizado e não islâmico. Ao utilizar o termo islamizado, há uma
desvalorização da conversão por motivos exclusivamente religiosos, defende-se que os africanos
se convertem por sua fraqueza psicológica ou por motivos de ascensão social.
57

Em sua obra mais conhecida, O mundo árabe-islâmico e o ultramar,59 José


Julio Gonçalves afirmava que Moçambique era como uma “terra de missão, pois o
catolicismo ainda não tinha sido totalmente implantado”. O autor destacava a sua
preocupação com os rumos do Islã e traçava perspectivas para essa religião em um
futuro próximo. “Se o ritmo das conversões entre os povos negros norte-
moçambicanos mantiver a atual aceleração, é de crer que o islamismo venha a
instalar-se em todas aquelas vastas regiões que situam o norte do Zambeze”.60 O
autor também justificava que a religião muçulmana se expandia devido a certa
compatibilidade com os africanos: “o negro aceita muito mais facilmente a sua
doutrina [do Islã] como mais conforme as suas primitivas instituições e usos”.61

Além disso, Gonçalves afirmava que os povos recém-islamizados possuíam


tendência a reivindicar o ensino oficial do árabe e a proteção da cultura islâmica.
Mas o que parece mais ameaçador ao autor é o fato de que os muçulmanos
poderiam não se sentir obrigados a cumprir as leis oficiais do país, apenas a lei
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corânica, já que ela objetivava regular não apenas a vida religiosa, mas a social e
até a política. Como exemplo, o autor usa o caso do Norte da África e da Guiné
portuguesa, em que os muçulmanos não se consideravam franceses nem
portugueses, mas sim árabes descendentes de Meca, como na citação seguinte:

E se, por enquanto, não há a assinalar nestes territórios africanos uma revolta
aberta – como acontece no Norte da África – orientada e inspirada pelos
muçulmanos, também é verdade que as ambições do Islão podem, de um momento
para o outro, atear fogo em toda a África Ocidental, bastando, para tanto, que os
dirigentes muçulmanos julguem chegada a hora de se cumprir a profecia de
Maomet, que ‘prometeu a esse mundo [arabo-islâmico] uma enorme extensão de
domínio’ – de Gilbratar ao Oceano Índico – que os súditos de Allah, nas suas
peregrinações a Meca, lembram ao seu Deus, na esperança de ver realizada a
profecia.62

A conversão ao islamismo representaria uma grande ameaça, como ele


explicava:

Não percamos de vista o grave perigo que está implícito neste facto. É que a África
Oriental islamizada significa apenas que haverá maior facilidade de penetração do

59
José Julio Gonçalves. O mundo árabe-islâmico e o ultramar. Lisboa: Junta de Investigação do
Ultramar, 1958.
60
Gonçalves, op. cit., p.236.
61
Ibidem, p.210.
62
Ibidem, p.12.
58

asiatismo em toda a extensa região leste africana, incluindo pelo menos a parte
norte de Moçambique.

A preocupação com o islamismo atravessou também os anos 60 e o tom


alarmista dos anos 40 e 50 permaneceu na obra do major A. J. de Mello Machado,
que escreve sobre os Macuas de Angoche na década de 60.
Mello Machado afirmou que os comerciantes e viajantes muçulmanos eram
apóstolos anônimos, mas eficientes, que conseguiam aliciar os negros com suas
crenças. Segundo o autor, para os negros a conversão ao Islã era algo tão cômodo
que não era necessário abandonar as práticas ancestrais, como a poligamia, a
escravatura e a circuncisão, condenadas pelos europeus cristãos. Na nova religião,
o islamismo, essas práticas ganhavam até um respaldo jurídico.63

O islamismo pactua abertamente com o atraso psicológico dos indígenas e, em


troca de um acto de fé muito longínquo em Alá e no seu profeta, traduzido
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externamente por alguns metros de pano com que se cobrem, arranca-os ao seu
meio e incute-lhes sentimentos de estranha irmandade com todos os crentes.64

Além da comodidade na conversão, o Major destacava que a adesão à


religião islâmica implicava em certo prestígio social, que ia desde o uso do
“turbante” e da “batina” até a ideia de pertencimento a uma comunidade que
possuía, na época, mais de 300 milhões de fiéis.
Considerava-se um perigo a expansão islâmica, pois era para vista como
essencialmente anticristã, antiocidental, antieuropeia e, por isso, antiportuguesa. O
autor chamava atenção para a aproximação entre as nações árabes através da
liderança do Egito e do apoio oferecido por eles aos países que se colocavam
contra o colonialismo, como a Tunísia e a Argélia. Além disso, Mello Machado
alertava para o proveito político que o comunismo poderia ter com a expansão
muçulmana. Desconsiderando o principio básico do comunismo, que é a negação

63
Major A. J. de Mello Machado. Entre os Macuas de Angoche. Historiando Moçambique.
Lisboa: Prelo Editora, s/d. p.285.
64
Padre Silva Rego. Curso de Missionologia, 1961, apud Major A. J. de Mello Machado, op. cit.
59

de qualquer religião, o autor cita o texto do Tenente-Coronel Hélio Felgas, que


explicita esta relação:65

É facto que estes países não constituem(ainda!) verdadeiros satélites comunistas.


Mas o seu ódio ao Ocidente é já um primeiro passo que não pode nem deve ser
substestimado.

Tal como o comunismo, o islamismo é um movimento de domínio mundial para o


qual as clássicas fronteiras nacionais são inexistentes. O congolês islamizado, por
exemplo, sente-se irmão não dos outros congoleses, mas dos outros muçulmanos,
sejam guinenses, tanganicenses ou árabes. Tal como os comunistas. E, tal como
estes, se se julgar bem apoiado do exterior, será capaz de desencadear a guerra
contra o seu próprio país, em proveito de outro país muçulmano.

Daí que o comunismo olhe com benevolência e talvez até apóie todas as medidas
tendentes a islamizar os africanos. Islamizá-los para os levantar contra tudo o que
seja ocidental. Depois, com o auxílio dos muçulmanos evoluídos, converter ao
islamismo e converter os seus adeptos ao comunismo.

Eis o plano que, de resto, já se encontra em execução na própria Rússia. Como se


sabe, existiam na União Soviética mais de vinte milhões de muçulmanos. Poucos
restarão hoje.
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Sobre essa passagem vale apenas sublinhar o caráter transnacional que a


religião islâmica podia suscitar em seus fiéis. Por ser uma religião com grande
capacidade de organização social, o Islã seria capaz de dar conta de aspectos que
ultrapassariam o religioso como o sistema político, a doutrina econômica, a
jurisprudência e as relações internacionais. Sendo assim a Umma, comunidade
formada por todos os muçulmanos, possuía uma identidade que ultrapassava as
barreiras nacionais, e nada tinha a ver com a ideia de uma nação portuguesa. Isso
acentuava ainda mais o seu caráter subversivo, pois poderia associar-se a
movimentos internacionais, como o pan-arabismo.
Mello Machado afirmava que havia recolhido alguns relatos, em meados de
1964, que permitiam comprovar o caráter subversivo que o Islã estava assumindo
em Angoche, onde os pregadores, manipulados por “agentes de além-fronteira”
procuravam incentivar o fanatismo e um sentimento antiportuguês entre os
nativos. O autor afirmou que, em muitas mesquitas, era pregado que os judeus que
mataram Cristo, profeta respeitado no Islã, eram portugueses.

65
Tenente Coronel Hélio Felgas. O Islão e a África. Artigos publicados na Revista Militar, 1965,
apud Machado, op. cit., p.297.
60

Havia também uma distorção da tradição corânica, por parte de um chehe,


do qual Mello Machado não revelou o nome, a respeito do dilúvio universal:

Deus fez brancos todos os homens que criou. Muito tempo passado, Deus, zangado
com os homens, castigou-os dos seus pecados, mandando uma chuva que caiu
sobre a Terra durante muito tempo, e alagou os campos, as matas e as serranias,
transformando a terra firme em mar imenso. Na gigantesca inundação pereceriam
todos os seres se Deus não tivesse tido o cuidado de reservar a salvação para alguns
casais humanos e para uma parelha de cada espécie animal. Para isso, mandou
construir uma enorme lancha, onde aqueles homens e animais foram recolhidos.
Estava presente na lancha Isa bem Maryam (Jesus, filho de Maria!). Chamou os
homens e explicou-lhes a razão do dilúvio, como castigo dos muitos pecados
cometidos pelos seus semelhantes, assim exterminados. Os eleitos, a quem tinha
sido facultada a salvação, deveriam, por isso, manter um comportamento
escrupulosamente recto. Poderiam divertir-se, mas nunca abusar das mulheres dos
outros. Passado algum tempo, porém, o português procurou relações com mulher
que não era a sua. Esta concebeu e, com grande espanto de todos, verificou-se que
a criança nascida apresentava a pele preta – sinal de castigo pelas relações
pecaminosas.

A criança cresceu e, quando Isa lhe perguntou, um dia, se queria conhecer o pai,
recusou-se a fazê-lo.
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Mais tarde a água secou, e a terra voltou a aparecer. Homens e animais voltaram
aos seus lugares de origem.

O Português regressou à Metrópole.

O negro dirigiu-se para a África e passou a viver no sertão. Muitos anos se


passaram sobre dilúvio e a gerações sucederam-se gerações. Um dia, os
Portugueses da Metrópole, sabedores da existência de seus parentes negros em
África, quiseram conhecê-los. E por isso meteram-se em barcos e percorreram os
mares, chegando finalmente à região. Mas em muitas terras foram mal recebidos
pelos seus parentes negros, e aborrecidos e incomodados com o mau acolhimento,
fizeram guerras contra os seus parentes.66

A narrativa de Mello Machado possui muitas imprecisões, o que nos


permite duvidar de seu caráter verossímil. No entanto, o que é interessante notar é
que o autor afirma que esta estória tinha por objetivo cultivar nas mentes
“ingênuas dos nativos” a ideia de que todos os males da África tinham a ver com
os portugueses, inclusive o fato de serem negros. Para ele, o cultivo desse
sentimento estava muito alinhado com as pretensões internacionais de fazerem
com que Portugal perdesse os seus territórios.

