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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LIVE FRANÇA DE CARVALHO

AS CAPELAS DO RECÔNCAVO DA GUANABARA E SEUS USOS RITUAIS NO


SÉCULO XVIII

Rio de Janeiro

Maio/2013.
Live França de Carvalho

AS CAPELAS DO RECÔNCAVO DA GUANABARA E SEUS USOS RITUAIS NO


SÉCULO XVIII

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em História Social, Instituto de
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito à obtenção do título de Mestre em
História Social.

Orientadora: Beatriz Catão Cruz Santos.

Rio de Janeiro
2013
C331 Carvalho, Live França de
As capelas do recôncavo da Guanabara e seus usos rituais no século
XVIII, 2013.
122 f.
Orientador: Beatriz Catão Cruz Santos
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em História Social, Rio de Janeiro, 2013.
1. Capelas – Rio de Janeiro (RJ). 2. Catolicismo. I. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História. II.
Título.

CDD 262.72
Live França de Carvalho

AS CAPELAS DO RECÔNCAVO DA GUANABARA E SEUS USOS RITUAIS NO


SÉCULO XVIII

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em História Social, Instituto de
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito à obtenção do título de Mestre em
História Social.

Orientadora: Beatriz Catão Cruz Santos.

Aprovada em: 16/05/2013

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Beatriz Catão Cruz Santos
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

________________________________________________________________
Prof.º Dr.º Anderson José Machado de Oliveira
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

________________________________________________________________
Prof.º Dr.º Francisco José Silva Gomes
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha mãe, Jaciara e ao meu


companheiro, Denis, pela paciência, amor e apoio
oferecidos a mim em todos os momentos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a CAPES, pelo auxílio financeiro concedido para a realização


desta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, pela possibilidade de aprofundamento acadêmico.

À minha orientadora, Beatriz Catão, pelo comprometimento e pela


dedicação demonstrados durante a realização deste trabalho. Agradeço as
sugestões e as correções atenciosas. Sobretudo, sou grata pelo seu incentivo e
contribuição, desde a graduação, para a minha formação como pesquisadora.

Aos professores Anderson de Oliveira e Francisco José Gomes, por


aceitarem o convite para compor a banca examinadora desta dissertação e,
também, pelas críticas e sugestões pertinentes, oferecidas no exame de
qualificação que foram essenciais para a reformulação desta dissertação.

Aos professores Luciana Gandelman e William Martins, pelas reflexões


sugeridas em congressos ou reuniões, que contribuíram para o aprimoramento
desta dissertação.

Ao laboratório “Sacralidades” pelas ricas discussões realizadas sobre


assuntos que permitiram repensar não apenas o meu trabalho, mas o meu papel
como historiadora.

Aos professores do PPGHIS da Universidade Federal do Rio de Janeiro,


pelas questões levantadas e discutidas nas aulas e, também, aos professores do
curso de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus
Nova Iguaçu, pela formação oferecida e pelo incentivo para ingressar no
Mestrado.

À minha mãe, irmãos e familiares, pelo carinho e por respeitarem e


entenderem a minha escolha profissional e os momentos em que precisei me
dedicar a este trabalho.

Ao meu companheiro amigo, Denis, e aos demais amigos, pelo apoio e


pelas boas risadas que me proporcionaram tanto nos bons momentos, quanto nos
de desânimo.
RESUMO

FRANÇA, Live. As capelas do Recôncavo da Guanabara e seus usos rituais no


século XVIII. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de História,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Esta dissertação tem como objetivo reconstruir a história das capelas do


Recôncavo da Guanabara no século XVIII. A partir da documentação
eclesiástica sobre a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, pretende-se
demonstrar a inserção da região no império português pelo Catolicismo e
identificar as funções das capelas. Por fim, discute-se os rituais de batismo,
casamento e morte, realizados nesses espaços religiosos. A edificação de capelas
demonstra a intenção das autoridades religiosas e dos leigos de manter uma
referência católica na região. Os bispos baseavam-se nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia para observar as condições e os rituais
desenvolvidos nas capelas. Estes agentes utilizaram as visitas pastorais para
expressar o seu julgamento sobre as capelas. Os leigos participavam dos rituais
católicos e se reconheciam como membros da cristandade. Alguns, mais
“privilegiados”, possuíam capelas particulares em suas casas e pretendiam
alcançar benefícios político-religiosos, o que demonstra a adaptação do
Catolicismo à realidade escravista.

Palavras-chave: capelas, rituais, Catolicismo, Recôncavo da Guanabara.


FRANÇA, Live. The chapels of the Recôncavo da Guanabara and their ritual
uses in the eighteenth century. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

ABSTRACT

This dissertation aims to remake the history of the Recôncavo da


Guanabara‟s chapels in the eighteenth century. Using ecclesiastical
documentation from Santo Antônio de Jacutinga, we intend to demonstrate the
integration of the region to the Portuguese empire by Catholicism, identify the
functions of the chapels and discuss the rituals of baptism, marriage and death,
made in these religious spaces. The erection of chapels demonstrates the
intention of the religious and the laity to keep a Catholic reference on the region.
The bishops used the Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia to
observe the conditions and the rituals developed in these chapels. These agents
used pastoral visitations to express their judgment about the chapels. The laity
participated to the Catholic rituals and recognized each other as members of the
Christianity. Some people, with more privileges, had private chapels in their
homes and wanted to achieve political and religious benefits, which shows the
adaptation of Catholicism to the reality of slavery.

Keywords: chapels, rituals, Catholicism, Recôncavo da Guanabara.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 9
1 CATOLICISMO EM SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA ........................................................ 15
1.1 A REGIÃO DO RECÔNCAVO DA GUANABARA ................................................................................... 15
1.1.1 O surgimento do Catolicismo no Recôncavo da Guanabara.................................................. 17
1.2 A ADAPTAÇÃO DA NORMA EM SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA: AS CAPELAS DO SÉCULO XVIII .... 20
1.2.1 As visitas pastorais ................................................................................................................. 33
1.2.1.1. “As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794”.......................................... 33
1.2.1.2. As visitas nos registros paroquiais de Santo Antônio de Jacutinga ................................... 40
2 AS CAPELAS DE SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA ............................................................. 50
2.1 PÚBLICO E PRIVADO NOS ESPAÇOS RELIGIOSOS DE SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA ....................... 50
2.2 BREVES APOSTÓLICOS: OS “ITENS JUSTIFICATIVOS” PARA A OBTENÇÃO DO BENEFÍCIO RELIGIOSO .. 60
2.2.1 Comprovar a identidade dos solicitantes ............................................................................... 60
2.2.2 Comprovar a nobreza dos solicitantes ................................................................................... 62
2.2.3 Comprovar a decência da capela ........................................................................................... 68
2.2.4 A permissão do benefício religioso ......................................................................................... 74
2.3 A DINÂMICA DO CATOLICISMO VIA BREVES APOSTÓLICOS: AS RELAÇÕES SOCIAIS NAS CAPELAS DE
SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA............................................................................................................. 76
3 OS USOS RITUAIS DAS CAPELAS DE SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA ....................... 79
3.1 BATISMO .......................................................................................................................................... 82
3.2 CASAMENTO .................................................................................................................................... 89
3.3 A MORTE .......................................................................................................................................... 96
3.3.1 A morte católica...................................................................................................................... 97
3.3.2 A “boa morte” em Santo Antônio de Jacutinga ................................................................... 102
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 117
INTRODUÇÃO

Há alguns anos, o Recôncavo da Guanabara, hoje parte da Baixada Fluminense,


era pouco explorado pela historiografia. Mesmo sendo parte integrante do Rio de
Janeiro, pouco se sabia da região, além das informações coletadas pelos memorialistas.
Em 2008, ainda na graduação em História, na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, campus de Nova Iguaçu, iniciamos um trabalho de pesquisa que se dedicou às
práticas religiosas do Rio de Janeiro no século XVIII. Surgiu o interesse em estudar a
existência dessas práticas, no Recôncavo da Guanabara, para contribuir, de alguma
forma, com a reconstrução da história da região. Neste mesmo período, outros
historiadores, como Denise Demetrio e Nielson Bezerra1, já desenvolviam pesquisas
voltadas para a escravidão, que enfatizavam, dentre outros aspectos, a inserção da
região na economia colonial. Dadas a importância do Recôncavo para o abastecimento
da cidade do Rio de Janeiro e a existência das relações comerciais com outros territórios
do Império português, mostrou-se viável propor uma análise da região pelo viés
cultural. A sua toponímia foi baseada em denominações de santos católicos, o que
reafirmou o nosso interesse em investigar as possíveis presença e influência católicas no
Recôncavo da Guanabara colonial.

No início houve certa dificuldade para localizar as fontes sobre a região, por se
tratar de um tema relativamente recente. A maioria das pesquisas desenvolvidas referia-
se aos séculos XIX e XX. Acreditava-se, inclusive, na inexistência de documentos que
fornecessem informações dos séculos anteriores. No mesmo período, a Cúria Diocesana
de Nova Iguaçu havia acabado de ser transferida para um novo local, o que dificultou a
localização de sua documentação. O primeiro contato que tivemos com os documentos
do Recôncavo da Guanabara setecentista se deu na Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro. Neste arquivo foi possível encontrar breves apostólicos de suas freguesias. A
monografia, apresentada ao final da graduação, dedicou-se à inserção da região no
Império português pelas práticas religiosas, discutindo a relação entre santos e devotos
que se criava por meio destas práticas. Durante esta pesquisa, foi possível refletir sobre

1
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara - séculos XVII e XVIII.
Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro. UFF, 2008; SOARES, Mariza de Carvalho;
BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-XIX). Rio de
Janeiro. Eduff, 2011.
10

a importância das capelas que, muitas vezes, davam nome as freguesias do Recôncavo
da Guanabara.

Esta dissertação pretende dar continuidade ao trabalho iniciado anteriormente,


com a intenção de demonstrar a importância das capelas, não apenas para a formação do
Recôncavo da Guanabara, mas, sobretudo, para a sua organização social no século
XVIII. O documento utilizado como “ponto de partida” para esta pesquisa é o livro que
reúne as Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794. Nele, é possível ter
acesso a informações sobre os espaços religiosos do Recôncavo da Guanabara visitados
pelo cônego. Encontramos fontes paroquiais sobre a região na Cúria Diocesana de Nova
Iguaçu e na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Selecionamos e optamos por
trabalhar com os documentos referentes à freguesia de Santo Antônio de Jacutinga no
século XVIII2. Segundo Monsenhor Pizarro, esta parte do Recôncavo já era reconhecida
como freguesia em meados do século XVII. O seu primeiro livro de registros
paroquiais, disponível para consulta, foi datado em 1686, o que sugere a sua
antiguidade. Considerando o prazo de dois anos para a realização da pesquisa de
Mestrado, foi necessário limitar a análise a uma das freguesias para que fosse possível
trabalhar com as fontes de maneira qualitativa.

Além das Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro, utilizamos as Constituições


Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, pois o documento reúne as normas para a
edificação de capelas e para a realização dos rituais católicos na América portuguesa.
Relacionamos as disposições do documento às práticas católicas que ocorriam no
Recôncavo da Guanabara, de modo a identificar a aplicação e a adaptação da norma
católica nesta região. Neste sentido, mostrou-se importante considerar os estudos
presentes no livro “A Igreja no Brasil”, organizado por Bruno Fleiter e Evergton Sales
Souza. A obra apresenta discussões sobre a criação e as possíveis aplicações das normas
dispostas pelas Constituições na América portuguesa. Segundo os autores
organizadores, numa época em que o religioso ainda ocupava uma posição relevante na

2
Faziam parte do território do Recôncavo da Guanabara as freguesias de São João de Trairaponga Santo
Antônio de Jacutinga, Nossa Senhora da Piedade de Magé, São Nicolau do Suruí, Nossa Senhora da
Piedade de Inhomirim, Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora da Guia de Pacobaíba, Nossa Senhora da
Conceição de Marapicu e Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu. Foram encontrados documentos sobre as
freguesias de Santo Antônio de Jacutinga, Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, Nossa Senhora do Pilar
do Iguaçu e Nossa Senhora da Conceição de Marapicu.
2
DEMETRIO, Denise Vieira. “A família escrava em Jacutinga, 1686-1721”. In: SOARES, Mariza de
Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011. p.27
11

sociedade, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia têm “grande valor para


a compreensão da Igreja católica e do Catolicismo no Brasil”, mas não se sustentam
isoladas, devendo ser combinadas a outros tipos de fontes, no intuito de cotejar a regra
com a prática.3

Com este objetivo de refletir sobre “regra e prática” selecionamos, para a


história do Recôncavo da Guanabara, breves apostólicos e registros de batismo,
matrimônio e óbito de Santo Antônio de Jacutinga, relativos ao século XVIII. Nos
breves apostólicos, é possível obter informações sobre as capelas de uso particular, que
eram concedidas a alguns habitantes. Nesta documentação, pode-se identificar as
relações sociais que foram criadas e mantidas a partir da aprovação do benefício
religioso. Já nos livros de assentos paroquiais, é possível ter acesso aos principais rituais
desenvolvidos nas capelas e refletir sobre a sua importância no cotidiano do Recôncavo
da Guanabara setecentista. Temos consciência das limitações impostas pela utilização
de fontes eclesiásticas para o estudo das práticas cotidianas. As fontes analisadas, assim
como quaisquer outras, podem ter sofrido influências das relações políticas e sociais do
meio em que foram produzidas e dos agentes inseridos neste meio. Porém, tais
influências podem contribuir para o estudo pretendido, visto que possibilitam reflexões
sobre o cenário colonial vivenciado pelos agentes históricos. A utilização de fontes
eclesiásticas, sobre a região, demonstra a riqueza de informações que podem ser obtidas
de análises diversas de historiadores que se debruçam, muitas vezes, sobre o mesmo
documento. A combinação de diferentes fontes eclesiásticas torna possível investigar e
observar a história das sociedades católicas, tal como foi a do Recôncavo da Guanabara,
no século XVIII.

Sugere-se que, a partir da história das capelas de Santo Antônio de Jacutinga,


seja possível oferecer informações sobre as relações sociais que constituíram parte da
história do Recôncavo da Guanabara colonial. Com isso, espera-se contribuir para a
historiografia, considerando a originalidade do tema.

Neste trabalho, pretende-se identificar a inserção do Recôncavo da Guanabara


no Império português por intermédio do Catolicismo, discutir as funções das capelas e
investigar os interesses das autoridades eclesiásticas e dos leigos na realização de rituais

3
FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a
Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011.
12

nos espaços religiosos. Esta dissertação compõe-se de três capítulos, cujos objetivos
indicaremos a seguir.

O primeiro capítulo, intitulado “Catolicismo em Santo Antônio de Jacutinga”,


pretende demonstrar a inserção do Recôncavo da Guanabara no Império português por
intermédio da religião católica. As capelas ou “igrejinhas”, segundo Fernando Londoño,
expressavam a fé dos colonos, que erguiam os espaços religiosos logo que se
estabeleciam no território recém-conquistado4. Discutiremos a formação da região
marcada pelo Catolicismo a partir desse interesse dos moradores em construir espaços
religiosos e pela ocupação dos beneditinos no século XVII. A partir desta análise,
acredita-se que seja possível demonstrar as mudanças sofridas no quadro social da
região durante o século XVIII, com a tentativa de adequar a construção de capelas às
disposições das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Além das famosas
Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794, localizamos outras visitas
apensas aos registros paroquiais. Estas visitas, realizadas pelos bispos ou por enviados
seus, demonstram a intenção de organizar a estrutura das capelas, os rituais
desenvolvidos e, até mesmo, o comportamento dos párocos de Santo Antônio de
Jacutinga.

O segundo capítulo, “As capelas de Santo Antônio de Jacutinga”, foi dedicado à


análise das capelas, por meio dos breves apostólicos da região. O único espaço religioso
referido na documentação como igreja foi a paróquia de Santo Antônio de Jacutinga, os
demais foram mencionados como capelas. Raphael Bluteau definiu capela como um
altar “encerrado entre paredes próprias5”. Em Santo Antônio de Jacutinga, além da
paróquia, que por esta definição também pode ser compreendida como uma capela,
havia outros espaços religiosos, preparados nas propriedades de alguns paroquianos,
chamados de oratórios privados ou mencionados nos documentos como capelas de
engenho.

4
LONDOÑO, Fernando Torres (Org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997.
5
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p.280. Disponível em:
<http://www.ieb.usp.br>. Último acesso: 15/11/2012.
13

Para analisar os breves apostólicos nos baseamos no trabalho de Sérgio Chahon


sobre as missas e a vivência religiosa no Rio de Janeiro colonial 6. A partir da análise do
autor é possível refletir sobre a riqueza de informações que podem ser extraídas dessa
documentação, ainda pouco utilizada pelos historiadores.

A partir desta análise discutimos as funções das capelas de Santo Antônio de


Jacutinga, as motivações dos leigos ao solicitar capelas particulares, os pré-requisitos
necessários para esta utilização “doméstica” e a aprovação dessas solicitações pelas
autoridades eclesiásticas.

O terceiro e último capítulo, “Os usos rituais das capelas de Santo Antônio de
Jacutinga”, está voltado para alguns dos rituais desenvolvidos nestas capelas,
principalmente na igreja paroquial de Santo Antônio. Analisamos os rituais de batismo,
matrimônio e morte, referidos nos registros paroquiais da freguesia. Pretende-se, neste
capítulo, identificar os significados desses rituais para os agentes eclesiásticos e para os
leigos a partir da análise desses registros.

Conforme observou Maria Luiza Marcílio, a análise de registros paroquiais é


indispensável “à reconstrução da história social e cultural das populações católicas”7.
Na ausência de registros civis, os assentos paroquiais cumpriam este papel,
documentando os principais marcos das vidas dos paroquianos. A partir dos dados
coletados nesta documentação, acreditamos que seja possível discutir a importância do
dos rituais para os leigos, que se reconheciam como católicos, e para os clérigos
responsáveis pela salvação das almas dos fiéis.

6
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
7
MARCILIO, Maria Luiza. “Os registros paroquiais e a História do Brasil”. In: Varia Historia, 2004.
1 CATOLICISMO EM SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA

1.1 A REGIÃO DO RECÔNCAVO DA GUANABARA

Nos últimos anos, as pesquisas sobre o Recôncavo da Guanabara, hoje Baixada


Fluminense, têm aumentado significativamente. Além dos trabalhos dos memorialistas,
que devem ser considerados pelo pioneirismo nos estudos sobre a região, a maioria das
pesquisas acadêmicas desenvolvidas, sobretudo pelos programas de Pós-Graduação do
Rio de Janeiro, tem priorizado os aspectos políticos e econômicos do Recôncavo a partir
de sua inserção nas rotas comerciais1.

Segundo Denise Demetrio, o caminho do ouro em Minas Gerais inseriu o


Recôncavo da Guanabara nas rotas comerciais, pois a região encontrava-se
geograficamente bem localizada, cercada por rios que facilitavam a circulação de
mercadorias entre Minas Gerais e Rio de Janeiro2. A autora identificou a formação de
famílias escravas nos engenhos da região, a partir do século XVII, por meio das
estatísticas realizadas pelos mestres de campo a pedido do Marquês de Lavradio3 e,
sobretudo, da análise de registros de batismo e matrimônio.

Trabalhos como o de Denise Demetrio contribuem para que seja possível


compreender a importância social do Recôncavo da Guanabara no período colonial. Se
hoje a região ainda carrega o estigma de periferia, recebido em meados do século XX4,
os trabalhos já desenvolvidos sobre o Recôncavo demonstram que esta associação não
corresponde aos séculos anteriores.

Mariza de Carvalho Soares e Nielson Rosa Bezerra reuniram diversos artigos


que identificaram e discutiram a escravidão africana no Recôncavo da Guanabara nos
1
Cf. SOARES, Mariza de Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da
Guanabara (séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011; PERES, Guilherme. Baixada Fluminense:
os caminhos do ouro. Duque de Caxias: Gráfica Register,1993; DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias
escravas no Recôncavo da Guanabara - séculos XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História). Rio de
Janeiro. UFF, 2008.
2
Segundo Denise Demetrio, a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga contava com os rios Cachoeira de
Santo Antônio do Mato, D‟ouro e Riachão que despejavam águas nos rios Iguaçu, Sarapuí e Meriti,
formando “importantes vias de transporte e comunicação que cortavam o território de jacutinga.”
DEMETRIO, Denise Vieira. “A família escrava em Jacutinga, 1686-1721”. In: SOARES, Mariza de
Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011 p.26-27.
3
LAVRADIO, Marquês do. Estatística realizada pelo Governo do Marquês de Lavradio, entre 1769-79.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. São Paulo, t.76, parte 1, p.289-360, 1913.
4
Sobre as transformações que levaram à construção da imagem da Baixada Fluminense como periferia,
muitas vezes relacionada à criminalidade ler: GAMARSKI, Elen Araújo de Barcellos; QUEIROZ,
Edileuza Dias de. “Baixada Fluminense: entre o passado e o futuro”. Disponível em:
<http://www.nilsonfraga.com.br/anais/QUEIROZ_Edileuza_Dias_de.pdf.> Último acesso em 26 de junho
de 2012.
16

séculos XVII, XVIII e XIX. Os autores chamaram atenção para a diversidade das
relações estabelecidas entre o Recôncavo e outras partes do império português e se
opuseram à concepção de região como um espaço isolado, determinado tão somente por
limites administrativos.5

Embora pareça distinto, o termo “complexo conjunto”, adotado pelos autores, é


semelhante à definição de região formulada por Ilmar Mattos. Para o autor, a noção de
região supera os limites administrativos e a mera distribuição de seus habitantes em um
determinado território. Ainda que a delimitação de uma região dependa de “base
territorial”, ela apenas pode ser formada a partir das relações sociais entre os agentes
que a compõem e aqueles que a ocupam, ou seja, a partir de relações internas e externas.
Nesta concepção, uma região distingue-se por ser um espaço socialmente construído,
dinâmico, com uma localização temporal que não se diferencia “por sua localização
meramente cronológica, e sim como um determinado tempo histórico, o tempo da
relação colonial.”6 Portanto, além da sua localização geográfica, uma região é formada
por “um conjunto de valores socialmente aceitos e partilhados pelos seus agentes, que
conferem a ela uma identidade própria”.7

Considerando o Recôncavo da Guanabara um espaço socialmente construído


pretende-se, neste capítulo, demonstrar a sua inserção no império português por
intermédio da religião católica. O Recôncavo formou-se a partir de suas relações
sociais, marcadas pelo Catolicismo, criado e adaptado pela população local e pela
intervenção de autoridades eclesiásticas. A toponímia do Recôncavo, baseada em nomes
de santos e invocações da Virgem Maria8, é uma das evidências da influência católica

5
SOARES, Mariza de Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da
Guanabara (séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011. p. 15.
6
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: A formação do Estado imperial. São Paulo. Hucitec,
2004. p.34-36.
7
VISCARDI, C. M. R. “História, região e poder: a busca de interfaces metodológicas”. Lócus: revista de
História, 1997, v 3, n 1.
8
Com base nas informações de Monsenhor Pizarro, Nielson Rosa Bezerra afirmou que faziam parte do
território do Recôncavo da Guanabara as freguesias de São João de Trairaponga (1647), Santo Antônio da
Jacutinga (1657), Nossa Senhora da Piedade de Magé (1657), São Nicolau do Suruí (1683), Nossa
Senhora da Piedade de Inhomirim (1696), Nossa Senhora do Pilar (1717), Nossa Senhora da Guia de
Pacobaíba (1722), Nossa Senhora da Conceição de Marapicu (1737) e Nossa Senhora da Piedade do
Iguaçu (1759). BEZERRA, Nielson Rosa. “Escravidão, farinha e tráfico atlântico: um novo olhar sobre
as relações entre o Rio de Janeiro e Benguela ( 1790-1830)”. In: Fundação Biblioteca Nacional – MinC,
2010. Disponível em <http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/Nielson_Bezerra.pdf>. Último acesso em
novembro/2012. Disponíveis para análise, encontramos apenas documentos referentes às freguesias de
Santo Antônio de Jacutinga, Nossa Senhora do Pilar do Iguaçu, Nossa Senhora da Conceição de Marapicu
e Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu. Todas as freguesias, portanto, tinham denominações católicas.
17

em sua formação. A formação da região foi marcada pelo Catolicismo, principalmente,


por meio da edificação de templos religiosos e de eventuais fiscalizações sobre os
rituais desenvolvidos nos seus interiores e nos seus arredores.

Considerando o tempo disponível para a conclusão da pesquisa de Mestrado, foi


necessário focalizar em uma das freguesias do Recôncavo da Guanabara, dada a
impossibilidade de analisar todos os registros paroquiais. Trabalhamos com a freguesia
de Santo Antônio de Jacutinga, considerando que, dentre os documentos disponíveis
para análise, a freguesia apresenta os documentos mais antigos e bem conservados.

Santo Antônio de Jacutinga foi o núcleo originário dos territórios de partes


dos atuais municípios de Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti,
Duque de Caxias, Nilópolis e Mesquita, hoje integrantes da Baixada
Fluminense.9
Dedicada a Santo Antônio10, Jacutinga diferenciou-se das demais freguesias com
invocação mariana, sendo “a única a incorporar o nome de uma aldeia indígena ao seu
orago.”11 Com base nas Cartas do padre José de Anchieta (1584), Denise Demetrio
afirmou que no mesmo período, monges beneditinos realizaram um trabalho de
catequização dos chamados índios jacutingas às margens do rio Iguaçu.

1.1.1 O surgimento do Catolicismo no Recôncavo da Guanabara


Com base em documentos do arquivo do Mosteiro de São Bento, Dom Clemente
Maria da Silva Nigra afirmou que a região do Recôncavo da Guanabara, ao redor do rio
Iguaçu, foi o primeiro território ocupado pelos beneditinos na América portuguesa.

9
DEMETRIO, Denise Vieira. “A família escrava em Jacutinga, 1686-1721”. In: SOARES, Mariza de
Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011. p.27.
10
Segundo Ronaldo Vainfas, Santo Antônio ficou conhecido, principalmente, por duas virtudes. A
primeira estava relacionada ao poder taumatúrgico do santo, que teve em sua hagiografia o
reconhecimento de mais de 50 milagres. Segundo o autor, tal virtude contribuiu para a sua eleição, como
santo doméstico e cotidiano no mundo moderno. A outra virtude relacionava-se ao combate às “heresias”,
que foi essencial para a divulgação portuguesa de sua imagem na luta contra os holandeses calvinistas na
América portuguesa. Em sua hagiografia destaca-se o “imenso poder de recuperar coisas perdidas”. Santo
Antônio foi também o intercessor entre os homens e Deus que mais “emprestou o seu nome à toponímia
brasileira”. Acredita-se que a escolha do santo para nomear a freguesia de Jacutinga estivesse relacionada
ao interesse de converter a população indígena e, posteriormente, africana ao Catolicismo. Tal escolha
deu início à transformação do Recôncavo da Guanabara em um território católico. VAINFAS, Ronaldo.
“Santo Antônio na América Portuguesa: religiosidade e política”. In: Revista USP. São Paulo, n.57, p. 28-
37.
11
DEMETRIO, Denise Vieira. “A família escrava em Jacutinga, 1686-1721”. In: SOARES, Mariza de
Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro. Eduff, 2011.p.26.
18

Segundo José de Anchieta “sete ou oito frades brancos franceses [...] mandados
por Villegaignon, em 1560 ou 1561, fizeram entre os tamoios o seu estabelecimento e
ensinaram a alguns meninos do gentio, os quais traziam vestidos com seu hábito.”12 Os
primeiros relatos sobre o Recôncavo da Guanabara, portanto, demonstram a presença da
Ordem de São Bento na região.

Jorge Victor de Araújo Souza afirmou que, ao final do século XVI, os monges
de São Bento chegaram à América portuguesa “graças a uma reforma ocorrida em sua
Congregação e a deliberações na política filipina que visavam ao reequilíbrio dos
poderes eclesiásticos nos territórios do império português.”13 Este reequilíbrio dos
poderes eclesiásticos favoreceu o cumprimento da dimensão social do Catolicismo, que
aliava a intenção da Igreja de inserir-se em laços profanos à formação territorial. As
ordens religiosas possibilitaram a articulação entre a disseminação da fé católica e a
formação do império português, congregando o objetivo universalista14 do Catolicismo
à necessidade de adaptação da Igreja ao cenário colonial.

Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, a Ordem de São Bento no Rio de


Janeiro destacou-se mais pelas suas posses e pelo seu poder local do que por práticas
missionárias ou por atividades ao serviço do Rei. Por este motivo, a Ordem foi uma das
menos beneficiadas pela Coroa portuguesa, dedicando-se prioritariamente aos
moradores.15 Além da catequização indígena às margens do rio Iguaçu, logo que se
estabeleceram na região, os beneditinos associaram-se à elite colonial16. Nos

12
NIGRA, Dom Clemente Maria da Silva. "A antiga fazenda de São Bento em Iguaçu".
Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº7, Rio de janeiro,
1943. p. 257.
13
SOUZA, Jorge Victor de Araújo. “Poder local entre ora et labora: a casa beneditina nas tramas do Rio
de Janeiro seiscentista”. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Rio de Janeiro, v. 32,
2012.p. 70.
14
Segundo Luiz Felipe Baêta Neves, o objetivo de universalidade do catolicismo envolvia integração e
unidade. Desta forma, para que a expansão ocidental fosse possível, eram necessárias as incorporações
territorial e espiritual, no intuito de alterar os territórios profanos e reencontrar as regiões afastadas física
e espiritualmente do projeto de Deus. NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na
terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1978.p..27.
15
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. "Evangelizar e Reinar: poder e relações sociais na prática
missionária do Rio de Janeiro colonial."In: Caminhos, vol. 4, no. 1, 2006.p.118.
16
Segundo João Fragoso, a Coroa, a partir da conquista de Ceuta, concedia postos administrativos ou
militares aos conquistadores. Desta forma, no Rio de Janeiro, a economia de plantations, típica do século
XVII, contribuiria para uma diferenciação das oportunidades econômicas dos coloniais. Detinham
maiores poderes locais aqueles que pertencessem “às melhores famílias da terra”, ou seja, aqueles que se
destacavam pelas suas posses, que incluíam fazendas e escravos. Essa elite senhorial e seus descendentes
carregavam um sentimento de conquistadores que os enquadrava numa posição econômica e socialmente
superior ao restante da população. Ao final do século XVIII, tornou-se comum, por meio do comércio,
19

documentos paroquiais do século XVIII foi comum encontrar registros referentes aos
batizados de escravos pertencentes aos religiosos de São Bento.

Dom Clemente Maria da Silva Nigra afirmou que “quase todo o terreno doado
pelas sesmarias de 5 de setembro de 1565 e de 16 de outubro de 1567 à Cristóvão
Monteiro passou a ser propriedade do mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro”.17

Segundo Jorge Victor de Araújo Souza

em 1591, Jorge Ferreira doou aos beneditinos uma ilha no rio Iguaçu e mais
300 braças sertão adentro. Sua filha, a marquesa Ferreira, esposa de
Cristóvão Monteiro, ouvidor da cidade entre 1568 e 1572, cavaleiro fidalgo
da Casa Real e também um dos conquistadores do Rio de Janeiro, doou, em
1596, meia légua de terras em Iguaçu com fazenda, roças, pomares e casas de
telhas.18
No primeiro momento, é possível identificar um interesse por parte da elite local
de contribuir para a permanência dos beneditinos na região. Portugueses, ou
descendentes seus, os senhores do Recôncavo identificavam-se com o Catolicismo19 e
manter os religiosos por perto era uma forma de não perder o vínculo com a religião. A
partir do século XVII, os beneditinos deixavam de depender destas doações e passavam
a compor parte significativa da elite da região. Neste período, o primeiro engenho da
Ordem, situado no Recôncavo da Guanabara, tornou-se a principal posse dos
beneditinos. Donos de escravos, os beneditinos transformaram-se em “senhores de
engenho”, desenvolvendo atividades econômicas diversas do objetivo missionário, mas
que garantiam a autonomia da Ordem em relação ao Padroado. Esta autonomia,
conquistada pelos beneditinos, não diminuiu o seu papel no desenvolvimento do

que alguns colonos se transformassem em donos de engenho. FRAGOSO, João. “A nobreza da


República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”.
In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ, vol. 1, 2000.
17
NIGRA, Dom Clemente Maria da Silva. "A antiga fazenda de São Bento em Iguaçu". Revista do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.7, Rio de janeiro, 1943. p.258.
18
SOUZA, Jorge Victor de Araújo. “Poder local entre ora et labora: a casa beneditina nas tramas do Rio
de Janeiro seiscentista”. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Rio de Janeiro, v. 32,
2012.p.72.
19
Ana Cristina Nogueira da Silva e Antônio Manuel Hespanha consideraram três principais identidades, a
católica, a europeia e a hispânica, que influenciaram e formaram a identidade portuguesa. Para os autores,
a identidade da respublica christiana era a mais importante dentre as três. “Uma identidade que se
manifestava positivamente no sentido da unidade da república dos crentes, quotidianamente veiculada na
liturgia, na pregação, na organização eclesial ou, mesmo, na ordem processual canônica, pois de todo o
orbe católico se podia apelar ao Papa.” Como característica negativa, este sentimento de identidade
causava um estranhamento a tudo que fosse diferente da comunidade católica. Por ter sido o primeiro
Reino de Espanha a converter-se ao cristianismo, os portugueses acreditavam ter a missão de “combater
os infiéis e dilatar a fé de Cristo”. HESPANHA, Antônio Manuel; SILVA, Ana Cristina Nogueira. “A
identidade portuguesa”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807).
Editorial Estampa, 1998.
20

Catolicismo na região, pelo contrário, já que havia na fazenda da Ordem uma capela
erguida à Nossa Senhora do Rosário, que realizava batismos e sepultamentos, com a
devida licença do pároco da região.20

Neste capítulo, demonstramos, justamente, o período posterior à ocupação


beneditina no Recôncavo da Guanabara. Embora no século XVIII, os religiosos ainda
estivessem presentes na região, os maiores esforços para promover a “manutenção” do
Catolicismo neste período partiram dos bispos. Por meio das visitas pastorais, esses
agentes eclesiásticos, ou enviados seus, pretendiam adequar os templos religiosos às
disposições tridentinas, adaptadas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia.

1.2 A ADAPTAÇÃO DA NORMA EM SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA: AS


CAPELAS DO SÉCULO XVIII

Conforme foi observado anteriormente, a contribuição dos leigos, membros da


elite, no que se refere ao estabelecimento dos beneditinos no Recôncavo da Guanabara
foi essencial nos séculos XVI e em parte do XVII. No século XVIII, o quadro religioso
de Santo Antônio de Jacutinga sofreu uma mudança condicionada pelos instrumentos
normativos da Igreja. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que
assumiram o papel de articular as disposições do Concílio Tridentino à realidade da
América portuguesa, e as visitas pastorais foram essenciais para a manutenção da
presença católica em Santo Antônio de Jacutinga no século XVIII.

