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A História em Desconcerto:
As Anékdota de Procópio de Cesareia e a
Antiguidade Tardia
Tese de Doutorado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011847/CA
Rio de Janeiro
Agosto de 2014
Victor Ribeiro Villon
A História em Desconcerto:
As Anékdota de Procópio de Cesareia e a
Antiguidade Tardia
Ficha Catalográfica
CDD: 900
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011847/CA
À professora Flávia Schlee Eyler pela orientação, pelo incentivo e por ter sempre
acreditado neste projeto.
Aos professores que aceitaram fazer parte da banca de defesa: Miriam Sutter;
Antonio Edmilson Martins Rodrigues; Dulci Nascimento; Elizabeth Bueno de
Godoy.
Aos professores que aceitaram fazer parte da banca como suplentes: Eunícia
Fernandes e Márcio Luiz Mointinha Ribeiro.
Mais do que especialmente às minhas tias Ivanita Villon e Ivone Villon, que com
paciência revisou cada uma destas páginas, a ambas agradeço por todo carinho,
compreensão e apoio incondicional, seguramente posso dizer: sem elas nada seria
possível! Aos meus pais Luci Ribeiro e Victor Villon por todo o carinho, desvelo,
amizade e atenção ao longo de todos esses anos.
Às tão queridas Priscylla Klein e Suellen Napoleão, que conheci nos idos e
saudosos tempos do segundo grau, eternas confidentes e grandes amigas.
À Annie Simone Verrier pela amizade, de todos esses anos, que vence as longas
distâncias atlânticas.
os temas que aí são abordados por Procópio de Cesareia; assim como a repercussão que a
publicação das Anékdota desencadeou nos séculos que se seguiram. “A Antiguidade
Tardia”: primeiramente, analisamos o conceito de Antiguidade Tardia e, depois, detemos
nosso olhar, mais especificamente, na época em que Procópio de Cesareia desenvolveu sua
obra. “Uma leitura Literária das Anékdota”: Com o auxílio do instrumental teórico
elaborado pelo crítico literário alemão Ernest Auerbach, tentamos discernir a presença de
características estilísticas cristãs na escrita procopiana. Em um segundo momento, ainda
nesse capítulo, utilizamos também os conceitos do crítico literário russo, Mikhail Bakhtin,
que tratam da Sátira Menipeia, para fazer uma aproximação entre esse gênero e as
Anékdota. “Outono da História Clássica ou Primavera da Mundividência Cristã na
História?”: Nesse último capítulo, mostramos como as Anékdota podem ser percebidas
como uma obra característica desse período de importantes mudanças, a Antiguidade
Tardia. Nesse texto de Procópio de Cesareia, cruzam-se os elementos característicos da
historiografia grega clássica, mas também elementos que compartilham de uma visão de
mundo cristã, logo, as Anékdota nos conduzem a refletir sobre as diferenças entre uma
visão de mundo pagã e uma visão de mundo cristã.
Palavras-Chave
Anékdota ou História Secreta; Procópio de Cesareia; Antiguidade Tardia;
cristianismo e paganismo; Justiniano imperador; História Bizantina; historiografia
grega; Teoria da História.
Resumé
Villon, Victor Ribeiro; Eylerl, Flávia Maria Schlee. (Advisor) L'Histoire
en Dérèglement: Les Anékdota de Procope de Césarée et l'Antiquité
Tardive. 2014, 162p. Tese de Doutorado – Departamento de História,
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
au XVIIe siècle par Nicolas Alemanni dans la Bibliothèque Vaticane ; la structure et les
thèmes abordés par l’auteur ; ainsi que la répercussion que la publication des Anékdota
déclencha dans les siècles qui se suivirent. « L'Antiquité Tardive » : D'abord, nous
analysons le concept d'Antiquité Tardive et ensuite, nous arrêterons plus spécifiquement
notre regard sur la période dans laquelle Procope de Cesarée écrivit son œuvre. «Une
lecture littéraire des Anékdota » : À l'appui des concepts élaborés par le critique
littéraire allemand Ernest Auerbach, nous essayons de déceler la présence des
caractéristiques stylistiques chrétiennes dans l'écriture procopienne. Dans un second
moment, dans ce même chapitre, nous utilisons les concepts du critique littéraire russe
Bakhtin, concernant la Satyre Menipée, pour faire un rapprochement entre ce genre et les
Anékdota. « Automne de l'Histoire Classique ou printemps d'une vision chrétienne
du monde dans l’Histoire ? »: Dans ce dernier chapitre, nous montrons comme les
Anékdota peuvent être perçue comme un ouvrage caractéristique de cette période
charnière, l'Antiquité Tardive. À l’intérieur de celles-ci se croisent les éléments
caractéristiques de l'historiographie grecque classique, mais aussi des éléments qui
puisent dans une vision chrétienne du monde, donc les Anekdota nous mènent à réfléchir
sur les différences entre une vision païenne et une vision chrétienne du monde.