66
Machado, op.cit., p.301.
61

Os relatos de Mello Machado e de outros intelectuais apresentados ao longo


do capítulo, nos aproxima também da discussão feita por Edward Said67 a respeito
das diferentes representações sobre o Oriente e o Islã ao longo dos séculos e, da
construção de um conhecimento sobre ele.
Apesar de se concentrar basicamente na experiência imperial inglesa,
francesa e norteamericana, a idéia de orientalismo e a relação estabelecida entre
cultura e imperialismo desenvolvida por Edward Said nos ajuda a compreender
este momento de produção de saber a respeito do Islã em Portugal.
Ao longo de seu livro68, Said argumenta que Orientalismo era um termo
genérico por ele empregado para descrever uma abordagem do Oriente pelo
Ocidente. Era também uma disciplina em que o Oriente era tratado de forma
sistemática e erudita, mas também como sonhos, imagens e vocabulários.
Said aborda o Orientalismo como um saber acadêmico, do final do século
XVIII, de interesse de eruditos e intelectuais. Mas também como narrativa
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imaginativa, presente nos romances e nos relatos dos viajantes, que ao demonstrar
o exotismo e mistério oriental, refletiam uma série de desejos, repressões,
investimentos e projeções69.
Ao longo do século XIX e XX o Orientalismo tornou-se interesse dos
impérios europeus e aspectos como o conhecimento acadêmico e os relatos de um
Oriente exótico, permitiam a construção de doutrinas e discursos que “via o
Oriente como um local que exigia a atenção, a reconstrução, até a redenção
ocidental” 70, justificando assim a presença e a dominação pelo Ocidente.
O discurso de Mello Machado, no qual estava sendo pregado nas
mesquitas que os judeus que mataram Cristo eram portugueses, e que eles seriam
também os responsáveis pela vivência do negro no sertão refletem essa
imaginação que se mescla com a experiência empírica na qual Said se refere. No
entanto, esta imaginação de Machado estava comprometida com um determinado
discurso e conseqüentemente com uma intencionalidade. O seu relato revelava a

67
Edward Said. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
68
Op. cit., p. 115
69
“Além disso, a indagação imaginativa das coisas orientais era baseada mais ou menos
exclusivamente numa consciência ocidental soberana, de cuja centralidade não questionada surgia
um mundo oriental, primeiro de acordo com idéias gerais sobre quem ou o que era um oriental,
depois de acordo com uma lógica detalhada regida não apenas pela realidade empírica, mas por
uma bateria de desejos, repressões, investimentos e projeções.” Edward Said. Op. Cit., p.35
70
Op. cit., p. 280
62

sua visão de ingenuidade dos nativos, e ao mesmo tempo o seu temor com relação
às pretensões internacionais com relação ao território português.
Assim como o conhecimento sobre o Oriente, a produção de saber a
respeito do Islã estava permeada por uma rede de interesses aplicados,
comprometidas em reiterar a superioridade européia e validar um discurso que
legitimasse a atuação colonial. Ao categorizar o Islã como algo pejorativo, havia
explicitamente a idéia de valorizar a missão cristã e civilizacional dos portugueses
em África. Naquele momento, foram realizados muitos estudos, e
conseqüentemente discursos que estavam intrinsecamente relacionados com o
projeto colonial.
Este projeto colonial começava a ser ameaçado pelo cenário internacional
dos anos 50, que contribuiu para acentuar o temor com relação à expansão do Islã
no território moçambicano. Este sentimento de insegurança foi alimentado
também pela percepção da ineficácia da prática colonial, que era decorrente da
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incapacidade de conhecer as populações islamizadas, dos abusos cometidos e pela


desorganização administrativa.
Se os acontecimentos ocorridos nas décadas de 30, 40 e 50 contribuem
para criação de um Islã ameaçador, os anos 60 trazem novos ventos. Neste
período o discurso colonial português passará por uma mudança, que ultrapassará
os limites da Academia e dos artigos nos jornais. Diante da ameaça real de perder
Moçambique, Portugal elabora varias estratégias de ação, que serão apresentadas
e discutidas no próximo capítulo.
4
Uma nação fraterna: aproximações entre governo
português e muçulmanos

4. 1
O poder colonial em apuros: pressões por autonomia

Os anos 50 foram turbulentos para o governo colonial português, que


efetuou importantes mudanças, como a revisão constitucional de 1951, em que os
territórios ultramarinos deixavam de ser colônias e transformavam-se em
províncias, tornando-se uma unidade indivisível juntamente com Portugal.
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Essas alterações tinham por intuito resguardar Portugal dos artigos 73 e 74


da Carta das Nações Unidas,1 que diziam respeito aos territórios não autônomos.
Os diplomatas portugueses defendiam que:

1
Artigos da Carta das Nações Unidas, no Capítulo XI - Declaração relativa a territórios sem
governo próprio: Artigo 73. Os Membros das Nações Unidas, que assumiram ou assumem
responsabilidades pela administração de territórios cujos povos não tenham atingido a plena
capacidade de se governarem a si mesmos, e conhecem o princípio de que os interesses dos
habitantes desses territórios são da mais alta importância, e aceitam como missão sagrada, a
obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais
estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios e, para tal fim, se
obrigam a: a) assegurar, com o devido respeito à cultura dos povos interessados, o seu progresso
político, econômico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua proteção contra todo
abuso; b) desenvolver sua capacidade de governo próprio, tomar devida nota das aspirações
políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo de suas instituições políticas
livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes e os diferentes
graus de seu adiantamento; c) consolidar a paz e a segurança internacionais; d) promover medidas
construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar uns com os outros e, quando for o
caso, com entidades internacionais especializadas, com vistas à realização prática dos propósitos
de ordem social, econômica ou científica enumerados neste Artigo; e e) transmitir regularmente ao
Secretário-Geral, para fins de informação, sujeitas às reservas impostas por considerações de
segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro caráter técnico, relativas
às condições econômicas, sociais e educacionais dos territórios pêlos quais são respectivamente
responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os Capítulos XII e
XIII da Carta. Artigo 74. Os Membros das Nações Unidas concordam também em que a sua
política com relação aos territórios a que se aplica o presente Capítulo deve ser baseada, do mesmo
modo, que a política seguida nos respectivos territórios metropolitanos, no princípio geral de boa
vizinhança, tendo na devida conta os interesses e o bem-estar do resto do mundo no que se refere
às questões sociais, econômicas e comerciais.
64

Por imposição constitucional, Portugal era uma nação politicamente unitária: a


soberania era indivisa e os seus órgãos eram os mesmos para todo o território
nacional. A Constituição portuguesa não reconhecia a existência, dentro da
nação, de territórios não autônomos, e era lícito que algumas partes dessa nação
tivessem um determinado estatuto internacional e outras partes um estatuto
diferente.2

Desde a década de 50, houve uma tentativa de valorização econômica das


colônias, como o plano quinquenal de 1953-1958, cuja intenção, que se manteve
nos anos 60, era regulamentar as colônias economicamente e beneficiar os
interesses agrícolas e industriais dos oligopólios portugueses. Desejavam
estimular a migração de colonos brancos e criar interesses e vínculos locais com a
metrópole.
Objetivavam também combater o argumento, vigente na comunidade
internacional, de que, assim como eram incapazes de promover o seu próprio
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desenvolvimento econômico, seriam igualmente incapazes de planejar e articular


a prosperidade econômica de seus territórios além-mar.
No âmbito político, Salazar nomeou Adriano Moreira, em 1961, para o
Ministério do Ultramar, com o intuito de reformar a política ultramarina. Além da
substituição do termo colônia por província, Moreira aboliu o estatuto do
indigenato, transformando, teoricamente, todos que viviam nas províncias em
cidadãos portugueses. Implantou medidas com relação ao regime de trabalho e
salários e à autonomia administrativa e financeira dos territórios além-mar.
No entanto, todas essas medidas desagradaram à burguesia emergente
metropolitana, aos colonos portugueses que viviam em Moçambique e às elites
locais. A reformulação do regime de trabalho afetava diretamente as suas
possibilidades de lucros, e as outras mudanças causaram ainda mais
distanciamento entre colonos e nativos. Havia temor de uma “revolta dos negros”,
pois as reformas implantadas traziam possibilidades de mudanças para os nativos,
alimentando reivindicações de acesso à educação e a melhores condições de
trabalho.
Os contorcionismos jurídicos, políticos e econômicos implantados por
Portugal não foram suficientes para manter seus domínios seguros. O longo

2
Franco Nogueira. As Nações Unidas e Portugal. Ática: Lisboa, 1961, p. 101 e 102.
65

processo de emancipação de Goa em relação a Portugal foi encerrado em 18 de


dezembro de 1961, quando a União Indiana invadiu o Estado da índia, anexando
Goa ao seu território. As lutas em Angola também começaram nesse ano,
chamando a atenção da mídia internacional. As deliberações da ONU e de outras
organizações internacionais aprovaram o esforço de autodeterminação de Angola
e se colocaram contra a repressão portuguesa.3
Naquele momento, houve uma acentuação das reivindicações por parte da
população africana no Ultramar. Em contrapartida, fizeram-se reformulações nos
mecanismos administrativos, como a isenção de responsabilidade criminal para os
funcionários, o aumento dos efetivos policiais e da censura e, consequentemente,
a ampliação da repressão.
Em Moçambique, a primeira manifestação em que se fazia alusão a uma
autonomia em relação à metrópole ocorrera no norte, em Cabo Delgado, em junho
de 1960, em frente à sede da administração de Mueda. O massacre que se seguiu
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decorreu da dura repressão a um protesto em larga escala contra as cooperativas


que o governo colonial desejava impor. A manifestação foi contida com tanta
violência que, além de toda repercussão, gerou um clima de hostilidade.
Essa postura repressiva foi bastante influenciada pelo desenrolar dos
acontecimentos em Angola, cuja sublevação, no norte do país, mostrava a
Portugal que era importante endurecer seu posicionamento em Moçambique, para
que não se repetisse o que havia acontecido naquela colônia. Houve, nesse
momento, o fortalecimento de princípios políticos que não abriam espaço para
diálogos ou concessões. Essa posição desencadeou ainda mais luta armada na
Guiné, em janeiro de 1963, com o assalto ao quartel de Tite, depois da recusa de
diálogo tentado por Amílcar Cabral.4