Nas Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro e nos registros paroquiais de Santo


Antônio de Jacutinga apenas o templo principal, que representava a freguesia, recebia o
nome de igreja ou paróquia. Os demais templos católicos, nos arredores da igreja
principal eram chamados de capelas. Segundo Raphael Bluteau, paróquia era o mesmo
que freguesia ou igreja, governada por um pároco, responsável por ministrar os
sacramentos sem receber nada em troca por isso21. Para o autor, capela era o mesmo que
um “altar particular, em igreja privada ou no corpo de alguma igreja, encerrado entre

20
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
21
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p.280. Disponível em:
<http://www.ieb.usp.br>. Último acesso: 15/11/2012.
21

paredes próprias. [...] umas pequenas igrejas filiais das matrizes [...]”22. Considerando a
capela como um altar, pode-se sugerir que toda igreja teve ou foi uma capela.
Compreende-se que para a realização dos cultos religiosos havia a necessidade de um
sacerdote responsável pela administração dos rituais religiosos e de um altar
devidamente preparado de acordo com as normas da Igreja, erguido em nome de alguma
figura celestial, Cristo, a Virgem Maria ou um santo padroeiro.

Segundo Monsenhor Pizarro, boa parte das capelas do Recôncavo da Guanabara


foi erguida no século XVII. Somente a partir do início do século XVIII, algumas destas
capelas se tornaram paróquias. Construídas com materiais pouco resistentes, antes que
se tornassem paróquias, as capelas sofriam os prejuízos do tempo, como é possível
observar nas informações sobre a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga:

[...] as mais velhas, que atualmente vivem, apenas se lembram de conhecerem


a primeira igreja matriz no lugar chamado Calhamaço[...] próximo à Estrada
Real, que conduz para a cidade, à margem ocidental do Rio, chamado de
Santo Antônio, de onde, não só pela ruína em que estava o edifício, mas por
estar em lugar, que em algumas estações do ano se fazia intransitável para a
mesma freguesia, se transferiu para o lugar em que presentemente se vê, há
mais de setenta ou oitenta e tantos anos, o que dá indícios de ser ela [uma]
das mais antigas do Recôncavo não só por esta razão, mas porque consta
igualmente pelas informações dos antigos e pela tradição, que as freguesias
de Marapicu, Iguaçu, Sarapuí e da Santa Família foram desmembradas dela e
eretas na extensão do seu antigo território. 23

A capela de Santo Antônio foi um dos templos do Recôncavo da Guanabara que


precisou ser transferido para um local mais acessível à população que crescia, graças à
intensificação do comércio na região. Conforme observou Guilherme Pereira das Neves,
os próprios moradores suplicavam os desmembramentos das freguesias, alegando a
dificuldade de acesso aos templos, fosse pela distância ou pelos obstáculos geográficos,
como os rios. Em Santo Antônio de Jacutinga, os paroquianos tornaram-se agentes
religiosos, devido à sua influência direta na edificação e no desmembramento das
capelas, como pôde ser observado a partir do trecho transcrito do documento, que
justifica a transferência da capela pela impossibilidade de ter acesso a ela em algumas
estações do ano.

22
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p.280. Disponível em:
<http://www.ieb.usp.br>. Último acesso: 15/11/2012.
23
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000. Fl.78.
22

Segundo Fernando Torres-Londoño, foram as capelas que deram origem às


comunidades cristãs nos primeiros séculos do período colonial e não as paróquias. Para
o autor, as “igrejinhas” eram construções simples dos habitantes, feitas de pau a pique e
telhados de palha. Escondidas em meio à paisagem, mesmo com toda a sua
simplicidade, as capelas eram testemunhas fundamentais da fé dos recém-chegados.

Exibindo em seus altares santos e devoções portuguesas, as capelas


estabeleciam no novo espaço uma referência e asseguravam uma
continuidade. Assim davam resposta à necessidade de sacralizar com os
signos católicos da cruz, do sino e do altar, o espaço antes dominado por
tapuias e guaranis.24
Parte da população de Santo Antônio de Jacutinga era composta por índios, o
que pode ser relacionado à afirmação do autor. A toponímia da região indica a presença
católica, com a invocação de Santo Antônio, juntamente à incorporação da referência
indígena, Jacutinga.25 A criação de capelas, portanto, se estabelecia como uma maneira
de tornar sagrado o território recém-ocupado pelos conquistadores. As capelas do
Recôncavo da Guanabara, segundo Monsenhor Pizarro, contavam com uma fraca
estrutura de pau a pique e palha. Para que se tornassem “igrejas” deveriam ser
reformadas e transferidas, no intuito de acomodar melhor os fiéis.

Ao analisar a construção das capelas em Minas Gerais no mesmo período,


Cláudia Damasceno Fonseca afirmou que “a promoção dessas capelas a igrejas matrizes
era uma consequência do crescimento e da prosperidade dos arraiais em que se
situavam, mas também dos espaços rurais circundantes.”26 Além do crescimento
populacional, acredita-se que o reconhecimento das capelas pela Igreja estivesse
relacionado ao interesse de construir e manter uma referência religiosa oficial à
população em desenvolvimento, além de possibilitar uma forma de controle social.

24
LONDOÑO, Fernando Torres (org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997. p.52.
25
Segundo Denise Vieira Demetrio, habitavam nas margens dos rios Iguaçu e Meriti os índios jacutingas,
que chamavam a região de “Trairaponga”. Em 1503 foram levados quarenta escravos indígenas para
Portugal, dentre eles, mais da metade era de mulheres da aldeia Jacutinga. O trabalho de catequese dos
beneditinos em relação aos jacutingas foi apenas interrompido durante a guerra contra os portugueses,
resultando na morte ou na fuga dos indígenas. DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias escravas no
Recôncavo da Guanabara - séculos XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro.
UFF, 2008.
26
FONSECA, Cláudia Damasceno. Freguesias e capelas: instituição e provimento de igrejas em Minas
Gerias. In: Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a
Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011.
23

Segundo as Notícias do Bispado do Rio de Janeiro de 1687, a população das


capelas curadas27 de Santo Antônio contava com 100 fogos (residências) e 212 pessoas
de comunhão. Já as Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794
documentaram que a população da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga contava
com 343 fogos, 2.340 almas capazes de sacramentos e 597 menores.28

Quanto aos números mencionados nas Visitas Pastorais, o próprio Monsenhor


Pizarro reconheceu a sua imprecisão:

É muito certo que o total de almas compreende mais de uma terceira parte;
porque ordinariamente os brancos, pardos solteiros e libertos, que tem que ser
apreendidos para soldados jamais se manifestam, antes procuram ocultar-se
quanto podem. Os senhores de escravos igualmente ocultam ao Rol, todos os
que têm subtraído, muitas vezes, uma boa parte deles e alguns até a metade
[...]29

Embora os números sejam imprecisos, é possível ter ideia do crescimento


populacional da região no século XVIII a partir da documentação. Um dos motivos,
portanto, para a transferência da igreja de Santo Antônio de Jacutinga era facilitar o
acesso de um número maior de paroquianos ao templo religioso, onde eram realizados
os sacramentos de batismo e matrimônio. Acredita-se que, à medida que as práticas
religiosas no Recôncavo da Guanabara, juntamente à sua capacidade comercial, foram
intensificadas, a região passou a chamar a atenção da Igreja. Tal visibilidade
demonstrou a necessidade de transferir o Catolicismo para as mãos das autoridades
eclesiásticas, com a intenção de diminui-lo ou retirá-lo do domínio dos leigos. Permitir
que os espaços religiosos fossem apenas administrados pelos leigos poderia resultar,
para a Igreja, em “maus usos” dos espaços e dos ensinamentos católicos.

Segundo Monsenhor Pizarro, antes de tornar-se freguesia, a capela de Santo


Antônio funcionava como capela curada.

[...] de um antiquíssimo manuscrito da Irmandade de N. Sra. do Socorro, em


que não se pode ver a data, por estar pela maior parte carcomido, consta, que
fora esta matriz primeiramente capela curada, sem declaração da freguesia a
que pertencia [...] No ano de 1686 já era freguesia e não capela curada,

27
Segundo Fânia Fridman, as capelas curadas eram aquelas que dependiam das “benesses de pé de altar”,
ou seja, que sobreviviam, sobretudo a partir de doações dos devotos. FRIDMAN, Fânia. “Freguesias do
Rio de Janeiro ao final do século XVIII”. In: Mneme Revista de Humanidades da UFRN. Natal:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. v.9.
28
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Notícias do Bispado do Rio de Janeiro no anno de
1687; ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no
ano de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
29
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.fl.78.
24

porque em outro livro, igualmente velho e antigo da mesma Irmandade [...]


acha-se um auto de contas, onde se trata esta igreja por freguesia e o R.
Sacerdote, que a tinha a seu cargo, por Vigário.30

Inicialmente, as capelas poderiam ser construídas a partir do auxílio financeiro


da elite colonial, nas fazendas ou engenhos destas famílias, sendo mantidas por doações
da população dos arredores. O estabelecimento de um capelão curado nas capelas
demonstrava, portanto, a capacidade econômica dos habitantes e contribuía para o
aumento do prestígio social daqueles que se mostravam aptos a promover a manutenção
destes espaços. Segundo Monsenhor Pizarro, o primeiro padre a ser referido nos
documentos como vigário foi o Reverendo Luis de Lemos Pereira, que assumiu a recém
paróquia de Santo Antônio de Jacutinga em 1686. O ano do estabelecimento da
paróquia condiz com o período em que o primeiro livro de registros foi publicado pelo
mesmo vigário.

Logo que se tornavam paróquias, estes espaços religiosos deveriam ser mantidos
pelo padroado. Os vigários, compreendidos como funcionários da Coroa, eram
favorecidos por um privilégio vitalício.31 Em Santo Antônio de Jacutinga, a prática foi
diferente. Não há dados que comprovem tal compromisso por parte da Coroa, pelo
contrário, Monsenhor Pizarro afirmou que nem a fábrica, tampouco o pároco recebiam
qualquer auxílio real, conservando, ainda em 1794, párocos encomendados, mesmo
sendo de natureza colativa.32

Encomendar uma freguesia consistia, pois, em nomear um pároco quer ad


tempus! Ele era temporário de livre remoção por ordem do bispo. Também
não selecionado através de concurso e não era examinado acerca da doutrina,
exigindo-se apenas idoneidade [...]33
A responsabilidade de nomear ou remover os párocos temporários era dos bispos
e representava a sua autonomia em relação à intervenção do padroado no Recôncavo da
Guanabara. A presença destas autoridades eclesiásticas foi intensificada durante o
século XVIII, no mesmo período em que ações católicas de caráter reformador ocorriam
na América portuguesa, como a “fiscalização” dos espaços religiosos, dos párocos que
os administravam e dos demais membros da cristandade. Estes cuidados não se
30
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
31
LONDOÑO, Fernando Torres (Org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997.
32
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
33
LONDOÑO, Fernando Torres (Org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997. p.59.
25

limitavam apenas à igreja, mas se estendiam às demais capelas presentes no território da


paróquia e estavam relacionados ao receio de que práticas religiosas não católicas
tomassem conta do cotidiano colonial.

Neste sentido, para que fosse possível alcançar o objetivo de reformar o


Catolicismo na América portuguesa, foi necessário criar uma legislação que
correspondesse às especificidades coloniais e ao mesmo tempo retomasse algumas
exigências do Concílio Tridentino. A reforma católica no ultramar “só chegaria de
forma sistemática no século XVIII, coincidindo com o longo reinado de D. João V
(1706/1750) [...]”34.

Segundo José Pedro Paiva, a partir dos anos 1720 teve início um novo ciclo na
política joanina de nomeação episcopal. A escolha do episcopado passou a ser marcada
por um movimento de reforma religiosa, chamado “jacobeia”. Um dos princípios deste
movimento era “o propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos
do Catolicismo, tanto no nível do clero como entre os seculares e adequar os costumes
das populações à ética cristã”.35 Neste período, além de D. João V, Frei Gaspar da
Encarnação e o Cardeal João da Mota e Silva passaram a ter um papel decisivo na
escolha dos bispos. Segundo o autor, este movimento representou uma mudança
significativa na eleição do episcopado, já que a conduta do clero era um dos objetivos
principais da reforma religiosa. A escolha dos bispos subordinava-se, assim, a critérios
político-religiosos, que objetivavam a “renovação do corpo episcopal”, chamada pelo
autor de “clericalização dos bispos”.

Neste contexto, é possível refletir sobre o objetivo das Constituições Primeiras


do Arcebispado da Bahia. Considerando a experiência anterior de seu autor, D.
Sebastião Monteiro da Vide, no arcebispado de Lisboa e a sua capacidade de adaptação
à Salvador, pode-se pensar que a obra não teve, senão, características semelhantes às do
seu autor.

34
LAGE, Lana. “As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil”. In: FLEITER,
Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011.p.148.
35
PAIVA, José Pedro. “D. Sebastião Monteiro da Vide e o Episcopado do Brasil em Tempo de
Renovação (1701-1750)”. In: Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e
Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora
Unifesp. 2011. p.38-39.
26

Com a Catedral elevada, desde 1676, à dignidade de metrópole e primaz do


Brasil, o Arcebispado da Bahia distinguia-se dos demais pela sua ancestralidade nos
investimentos das obras da Sé e pela construção de um novo palácio episcopal. Desta
forma, para seguir o exemplo do Reino, não era pertinente admitir um arcebispo que não
tivesse experiência anterior na administração eclesiástica. Devido à importância do
arcebispado da Bahia exigia-se que o eleito para Salvador já tivesse alguma experiência
no governo episcopal. D. Sebastião Monteiro da Vide, autor das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, enquadrava-se no modelo definido para ocupar o
cargo de arcebispo de Salvador. Era um “clérigo secular, canonista, com formação
superior obtida em Coimbra, possuidor de longa e variada experiência em funções de
justiça e administração diocesana, quase sempre desenvolvida no arcebispado de Lisboa
[...]”36. A experiência anterior demonstrou a sua preocupação como clérigo em
organizar e regulamentar a vida diocesana, adaptando-a às circunstâncias locais da
Bahia

Para quem vinha de cerca de vinte anos a administrar a justiça eclesiástica no


arcebispado de Lisboa era insustentável a ideia de um arcebispado sem as
suas próprias e adaptadas normas.
Acresce que foi sempre um prelado preocupado em respeitar a autoridade da
Coroa, tanto assim que em 1720 integrou a junta de governadores interinos
do Brasil e em vários momentos acatou as decisões tomadas pela monarquia.
Mas, apesar de tudo, como lhe competia, defendeu sempre a sua jurisdição
quando a sentia ameaçada por outros poderes [...]37

O arcebispo dedicou-se à criação de uma legislação para o arcebispado da Bahia,


que devido à sua importância na época, foi adotada como um instrumento normativo
próprio da Igreja luso-americana. Para que as Constituições fossem aceitas e entrassem
em vigor foi necessário justificar as suas disposições com base nas normas estabelecidas
pelo Concílio Tridentino. As determinações do documento foram “difundidas pelas
paróquias por meio de cartas pastorais e decisões dos bispos comprometidos com esse
monumental esforço de adequar o clero colonial às exigências tridentinas.”38 Em

36
PAIVA, José Pedro. “D. Sebastião Monteiro da Vide e o Episcopado do Brasil em Tempo de
Renovação (1701-1750)”. In: Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e
Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora
Unifesp. 2011
37
Ibidem .p.55.
38
LAGE, Lana. “As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil”. In: FLEITER,
Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011.p.148.
27

verdade, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia adaptavam a legislação


das Constituições Sinodais do Arcebispado de Lisboa, vigente na América portuguesa.

Lana Lage já observou a tensão presente na relação entre a Igreja e a Coroa a


partir da vigência das Constituições da Bahia. Segundo a autora, embora tenha havido
protestos por parte do procurador da Coroa, atento à possibilidade da nova legislação
ignorar ou contrariar os interesses da monarquia, os bispos do século XVIII procuraram
fazer cumprir em suas dioceses as novas Constituições.39

A nova legislação estabeleceu-se como um marco da tentativa de implementação


da reforma na América portuguesa. Bruno Feitler e Evergton Sales Souza já observaram
a importância da análise do documento para a compreensão da Igreja católica e do
Catolicismo no Brasil no século XVIII. 40 Neste capítulo, combinadas às visitas
pastorais, as Constituições foram utilizadas como uma fonte auxiliar para a
compreensão das dimensões do Catolicismo em Santo Antônio de Jacutinga do século
XVIII.

No que diz respeito às normas para a construção de capelas na América


portuguesa, o documento definiu que

Ainda que seja coisa muito pia e louvável edificarem-se capelas [...] se
segue a utilidade de haver nas grandes [...] lugares decentes, em que
comodamente se possa celebrar; como convém muito que se edifiquem
com tal consideração que, erigindo-se para ser casa de oração [...]
ordenamos e mandamos que, querendo algumas pessoas em nosso
Arcebispado fundar capela de novo, nos deem primeiro conta por petição
e achando nós por vistoria e informação, que mandaremos fazer, que o
lugar é decente e que se obrigam a fazê-la de pedra e cal.[...]41
A determinação das Constituições quanto à edificação de capelas objetivou
ordenar esta prática comum da população da América portuguesa. A ereção de capelas
foi incentivada pela legislação, mas deveria subordinar-se à aprovação da Igreja. Esta
medida contribuiria para controlar os usos abusivos dos templos religiosos pela
população, além de demonstrar a tentativa da Igreja de reafirmar-se como a detentora do

39
LAGE, Lana. “As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil”. In: FLEITER,
Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011. p.151.
40
FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a
Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp. 2011.
41
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula 692.
28

sagrado. Veremos que a função de vistoriar e informar a “decência”42 das capelas foi
delegada aos bispos ou aos visitadores previamente aprovados pelos primeiros.

Segundo Monsenhor Pizarro, a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga contava


com seis capelas: a de Nossa Senhora do Rosário, a de Nossa Senhora da Conceição do
Pantanal, a de Nossa Senhora do engenho da cachoeira, a de Nossa Senhora da Madre
de Deus, a de Nossa Senhora do Livramento e a de Nossa Senhora da Conceição de
Sarapuí.

Embora a freguesia tenha sido a única do Recôncavo da Guanabara a adotar um


santo como padroeiro, é perceptível a preferência por invocações da Virgem Maria nas
demais capelas da região. Assunción Lavrin43 afirmou que após o Concílio de Trento, o
culto à Imaculada Conceição transformou-se em uma das forças da devoção católica.
Maria passou a ser valorizada como uma autoridade celestial apenas inferior à Cristo,
mas igualmente influente considerando o seu protagonismo no episódio da Paixão. A
Virgem Maria tornou-se um modelo para as freiras, mas também para as mulheres
leigas por possibilitar a sua identificação com os papéis de mãe, filha e esposa.

O culto mariano pós-reforma foi considerado um instrumento de fortalecimento


do Catolicismo associado aos ideais de família e comunidade cristãs. É comum
encontrar a valorização da memória da Virgem na arquitetura, na liturgia e na música na
Idade Moderna. Considerando o número de capelas edificadas em seu nome no
Recôncavo da Guanabara, acredita-se que a devoção à Nossa Senhora tenha se
estabelecido na região como um dos instrumentos de manutenção do Catolicismo.
Juntamente aos ideais de caridade e humildade, já estimulados pelo cristianismo e
representados pela Paixão de Cristo, somaram-se os ideais de castidade e pureza
próprios da Virgem Maria. Estimular um modelo religioso feminino tão forte quanto o

42
Raphael Bluteau definiu decência como “honestidade exterior de certas pessoas e lugares”. Decente,
também compreendido como decorus, nos séculos XVII e XVIII, referia-se ao decoro, que deveria
observar a conveniência entre o ornato e a matéria. O critério de decência relacionava-se diretamente à
moral e, as capelas deveriam apresentar-se para os fiéis de modo a honrar Deus, a Virgem Maria e os
santos. Para tanto, a sua estrutura física, as imagens sagradas e os seus ornamentos precisavam estar bem
conservados para que preservassem na memória dos fiéis os exemplos de vida representados pelos santos.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br>;
HANSEN, João Adolfo; PÉCORA, Antônio Alcir Bernárdez. Glossário de categorias do século XVII.
43
LAVRIN, Asunción. Espiritualidad en el claustro novohispano del siglo XVII. Colonial Latin American
Review. New York, v.4, n.2, 1995.
29

de Cristo, contribuiria para agregar valores católicos à organização familiar da


população.

Na América portuguesa, a figura da Virgem Maria foi utilizada pelos


missionários para aproximar as mulheres das normas. Compreendida como um modelo
de vida para os fiéis, associada ao ideal de humildade, é possível observar a sua
aceitação, inclusive, entre os escravos. Segundo Juliana Beatriz de Souza e Ronaldo
Vainfas, a Virgem transformou-se em um símbolo de fidelidade à Igreja e seu culto
esteve presente nas práticas religiosas católicas, que objetivavam a sua proteção em
meio às dificuldades.44

Edificadas em nome de invocações da Virgem Maria, as capelas encontravam-se


nas fazendas e tinham permissão para realizar determinados rituais católicos. A capela
de Nossa Senhora do Rosário45, ereta na fazenda do Mosteiro de São Bento, tinha
permissão para realizar batismos e sepultamentos, desde que recebessem a devida
licença do pároco para realizá-los. A capela de Nossa Senhora da Conceição46 do
Pantanal, ereta por Antônio Quintanilha, com a permissão do bispo Antônio do
Desterro47 possuía apenas a pia batismal, podendo realizar batismos. A capela de Nossa

44
VAINFAS, Ronaldo; SOUZA. Juliana Beatriz de. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2002. p.44-45.
45
Segundo Nilza Megale, na América portuguesa, a devoção ao santo Rosário foi trazida pelos
missionários e logo espalhou-se entre os escravos, que nele encontraram as orações mais simples: o Pai
Nosso e a Ave Maria. Segundo a autora, há duas versões para a escolha da santa como uma de suas
patronas. A primeira defende que a Senhora do Rosário já era padroeira dos escravos de procedência
banto, por ter seu culto incentivado pelos portugueses e pelos missionários, no intuito de convertê-los ao
Catolicismo. A segunda, afirma que a divulgação do culto à santa foi feita pelos dominicanos e
franciscanos que tinham grande penetração nos antigos engenhos. No caso de Santo Antônio de
Jacutinga, pode-se observar que o culto à santa foi incentivado pelos beneditinos, que realizavam, com a
licença do pároco, missas e, inclusive, alguns batismos em sua capela de engenho. MEGALE, Nilza
Botelho. 112 invocações da Virgem Maria o Brasil: história, folclore e iconografia.”Petrópolis: Vozes,
1986.
46
Nossa Senhora da Conceição foi a invocação da Virgem Maria mais encontrada na toponímia do
Recôncavo da Guanabara. Além de capelas erguidas em homenagem à santa, uma das freguesias também
recebeu o seu nome, Nossa Senhora da Conceição de Marapicu. Segundo Nilza Megale, Nossa Senhora
da Conceição tinha um grande número de devotos em Portugal, quando teve o seu culto oficializado por
D. João IV, em 1640. Seis anos depois, ele dedicou à Virgem o reino português. Em todo o império
português, tornou-se oficial e obrigatória a festa da Conceição de Maria. Segundo a autora, é comum
encontrar em toda a América portuguesa capelas e altares erguidos em homenagem à santa, que teve o seu
culto propagado, principalmente, pelos franciscanos. Nossa Senhora da Conceição foi a padroeira da
América portuguesa, até que cedeu o seu lugar a Nossa Senhora Aparecida, “que é uma antiga imagem da
Imaculada Conceição encontrada nas águas do rio Paraíba do Sul”. MEGALE, Nilza Botelho. 112
invocações da Virgem Maria o Brasil: história, folclore e iconografia.”Petrópolis: Vozes, 1986.
47
No Rio de Janeiro, D. Frei Antônio do Desterro Malheiros destacou-se pelo interesse de normatizar as
práticas católicas, sobretudo, no que concerne à organização dos assentos de batismo, casamento e óbito,
à ereção de paróquias e à instrução religiosa de seus diocesanos. Tal como D. Sebastião da Vide, D.
Antônio do Desterro também acumulou experiências anteriores em seu “currículo”. O religioso português
30

Senhora do Engenho da Cachoeira, ereta por Manoel Correa Vasques, foi concedida
pelo bispo Antônio de Guadalupe, podendo realizar sepultamentos. Para as demais
capelas, não há informações sobre a realização de batismos ou sepultamentos, embora
os registros da freguesia demonstrem batismos de escravos realizados na capela de
Nossa Senhora da Conceição de Sarapuí.48 Não consta em nenhuma das capelas a
realização de casamentos, estando este sacramento reservado apenas à igreja paroquial
de Santo Antônio de Jacutinga.

Por meio das Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro é possível ter acesso às
informações sobre as capelas que cumpriam ou não os pré-requisitos necessários para o
seu funcionamento, no que diz respeito ao patrimônio, ou seja, à disposição de objetos
sagrados. Segundo o visitador, as capelas de Nossa Senhora do Rosário, a de Nossa
Senhora do Engenho da Cachoeira, a de Nossa Senhora da Conceição do Pantanal e a de
Nossa Senhora da Madre de Deus apresentavam-se com muito “asseio e decência”. O
critério de decência estava relacionado à exigência das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia de que em cada capela houvesse

Cruzes, frontais, toalhas, cortinas, pedra d‟ara, sacras, panos para as mãos,
estantes ou almofadas, castiçais, alvas [...] cordões [...] cálices, patenas,
palas, sanguinhos, panos ou véus dos mesmos cálices, missais, galhetas,
caixas de hóstias e campainhas(...) tudo na quantidade, e qualidade será
conforme a possibilidade de cada uma das igrejas, mas haverá muito cuidado
que tudo seja limpo, são e decente e que se não celebre senão em cálices ao
menos de prata com patenas do mesmo. 49
Quanto aos objetos obrigatórios, pode-se identificar certa flexibilidade nas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia no que se refere às freguesias menos
prósperas economicamente. O documento chamou atenção, sobretudo, ao estado de
conservação e à limpeza dos ornamentos das capelas, deixando a quantidade de objetos
em segundo plano. Além dos objetos, as imagens sagradas deveriam apresentar-se
limpas e conservadas para incentivar a devoção dos fiéis e honrar os donos da casa,

ingressou na Ordem de São Bento aos quinze anos, em 1710. Em 1724, tornou-se doutor em Teologia
pela Universidade de Coimbra. Antes de tornar-se bispo do Rio de Janeiro, em 1747, D. Antônio do
Desterro já havia sido bispo do Congo e Angola. Uma de suas pastorais dedicou-se aos sepultamentos de
escravos. O bispo ordenou que os senhores de escravos providenciassem sepulturas dignas aos cativos e
incentivassem a realização dos últimos sacramentos. O prelado teve “o mérito de renovar, por meio de
pastorais, salutares prescrições de seus antecessores e das Constituições da Bahia”. PAIVA, José Pedro.
“D. Sebastião Monteiro da Vide e o Episcopado do Brasil em Tempo de Renovação (1701-1750)”. In:
Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011. p.51.
48
Livro de batismos de escravos de Santo Antônio de Jacutinga (1790-1807).
49
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula 707.
31

Cristo, a Virgem Maria e os santos, sem desconsiderar as condições econômicas da


freguesia:

Posto que na quantidade dos ornamentos e móveis que há de haver em cada


igreja, se não possa dar regra certa nestas Constituições por umas serem mais
numerosas e terem fregueses mais ricos e outras, menos paroquianos e mais
pobres. [...] Pelo que mandamos, que em cada uma das igrejas de nosso
Arcebispado haja precisamente ornamentos e móveis para celebrar com
decência e limpeza.50
A disposição das Constituições justifica as observações sobre a decência das
capelas, encontradas nas Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794. Os
critérios de decência e asseio não foram encontrados em todas as capelas visitadas pelo
cônego. Há casos em que as capelas não respeitavam as mínimas exigências para o seu
funcionamento, como a capela de Nossa Senhora do Livramento, que não apresentava
patrimônio decente e a capela de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí, que corria o
risco de ser interditada.

Sobre esta última capela, Monsenhor Pizarro alertou o seguinte:

Seus testamentos não existem, porque os possuidores da fazenda, que até


agora foram, assim como maltrataram o corpo da mesma, também não
tiveram cuidado algum na conservação dos testamentos [...] E porque me
constou que a mesma capela foi feito patrimônio para a sua subsistência, por
isso determinei que procurasse o dito senhor da fazenda haver da Câmara
eclesiástica os testamentos competentes. O que não constando de certo o
patrimônio, o fizesse, no tempo de seis meses com pena de interdito. 51
As observações de Monsenhor Pizarro, neste caso, chamam atenção para a má
conservação da capela de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí, demonstrando a
negligência dos donos da fazenda com a manutenção do espaço religioso. Além disso,
há uma forte crítica aos mesmos donos no que diz respeito ao comprometimento com os
testamentos, que deveriam apresentar o patrimônio das capelas.

Segundo Guilherme Pereira das Neves, a maior prosperidade das freguesias


refletia-se igualmente na vida paroquial, no que diz respeito às fábricas das igrejas, ou
seja, ao seu patrimônio.52 No caso da igreja matriz de Santo Antônio de Jacutinga as
informações sobre a sua fábrica foram negativas. Monsenhor Pizarro afirmou que a dita
fábrica não tinha bens materiais, além das cinquenta “braças de terra” doadas pelo dono
de engenho José de Azeredo. O visitador justificou esta informação afirmando que nem
50
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula. 705.
51
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
52
NEVES, Guilherme Pereira das. E Receberá Mercê. A Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular
no Brasil 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p.227.
32

a fábrica, tampouco o pároco recebiam qualquer quantia da Real Fazenda, pois mesmo
sendo de natureza colativa53, a igreja ainda funcionava com padres encomendados e,
portanto, temporários.

Os reditos de que a fábrica e o mesmo pároco se mantêm são os contingentes


mal satisfeitos, que resultam de sepulturas e mais ofícios funerais e dos
donativos que lhe fazem os fregueses, pelos ofícios paroquiais. Não tem
fundação alguma de missas perpétuas, apenas se poderiam dizer tais as que
anualmente mandam dizer as Irmandades, mas essas mesmas falham, pela
decadência em que elas se conservam. Se algumas oblações se fazem aos
santos são consumidas nos seus altares respectivos. 54
A partir do trecho transcrito é possível ter ideia da dimensão da contribuição dos
leigos à manutenção do Catolicismo na região, considerando que a igreja de Santo
Antônio era mantida a partir de doações dos paroquianos, fosse via irmandades, ofícios
funerais ou “benesses de pé de altar”.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

As oblações e ofertas são tudo aquilo que os fiéis cristãos oferecem a Deus,
Nosso Senhor e a seus santos nas igrejas para ornato e fábrica delas ou para
sustentação de seus ministros. Estas ofertas se frequentaram muito no início
da Igreja militante e foram muito encomendadas pelos santos padres. E posto
que sejam voluntárias e procedam da devoção dos fiéis, encomendamos
muito a nossos súditos [que] usem desta louvável devoção, porque com elas
se mostram reconhecidos a Deus, Nosso Senhor e a seus santos dos
benefícios e mercês que de sua divina mão e intercessão recebem. 55
A partir do trecho é notável o valor dado pelo documento às ofertas dos fiéis. A
prática foi incentivada pela Igreja por acreditar-se que as doações demonstravam o
reconhecimento da intercessão divina e da intermediação dos santos pelos fiéis. Ao
mesmo tempo, acredita-se que os fiéis reconheciam os códigos católicos ao oferecer
auxílio à manutenção das capelas. O documento também deixou claro que as ofertas
deveriam ser feitas nas próprias capelas e deveriam ficar sob a responsabilidade dos
párocos, que tinham o direito canônico de utilizá-las em seu favor “se as tais [...]
capelas [...] não tivessem alguma renda deputada para a fábrica.”56

É inegável a importância da participação dos leigos nos desmembramentos das


freguesias, na criação e na manutenção das capelas. Estas ações também foram

53
Em uma capela colativa, os párocos, escolhidos por concurso, eram mantidos pela Fazenda Real.
FRIDMAN, Fânia. “Freguesias do Rio de Janeiro ao final do século XVIII”. In: Mneme Revista de
Humanidades da UFRN. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. v.9.
54
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
55
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXVII. Cláusula 431.
56
Ibidem. Cláusula 434.
33

amplamente defendidas por outro grupo: os bispos. Elas significavam a possibilidade de


fiscalizar com maior eficácia os templos e as práticas religiosas da jurisdição dos
prelados. Segundo a ótica tridentina, desta forma, era possível aproximar os agentes
eclesiásticos, compreendidos como pastores, de seu rebanho. Embora a consolidação
das paróquias fosse uma das definições do Concílio de Trento, este processo ocorreu de
forma lenta no Recôncavo da Guanabara, como em outras partes da América
portuguesa, já que não há indícios de uma política colonial de incentivo à formação de
um clero nativo, deixando o ultramar ainda dependente da migração de padres seculares
às novas paróquias.57

O estabelecimento de uma paróquia era um “índice seguro da existência de


núcleos ou centros de povoamento com suficiente densidade demográfica para justificar
a sua instalação”58, mas deve-se considerar também a tentativa da Igreja de
enquadramento religioso da população. A função de criar e manter referências católicas
na região foi conferida aos bispos ou aos visitadores enviados por eles que se baseavam,
como observaremos, em normas estabelecidas pelo Concílio Tridentino e incorporadas
pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. A existência de capelas
facilitava o trabalho dos visitadores.