Mots clefs
Anékdota ou Histoire Secrète; Procope de Césarée; Antiquité Tardive;
Justinien Empereur; Histoire Byzantine; christianisme et paganisme;
históriographie Grecque; Théorie de l’Histoire.
Sumário
1. Introdução 12
2. Desconcertos de um texto 21
2.1. A anedota das Anékdota 21
2.2. Nicolò Alemanni e a pesquisa antiquária 23
2.3. Entre o Estado e a Igreja 27
2.4. Peripécias de um texto “incômodo” 29
2.4.1. As Anékdota: temas e estrutura da obra 31
2.4.2. Fortuna crítica 56
3. A Antiguidade Tardia 67
3.1. Definições de um termo 67
3.2. Procópio de Cesareia 70
3.3. Procópio espelho do historiador ou a História às avessas 74
3.4. Justiniano e sua época 77
3.4.1. Guerra Persa 80
3.4.2. Guerra Vândala 81
3.4.3. Guerra Gótica 82
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6. Conclusão 143
8. Anexos 152
Lista de Figuras
Konstandinos Kavafis,
“Jónico”.
Tradução de Miguel Castillo Didier
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Fernando Pessoa,
“Não a ti, Cristo odeio ou te não quero”,
Odes de Ricardo Reis.
Musa,
Memora mihi causas
Virgílio,
Eneida
1.
Introdução
Carlos Ginzburg1
“Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”
Diz o provérbio francês que “avec des ‘si’ on mettrait Paris en bouteille”
(Com os ‘se’ colocaríamos Paris dentro de uma garrafa), ressaltando as situações
absurdas às quais somos conduzidos quando resvalamos nos encantos sedutores
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Mas a referida conjunção não deixa de possuir um lado mais perigoso e este
se relaciona à escrita da História. Caso existam “pecados” do historiador,
certamente, aventar realidades que não aconteceram seria um deles. E tais pecados
principiam, na maior parte das vezes, com uma pergunta introduzida por “se”.
1
GINZBURG, Carlos: Mitos, emblemas e sinais. 2001. p.p. 177-178
13
prática? Essas perguntas podem nos estimular a refletir sobre os objetivos do rei,
sobre as ideias políticas que circulavam na França ou, então, sobre o poder de
ação dos émigrés que se refugiavam além das fronteiras da França confabulando
contra a Revolução. Mas jamais saberemos qual teria sido o destino de Luís XVI e
de sua família, se a Revolução teria se radicalizado com o Terror, tampouco se os
émigrés teriam êxito em seus propósitos. As perguntas poderiam seguir ad
infinitum; respondê-las seria sobrepor umas às outras, como pequenos tijolos que
formariam vastos castelos de possibilidades que não aconteceram, todos eles
assombrosa e unicamente alicerçados na conjunção condicional “se”.
Hei de fazer um mea culpa, ou melhor, um fere mea culpa, um quase mea
culpa, e confessar que, em parte, esta tese nasceu de uma tentação ao “pecado” do
14
2
GINZBURG, Carlo: O Queijo e os Vermes. p.17
17
ideal de moderação tão caro à Antiguidade: Dum vitant stulti vitia, in contraria
currunt (Os tolos, ao evitarem os vícios, correm para os vícios opostos) 3.
3
HORÁCIO apud TOSSI, Renzo: Dicionário de Sentenças Latinas e gregas. Trad. Ivone
Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2010. (3ª edição).