3
José Luis Cabaço. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora
UNESP, 2009, p. 165-172.
4
O PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amilcar
Cabral, tentou por diversas vezes estabelecer algum tipo de diálogo com o governo português. Em
25 de setembro de 1960 entregou às autoridades portuguesas um memorando que solicitava o
reconhecimento imediato do direito à autodeterminação dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Em
dezembro do mesmo ano, outro memorando foi enviado com um plano detalhado para
descolonização da Guiné e de Cabo Verde. Em 13 de outubro de 1961, Amilcar Cabral enviou
uma carta ao governo de Lisboa, onde fez referência "à aspiração de todos os povos à
independência nacional, à paz, ao progresso e à colaboração pacífica com todos os povos, o povo
português incluído". O governo português ignorou todas as correspondências enviadas. Cf. Amélia
Neves de Souto. Caetano e o ocaso do “Império”: Administração e Guerra Colonial em
Moçambique durante o Marcelismo (1968 a 1974). Edições Afrontamento: Porto, 2007, p. 143.
66

A atitude radical portuguesa baseava-se em uma política de defesa e


informação planejada para as Províncias Ultramarinas, envolvendo não apenas o
fortalecimento do efetivo militar, mas também o aumento da polícia política, a
PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado),5 que, em 1960, aumentou
seus quadros em 300%.6 Havia a organização de defesa civil, 7 que possuía um
Corpo de Voluntários e um Corpo de Milícias tradicionais – um grupamento
militar de 2ª linha, que recrutava homens maiores de 18 anos – vivendo em
Circunscrições, cujo comando, em tempos de paz, pertencia à autoridade
administrativa e, em tempos de guerra, ao Corpo de Voluntários.8
A estrutura militar desenhada pelo governo português não foi capaz de
conter a criação e a atuação dos grupos que desejavam a independência de
Moçambique. Os primeiros partidos políticos que lutavam pela autonomia da
província se fundiram, em 1962, na Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO), de orientação marxista, contando com o apoio de países comunistas
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europeus e da China.
O seu líder era Eduardo de Mondlane, educado primeiramente em
Moçambique pela Missão Suíça, depois na África do Sul e nos Estados Unidos. A
FRELIMO foi fundada em Tanganica, atual Tanzânia, e contava com o apoio dos
Macondes do norte de Moçambique e do sul da Tanganica. Os Macondes tinham
como inimigos tradicionais os Macuas, que eram majoritariamente muçulmanos e
habitavam também a região norte do país.
Oliveira Marques9 afirma que, diferentemente da Guiné, de Angola e São
Tomé e Princípe, onde os movimentos revolucionários foram organizados por
pessoas de formação portuguesa e apoiados por assimilados, em sua maioria; o
movimento moçambicano fora formado por muitos africanos alheios à cultura e à
língua portuguesas.

5
No ultramar, a PIDE possuía poderes independentes da estrutura administrativa provincial. Nesse
sentido, tinha autonomia para prender, deter, expulsar e até mesmo fazer julgamentos sem controle
do Judiciário, realizados de maneira secreta por seus agentes. Amélia Neves de Souto, op. cit., p.
164.
6
Em 1960, o quadro aumentou de 27 pessoas para 108.
7
Em 1961, foi promulgada, a partir do Decreto-Lei de 29 de março de 1961, a organização da
Defesa Civil do Ultramar
8
Amélia Neves de Souto, op. cit., p. 143.
9
A. H. de Oliveira Marques. Breve História de Portugal. Editorial Presença: Lisboa, 2006. p. 708.
67
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Figura 2 – Formação Etnolinguística de Moçambique.


Carlos Serra (dir.). História de Moçambique. Maputo:
Livraria Universitária, 2000, p.18.

Organizados fora do território moçambicano, os vários grupos de


contestação à dominação portuguesa na região, depois reunidos em um só, a
FRELIMO, tinham entre os seus adeptos os trabalhadores emigrados em países
vizinhos, muitos deles sem falar português. Cabe ressaltar que o regime do
apartheid, presente na África do Sul, também funcionou como uma importante
motivação para o ódio ao branco em geral e à administração portuguesa em
particular.
A FRELIMO iniciou a luta armada em agosto de 1964 na região do Rovuma
(distritos de Cabo Delgado e Niassa). Segundo Newitt,10 ao começar a luta pela
região norte, havia indícios de que, já naquele momento, a FRELIMO pretendia
levar adiante uma insurreição simultânea por todo o território. Entretanto, as

10
Malyn Newitt, op. cit., p. 453.
68

tentativas de se infiltrar na Zambézia e em Tete, no início de 1965, não obtiveram


sucesso. Assim como em Lourenço Marques, a capital, essas tentativas foram
todas desarticuladas pela PIDE.
Diferentemente do fracasso das frentes no centro e no sul do país, o grande
êxito ocorreu na região norte. Ao final de 1965, o extremo norte, onde vivia
grande parte dos povos Macondes, já se encontrava todo conquistado pela
FRELIMO. Foi o apoio dado pela população maconde que permitiu o sucesso do
feito. A população ainda estava abalada pelo Massacre que houvera em Mueda,
em 1960, e politizada pelo movimento migratório na fronteira tanzaniana, lugar de
surgimento da FRELIMO.
Como foi dito acima, a conquista da região norte não foi mérito exclusivo
das forças revolucionárias da FRELIMO. O apoio dos chefes tradicionais
macondes foi fundamental para o êxito na operação e, como retribuição ao auxílio
prestado, a organização decidiu incorporar os líderes nativos à estrutura do
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movimento, nomeando-os presidentes do partido na região que dominavam.


A FRELIMO ocupou pequenas áreas do território dos Macondes e parte do
território do distrito de Niassa. Nesse território, com cerca de 200.000 pessoas, o
partido criou um programa de reconstrução econômica e social, em que os
camponeses foram reunidos em aldeias comunais, onde eram desenvolvidas
cooperativas de produção e de sua comercialização e levadas adiante campanhas
de educação e saúde.
Apesar da vitória em 1965, não houve trégua e os portugueses contra-
atacaram. Associaram-se aos Yaos (Ajuas) e Macuas, grupos mais islamizados,
que eram hostis à FRELIMO. O avanço desta, e, consequentemente, a
possibilidade de um governo marxista e ateu não eram bem vistos por essas
populações islamizadas, que viam, na vitória do partido, sua religião ameaçada.
Além disso, a guerrilha levada pela FRELIMO na região gerou morte e fome
generalizadas, o que facilitou ainda mais a cooptação portuguesa desses grupos.
Naquele momento da guerra, o apoio da população Macua, maioria no norte
do país, como podemos ver no mapa, foi fundamental. Começou, então, a se dar
uma mudança radical da posição portuguesa em relação aos muçulmanos, antes
considerados ameaça perturbadora, e, a partir daí, instrumento importante para a
Nação.
69

O avanço da FRELIMO pelo norte de Moçambique justificava a


necessidade portuguesa de se aproximar dos muçulmanos. No entanto, é
importante questionar o porquê, diante de uma imensa diversidade de Islã, de o
governo colonial optar pela aliança com as confrarias. Para se responder a esta
questão, cabe considerar o ambiente de transformações pelo qual a religião
muçulmana vinha passando naquele momento.
Desde a década de 60, o movimento Wahhabita,11 vinha crescendo em
Moçambique e questionando a autoridade dos líderes das confrarias. Os
wahhabistas consideravam que o Islã praticado pelas turuq era arcaico,
distanciado da perícia corânica e verdadeira tradição muçulmana.12
Reivindicavam para si a interpretação correta do sunismo, criticando a partir daí
tudo que consideravam inovação.
Em termos políticos, o wahhabismo seria uma ameaça não apenas aos
líderes das confrarias, mas também à administração portuguesa, já que possuía um
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forte vínculo com a Arábia Saudita e o Egito. Acreditava que a política dizia
respeito à luta pela liberdade cultural, religiosa e política, e, paralelamente a isso,
à preservação da tradição islâmica.
O projeto pluricontinental do Islã dos wahhabistas era levado a cabo por
uma solidariedade que compreendia desde a concessão de bolsas de estudos, nos
centros de estudos islâmicos para jovens da África negra, como Al Azhar, no
Cairo, até a defesa da Palestina contra Israel e da independência dos países
africanos.13
Podemos afirmar que o movimento wahhabita contribuiu de maneira
significativa para a aproximação entre poder colonial e confrarias, mostrando,
assim, que havia conveniências para ambas as partes. Um exemplo disso é o

11
Movimento surgido na Arábia Central, no século XVIII, fundado por Muhammad ibn ‘Abd al
Wahhab (1703-92). Esse movimento pregava a necessidade de os muçulmanos serem estritamente
obedientes ao Alcorão e ao Hadith, rejeitando práticas como a reverência aos santos (marabus) e
outras devoções típicas das ordens sufis.
12
Macagno apresenta um interessante panorama sobre as disputas, ambiguidades e relações entre
Wahhabismo e confrarias. Cf. Lorenzo Macagno, op. cit., p. 161, e Lorenzo Macagno. “Les
Nouveaux Oulémas: La recomposition des autorités musulmanes au nord du Mozambique”.
Lusotopie, Volume 14, número 1, 2007, p. 151-177 (27).
13
Fernando Amaro Monteiro. “Moçambique, a década de 70 e a corrente Wahhabita: uma
diagonal”. In: António Custódio Gonçalves. O Islão na África Subsariana – Actas do Colóquio
Internacional. Porto: Centro de Estudos Africanos do Porto, 2004.
70

episódio a seguir, descrito por Macagno,14 a respeito das vantagens que as


confrarias poderiam tirar da relação com o governo.
Conta-nos o autor que o sheik Abubacar Ismail Mangirá era conhecido
como Maulana Abucar, especialista em direito islâmico. Nascido em Inhambane,
cresceu na capital, Lourenço Marques (atual Maputo), e foi estudar por muitos
anos na Universidade Islâmica de Medina. Ao regressar a Moçambique, na década
de 70, Ismail Mangirá elaborou duras críticas às práticas das confrarias, acusando-
as de ligação com o governo português.
Em termos doutrinários, Abubacar Ismail Mangirá criticou a decisão do
sheik Momade Said Mujado em uma disputa a respeito dos ritos funerários.
Recriminou a prática, organizada pela Associação Muçulmana da Beira, de fazer
peregrinação a um lugar que eles consideravam santo, e criticou as comemorações
excessivas do Maulid, o aniversário do profeta, alegando que tais eventos não
possuíam fundamentação corânica.
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Em resposta a essas críticas, alguns líderes das confrarias o denunciaram à


PIDE, acusando-o de estar recrutando jovens para a Tanzânia, para serem
treinados pela FRELIMO. Afirmaram, ademais, que recebia literatura reformista e
subversiva, proveniente do Paquistão, chegando a ele pela África do Sul. 15
Episódios como esses são breves exemplos da conjuntura de aproximação entre os
portugueses e as confrarias.
A adesão da população muçulmana ao projeto colonial foi levada adiante a
partir de três diferentes movimentos. O primeiro deles foi a construção, por parte
dos portugueses, de um saber minucioso sobre essas populações; o segundo foi a
criação de um discurso que unia, em um só povo, muçulmanos e portugueses, e o
terceiro envolvia as ações desenvolvidas para justificar a eficácia desse discurso.
Esses aspectos serão desenvolvidos nos tópicos seguintes.