1.2.1 As visitas pastorais


1.2.1.1. “As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794”

Segundo Lana Lage

A reforma moral e intelectual do clero constituiu uma das preocupações que


mobilizaram os sacerdotes reunidos no Concílio de Trento (1545-1563).
Nesse campo, a resposta à doutrina do sacerdócio universal, defendida pelos
seguidores de Lutero, foi a revalorização da figura do padre e a reiteração do
celibato clerical, instituído para toda a Igreja pelo IV Concílio de Latrão
(1215). Procurava-se, assim, promover a formação de um clero mais austero
em seus costumes, mais bem preparado intelectualmente, mais coeso
enquanto corpo social hierarquizado e mais obediente a Roma. Para realizar
esta tarefa foram mobilizados os bispos, que tiveram poder reforçado, e

57
BOXER, Charles R. A Igreja militante e a expansão ibérica (1440 - 1770). São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
58
FRIDMAN, Fânia. “Freguesias do Rio de Janeiro ao final do século XVIII”. In: Mneme Revista de
Humanidades da UFRN. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. v.9.
34

acionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial, para punir as condutas


consideradas desviantes.59

Conforme defendeu a autora, para promover uma reforma religiosa era


necessário prestar a atenção devida à própria estrutura interna da Igreja. Para expandir a
reforma e cumprir o objetivo universalista do Catolicismo, era indispensável zelar pela
conduta dos clérigos para que pudessem retomar o seu legítimo papel na instrução da fé
católica. Um dos argumentos mais utilizados pelos reformadores protestantes era
justamente a má conduta dos clérigos, considerando que muitos deles estavam longe de
serem exemplos de “bons cristãos” para a população. O mau comportamento do clero
estava, muitas vezes, associado à compra e à venda de benefícios paroquiais, à cobrança
sobre a realização dos sacramentos ou a qualquer atitude profana, como a “mancebia”
pública, a participação em jogos ilícitos ou quaisquer outros excessos.60

A instituição eclesiástica necessitava garantir a sua legitimidade perante a


sociedade, reafirmando o Catolicismo como o único e verdadeiro cristianismo. O
modelo de bispo pré-tridentino que incluía, em sua maioria, sacerdotes jovens, pouco
instruídos, que “negligenciavam as obrigações de residência e pastoral, acumulavam
benefícios e dispensavam as rendas de suas igrejas em suas próprias casas”61, precisava
ser combatido para que a reforma fosse possível.

Perante a necessidade de “organizar a casa” de Deus, coube ao Concílio de


Trento habilitar os bispos por meio de uma legislação que os permitisse vigiar os fiéis e
ao mesmo tempo zelar pela sua própria conduta com o auxílio das visitas pastorais. A
partir destas visitas era possível registrar casos de maus clérigos e templos mal
administrados pelas autoridades da Igreja.

O Catolicismo moderno precisou diminuir a participação “popular” presente na


Idade Média, que levou um grande número de pessoas a almejar uma comunicação mais
direta com Cristo e a questionar a autoridade do Clero, pouco ortodoxo, como mediador
desta comunicação. Para inibir estes e outros questionamentos, tão defendidos pelos

59
LAGE, Lana. “As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil”. In: FLEITER,
Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011. p.147.
60
Ibidem. p.153.
61
PEREIRA Juliana Torres Rodrigues. Bruxas e demônios no Arcebispado de Braga: Uma análise da
Visitação Inquisitorial de 1565. Dissertação (Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: UFRJ, IH,
2012.
35

“movimentos heréticos”, a Igreja precisou separar o que era litúrgico do que não era,
argumentando que o progresso real da reforma apenas seria possível quando o “hábito
da observância paroquial uniforme”62 fosse realmente adotado. A construção de capelas
e os rituais desenvolvidos nestas deveriam seguir o mesmo padrão em todas as
paróquias, no intuito de uniformizar as práticas católicas da cristandade.

Embora fosse o papel da Igreja converter e devolver os territórios profanos aos


domínios de Deus, esta instituição precisou adaptar-se a algumas condições de seu
tempo e às diversas realidades nas quais se inseria.

A reforma, portanto, deveria partir de dentro da Igreja para o mundo, com o


auxílio de agentes e instrumentos que permitissem manter a cristandade63 em ordem. A
má conduta dos clérigos precisava ser combatida e as visitas pastorais, que se tornaram
obrigatórias após Trento, funcionavam como um instrumento para controlar o
comportamento dos clérigos, as condições das capelas e, até mesmo, o cotidiano dos
paroquianos.

Conforme observou Charles Boxer, as igrejas deveriam ser dirigidas pelo clero
secular, “sob o controle direto, jurisdição, visitação e retificação dos bispos”, que se
submetiam à autoridade do Papa, como sucessor de São Pedro64 Os bispos eram os
responsáveis pela administração das igrejas, por serem os sucessores dos apóstolos.
Embora o trabalho missionário pioneiro no além-mar fosse de responsabilidade do clero
regular, os privilégios concedidos pela Santa Sé às ordens religiosas entraram em
conflito com as disposições do Concílio Tridentino, que teve como um dos principais
objetivos “fortalecer a autoridade do prelado diocesano em todas as fases da vida
religiosa e da disciplina eclesiástica no âmbito de sua jurisdição territorial.” 65 Desta
forma, o papel delegado anteriormente ao clero regular deveria voltar à responsabilidade
dos bispos, que inseridos no mundo, tinham a obrigação legítima da cura das almas e de
pregar a doutrina católica.

62
BOSSY, John. “The Counter-Reformation and the People of Catholic Europe”. In: Past & Present,
Oxford University Press, 1970, n 47. p. 62.
63
Compreende-se por Cristandade “um sistema de relações da Igreja e do Estado (ou qualquer outra
forma de poder político) numa determinada sociedade e cultura.” GOMES, Francisco José Silva. “A
Cristandade medieval entre o mito e a utopia”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-
Graduação em História da UFRJ, vol. 5, 2002.
64
BOXER, Charles R. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p.85.
65
Ibidem.
36

Reafirmava-se assim, conforme afirmou Juliana Torres, “a imagem do bispo


como um pastor cujo dever era conduzir o rebanho de fiéis sob sua responsabilidade à
salvação.”66 As visitas pastorais deveriam cumprir o seu papel de uniformização
paroquial, demonstrando o zelo da Igreja pelo seu rebanho.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:

Conforme os sagrados cânones e o sagrado Concílio Tridentino, a nós e a


nossos visitadores pertence fazer cumprir todas as disposições pias ou
instituídas em últimas vontades ou em qualquer contrato entre vivos e
também visitar quaisquer hospitais, capelas e confrarias, ainda que sejam
regidas e governadas por leigos, isentas da jurisdição ordinária e
imediatamente sujeitas à Sé apostólica, salvo sendo da imediata proteção do
Rei, nosso senhor. Pelo que, considerando nós, quão mal se cumprem pelos
administradores e executores as vontades pias dos defuntos, estreitamente
mandamos e encarregamos a nossos visitadores que depois que visitarem as
igrejas no espiritual e temporal, visitem com muita diligência as capelas e
confrarias eclesiásticas de nossa jurisdição e vendo as instituições, façam
inteiramente cumprir o que nelas se achar. 67
Definia-se, assim, na América portuguesa a obrigatoriedade das visitas,
defendida anteriormente pelo Concílio de Trento. Os visitadores estavam livres para
fiscalizar quaisquer templos religiosos para que fosse possível pôr em ordem aqueles
que, por ventura, não seguissem os padrões determinados pelas Constituições.

Definidas como responsabilidade dos bispos, as visitas pastorais eram


administradas pelos prelados, mesmo quando não eram realizadas diretamente por eles.
A nomeação de outros clérigos à função de visitadores otimizava o trabalho vigilante
dos bispos por permitir que um maior número de templos em localidades diferentes
fosse visitado e adequado à legislação eclesiástica, já que não era possível para um
único bispo visitar pessoalmente todos os templos religiosos de sua jurisdição.

No caso do Recôncavo da Guanabara, é inegável a importância das famosas


Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794. Ao visitar as freguesias do Rio
de Janeiro setecentista, Monsenhor Pizarro reuniu em um único documento informações
que têm sido amplamente utilizadas como “ponto de partida” para muitos historiadores
que pesquisam a região. O cônego foi um exemplo de religioso que assumiu a função
delegada aos bispos.

66
PEREIRA Juliana Torres Rodrigues. Bruxas e demônios no Arcebispado de Braga: Uma análise da
Visitação Inquisitorial de 1565. Dissertação (Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: UFRJ, IH,
2012. p.51.
67
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Cláusulas 870 e 871.
37

Conforme afirmou Guilherme Pereira das Neves68, no Rio de Janeiro, o primeiro


seminário destinado à instrução do clero secular foi promovido pelo frei Antônio de
Guadalupe em 173969. Devido à raridade dos seminários, os párocos e os bispos, muitas
vezes, adaptavam-se às condições da localidade.

Nas sés catedrais, os clérigos eram amestrados no estudo do latim, do


cantochão e das cerimônias litúrgicas, não faltando algum mestre de teologia
moral e de outras ciências eclesiásticas. Às vezes, o próprio bispo dava
pessoalmente as lições. Nos lugares mais afastados, especialmente em
algumas comarcas mais importantes, havia lições de latim, de teologia moral
e de cerimônias eclesiásticas para os candidatos ao sacerdócio, os quais eram
oportunamente ordenados pelos bispos até por ocasião das visitas pastorais. 70
Monsenhor Pizarro é considerado um representante do objetivo de
enquadramento religioso no Recôncavo da Guanabara no século XVIII. Para
compreender a importância de suas visitas para a transformação do Catolicismo na
região, é necessário retomar uma pequena parte de sua biografia.

José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo foi enviado à Coimbra em 1769, onde
diplomou-se em Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1780 foi apresentado para a
6ª cadeira do Cabido do Rio de Janeiro, confirmado em 1781 e ocupou o lugar de
comissário do Santo Ofício em 1786. Em 1794 e 1799 foi visitador do Bispado do Rio
de Janeiro.71 Representando o bispo, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo
Branco72, Monsenhor Pizarro realizou visitas aos templos religiosos, que incluíam o

68
NEVES, Guilherme Pereira das. E Receberá Mercê. A Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular
no Brasil 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
69
Segundo Beatriz Catão Cruz Santos, o bispo de Guadalupe contribuiu para a transformação das práticas
religiosas do Rio de Janeiro setecentista. Nomeado bispo em 1723, o religioso foi o responsável por
implantar o modelo das visitas episcopais no Rio de Janeiro, visando a uma reforma dos costumes,
considerando que as visitas funcionavam como um instrumento de mediação entre os bispos e os fiéis.
Segundo a autora, Monsenhor Pizarro, ao produzir as suas Memórias do Bispado do Rio de Janeiro deu
prosseguimento aos escritos pastorais de Guadalupe. As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano
de 1794 podem ser compreendidas como um marco da influência do bispo no Catolicismo do Rio de
Janeiro durante o século XVIII. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. “O Santo do Bispo”. In: Topoi. Rio de
Janeiro, v. 7. 2006. p. 300-330.
70
RUBERT, Arlindo apud NEVES, Guilherme Pereira das. E Receberá Mercê. A Mesa da Consciência e
Ordens e o clero secular no Brasil 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p.201.
71
GALDAMES, Francisco Javier Müller. Entre a cruz e a Coroa: a trajetória de Mons. Pizarro (1753-
1830). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro. UFF. 2007.
72
Nascido em 1731, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco foi o primeiro brasileiro a
assumir o episcopado fluminense. Iniciou os seus estudos no colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro.
Formou-se em Cânones em 1756, na Universidade de Coimbra. Em 1754 foi ordenado sacerdote, eleito
deputado da Inquisição de Évora, em 1762 e inquisidor em Lisboa, no ano de 1769. Tornou-se bispo
coadjutor do Rio de Janeiro em 1773. Após a morte do bispo D. Fr. Antônio do Desterro, assumiu a
diocese do Rio de Janeiro, em 1774. Por motivos de saúde, não pôde visitar pessoalmente as igrejas do
bispado, mas enviou “habilíssimos e zelosos visitadores a todos os recantos de sua jurisdição e a breves
espaços, escolhendo os eclesiásticos mais instruídos e isentos de cobiça.” PAIVA, José Pedro. Os Bispos
de Portugal e do Império: 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006.
38

território do Recôncavo da Guanabara. Estas visitas são utilizadas como uma das
principais fontes para analisar a região.

Os escritos de Monsenhor Pizarro apresentam um levantamento dos recursos


naturais das freguesias, cita os nomes dos sacerdotes responsáveis pelas capelas e
observa as providências que deveriam ser tomadas para melhorar as condições materiais
destes templos e a conduta dos responsáveis que permitiam, muitas vezes, que o seu
espaço fosse arruinado, desonrando Deus, a Virgem Maria e os santos.

Segundo o Concílio de Trento, as visitas deveriam

estabelecer a doutrina sã e ortodoxa, excluídas as heresias, manter os bons


costumes, emendar os maus com exortações e admoestações, acender o povo
à religião, paz e inocência; e estabelecer o mais que o lugar, tempo e ocasião
permitir para proveito dos fiéis, segundo julgar a prudência dos que
visitarem.73
A utilização deste instrumento de fiscalização demonstra que algumas
disposições do Concílio não se limitavam à Europa, mas se estendiam às terras do
ultramar. Os visitadores deveriam ser prudentes em seus julgamentos, para determinar
as mudanças necessárias nas práticas católicas e nos costumes da população. O critério
de prudência, situado entre as primeiras “virtudes políticas”, relacionava-se à
capacidade de atentar-se ao passado para que fosse possível tomar providências
cautelosas no presente e compreender os “resultados” futuros 74. Os visitadores,
portanto, deveriam observar com calma as especificidades da paróquia e determinar,
com responsabilidade, as mudanças necessárias. As visitas funcionavam como um
importante instrumento para alcançar este objetivo.

As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794 reuniram


informações sobre as capelas. É possível encontrar dados como: o ano em que elas
foram edificadas, os nomes dos responsáveis pelas edificações, as condições às quais se
encontravam para o culto e o seu patrimônio. No que se refere à população, as Visitas
funcionaram como um censo que registrou o número de residências, adultos e crianças
da localidade. Há ainda breves relatos sobre o modo de vida de alguns clérigos, como
pode ser observado nos trechos a seguir.

73
SALES, Francisco Neto apud GALDAMES, Francisco Javier Müller. Entre a cruz e a Coroa: a
trajetória de Mons. Pizarro (1753-1830). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro. UFF. 2007.
p.30.
74
HANSEN, João Adolfo; PÉCORA, Antônio Alcir Bernárdez. Glossário de categorias do século XVII.
39

1º - O Reverendo. Luiz Inácio de Pina, natural do Bispado, de idade


de 53 anos, ordenado em Lisboa pelo Exmo. Bispo de Macau [...]. É
moralista e atualmente confessor, vive de suas ordens e das suas lavouras.
Quando pode, serve a esta Igreja.
2º - O Reverendo José Alvares, natural do Arcebispado de Braga, de
idade de 39 anos ordenado no mesmo Arcebispado pelo Sereníssimo Sr.
Arcebispo D. Gaspar, no ano de 1784. Residente nesta freguesia desde o ano
de 1792 e com atual faculdade para usar das suas ordens e ser confessor. É
moralista e capelão da capela de N. Sra. da Madre de Deus, no Engenho da
Posse. Vive de suas ordens e de suas lavouras, serve muito a esta igreja e é de
bons costumes.
3º - O Reverendo Antônio Maciel da Costa, natural do Bispado, de
idade de 59 anos, ordenado em São Paulo no ano de 1763. Foi aprovado para
confessor, mas hoje só usa de suas ordens por faculdade de V. Excelência.
Vive de seu engenho de açúcar. Nada me constou contrário dos seus
honrados sentimentos e próprios de um eclesiástico sério.
4º - O Reverendo José Vasques de Souza, natural do Bispado, de 45
anos, ordenado por V. Excelência em 1779. Nunca foi aprovado para
confessor e só tem o uso de suas ordens, por faculdade de V. Excelência.
Vive de seus Engenhos de açúcar e nada me constou sobre o seu
procedimento e conduta contrário aos seus deveres.75

A partir desta transcrição é possível notar que as visitas pastorais cumpriram em


Santo Antônio de Jacutinga o seu papel em relação à fiscalização da conduta do clero.
Conforme pôde ser observado, há, no documento, informações sobre o comportamento
dos reverendos. Neste caso, são informações consideradas positivas referentes ao
moralismo, bons costumes ou “aos sentimentos próprios de um eclesiástico sério”. Há
também informações sobre os clérigos que contrariavam a doutrina católica, mas que
não foram interpretadas por Monsenhor Pizarro como pontos negativos. O fato de todos
os agentes eclesiásticos mencionados assumirem funções seculares, já que além de suas
ordens, viviam de sua lavoura ou engenhos, parece não ter incomodado o visitador, já
que não há qualquer ressalva em seu relato sobre o assunto.

Jorge Victor de Araújo Souza observou a prosperidade política e econômica dos


monges da Ordem de São Bento no Rio de Janeiro. Segundo o autor, ao tentar
reproduzir o modelo dos mosteiros de Portugal76 na América Portuguesa, os beneditinos
se depararam com as peculiaridades de uma sociedade sustentada economicamente pela

75
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
76
Segundo Jorge Victor de Araújo Souza, em Portugal os mosteiros beneditinos “constituíram casas que
detinham poder local, por meio da administração de coutos e de influência política e jurídica.” Os
membros da ordem eram escolhidos com base em critérios, como a erudição dos religiosos, o nível de
riquezas ou o seu perfil social. SOUZA, Jorge Victor de Araújo. “Poder local entre ora et labora: a casa
beneditina nas tramas do Rio de Janeiro seiscentista”. In: Tempo. Revista do Departamento de História da
UFF. Rio de Janeiro, v. 32, 2012.p.71.
40

mão de obra escrava nos engenhos de açúcar. Conforme mencionado anteriormente77, a


história do Recôncavo da Guanabara foi marcada desde fins do século XVI pela
presença de monges beneditinos em seu território. O clero de Jacutinga tornou-se parte
da elite colonial, detendo poder e influência locais. As atividades seculares dos
reverendos estavam ligadas à falta de auxílio da Real Fazenda, conforme indicou
Monsenhor Pizarro ao relatar a situação da igreja de Santo Antônio de Jacutinga 78.
Além disso, a aceitação de tais atividades pelo visitador demonstra que se tratavam de
práticas comuns entre os religiosos da América portuguesa, uma evidência da adaptação
do Catolicismo às peculiaridades do ultramar.

As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro possibilitaram, portanto, que por


meio das percepções do visitador fosse possível ter uma visão geral das freguesias do
Rio de Janeiro no século XVIII. Além disso, considera-se que estas mesmas visitas
tenham contribuído para a transformação das práticas religiosas católicas no Recôncavo
da Guanabara, ao passo que identificavam os bons e os maus usos das capelas pelos
clérigos e pelos fiéis.

1.2.1.2. As visitas nos registros paroquiais de Santo Antônio de Jacutinga

As visitas pastorais foram utilizadas como um dos instrumentos da tentativa de


expansão da Reforma católica na América portuguesa. Ainda que o intuito fosse o de
reproduzir as disposições do Concílio de Trento, no que diz respeito à ereção de templos
religiosos, à conduta dos clérigos e à participação dos fiéis nos cultos religiosos, a Igreja
precisou adaptar as suas pretensões ao Catolicismo já praticado pelos leigos no
cotidiano colonial.

No Recôncavo da Guanabara, além das famosas visitas realizadas e


documentadas por Monsenhor Pizarro é possível ter acesso a outras visitas nos registros
de batismo, casamento e óbito da região. Monsenhor Pizarro não foi o primeiro a visitar
as capelas do Recôncavo, havendo registros de visitas a partir do final do século XVII
no primeiro livro de registros paroquiais de Santo Antônio de Jacutinga. Reunidas e
organizadas em um único documento, temos conhecimento apenas das Notícias do
Bispado do Rio de Janeiro no ano de 1687 e das Visitas de Monsenhor Pizarro no ano

77
Ver páginas 12 e 13.
78
Ver página 24.
41

de 1794, que podem ser encontradas transcritas e digitalizadas no arquivo da Cúria


Metropolitana do Rio de Janeiro. Infelizmente, graças ao mau estado de conservação do
documento, nas Notícias do Bispado não foi possível identificar o nome do visitador,
como em alguns outros casos que apresentaremos adiante. As Notícias do Bispado
apresentam poucas informações detalhadas sobre as capelas do Recôncavo da
Guanabara, mas destacam-se quanto à contagem do número de habitantes. O documento
apresentou o número de residentes dos territórios das capelas curadas da região, os
nomes dos padres curados e dos seus proprietários ainda no século XVII.

Dispersas em meio à documentação analisada, reunimos as outras visitas


realizadas e registradas nas capelas de Santo Antônio de Jacutinga. Ao todo, foram
contabilizados vinte e dois registros de visitas nos livros de assentos paroquiais de Santo
Antônio de Jacutinga79 no século XVIII. Demos preferência ao período estudado, mas é
importante ressaltar que as visitas nos documentos têm início em 1688 e diminuem no
século XIX. No livro de batismos, matrimônios e óbitos de 1686 à 1721 foram
registradas, no século XVIII, duas visitas. A primeira delas foi realizada em 1701 e a
última em 1707. Por se tratar de um livro misto, para cada sacramento foram realizadas
visitas em momentos diferentes. No mesmo livro, na parte reservada aos matrimônios,
há quatro registros de visitas realizadas, uma em 1704, duas em 1715 e a última no ano
de 1721. Não há visitas registradas na parte do documento reservada aos óbitos. No
livro de batismos de 1764 à 1796 foram registradas doze visitas. A primeira foi datada
em 1764 e as demais, respectivamente nos anos de 1768, 1772, 1774, 1781, duas em
1783, uma em 1784 e duas em 1786. Infelizmente, duas das observações dos visitadores
encontram-se com a data ilegível, devido aos danos sofridos pelo documento. Já no
livro de batismos, referente ao período de 1790 à 1807, não há registros de visitas no
período estudado. No último livro disponível, referente aos óbitos ocorridos no período
entre 1785 e 1809, há apenas dois registros de visitas, o primeiro em 1789 e o segundo
em 1795.

A partir dos dados apresentados, acredita-se que não tenha havido um padrão
predominante em relação ao intervalo entre as visitas, visto que entre os anos de 1764 e

79
Os livros de registros paroquiais utilizados nesta análise foram os de batismos, matrimônios e óbitos de
1686 à 1721, de batismos de 1764 à1796, 1790 à 1807, de matrimônios de 1795 à 1804 e de óbitos de
1785 à 1809. Disponíveis em: <https://www.familysearch.org/search/collection/list.> Último
acesso:04/2011.
42

1796 foi possível observar um aumento no número de visitas e, inclusive, casos de duas
visitas em um mesmo ano, enquanto em outros períodos, como no caso dos batismos
referentes aos anos de 1790 à 1807 não há qualquer registro destas fiscalizações.

As observações dos visitadores foram inseridas em meio aos registros paroquiais


e a maioria seguiu o padrão simples de registrar a observação “vistos em visita”, junto
ao nome da freguesia, à data da visita e ao nome do visitador. Acredita-se que esta
forma seja derivada da observação mais completa “visto em visita, mandamos [que] se
continuem na mesma forma que dispõe o sagrado Concílio Tridentino”, que se referia à
organização dos assentos pertencentes ao livro, encontrada em outros casos.

Além das formas mais comuns, há informações que demonstram a preocupação


dos visitadores com a organização dos registros paroquiais. Tanto as observações
positivas quanto as negativas estavam relacionadas à disposição das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia sobre a obrigatoriedade de haver em cada paróquia
um livro reservado aos assentos de batismo, matrimônio e óbito.

A definição sobre a confecção do livro de batismos foi adotada para os outros


livros de registros paroquiais. Neste caso, as Constituições definiram que

Para que em todo o tempo possa constar do parentesco espiritual que se


contrai no sacramento do batismo e da idade dos batizados, ordena o sagrado
Concílio Tridentino que em um livro se escrevam seus nomes e de seus pais e
mais os dos padrinhos. [...] mandamos que em cada igreja do nosso
arcebispado haja um livro encadernado feito às custas da fábrica da igreja [...]
o [...] livro será numerado e assinado no alto de cada folha por nosso
provisor, vigário geral ou visitadores [...] e estará sempre fechado na arca, ou
caixões da igreja debaixo de chave[...].80
O título XX das Constituições, dedicado à organização do livro de batismos,
estabelece um modelo que deveria ser seguido pelos párocos, que incluía os principais
dados do batizando, juntamente aos nomes dos pais e dos padrinhos. Há várias outras
recomendações no documento que dizem respeito aos sacerdotes. Aos párocos caberia
organizar e zelar pela conservação dos registros paroquiais que facilitavam o trabalho
dos visitadores. Por meio deles era possível ter acesso ao número de católicos da região
e, inclusive, fiscalizar a conduta destes mesmos párocos, analisando o seu
comprometimento com as disposições do Concílio, reafirmadas pelas Constituições.

Numa visita realizada em 1777, o visitador escreveu: “vistos em visita, deve o


reverendo padre declarar o lugar em que são moradores os pais dos batizandos.
80
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XX. Claúsula 70.
43

Freguesia de Jacutinga [...] 1777.”81 Neste caso, como em alguns outros, o visitador,
que não foi possível identificar, adverte o pároco por meio desta pequena observação
sobre os acertos necessários nos registros fiscalizados por ele. Este tipo de ação
apareceu outras vezes durante a análise dos registros das visitas nos assentos paroquiais.
Numa visita realizada pelo visitador Mayrink, há a seguinte observação: “vistos em
visita, o padre pároco declare o dia em que nasceram os batizandos. Freguesia de
Jacutinga. Aos 22 de outubro de 1786.”82 Estes dois casos demonstram o hábito de
observância paroquial dos visitadores, defendido pelo Concílio de Trento. Era
necessário adequar os livros de assentos paroquiais ao padrão redefinido pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. A maioria das observações nos
registros de batismo era positiva, ou seja, nas palavras dos próprios visitadores, estava
dentro da “forma que dispõe o sagrado Concílio Tridentino”.

Nesta visitação de 1764, as observações são apresentadas de forma distinta:

Reverendíssimo Senhor vigário visitador.


Diz o padre Philippe de Siqueira Unhão, vigário da freguesia de Santo
Antônio de Jacutinga que ele tem comprado um livro que [...] servir dos
assentos dos batizados de brancos e forros, como não pode escrever nele os
ditos assentos e ter rubricado por não incorrer da pena da Constituição carece
de fazer vários assentos por estar acabado o outro.83
Esta observação encontra-se no início do livro de batismos, conforme a
prescrição das Constituições, com a devida assinatura do visitador, que não escreve o
nome, mas cita o seu cargo já no início do documento. Acredita-se que esta primeira
observação seja referente à justificativa do próprio pároco quanto à necessidade de
registrar alguns assentos de batismo de brancos e forros em um novo livro.

A justificativa foi respondida abaixo por um visitador que assinou como


visitador Machado, a observação dizia: “o Reverendo pároco poderá rubricar o livro [...]
Abril, 23 de 1764.”. Ao lado desta resposta há outra observação:

Para a Vossa Majestade seja servido mandar que se vão fazendo [...] os
assentos até a alegada [...] visita a esta freguesia para [en]tão ser rubricado ou
de ter quem o rubrique grátis por[que] a fábrica é pobre.
E.R.M [...]84

81
Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796. fl.106v.
82
Idem fl.169v.
83
Idem. fl. 04.
84
Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796. fl.04.
44

A informação de que a fábrica da paróquia era pobre confirma a afirmação de


Monsenhor Pizarro de que a igreja era mantida a partir das doações dos moradores.
Conforme já foi mencionado, a igreja de Santo Antônio de Jacutinga não contava com o
auxílio financeiro da Real Fazenda, como pode ser notado pela justificativa do visitador
não identificado. Esta observação demonstra um dos traços de adaptação do Catolicismo
à realidade do Recôncavo da Guanabara setecentista. Embora houvesse engenhos na
região, o auxílio oferecido pelos paroquianos não era suficiente para manter a igreja
totalmente dentro dos padrões determinados pelo Concílio Tridentino. Mas, no que foi
possível, os visitadores alertaram os párocos para o cumprimento das disposições das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que já consideravam a necessidade
de adaptação de algumas normas à realidade local.

Além da interpretação sobre as observações, há de se considerar que estes


pequenos registros nos livros de assentos eram utilizados como instrumentos de
comunicação entre os agentes eclesiásticos. Por meio destes, os visitadores expunham
as suas percepções sobre os registros, avaliando, simultaneamente, a conduta dos
párocos responsáveis pela igreja de Santo Antônio de Jacutinga.

Em três visitas à freguesia de Santo Antônio, nos anos de 1783, 1784 e 1786, o
visitador Manoel Henrique Mayrink85 realizou o sacramento da confirmação, ou seja,
crismou, os paroquianos da região. Esta ação chamou atenção, devido à sua raridade nos
registros analisados, tendo em vista que não há registros deste ritual nos outros livros
analisados.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

O segundo sacramento da santa madre Igreja é o da confirmação, que Cristo,


Senhor Nosso, instituiu para que por meio dele se fortalecessem na sua graça
e fé os já batizados [...] o Ministro ordinário deste sacramento é só o bispo e
porque só ele pode ser, excede este sacramento e o da ordem a todos os mais

85
Nascido no Rio de Janeiro. Serviu à Capelania da Candelária, em 1767, depois de egresso da
Companhia de Jesus. Formou-se em Cânones, em Coimbra. “Exerceu o lugar de Mestre de Cerimônias do
solo episcopal do Rio de Janeiro e com portaria de 1777 visitou as igrejas e comarcas do Norte, por cujo
serviço lhe foi conferido o reitorado do seminário de São Joaquim, pela portaria de 26 de abril de 1779”.
Segundo Monsenhor Pizarro, o religioso “regeu com prudência e muito acerto a mocidade confiada à sua
direção, fazendo-se utilíssimo aos jovens, ao público e ao bispado que abundou de sujeitos mui hábeis
para o serviço da Igreja.” Com portaria de 05 de julho de 1780 e de 04 de abril de 1784 voltou ao
exército das visitas, tanto das igrejas e comarcas do Norte, como do Recôncavo “[...] por novas portarias
de 1786 e 1790 continuou as visitas das igrejas do Recôncavo[...]”. ARAÚJO, José de Souza Azevedo
Pizarro e. Memorias historicas do Rio de Janeiro e das provincias annexas à jurisdicção do Vice-Rei do
Estado do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Imprensa Régia. 1820.
Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/182898>. Último acesso: 08/09/2012.
45

sacramentos. Os efeitos próprios deste sacramento [...] são aumentar a graça


e roborar na fé aos que o recebem [...] e os que por desprezo não o recebem
pecam mortalmente.86
No caso da região de Santo Antônio de Jacutinga, a crisma foi realizada por um
visitador, nomeado pelo bispo e, portanto, um representante legal do prelado. Como
parte das obrigações de observância paroquial e instrução da fé, a realização do
sacramento da confirmação era responsabilidade dos bispos, conforme as normas do
documento, mas poderia ser realizada por enviados seus com a devida licença
necessária.

Segundo o documento normativo, os registros do sacramento da confirmação


deveriam ser documentados nos livros de batismos das paróquias pelo pároco “para
constar a todo tempo as pessoas que estão crismadas e o parentesco espiritual que, em
razão deste sacramento, se contrai, conformando-nos com a disposição do sagrado
Concílio Tridentino”87. Nestes registros, além da data da realização do sacramento, o
religioso escrevia o nome do bispo, arcebispo ou visitador que o realizou, seguido dos
nomes dos crismados e de seus padrinhos ao lado. As Constituições deixaram claro que
cada crismando deveria ter apenas um padrinho do mesmo sexo “por honestidade”. As
listas encontradas nos registros de Santo Antônio de Jacutinga corresponderam a esta
exigência. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia prescreveram como
responsabilidade dos párocos avisar aos visitadores sobre o número de pessoas que
deveriam receber o sacramento e definiram que estes mesmos visitadores deveriam
administrá-los, por obrigação, quando achassem necessário.

Em 1783, o vigário Sebastião da Costa Montalvão, registrou 88 crismas


realizadas pelo visitador na igreja de Santo Antônio de Jacutinga. No mesmo ano, foram
registrados os nomes dos paroquianos que se declararam crismados na capela de Nossa
Senhora do Pantanal e na mesma igreja matriz de Jacutinga. Na capela mencionada, 63
pessoas declararam já ter recebido o sacramento da confirmação, enquanto na paróquia,
o número de confirmados foi de 50 pessoas.88

Conforme mencionado anteriormente, a capela de Nossa Senhora da Conceição


do Pantanal, nos arredores de Santo Antônio de Jacutinga possuía pia batismal, podendo
realizar batismos com a licença do pároco da região. A partir dos números, podemos

86
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXI. Cláusula 76.
87
Ibidem. Cláusula 81.
88
Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796.
46

observar que o sacramento da confirmação também pôde ser realizado na capela, que
receberá posteriormente elogios, de Monsenhor Pizarro, sobre a sua decência e asseio.89
A capela superou o número de crismados declarados da paróquia de Santo Antônio de
Jacutinga neste período. Em 1784, o próprio visitador Manoel Henrique Mayrink
crismou 20 paroquianos nesta mesma capela.90 Já no ano de 1786, o número de
crismados pelo visitador aumentou, na igreja de Santo Antônio de Jacutinga, para 285
pessoas, declaradas como brancas, forras e escravas.

O número de crismas realizadas na região demonstra a intenção das autoridades


religiosas de manter o Catolicismo em Jacutinga e pode também sugerir o interesse dos
paroquianos de confirmar o seu desejo de continuar a fazer parte da cristandade. O
visitador em questão, com a devida licença para realizar este ritual assumiu a função de
pastor de almas, delegada aos bispos, não apenas organizando o livro de assentos
paroquiais, mas principalmente encarregando-se de garantir a permanência de alguns
paroquianos, já batizados, na fé católica.

No livro de batismos, matrimônios e óbitos de 1686 à 1721 há uma observação


que se refere à organização dos assentos de matrimônio. Segundo as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, os registros de matrimônio também deveriam
apresentar-se em um livro próprio em cada paróquia. O modelo regulamentado continha
o nome dos casados, de seus pais e testemunhas, além da data e igreja onde receberam o
sacramento, juntamente à assinatura do pároco responsável.91 Em Santo Antônio de
Jacutinga, a observação referente à visita de 1704, pelo bispo D. Francisco de São
Jerônimo92 diz respeito à necessidade de registrar o matrimônio, especificando se eram
de pretos ou pardos escravos.

No livro de óbitos de 1790 à 1807 há apenas dois registros de visitas. O


primeiro, realizado em 1789, também solicitava ao pároco mais detalhes ao registrar o

89
Ver página 30.
90
Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796. fl. 150.
91
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXXIII. Cláusula 318.
92
Nasceu em Lisboa. Foi ordenado sacerdote na igreja do Mosteiro de Alcobaça, em 1671. Tornou-se
doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra e por 12 anos lecionou Teologia nas casas da
congregação em Coimbra e em Évora. “Desempenhou os cargos de Qualificador da Inquisição e geral da
sua Congregação.” Foi sagrado bispo do Rio de Janeiro em 1702 e em 1704 visitou as igrejas da cidade e
do Recôncavo. Foi considerado “o mais santo dos bispos do Rio de Janeiro”, destacando-se pela intenção
de transformar o clero, tornando-o mais “instruído e piedoso” por meio de uma pastoral que exigia dos
ordenandos o estudo da Teologia moral. Foi o bispo anterior à D. Frei Antônio de Guadalupe e faleceu
em 1721, aos 83 anos. PAIVA, José Pedro. Os Bispos de Portugal e do Império: 1495-1777. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 2006.
47

óbito. “Vistos em visita. Decla[rar] os nomes dos maridos das viúvas e das mulheres
dos viúvos que faleceram para melhor clareza desses assentos [...] Freguesia de
Jacutinga aos 22 de setembro de 1789. Visitador [Mayrink].”93

O segundo e último registro diferenciou-se de todas as outras observações


analisadas. Datado no ano de 1795, o próprio Monsenhor Pizarro encarregou-se de
escrever no livro de óbitos o seguinte:

Visto em visita, o reverendo vigário faça com a sua letra todos os assentos
nestes e nos mais livros da sua paróquia assim como está determinado na
Constituição [...] falando dos assentos dos batizados que deve entender-se e
aplicar-se a todos os demais que forem de igual natureza e públicos. [...]
Como tais, não deve consentir que outra pessoa sem autoridade, redito e fé
escreva coisa alguma neles. E assim o cumpra. Freguesia de Jacutinga. 21 de
março de 1795. Visitador Pizarro.94

Neste caso, Monsenhor Pizarro demonstrou a sua insatisfação com relação à


administração dos registros pelo pároco. Era responsabilidade do pároco impedir que
outros “sem autoridade, redito ou fé” registrassem os sacramentos, já que a
determinação da Igreja, confirmada na América portuguesa pelas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, era de que apenas os párocos se encarregassem de
organizar a sua paróquia, o que incluía o ministério dos sacramentos e os seus registros.

Monsenhor Pizarro, ao advertir o vigário, pediu para que todos os assentos


fossem escritos por ele e citou a disposição das Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia que diz respeito às regras para confecção dos livros de batismo. O visitador
referia-se à seguinte disposição:

E ao pé de cada assento se assinará o pároco ou sacerdote que fizer o


batismo, de seu sinal costumado[...] antes de sair da igreja, sob pena de mil
réis por cada falta, escrevendo tudo ao comprido e não por breves nem por
conta e letras de algarismo, sob a mesma pena para a fábrica e meirinho. Mas
se o sacerdote que batizar não for o próprio pároco, seu cura ou substituto
não fará o assento do batismo, porém o fará o próprio pároco no mesmo dia,
declarando, que nele batizou N. de tal parte de licença do Ordinário ou sua
[...]95
Além de chamar atenção para a inviabilidade da confecção de livros paroquiais
pelos leigos, a observação do visitador também se referia à conduta do pároco. Ao
adverti-lo, o visitador relembrou, mesmo que indiretamente, a superioridade dos
clérigos em relação aos leigos, reafirmando a função do pároco no que diz respeito à

93
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga. 1785-1807.
94
Idem. fl.64.
95
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XX. Cláusula. 70.
48

realização e organização dos registros paroquiais. Os clérigos eram os únicos


capacitados a prestar serviços religiosos para a população96. Segundo Jean-Claude
Schmitt

A relação dinâmica que existe entre clérigos e leigos explica-se, em primeiro


lugar pela complementaridade de suas funções na sociedade cristã. Trata-se,
antes de mais nada, de uma relação de intercâmbio entre bens espirituais que
só os clérigos podem dispensar, e bens materiais que os leigos têm o dever de
produzir.97
Embora a relação entre clérigos e leigos fosse complementar, como definiu o
autor, a função de ambos se diferenciava. Apesar da necessidade de agir na sociedade,
os clérigos se distinguiam dos leigos pela escolha do celibato 98. Eleitos por Deus, eles
representavam certa superioridade espiritual em relação aos outros fiéis, mas também
recebiam a responsabilidade de garantir a realização dos rituais religiosos. Neste caso, a
insatisfação de Monsenhor Pizarro em relação à administração do livro de registros de
óbitos pode ser justificada pelo fato do pároco ter ignorado as normas dispostas pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

A partir destas considerações, é possível observar a tentativa de transformação


do catolicismo no Recôncavo da Guanabara do século XVIII. A região do Recôncavo,
construída por meio de suas relações sociais, ganhou sentido a partir da criação e da
adaptação de referências católicas em seu cotidiano. Embora parte das fontes sobre a
região encontrem-se danificadas, é possível ter acesso à ricas informações sobre as
práticas religiosas de origem católica que se desenvolviam em seu cotidiano. A análise
documental demonstrou o compromisso por parte dos visitadores em respeitar as
disposições do Concílio Tridentino, baseados, sobretudo, nas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, demonstrando que, embora sofresse adaptações, o
Catolicismo no ultramar apoiava-se em uma base normativa.

Nomeada freguesia desde o século XVII, Santo Antônio de Jacutinga teve suas
práticas religiosas, católicas, intensificadas a partir do século XVIII. O crescimento

96
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2006. p.248.
97
Ibidem. p. 238..
98
A regra do celibato clerical foi aplicada rigorosamente a partir da Reforma gregoriana, no século XI.
Cf: BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Edições 70, Lisboa: 1986; GOMES, Francisco José
Silva. “A Cristandade medieval entre o mito e a utopia”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de
Pós-Graduação em História da UFRJ, vol. 5, 2002; LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude.
“Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2006;
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro. Jorge Zahar.
1993.
49

demográfico da região, possível graças à sua inserção nas rotas comerciais, coincidiu
com o período em que a tentativa de reforma católica ganhava espaço na realidade da
América portuguesa. Neste período, o desmembramento e a construção de novas
capelas foram amplamente defendidos pelos fiéis, que muitas vezes se deparavam com a
impossibilidade de acesso aos templos religiosos, e pelos bispos, pela possibilidade de
observar de perto o comportamento dos párocos, dos fiéis e enquadrar as práticas
religiosas às normas das Constituições. As visitas, realizadas pelos bispos ou por
enviados seus, cumpriram em Santo Antônio de Jacutinga o seu papel de
enquadramento religioso, utilizadas como um instrumento de comunicação do bispo
com os párocos e até mesmo com o restante da população do Recôncavo.

A formação e a adaptação do Catolicismo foram elementos essenciais para a


construção da história de Santo Antônio de Jacutinga. Esta dinâmica, demonstrada neste
capítulo, se deu em torno, sobretudo da igreja paroquial de Santo Antônio de Jacutinga.
Veremos que, simultaneamente às práticas realizadas na igreja principal, o Catolicismo
na região alcançou outras dimensões, a partir dos oratórios privados e das capelas de
engenho que a compunham.
2 AS CAPELAS DE SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA

2.1 PÚBLICO E PRIVADO NOS ESPAÇOS RELIGIOSOS DE SANTO ANTÔNIO


DE JACUTINGA

Conforme observamos no capítulo anterior, ao final do século XVII e início do


XVIII, o número de capelas edificadas no Recôncavo da Guanabara sofreu um aumento,
devido ao seu desenvolvimento social. Segundo Monsenhor Pizarro, em 1794, seis
destas capelas ainda funcionavam1 e, algumas tinham permissão para realizar
determinados rituais católicos. Como demonstramos, o único templo religioso
mencionado nos documentos como “igreja” era a paróquia de Santo Antônio. Algumas
vezes, ela também era apresentada como igreja matriz ou igreja principal. Os espaços
religiosos menores, mas que contavam com a presença de um sacerdote para realizar as
celebrações, eram referidos como capelas. Havia também os oratórios privados, não
mencionados como capelas nos documentos, mas, muitas vezes, utilizados como tais,
conforme demonstraremos no decorrer do capítulo.

Esta distribuição de capelas na região compôs, nas palavras de Sérgio Chahon,


uma “geografia do sagrado”, tendo em vista que a reunião de participantes da missa
ocorria

não apenas diante de altares aninhados junto às paredes internas dos templos
(espaço sagrado), mas também perante outros localizados fora deles,
instalados em cômodos especialmente preparados de residências particulares
de feitio diverso e ainda erguidos ao ar livre, em áreas descampadas. 2
A partir das informações sobre as capelas, disponibilizadas por Monsenhor
Pizarro, procuramos outras fontes sobre o assunto. No Arquivo da Cúria Diocesana de
Nova Iguaçu, foram encontrados apenas registros paroquiais de batismo, matrimônio e
óbito. Já no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, foi possível ter acesso a
poucos, mas significativos, breves apostólicos de oratórios privados e altares
privilegiados do Recôncavo da Guanabara setecentista. Antes de analisar esta
documentação, é necessário apresentá-la brevemente, considerando que a compreensão
sobre como foi produzida permite que reflitamos sobre as relações sociais existentes na
região.

1
Já mencionamos, no capítulo anterior, a toponímia das capelas de Santo Antônio de Jacutinga, segundo
Monsenhor Pizarro e os rituais que poderiam ser realizados nestes espaços religiosos. Ver páginas 16 e
17.
2
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.31.
51

Um breve era um documento geralmente pequeno, menor do que outros


documentos eclesiásticos, como a bula papal, por exemplo. Dedicava-se a um único
assunto e era emitido pela Cúria romana ou por intermédio de um núncio apostólico.
Nos breves de Santo Antônio de Jacutinga, é comum encontrar saudações com a
expressão “debaixo do anel do pescador”. Esta expressão demonstrava a legitimidade do
documento, comprovando a sua autoria pelo Papa. O anel, utilizado pelos papas, era
gravado com a imagem do apóstolo Pedro, pescando, e também servia como um selo
para fechar as correspondências da Santa Sé3. Este selo, fixado aos breves, era
“impresso em cera vermelha, para conservar os benefícios aos que o alcançaram.”4

A existência de documentos deste tipo no Recôncavo da Guanabara despertou o


interesse de descobrir que tipo de informações sobre as capelas da região poderiam ser
retiradas de sua análise. Apesar da riqueza de informações que podem ser encontradas
nos breves apostólicos, os documentos ainda são pouco utilizados como fontes pelos
historiadores. Neste sentido, compreende-se a importância do trabalho de Sérgio
Chahon sobre as missas e a vivência religiosa no Rio de Janeiro5, pelo pioneirismo do
autor ao utilizar estes documentos para analisar o cotidiano religioso da população da
região. A sua leitura é indispensável para os historiadores que pretendem fazer uso dos
breves.

Durante a pesquisa documental foram reunidos onze breves que correspondiam


ao Recôncavo da Guanabara no século XVIII6. Neste capítulo, fazemos uso, apenas, de
três breves, referentes a Santo Antônio de Jacutinga no mesmo período. Foram
3
HASSETT, Maurice. "The Ring of the Fisherman”. In: The Catholic Encyclopedia. vol. 13. New York:
Robert Appleton Company, 1912. Disponível em : <http://www.newadvent.org/cathen/13060a.htm>.
Último acesso: 12/2012.
4
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br>
p.190.
5
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
6
Foram encontrados os seguintes documentos na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro: Breve
apostólico (BA) de oratório privado. Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. 1733. Notação 025; BA de
oratório privado. Freguesia de N. Senhora do Pilar de Iguaçu, Fazenda da Posse, 1733. Notação 026; BA
de oratório privado da Freguesia de N. Sra. do Pilar de Iguaçu, Fazenda da Posse, 1745; Notação 80; BA
de oratório privado da Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, 1746. Notação 086; BA de altar
privilegiado para Sant‟Ana, Freguesia de N. Sra. do Pilar de Iguaçu, 1749. Notação 105; BA de oratório
privado da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, 1756. Notação 146; BA de capela de Nossa Senhora
da Conceição da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, 1757. Notação 158; BA de oratório privado da
Freguesia de N. Sra. do Pilar de Iguaçu, 176. Notação 176; BA de oratório privado da Freguesia de N.
Sra. do Piedade de Iguaçu, 1767. Notação 178; BA de solicitação de missa em casa da freguesia de N.
Sra. da Piedade de Iguaçu, 1784. Notação 238; BA de altar privilegiado de N. Sra do Rosário da freguesia
de N. Sra. da Piedade de Iguaçu, 1796. Notação 306.
52

analisados dois breves de oratório privado e apenas um de capela de engenho.7 Embora


tenham recebido nomes distintos, veremos neste capítulo, que os oratórios privados
também poderiam funcionar como capelas na região. Discutiremos as diferentes funções
das capelas e os pré-requisitos para a obtenção destes espaços sagrados em Jacutinga,
articulando as possíveis motivações dos leigos ao solicitar tal benefício e o papel da
Igreja na aceitação destes pedidos.

No primeiro contato com os enunciados dos breves apostólicos, é inevitável


deparar-se com uma distinção entre público e privado. Privado, em sua acepção mais
simplificada, conforme definiu Raphael Bluteau significava “oposto a público, feito em
presença de pouca gente.”8 Esta separação, em verdade, é mais complexa do que
aparenta e apenas pode ser compreendida a partir da análise do conteúdo da
documentação. Afinal, o que determinaria o caráter “privado” de um oratório?

O oratório deveria ser um espaço para as orações “individuais”, um local


reservado aos santos, que possibilitasse “o exercício individual e privado de atos de
piedade e comunicação mística direta da criatura com Deus[...]”9. O seu funcionamento,
portanto, dispensava a presença de um eclesiástico. Por natureza, em um oratório os
sacramentos não poderiam ser realizados, pois estes eram considerados de caráter
público, comunitário, destinados a todos os paroquianos. Em outras palavras, os
oratórios deveriam ser reservados para a contemplatio ou oração pessoal, enquanto a
liturgia era própria das celebrações na igreja paroquial10. Embora esta distinção entre
público e privado tenha sido utilizada como um critério de identificação dos espaços
religiosos, as apropriações destes espaços pelos leigos modificaram tais acepções no
cotidiano colonial.

Sérgio Chahon identificou a transformação de oratórios no Rio de Janeiro em


altares de missas11. Em Santo Antônio de Jacutinga, é possível observar esta mesma

7
Analisamos os breves apostólicos de notação 025, 146 e 158, mencionados na nota de rodapé anterior.
8
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br>
p.750.
9
MOTT, Luiz. “Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, Laura de Mello
e. (org). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.p.156.
10
Ibidem.
11
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.43.
53

mudança no século XVIII. Os oratórios passaram a funcionar como capelas, tornando-se


espaços para a realização do santo sacrifício da missa e, inclusive, do sacramento do
batismo, em alguns casos.

De acordo com as Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794, a


freguesia de Santo Antônio de Jacutinga contava com cinco oratórios privados, ou como
o autor definiu, oratórios particulares. Ao enumerá-los, Monsenhor Pizarro apenas citou
os nomes dos proprietários destes espaços, não informando os nomes dos santos a eles
associados. Os cinco oratórios listados eram posses do Reverendo Luiz Inácio de Pina,
do Reverendo Antônio Manoel da Costa, de Domingos Jacinto Rosa, e dois do Capitão
Antônio de Pina.

Na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro tivemos acesso a quatro breves


apostólicos de Santo Antônio de Jacutinga. O primeiro breve, de 1746, refere-se ao
pedido de oratório do casal Cristóvão Mendes Leitão e Páscoa Maciel da Costa, pais do
Reverendo Antônio Manoel da Costa, citado por Monsenhor Pizarro como o herdeiro do
espaço religioso. Em 1756, o mesmo casal objetivou renovar a permissão para a
celebração de missas em seu oratório. O terceiro, de 1733, refere-se ao oratório do casal
João de Veras Correia e Dona Ana Maria Nascente, mas não foi possível identificar se o
dito oratório já não existia em 1794, quando Monsenhor Pizarro visitou a região ou se
passou às mãos de um dos proprietários citados pelo Cônego, já que não há menção nas
Visitas Pastorais do casal como os responsáveis pelo espaço religioso. O quarto breve,
de 1757, referia-se à reedificação da capela de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí,
posse de Francisco Antunes Lima.

Os breves de oratórios que trabalhamos neste capítulo referem-se a pedidos de


missa, ou seja, aqueles que fugiam à regra, contrariando em parte o objetivo primeiro
deste espaço religioso, que passava, a partir da aprovação do pedido, a depender da
presença de um eclesiástico licenciado para realizar o sacramento.

No breve referente ao oratório do casal Cristóvão Mendes Leitão e Páscoa


Maciel da Costa, de 1756, analisado no decorrer do capítulo, lê-se o seguinte:

Diz Cristóvão Mendes Leitão e sua mulher Páscoa Maciel da Costa que eles
alcançaram da Santa Sé e Apostólica um breve para poder celebrar missa no
oratório das casas de vivenda, que têm na freguesia de Santo Antônio de
Jacutinga, distrito desta cidade. [...] Sendo aceito por Vossa Excelência [...]
54

justificadas as premissas nele alegadas [...] concedeu a da graça de dez anos


que findaram em 28 de maio do presente ano [...].12
Neste caso, o breve apostólico não se refere a um pedido para obtenção de
oratório privado. O casal já o possuía, graças à aprovação que obteve em 1746, e
pretendia ter a permissão para celebrar missas neste mesmo oratório. O que também
chama atenção neste trecho é a duração do pedido. Segundo Sérgio Chahon, “a licença
para conservar altar dentro de casa [...] apresentava, por sua vez, uma duração que podia
não ultrapassar alguns meses ou se estender por até três anos.”13 O caso descrito,
portanto, pode ser considerado incomum, já que o casal alegou fazer uso do oratório
como capela há dez anos, o que foi confirmado pelo breve anterior dos solicitantes.

Considerando que o oratório deveria ser um espaço próprio para a contemplatio,


transformá-lo em capela resultaria numa adaptação da liturgia e, portanto, nos induz a
considerar, conforme observou Fernando Novais, uma imbricação entre público e
privado14. Tal imbricação entre estas duas esferas pode ser observada em certas
adaptações sofridas pelas capelas, conforme afirmou Sérgio Chahon. O autor identificou
a existência de altares particulares nas igrejas paroquiais do Rio de Janeiro, mesmo com
a proibição de tal prática pelo bispo D. Frei Antônio do Desterro. O prelado tinha a
intenção de evitar que possíveis celebrações nestes espaços particulares tirassem a
atenção daqueles que participavam das missas na igreja paroquial, mas esta proibição
não impediu que este tipo de altar continuasse a existir nas igrejas paroquiais, tampouco
que as missas “privadas”, que deveriam limitar-se aos donos das “capelas domésticas”,
fossem abertas à vizinhança.15

O breve do casal Cristóvão Leitão e Páscoa Costa, de 1756, apresentou o


seguinte pedido:

[...] concedas e permitas [...] licença aos mesmos exponentes para que eles e
cada um deles em particular possa fazer que nos oratórios privados existentes
nas casas de sua habitação na cidade e bispado do Rio de Janeiro [...] por
qualquer sacerdote secular, por ti aprovado, ou regular, com licença de seus

12
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Breve apostólico. 146. fl.02.
13
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.50.
14
NOVAIS, Fernando A. “Condições da privacidade na colônia”. In: SOUZA, Laura de Mello e. (org).
História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. p.15.
15
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.36.
55

superiores [...] excetuando-se os dias festivos da Páscoa da Ressurreição,


Pentecostes e Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo e outros mais solenes
do ano e isto na sua presença, na de seus filhos consanguíneos e parentes por
afinidade e nas demais famílias que habitam juntamente consigo a mesma
casa [...] porém queremos que os seus filhos e parentes de consanguinidade e
afinidade referidos tão somente possam ouvir da dita missa estando presentes
os mesmos exponentes [...]16
A solicitação de missa transcrita corresponde à definição de privado como “feito
em presença de pouca gente”. Tal como definiu Roger Chartier, uma definição de
privado “que o identifica fundamentalmente com o espaço doméstico da família”17. A
restrição da missa para poucas pessoas, neste caso, remete-se à organização familiar
baseada na casa. A casa, “entendida como um conjunto coerente de bens simbólicos e
materiais, a cuja reprodução alargada estavam obrigados todos os que nela nasciam ou
dela dependiam”18 era o que definia quais seriam os ouvintes da missa privada. Neste
caso, os que tinham permissão para participar das celebrações religiosas, além dos
solicitantes, eram os demais membros da família. Como membros da família eram
compreendidos aqueles que tinham parentesco consanguíneo ou espiritual, que
dividissem a mesma casa ou o território que a compreendia. O que definia, neste caso, o
oratório como privado era para quem as celebrações religiosas eram destinadas.
Diferente da igreja paroquial, os oratórios obtinham a permissão para celebrar missas
apenas para alguns membros seletos da cristandade e não para toda a população. Mesmo
aqueles que acomodavam a vizinhança não poderiam receber todos os habitantes da
freguesia, por imposição das Constituições ou pela falta de uma estrutura física que
comportasse tantas pessoas.

Como é possível observar, no breve do casal, mesmo que as missas fossem


abertas à família, havia uma condição que deveria ser respeitada. Os familiares
dependiam da presença dos solicitantes para participar da celebração religiosa. Nota-se,
em outra passagem do mesmo documento, que os familiares poderiam ouvir as missas
tão somente na presença do casal ou quando acompanhados de uma das duas partes
solicitantes. Tal restrição estava relacionada à responsabilidade atribuída aos
solicitantes. Os donos do espaço religioso tinham o papel de promover a manutenção do

16
ACMRJ. Breve Apostólico 146. fl.03.
17
CHARTIER, Roger. apud MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Casa, casamento e nome: fragmentos sobre
relações familiares e indivíduos. In: MATTOSO, José. História da vida privada em Portugal: a Idade
Moderna. Lisbon: Círculo de Leitores, 2011. p.130.
18
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Casa, casamento e nome: fragmentos sobre relações familiares e
indivíduos. In: MATTOSO, José. História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisbon:
Círculo de Leitores, 2011. p.137.
56

oratório. Todas as alegações do documento correspondiam apenas aos solicitantes, que


se comprometiam como os únicos responsáveis por quaisquer mudanças ou infortúnios
causados no espaço religioso.

Outro ponto marcante presente na transcrição é a tentativa das autoridades


eclesiásticas de promover restrições, não apenas no que diz respeito ao número e à
qualidade dos ouvintes das missas, realizadas no oratório, mas principalmente, às
celebrações que não deveriam ser realizadas nos espaços considerados privados. Tal
restrição é demonstrada a partir da obrigatoriedade, que aparece diversas vezes no
documento, de se assistir às celebrações na paróquia nos dias de festividades solenes.
Mesmo que as missas pudessem eventualmente ser celebradas em capelas particulares,
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia definiram que tal celebração não
bastava para que o espaço religioso fosse considerado um lugar sagrado. Somente o
lugar “deputado para os ofícios e ministérios divinos ou para a sepultura dos mortos”
era assim considerado.

Ao comparar o pedido do breve apostólico à disposição das Constituições


Primeiras do Arcebispado das Bahia, é possível observar a valorização da igreja
paroquial como espaço sagrado, enquanto que o oratório, ainda que tivesse permissão
para celebrar missas, não recebia a mesma importância. O oratório, transformado em
capela, tinha permissão para celebrar missas ordinárias, ou seja, de devoção ou de
sufrágios, reservando as datas mais importantes do calendário católico à igreja paroquial
de Santo Antônio de Jacutinga. Esta determinação tinha o objetivo de demarcar e
diferenciar as funções das capelas e estava relacionada à seguinte disposição das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:

Conformando-nos como costume geral mandamos, a nossos súditos, que


ouçam missa conventual nos domingos e dias santos de guarda na igreja
paroquial, onde forem fregueses e a ela façam ir seus filhos, criados, escravos
e todas as mais pessoas que tiverem a seu cargo. Salvo aqueles que
precisamente forem necessários para o serviço e guarda de suas casas, gados
e fazendas. Mas estes se revezarão, para que não fiquem sempre sem ouvir
missa, antes vão ouvi-las uns em um dia, outros em outro, procurando,
porém, que quando não puderem ouvir missa conventual, ouçam outra se se
disser na mesma igreja ou em alguma capela. 19
De acordo com as Constituições, os fiéis deveriam “ouvir” as missas em dias
santos apenas na sua paróquia e ainda estavam encarregados de levar aqueles que
estivessem sob a sua responsabilidade. Para cada falta, o documento definiu uma multa
19
Livro segundo das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XI. Cláusula.367
57

no valor de um vintém. O controle da assiduidade dos fiéis era responsabilidade dos


párocos que deveriam perguntar aos paroquianos presentes, antes do início das
celebrações religiosas, quem eram os faltosos, havendo a possibilidade de agravar a
pena nos casos de faltas frequentes. Os paroquianos só poderiam ouvir as celebrações
em dias santos nas capelas, quando houvesse total impossibilidade de ouvi-la na
paróquia e, ainda assim, deveriam revezar uns com os outros para que não fosse sempre
a mesma pessoa a perder a missa.

Luiz Mott observou a competição existente entre as capelas de engenho e as


paróquias no século XVIII. Segundo o autor “as capelas [...] incorporaram [...] galerias e
corredores laterais, superpostos por tribunas”20 para aproximar-se da estrutura da
paróquia. Já observamos, no capítulo anterior, que em Santo Antônio de Jacutinga,
algumas vezes, o número de crismas realizadas na capela de Nossa Senhora do Pantanal
superou o número de crismados da igreja de Santo Antônio de Jacutinga. Esta
competição promovia, muitas vezes, uma mudança das funções das capelas de engenho,
resultando na realização de rituais de caráter público, como os sacramentos, que eram
próprios da paróquia.

No breve apostólico referente à capela de Nossa Senhora da Conceição do


Sarapuí é possível observar uma diferença de função em relação ao oratório privado,
analisado anteriormente.

Diz Francisco Antunes de Lima que no seu engenho [que] há pouco tempo
comprou [...] na fazenda de Nossa Senhora da Conceição [...] freguesia de
Santo Antônio de Jacutinga tem nesta uma capela pública e separada das
casas de vivenda [...] com [...] invocação da dita Senhora, cuja imagem se
acha colocada no altar da dita capela onde celebravam já os santos sacrifícios
da missa em que se não continuou depois, por falta de parâmetros e
ornamentos [...]21
Este caso refere-se a um pedido de reedificação de capela de engenho. O recém-
proprietário, Francisco Antunes de Lima, em 1757 encaminhou um pedido para
recuperar as funções, anteriormente atribuídas, da capela de sua fazenda no Saparuí. A
informação de que a capela era pública foi confirmada na documentação com
informações de que as missas celebradas neste espaço eram abertas “à vizinhança e aos
escravos”. Conforme indicado no documento, a capela foi impedida de funcionar por

20
MOTT, Luiz. “Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, Laura de
Mello e. (org). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.p.168.
21
ACMRJ. Breve apostólico 158. Fl. 04.
58

não apresentar os requisitos necessários para a realização dos rituais católicos.22 A


necessidade de reedificar a capela foi justificada pelo solicitante pela distância entre a
região do Saparuí e a paróquia de Santo Antônio de Jacutinga. Além de alegar a
dificuldade dos vizinhos e escravos terem acesso à paróquia, o senhor afirmou, ainda,
sofrer de “moléstia”, o que impossibilitaria o seu deslocamento até a igreja.

Monsenhor Pizarro dedicou uma boa parte de suas Visitas Pastorais para tratar
dessa capela. Em 1794, conforme já observamos no capítulo anterior, esta mesma
capela corria o risco de ser interditada, segundo o visitador, graças à falta de cuidado
dos seus proprietários anteriores. O autor afirmou que,

neste mesmo sítio, e em distância de poucas braças da referida capela, ainda


subsistem as paredes da igreja, que foi a matriz de Sarapuí, que à princípio
disse, fora desmembrada desta de Jacutinga. Ela teve por Orago a Senhora da
Conceição e o lugar ainda conserva o testamento de engenho da Conceição,
porque com esse mesmo testamento foi fundada a capela, em que se
estabeleceu a matriz.23
A partir desta transcrição é possível ter ideia da importância da capela de Nossa
Senhora da Conceição. Antes de tornar-se parte da freguesia de Santo Antônio de
Jacutinga, o orago de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí era representado pela
capela erguida em homenagem à santa. Neste caso, o templo religioso em questão foi
reduzido à condição de capela, mesmo tendo funcionado nos anos anteriores como
paróquia.

A capela de Nossa Senhora da Conceição, de certa forma, concorria com a


paróquia de Santo Antônio de Jacutinga e não se sabe se este fato influenciou a
avaliação negativa de Monsenhor Pizarro sobre a sua estrutura. Ao mesmo tempo em
que a Igreja incentivava a edificação de capelas, havia a necessidade de reafirmar a
importância da paróquia, como espaço verdadeiramente sagrado. Segundo Luiz Mott, as
“cerimônias e rituais públicos faziam parte integrante da cultura religiosa em Portugal
desde a época dos descobrimentos”24. Era nas igrejas paroquiais que os sacramentos
deveriam acontecer. Permitir que todos os rituais públicos fossem realizados nos
oratórios ou capelas de engenho esvaziaria as paróquias, restringindo as celebrações

22
Ver página 30.
23
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
24
MOTT, Luiz. “Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, Laura de
Mello e. (org). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.p.161.
59

religiosas a grupos seletos isolados em seus ambientes “domésticos”, ou seja, mais


distantes da tentativa de enquadramento religioso objetivado pela Igreja.

Monsenhor Pizarro indicou que no ano de 1674 a capela de Nossa Senhora


Conceição do Sarapuí já realizava o sacramento do batismo e também serviu como
espaço para sepultamentos, com base na existência de um livro de assentos da capela no
mesmo ano. Segundo o visitador

Em 1691, porque já estava a capela necessitada de conserto, mandou o


visitador Thomé de Freitas da Fonseca, que se reedificasse. O visitador José
de Moura impôs-lhe a pena de interdito e ao pároco a de suspensão se até a
Quaresma de 697 não se reedificasse, por achá-la incapaz de nela se celebrar
o que prometeram fazer seus padroeiros, o Reverendo Domingos Gomes, e
Simão da Cunha[...]25
De acordo com as informações de Monsenhor Pizarro, a capela de Nossa
Senhora da Conceição funcionou como matriz “enquanto teve sacerdotes, que pudessem
viver independentes dos reditos, e porção, que ofereceram os fregueses”26. Porém ao
apresentar dificuldades para manter a matriz e os seus sacerdotes, foi mais uma vez
incorporada à freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, pelo bispo Antônio de
Guadalupe, em 1736. Considerando a importância da capela em finais do século XVII, é
provável que, mesmo compondo uma parte da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga,
a capela de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí fosse capaz, pelo tempo de seu
funcionamento, de competir com a paróquia, realizando celebrações de caráter público.

Neste sentido, é possível considerar certo dinamismo na definição das capelas


como públicas ou privadas. Como apresentamos, a natureza privada de um oratório
definia-se pelo grupo seleto de pessoas que poderiam ouvir as missas ou, conforme o
seu objetivo inicial, o número de pessoas que o utilizavam para a contemplatio. Já a
natureza pública definia-se a partir da ampliação da quantidade de pessoas que
poderiam participar das celebrações religiosas. Normalmente, as igrejas paroquiais
encontravam-se em locais que possibilitavam a chegada de boa parte dos paroquianos.
Quando isto não era possível, capelas eram erguidas para suprir a carência espiritual dos
habitantes mais distantes e, muitas vezes, atendiam a objetivos políticos, como
demonstrar a influência daqueles que obtinham permissões para manter um espaço
religioso particular.

25
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
26
Ibidem.
60

2.2 BREVES APOSTÓLICOS: OS “ITENS JUSTIFICATIVOS” PARA A


OBTENÇÃO DO BENEFÍCIO RELIGIOSO

2.2.1 Comprovar a identidade dos solicitantes


Os breves apostólicos de oratórios privados e capelas de engenho de Santo
Antônio de Jacutinga apresentam-se de acordo com o padrão descrito por Sérgio
Chahon. Apesar de pequenos, os documentos passavam por uma série de etapas
burocráticas até o momento da aceitação do pedido. Iniciava-se com uma saudação do
bispo local e, em seguida, passava a tratar do objetivo a que se propunha.

Depois de obterem o mencionado breve, os particulares que tencionavam se


valer de suas graças deveriam, em todo caso, dar início a um processo
destinado a alcançar da autoridade episcopal a validação das mesmas graças
para a diocese fluminense. Principiavam, pois, os processos dessa natureza
pelo requerimento do proprietário ou proprietários da residência onde jazia o
oratório, Acompanhava-o, via de regra, uma relação de „itens justificativos‟,
reunindo as alegações que os ditos proprietários precisavam comprovar a fim
de se mostrarem dignos do privilégio outorgado pelo documento 27
No decorrer da análise dos breves apostólicos, demonstraremos alguns dos “itens
justificativos” nos casos de Santo Antônio de Jacutinga setecentista.

No início do pedido de renovação do oratório do casal João de Veras Ferreira e


Dona Ana Maria Nascentes, lê-se o seguinte:

Dizem João de Veras Ferreira e sua mulher Ana Maria Nascentes, moradores
nesta cidade, que eles alcançaram um breve da Santa Sé Apostólica para
poderem ter oratório privado nas casas de vivenda da sua fazenda chamada
Posse, que tem no centro de Moquetá, na Freguesia de Santo Antônio de
Jacutinga [...] que se acha aceito [...] para lhe poder valer a graça [sendo]
necessário justificar as premissas [...]
Que os impetrantes são os mesmos que alcançaram a graça da Santa Sé [...]
para poderem ter oratório [...] nas casas de sua habitação que tem na sua
fazenda, na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga e não tem outra alguma
graça que ainda dure.
Que os moradores se [...] tratam [...] da nobreza e como tais não são
desmerecedores da graça que alcançaram.
Que os moradores têm seu oratório preparado de todo [...] com a maior
decência e asseio e todos os paramentos e [está] livre totalmente dos usos
domésticos.28

27
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.52.
28
ACMRJ. Breve Apostólico 025. fl.02.
61

O início do documento apresenta os solicitantes, como nos demais breves. Neste


caso, os solicitantes foram identificados como moradores do Rio de Janeiro, com o
complemento de que já haviam alcançado a graça para o funcionamento de um oratório
privado, ou seja, com uma informação que se referia ao status do casal, visto que além
de proprietários de uma fazenda, também tinham o privilégio de manter um espaço
religioso próprio. Após as informações iniciais, seguia uma lista de requisitos
necessários para a renovação do pedido de oratório privado, ou seja, os itens
justificativos descritos por Sérgio Chahon. Embora os três casos de Santo Antônio de
Jacutinga tivessem objetivos distintos, os requisitos enumerados neste documento foram
critérios de aprovação adotados nos demais casos, conforme demonstraremos no
decorrer do capítulo.

Comecemos com uma pequena parte da carta escrita pelo Papa Bento XIV,29
encontrada anexada ao breve de pedido de missa do casal Cristóvão Mendes Leitão e
Páscoa Maciel da Costa.

Ao venerável irmão Bispo do Rio de Janeiro [...]