14
Cf. Lorenzo Macagno, op. cit., p. 101.
15
Edward Alpers, op. cit., p. 181.
71

4.2
Nova estratégia: conhecer para cooptar

Com o início da luta armada, houve maior necessidade de controle e


recolhimento de dados, tornando o Serviço de Informações peça fundamental para
a elaboração de estratégias e a atuação do Estado Colonial em Moçambique. Em
julho de 1965, diferentes serviços de inteligência foram regulamentados a partir
das Normas Gerais, realizados na Província de Moçambique, aprovados em 17 de
julho de 1965, pela Portaria no 18.773.
Além dos Serviços de Informações, existiam os Serviços de Acção
Psicossocial, criados em Moçambique em outubro de 1961, administrados
diretamente pelo Governador-Geral. Tratava-se de um órgão de estudos e direção
que objetivava orientar os quadros coloniais (militares e paramilitares) para
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agirem contra a subversão. Oferecia ações educativas e culturais com a intenção


de cooptar as populações africanas a favor de Portugal, contra a FRELIMO.
Como afirmou Amélia Souto, a conquista das populações se tornou o
objetivo fundamental, pois os portugueses sabiam que seriam derrotados na guerra
de guerrilha se não tivessem o apoio dos nativos. A experiência adquirida em
outras frentes de luta nos territórios africanos oferecia-lhes a crença de que a
cooptação seria bem sucedida, como na Guiné-Bissau, onde os portugueses
haviam feito aliança com as populações fula, também islamizadas.16
Era importante, entretanto, não apenas convencer a população sobre a
nobreza da colonização portuguesa, como também desmoralizar a FRELIMO,
cultivando a descrença de que a luta pela libertação nacional teria êxito. Para isto
seria necessário conhecer bem as populações e o movimento que consideravam
subversivo, buscando suas contradições e seus pontos de atrito.
As principais ações de informação civis eram os Serviços de Centralização e
Coordenação de Informação de Moçambique (SCCIM), o Gabinete de Informação
e Formação da Opinião Pública (GIFOP) e os Serviços de Informação da PIDE.

16
Cabe ressaltar que a estratégia de cooptação dos muçulmanos pelo governo português foi levada
à frente também na Guiné Bissau, província que possuía um número maior de muçulmanos do que
Moçambique.
72

O SCCIM foi criado em 1961, subordinado ao governador- geral da


Província e, mais tarde, em 1963, também ao Comandante-Chefe das Forças
Armadas. O órgão tinha como função principal reunir, estudar e difundir notícias
e informações que pudessem ser de interesse político, administrativo ou defensivo
da província. Esse órgão deveria também estudar e orientar as relações de
fronteira. Todas as informações obtidas pelos outros órgãos – o Gabinete de
Informação e Formação da Opinião Pública (GIFOP) e os Serviços de Informação
da PIDE – deveriam ser encaminhadas para o SCCIM, para que, centralizados,
pudessem servir de base para estudos em outros campos.
O SCCIM era responsável pela elaboração de documentos, como o Boletim
de Difusão de Informação, o Relatório de Informação, o Relatório de Situação, o
Relatório de Notícias, a Resenha de Imprensa e Rádio, o Relatório Anual de
Informações e o Relatório Especial de Informações. Quando obtinha informações
consideradas político-subversivas e de caráter criminal, transferia-as diretamente
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para a PIDE da província, e as informações de interesse militar eram


encaminhadas para o Serviço de Informação Militar (SIM). Ao final, tanto a PIDE
quanto o SIM deveriam passar para o SCCIM os resultados das investigações.
O SCCIM contava com relatórios bem detalhados, como o apresentado pelo
pesquisador José Alberto Gomes de Melo Branquinho, em 1965.17 Em seu estudo,
o autor se concentrou nas hierarquias islâmicas existentes nos distritos de Cabo
Delgado e Moçambique. Fez uma análise minuciosa das redes que formavam as
lideranças muçulmanas, oferecendo um mapa das oito confrarias existentes em
Moçambique. Ademais, chamava a atenção para o perigo que a presença islâmica
poderia representar para o Estado Português.
Melo Branquinho denunciou a maneira como os chefes muçulmanos de
Cabo Delgado foram tratados pela administração portuguesa até aquele momento:
eram, em geral, acusados de subversão, cooperação com a FRELIMO, levados à
prisão, condenados à morte, tinham suas mesquitas destruídas e seus livros
queimados. Ao final de seu relatório, o autor sugeriu uma mudança de atitude em
curso com relação a essas populações, que passavam a ser mencionadas como as
que efetivamente deveriam ser incorporadas à Nação Portuguesa.

17
Não foram obtidas informações acerca da trajetória de Melo Branquinho. José Alberto Gomes
de Melo Branquinho, “Prospecção das forças tradicionais: Manica e Sofala”, Relatório Secreto
para os Serviços de Centralização e Coordenação de Informações, Província de Moçambique,
Lourenço Marques, 1967.
73

Branquinho afirmava que o Islã, em Moçambique, possuía falta de


homogeneidade e, devido às inúmeras disputas internas, constituiria uma fraqueza
da qual o governo poderia tirar proveito. Para ele, seria difícil cooptar os
muçulmanos de origem árabe e indiana, porque estavam mais integrados ao
islamismo internacional. No entanto, esse procedimento seria perfeitamente
possível com as confrarias. Como caminho para aliança entre confraria e poder
colonial, sugeria a implantação de um sistema integrado de escolas corânicas, que
era um desejo antigo dos chefes locais, e a maior difusão da língua portuguesa,
através da tradução do Alcorão.
Além dos relatórios de Melo Branquinho, o SCCIM contou com uma figura
essencial para todo o processo de aproximação dos muçulmanos, o antropólogo
Fernando Amaro Monteiro, Professor da Universidade Lourenço Marques, na
capital moçambicana, pesquisador de assuntos islâmicos e depois funcionário da
instituição. Entre os anos de 1965 e 1970, Amaro Monteiro desenvolveu propostas
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de ação, encaminhando-as ao diretor do SCCIM para que fossem mandadas ao


Governo Geral e ao Ministério do Ultramar, onde deveriam receber aprovação
final. Entre 1970 e 1974, tornou-se o consultor imediato dos governadores-gerais
de Moçambique, funcionando o SCCIM e o Gabinete Provincial de Acção
Psicológica como órgãos de apoio. Foi presidente do Grupo de Trabalho sobre
Assuntos Islâmicos, criado em fevereiro de 1972.
O papel de Monteiro nesse processo foi de suma importância, já que, através
do seu trabalho à frente do SCCIM, se obteve um conhecimento concreto e
detalhado da população islâmica em Moçambique. Graças às estratégias
elaboradoras por ele, Portugal alcançou algum sucesso na cooptação dessas
populações.
Entre os anos de 1965 e 1966, o SCCIM elaborou um estudo que tinha por
intuito identificar os líderes muçulmanos de toda a província. Como primeiro
passo para esse estudo, estava a elaboração de um questionário confidencial,
direcionado a esse grupo.
O questionário era constituído de vinte e oito perguntas, divididas em
quatro partes. Havia perguntas pessoais, como nome, local de nascimento,
habitação, salário, a qual ramo do Islã pertencia, se possuía antepassados árabes,
se já havia peregrinado a Meca. Além disso, havia questões relacionadas à
religiosidade do líder, como quantas vezes orava por dia, qual era a sua
74

compreensão da Jihad, se falava árabe, se possuía vínculos com outros líderes


muçulmanos fora do país. Perguntas a respeito do cristianismo também foram
feitas, como se acreditavam que Maria havia concebido Jesus virgem, se eles
criam na ressurreição de Cristo, etc.18
No geral, a ideia do questionário era formar um panorama dos muçulmanos
da província para saber maiores detalhes a respeito dos cultos, das lideranças e das
línguas utilizadas, e se havia relações dessas comunidades com outras fora do
território moçambicano. Esse questionário estava inserido em um plano dividido
em 4 etapas, que aconteceriam em períodos diferenciados.
A primeira ocorreu entre 1965 e 1966 e foi denominada fase de detecção,
tendo como intuito a análise do contexto cultural e das estruturas desses grupos. A
segunda fase, executada entre 1967 e 1968, foi denominada de captação. Essa
etapa tinha os seguintes princípios: mostrar que o poder colonial conhecia e
respeitava o Islã como religião revelada; que desejava comunicar-se com essas
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populações e conviver com elas e que a administração portuguesa reconhecia o


Islã moçambicano, que desejava preservar a cultura muçulmana e difundir a
língua portuguesa.
Uma ação classificada como pertencendo à etapa de captação foi o processo
de tradução para a língua portuguesa e impressão dos Hadits (ditos do profeta),
realizado pelo governo, mas com análise e aprovação de 21 chefes muçulmanos,19
que opinaram sobre a escolha dos ditos e a sua ordem de prioridade, a impressão e
a distribuição. O governo também financiou, na década de 70, a tradução do
Alcorão para a língua portuguesa, que também passou pelas críticas e aprovação
dos líderes muçulmanos.20

A impressão dos Hadits e do próprio Alcorão em português foi uma


tentativa de se criar uma cultura muçulmana de língua portuguesa.
Contraditoriamente, essa tentativa de nacionalização do Islã ia de encontro à

18
Os questionários confidenciais organizadas por conselhos distritais em resposta à solicitação
confidencial Nº 86/E/7/3, de 1º de março de 1966, podem ser encontrados em ANTT/SCCIM,
pasta 417, p. 48-440.
19
A aprovação foi feita pelos chefes das oito confrarias existentes na Ilha de Moçambique e chefes
das seguintes províncias: Lourenço Marques, Inhambane, Beira, Vila Pery, Quelimane, Bajone,
Ilha, Cabaceira, Nacala-Velha, Vila Cabral, Nova Freixo e Marruapa. De acordo com Amaro
Monteiro, entre eles havia dez africanos, nove de origem árabe e dois de origem asiática.
20
As críticas a respeito da tradução feita pelos líderes muçulmanos e as justificativas do tradutor
podem ser encontradas em ANTT/SCCIM, pasta 413, p. 359-362.
75

própria essência da religião, que era a sua desterritorialização e a não permissão


da tradução do Alcorão para qualquer outra língua.