Benedito Papa décimo quarto, venerável irmão da vida e benção apostólica
[...] nos fizeram expor o amado filho Cristóvão Mendes Leitão e a amada
filha em Cristo, Páscoa Maciel da Costa, casados na diocese do Rio de
Janeiro, que eles [...] vivem à maneira e costume de nobres, para a sua
espiritual consolação, desejam poder fazer que o sacro santo sacrifício da
missa se celebre nos oratórios privados das casas de sua habitação. 30
Neste trecho inicial é possível observar dois aspectos que chamam atenção no
documento. O primeiro diz respeito à existência de uma carta originária da Santa Sé,
endereçada ao bispo do Rio de Janeiro. O segundo diz respeito à afirmação de que os
solicitantes viviam “à maneira e costume de nobres”.

29
Nascido em Bolonha, no ano de 1675, Prospero Lorenzo Lambertini foi Pontífice no período de 1740 a
1758. Conhecido pela sua erudição, Prospero Lambertini interessava-se por estudos relacionados à
retórica, à filosofia e à teologia. Aos dezenove anos, o religioso obtivera o título de Doutor em Teologia e
Direito Canônico e Civil. Durante a sua trajetória, foi consultor do Santo Ofício. Em 1708, foi nomeado
Promotor da fé, em 1712, Teólogo Cânone no Vaticano e assessor da Congregação dos Ritos, em 1713,
foi nomeado Bispo doméstico, em 1725, bispo titular de Theodosia. Em 1727, foi nomeado Bispo de
Ancona e cardeal, em 1728. Em 1731, foi transferido para o Arcebispado de Bolonha, para suceder a
Lorenzo Corsini, que se tornou o Papa Clemente XII. Com a morte de Clemente XII, após seis meses de
análise, Lambertini foi eleito e nomeado Papa Bento XIV, em homenagem ao seu patrono Bento XIII.
Considerado um Papa flexível em suas relações políticas, destacou-se pela sua capacidade de lidar com as
situações eclesiásticas que precisavam de reformas e com a comunicação com autoridades estrangeiras.
HEALY, Patrick. "Pope Benedict XIV." In: The Catholic Encyclopedia. Vol. 2. New York: Robert
Appleton Company,1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/02432a.htm>. Último
acesso: janeiro/2013.
30
ACMRJ. Breve Apostólico 146. fl.03.
62

Certamente, apresentar um pedido de oratório que contivesse uma carta emitida


pelo Papa facilitaria, e muito, a aceitação por parte do bispo. É importante relembrar
que a própria Cúria romana delegou a função de uniformização paroquial aos bispos.
Esta autoridade atribuída aos bispos possibilitava certa autonomia dos prelados com
relação ao Papa para que eles pudessem cuidar das capelas de sua jurisdição e lidar
diretamente com o seu rebanho.

No pedido do casal encontravam-se a carta original do Papa, em latim, e a sua


tradução em seguida. Anexar o documento original ao pedido contribuía para o
cumprimento do primeiro pré-requisito para a aceitação do pedido de missa: provar que
os solicitantes, ou como o documento mencionou, os impetrantes, eram os mesmos que
haviam obtido a licença necessária anteriormente para o funcionamento do oratório
privado. Além disso, ter um documento desta ordem emitido em nome do casal apenas
reafirmava a influência dos solicitantes, visto que poucos eram os privilegiados que
obtinham tal permissão.

2.2.2 Comprovar a nobreza dos solicitantes

Todos os casos de Santo Antônio de Jacutinga apresentaram como requisito para


efetuar um pedido, via breve apostólico, o critério de nobreza. Segundo Nuno Monteiro,
era uma prática comum entre os fidalgos portugueses dos séculos XVII e XVIII ser
identificados pela posse de certos bens pertencentes à “casa” ou por um título
nobiliárquico. A casa, portanto, funcionava como um conjunto desses bens materiais e
“representava um valor fundamental para grande parte das elites sociais.”31 No Rio de
Janeiro, a elite setecentista era formada pelos descendentes dos conquistadores
portugueses que se tornaram, em sua maioria, donos de engenhos e senhores de
escravos32. Mesmo que nem sempre esta condição significasse poder econômico, a
posição social em que se encontravam esses membros da elite se apresentava superior a
dos demais grupos sociais, escravos ou livres menos favorecidos.

31
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Casa, casamento e nome: fragmentos sobre relações familiares e
indivíduos. In: MATTOSO, José. História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2011. p.137.
32
FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio
de Janeiro (séculos XVI e XVII)”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em
História da UFRJ, vol. 1, 2000.
63

É provável que os leigos tivessem interesses religiosos ao solicitar um oratório


ou a celebração de missas nestes espaços, mas isto não anulava o caráter político destes
pedidos. Considerando que os solicitantes faziam parte de um grupo seleto, na realidade
colonial, obter a permissão para o funcionamento de um oratório em sua própria casa
funcionava como um instrumento de diferenciação entre estes e os demais paroquianos
que não foram capazes de alcançar tal privilégio. Ter um espaço religioso próprio
demonstrava publicamente a influência dos solicitantes, já que uma série de requisitos
burocráticos deveriam ser cumpridos, no primeiro momento, para mostrar a sua
capacidade de solicitar tal privilégio e, posteriormente para que fosse possível promover
a sua manutenção. O oratório assumia o papel de um bem material que se acumulava
aos outros da casa. Era um dos meios de confirmar a “nobreza” dos seus proprietários.

Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia é possível encontrar a


menção aos nobres em diversas cláusulas, ora citando os benefícios a que tinham
direito, ora definindo uma quantia de multa, esmolas ou ofertas que superavam o valor
determinado aos fiéis “de menos qualidade”.

A veracidade da informação de que os solicitantes eram nobres era construída


por meio de testemunhos. No breve referente ao pedido de celebração de missas no
oratório privado, o testemunho principal foi feito pelo próprio pároco que afirmou viver
o casal “à maneira de nobres”. A explicação do escrivão da câmara eclesiástica no
documento sobre esta expressão reafirmava que o dito casal vivia em boas condições
econômicas no momento do pedido. Mesmo o casal sendo de descendência nobre, como
afirmou o escrivão, dada a antiguidade do pedido anterior, fez-se necessário o
testemunho recente do pároco, Filipe de Siqueira Unhão, que garantiu a permanência do
casal na condição de nobreza. O vigário alegou que como senhores de engenho, o casal
vivia “livre dos ofícios mecânicos”.

Desde o século XVII, a nobreza portuguesa era definida pelo que “não fazia” e,
portanto, o fato de não se dedicar às atividades manuais se estabelecia como um critério
de distinção social. Esta alegação confirmava a nobreza dos solicitantes, visto que não
carregavam o estigma do defeito mecânico e, portanto, se encontravam numa posição
social superior aos forros e descendentes de escravos, principalmente.33

33
Cf: GUEDES, Roberto. “Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (séculos
XII-XIX)”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ, v. 7,
64

Igualmente influentes deveriam ser as testemunhas que pudessem comprovar a


veracidade das informações declaradas pelos solicitantes. No caso do breve em questão,
o casal teve o privilégio de contar com o apoio de uma autoridade religiosa, o pároco. A
seguir é possível observar outros tipos de testemunhos em breves do Recôncavo da
Guanabara34.

No breve apostólico de altar, solicitado por Antônio José Moreira, lê-se o


seguinte:

[...] Joaquim José da Rocha, viúvo natural de Portugal e provador na


Freguesia da Piedade do Iguaçu, que vive da sua lavoura, testemunha jurada
aos Santos Evangelhos [...] prometeu dizer verdade[...] Sendo perguntado
pelo conteúdo na petição do justificante disse que em razão de conhecer há
dezenove anos, sabe que o justificante é o próprio que impetrou o breve que
apresenta na igreja de Nossa Senhora [...] do Iguaçu.

Antônio Alves da Silva Pinto, solteiro, natural do Bispado do Porto e


morador nesta cidade na rua direita que vive de ser caixeiro de Manoel Alves
da Silva, testemunha jurada aos santos evangelhos em que por sua mão
direita, prometeu dizer verdade[...] E sendo perguntado pelo conteúdo na
petição do justificante disse que em razão de o conhecer há quatro anos sabe
que é próprio que impetrou [...] que o dito breve é verdadeiro e não consta
[...] na igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Jacinto Lobo Frazão, solteiro natural desta cidade [...] que vive da sua
lavoura, testemunha jurada aos santos evangelhos em que por sua mão direita
prometeu dizer verdade [...] sendo perguntado pelo conteúdo na petição do
justificante disse, que em razão de o conhecer [...] sabe que o próprio que
impetrou o breve que apresenta e que o dito breve é verdadeiro, [...] e mais
não disse e assinou, Eu, Estevão José da Silva Coimbra, ajudante da Câmara
Eclesiástica.35

Exceto pelo segundo caso, as duas outras testemunhas “viviam de sua lavoura”,
ou seja, poderiam ser senhores de engenho ou lavradores. Mesmo subordinados aos
senhores de engenho, os lavradores representavam um status superior ao de

2006; RIOS, Wilson de Oliveira. A Lei e o Estilo. A inserção dos ofícios mecânicos na sociedade
colonial.1690-1790. Niterói: UFF, 2000; SANTOS, Beatriz Catão Cruz. “Irmandades, oficiais mecânicos
e cidadania no Rio de Janeiro do século XVIII”. In: Varia Historia. 2010, vol.26, n.43, pp. 131-153.
34
O caso que apresentaremos trata-se de um breve apostólico da freguesia de Nossa Senhora da Piedade
do Iguaçu. Embora não se trate da freguesia analisada, acredita-se que o caso facilite a compreensão sobre
a produção de breves apostólicos no Recôncavo da Guanabara setecentista.
35
ACMRJ. Breve Apostólico 306. fl.04.
65

determinados agentes históricos36. Além disso, duas das testemunhas, a primeira e a


segunda, eram naturais de Portugal, portanto, é possível que compartilhassem o mesmo
sentimento de conquistadores de seus pares. As três testemunhas afirmaram conhecer o
solicitante e atestaram a identidade do senhor em questão.

Para Luiz Mott, alguns leigos, “esnobes e elitistas”, pretendiam, por meio da
obtenção de um oratório privado, evitar o convívio com os fiéis de estratos inferiores.
De fato, estas permissões possibilitavam, conforme já mencionamos, a manutenção do
status de nobreza dos solicitantes, porém seria redutor considerar apenas este interesse
por parte dos leigos ao solicitar um oratório privado.

Segundo Sérgio Chahon, deve-se considerar a busca de “consolo espiritual” por


parte dos solicitantes, com base nas justificativas dadas pelos senhores para a obtenção
de tal privilégio. Mesmo em casos onde o solicitante alegava alguma enfermidade, o
pedido era feito para possibilitar que o enfermo ouvisse as missas, dada a inviabilidade
do trajeto até a paróquia.

Sempre poucos em relação à massa dos fiéis residentes no Rio de antanho e


seus arredores, os senhores dos altares domésticos orientavam-se ao que tudo
indica, por propósitos associados tanto à sua integração ao grêmio comum da
Igreja quanto à sua pertença ao cume da hierarquia social.37
Desta forma, os interesses religiosos coexistiam com os políticos, sem que
houvesse uma separação entre as duas esferas. Em outras palavras, é provável que os
solicitantes estivessem interessados em comunicar-se de uma maneira mais eficaz e
direta com Deus, mas em uma sociedade de Antigo Regime, a permissão concedida a
poucos deixava claro o lugar privilegiado ocupado pela elite colonial. A intimidade do
ambiente doméstico tornava a comunicação com o divino mais concreta e, ao mesmo
tempo, criava ou mantinha hierarquias sociais. Escravos e livres menos influentes ou
menos favorecidos economicamente, decerto, não gozavam dos mesmos privilégios.
Tanto os pedidos de capelas particulares, quanto a sua aprovação atendiam a critérios
político-religiosos.

36
C.f.:FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “A subordinação dos lavradores de cana aos senhores de engenho”.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, n.12, p. 151-168, 1986; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
37
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.67.
66

O critério de nobreza adotado para a concessão de capelas também estava


relacionado à capacidade financeira dos solicitantes de manter os objetos, ou seja, os
ornamentos obrigatórios ao culto católico, no espaço religioso. Geralmente, os oratórios
privados não contavam com o auxílio financeiro da Real Fazenda38. No caso de Santo
Antônio de Jacutinga, as observações das visitas trabalhadas no capítulo anterior já
indicavam a inexistência do auxílio, inclusive, para a igreja paroquial, o que sugere ter
sido esta a mesma realidade das capelas.

Os ornamentos, tal como o critério adotado nas igrejas, deveriam apresentar-se


aos fiéis de maneira decente, incentivando a devoção e honrando os donos da casa, que
eram Cristo, a Virgem Maria e os santos padroeiros. Caso este critério não fosse
respeitado, a capela era interditada pelos visitadores responsáveis, conforme a legislação
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

E havendo em nosso Arcebispado algumas capelas ou ermidas que estejam


muito velhas e ruinosas, sem haver quem as possa reparar e restaurar ou
faltas totalmente de ornato e ornamentos, sem renda para a fábrica delas ou
que estejam em lugar tão ermo e despovoado, que fiquem expostas às
indecências, nossos visitadores tomarão informação de tudo e farão disso
autos e sumários para que conste do estado da capela. Não havendo quem se
obrigue a orná-la e reedificá-la, estando ruinosa, mal ornada, reparada ou em
lugar muito ermo e despovoado, se derribe e profane. Se tiver alguma
imagem, se mudará para a igreja paroquial. E os autos e sumários se
guardarão no cartório da nossa câmara arquiepiscopal para que a todo tempo
conste a circunspecção com que se procedeu em matéria de tanta importância
e como fazendo-se todas as diligências para que se reedificasse e
conservasse, por não poder ser, pareceu maior serviço de Deus mandá-la
derribar.39
O caso da capela de engenho de Francisco Antunes Lima assemelha-se à
resolução das Constituições transcrita acima. Conforme demonstramos, a capela
referida chegou a ser a igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí e
precisou voltar ao território de Santo Antônio de Jacutinga por falta de zelo de seus
antigos donos e pela incapacidade de manter os seus sacerdotes e ornamentos. De
acordo com o próprio breve apostólico

Diz Francisco Antunes Lima, morador do bairro de Sarapuí, na freguesia de


Jacutinga que fazendo requerimento junto a Vossa Excelência
Reverendíssima lhe concedas licença de dizer missa em sua capela [...] que
tem no seu engenho [...] sendo arruinada e falsa dos parâmetros sem se dizer
nela missa.40

38
NEVES, Guilherme Pereira das. E Receberá Mercê. A Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular
no Brasil 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
39
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XIX. Cláusula 694.
40
ACMRJ. Breve Apostólico 158.
67

Para que obtivesse a permissão de voltar a realizar o santo sacrifício da missa, na


capela da fazenda do Sarapuí, o solicitante precisou alegar e comprovar o seu empenho
em promover o bom funcionamento do espaço religioso. Logo no início do documento,
encontra-se a seguinte observação: “informe se está nos termos e consta decência devida
para nela se celebrar o dito sacrifício da missa[...]”. Após esta observação o documento
foi totalmente organizado para responder a este critério. O pedido mencionava que o
dito solicitante “preparou e ornou” novamente a capela para realizar o sacramento.

Em outra passagem do documento é possível ler

Francisco Antunes Lima, morador na freguesia de Santo Antônio de


Jacutinga [...] pessoa que reconheço pelo mesmo aqui nomeado e por ele me
foi dito [...] que ele é senhor e possuidor de uma fazenda cita na paragem
chamada Sarapuí, freguesia de Santo Antônio de Jacutinga [...] uma capela
em que se celebrava o santo sacrifício da missa com a invocação de Nossa
Senhora da Conceição e porque esta se achava há muitos anos danificada se
resolveu reedificá-la e paramentá-la e ele, dito doador, de todo necessário
para efeito de se dizer nela missa em razão dele, dito doador, se achar com
moléstia, que o priva de pode ir à missa na dita freguesia o fazem petição
Excelentíssimo Reverendíssimo bispo da diocese Dom Frei Antônio do
Desterro que lhe concedesse faculdade para na dita capela [....] dizer missa,
mandou por seu despacho que juntasse escritura de dote na forma praticada
por tanto dizer o dito doador que [...] por este [...] fazia doação de cinco [...]
braças de terra [...] com vinte e duas [...] na dita sua fazenda e engenho com a
invocação de Nossa Senhora da Conceição as quais partem de uma [banda]
com terras da mesma fazenda da banda do sul e doou [...] com terra da viúva
Catarina Gomes a qual foi casada com Francisco de Souza cujas terras [...]
faz delas e se abriga [...] seus sucessores a não ir, digo, em tempo algum
contra esta doação antes [...] e guardá-la [...] com obrigações por sua pessoa e
bens presentes [...] a fazer todos os [...] da mesma capela [...] cuja obrigação
passava [...] a qual possuidor [...] que do dito engenho sem embargo de serem
somente as ditas cinquenta braças de terras o patrimônio dela em cuja forma
me pediu [...] e disse que estava a seu contento em que ajeitou [...] bem aceito
em nome de que [...] ausente o direito dela como pessoa pública [...] assinou
sendo testemunhas [...] Francisco Xavier da Silva e Bernardino Pereira
Galvão, moradores nesta cidade, pessoas conhecidas de mim tabelião Luis da
Silva Ramos que escrevi.41
A partir deste pedido, é possível observar as responsabilidades atribuídas ao
dono da capela que, além de possui-la, era um doador. O senhor em questão comprova a
sua condição de nobreza doando parte de suas terras para a reedificação da capela de
uso público da região. Além disso, são expostas três testemunhas para garantir a
veracidade das alegações do solicitante, neste caso uma delas é o próprio tabelião que
afirma, logo no início das alegações, reconhecer o dito solicitante.

41
ACMRJ. Breve Apostólico 158. fl. 05v.
68

2.2.3 Comprovar a decência da capela

Após o pedido, havia a necessidade de realizar visitas na capela, já edificada, de


modo a comprovar as justificativas do solicitante. Tal como ocorria na paróquia, era
responsabilidade dos bispos visitar as capelas de sua jurisdição. Neste caso, em
específico o bispo Antônio do Desterro declarou:

Por me achar impedido, com moléstia, não satisfiz pessoalmente ao despacho


de Vossa Excelentíssima Reverendíssima e assim mandei visitar a capela de
Nossa Senhora da Conceição de que trata a petição [...] Padre Diogo da
Fonseca Varejão, Presbítero secular, morador nesta freguesia e assistente em
minha própria pousada o qual me informou que está a dita capela com
decência e asseio suficientes para celebrar o santo sacrifício da missa com
todos os preparatórios necessários e não [apenas] ele [...] que me noticiou de
seu asseio, mas outras [...] pessoas fidedignas dos quais agradou a sua
reedificação e limpeza, como melhor constava do inventário [...] que a ela
pertence, o qual vai escrito e o mesmo padre que a visitou e nelas já se
celebrou não uma vez, mas muitas, tanto pelo dono dela que foi o Padre
Domingos Gomes Torres, como por vários sacerdotes seculares e regulares.42

Mesmo impossibilitado de visitar pessoalmente a capela, o bispo enviou um


visitador de sua confiança para realizar o trabalho. Muitas vezes, responsável por
conceder ou não a permissão objetivada no breve apostólico, o bispo precisava atestar as
informações dos solicitantes por meio das visitas. Demonstra-se, portanto, mais uma
dimensão do poder e influência dos bispos neste período, visto que a “última palavra”, a
que definia o funcionamento da capela, era dos prelados.

Durante a visita, o bispo ou visitador nomeado, fazia o levantamento do


chamado patrimônio das capelas. Em cada um dos breves, é possível encontrar um
inventário referente aos objetos pertencentes aos espaços religiosos. Como um dos
motivos alegados para a interdição da capela de Nossa Senhora do Sarapuí foi
justamente a falta de ornamentos necessários para o culto, o pedido de reedificação
incluiu o seu inventário já nas primeiras páginas do documento, o que era comum ao
final do pedido nos outros casos. Segundo as informações do breve apostólico a capela
contava com

Uma imagem da Senhora da Conceição, nova, de dois palmos [...] encarnado


novo com dois santos dos lados, Santo Antônio e São Francisco [...]
Seis ramalhetes de malacacheta, novos, com suas jarras.
Seis castiçais de estanho, novos, e uma pedra d‟ara.
Dois frontais, um de damasco branco encarnado e outro verde, em madeira.

42
ACMRJ. Breve Apostólico 158. fl. 05v.
69

Um cálice e uma patena, tudo de prata.


Um missal com duas [...] e uma caixa de hóstias.
Três sacras, um par de galhetas, uma campainha e um sino grande.
Um lavatório e um oratório com Senhor Cristo [...] na sacristia.
Duas alvas de renda finas, oito sanguinhos e seis purificadores.
Três corporais finos, três guardas com rendas e quatro amitos finos.
Duas tralhas de lavatório na sacristia.
Uma lâmpada de latão, nova, um confessionário e um púlpito [...]
Diogo da Fonseca Varejão.43
A primeira observação que pode ser feita a partir da análise do inventário da
capela diz respeito à menção de que alguns dos ornamentos eram novos. Esta
característica pode sugerir o compromisso do solicitante ao renovar ou comprar os
ornamentos que estivessem em falta ou danificados. Além disso, a capela possuía um
inventário expressivo, inferior ao da igreja de Santo Antônio de Jacutinga no final do
século XVIII44, mas que continha os objetos necessários à realização da missa. Tal
cuidado estava relacionado ao seu funcionamento anterior como paróquia de Nossa
Senhora da Conceição.

Segundo Sérgio Chahon,

o acervo habitual de altares como os erigidos outrora nas habitações da


cidade e seu recôncavo incluía, assim, desde objetos sagrados de importância
central, como o crucifixo, os castiçais e as toalhas, até outros objetos aos
quais se recorria tão-somente para adornar os mesmos altares, como flores e
tapetes. Faziam parte também deste acervo, entre outras peças, o missal com
sua estante, as galhetas para o vinho e a água, a campainha, o cálice e as
hóstias em seu invólucro próprio. Não se pode esquecer, ainda, das sobreditas
imagens sacras e paramentos sacerdotais, as primeiras representando o
Cristo, Nossa Senhora e santos, e os segundos variando, em alguns casos, de
acordo com as quatro cores litúrgicas então em voga: o branco, o vermelho, o
verde e o roxo.45
O caso do oratório de Nossa Senhora da Conceição demonstra com clareza a
afirmação do autor citada acima. Em um dos registros de visita do documento encontra-
se o seguinte

O oratório do suplicante está feito e preparado com a decência [...] e ainda


que esteja [...] nas casas de sua moradia [está] livre dos usos domésticos e

43
ACMRJ. Breve Apostólico 158. fl.03.
44
Para maiores detalhes sobre o inventário da paróquia de Santo Antônio de Jacutinga, consultar
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
45
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008.
p.68.
70

sem comunicação alguma [...] para as mesmas casas. Tem ornamentos das
quatro cores de que [...] e tudo o mais necessário para a celebração da missa
como [...] do inventário que com esta vai assinado por mim. Tudo [...] na
verdade em cumprimento [...] de Vossa Excelentíssima Reverendíssima [...].
José de Souza Marmelo 46
O inventário do oratório em questão também não deixou a desejar quanto aos
ornamentos descritos, comprovando o seu objetivo de celebrar missas. O oratório
transformado em capela, de acordo com a documentação, foi devidamente preparado
para a liturgia eucarística. Enquanto na capela “pública” de Nossa Senhora da
Conceição constavam, além da imagem da santa, as de Santo Antônio e São Francisco,
na capela “privada” estavam dispostas as imagens de Santo Antônio e Sant‟Ana.

Conservar imagens de santos nas capelas incentivava a devoção dos fiéis e,


portanto, era um item de extrema importância na organização dos espaços religiosos. As
imagens faziam parte de um universo mágico-religioso, devido ao caráter miraculoso
dos santos. Os santos eram reconhecidos pelos milagres47 que operaram em vida.
Mesmo que tenham se tornado “criaturas especiais”, alcançando uma posição na
hierarquia celestial, haviam sido seres humanos, que deveriam ser seguidos pelos
membros da cristandade. Eram exemplos possíveis de serem copiados pelos demais
fiéis. As imagens assumiam, portanto, um caráter pedagógico, pois contribuíam para
conservar a memória dos santos no imaginário dos católicos. Esperava-se que os fiéis se
lembrassem da possibilidade de alcançar a santidade por meio de suas obras em vida.

Esta intenção de preencher as capelas com imagens sagradas compõe uma das
exigências das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. O fragmento, que se
segue, demonstra com clareza a imposição da existência de imagens sagradas nas
capelas:

Manda o Sagrado Concílio Tridentino que nas igrejas se ponham as imagens


de Cristo Senhor nosso, de sua sagrada cruz, da Virgem Maria Nossa Senhora
e dos outros santos, que estiverem canonizados ou beatificados. E se pintem
retábulos ou se ponham figuras dos mistérios que obrou Cristo, nosso Senhor
em nossa redenção porquanto com elas se confirma o povo fiel em os trazer à
memória, muitas vezes, e se lembram dos benefícios e mercês, que de sua
mão recebeu e continuamente recebe. E se incita também, vendo as imagens
dos santos e seus milagres, a dar graças a Deus, nosso Senhor e aos imitar e
encarrega muito aos bispos a particular diligência e cuidado que nisto devem

46
ACMRJ. Breve Apostólico 146. fl.10.
47
Sobre a construção do “miraculoso” cristão, consultar: LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso no Ocidente
Medieval. In:O Imaginário Medieval. Editorial estampa. 1994.
71

ter, e também em procurar, que não haja nesta matéria abusos, superstições,
nem cousa alguma profana(...)48
O fragmento cita a “imitação à vida dos santos”, este objetivo deveria ser
incentivado pelo clero para que os fiéis alcançassem o modelo de cristão perfeito. Mas
para que a devoção dos fiéis fosse estimulada de maneira correta, as imagens não
deveriam ser desrespeitadas, devendo permanecer distantes do “fervor carnal e
obsceno”, já mencionado por Gilberto Freyre49. O receio da Igreja de que a intimidade
entre santos e devotos se tornasse frequente e, portanto, fora de seu controle era
demonstrado pelas visitas obrigatórias nas capelas, onde os bispos, ou visitadores
enviados por eles, atestavam as condições das imagens. Desta forma, conforme afirmou
o documento, os bispos estavam não apenas encarregados de visitar as capelas, mas
também de estimular a devoção da população por meio das imagens de santos,
conforme a determinação do Concílio Tridentino.

Segundo Sérgio Chahon, um altar deveria ser descrito a partir de suas partes
constituintes, o que sugere que a sua organização também estivesse carregada de
significado simbólico. Havia a preocupação de que as imagens utilizadas fossem bem
pintadas e conservadas a fim de não provocar o “riso dos fiéis”50.

Ao observar a nomeação dos espaços religiosos analisados neste capítulo, nota-


se que as duas capelas, o oratório privado de Cristóvão Mendes Leitão e Páscoa Maciel
da Costa e a capela, de uso público, de Francisco Antunes Lima, foram erguidos em
homenagem à Nossa Senhora da Conceição. No século XVIII, as capelas eram erguidas
em nome de um santo. A função do santo era intermediar a comunicação entre os fiéis e
Deus51. Incorporados ao cotidiano colonial, os santos passavam a fazer parte, não
apenas das cerimônias religiosas realizadas na paróquia, mas também da casa dos fiéis
que recorriam às missas nas capelas.

Como Renata Menezes considerou, a comunicação entre santos e devotos


envolvia trocas rituais que se estabeleciam em torno da graça que o santo já havia
concedido ou que ainda concederia. Para alcançar a graça requerida, o fiel precisava ser

48
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula 696.
49
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala; formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 51º ed, 2006.
50
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Cláusula 701.
51
Cf: VAUCHEZ, André. “O santo”. in: LE GOFF, Jacques. O Homem medieval. Lisboa: Editorial
Presença, 1989;
72

cuidadoso e utilizar uma linguagem ritual diferente das conversas informais do


cotidiano.52

Os atos de fala e atos corporais endereçados aos santos podem ser lidos como
oferendas a eles realizadas, em formas de preces, homenagens, gestos de
submissão e de carinho, a fim de manter uma boa relação com eles, de
estimulá-los a conceder aquilo que for pedido. Deve acontecer, portanto em
cada pedido uma certa sedução do santo, no sentido de torná-lo propenso a
conceder a graça demandada.53
Esta linguagem ritual, utilizada pelos fiéis para “conversar” com o santo,
envolvia orações e técnicas corporais, como ajoelhar, por exemplo, que tornavam o
pedido mais solene, principalmente quando feito em capelas quase sempre erguidas em
nome do santo homenageado.

Na hierarquia celeste, Nossa Senhora encontrava-se numa posição superior a dos


santos, agregando as funções de mãe, filha e esposa de Deus54. Conforme já
mencionamos, em todo o Recôncavo da Guanabara setecentista deu-se preferência às
invocações da Virgem Maria. Erguer uma capela em nome de uma de suas invocações
pode ser compreendido como uma tentativa de manter uma comunicação direta com o
reino celeste.

Tanto a capela reedificada de Sarapuí, quanto o oratório do casal Cristóvão


Mendes Leitão e Páscoa Maciel da Costa foram erguidos em homenagem à Nossa
Senhora da Conceição. Acredita-se que a escolha da Virgem não tenha sido aleatória, já
que esta invocação era um forte símbolo de devoção do Catolicismo português. Páscoa
Maciel da Costa era descendente de portugueses e Cristóvão Mendes Leitão era natural
de Portugal, do arcebispado de Évora. Não se sabe quem fundou a capela de Nossa
Senhora da Conceição do Sarapuí, mas como as edificações eram feitas por membros da
elite, é possível que tenha sido construída por “conquistadores” portugueses ou por seus
descendentes. Há ainda quem afirme que o culto à Imaculada Conceição foi, em parte,
estimulado pelos beneditinos na América portuguesa55. Este também pode ter sido um

52
MENEZES, Renata de Castro. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento
do Rio de Janeiro. Relume Dumará, 2004. p.212.
53
Ibidem. p.209
54
RUBIN, Miri. Mother of God: A History of the Virgin Mary. London: Allen Lane. Yale University
Press. 2009.
55
LADEIRA, Elaine Amorim Pereira. “O imaginário devocional de Nossa Senhora da Conceição do
Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro”. In: Anais do XV encontro regional de História da ANPUH-
Rio, 2012.
73

dos motivos para a adoção desta nomenclatura para estes e outros espaços religiosos
erguidos na região.

A organização das capelas estava relacionada à terceira justificativa presente nos


breves apostólicos: garantir que o oratório estava “livre dos usos domésticos”. Nos dois
casos de oratórios esta expressão apareceu mais de uma vez. Voltemos à carta escrita
pelo Papa Bento XIV, que demonstrou de forma mais clara esta preocupação. Segundo
o documento, os solicitantes deveriam atestar que o oratório estava

[...] decentemente edificado com muro e ornado, ou que ainda se haja de


fazer e ornar, sendo livre dos usos domésticos, [...] primeiro visitado e
aprovado e de tua licença que durará a teu arbítrio [...] não faltando as
Constituições e Ordenações Apostólicas e outros quaisquer contrários. 56
A observação de que o oratório deveria estar livre dos usos domésticos é curiosa,
quando a maior parte deles era erguida dentro de casa. A transformação de um oratório
em capela, “acarretava [...] novos encargos específicos” àqueles que o solicitavam57.
Preparar o oratório para a realização de missas significava adaptá-lo para a liturgia
eucarística. Esta adaptação estava principalmente relacionada a certos “imperativos de
ordem canônica58”. O espaço dedicado à celebração da missa privada deveria estar
separado do restante da casa, em um ambiente reservado apenas às celebrações
católicas.

Esta característica pode ser mais bem demonstrada quando em um momento do


pedido de missa do casal Cristóvão Mendes Leitão e Páscoa Maciel da Costa consta
uma solicitação para que o visitador ateste se o oratório não havia sido profanado.
Acredita-se que esta preocupação estivesse vinculada à necessidade de manter o
oratório em um espaço próprio, além de evitar que as imagens e ornamentos recebessem
funções que representassem algum desrespeito à hierarquia celeste.

Conforme definiu Alfonso di Nola

O mundo do sagrado e da religião não explode como atmosfera autônoma,


insignificante do ponto de vista laico, estranha a realidade que, na nossa
linguagem, se chamaria “racional”, mas exprime-se e manifesta-se
precisamente nessa realidade, na relação contínua que a justifica e a explica. 59

56
ACMRJ. Breve Apostólico 146. fl.03.
57
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As Missas e a Vivência do Catolicismo na
Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008
p.69.
58
Ibidem.
59
NOLA, Alfonso di. “Sagrado/profano”. In: Enciclopédia Einaudi. Mythos/Logos – Sagrado/Profano.
v.12. 1987. p.109
74

As noções de sagrado e profano, portanto, são construídas por meio de uma


dependência mútua entre as duas esferas. Para que algo fosse considerado profano, era
preciso ter outro elemento que fosse concebido como sagrado e vice-versa. Mesmo que
as Constituições tivessem definido o que era considerado profano, a partir dos breves, é
possível observar que os oratórios também eram capazes de ser compreendidos desta
forma pelos clérigos, considerando a necessidade de desvinculá-lo do restante da casa.
As capelas transformavam-se em locais sagrados destinados a estimular a devoção
daqueles que participavam das celebrações. Desta forma, os ornamentos, os
participantes, ouvintes ou realizadores das celebrações religiosas, contribuíam para o
entendimento destes espaços como sagrados.

Portanto, as noções de sagrado e profano mostravam-se dinâmicas na realidade


colonial. Ao mesmo tempo em que as Constituições definiam que nem todos os espaços
capazes de realizar o sacrifício da missa deveriam ser considerados sagrados, inclusive
os oratórios privados, ela objetivava por meio das visitas atestar se os espaços para a
celebração estavam devidamente preparados para a liturgia eucarística. Na
documentação demonstra-se com clareza a intenção dos solicitantes de alegar o
cumprimento deste requisito, assim como o interesse dos visitadores de confirmar tais
alegações.

2.2.4 A permissão do benefício religioso


Considerando a quantidade de alegações e comprovações presentes num breve
apostólico, acredita-se que a duração para aprovação dos benefícios religiosos durasse
um tempo considerável. O oratório de Nossa Senhora da Conceição foi visitado
anteriormente, nos dez anos em que vigoraram a licença para o seu funcionamento. Há
no documento, quatro observações, em 1747, 1749, 1752 e 1754, de visitas anexadas ao
processo que parecem ter sido incluídas após a obtenção da primeira permissão para
realizar missas no oratório.

Ao final dos três pedidos analisados encontra-se a permissão concedida pelo


bispo. No oratório de Nossa Senhora da Conceição, excepcionalmente, encontram-se
duas permissões que terão partes transcritas a seguir.
75

A primeira, encontrada logo no início do documento, mais precisamente, na


quarta folha da documentação diz o seguinte

D. Francisco [...] Simões, Cônego penitenciário comissário subdelegado


apostólico da Santa Cruzada em toda a parte a que se estende a jurisdição do
[...] Rio de Janeiro, fazemos saber que, atendendo as que por sua petição nos
enviou a dizer Cristóvão Mendes Leitão e sua mulher Páscoa Maciel da
Costa, moradores nesta cidade, que eles alcançaram breve pontifício para
com ele celebrar missa todos os dias em um oratório que tem nas casas de sua
vivenda, citas na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga sendo para este
efeito aprovado e visitado pelo Excelentíssimo ordinário desta diocese e
desejando lograr da mesma graça pelo privilégio da bula e visto estar o dito
oratório com toda decência e não ter sido profanado e não podia fazer por se
ter acabado o tempo concedido no breve. Portanto, usando das faculdades da
bula que me são concedidas como comissário dela, concedo licença e
faculdade para fazer celebrar missa no dito oratório pelo tempo da presente
publicação da bula, por qualquer sacerdote [...] com licença de seus
superiores, visto ter [...] a esmola que lhe foi taxada e constou do recibo [...]
da mesma bula e sendo acabado o ano da presente publicação. E não será esta
mais válida. Dada e passada nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Por 26 de maio de mil setecentos e cinquenta e seis anos sob o meu sinal[...]
Francisco Simões.
A partir do breve apostólico do casal é possível ter ideia do número de
autoridades eclesiásticas envolvidas no processo. Neste caso, antes de obter a
permissão final do bispo, que muitas vezes representava o Papa na concessão de
benefícios religiosos, o casal apresentou uma segunda permissão, incomum em
comparação aos outros casos, de um cônego que atestou a decência do oratório e
o pagamento da “esmola” para realizar o pedido.

Por fim, os pedidos, vias breves apostólicos poderiam ser aprovados pela
própria Cúria Romana ou pelos bispos. No breve de Cristóvão Mendes Leitão e
Páscoa Maciel da Costa a resposta final do prelado foi uma coletânea de todos os
itens justificativos apresentados pelos solicitantes para a obtenção do benefício
requerido. No breve do mesmo casal encontram-se as seguintes informações:

Christi nomine invocato


Vistos estes autos. Breve apostólico aceito por S. Excelentíssima
Reverendíssima e [...] documentos juntos em prova delas, mostrassem ser os
justificantes os mesmos que impetraram da Sé Apostólica esta graça e não
terem nas casas de sua vivenda, na freguesia de Jacutinga, outra semelhante
que ainda exista, porque expirou já a que tinha concedido [...]. Como também
se mostra viverem os impetrantes à maneira de nobres pelo que tudo julgo
por provadas as tais premissas e a este breve por válido e legítimo [...]
absolvendo os mesmos impetrantes de qualquer censura ou pena eclesiástica
[...] visto mostrar-se, pela visita que se fez, estar o seu oratório que tem nas
mesmas casas decentemente feito e ornado com os parâmetros necessários,
lhes concedo licença para fazerem nele celebrar o sacro santo sacrifício da
missa, em todos os dias, excetuando os da Páscoa da Ressurreição,
Pentecostes, Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo e outros mais solenes
76

do ano e sem prejuízo dos [...] paroquiais, porém só se poderá celebrar na


presença de ambos os impetrantes ou de cada um deles e poderão assistir os
seus filhos, parentes por sanguinidade e afinidade, os seus hóspedes nobres e
mais família que com eles habitam a mesma casa, mas nunca se poderá
celebrar na presença de alguns desses sem estar presente algum dos [...]
impetrantes, nem também os seus [...] escravos que lhes não forem [...] no
tempo da missa poderão ouvi-la [...] porque são obrigados [...] satisfazê-lo na
sua paróquia de cuja graça assim concedida [...] por tempo de dez anos[...]. 60

Conforme a permissão apresentada, o casal obteve, por fim, uma renovação do


pedido para a realização de missas em seu oratório pelo período de dez anos novamente.
Relembramos que normalmente as permissões não ultrapassavam o período de três
anos61, o que sugere a importância deste casal. O casal obteve a aprovação do breve
diretamente da Santa Sé, testemunhos de um pároco que garantiu a legitimidade das
informações concedidas pelos solicitantes e duas permissões diferentes, uma de um
cônego e a outra do próprio bispo, ambas constando uma informação sobre o pagamento
dos autos, ou seja, do processo de solicitação de oratório. Todos os critérios para a
obtenção de um oratório privado foram confirmados pelo bispo e as restrições, já
descritas em outras partes dos documentos, foram reafirmadas. Nesta resposta final, a
única informação que não constava claramente em outras partes do pedido, foi a
proibição da presença dos escravos nas missas celebradas no oratório privado. O
documento menciona a necessidade de que os cativos assistissem às missas,
obrigatoriamente, em sua paróquia, reservando o “culto particular” aos solicitantes e aos
seus familiares. Tal determinação contribuiu para a manutenção das hierarquias sociais,
visto que os solicitantes tinham o privilégio de possuir um espaço religioso, que
funcionava, quase que exclusivamente, para eles, enquanto os cativos deveriam
participar das celebrações de caráter público da igreja paroquial.

2.3 A DINÂMICA DO CATOLICISMO VIA BREVES APOSTÓLICOS: AS


RELAÇÕES SOCIAIS NAS CAPELAS DE SANTO ANTÔNIO DE
JACUTINGA.

Conforme as informações apresentadas, é possível refletir sobre a dinâmica


construída a partir do interesse da população de fazer uso de capelas em suas casas.
Segundo Luiz Mott, a vida privada dos leigos era invadida pela Igreja a partir da

60
ACMRJ. Breve Apostólico 146. fl.15
61
Op.cit.p.54.
77

necessidade da aprovação de autoridades eclesiásticas para que o culto católico fosse


possível nos ambientes domésticos62. Acredita-se que o contrário também tenha
acontecido, visto que ao obter a permissão para o funcionamento das capelas ou para a
realização de missas, os leigos tinham acesso aos benefícios, que deveriam se restringir
à Igreja, a partir da realização de rituais determinados como públicos.

Da mesma forma em que o cotidiano dos leigos em Santo Antônio de Jacutinga


era afetado pelas determinações da Igreja, as práticas católicas eram adaptadas a partir
das relações sociais próprias de uma sociedade de Antigo Regime. Com a análise dos
breves apostólicos foi possível observar a intenção dos leigos de participar dos rituais
católicos, nas palavras de Sérgio Chahon, numa busca por consolo espiritual. Porém,
ficou claro, a partir dos próprios requisitos criados pela Igreja para a concessão de
benefícios religiosos, que a sua permissão se restringia a poucos paroquianos, ou seja,
era um privilégio. O custo e a burocracia próprios do breve apostólico restringiam o
benefício apenas àqueles que eram considerados “nobres”.

Se existia uma legislação e meios para a obtenção de oratórios privados não


havia um movimento da Igreja que proibisse estas práticas, mesmo que algumas regras
devessem ser determinadas para a concessão deste benefício. A fim de evitar que as
capelas competissem com a paróquia e que esta competição resultasse no afastamento
dos fiéis, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinaram a
obrigatoriedade dos fiéis assistirem às celebrações na paróquia nos dias de festividades
solenes. Conforme afirmou Luiz Mott, estas missas serviriam “como contrapeso
socializador significativo para compensar a dispersão espacial e o isolamento social dos
colonos na imensidão da América portuguesa”63. Relembramos que embora a Igreja
tivesse a necessidade de adaptar-se à realidade do período em que se inseria, ela ainda
tinha uma preocupação universalista, no sentido de promover a união entre os fiéis em
prol da salvação divina.

As paróquias eram espaços de reunião social que deveriam permitir a união dos
paroquianos, como filhos de Deus. Conforme dispuseram as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia “as igrejas são para se exercitar nelas atos de devoção e

62
MOTT, Luiz. “Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, Laura de Mello
e. (org). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
63
Ibidem.
78

humildade e não de vaidade e ostentação, e quanto maiores forem as pessoas, tanto


maior é a obrigação que lhe corre de darem exemplo aos outros nesta matéria”64.

Entretanto, muitas vezes, a realidade colonial sobrepunha este ideal, tendo em


vista que o cotidiano setecentista era determinado por diferenças sociais, dados os
benefícios concedidos à elite, que não deixavam de se constituir em uma forma de
“ostentação”, principalmente quando as missas realizadas nos oratórios eram restritas a
uma pequena parte da família, como apresentamos no breve do casal Cristóvão Mendes
Leitão e Páscoa Maciel da Costa.

Os oratórios convertidos em capelas contam parte da história do Recôncavo da


Guanabara do século XVIII e demonstram o interesse da população de fazer parte da
cristandade, já que alguns leigos dedicavam longos períodos para preparar os espaços
religiosos e comprovar a sua capacidade de mantê-los, via breves apostólicos, sem que
isto fosse uma determinação da Igreja. Em verdade, a Igreja em Santo Antônio de
Jacutinga no século XVIII era formada pelos agentes eclesiásticos que buscavam
cumprir as determinações das Constituições e pelos leigos que foram os primeiros
responsáveis pela edificação e, muitas vezes, pela manutenção de capelas na região.
Desta forma, os paroquianos procuravam estreitar a comunicação com a hierarquia
celeste, mas apenas um grupo seleto alcançava o privilégio político-religioso da
obtenção de capelas particulares. Demonstra-se, portanto, a importância das capelas no
cotidiano de Jacutinga e esta importância foi reafirmada a partir da participação dos
leigos nos rituais católicos.

64
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXVIII. Cláusula 731.
3 OS USOS RITUAIS DAS CAPELAS DE SANTO ANTÔNIO DE JACUTINGA

Ao escrever a história das capelas, torna-se inevitável mencionar os rituais1


desenvolvidos nestes espaços. Rituais estes que possibilitavam a reunião de boa parte da
população do Recôncavo da Guanabara no século XVIII. Demonstraremos a
importância do cumprimento destes rituais no cotidiano do Recôncavo, discutindo o seu
significado para a as autoridades eclesiásticas e para os leigos participantes das
celebrações religiosas. Para tanto, é necessário mencionar quais deles são analisados por
meio dos registros paroquiais.

Nos últimos anos, as pesquisas que utilizam os registros paroquiais de batismo,


matrimônio e óbito, têm se desenvolvido. Os Programas de Pós-Graduação do Rio de
Janeiro vêm trabalhando com a elaboração de bancos de dados que possibilitam análises
historiográficas diversas acerca das freguesias rurais do Rio de Janeiro. A autora, já
citada, Denise Demetrio foi uma das primeiras historiadoras a utilizar registros
paroquiais em seu trabalho sobre as famílias escravas do Recôncavo da Guanabara2. A
maior parte dos registros paroquiais, disponíveis para análise, corresponde ao século
XIX, o que dificulta a pesquisa sobre a região nos séculos anteriores.

Mesmo com a dificuldade inicial encontrada para reunir e organizar os registros


paroquiais da região, referentes ao século XVIII, é possível obter ricas informações
nestas fontes sobre a população do Recôncavo da Guanabara e sobre os rituais
registrados no mesmo período. Optamos por trabalhar com os rituais de batismo,
casamento e morte de Santo Antônio de Jacutinga, pois estes representavam marcos
importantes na vida cristã das pessoas. Demonstramos, durante o capítulo, alguns dados
coletados na pesquisa documental, priorizando a análise qualitativa das fontes. Tais
fontes constituem parte importante da história do Recôncavo da Guanabara por
apresentarem informações, conforme Maria Luiza Marcílio observou, indispensáveis “à
reconstrução da história social e cultural das populações católicas.”3

1
Adotamos, neste trabalho, a concepção de ritual de Jean-Claude Schmitt que o define como “uma
sequência ordenada de gestos, sons [...] e objetos, estabelecida por um grupo social com finalidades
simbólicas.” LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2006.p.415. No caso do Recôncavo da Guanabara, o
grupo social ao qual nos referimos era composto pelos membros da cristandade, que se reuniam nas
capelas e participavam das celebrações religiosas com o intuito de obter benefícios espirituais e, por
vezes, políticos, conforme demonstramos no capítulo anterior.
2
Op.cit. p.09.
3
MARCILIO, Maria Luiza. “Os registros paroquiais e a História do Brasil”. In: Varia Historia, 2004.
p.13-20.
80

Uma das maiores preocupações presentes no Concílio de Trento, foi a


intensificação dos rituais católicos, compreendidos pela Igreja, como sacramentos4.
Garantir a realização destes rituais foi uma das responsabilidades atribuídas aos
clérigos, que eram os únicos capazes de instruir a população para o recebimento das
graças obtidas por meio dessas realizações.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, todos os


sacramentos

causam graças nos que os recebem dignamente e não põem impedimento à


ela, à qual graça por excelência se chama coisa sagrada e dom sagrado, pois
nos santifica com Deus. [...] A Santa Madre Igreja declara e manda que para
celebrarem os sacramentos validamente haja matéria, forma e ministro [...] E
posto que não pertençam à essência dos sacramentos as cerimônias santas
com que se celebram e administram o sagrado Concílio Tridentino, que na
administração solene dos sacramentos se guardem todas inteiramente e
declara que nenhuma se pode deixar por desprezo ou por vontade [...] 5

De acordo com a disposição das Constituições, baseada, como já salientamos,


nas resoluções do Concílio de Trento, os rituais católicos possibilitavam para os fiéis o
alcance da graça de Deus. Por meio de sua realização, as pessoas se religavam à história
de Cristo, sacramento da salvação.6

Segundo Cláudia Rodrigues,

[...] os sacramentos, enquanto sinais do encontro de Deus com o homem, em


momentos existenciais densos, supunham, expressavam e alimentavam a fé.
Nesse sentido, eram administrados pela Igreja em determinados nós
existenciais da vida e da morte.7

4
São sete os sacramentos católicos, definidos pela Igreja Romana, a saber: batismo, confirmação,
eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio.
5
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título IX. Cláusulas 28-30.
6
Na Idade Média, Tomás de Aquino defendeu que “alguém institui algo quando dá à coisa força e vigor”.
Desta forma, os sacramentos existiam apenas por “força de explícito mandamento-lei de Cristo”. Para S.
Marsili, a compreensão de Cristo como responsável pela origem dos sacramentos estava ligada ao fato de
ser ele “sacramento primordial e essencial da salvação” e não apenas pela linha da instituição jurídica.
Segundo o autor, Cristo é sacramento da salvação por ser a encarnação da palavra de Deus, ou seja, por
tornar real, por meio de sua humanidade, os eventos anunciados por Deus. Ao definir que todos os
sacramentos foram instituídos por Cristo, o Concílio de Trento referia-se à ele como uma afirmação de fé.
Apenas em Cristo, os sacramentos “encontram a sua eficácia sobrenatural” e se tornam necessários à
salvação dos homens. Desta forma, estes rituais estavam ligados à Cristo por depender “do próprio ser
sacramental de Cristo, como uma fonte sacramental de onde a salvação passa para os sacramentos; e,
sendo a salvação uma realidade „revelada‟, tem sempre necessidade de „sinais‟ para ser captada pelo
homem.” Desta forma, os sacramentos se constituíam em sinais da continuação do sacramento da
salvação. MARSILI, S. “Sacramentos”. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs).
Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p.1061-1063.
7
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p.176.
81

Os sacramentos representavam “momentos-chave” na vida das pessoas,8


demarcando determinadas passagens na trajetória dos membros da cristandade. Eram
ocasiões em que os fiéis tinham a oportunidade de vivenciar Deus, uma força que os
transcendia. A partir disto, considera-se, neste trabalho, a concepção de ritos de
passagem proposta por Arnold Van Gennep. Para o autor, analisar a vida social era o
mesmo que analisar a sua “ritualização”9. Neste sentido, o mundo social constituía-se
“de passagens e deslocamentos, quando as fases se resolviam entre si dialeticamente,
com a anterior sendo cancelada pela posterior [...]”10, o que demonstra o dinamismo
destas ritualizações.

No Recôncavo da Guanabara, tal como em outras freguesias da América


portuguesa, é possível observar estas passagens pela análise dos registros de batismo,
matrimônio e óbito. Ao receber a graça promovida pelo ritual, o fiel modificava a sua
condição inicial, ou seja, cancelava a fase anterior da sua vida social, como definiu
Arnold Van Gennep.

Tais registros, que se referiam aos ritos de passagem, estavam diretamente


ligados à necessidade da Igreja de controlar os membros da cristandade, ou seja,
estavam longe de ter uma finalidade apenas de cunho espiritual. Intensificada com a
Reforma Católica, esta necessidade se fazia presente como uma tentativa da Igreja de
retomar e fortalecer a sua influência na sociedade. Em outras palavras, os rituais
católicos adquiriam finalidades de cunho político-religioso, considerando que o
interesse em registrar a vida dos católicos surgiu a partir de discussões no Concílio de
Trento sobre a necessidade da Igreja conhecer melhor os membros da cristandade, ou
seja, num momento de reafirmação do poder e da expansão das fronteiras do
Catolicismo.

8
BOFF, Leonardo. Mínima Sacramentalia: os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos: ensaio de
teologia narrativa. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 55
9
DA MATA, Roberto. In: GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.p.10.
10
GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2011. p.18.
82

3.1 BATISMO

O primeiro livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga, disponível para


análise, foi iniciado no ano de 168611. Acredita-se que este seja, de fato, um dos
primeiros livros de registros paroquiais da região, segundo as informações do próprio
Monsenhor Pizarro. Tal documento foi utilizado pelo visitador para calcular a data
aproximada da criação da paróquia. Nas palavras do autor, “o melhor e mais autêntico
documento que pode fixar a época da sua ereção é o primeiro livro que serviu nesta
matriz, rubricado em janeiro de 1686 pelo Provisor e Vigário Geral, Clemente Martins
de Matos”12. Trata-se de um livro misto, que reúne registros de batismo, matrimônio e
óbito.

Neste livro, de um total de 649 registros de batismos, 340 correspondem ao


século XVIII. Nele, há informações básicas sobre os batizandos, seus pais e padrinhos,
dentro do padrão reafirmado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia13.
Embora, trabalhemos com o século XVIII, é interessante observar que mesmo antes das
Constituições da Bahia, que entraram em vigor em 1707, os livros de batismo de Santo
Antônio de Jacutinga já respeitavam a norma para a sua confecção com base no
Concílio de Trento, tal como é possível notar nas observações dos visitadores no século
XVII.

Os batismos que mencionamos, do início do século XVIII, são semelhantes


quanto à sua forma, conforme é possível observar no caso a seguir:

Aos vinte e três de fevereiro de mil setecentos e um, batizei e pus os santos
óleos a Ilário, filho de Matheus e Maria, escravos do mestre de campo
Martim Correa Vasquez. Foram padrinhos Gabriel de Oliveira e Valentina
Cardoso, de que fiz este assento, em Santo Antônio de Jacutinga[...]
O Padre Luiz de Lemos.14
Em todo o livro analisado, não há detalhamentos a respeito do ritual realizado,
nem mesmo outras informações relevantes sobre os agentes históricos mencionados.
Existem variações apenas no que tange aos nomes dos pais e padrinhos, havendo casos
em que somente é possível encontrar os nomes das mães ou dos padrinhos do sexo

11
Livro de batismos, matrimônio e óbito de Santo Antônio de Jacutinga (1686-1721).
12
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
13
Já mencionamos a disposição das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia à respeito da
confecção do livro de batismos na página 42.
14
Livro de batismos, matrimônio e óbito de Santo Antônio de Jacutinga (1686-1721). fl. 33.
83

masculino. Em comparação aos registros do final do século XVIII, o número de


batismos sofreu um crescimento relevante. O livro de registros que se refere aos
batismos realizados no período de 1790 a 180715 apresenta 1444 registros. Apenas para
o século XVIII (entre 1790 e 1801) são 905 registros, o que supera o número de
batismos do livro do início do século, que se referia a um período maior, de vinte anos.
O aumento do número de batismos pode estar relacionado ao aumento da população
escrava de Santo Antônio de Jacutinga, mas também à intensificação das visitações já
mencionadas no primeiro capítulo, que pretendiam pôr em ordem as capelas da região,
incluindo os seus rituais.

Ser batizado era um direito de todos, um dever dos pais da criança e, no caso dos
escravos, de seus senhores. Para a Igreja, o batismo significava um renascimento da
alma. Conforme afirmou Adriano Prosperi era a “esperança de entrar no reino dos
céus”, portanto o seu cumprimento era de extrema importância para os católicos. O
autor observou que, desde os ensinamentos de Agostinho, a Igreja considerava que, sem
a realização do ritual, a criança não poderia entrar no paraíso. Tal concepção formou-se
a partir do estigma do pecado original de Adão e Eva carregado pela humanidade. O
batismo era considerado um renascimento, em verdade, um nascimento para uma vida
cristã e, portanto, o único nascimento considerado pela Igreja. Era a possibilidade de
livrar-se do pecado original e deveria ser preferencialmente ministrado às crianças. Em
Santo Antônio de Jacutinga, no final do século XVIII, foram realizados 892 batismos de
crianças, o que comprova a preferência, conforme os ensinamentos da Igreja, de
destinar o ritual, preferencialmente, aos primeiros dias de vida dos paroquianos.

Recuperando a formulação de ritos de passagens de Arnold Van Gennep, o


batismo pode ser compreendido, no primeiro momento, como um rito de iniciação, que
prepara o fiel batizado para o recebimento dos demais rituais católicos. No momento
ritual, ao entrar em contato com Cristo-sacramento, ocorre uma transformação que
reconhece publicamente a alma do batizando. Este nascimento divino, ou nascimento da
alma, concede um nome à criança batizada.16 A partir da criação de um nome para a
criança em questão, ela é encaminhada à fé católica e passa a “existir” socialmente,
reconhecida pelos outros membros da cristandade como um novo integrante do grupo.

15
Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1790-1807.
16
PROSPERI, Adriano. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.
84

Neste sentido, o batismo que é em sua essência um rito de iniciação, adquire um papel
de separação, no momento ritual em que o batizando desvincula-se do estigma do
pecado original e pode também ser compreendido como um rito de agregação, ao passo
que insere um novo membro à cristandade. Tais transformações sofridas pelos
batizandos/batizados demonstram o dinamismo dos rituais que são capazes de
influenciar o mundo social.

As próprias Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia definiram o


seguinte:

O batismo é o primeiro de todos os sacramentos e a porta por onde se entra


na Igreja católica e se faz, o que o recebe, capaz dos demais sacramentos,
sem o qual nenhum dos mais fará nele o seu efeito. Consiste este sacramento
na externa ablução do corpo com água natural e com as palavras que Cristo,
nosso Senhor, instituiu por sua forma. A matéria deste sacramento é a água,
natural ou elementar, por cuja razão as outras águas, artificiais, não são
matéria capaz para com elas se fazer o batismo.17

A criança, que deveria ser batizada, de acordo com o documento, nos primeiros
oito dias de vida, é purificada pela água18 de modo a estar pronta para seguir os
ensinamentos católicos. Ainda, conforme as Constituições, o batismo era uma
necessidade cristã de extrema importância. O batizado, “adotado em filho de Deus”,
herdava o reino dos céus a partir do ritual e garantia a sua salvação, assumindo um
compromisso com a fé católica.19

A partir da definição de batismo e da sua obrigatoriedade, defendida pela Igreja,


convinha legislar sobre o local apropriado para a realização do ritual. Em Santo Antônio
de Jacutinga, dos batismos realizados entre 1701 e 1721, apenas duas celebrações foram
registradas em capelas, a saber, ambos na capela de Nossa Senhora da Cachoeira e um
com menção à fazenda da Cachoeira, que acreditamos referir-se à mesma capela. Já no
livro de registros referente ao período de 1790 a 1800, há 40 batismos realizados em
capelas e 5 realizados em oratórios privados. Dentre os espaços religiosos mencionados

17
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XX. Cláusula 33.
18
É notável a intenção de organizar um determinado padrão para a execução do sacramento, como o uso
da água nas pias batismais, “sob pena de castigo”, caso fosse reutilizada. No batismo, a água simbolizava
uma purificação interior, uma purificação da alma e se estabelecia como o símbolo do renascimento
promovido pelo ritual. A palavra de Deus transformava a água. As funções simbólicas dos rituais apenas
faziam sentido durante a sua realização. Neste sentido, a água adquiria durante o batismo uma função
diferente da sua origem, tornando-se parte essencial para a execução do ritual. PROSPERI, Adriano. Dar
a alma: história de um infanticídio. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.
19
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia .Título XX. Cláusula 34.
85

estão as capelas de Nossa Senhora da Conceição, com 8 batismos, Nossa Senhora da


Conceição do Pantanal, com 14, Nossa Senhora da Conceição do Sarapuí, com 5, Nossa
Senhora do Rosário, dos religiosos de São Bento, com 12 e apenas um batismo em
capela não identificada. Localizamos, também, 5 batismos realizados no oratório de São
José, de Antônio de Pina, irmão do Reverendo Luís Inácio de Pina.

Os batismos deveriam ser, preferencialmente, ministrados na paróquia e pelo


próprio pároco desta, conforme o documento definiu:

Como seja muito perigoso dilatar o batismo das crianças, com o qual passam
do estado de culpa ao da graça e morrendo sem ele perdem a salvação,
mandamos, conformando-nos com o costume universal no nosso reino, que
sejam batizados até os oito dias depois de nascidas e que seu pai ou mãe ou
quem delas tiver cuidado as façam batizar nas pias batismais das paróquias
de onde forem fregueses. Não o cumprindo assim, pagarão dez tostões para a
fábrica da nossa Sé e Igreja paroquial. [...] e do mesmo modo se procederá
contra os que no dito tempo não fizerem levar à Igreja a criança, quando por
necessidade foi batizada em casa, para se lhe fazerem os exorcismos e se lhe
porem os santos óleos [...]. E neste arcebispado, pela grande extensão das
freguesias, [...] se edificarão capelas, as quais se aplicarão alguns fregueses e
nelas se lhes administrarão os santos sacramentos, pela dificuldade que há em
os irem receber na paróquia, mandamos que nas ditas capelas, em que houver
aplicados, haja pia batismal e por ser cousa indecentíssima que tão santo
sacramento se não administre com a decência que manda a santa Igreja
católica.[...] Para que licitamente se administre o sacramento do batismo [...]
deve ser administrado pelo próprio pároco, que é o legítimo e verdadeiro
ministro dele e, portanto, proibimos que qualquer sacerdote secular ou
regular, que não seja o próprio pároco batize criança alguma [...] E se algum
freguês, por justa causa, amizade ou parentesco quiser que outro sacerdote
secular lhe batize a dita criança e não o próprio pároco, pedir-lhe-á licença
com a devida humildade, a qual mandamos lhe conceda e mande dar os
paramentos necessários para a administração do tal sacramento [...]20

Conforme afirmamos no capítulo anterior, as capelas de engenho, algumas vezes


agregavam funções próprias da paróquia. Numa freguesia que, de acordo com
Monsenhor Pizarro, contava com aproximadamente 2937 habitantes, realizar todos os
batismos na paróquia nem sempre era possível, devido às longas distâncias ou mesmo
pela vontade do dono das capelas de engenho, que investiam tempo e capital para o
funcionamento de seus próprios espaços sagrados. As Constituições, embora deixassem
clara a preferência pelas paróquias, abriram espaço para adaptações. Quando o
documento permite que o ritual seja realizado nas capelas, nos casos em que o
responsável pela criança “por justa causa, amizade ou parentesco” prefira outro
sacerdote que não o pároco, é possível observar esta adaptação. Porém, este tipo de ação

20
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia .Título XX. Cláusulas 36-38
86

dependia, ainda assim, da aprovação e da emissão de uma licença do pároco, além, é


claro, da necessidade de haver nas capelas uma pia batismal para a devida realização do
sacramento, o que tornava tal prática rara fora da igreja paroquial.

No livro de registros paroquiais, referente ao período entre 1686 e 1721, não


constam informações sobre os batismos realizados com a licença do pároco. Não é
possível afirmar se não foram realizados ou se não foram registrados, já que o livro é o
primeiro que oferece informações sobre o ritual e, portanto, apresenta menos detalhes.
Já no livro de registros do ano de 1790 ao ano de 1807, até o ano de 1800 foram
realizados 102 batismos com a licença do pároco da paróquia.

Os batismos feitos em casa apareceram com menos frequência, foram apenas 19.
Nestes casos, as expressões mais comuns encontradas nos documentos foram: “batizado
em casa por necessidade ou batizado em casa por evidente/urgente perigo”. Em um dos
casos é possível ler a expressão “fiz os exorcismos de ritual”, antes da informação de
que o batismo havia sido realizado em casa. Os batismos feitos em casa eram uma
exceção. Pretendiam impedir que alguma criança, ou mesmo adulto, falecesse sem o
sacramento. Há, nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, um título
dedicado ao assunto21. Nele, a Igreja determinou que os párocos deveriam instruir os
paroquianos, sobretudo as parteiras, para a realização do ritual. Segundo o documento, o
cumprimento desta determinação deveria ser observado pelos visitadores e corrigido da
forma que os clérigos achassem justa.

Há, portanto, nos registros de batismos que se referem ao final do século XVIII,
uma intensificação dos cuidados em registrá-los, especificando as exceções, conforme
legislaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Nos casos em que a
criança era batizada em casa, por correr perigo de morte, logo que possível os pais ou
senhores da criança deveriam comunicar ao pároco para que fossem administrados os
santos óleos e para que o ritual fosse devidamente registrado. De acordo com as
Constituições, os santos óleos eram obrigatoriamente benzidos pelos bispos, uma vez
por ano na quinta-feira da “ceia do Senhor” ou quinta-feira santa, na presença do pároco
e de outros clérigos da paróquia e eram essenciais ao ritual de batismo.22

21
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XIII. Cláusula 43.
22
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia .Título XX. Cláusula 248-249.
87

É possível, também, a partir da análise dos registros de batismo observar as


relações estabelecidas pelo ritual. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia, conforme dispôs o Concílio Tridentino, o batizado não poderia ter mais de
um padrinho e de uma madrinha, escolhidos pelos pais no caso da criança e pelo próprio
batizando, no caso dos adultos. Em Santo Antônio de Jacutinga, é possível observar
diferentes padrinhos nos batismos de escravos. Eram, em sua maioria escravos também,
mas foram encontrados padrinhos das ocupações mais diversas, como padres, mestres
de campo, alferes ou militares, como capitães, coronéis e tenentes. Quanto às
responsabilidades dos padrinhos, as Constituições dispuseram o seguinte:

[...] aos ditos padrinhos, como ficam sendo fiadores para com Deus pela
perseverança do batizado na fé e por serem seus pais espirituais têm
obrigação de lhes ensinar a doutrina cristã e bons costumes. Também lhes
declare o parentesco espiritual que contraíram, do qual nasce impedimento,
que não só impede, mas dirime o matrimônio, o qual o parentesco conforme
disposição do sagrado Concílio Tridentino, se contrai somente entre os
padrinhos e o batizado, seu pai e sua mãe e entre o que batiza e o batizado,
seu pai e mãe e o não contraem os padrinhos entre si, nem o que batiza com
eles, nem se estende a outra alguma pessoa além das sobreditas. 23

Portanto, os padrinhos, para a Igreja, tinham o dever de auxiliar na manutenção


do afilhado na fé católica. A partir do ritual, os envolvidos na celebração criavam um
vínculo com Deus, adotavam um compromisso de parentesco espiritual entre si e
criavam laços familiares no âmbito social.

Além das relações de compadrio estabelecidas entre escravos ou entre estes e


seus senhores, outra forma de apadrinhamento chamou atenção na análise dos registros
de batismo do final do século XVIII. Apenas para o período estudado foram 57 casos de
batizados que nomeavam Nossa Senhora como madrinha. Apenas quatro delas com uma
invocação específica, Nossa Senhora da Piedade24, que aparece como madrinha de três
batizados e Nossa Senhora do Socorro, madrinha de apenas um. Além de Nossa
Senhora, a avó de Cristo, Sant‟Ana aparece como madrinha de dois batizados.

23
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia .Título XVIII. Cláusula 65.
24
Nossa Senhora da Piedade é a segunda invocação da Virgem Maria mais citada na documentação do
Recôncavo da Guanabara. A santa, que se apresenta com o seu divino filho morto nos braços, após o
suplício do calvário, “emprestou o seu nome” para a construção de algumas capelas da região e, inclusive,
para a freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu. Segundo Nilza Megale “a mais antiga imagem
da Senhora da Piedade em Portugal era pintada em madeira e se encontrava em uma das capelas do
claustro da Sé de Lisboa. Pertencia a uma irmandade cuja principal função era enterrar os mortos, visitar
os presos e acompanhar os criminosos ao patíbulo.” A santa retratava a angústia e a tristeza da Virgem no
drama da Paixão de Cristo. MEGALE, Nilza Botelho. 112 invocações da Virgem Maria o Brasil:
história, folclore e iconografia. Petrópolis: Vozes, 1986.
88

Sugere-se que a escolha de madrinhas da hierarquia celeste estivesse relacionada


à ideia de parentesco espiritual promovida pelo ritual de batismo, numa tentativa de
aproximar ainda mais o batizado da família de Cristo, visto que as madrinhas nomeadas
eram a sua mãe e a sua avó. O ritual, além de possibilitar a comunicação entre clérigos e
leigos, promovia a comunicação do batizado com o divino, pelo contato com Cristo-
sacramento e, ainda, pela intervenção, sobretudo, de Nossa Senhora como protetora
direta do batizado. Tal evento pode ser compreendido como uma troca ritual. A criança,
oferecida como afilhada à santa, transformava-se em uma dádiva, ao fazer parte da
dinâmica ritual de “dar, receber e retribuir”25. Os pais poderiam oferecer a criança em
troca de benefícios espirituais ou mesmo como um agradecimento à graça já concedida
pela santa. Esta prática, comum em Santo Antônio de Jacutinga, no final do século
XVIII, pode ser um indicativo da intenção de alguns leigos de constituir ou manter uma
relação mais próxima com os seres sagrados que intermediavam a comunicação com
Deus.

Além do papel religioso do batismo, no sentido de promover um nascimento


espiritual, deve-se considerar o seu significado no âmbito civil. Segundo Adriano
Prosperi, além de seu caráter universal e obrigatório para a entrada no reino dos céus, o
batismo, desde a vitória do Cristianismo no Império Romano, havia se tornado a
“condição para o ingresso no sistema da convivência civil e política.”26 O batismo era o
primeiro ritual católico ministrado à criança e também o seu primeiro registro legal. As
próprias Visitas Pastorais do Monsenhor Pizarro no ano de 1794 baseiam-se em dados
das paróquias, ou seja, o censo, que indicava a análise mais aproximada de habitantes da
freguesia, baseava-se no número de habitantes que cumpriram os sacramentos católicos,
sobretudo, o batismo.