A terceira e quarta etapas, comprometimento e acionamento, foram postas


em prática a partir de 1968, de maneira concomitante. Na fase de
comprometimento, a ideia era identificar as principais lideranças muçulmanas da
província e fazer com que se comprometessem com o Governo. Já a fase de
acionamento pretendia despertar essas comunidades contra os inimigos, fazendo
com que os denunciassem e lhes declarassem hostilidade, a partir de atividades de
contraguerrilha, com milícias muçulmanas autônomas ou integradas ao exército.

Após a identificação dos principais líderes (não apenas os das confrarias), o


governo incentivou a criação do “Conselho de Notáveis”, um grupo de influência
que formaria uma espécie de elite muçulmana para funcionar como
interlocutores/intermediadores do governo português com as massas. Esse
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Conselho formava um espaço de negociação que tinha por objetivo deliberar


sobre os impasses relativos às doutrinas e aos ritos praticados pelas diferentes
correntes islâmicas.21

O Departamento de Informação e Propaganda acreditava que o plano


elaborado por Fernando Amaro Monteiro havia atrasado em 5 anos os efeitos da
propaganda da FRELIMO nas áreas islamizadas. Acreditava ainda que, se não
tivessem atuado tão rapidamente, a FRELIMO teria conquistado essas
populações.

21
Fernando Amaro Monteiro. “Sobre a atuação da corrente ‘wahhabita’ no Islão moçambicano:
algumas notas relativas ao período de 1964-1974”. In: Africana, nº 12, março de 1993.
76

4.3
Novo discurso: Portugal, um império luso tropical

Os anos 60 representaram um período conturbado para o regime colonial,


não apenas pelas questões políticas e cotidianas, como as insurreições e os outros
questionamentos feitos às autoridades, ocorridos nas províncias. Acima de tudo,
era o regime que se encontrava abalado em seu aspecto ideológico, faltava-lhe
legitimidade interna e externa.
As alterações jurídicas e econômicas feitas desde a década de 50, tais como
a substituição do termo colônia por província, as alterações dos estatutos laborais,
a abolição do Estatuto do Indigenato e os discursos feitos por Adriano Moreira
nas Nações Unidas não foram suficientes para sustentar a ideia de que a presença
portuguesa na África era legítima.
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A mística imperial, tão forte nos anos 30, não era mais suficiente para frear
os questionamentos acerca do domínio português. A ideia de uma nação que
possuía não apenas uma vontade, mas uma missão quase divina de colonizar,
perdera completamente o sentido e, diante dessa quebra de paradigmas, era
necessário repensar-se enquanto nação.
Diante do cenário dos anos 60, não se tornara mais possível sustentar uma
concepção organicista de nação, formada por um princípio espiritual que
transcendia os indivíduos que dela participavam. Era-lhes difícil compartilhar
vínculo intrínseco e inalterável, desde o seu suposto nascimento, assim como
mitos originários, ou a cultura histórica, na qual formavam uma comunidade
baseada em tradições vernaculares.22
Nesse sentido, podemos considerar que a ideia de nação, existente em
Portugal nos anos 30, ainda se aproximava, de alguma maneira, das defendidas
por Rousseau sobre nação, como parte do plano de Deus e não apenas da História.
Portugal tinha sua missão de “civilizar” os povos do além-mar e era essa missão
que os definia enquanto portugueses.
Em meados dos anos 50 e início dos 60, porém, para que a ideia de nação
continuasse assentada no ultramar, o seu sentido deveria ser modificado: Portugal

22
Sobre o conceito organicista de nação, cf. Anthony Smith. National Identity. Reno: University
of Nevada Press, 1991.
77

não era apenas a nação que tinha como missão civilizar outros territórios. Tornara-
se uma nação especial e, a partir desse momento, os territórios conquistados no
passado eram concebidos como partes inseparáveis. Províncias e metrópole
haviam-se tornado parte de um mesmo corpo e, por isso, indivisível.
A primeira vez que essa ideia apareceu publicamente foi na resposta do
Presidente do Conselho, de 8 de novembro de 1955, ao Secretário Geral da ONU,
que então questionava Portugal sobre o descumprimento do artigo 73 da carta
daquela organização. Salazar respondeu-lhe que não havia transgressão da norma,
já que a unidade política portuguesa era compreendida desde o Minho até o Timor
Leste, e que, por esse motivo, as províncias ultramarinas pertenciam ao Estado
Unitário Português e as suas populações faziam parte da nação portuguesa.23
A nação portuguesa baseava-se na ideia de “desterritorialização” e tinha
como ponto de contato um universo cultural comum,

[...] uma comunidade de sentido que englobaria não apenas o Portugal europeu e os
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arquipélagos adjacentes (Madeira e Açores), mas também os territórios coloniais na


África, o Estado da Índia Portuguesa, a cidade de Macau, a parte oriental da ilha do
Timor e as próprias comunidades de migrantes portugueses espalhadas pelo
mundo. 24

Nesse sentido, era o Império que se fazia nação e a eternidade da pátria


portuguesa só poderia ser pensada a partir de suas colônias.
O vínculo de pertencimento, que unia línguas e culturas extremamente
distintas, criava uma ideia de nação mais aproximada do conceito defendido por
Benedict Anderson, em seu livro Comunidades Imaginadas.25 Para o autor, a
nação é sempre uma abstração, uma comunidade política que se imagina soberana
e limitada. É criada na imaginação histórica e sociológica através da identificação
de elementos comuns, que funcionam como instrumentos de reconhecimento entre
os seus concidadãos e de diferenciação das outras nações. O que reúne as pessoas
em uma nação é, sobretudo, o desejo de pertencerem a ela, em uma espécie de
comunhão religiosa.

23
Fernando Martins, “A política externa do Estado Novo, o Ultramar e a ONU: Uma doutrina
histórico-jurídica (1955-1968)”. In: Penélope, nº 18, 1998, p. 189.
24
Omar Ribeiro Thomaz. “O Bom povo português: usos e costumes d’aquém e d’além mar”.
Mana, vol. 7, nº 1. Rio de Janeiro: Abril, 2001.
25
Benedict Anderson. Comunidades Imaginadas: Reflexões Sobre a Origem e a Difusão do
Nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
78

Assim como a religião, a Nação oferece uma possibilidade de resoluções


das contingências da vida, capazes de lhe dar forma e sentido e, nesse aspecto, é
digna de sacrifícios. E, apesar de ela se apropriar da experiência do sagrado, é
essencialmente secular.
O poder colonial desejava criar elementos comuns entre espaços e culturas
distintas. A medida da abolição do Estatuto do Indígena foi um bom exemplo
disso, pois, a partir desse ato, todos passaram a ser considerados cidadãos
portugueses, independentemente das províncias de origem. Era essa a capacidade
de integração sem conflitos de que os portugueses se orgulhavam. E isso os fazia
crer-se uma nação diferente de todas as outras.
É evidente que esse discurso desconsiderava totalmente o desejo dos
africanos de pertencerem ou não a essa abrangente nação. Um importante
elemento que serviu de coesão e legitimação para esse novo projeto de nação
portuguesa nos anos 50 foi a teoria do lusotropicalismo, desenvolvida por Gilberto
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Freyre.
Freyre ficou conhecido pela sua obra Casa Grande & Senzala, de 1933, na
qual discutia o processo de formação étnica, racial e cultural do Brasil,
valorizando a miscigenação. No entanto, entre as décadas de 30 e 40, as teorias do
autor não tiveram aceitação oficial por parte do regime colonial português. Isso
ocorreu porque, nesse período, a estratificação da sociedade a partir de categorias
como civilizados X indígenas ou negros X brancos era considerada importante
para garantir os privilégios vigentes dos colonos.
O conceito de lusotropicalismo foi mais desenvolvido por Freyre nos anos
40 e apresentado pela primeira vez no livro O mundo que o português criou.26
Aqui, o lusotropicalismo, como conceito, defendia que os portugueses haviam
sido responsáveis pela construção de uma nova civilização tropical harmoniosa e
particularmente distinta dos outros impérios coloniais. Teriam uma habilidade
mais especial de se relacionar com os outros povos, especialmente com os das
regiões tropicais. Ao defender uma área cultural lusotropical, que seria território
português, o mestiço tornar-se-ia homem dos trópicos27 por excelência, já que
aglutinava elementos indígenas e coloniais em sua identidade.

26
Gilberto Freyre. O mundo que o português criou. Lisboa: Livros do Brasil, 1940.
27
O conceito de “novo homem nos trópicos” está definido em O luso e o trópico, de 1961.
79

Tal vocação dos portugueses para os trópicos foi aprofundada naquele livro
e tais ideias foram logo apropriadas por alguns intelectuais portugueses e por
dirigentes do regime. A teoria de Gilberto Freyre era uma possibilidade de
encontrar uma solução política para a questão das colônias, sem abrir mão delas.
Seria um novo conteúdo teórico para a ideia de uma nação única, mas
pluricontinental. Como sugere José Luis Cabaço como título de seu capítulo, as
teorias de Freyre seriam uma nova veste para um corpo velho.
A aceitação de suas teorias ocorreu nos anos 50 e ganhou força nos anos 60.
Em 1951, por convite do Ministro do Ultramar Português Sarmento Rodrigues,
Gilberto Freyre viajou pelos territórios de Portugal, onde analisou
“empiricamente” a sua teoria. Dessa experiência, Freyre publicou em 1953,
Aventura e Rotina,28 como uma espécie de diário de viagem.
O prefácio, escrito por Alberto da Costa e Silva, na mais recente edição, nos
dá indícios de como foi realizada essa viagem. Todos os contatos que Freyre
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estabeleceu com as populações locais foram intermediados pelos agentes do


governo, assim como as visitas que lhes fez. Dessa maneira, o antropólogo veria
apenas aquilo que o governo queria mostrar-lhe.
Como afirma José Luis Cabaço29, Aventura e Rotina é um livro que nos
ajuda a compreender como o colonialismo português se aproveitou das teorias de
Freyre, que percorreu os territórios dominados por Portugal com o objetivo de
comprovar a sua teoria sobre a capacidade lusitana de viver nos trópicos,
observando as suas realizações e sua “plasticidade”. Ao notar tudo isso,
entretanto, Freyre fazia comparações não apenas com o Brasil, mas também com
os modelos de colonização anglo-saxônico, francês e belga.
No pensamento de Freyre havia uma vocação dos portugueses para os
trópicos,30 que se revelava na capacidade de incorporação de valores culturais dos
negros e dos índios, sem abrir mão de sua matriz cultural. Além disso, via, como
admirável nos portugueses, a habilidade em se adaptarem às condições naturais do