Com a presença de escravos nos engenhos de Santo Antônio de Jacutinga, é


evidente que a região também se enquadrasse no modelo de sociedade cristã-escravista
do restante da América Portuguesa. Graças à expansão das fronteiras do Catolicismo,
cristianizar a população do além-mar tornou-se uma prática obrigatória e, portanto,
natural no cotidiano luso americano.

25
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1923-24).
In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1974.
26
PROSPERI, Adriano. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo. Companhia das Letras,
2010.p.178.
89

3.2 CASAMENTO

Antes de apresentar os dados coletados nos registros de casamentos de Santo


Antônio de Jacutinga, é preciso recuperar a transformação do casamento em
sacramento, mesmo que brevemente, para que seja possível compreender as mudanças
sofridas por este ritual.

Tal como o batismo, o casamento foi instituído antes das discussões do Concílio
de Trento, embora tenha sofrido mudanças relevantes na Idade Moderna. Segundo
Ronaldo Vainfas, ao final do Império Romano, o casamento tinha como objetivo “a
formação de uma descendência e a transmissão do patrimônio” apenas entre nobres. O
casamento, portanto, não era universal e, mesmo entre os nobres, não era para todos, já
que os filhos mais novos deveriam dedicar-se ao clero.27 Em outras palavras, pode-se
considerar que o casamento era utilizado como um contrato que selava uma aliança
política, sem qualquer relação com a Igreja. Ainda que ele fosse um ritual, por se tratar
de um costume com finalidades simbólicas, neste caso, a manutenção do patrimônio das
famílias envolvidas, o casamento não era um ritual religioso. A intervenção da Igreja
nos casamentos dos nobres apenas se fez presente a partir da desagregação do Império
carolíngio, quando foram instituídas as regras a seguir, na tentativa de submeter reis e
cavaleiros ao seu poder:

1) O casamento era uma instituição divina;


2) Não se deveria casar por causa da luxúria, mas visando a descendência;
3) A virgindade deveria ser guardada até as núpcias;
4) Os casados não deveriam ter concubinas;
5) Deveriam respeitar a castidade das esposas;
6) O ato carnal não deveria visar o prazer, mas a procriação, ficando
proibida a cópula no período de gravidez;
7) A esposa não poderia ser repudiada, salvo por adultério;
8) O incesto deveria ser evitado.28

A Igreja tentava assim controlar o casamento para que fosse possível retirá-lo da
atmosfera profana na qual estava inserido. Mesmo a partir destes critérios estabelecidos,

27
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Editora Ática,
1986.p.25.
28
Ibidem.
90

a intervenção da Igreja não surtiu efeito nas práticas matrimoniais da nobreza. Era
preciso trazer o casamento para a esfera do sagrado e, segundo Ronaldo Vainfas, foi a
partir das discussões dos teólogos medievais que este intento foi possível. O casamento
passou a ser um dos sete sacramentos, baseado na metáfora de união entre a Igreja e
Cristo. Oposto às uniões dos cavaleiros, a Igreja defendia e instituía um casamento
indissolúvel, que admitia a relação carnal para fins de procriação, condenava o incesto,
não apenas entre parentes consanguíneos, mas também entre aqueles que contraíam o
parentesco espiritual promovido pelo batismo. Para o autor, mesmo que o modelo de
casamento católico não tenha sido adotado imediatamente pela população

[...] triunfou nos séculos XII e XIII. Impôs-se ao clero o celibato, e aos leigos
– nobres ou camponeses – impôs-se o casamento monogâmico e indissolúvel.
No bojo deste processo, a Igreja afirmou-se como o poder supremo do
Ocidente. A sacramentalização do casamento foi a base, portanto, do triunfo
político da Igreja, e matéria privilegiada da codificação moral da
29
cristandade.

Após o processo de “sacramentalização” do casamento, coube ao Concílio de


Trento reafirmar a necessidade do ritual “de modo a evitar os casamentos clandestinos”
e, portanto, profanos.30 O casamento, enquanto ritual promovia a participação dos fiéis
no “mistério de Cristo”, simbolizando o projeto nupcial de Deus com a humanidade.31

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

O último sacramento dos sete instituídos por Cristo, nosso Senhor é o do


matrimônio. E sendo ao princípio um contrato com vínculo perpétuo e
indissolúvel, pelo qual o homem e a mulher se entregam um ao outro, o
mesmo Cristo, Senhor nosso, o levantou com a excelência do sacramento,
significando a união que há entre o mesmo Senhor e a sua Igreja, por cuja
razão confere graça aos que dignamente o recebem. A matéria deste
sacramento é o domínio dos corpos, que mutuamente fazem os casados,
quando se recebem, explicado por palavras ou sinais que declarem o
consentimento mútuo, que de presente tem. A forma são as palavras ou
sinais do consentimento enquanto significam a mútua aceitação. [...] 32

A união entre o homem e a mulher significava para a Igreja um vínculo


perpétuo, dentro dos valores cristãos, entre ambas as partes, mas também o vínculo de

29
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Editora Ática, 1986.
p.30-31.
30
CASTELNAU-L‟ESTOILE, Charlotte de. “O Ideal de uma Sociedade Escravista Cristã: Direito
Canônico e Matrimônio dos Escravos no Brasil Colônia”. In: FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton
Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011. p.355.
31
MARSILI, S. “Sacramentos”. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs). Dicionário de
Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p.1068.
32
Livro Primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXII. Cláusula 259.
91

Cristo com a Igreja. Era justamente a união dos sexos que simbolizava este vínculo
entre Cristo e a Igreja. A conjunção carnal, isenta de prazer, tornou-se o símbolo da
indissolubilidade do casamento. A Igreja intervinha, portanto, nas relações entre os
casais, ou seja, nas relações familiares, estabelecendo critérios morais, desde a Idade
Média, para o ato sexual.

Para que fosse possível controlar os fiéis que se rendiam ao desejo carnal foi
necessário criar determinadas regras como a condenação do ardor entre os cônjuges e
até mesmo classificar os atos permitidos ou proibidos, com base na função de
procriação da união matrimonial. “O leito conjugal, uma vez sacramentado tinha de ser
devassado e ordenado”.33 Tais afirmações e finalidades do casamento foram reforçadas
pelas Constituições em um de seus parágrafos, no qual há a menção explícita de que o
ritual também serviria como remédio da “concupiscência”.34 Desta forma, eram criados
critérios que possibilitavam a definição do casamento como um ritual católico,
representado, por fim, pela aceitação pública do novo status do casal com a benção de
Deus e da Igreja.

Em Santo Antônio de Jacutinga, analisamos os registros de casamento do século


XVIII presentes no livro misto de batismos, casamentos e óbitos de 1686 a 1721. Foram
contabilizados 48 casamentos de escravos neste livro, apenas dois realizados fora da
igreja paroquial, um na capela de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira e o outro
no oratório de Nossa Senhora da Conceição de Maxambomba. O outro livro da região,
que se refere ao período estudado, trata dos casamentos dos habitantes livres no período
entre os anos de 1795 e 1834, contabilizando 78 registros para o século XVIII. Pode-se
considerar que, em comparação ao número de batismos realizados no mesmo período, o
casamento era um ritual raro, tendo em vista que, mesmo entre os livres, não houve um
crescimento tão acentuado de registros ao final do século XVIII. Tal raridade, talvez
estivesse relacionada às exigências da Igreja para a realização do ritual, dentre elas a
obrigatoriedade do batismo para dar continuidade à vida cristã-católica e as outras já

33
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Editora Ática, 1986.
p.37.
34
Segundo o documento, o casamento foi instituído para três fins: para a propagação humana, para a fé e
lealdade que os casados devem guardar mutuamente e para a inseparabilidade dos mesmos casados,
significativa da união de Cristo com a Igreja Católica. Livro primeiro das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Título LXII. Cláusula 259.
92

referidas anteriormente35. No caso dos escravos, a própria resistência dos senhores para
permitir as uniões conjugais dificultava o processo.

Após o Concílio de Trento, o incentivo à realização de casamentos foi


intensificado, como uma das armas necessárias para a cura das almas. O ritual deveria
ser realizado nas igrejas paroquiais, salvo em casos excepcionais. Os seus registros
deveriam apresentar-se de maneira padronizada, tal como ocorria com os registros de
batismo, contendo obrigatoriamente informações como a data do casamento, os nomes
dos cônjuges, a sua filiação, residência, naturalidade, além dos nomes das testemunhas,
moradia e naturalidades, seguidos da assinatura do sacerdote. 36 Em Santo Antônio de
Jacutinga, apenas nos registros referentes à população livre foi possível encontrar todas
estas exigências. Já no caso dos registros de escravos a forma habitual encontrada era
mais breve, tal como o exemplo a seguir:

Em vinte e cinco dias do mês de janeiro de mil setecentos e onze pelas onze
horas da manhã se receberam em minha presença nesta freguesia de Santo
Antônio de Jacutinga e das testemunhas abaixo nomeadas sendo [...]
procedido as três canônicas admoestações sendo na forma do sagrado
Concílio Terdentino [sic] com palavras [...] Faustina com Sebastião, ambos
escravos [...]. Foram testemunhas Inácio Ribeiro e Jerônimo Martins [...]
constar fiz este assento [...]
O padre Dimas da Fonseca37
Nos registros de casamentos de escravos, normalmente, a filiação era substituída
pelos nomes de seus proprietários. Não há informações sobre residência e, nos casos de
Santo Antônio de Jacutinga, nem mesmo as informações sobre a procedência e as
posses das testemunhas são detalhadas. Embora os registros apresentem poucas
informações, uma observação chamou atenção durante a análise das fontes. Em três
registros de 1704, referentes aos casamentos dos escravos, João e Maria, noivo não
identificado e Joana e outro com os nomes não identificados, consta a informação “já
deflorada” ao lado do nome da noiva. Esta observação é oposta a um dos critérios para a
realização do casamento, o da virgindade das noivas, o que demonstra uma adaptação
da norma da Igreja no cotidiano colonial, sobretudo ao tratar dos casamentos entre
escravos. Oficializar o casamento das ditas “defloradas” funcionava como uma maneira
de impedir as relações sexuais ilícitas. Nestes casos, a intenção de inserir estes agentes

35
Op.cit.p.89.
36
MARCILIO, Maria Luiza. “Os registros paroquiais e a História do Brasil”. In: Varia Historia. 2004.
p.13-20.
37
Livro de batismos, matrimônios e óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1686-1721) Fl.58.v.
93

na cristandade superava a necessidade de que as normas católicas fossem respeitadas


impecavelmente. Com a chegada de cada vez mais escravos nos territórios do além-mar
foi necessário dedicar uma parte da legislação para eles, para que tivessem a
possibilidade de alcançar a salvação, de caráter universal, promovida pelos rituais e ao
mesmo tempo inseri-los na cristandade. O casamento funcionava como uma reparação
da situação de pecado dos gentios.

Ao discutir o termo gentio, comum nos registros paroquiais de Santo Antônio de


Jacutinga, a autora Mariza de Carvalho Soares afirmou que o termo era utilizado para se
referir à questão da conversão dos africanos e à sua inserção no “seio da Igreja”. 38 O
termo “gentio” também era usado para tratar dos indígenas. Em Santo Antônio de
Jacutinga, dentre os 48 casamentos de escravos, apenas em um deles, o cativo foi
mencionado como “gentio da terra”, enquanto os demais casos referiam-se aos
africanos, geralmente “gentios da Guiné”. Segundo Mariza de Carvalho Soares, a
África, mesmo antes de ser assim denominada, era considerada o local do gentilismo.
Uma vez que os africanos eram retirados de lá, “doutrinados e batizados”, entravam em
contato com o universo católico, “dando por terminada a condição gentílica e restando
apenas avançar [...] na doutrinação.”39 Uma vez retirados da condição de gentios,
caberia aos senhores e aos párocos a obrigação de converter os escravos ao Catolicismo.

Segundo Carlos Alberto Zeron, a pregação da Igreja com relação às obrigações


dos senhores para com os seus escravos baseava-se na reciprocidade entre as partes.

Os cativos deviam trabalhar obedientemente para seus senhores, e estes


deviam dar-lhes sustento, vestuário, cuidado nas enfermidades, além de
instruí-los na doutrina e moldá-los nos bons hábitos e costumes cristãos
através da disciplina.40
Em Santo Antônio de Jacutinga, entre os anos de 1704 e 1720, foi possível
identificar três casamentos coletivos, todos envolvendo quatro casais. Tais dados podem
ser um indicativo da necessidade de sacramentar as uniões entre os escravos, que

38
SOARES, Mariza de Carvalho. “A conversão dos escravos nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia e na legislação portuguesa. In: FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales
(orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011. p.303.
39
Ibidem. p.310-312.
40
ZERON, Carlos Alberto de M. R. “O governo dos escravos nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia e na legislação portuguesa: separação e complementaridade entre pecado e delito”
In: FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a
Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p.331.
94

poderiam ter o incentivo dos senhores, mas não dependiam, pelas Constituições, de sua
aprovação.

Fernando Torres Londoño observou que a partir do crescimento do número de


escravos na América portuguesa, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
dedicaram trinta e oito parágrafos ao seu tratamento, que se referiam à catequese e aos
sacramentos, de um modo geral.41 Quanto às finalidades espirituais, os casamentos de
livres e escravos não se diferenciavam, tendo em vista que, como um dos meios de
alcance à salvação, eram permitidos a todos os habitantes. Simbolizando uma passagem
marcante na vida dos fiéis, o casamento significava uma agregação. A condição social
dos “noivos” modificava-se após o ritual. Criava-se uma nova unidade após o
recebimento das bênçãos matrimoniais, o fator individual transformava-se em
coletivo.42 Se antes os noivos eram reconhecidos como o João e a Joana, por exemplo,
após o sacramento tornavam-se João e Joana, o casal, e não mais os indivíduos. Os
participantes, que vivenciavam o ritual, modificavam o seu lugar na sociedade. O
casamento, neste caso, anulou a posição social anterior dos fiéis, transformando-os e
possibilitando a agregação destes a uma nova categoria, existente somente a partir da
realização do ritual. Neste sentido, o casamento, enquanto ritual, assumia o papel de
“remodelar”43 o ser, por influenciar, bem como o batismo e o óbito, a organização
social. Para os escravos, porém, o casamento poderia assumir outros significados. Era
parte do seu processo de conversão e inserção no universo católico. Entendia-se que ao
casar, os escravos teriam escolhido dar continuidade à vida cristã, diferente do batismo
que era responsabilidade dos seus pais e senhores.

No cotidiano colonial, o casamento conferia certa liberdade aos escravos, que


poderiam escolher os seus parceiros, mesmo que a todo o tempo a Igreja reafirmasse o
lugar social que deveria ser ocupado por eles.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar


com outras pessoas cativas ou livres e seus senhores lhe não podem impedir o
matrimônio, nem o uso dele, em tempo e lugar conveniente, nem por esse
respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos para
onde o outro por ser cativo ou por ter outro justo impedimento o não possa

41
FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a
Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p.324.
42
GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2011. p.19
43
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. p.125-130.
95

seguir e fazendo o contrário pecam mortalmente e tomam sobre suas


consciências as culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas
vezes estar e permanecer em estado de condenação. Pelo que lhe mandamos
que encarregamos muito que não ponham impedimentos a seus escravos que
se casarem [...] E declaramos que posto que casem, ficam escravos como de
antes eram e obrigados a todo serviço do senhor. 44
O texto das Constituições reafirmou o casamento como um direito de todos.
Sendo direito divino, não era pertinente impedir a união religiosa entre os escravos.
Neste quesito, a determinação da Igreja era a de que o cativo tinha a liberdade de casar-
se com um parceiro de sua escolha, sendo proibida qualquer interferência de seus
senhores, de modo a minimizar os concubinatos. De acordo com o documento, os
senhores eram proibidos de tomar qualquer atitude que prejudicasse o casamento de
seus escravos, como separar o casal. Esta proibição refere-se à resistência anterior de
alguns senhores para liberar os seus escravos para o casamento. Segundo Charlotte de
Castelnau-L‟Estoile, a liberdade conferida pelo sacramento era uma ameaça ao poder
dos senhores, que deveriam de certa forma submeter-se à vontade de seus escravos.45

Mesmo com a defesa do casamento entre escravos e as restrições ao poder dos


senhores, há uma breve observação sobre o lugar que deveria ser ocupado pelos cativos
na hierarquia social. A frase “e declaramos que posto que casem, ficam escravos como
de antes eram e obrigados a todo serviço do senhor” deixa claro que, ainda que tivessem
direito ao casamento, não era o interesse da Igreja alterar a condição de escravos. Nos
registros de matrimônio há sempre o nome dos proprietários dos “noivos”, contribuindo
para relembrar a condição legal dos cativos.

Caberia às autoridades religiosas garantir o direito ao casamento dos escravos,


incentivá-lo, inclusive, buscando a diminuição do número de concubinatos, mas não
interferir na escravidão. Apesar do compromisso com a universalidade do Cristianismo,
mantendo o interesse na conversão das populações, a Igreja era uma instituição de seu
tempo, que participava e admitia a escravidão. Um exemplo desta admissão pode ser
representado pela existência de clérigos proprietários de escravos.

44
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXXI. Cláusula 303.
45
CASTELNAU-L‟ESTOILE, Charlotte de. “O Ideal de uma Sociedade Escravista Cristã: Direito
Canônico e Matrimônio dos Escravos no Brasil Colônia”. In: FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton
Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. São Paulo. Editora Unifesp. 2011.
96

Desta forma, “o casamento era assim uma ocasião de verificar que os escravos
conhecem a doutrina cristã que teoricamente recebem de seus senhores.”46 E mais do
que isso, o casamento, era um meio de representar o reconhecimento dos códigos
católicos por parte da maioria dos membros da comunidade, que se reconhecia por
intermédio dos ritos sacramentais e os escravos não fugiam desta lógica.

Em outras palavras, a participação no ritual de casamento significava uma


igualdade perante Cristo, mas não uma igualdade jurídica ou social. Os escravos eram
inseridos na cristandade por meio do ritual, mas isto não significava que deixariam de
ser escravos. A liberdade era conferida ao ritual e não aos seus participantes, embora
significasse, de qualquer forma, um avanço nos direitos reservados aos escravos.

No caso de Santo Antônio de Jacutinga, um exemplo da manutenção do status


dos cativos é o fato de que, mesmo os casamentos entre livres e escravos foram
registrados no livro de escravos.

Mesmo que o Recôncavo da Guanabara fizesse parte de uma sociedade


escravista, a partir da comparação dos registros paroquiais da região às Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, é possível observar o interesse em manter uma
sociedade que praticasse o Catolicismo. Diferente do batismo, o casamento poderia ser
uma escolha das partes envolvidas. Os leigos, escravos ou livres, manifestavam a partir
do ritual a sua vontade de permanecer seguindo os ensinamentos católicos e, mesmo
com as suas adaptações, prosseguiam no sentido de alcançar a salvação de sua alma,
iniciada pelo batismo e completada, como demonstraremos, pela morte.

3.3 A MORTE

Se o nascimento era representado pelo batismo e a construção da família, pelo


casamento, faltava apenas um “momento-chave” principal na vida das pessoas a ser
ritualizado e legitimado pela Igreja: a morte. Juntos, os três momentos completavam um
ciclo da existência humana em busca da salvação eterna.

A partir do livro de registros de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga, referente


ao período de 1785 a 1809, é possível ter ideia de como esta passagem era
compreendida pela Igreja e pelos fiéis em Santo Antônio de Jacutinga no século XVIII.

46
Ibidem. p.378
97

Para este intento, embora tenhamos a necessidade de discutir brevemente a construção


dos registros de óbitos, serão enfatizados alguns dos testamentos reunidos durante a
pesquisa, pela riqueza de detalhes que apresentam sobre a “boa morte católica”.
Conforme afirmou Cláudia Rodrigues, a Igreja determinava e ensinava como um cristão
deveria morrer de forma correta47. Há vestígios destas determinações nos testamentos e
a preocupação de alguns paroquianos de Santo Antônio de Jacutinga em garantir a
salvação de suas almas ao demonstrar ter conhecimento dos ensinamentos católicos.

3.3.1 A morte católica


Segundo Cláudia Rodrigues, já na cultura greco-romana, o culto dos mortos era
comum, mas era um costume familiar e doméstico. Tratava-se, nas palavras da autora,
de um costume não institucionalizado, no qual a “sepultura e o sepultamento eram
assunto de parentes, constituindo-se as tumbas lugares privados, segundo o direito
romano.” Os familiares demonstravam a sua piedade em relação aos mortos oferecendo
banquetes sobre as suas tumbas. Acreditava-se que havia a necessidade de demonstrar
tal piedade pelos mortos, no intuito de impedir que as almas não fossem aceitas pelos
espíritos e vagassem na Terra como espíritos perigosos. “Nesse sentido, o culto dos
mortos e os rituais funerários tinham mais o objetivo de impedir que os mortos – suas
almas – perturbassem os vivos do que propriamente cumprir os preceitos de uma
religião institucionalizada”.48

O Cristianismo antigo assumiu e adaptou as práticas funerárias, adicionando ou


substituindo o banquete habitual pelo banquete eucarístico. O primeiro indício da
intervenção da Igreja nestas práticas deu-se em relação aos banquetes realizados junto
aos túmulos dos mártires, na intenção de garantir a sua proteção por meio do
reconhecimento do agrado. Apenas a partir do século IV esta ação foi condenada por
apresentar semelhanças com os rituais “pagãos”. Para combater esta prática, a Igreja
esforçou-se no sentido de retirar a prática funerária do domínio familiar, numa tentativa

47
Cf. RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações
fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro/Coleção
Biblioteca Virtual/Biblioteca Carioca, 2007; Idem. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no
Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005.
48
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005.p.41.
98

de “clericalizá-la”, ou seja, torná-la um ritual católico, que deveria ser realizado por
clérigos49.

Desta forma, a Igreja assumia, gradativamente, o monopólio sobre as


sepulturas e os sepultamentos, num processo crescente de retirada dos mortos
do espaço e do controle doméstico e familiar, colocando-os sob seu domínio
direto e simbólico.
Diferentemente dos costumes greco-romanos [...] essa nova prática
introduziu os mortos na cidade. Primeiramente, nas basílicas; num momento
posterior, para as catedrais e, finalmente, pra as igrejas. Por trás dessa
vizinhança, estava a crença de que a proximidade dos santos mártires
protegeria os cadáveres dos profanadores de sepultura. 50

A partir deste momento, a sepultura eclesiástica passou a ser um dos elementos


fundamentais para a salvação da alma, reafirmando o domínio da Igreja sobre os
assuntos de morte. Tal domínio reforçava-se a partir da necessidade da presença do
clero como mediador entre os vivos e os mortos. Mas, somente no século XIII, esta
valorização da mediação entre vivos e mortos tornou-se parte fundamental do processo
de morte católica, graças às orações pelos mortos e pela imposição da realização dos
velórios nas igrejas.51

Por fim, estabelecendo a morte como um domínio da Igreja, intensificou-se a


doutrina do Purgatório, como um espaço intermediário entre o céu e o inferno.

Para Márcio de Sousa Soares:

De acordo com a doutrina romana, o Purgatório era um lugar de


purificação pelo fogo, portanto, local de sofrimentos e expiações
necessários à completa remissão dos pecados, credenciando ingresso no
Paraíso Celeste para que a alma completamente imaculada pudesse
finalmente gozar da visão beatífica de Deus. [...] o período da purgação
podia ser abreviado pela misericórdia divina sempre pronta a atender a
intervenção da Virgem, dos Santos e toda a corte celeste, assim como a
considerar a intercessão dos vivos para com os mortos por meio de
missas, orações, esmolas.52

O Purgatório representava um tempo de espera para o Juízo Final, uma


possibilidade de purificação da alma dos cristãos. Em outras palavras, uma segunda

49
Ibidem.
50
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005. p.43.
51
Ibidem.p.45.
52
SOARES, Márcio de Sousa. “Alforrias e perfilhação na Macaé escravista: novas possibilidades de
pesquisa em fontes cartorárias e paroquiais (séculos XVIII e XIX)”. In: AMANTINO, Márcia;
RODRIGUES, Cláudia, et al (orgs.). Povoamento, catolicismo e escravidão na antiga Macaé (séculos
XVII ao XIX). Rio de Janeiro. Apicuri, 2011. p.151
99

chance para a redenção dos fiéis que pecaram em vida. A partir desta concepção,
reforçava-se ainda mais a necessidade de recorrer à Igreja antes de morrer, já que, além
da confissão, da penitência e da extrema-unção, a oração pelos mortos poderia amenizar
o tempo de purgação e agilizar a purificação da alma no além. A doutrina do Purgatório
possibilitou a valorização do período antes da morte e também a solidariedade entre
vivos e mortos, por meio das orações oferecidas pelas almas dos defuntos.53

Para Phillipe Ariès, mesmo que os cristãos admitissem a existência de um


espaço intermediário entre o céu e o inferno, somente em meados do século XVII, após
a “catequização tridentina”, o termo “Purgatório” se tornaria habitual54, tal como a
construção, a fiscalização das capelas e a intensificação dos sacramentos, que iniciaram,
conforme já mencionamos, no mesmo período.

Em se tratando da América Portuguesa, há diversas passagens nas Constituições


Primeiras do Arcebispado da Bahia que se referem ao Purgatório. Em uma delas, o
documento informa:

É coisa santa, louvável e pia o socorro de sufrágios pelas almas dos


defuntos, para que mais cedo se vejam livres das penas temporais, que no
Purgatório padecem em satisfação de seus pecados e aos que já gozam de
Deus se lhes acrescente a glória acidental. Portanto exortamos muito a
todos os nossos súditos que em seus testamentos e últimas vontades se
lembrem não só de mandarem dizer missas e fazer os oficios costumados,
mas além disso o mais que cada um puder, conforme sua devoção e
possibilidade.55

A partir deste trecho é possível observar a concepção de “boa morte”, defendida


pela autora Cláudia Rodrigues. A Igreja definiu os critérios para a remissão dos pecados
dos fiéis. Antes de morrer, o fiel deveria, preferencialmente, deixar um testamento que
se direcionava à salvação de sua alma e não apenas à distribuição de seus bens
materiais. Neste sentido, o testamento funcionava, muitas vezes, como uma prestação de
contas do fiel com Deus e como uma oportunidade de demonstrar e reafirmar a sua fé
no Catolicismo. Há no trecho transcrito uma recomendação para que antes de seu
falecimento, os fiéis deixassem acordadas missas em nome de suas almas e das demais
almas do purgatório e fizessem o que mais estivesse ao seu alcance. Fazer o que
pudessem, “de acordo com a sua devoção e possibilidade”, dizia respeito aos “agrados”

53
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1981.
54
ARIÈS, Phillipe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p.164.
55
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título I. Cláusula 834.
100

que o morto poderia deixar para a paróquia ou para a Irmandade à qual estivesse filiado.
Desta forma, era possível retribuir a dádiva da vida oferecida por Deus e esperava-se,
em troca, ter a recompensa da vida eterna em resposta aos agrados oferecidos à
comunidade católica. As possíveis doações, pedidos de missas ou mesmo as ações que
demonstrassem caridade, como alforriar alguns escravos, funcionavam como uma
moeda de troca, que selava o compromisso de doação e retribuição dos fiéis com
Deus.56

Dentre os 663 registros de óbito de Santo Antônio de Jacutinga, referentes ao


período de 1785 a 1800, apenas 22 apresentaram os testamentos dos falecidos. Quanto
aos registros, seguem em geral o mesmo padrão demonstrado a seguir:

Aos trinta e um dias do mês de outubro de mil setecentos e oitenta e sete anos
nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, faleceu da vida presente, com
todos os sacramentos, Francisco Rodrigues Passos, casado com Marta
Coelho, parda forra, moradora no [...] de São Bento, desta dita freguesia e foi
por mim encomendada e sepultada na cova da fábrica de que fiz este assento
que assinei.
Vigário Manoel Pinto de Pinho.57
Normalmente, os registros continham as informações básicas do falecido, como
o nome, o estado civil, a informação de cumprimento ou não dos sacramentos e o local
de sepultamento. Obrigatórios, desde o Concílio de Trento, os registros de óbito
também tinham um caráter civil, pois, juntamente aos registros de batismo e
matrimônio, eram utilizados para determinar o número aproximado de pessoas da
região58.

Ao final do documento, transcrito anteriormente, pode-se observar a informação,


padrão nos registros de óbito, de que o defunto foi encomendado pelo padre. Segundo
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, a encomenda era uma obrigação
dos párocos, antes do enterro dos defuntos. Para tanto, os paroquianos deveriam, o mais
breve possível, comunicar o falecimento de outrem para que o sacerdote pudesse
investigar a existência de testamentos e identificar em qual local o corpo deveria ser

56
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1923-24).
In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1974.
57
Livro e óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl.12.
58
Segundo Maria Luiza Marcilio, o Papa Paulo V, em 1614, através do Rituale Romanum tornou
obrigatórios os registros de óbitos, “além de impor o Líber Status Animarum, uma espécie de censo
periódico das paróquias, com o levantamento nominal e por família, de seus membros e
agregados maiores de 7 anos .” MARCILIO, Maria Luiza. “Os registros paroquiais e a História do
Brasil”. In: Varia Historia, 2004. p.13-20.p.02.
101

enterrado. Após estas verificações, o pároco deveria encomendar o corpo onde


estivesse, trajando sobrepeliz preta ou roxa, conforme o “ritual romano”.59 A
encomenda era a despedida do fiel de sua casa, seguida do acompanhamento do corpo
pelo sacerdote.

Outro ponto importante, no registro de Francisco Passos, refere-se ao


cumprimento de todos os sacramentos. Tal observação também é comum nos outros
registros e é um indício da influência e da intervenção da Igreja por toda a vida dos
fiéis, definindo e registrando as suas principais passagens como cristãos. Nos momentos
finais da vida católica, o ritual de extrema-unção, ou unção dos enfermos, era uma das
etapas essenciais para o processo de boa morte.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

É o sacramento da extrema-unção, o quinto dos da santa madre Igreja, de


grande utilidade para os fiéis, instituído por Cristo, Senhor Nosso, como
definiu o sagrado Concílio Tridentino para nos dar especial ajuda, conforto e
auxílio na hora da morte, em que as tentações do nosso comum inimigo
costumam ser mais fortes e perigosas, sabendo que tem pouco tempo para
nos tentar. [...]
Os efeitos próprios deste sacramento são muitos e, principalmente, três. O
primeiro é perdoar-nos as relíquias dos pecados pelos quais ainda faltava
satisfazer da nossa parte, ficando por isso aliviada a alma do enfermo. O
segundo é dar, muitas vezes, em todo ou em parte, a saúde corporal ao
enfermo quando assim convém para o bem da sua alma. O terceiro é consolar
ao enfermo, dando-lhe confiança e esforço para que na agonia da morte possa
resistir aos assaltos do inimigo e levar com paciência as dores da
enfermidade.60
O trecho transcrito do documento justifica a necessidade da realização do
sacramento de extrema-unção, mencionando a sua importância e os seus objetivos. A
partir do texto é possível observar uma forte recomendação da Igreja para que o ritual
fosse realizado antes da morte, com a justificativa de que, neste momento, os fiéis
estariam mais vulneráveis às tentações do “inimigo”. A extrema-unção também assumia
o papel de absolvição dos pecados terrenos, no intuito de promover uma purificação da
alma do moribundo. O óleo de oliveira bento, ministrado pelo pároco com as palavras
do ritual romano61 representava uma esperança e, ao mesmo tempo, um consolo para os
fiéis que se preparavam para a sua última passagem em vida.

Para S. Marsilis, a extrema-unção era


59
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
60
Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLVII. Cláusulas 191-
194.
61
Ibidem. Título XLVII. Cláusula 191.
102

celebrada para um cristão que a doença colocou em situação toda particular, a


fim de que, no abatimento físico decorrente da enfermidade, reconfirme a sua
fé na „salvação‟ de Cristo e, em vista dessa salvação, una o seu sofrimento ao
sofrimento dele, tornando-se assim também o doente, por via sacramental, “o
servo sofredor de Javé”.62
Desta forma, nos momentos de graves enfermidades, os fiéis recorriam aos
párocos, mensageiros da palavra e dos sinais divinos63 para que cumprissem o último
sacramento. O cumprimento deste ritual era uma oportunidade de entrar em contato com
Cristo-sacramento, a partir da correspondência do sofrimento, decorrente da doença, do
moribundo ao sofrimento de Cristo.

Quando o ritual de extrema-unção não era realizado, o padre que registrava o


óbito, normalmente, justificava a falta, conforme o caso a seguir:

Aos vinte e sete dias do mês de maio de mil setecentos e noventa anos, nesta
freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, faleceu da vida presente, sem
sacramentos, de morte apressada, Tereza de Jesus, viúva, que ficou de
Agostinho Alves de Carvalho e foi por mim encomendada[...].
Manoel Pinto de Pinho.64
Neste caso, Tereza de Jesus, faleceu sem ter recebido a extrema-unção, devido à
sua morte rápida, conforme demonstrou o documento.

Para garantir uma “boa morte”, e, portanto, ter a possibilidade de obter a graça
divina era necessário cumprir as determinações da Igreja. Nos 22 testamentos, do final
do século XVIII, de Santo Antônio de Jacutinga, é possível observar a preocupação dos
fiéis com o destino de suas almas no além-túmulo. Os testamentos eram uma
oportunidade dos católicos demonstrarem o cumprimento dos requisitos estabelecidos
pela Igreja para a salvação da alma após a morte.

3.3.2 A “boa morte” em Santo Antônio de Jacutinga


Dentre os 22 testamentos reunidos do livro de óbitos de 1785 a 1807, 6 casos
foram destacados, pela riqueza de detalhes sobre a vontade dos fiéis testadores e
também pelo estado de conservação dos documentos. Tratam-se dos testamentos de

62
SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992. p.1068.
63
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2006; RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A
secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional/RJ, 2005.
64
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl.24.
103

Manoel José de Abreu, sargento-major de auxiliares; Dona Inácia Maria Tavares, viúva
do sargento-major Francisco Sanches de Castilho; Rita Maria de Souza; Agostinho
Alves de Carvalho; Dona Maria Rosa Menezes e Luís Manoel da Cunha.

Acredita-se que a partir destes casos seja possível identificar certos padrões no
processo de preparação para a última passagem dos paroquianos de Santo Antônio de
Jacutinga, no que concerne aos óbitos de livres. Estes padrões repetem-se nos demais
casos, ainda que cada um dos testadores possa ter apresentado diferentes recursos e
formas de expressar as suas últimas vontades no documento.