28
Gilberto Freyre. Aventura e Rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes
portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2001.
29
José Luis Cabaço, op. cit., p. 176.
30
A ideia de vocação para os trópicos desconsiderava quaisquer tensões sociais existentes
associadas à brutalidade da dominação colonial. A grande virtude desta vocação era essa
capacidade de interação e miscigenação. Em Aventura e Rotina é possível perceber um certo
desapontamento de Gilberto Freyre com o fato de a população de Cabo Verde ser aparentemente
pouco miscigenada. Cf. Gilberto Freyre. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem a procura
das constantes portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2001, p. 266.
80

novo território e em se relacionarem sexualmente com as mulheres locais,


mostrando-lhes, assim, a suposta ausência de preconceito.
As teorias de Gilberto Freyre tiveram grande influência e repercussão no
meio acadêmico, influenciando trabalhos nas mais diferentes áreas do
conhecimento, como os de Orlando Ribeiro, nos estudos sobre Ecologia e
Geografia Tropical, Henrique de Barros na Agronomia, Jorge Dias na
Antropologia, Mário Chico na História da Arte e Marcelo Caetano e Adriano
Moreira no Direito e na Ciência Política. O Ministro do Ultramar à época,
Adriano Moreira, chegou a incorporar as ideias “lusotropicalistas” a seus
discursos e livros.31
Em termos políticos, o lusotropicalismo oferecia elementos importantes para
a ideologia colonial,32 já que o “modo português de estar no mundo” e a “vocação
para os trópicos” lhe davam um ar de transcendência e atemporalidade. Além
disso, a noção de plasticidade e tolerância lhe permitia uma interpretação da
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história sem conflitos, desconsiderando os massacres realizados contra a


população local. Essa abordagem fazia-se exemplar nas palavras de Adriano
Moreira:

Os portugueses não chegavam com atitudes de conquistadores, antes procuravam


estabelecer relações de amizade com as populações dos vários continentes, e só
quando as situações exigiam eram levados a servir-se das armas e a lutar. (...) A
nossa ação assimiladora não se exerceu de maneira violenta, antes, pelo contrário,
procuramos adaptar-nos aos ambientes naturais e sociais, respeitando os estilos de
vida tradicionais. 33

As apropriações políticas do discurso de Freyre não foram usadas somente


para justificar a presença e a opressão portuguesa na África, foram utilizadas
também na busca de uma coerência interna e para a adesão das populações
muçulmanas.

31
“A composição heterogênea do povo português e a estrutura tradicional comunitária patriarcal
permitiram-lhe uma perfeita assimilação do espírito cristão de fraternidade, inteiramente coerente,
mesmo quando posto à prova em situações de grandes contrastes raciais e culturais. (...) Foi ele
[Gilberto Freyre] quem especialmente pôs em evidência a capacidade dos portugueses para, em
contato com os trópicos, proceder a uma interpretação de valores e de técnicas que se torna
evidente na arquitetura, no vestuário, na alimentação, etc.” Adriano Moreira. O ocidente e o
ultramar português. Editora Pongetti: Rio de Janeiro, 1961.
32
Sobre esse tema, José Luis Cabaço enumera oito tópicos desta aproximação. Cf. José Luis
Cabaço, op. cit., p. 197.
33
Adriano Moreira, op. cit., p. 40-41.
81

A figura do muçulmano foi apresentada por Freyre pela primeira vez nas
páginas de Casa Grande & Senzala,34 vinda da África e de Portugal, como
elemento importante na formação do Brasil.35. No entanto, foi em livros
posteriores que Freyre desenvolveu o seu argumento sobre a influência árabe na
maneira portuguesa de colonizar.
Na introdução de Um brasileiro em terras portuguesas, Freyre afirmou ser a
colonização portuguesa “sociologicamente semelhante à maometana, embora a
substância cristã de que esta é portadora contraste fortemente com a substância
maometana, sua rival”.36 Os elementos tipicamente muçulmanos/árabes que
teriam influenciado a colonização portuguesa, tanto no Brasil como na África,
eram a grande capacidade de adaptação, a poligamia, a tolerância racial e a doçura
no tratamento dos escravos.
No que diz respeito à poligamia, havia para Freyre uma predisposição para a
relação exôgamica e a inclusão dos filhos dessas relações no seio da família. Isso
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permitia o aumento populacional e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de


vínculos e alianças, permitindo, assim, a maior expansão territorial: “Os filhos
dessas uniões exogâmicas, fosse qual fosse a raça, condição social – livre ou
escrava – ou religião da mãe, eram filhos tão legítimos de árabes quanto os de
puro ventre árabe e de mãe maometana”.37
O argumento da poligamia estava relacionado a outro aspecto, fundamental
para a apropriação política: o argumento de uma tolerância racial:

Para o maometano em expansão não importava – nem importa hoje – a raça ou a


cor das populações alcançadas pelo seu domínio: importava e importa o facto de
adotarem essas populações o islamismo, isto é, a fé com todas as suas
conseqüências sociais e culturais de comportamento. Daí terem se tornado, em
numerosos casos, chefes maometanos, indivíduos de várias raças e cores (...).38

34
Nesse aspecto, Freyre considera árabe como sinônimo de muçulmano.
35
Cf. Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006, p. 300.
36
Gilberto Freyre. Um brasileiro em terras portuguesa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p. 37.
Em Aventura e Rotina, o autor enfatiza mais uma vez o argumento da influência maometana no
modo de colonização portuguesa. Cf. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora,
2001, p. 251.
37
Gilberto Freyre. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p.
40-41.
38
Ibidem, p. 39.
82

A tolerância racial, argumento tão difundido nas obras de Freyre, fora a


partir dos anos 60 apropriado pela política colonial portuguesa, que em seu
discurso, deixava de considerar o Islã como fator de desconfiança, para se
apresentarem como herdeiros de uma tradição que tinham os muçulmanos em sua
origem. Assim como a capacidade assimiladora da religião muçulmana, capaz de
lidar e se adaptar às mais distintas regiões, também nesse momento o amplo
aspecto da nacionalidade portuguesa se transformaria em característica digna de
admiração.
Esse contorcionismo teórico elaborado por Freyre foi apropriado pelo
Estado português em momento em que o império luso ameaçava ruir, e a aliança
com os muçulmanos se apresentava como a possibilidade de se manter o controle
em Moçambique. Nesse contexto, houve uma tentativa de transformar o seu
discurso em prática.
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3.4 As ações

O ano de 1968 foi considerado chave para a implantação de uma efetiva


política islâmica, em que os portugueses tentaram projetar em Moçambique uma
imagem de “protetor do Islã”. Esta ideia foi elaborada a partir de alguns pontos
importantes,39 como a presença das autoridades portuguesas nas festas do
calendário religioso islâmico, o Ramadã, por exemplo, a construção e a reforma
das mesquitas, o financiamento de peregrinações a Meca e a publicação de artigos
sobre a tradição islâmica, escritos pelo Presidente da Comunidade Islâmica de
Lisboa, Suleiman Valy Mamede.
Anteriormente a 1968, uma carta indicava os rumos das mudanças que
estavam ocorrendo. Em 1966, o bispo de Vila Cabral, Dom Eurico Dias Nogueira,
divulgou, no período das comemorações de Nossa Senhora de Fátima, uma carta
aberta, direcionada aos muçulmanos. O texto publicado em português e em ajaua

39
. Abdool Karim Vakil. “Questões Inacabadas: Colonialismo, Islão e Portugalidade”. In:
Margarida Calafate Ribeiro & Ana Paula Ferreira (orgs.). Fantasmas e Fantasias Imperiais no
Imaginário Português Contemporâneo. Porto: Afrontamento, 2003, p. 31.
83

declarava a irmandade entre muçulmanos e cristãos e mostrava o bom


relacionamento entre os diferentes credos:

É a primeira vez que o Bispo de Vila Cabral se dirige a vós deste modo público e
solene. Mas não é a primeira vez que nos encontramos face a face e como
amigos.
Na minha modesta residência e junto das vossas singelas mesquitas, na igreja de
Vila Cabral e por ocasião das Visitas Pastorais que tenho realizado às missões,
tenho-vos encontrado e conversado amigavelmente (...).40

A carta estava dividida em tópicos como Pontos de contato entre o


evangelho e o alcorão e a declaração conciliar e A mãe de Jesus no Alcorão.41 A
proposta da carta elucidava não apenas as relações amistosas que começaram a
serem traçadas nesse momento, mas refletia a nova postura da Igreja, pós-
Concílio Vaticano II.

Em Vila Cabral, no distrito de Niassa, os sinais de ecumenismo não


ficaram apenas na carta do bispo. Em 17 de julho de 1969, foi inaugurada a
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capela/escola/mesquita. Tratava-se de uma construção do início do século XX,


que havia sido criada para ensino do catecismo e culto para os cristãos. Devido à
maioria da população ser muçulmana, pertencente à etnia ajaua, as autoridades
locais decidiram ampliar a função religiosa da capela. Participaram da
inauguração o Governador do Niassa, Tenente- Coronel Melo Egídio, o Bispo
Eurico Nogueira, o diretor didático Lino dos Santos e o chefe muçulmano
Cássimo Abdala.42

Em 17 de dezembro de 1968, o Governador-Geral de Moçambique,


Baltazar Rebelo de Souza, anunciou pelo rádio uma saudação voltada
exclusivamente aos muçulmanos da província. Aquela data correspondia ao 26º
dia do Ramadã, ano 1388 da Hégira. O discurso foi iniciado pela citação do 1º
versículo da Sura do Alcorão, al Fâtiha. Em sua mensagem, Baltazar Rebelo
falou sobre o ecumenismo da Igreja Católica e os elementos comuns presentes na
Bíblia e no Alcorão.

40
D. Eurico Dias Nogueira. Carta Fraterna do bispo de Vila Cabral, 6 de setembro de 1966.
41
Além dos apresentados, a carta possui os seguintes tópicos: Aparições e Mensagem de Fátima,
Celebração Jubilar de Cinquentenário, e Palavras Finais.
42
ANTT/SCCIM, pasta 160, p. 3-10.
84

Foi com a recitação do ‘Tekbîr’ e da ‘Fâtiha’ do livro sagrado do Islam que eu, o
Governador-Geral da Província, abri esta mensagem em que me dirijo a vós,
maometanos da terra portuguesa de Moçambique (...).
(...) e porque a Igreja Católica, à qual Portugal está ligado por laços tão fortes,
considera também com respeito os muçulmanos que adoram o Deus vivo (...).

Durante o pronunciamento, o governador fez menção às forças subversivas


existentes em Moçambique, deixando claro o conteúdo político existente naquela
mensagem ecumênica. No encerramento de seu discurso, Baltazar Rebelo
estabeleceu uma aproximação entre o lugar que Maria escolheu para aparecer em
Portugal, na cidade de Fátima, e o nome da filha do profeta, Fatimah, com o
intuito de criar mais um ponto de contato entre as duas religiões.

Não quero também deixar de desejar que voltem bem depressa à vida normal desta
terra aquelas populações islamizadas que, movidas por pressões do Mal,
abandonaram as machambas, as povoações e os lugares onde repousam os seus
antepassados, sofrendo agora, a monte ou no exílio, fome, doenças, ferimentos e
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morte (...).
Que meditemos todos, em concórdia, nas verdades de Fé que nos são comuns!
Meditemos também, nós que veneramos Maria, na beleza deste sinal: a Virgem,
padroeira da nação portuguesa, escolheu para nos aparecer e falar, uma povoação
chamada Fátima, nome da filha querida do profeta.43

Cabe destacar que a mensagem transmitida pelo governador não foi


planejada apenas em seu conteúdo, a sua recepção foi estrategicamente elaborada.
No relatório apresentado ao governador, Fernando Amaro Monteiro44 contou que
instruiu seus subordinados a divulgarem na mídia a data e o horário em que o
discurso iria ser transmitido no rádio. Além disso, a veiculação da mensagem do
governador foi feita juntamente com o anúncio de doação de donativos.45

As transmissões radiofônicas voltadas para a população muçulmana não se


restringiram apenas às palavras do Governador Baltazar Rebelo. No ano seguinte,

43
Fernando Amaro Monteiro. “Moçambique 1964-1974: As comunidades islâmicas, o poder e a
guerra”. Africana. Centro de Estudos africanos, Universidade Portucalense: Porto, nº 5, setembro
de 1989. Anexo 1.
44
Relatório de Serviço nos Distritos de Moçambique e Cabo Delgado, de 6 a 23 de novembro de
1968. ANTT/SCCIM, pasta 413, p. 227.
45
“(...) a. Amanhã, 10DEZ68, devemos saber qual o número aproximado de maometanos
necessitados, residentes em Lourenço Marques, para assim se calcular qual o volume do donativo
de S. EXa. o governador geral no dia de Id. b. Sugere-se que o donativo seja feito em gado
bovino, para abate pelos próprios maometanos. É Indispensável que os animais sejam entregues
vivos [grifos do autor]. Esta oferta tem mais significado do que se fosse feita em gêneros.” Idem.
85

o novo Governador-Geral, Eduardo Arantes e Oliveira, também proferiu uma


mensagem ao final do jejum do Ramadã. O seu discurso estava comprometido
com a fase de acionamento, elaborada por Fernando Monteiro, e recomendava aos
muçulmanos a fidelidade às tradições e o zelo em relação às inovações religiosas
que surgiam no território.

Em março de 1972, Manuel Pimentel dos Santos, governador-geral da


província, na época, também divulgou uma mensagem no rádio em homenagem à
inauguração da Mesquita de Gulamo, em Lumbo, que havia sido financiada pelo
governo. Ao contrário da expectativa do governador, a sua transmissão pelo rádio
não teve a repercussão esperada.

A política de reformas de mesquitas não teve em Moçambique a mesma


força que na Guiné. No entanto, o governo financiou a reconstrução de algumas
delas como a de Gulamo, no contexto das comemorações do V Centenário da
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Viagem de Vasco da Gama, a de Vila Cabral e a do Catamojo.

O financiamento das peregrinações a Meca causou bastante visibilidade


pública ao governo português, e é possível observar na documentação a grande
quantidade de pedidos para a viagem. A peregrinação contava com uma parada
obrigatória em Portugal, onde os muçulmanos eram levados a conhecer lugares
históricos, símbolos da cultura portuguesa, e do passado islâmico do país. 46

46
Em ANTT/SCCIM pasta 413, p. 223-226.
86
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Figura 3 - Visita de peregrinos muçulmanos a Meca,


provenientes da Guiné, que, em passagem por Portugal,
visitaram o palácio de Sintra. Boletim Geral do Ultramar,
Nº 525 - Vol. XLV, 1969, p. 77.

As tentativas de construir afinidade e reconhecimento entre portugueses e


muçulmanos não aconteciam apenas nas províncias. Em 25 de março de 1968, foi
conferido o estatuto oficial à Comunidade Islâmica de Lisboa, que teve como
sócios honorários eleitos o Ministro do Ultramar, Joaquim Moreira da Silva
Cunha, o Governador da Guiné, Arnaldo Schulz, o Desembargador Francisco José
Velozo e o Bispo de Vila Cabral, Dom Eurico Nogueira.
No discurso de inauguração do estatuto, o Presidente da Comunidade,
Suleiman Valy Mamede, afirmou que Portugal havia sido mal compreendido,
pois, com suas ações, mostrava que, diferentemente de outras nações, o país não
tinha a liberdade religiosa apenas como formalidade; o ecumenismo em Portugal
era uma realidade viva e não apenas constitucional.47
Nesse mesmo ano, Mamede passou a publicar periodicamente uma coluna
sobre as relações históricas entre muçulmanos e portugueses, ressaltando sempre
o ecumenismo e reforçando o caráter integracionista dos lusitanos. Os artigos
47
Suleiman Valy Mamede. “As religiões”. In: Boletim Geral do Ultramar. Agência Geral do
Ultramar: Lisboa, ano 45, nº 523-524 (Janeiro e Fevereiro), 1969, p. 66.
87

foram publicados durante todo o ano de 1968 no Boletim Geral do Ultramar, dos
números 511/512 (janeiro/fevereiro) até 523/524 (janeiro/fevereiro de 1969).
O líder da Comunidade islâmica em Lisboa se destacou também por sua
atuação política, ao tentar estabelecer alianças ecumênicas. Defendeu, juntamente
com católicos, a inserção do nome de Deus na Constituição, retirada desde 1959.
Mamede defendia que o nome de Deus na Constituição dizia respeito a um Deus
único dos muçulmanos, católicos e judeus.
Além disso, Mamede endossou a solicitação feita pelos chefes das
Confrarias da Beira e de Inhambane, no final dos anos 60, de incluir na lista para
deputados por Moçambique à Assembléia Nacional, muçulmanos. Tal iniciativa
foi rejeitada, mostrando assim a ambiguidade da nação integracionista. Apesar de
ter uma coluna em um periódico oficial e se colocar com uma postura de
alinhamento ao regime, Suleiman Valy Mamede foi visto com desconfiança pelas
autoridades portuguesas. Todas as suas visitas a Moçambique foram registradas
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pela PIDE e seus passos meticulosamente seguidos.


Podemos perceber que, após a década de 70, houve certo desleixo com
relação a essa política de aproximação com os muçulmanos, ou pelo menos uma
posição menos rígida no seguimento das ações. Os grandes gastos e as
preocupações com a guerra colonial e com os últimos suspiros do regime podem
ter desviado os olhares dos governantes para essa política.
Mesmo assim, em 1º de abril de 1972, o Governador-Geral de
Moçambique, Pimentel dos Santos, criou dentro da estrutura do SCCIM o Grupo
de Trabalho sobre Assuntos Islâmicos (GTAI), liderado também por Fernando
Amaro Monteiro. No mesmo ano, o grupo foi extinto, em 31 de agosto, mas
continuou prestando consultoria particular ao governador até 25 de abril de 1974.
5
Considerações Finais

Foi nos caniços de Lourenço Marques e numa tarde bem


diferente desta tarde gelada que conheci certo homem estranho.
Creio sinceramente, seria um homem de Deus; a sua fé era tão
forte que, frente a ele, embaraçava não vibrar na febre que o
tomava. Era velho, muito velho, pequeno, pequeno e seco. Tão
seco, tão frágil e tão decidido como a varinha que empunhava
na mão direita, enquanto passeava de um lado para o outro,
marcando a cadência para 50 ou 60 crianças negras e pardas,
que em voz alta e de bocas muito sérias salmodiavam o vosso
livro sagrado, o Alcorão. [...] Achei figura curiosa [e] dele me
veio interesse de estudar o Alcorão que nunca desfolhara e de
que apenas por alto me haviam falado no Liceu de Luanda e
nem sequer referido na própria Faculdade de Letras de Lisboa.
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Na universidade de um país desde sempre em contato com o


islamismo e que se proclamava justificado pela expansão.1

Foi com essas frases melancólicas que Fernando Amaro Monteiro recordou
os anos vividos em Moçambique e o seu primeiro contato com um mestre
muçulmano. Na carta, escrita em 1975, e destinada a todos os muçulmanos do
país independente, o pesquisador e ex-coordenador do SCCIM (Serviço de
Coordenação e Centralização da Informação de Moçambique) relembra os amigos
muçulmanos e a experiência mística vivida em uma mesquita, na qual sentiu
verdadeiramente a presença divina.

O tom de saudosismo e amizade da carta de Monteiro se diferenciava


drasticamente dos relatórios meticulosos e das ordens precisas do pesquisador,
que tinham como interesse exclusivo a cooptação dessas populações a favor do
governo. Afirmava que uma das únicas maneiras de conter o avanço da
FRELIMO na região norte do país era conquistando as populações islamizadas.