Durante a pesquisa foi possível identificar formas semelhantes de iniciar os


testamentos. Normalmente, os documentos começavam com as seguintes saudações:
“em nome da santíssima trindade, padre, filho e espírito santo”. Houve casos, como o
do testamento de Agostinho Alves de Carvalho, que apresentaram o complemento: “três
pessoas distintas em um só Deus verdadeiro” ao final da saudação, fugindo da mera
reprodução do modelo do documento. O testamento do fiel destacou-se pelo número e
pela intensidade de expressões devocionais que superaram os outros documentos
analisados. Voltaremos neste ponto mais adiante, quando analisarmos partes específicas
deste documento.

O testamento de Dona Inácia Maria Tavares, escrito um mês antes de sua morte,
apresentou a seguinte forma, logo após a saudação inicial:

Saibam quantos este público instrumento virem, que sendo no ano de nosso
senhor Jesus Cristo de mil setecentos e oitenta e seis, aos quatro dias do mês
de setembro, do dito ano, na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, eu
Dona Inácia Maria Tavares, estando doente de cama, mas em meu perfeito
juízo e entendimento, que nosso senhor foi servido dar-me e temendo-me da
morte, desejando por minha alma no caminho da salvação faço este público
testamento na forma seguinte.65
As palavras utilizadas por Dona Inácia Tavares são comuns nos demais
testamentos. Há, neste trecho, dois pontos importantes que antecedem os eventuais
pedidos ou a distribuição de bens presentes nos testamentos. O primeiro ponto diz
respeito à expressão: “estando doente de cama, mas em meu perfeito juízo”. Era
importante demonstrar lucidez, para validar as suas vontades e, ao mesmo tempo,
ressaltar o seu conhecimento sobre a doutrina católica nos momentos finais de sua vida.
Receber o sacramento em “perfeito juízo” também era uma das recomendações da

65
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl.07.
104

Igreja para os fiéis que se preparavam para a morte, pois apenas nesta condição eles
poderiam recebê-lo “com a devida reverência” e encontrar o consolo necessário.66

O outro ponto comum nos testamentos refere-se ao temor demonstrado pelos


fiéis ao redigir o documento. A expressão “temendo-me da morte”, seguida de pedidos
relacionados à salvação das almas foi encontrada em todos os casos. Em alguns, é
possível, ainda, observar um complemento desta introdução, que justifica o temor
mencionado pela incerteza do que Deus faria com o fiel enfermo.

O medo, segundo Jean Delumeau, o “menos nobre dos sentimentos”, já era


comum na sociedade medieval ocidental em relação ao outro, ou seja, ao desconhecido.
Neste caso, nada poderia ser mais desconhecido, para os fiéis, do que a morte, ou
melhor, do que o destino de suas almas. Ao mesmo tempo em que a Igreja incentivava o
medo coletivo nos seus discursos, que definiam o inferno como o lugar próprio dos
pecadores, ela apresentava uma solução para este problema, a palavra de Deus. 67 Neste
sentido, além da exigência para que os fiéis seguissem uma vida católica, marcada pelos
rituais em vida, a possibilidade de uma “boa morte” poderia livrar as almas do inferno e
amenizar o seu tempo no purgatório.

No testamento de Manoel José de Abreu, escrito três dias antes de sua morte, é
possível observar uma demonstração de sua consciência em relação aos ensinamentos
católicos. No documento, o fiel mencionou saber que àqueles falecidos em graça
reservava-se a vida eterna, enquanto que aos falecidos em pecado, restava o “inferno
para sempre”, demonstrando ter conhecimento do dualismo “bem e mal” defendido pela
Igreja.68

Para facilitar o processo de “morrer em graça”, os paroquianos recorriam à ajuda


de figuras celestiais, conforme o testamento de Rita Maria de Souza:

Primeiramente encomendo a minha alma à santíssima trindade [...] ao eterno


pai que pela morte de seu unigênito [...] queira receber [...] à Maria, Senhora
Nossa, santa de meu nome [ao santo] da minha devoção, ao anjo de minha
guarda e a todos os santos e santas da corte celeste 69
O tipo de pedido feito pela paroquiana é comum aos demais testamentos.
Encomendava-se a própria alma a Deus, à Virgem Maria, aos santos de devoção, ao
66
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Cláusula 195.
67
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1850. São Paulo: Companhia das letras,
1989.
68
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). Fl.02
69
Ibidem. fl.10.
105

anjo da guarda e aos demais santos da “corte celeste”. A Virgem Maria, conforme já
mencionamos, encontrava-se numa posição mais privilegiada da hierarquia celestial, por
ser parte fundamental da família de Cristo. Além dos santos, como intermediários entre
Deus e os homens70, havia também um forte apelo ao anjo da guarda. A partir disto, é
possível observar, em Santo Antônio de Jacutinga, um costume comum na América
portuguesa, o de estabelecer relações mais próximas com os intermediários celestes em
momentos de desespero. Santos e anjos eram inseridos no cotidiano da cristandade71,
com a intenção de auxiliar os fiéis nos momentos de dificuldade. No processo de boa
morte, eles significavam uma esperança, em contraposição ao medo do além-túmulo.
“Essa esperança tinha como base as ideias de proteção e de segurança, para as quais os
anjos e os santos agiam como guardiões e protetores da alma contra as forças
demoníacas.”72 Na paróquia de Santo Antônio de Jacutinga, dentre outros santos73,

70
Segundo André Vauchez santo era um homem através do qual se estabelecia um contato entre o céu e a
Terra. Entre os finais do século VI e VIII, a noção mais corrente de santidade deixava à margem toda
forma de pobreza, dando preferência aos nobres, sobretudo aos fundadores de igrejas e mosteiros. Apenas
a partir do final do século XI, a natureza da santidade modificou-se graças à noção de imitação da vida de
Cristo. A Igreja precisou responder aos anseios dos fiéis que continuavam a seguir os dogmas católicos e
aos questionamentos daqueles que se desvincularam da instituição. Esta mudança resultou na coexistência
entre as formas “populares” de Catolicismo e a disciplina eclesiástica, fazendo com que houvesse duas
espécies de santos: aqueles reconhecidos pela Cúria romana e outros pertencentes a cultos locais. Para
diminuir a intensidade da devoção não institucionalizada, a partir do século XIV, sobretudo no século
XV, intensificou-se a “palavra”, com a intenção de que o evangelho fosse cada vez mais introduzido na
vida social. Os santos passaram a ser, neste momento, animados por um desejo de conversão, conscientes
de que deveriam assumir o papel de medianeiros, entre Deus e os homens, capazes de amenizar o
sofrimento dos mais necessitados. VAUCHEZ, André. “O santo”. In: LE GOFF, Jacques. O Homem
medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
71
Sobre a incorporação de santos no cotidiano colonial ler: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala;
formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo. Global Editora, 2006.
51º ed.; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil
colonial. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008; SANTOS, Beatriz Catão Cruz. “Santos e devotos no
império ultramarino português”. In: Scielo: Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 2009. p.146-178; Laura
de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
72
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005.p.52.
73
Segundo Monsenhor Pizarro, a paróquia de Santo Antônio de Jacutinga contava, ao final do século
XVIII com três altares. No altar maior, ficavam a imagem de Santo Antônio, com sacrário e ornamentos
mantidos pela fábrica e pela irmandade, que não teve a devoção citada pelo religioso, mas acredita-se
tratar-se do Santíssimo Sacramento. No segundo, ficavam as imagens de Nossa Senhora do Rosário,
Santa Luzia e São Benedito, mantidas pelos devotos e pela irmandade do Rosário. E no terceiro,
encontravam-se a imagem de Nossa Senhora do Socorro e São Miguel, mantidas pela irmandade das
almas, que não tinha altar próprio, juntamente à imagem de Sant‟Ana e do Espírito Santo, mantidas pelos
devotos e por fim, a de Nossa Senhora da Piedade, na família Maciel da Costa. A partir destas
informações, é possível identificar uma preocupação em oferecer aos fiéis um consolo para a morte,
demonstrados pelas imagens de Nossa Senhora do Socorro e São Miguel. Mesmo que a irmandade das
almas não possuísse altar próprio, os santos que apresentavam um consolo aos fiéis em relação à morte
ocupavam um lugar de destaque no espaço religioso. ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro
de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
106

havia um altar reservado ao culto à Nossa Senhora do Socorro e a São Miguel, erguido
pela irmandade das almas, segundo Monsenhor Pizarro. A presença dos intermediários
celestes nos espaços religiosos, sobretudo os dois últimos citados, constituía-se em uma
maneira de relembrar aos fiéis que poderiam contar com a intervenção de intercessores
sagrados em sua última passagem, desde que seguissem os ensinamentos da Igreja sobre
o “bem morrer”.

Neste quesito, o testamento de Agostinho Alves de Carvalho destacou-se pelas


expressões devocionais exacerbadas, conforme o trecho de seu documento a seguir:

Primeiramente, encomendo a minha alma à santíssima trindade, que a criou, e


rogo ao padre eterno pela morte e paixão de seu unigênito filho a queira
receber assim como recebeu a sua estando para morrer na árvore da vera
cruz. E ao meu senhor Jesus Cristo, peço por suas divinas chagas, já que
nesta vida se fez mercê de dar o seu precioso sangue, me faça também mercê
na vida, que esperamos dar o prêmio delas [...]. Rogo à gloriosa sempre
Virgem Maria e a todos os santos da casa celestial, principalmente ao anjo da
minha guarda e ao santo de meu nome e aos mais a quem tenho devoção,
queiram por mim rogar a meu senhor Jesus Cristo agora e quando minha
alma deste corpo sair. Pois como verdadeiro cristão prometo viver e morrer
na fé católica e crer tudo o que tem e crer na santa madre Igreja de Roma e
nesta fé espero salvar a minha alma não pelos meus merecimentos, mas pelos
da santíssima paixão de meu senhor Jesus Cristo 74
O fiel encomendou a sua alma para os mesmos seres celestiais dos demais
testamentos, mas a sua escrita detalhada sobre a função de cada um deles destacou-se
pela tentativa de demonstrar um conhecimento mais aprofundando sobre os
ensinamentos católicos. Nesta ocasião, o testador, em alguns momentos do documento,
apelou pela misericórdia divina e pelo auxílio dos intermediários celestiais, igualando a
dor e o sofrimento à que passava em seus momentos finais àquele vivido por Cristo. Por
fim, o fiel reafirmou a sua fé no catolicismo e demonstrou humildade ao esperar que a
sua alma fosse salva pela Paixão de Cristo e não por seus “merecimentos” em vida.
Conforme já observou Cláudia Rodrigues, os testamentos eram um meio de
“exteriorizar o sentimento religioso e a fé em Deus que diziam ter, a obediência aos
preceitos do Catolicismo, a crença em seus dogmas.”75

Menos detalhado do que o testamento de Agostinho Alves de Carvalho, mas


também um exemplo significativo da intenção de reafirmar a fé no Catolicismo, por

74
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl.15.
75
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005.p.38.
107

meio dos testamentos, foi o caso do documento de Manoel José de Abreu. Em seu
conteúdo é possível ler:

Creio no sacramento do altar donde está o verdadeiro corpo e sangue de


Nosso Senhor Jesus Cristo. Creio em todos os sacramentos, contudo quanto
[...] a santa madre Igreja católica romana em cuja fé e crença [...] quero
morrer e salvar-me.76
Agostinho Carvalho, além de reafirmar a crença em todos os sacramentos,
enfatizando o seu conhecimento acerca dos dogmas do Catolicismo, deixou clara a sua
vontade em segui-lo ao afirmar “querer” morrer e salvar-se professando a fé ensinada
pela Igreja romana. A morte e a salvação, tal como é possível observar neste caso,
caminhavam lado a lado no universo católico. Desta forma, a morte tornava-se,
gradativamente, um ritual católico, que exigia várias etapas para a sua realização.
Embora representasse a última passagem em vida dos paroquianos e, portanto, a sua
separação da vida terrena, a partir dos preceitos católicos era compreendida como uma
oportunidade de alcançar a vida eterna, como uma esperança de continuidade.

Mais uma vez, a Igreja definia e influenciava um momento marcante na vida dos
paroquianos de Santo Antônio de Jacutinga. Em outras passagens, é possível observar a
sua influência, também, nos sepultamentos dos paroquianos.

Os testadores Manoel José de Abreu, Agostinho Alves de Carvalho e Luis


Manoel da Cunha pertenciam à Irmandade do Santíssimo Sacramento e pediram que os
seus corpos fossem enterrados nas covas a que tinham direito como irmãos. Os três
testadores deixaram instruções para que fossem “amortalhados em hábito de São
Francisco”. Já, Dona Inácia Maria Tavares pediu apenas que o seu corpo fosse enterrado
em sua freguesia, também envolto em hábito de São Francisco, enquanto que, para Rita
Maria de Souza, bastava um hábito de cor branca e o sepultamento em cova que não foi
possível identificar, devido ao estado do documento. Por fim, Dona Maria Rosa de
Menezes deixou um pedido para que o seu corpo fosse amortalhado também em hábito
de São Francisco de Paula e sepultado na ordem terceira do mesmo santo.

Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

É costume pio, antigo, e louvável, na Igreja Católica, enterrarem-se os


corpos dos fiéis cristãos defuntos nas igrejas e cemitérios delas, porque
como são lugares a que todos os fiéis concorrem para ouvir e assistir às
missas, oficios divinos e orações, tendo à vista as sepulturas, se lembrarão

76
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl.02.
108

de encomendar a Deus, nosso Senhor as almas dos ditos defuntos,


especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do
Purgatório, e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos muito
proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Portanto, ordenamos e
mandamos que todos os fiéis que neste nosso Arcebispado falecerem,
sejam enterrados nas igrejas ou cemitérios e não em lugares não sagrados,
ainda que eles assim o mandem, porque esta sua disposição como torpe e
menos rigorosa se não deve cumprir. 77

O documento definia que os membros da cristandade precisavam ser sepultados


em lugares sagrados, nas igrejas ou cemitérios. Nos casos analisados em Santo Antônio
de Jacutinga, conforme foi mencionado, os sepultamentos respeitavam esta ordem, já
que os corpos eram enterrados nas covas reservadas pela irmandade ou na fábrica da
paróquia.

Ao solicitar o local de sepultamento desejado, os paroquianos em questão


também indicavam o seu desejo de ser enterrado com uma mortalha. A mortalha era um
dos elementos complementares à salvação da alma dos católicos, um dos requisitos
necessários para garantir uma “boa morte”, segundo Cláudia Rodrigues, tanto para os
cristãos quanto para os africanos não cristãos. Para tanto, a cor e o tipo de mortalha
tinham bastante importância. Assumiam a função ritual

de integrar o morto no outro mundo. Determinadas cores, mal empregadas,


poderiam, na concepção cristã, dificultar o desprendimento da alma,
funcionando como uma espécie de barreira à entrada no Além; outras, pelo
contrário, poderiam servir de identificação e passaporte.78

Desta forma, é possível observar uma preferência pelo hábito de São Francisco
entre os paroquianos analisados na tentativa de aproximar-se da salvação por meio da
intervenção do santo.

No que diz respeito ao sepultamento dos paroquianos de Santo Antônio de


Jacutinga, é possível, também, identificar uma preferência pela irmandade do
Santíssimo Sacramento79, embora Monsenhor Pizarro tenha identificado outras na

77
Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LIII. Cláusula 843.
78
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p.196.
79
Segundo Célia Borges, embora os debates sobre a transubstanciação já existissem no período medieval,
foi no Concílio de Trento que a Igreja passou a investir fortemente na difusão do culto à eucaristia. Para
realizar este intento, a Igreja incentivava a formação de associações de devoção ao Santíssimo
Sacramento nas paróquias. As irmandades do Santíssimo resultaram, segundo a autora, destes esforços
por parte da Igreja e aos poucos tornaram-se “braços direitos” da Igreja por promover o culto eucarístico.
BORGES, Célia A. R. Maia. “Em Honra ao Senhor: a devoção à hóstia consagrada pelos irmãos do
109

região80. Pertencer a uma irmandade era mais uma forma de contribuir para assegurar
uma “boa morte”. Nestes casos, A sustentação do culto eucarístico, promovido pela
irmandade possibilitou a sua ligação com os “grupos de elite”.81

Segundo Monsenhor Pizarro, a irmandade do Santíssimo Sacramento de Santo


Antônio de Jacutinga foi criada em 1751, pelo bispo Antônio do Desterro, que também
aprovou e confirmou o seu compromisso. Nas palavras do visitador, “em tempo que se
conservava sujeita ao Ordinário” cumpriu o seu compromisso e os seus deveres. A
partir de 1787, quando deixou de ser responsabilidade ordinária e passou à provedoria
das capelas,

principiou a decair daquele fervor e zelo com que se conduzia nas suas
obrigações. Porque, vendo-se isenta da inspeção dos párocos, tem, caído na
mais deplorável relaxação [sic] que apenas assiste com azeite para a lâmpada,
e cera para a banqueta do altar, sendo aí preciso que o pároco se não descuide
de solicitar esse pequeno serviço, para que não aconteçam as faltas, que
muitas vezes hão sucedido, assim que cessa o cuidado, e o requerimento do
mesmo pároco.82
Ainda, segundo o visitador, o abandono da irmandade era tão significativo, que
já não eram cobrados os seus anuais, tampouco cumpridas todas as suas obrigações,
além da existência de um grande número de irmãos devedores. Para o visitador, este era
o motivo para o não cumprimento da maior parte dos sufrágios, pela falta de dinheiro
para satisfazer aos encargos das missas necessárias e era uma falta grave, visto que, sem
eles, as almas do defunto correriam sérios riscos de padecimento. Por fim, Monsenhor
Pizarro criticou o estado das alfaias da dita irmandade, indicando que, após várias
advertências “infrutuosas”, foi preciso que o pároco custeasse por conta própria um jogo
de toalhas para que fosse possível continuar a celebrar as missas no altar maior.

Mesmo com os problemas apresentados, é possível identificar testadores que


fizeram questão de indicar em seus testamentos o pertencimento à irmandade, no intuito
de ter o seu enterro garantido por meio desta associação. Manoel José de Abreu pediu
apenas que seu corpo fosse acompanhado pelo reverendo pároco, pelo provedor e

Santíssimo Sacramento em Minas Colonial”. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH. São Paulo, julho 2011.
80
Segundo Monsenhor Pizarro, além da irmandade do Santíssimo Sacramento, Santo Antônio de
Jacutinga contava com mais três irmandades no século XVIII, chamadas: irmandade das almas,
irmandade da Senhora do Socorro dos homens pardos e irmandade da Senhora do Rosário dos pretos.
81
OLIVEIRA, Anderson. “Devoção e hierarquias sociais: irmandades e elite macaense no oitocentos”.In:
AMANTINO, Márcia; RODRIGUES, Cláudia, et al (orgs.). Povoamento, catolicismo escravidão na
antiga Macaé (séculos XVII ao XIX). Rio de Janeiro. Apicuri, 2011.
82
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Prefeitura de Nilópolis, 2000.
110

demais irmãos do Santíssimo. Os outros dois casos deixaram informações sobre a


prestação de contas à irmandade.

Agostinho Alves de Carvalho afirmou que os seus anuais seriam pagos para que
o seu enterro fosse garantido pela irmandade. Já Luis Manoel da Cunha, em seu longo
testamento anexado a dois codicilos, deixou claro o seguinte:

Declaro que sou irmão da irmandade do Santíssimo Sacramento [...] tenho


pago os meus anuais [...] e por esta razão, peço ao irmão provedor da dita
irmandade fazei os sufrágios que constam mandar fazer a dita irmandade
pelos irmãos que morrem.83
O paroquiano justificou a necessidade do cumprimento de seu pedido baseado
nos auxílios que prestou à irmandade.

Aliadas à garantia que uma possível filiação à irmandade representava, os fiéis


procuraram em seus testamentos “lançar mão” de mais um recurso para a obtenção da
salvação. Foram encontrados, em todos os documentos, pedidos de missas, não apenas
para as suas almas, mas também para outras almas do purgatório. A quantidade de
missas pedidas variou em cada caso. Manoel José de Abreu pediu vinte e cinco missas
de corpo presente, cem missas por sua alma, mais cinquenta pelas almas de seus pais,
cinco para as almas do purgatório, simbolizando as cinco chagas de Cristo e mais dez
pelas almas de seus escravos falecidos. Dona Inácia Maria Tavares deixou em seu
testamento um pedido de cinco missas de corpo presente, uma capela de missas, ou seja,
cinquenta missas pela sua alma e mais dez pelas almas de seus pais e marido. A
testadora afirmou que se houvesse interesse de seus testamenteiros em mandar celebrar
mais missas, que fossem oferecidas em favor de sua alma. Rita Maria de Souza solicitou
dez missas de corpo presente, uma capela de missas pela sua alma e mais outra pela de
seus pais. Já Agostinho Alves de Carvalho, mesmo após declarar parte de suas dívidas,
solicitou cinco missas de corpo presente, mais duas capelas de missas de esmola de
pataca, repartidas da forma que o pároco preferisse. Dona Maria Rosas de Menezes
pediu a celebração de quantas missas de corpo presente fossem possíveis, mais uma
capela de missas pelas almas dos seus pais, irmãos e madrinha e oito pelas de seus
escravos. Por fim, o paroquiano Luis Manoel da Cunha deixou acordadas quantas
missas de corpo presente fossem possíveis, um ofício com nove sacerdotes, seis capelas
de missa para sua alma, totalizando trezentas missas, mais duas capelas para as almas do

83
Livro de óbitos de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1807). fl..113.
111

purgatório e mais uma capela da esmola declarada para os seus escravos vivos ou
mortos.

Como um padrão, não apenas nos testamentos selecionados, mas nos demais do
mesmo período, os pedidos de missas mostraram-se uma parte fundamental do processo
de cumprimento da “boa morte”. Segundo Cláudia Rodrigues

através das orações ou esmolas realizadas em intenção de parentes ou amigos


mortos, os vivos concorriam pela abreviação das penas de quem delas se
favorecia no Purgatório. Uma vez tendo alcançado o Paraíso, os mortos
passariam a rezar por aqueles (os vivos) que os teriam arrancado do
Purgatório.84
Tal pensamento explica o motivo de tantos pedidos de missas feitos pelos
paroquianos, não apenas em favor de suas próprias almas, mas de outras que estavam no
purgatório, principalmente dos mais próximos, como pais e cônjuges. As orações pelas
almas dos mortos funcionavam como um sistema de trocas entre vivos e mortos. A
partir dos casos mencionados pode-se sugerir que os paroquianos estar mais próximo da
salvação aquele que tivesse o maior número de orações realizadas em seu favor, ou seja,
aquele que pudesse pagar por elas, mesmo que no restante do documento mencionasse
débitos diversos.

Por fim, para o cumprimento do ritual da “boa morte”, alguns paroquianos


faziam uso de seus testamentos para confessar determinados pecados ou redimir-se de
outros, como a escravidão.

Manoel José de Abreu concedeu, em seu testamento, a liberdade a um de seus


escravos, seu afilhado de crisma, Bonifácio, além do já mencionado pedido de missas
em nome das almas de seus escravos. Dona Inácia Maria Tavares afirmou ter vendido a
liberdade de um de seus escravos para o próprio. Agostinho Alves de Carvalho libertou
a escrava Quitéria, que assumiu se tratar de sua filha, concebida após o seu casamento,
alegando ter sido motivada pela sua paternidade e pelos bons serviços prestados pela
escrava “parda”. Maria Rosa de Menezes repartiu a sua herança entre os seus filhos e a
“mulatinha” Joaquina, que foi alforriada pela senhora, graças à fidelidade e ao bom
trabalho prestados à ela. Tanto as missas, em favor das almas, quanto a alforria dos
escravos poderiam somar pontos para a salvação dos fiéis, diminuindo o seu tempo no
purgatório. Cláudia Rodrigues afirmou que as alforrias serviriam “não só como forma

84
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005.p.48.
112

de gratidão pelos serviços prestados, mas principalmente para compensar o fato de


terem escravizado uma pessoa cuja libertação poderia se constituir em uma espécie de
85
penitência por parte do proprietário-testador.” Ao mesmo tempo, a escravidão era
aceita e justificada pelos católicos como um meio de promover a salvação aos cativos.
Oferecer missas em favor de suas almas poderia ser compreendido como uma cortesia
dos senhores que eram, em parte, responsáveis pela instrução e pela manutenção de seus
escravos na fé católica.

O batismo, o casamento e a morte foram ritualizados pela Igreja e, aos poucos,


retirados do domínio dos leigos. Para cada um dos momentos-chave mencionados, havia
um conjunto de gestos e critérios que os definiam como sagrados e, portanto,
necessários. Tal definição tornava indispensável a presença de um clérigo para inserir o
fiel na cristandade, de modo que, apenas a partir da sua intermediação nos rituais, seria
possível alcançar a finalidade simbólica da salvação eterna. Os clérigos, superiores
espiritualmente graças ao domínio que tinham sobre os seus corpos, ou seja, a escolha
do celibato86, eram necessários à liturgia própria de cada um dos rituais de passagem,
assim como na instrução da fé católica aos leigos. Eram os clérigos que deveriam
instruir a população para obter uma “boa morte”. Para tanto, era necessário que os fiéis
fizessem os seus testamentos, procurassem os sacramentos, demonstrassem
arrependimento de seus pecados e, por fim, confiassem na intercessão da corte celestial
a favor de suas almas.87 Os critérios, que deveriam ser obedecidos nos momentos-chave,
assim como a linguagem utilizada pelos clérigos nas celebrações, ou por eles e pelos
leigos, na confecção dos testamentos, davam sentido aos rituais, que inseriam ou
separavam os fiéis do mundo social.

85
RODRIGUES, Cláudia. “O impacto das leis testamentárias sobre a economia da salvação no Rio de
Janeiro colonial”. In: Anais do XXVI simpósio nacional da ANPUH. São Paulo. ANPUH-SP. 2011. p.4
86
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2006; RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A
secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional/RJ, 2005.
87
RODRIGUES, Cláudia. Nas Fronteiras do Além: A secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/RJ, 2005. p.72.
CONCLUSÃO

A partir da pesquisa desenvolvida é possível compreender a importância das


capelas do Recôncavo da Guanabara setecentista à luz da documentação referente à
freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. Parte da história da região pode ser contada
por meio do estudo destas capelas. A dinâmica criada, desde a sua edificação pelos
leigos até a sua legalização pelas autoridades eclesiásticas, demonstra o interesse de
clérigos e leigos em manter práticas católicas. Numa região marcada pela presença
indígena e africana, as capelas eram edificadas com o objetivo de criar referências
católicas que possibilitassem a conversão destas populações e ao mesmo tempo
mantivesse o desejo dos colonos portugueses de manter o vínculo com a religião
católica. A própria denominação da freguesia demonstra a combinação do elemento
católico, neste caso, Santo Antônio e indígena, Jacutinga.

As capelas, de uso público ou privado, tinham o papel de reunir a população do


Recôncavo, preocupada em obter benefícios religiosos que garantissem a salvação
eterna. Esta relação entre público e privado não pode ser compreendida, neste trabalho,
de forma rígida, considerando que mesmo os rituais realizados nas paróquias e,
portanto, destinados a toda a população, poderiam apresentar formas privadas de
sociabilidade, representadas pela existência de oratórios nos interiores das paróquias. O
contrário também era possível, como demonstramos. Os oratórios, que tinham o
objetivo primeiro de servir como espaço para a contemplatio, realizada em presença do
núcleo familiar, muitas vezes se transformavam em capelas, obtendo a permissão do
bispo, com recomendação do Papa, para realizar o santo sacrifício da missa, um ritual
público. Quando isto ocorria, as celebrações que deveriam se restringir à presença dos
donos da casa, poderiam se estender aos demais moradores e à população dos arredores,
incluindo os escravos.

A obtenção de capelas “domésticas” tornava-se um critério de diferenciação


entre os membros da cristandade, típico de uma sociedade de Antigo Regime, visto que
se constituía em um privilégio daqueles que eram considerados nobres. Para usufruir
dos espaços religiosos, os solicitantes deveriam comprovar uma série de informações
que justificasse a necessidade do pedido. Normalmente, os solicitantes alegavam
dificuldade de deslocamento até a paróquia, fossem por questões de saúde ou de
distância de suas casas. Os membros da elite colonial transformavam-se em agentes
114

religiosos, por influenciar diretamente a transformação das práticas religiosas do


Recôncavo da Guanabara no século XVIII.

Foram os leigos, por meio de doações, que possibilitaram a edificação das


primeiras capelas de Santo Antônio de Jacutinga. Além disso, foram estes mesmos
habitantes que mantiveram os espaços religiosos, visto que a paróquia de Santo Antônio
não contava com o apoio financeiro da Coroa. Desta forma, os habitantes, sobretudo os
membros da elite, demonstravam a sua capacidade de manter as capelas e os sacerdotes
necessários para a realização dos rituais religiosos.

Sem dúvida, os interesses político-religiosos dos leigos foram de extrema


importância para o desenvolvimento do Catolicismo na região, mas isto não significou o
total abandono das autoridades eclesiásticas no que diz respeito às práticas católicas.
Em diversas partes dos documentos analisados, referentes ao Recôncavo, é possível
estabelecer uma relação com as disposições das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Os bispos ou outros visitadores mostraram-se presentes no
cotidiano da região, com a intenção de normatizar as práticas católicas, como a
edificação de capelas e a realização de rituais em seus interiores. Por meio das visitas,
os bispos, pastores de almas, cumpriam o seu papel de zelar pelo seu rebanho. As
visitas, reforçadas pelo Concílio de Trento, serviam como um instrumento de controle
das capelas pela Igreja. Controle este que dizia respeito à intenção de respeitar as
disposições gerais das Constituições, sem deixar de lado as especificidades da região.

Embora a edificação de capelas fosse incentivada pela Igreja, por representar a


devoção dos leigos, a sua realização acontecia de forma complexa. No caso das capelas
de uso público, ou seja, abertas a todos os moradores, a sua ereção dependia de critérios:
o número de habitantes da região e a sua localização, que deveria considerar a
possibilidade de receber um maior número de fiéis. No caso das capelas de uso privado,
os solicitantes deveriam comprovar a sua capacidade de manter o espaço religioso de
forma decente, livre dos usos domésticos, ou seja, em local reservado, separado dos
outros cômodos utilizados no cotidiano.

Mesmo havendo a possibilidade de fazer uso de capelas privadas no Recôncavo


da Guanabara, a documentação demonstrou certa valorização dos rituais desenvolvidos
na paróquia, já que, de acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, nem todos os espaços que celebravam a missa poderiam ser considerados como
115

sagrados. Era o papel dos solicitantes garantir a sua participação nos rituais
desenvolvidos na paróquia durante as festividades solenes. Garantir não apenas a sua
presença, mas a dos demais membros sob sua responsabilidade, ou seja, os seus
dependentes.

Por fim, as capelas também eram espaços destinados à realização dos rituais
católicos, rituais estes que permitiam o reconhecimento da população como membros da
cristandade. O batismo, o matrimônio e o óbito representavam momentos-chave nas
vidas dos fiéis e se estabeleciam como requisitos de pertença à sociedade guanabarina.
Nas palavras de Fernando Londoño, “batismo, casamento e ofício de defuntos eram
momentos de solenizar, através dos rituais, o cotidiano, reafirmando ou estabelecendo
publicamente relações e alianças por meio do compadrio.”1 Os rituais promoviam a
criação de um parentesco espiritual entre os envolvidos e, também, um vínculo social.

Recuperando a reflexão de Arnold Van Gennep sobre os ritos de passagem,


considera-se o batismo, o matrimônio e a morte, respectivamente, como rituais de
iniciação, agregação e separação. O batismo tinha como principal objetivo iniciar a
criança ou o escravo adulto na cristandade, dar ao agente a possibilidade de alcançar a
salvação. O matrimônio significava uma agregação do casal a um novo grupo, ou seja, a
modificação de seu status e, muitas vezes, uma possibilidade de reparar os pecados
cometidos anteriormente. A morte, que envolvia o sacramento da extrema-unção, o
sepultamento e os testamentos, com pedidos de missas, significava uma separação dos
agentes de sua vida terrena, para alcançar a eternidade da alma. Ao mesmo tempo, estes
rituais poderiam assumir outros objetivos. O batismo também cumpria o papel de
agregação e separação. Ao serem iniciados na Cristandade, os membros eram aceitos no
novo grupo e se distanciavam do pecado original. O matrimônio significava o início de
uma nova vida, quando duas pessoas decidiam tornar-se uma unidade. Era utilizado,
também, como uma forma de separar os agentes do pecado representado pelo
concubinato. A morte, embora separasse os agentes de sua vida terrena, significava a
sua iniciação e agregação ao reino dos céus, onde se acreditava que teria início uma
nova vida. Os rituais assumiam características diversas, demonstrando o seu dinamismo.

1
LONDOÑO, Fernando Torres (Org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São
Paulo: Paulus, 1997. p.70.
116

A participação nos rituais católicos e a manutenção das capelas pelos leigos


podem ser inseridas na concepção de dádiva defendida por Marcel Mauss. Segundo o
autor, “as trocas e os contratos eram feitos sob a forma de presentes, teoricamente
voluntários, mas na realidade obrigatoriamente retribuídos, dados e retribuídos”2. Ao
contribuir com doações para as capelas ou nos testamentos, como no caso de Agostinho
Alves Carvalho, que exigiu e pagou a celebração de missas pela sua alma, mesmo
alegando um grande endividamento, os fiéis retribuíam as graças concedidas por Deus.
Esta retribuição, aparentemente voluntária, demonstrava a gratidão dos fiéis. Tal
gratidão era obrigatória, pois demonstrava o interesse em manter uma aliança com Deus
e com o Catolicismo. Não retribuí-la era sinal de ingratidão e, também, de inferioridade.
As doações dos leigos também eram feitas no intuito de receber uma dádiva em troca.
Esta dádiva ia do atendimento de um pedido feito a um santo até a remissão dos
pecados e a salvação eterna.

Estudar as capelas, portanto, não é apenas datar a sua edificação, mas analisar as
diversas relações sociais possibilitadas a partir disto, que não se esgotavam entre as
paredes dos templos, mas influenciavam o cotidiano colonial. Por meio deste trabalho
foi possível demonstrar que as capelas do Recôncavo da Guanabara no século XVIII
não apenas serviam como espaços para a realização dos rituais religiosos, mas também
inseriam a região no Império português, visto que a preocupação com as práticas
católicas foi simultânea à inserção do Recôncavo nas rotas comerciais. Tão importante
quanto o interesse de normatizar o Catolicismo no Recôncavo da Guanabara foi a
necessidade de adaptá-lo às necessidades da localidade, demonstrando que a região não
fugia ao modelo de sociedade cristã-escravista.

2
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1923-24).
In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1974.
117

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