1
Fernando Amaro Monteiro. Carta aberta aos muçulmanos de Moçambique. Lisboa, 1975, p. 13-
15.
89

Essa conquista nada tinha a ver com uma interação espontânea de iguais,
que o pesquisador deixava transparecer em seu texto emocionado. Tratava-se de
uma conquista racionalizada, com objetivos claros e que, mesmo sob a luz de um
discurso integracionista, trazia uma ideia de hierarquia entre portugueses e
muçulmanos.2

Não foi possível identificar com clareza os objetivos de Fernando Monteiro


ao escrever a carta aos muçulmanos, naquele momento pós-independência. No
entanto, essa correspondência é interessante por nos mostrar uma ambiguidade na
postura de um dos homens mais importantes da política de aproximação entre o
governo e essas populações. A afetividade e a admiração demonstradas
contrastavam com a racionalidade e a frieza dos relatórios de Monteiro ao
Governador- Geral, sempre reforçando a ideia de aproximação estratégica com
essas populações e o perigo existente, caso isso não fosse feito.
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A postura de Fernando Amaro Monteiro pode ser associada aos diferentes


discursos e práticas que Portugal assumiu durante o período do Estado Novo.
Vistos em um primeiro momento como ameaça, os muçulmanos foram
combatidos através de um discurso de superioridade da nação portuguesa, em

2
A ideia de hierarquia fica implícita na especificação dos quatro princípios da fase de captação,
por Fernando Amaro Monteiro: 1) Mostrar que o poder conhecia e respeitava o Islão como religião
revelada; 2) Mostrar que o poder queria ‘comunicar-se’ e sabia como e junto de quem
(exatamente, ao detalhe) fazê-lo, momento a momento, sendo portanto inútil iludir uma
informação oportuna, que dominava a dimensão total da relação causa/s (agente/s) – efeito/s -
(agente/s) no terreno interior e exterior, isto é, o Poder queria dar-se e controlava os mecanismos
de comunicação: vocacionado para fomentar o mais amplo convívio, mas dispondo dos
mecanismos e do ânimo para prevenir/reprimir; 3)Mostrar que o poder queria reconhecer o Islão
moçambicano, no seu conjunto, a importância sociorreligiosa, cultural e política por ele detida,
criando estruturas de consulta permanente ou estimulando a ampliada revelação da/s que, por
ventura espontânea/s, existisse/m já. Para tanto, surgia lógico que a Administração Portuguesa,
estudando tão vultoso aspecto, requeresse a receptividade dos condutores naturais: daí abordá-los
no seu meio, de forma tão disponível e cortês quanto possível, mas também impressiva; atentas as
posteriores repercussões intestinais, as quais recortavam ou alteravam a análise de motivações e
importância dos mecanismos operada na fase de detecção. 4) No desenvolvimento do conteúdo da
determinante anterior, explorar duas idéias-força associadas entre si: o poder queria preservar a
cultura dos Muçulmanos/difundir a língua portuguesa. Ela era forma una no território de
comunicação plural; assim, seria também lógico, além de pragmático (até o desiderato, quanto à
expressão oficial, dos próprios elementos afectos à FRELIMO, a qual para tanto perfilharia, como
se sabe, o português projetasse a administração divulgar, nesta língua, textos islâmicos
fundamentais. Fernando Amaro Monteiro. “Moçambique 1964-1974: As comunidades islâmicas, o
poder e a guerra”. Africana. Centro de Estudos Africanos, Nº 5, setembro de 1989. Universidade
Portucalense: Porto, p. 83-125.
90

contraste com a visão de degeneração da religião islâmica. Nos anos 60, o


islamismo foi visto como elemento importante na formação da nação lusotropical.

No primeiro capítulo, apresentamos as reformulações políticas e jurídicas


implantadas pelo Estado Novo (1933-1974), que tinham por objetivo estabelecer
um novo vínculo entre Metrópole e colônias. Com a promulgação da nova
Constituição e do Acto Colonial de 1933, Portugal e seus domínios ultramarinos
formavam uma comunidade de solidariedade natural, em que cabia a Portugal
garantir os interesses comuns, respeitando as especificidades locais.

Naquele momento, criava-se a ideia de que Portugal era uma nação especial,
cuja missão seria levar a religião cristã e a civilização aos povos colonizados,
incorporando-os gradualmente à nação portuguesa.
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A missão de levar a religião cristã aos nativos era legitimada pelos acordos
assinados com a Igreja Católica, a partir de 1940. Essa aliança visava utilizar o
fenômeno religioso como um elemento estabilizador da sociedade, capaz de
reintegrar Portugal à sua unidade moral e, ao mesmo tempo, proteger as colônias
das possíveis ameaças trazidas pelas outras religiões.

Na década de 50, o diagnóstico de que, em Moçambique, o número das


missões católicas era extremamente menor do que as protestantes foi impactante
para o regime. Além de possuírem maior infraestrutura e mais escolas, as missões
protestantes tinham uma metodologia de ensino baseada nas línguas locais. As
escolas corânicas também existiam em maior número e tinham como base
educacional o ensino do árabe.

Aquela situação destoava da ideia de nação forte que se desejava construir


naquele momento. Todas as religiões, com exceção da católica, assumiriam o
caráter de ameaça e deveriam ser combatidas. Entre os empecilhos colocados pela
administração colonial, havia as dificuldades burocráticas na concessão de
terrenos, e os professores nativos eram constantemente escolhidos para o trabalho
91

forçado e o serviço militar. Os materiais didáticos eram destruídos e exercia-se


uma grande pressão para que as crianças frequentassem as missões católicas. 3

A presença islâmica em Moçambique e a sua grande diversidade foram os


temas tratados no segundo capítulo. Através do discurso de diferentes intelectuais
portugueses da época, apresentamos o cenário turbulento dos anos 50, período do
início do processo de descolonização na África. O temor dessa descolonização, a
partir da matriz islâmica, reafirmava-se de maneira mais intensa.

A percepção de que o islamismo se espalhava pelo mundo fazia com que os


intelectuais confirmassem o diagnóstico, feito por Fernando Amaro Monteiro, em
sua carta, de que em Portugal pouco se conhecia sobre o tema. Foi naquele
ambiente que as discussões e os estudos sobre o islamismo proliferaram na África
portuguesa, não apenas os estudos práticos realizados pelos representantes do
poder colonial, mas também os efetuados nas universidades.
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Naquele momento, existia em Portugal uma grande necessidade de fomentar


estudos sobre o mundo islâmico no país, com o intuito de conhecer melhor esse
perigo, para combatê-lo em Moçambique. Autores, como Eduardo Dias e José
Julio Gonçalves, foram os primeiros a discutir sobre a questão islâmica, buscando
objetividade, apesar de suas concepções apresentarem certo desconhecimento e
eurocentrismo.

O terceiro capítulo discutiu como o início do processo das lutas de


libertação nacional na África impulsionou Portugal para uma mudança estratégica
de postura, a de formar alianças com as populações islamizadas. Isto aconteceu
não apenas em Moçambique, mas também na Guiné Bissau. Houve uma inversão
do discurso, e os muçulmanos, que representavam uma ameaça ao projeto da
nação portuguesa, tornaram-se parte integrante dela.

No entanto, cabe ressaltar que essa aproximação foi direcionada a um


determinado ramo do Islã, o das confrarias, apesar de que o discurso oficial
promovido fosse extensivo a todos os muçulmanos da província. Essa

3
José Luis Cabaço. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora
UNESP, 2009, p. 214.
92

aproximação foi estrategicamente pensada, pois era um importante instrumento de


contenção do avanço da FRELIMO na região norte do país.

A política de cooptação dos muçulmanos das irmandades contou com a


criação de órgãos para estudos e do controle rígido dessas populações e a difusão
de uma retórica de que Portugal constituía um império lusotropical, capaz de se
adaptar e assimilar o melhor de todas as culturas.

Se antes o caráter transnacional do Islã era fator de desconfiança e temor,


nos anos 60 transformou-se em uma qualidade, da qual os portugueses se
apresentaram como herdeiros. Assim como a capacidade assimiladora da religião
muçulmana, o amplo aspecto da nacionalidade portuguesa se transformaria em
característica positiva.

Em termos práticos, essa política se desdobrou em privilégios para essas


populações, como o financiamento de peregrinações a Meca, as distribuições de
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donativos, a construção e as reformas de mesquitas, a presença de representantes


portugueses em festividades muçulmanas, etc. No entanto, essa política de
aproximação perdeu sua força, à medida que a guerra colonial se prolongou e o
regime se mostrava cada vez mais desgastado.

O breve estudo apresentado nesta dissertação foi apenas um primeiro


esforço de iniciação em um tema que deverá ser ampliado em pesquisas
posteriores. Há plena consciência de que o trabalho deixa várias lacunas a respeito
da especificidade desses grupos, que, aqui, são tratados genericamente, como
irmandades ou confrarias. É fundamental o estudo de suas práticas e de como cada
uma delas negociava com o poder instituído. No entanto, a documentação e o
tempo disponível, neste momento, não permitiram esse tipo de análise mais
aprofundada, ficando a questão para um próximo projeto.
6
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Anexos

Censo 20071 - Províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa. Distribuição da


população por religião, segundo sexo.

PROVÍNCIA DE NAMPULA
Zione/ Evangélica/ Sem
Sexo Católica Anglicana Islâmica Sião Pentecostal religião Outra Desconhecida
Total 1.554.733 19.792 1.495.792 59.757 189.896 559.588 79.906 25.821
Homens 764.277 9.705 725.489 29.329 93.067 292.856 40.281 11.718
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Mulheres 790.456 10.087 770.303 30.428 96.829 266.732 39.625 14.103

PROVÍNCIA DE CABO
DELGADO
Zione/ Evangélica/ Sem
Sexo Católica Anglicana Islâmica Sião Pentecostal religião Outra Desconhecida
Total 578.798 5.881 864.388 4.803 17.711 121.662 4.439 7.967
Homens 275.220 2.890 416.829 2.425 9.027 64.622 2.340 3.978
Mulheres 303.578 2.991 447.559 2.378 8.684 57.040 2.099 3.989

PROVÍNCIA DE NIASSA
Zione/ Evangélica/ Sem
Sexo Católica Anglicana Islâmica Sião Pentecostal religião Outra Desconhecida
Total 304.552 47.331 711.302 30.987 42.571 10.985 16.555 5.065
Homens 152.283 22.747 345.761 15.091 21.201 6.390 8.590 2.529
Mulheres 152269 24584 365541 15896 21370 4595 7965 2536

1
Retirado de http://www.ine.gov.mz/censo2007 acessado em 23 de junho de 2010
100

Mapa de Moçambique – Divisão por províncias e capitais (Número 1


– Região Norte, Número 2 – Região Central e Número 3 – Região Sul
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