18
Para finalizar, retomo o argumento com o qual dei início a esta introdução, a
afirmação de que um dos pecados do historiador é tentar supor o que teria
acontecido, caso determinado fato tivesse ou não ocorrido. Repito, o problema
não reside propriamente em formular a pergunta com a conjunção “se”, mas sim
em tentá-la responder. Aos historiadores tal resposta afigura-se como um
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“pecado”, simplesmente porque ao dizê-la eles saem dos seus domínios, mas não
à literatura. As Anékdota acabam nos estimulando, no final das contas, a pensar a
respeito das diferenças entre uma mundividência cristã e uma pagã e, sem querer,
escapole de nosso pensamento a pergunta: “E se o nosso mundo não tivesse de
tornado cristão?”. E ainda que a História frustrada nesse ponto tenha que se
conformar com o fato de que somente a literatura é capaz de fornecer uma ou
várias respostas, não deixa de ser interessante notar que Euterpe pode mostrar a
Clio que o “futuro do passado” já esteve um dia em aberto, tal qual é hoje o nosso
futuro. É difícil para a História — assim como é, talvez, para a maioria dos
Homens — a sensação de que o acontecido não necessariamente era o único
possível. Aproveito o ensejo e recordo aqui as palavras da historiadora francesa,
Mona Ozouf ao comentar o episódio da fuga de Varennes:
4
“Du tour inattendu que peuvent prendre les destins, les romanciers s’enchantent : c’est
l’infiniment improbable qui constitue pour eux, comme pour Hannah Arendt, la texture même du
réel. Ils sont rompus à substituer les événements imaginaires á ceux qui ont eu lieu, à rêver à
l’infinité des dénouements possibles. Les historiens, en revanche, cherchent toujours à débusquer
sous le foisonnement des faits la nécessité qui les ordonne. Pour eux, imperméables à ce qui est
fortuit, appliqués à réduire l’intervalle entre le possible et le réel, ce qui est arrivé le devait.
Connaître la fin de l’histoire est un privilège ambigu : ils les incline à plier les événements à ce
qui est effectivement advenu, à leur trouver une rationalisation, à éteindre la réflexion sur ce qui
aurait pu être. Et alors que le romancier n’est nullement inquiet de la discordance des
témoignages [...] l’historien cherche toujours à les accorder, à réduire la part des incertitudes, à
camper sur une version unifiée.” OZOUF, Mona : Varennes : La mort de la royauté (21 juin
1791), 2005. pp. 20-21
2.
Desconcertos de um texto
2.1.
A anedota das Anékdota
8
John Larner, em verbete consagrado ao papa Nicolau V, no Dicionário do Renascimento Italiano,
endossa a afirmação de Burckhardt ao dizer: “Um colecionador compulsivo de livros, pode ser
considerado o verdadeiro criador da biblioteca do Vaticano” Larner, John in Hale, John R.:
Dicionário do Renascimento Italiano. p. 250. Já Jeanne Bignami Odier considera “[...] que os
projetos de Nicolau V não foram realizados, e que o verdadeiro fundador da biblioteca Vaticana
foi Sixto IV” (A tradução é nossa) Odier, Jeanne Bignami: La Bibliothèque Vaticane de Sixte IV
à Pie XI, 1973. p. 9-10. Richard P. Mcbrien concorda em ver Nicolau V como o fundador da
Biblioteca Apostólica Vaticana, pois afirma a respeito desse papa: “Acumulou uma grande
biblioteca pessoal de livros e manuscritos (807 em latim e 353 em grego), que depois da sua morte,
formou a base da biblioteca do Vaticano” Mcbrien, Richard: Os Papas: os pontífices de São Pedro
a João Paulo II, 2000. p.266
9
BURCKHARDT, Jakob: A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio, p. 150
10
A grafia prenome de Alemanni pode ser encontrada das seguintes formas Nicolò ou Niccolò.
Optamos por Nicolò, grafia adotada pelo Dizionario Biografico degli Italiani.
11
Cf. MAZZARINO: La Fine Del Mondo Antico: Le cause della caduta dell’ompero romano, p.
104
23
que muito jovem, foi professor particular de grego do futuro cardeal Cobeluzzi12.
Cobeluzzi indicou Alemanni para ser secretário do Cardeal Scipione Borghese13.
Tanto Borghese como Cobeluzzi ocuparam sucessivamente o posto de Cardeal
Bibliotecário14.
alguns séculos. Como afirma Santo Mazzarino a respeito das Anékdota “[...] sem
dúvida, foi a obra mais atormentada e discutida da literatura tardo-romana”.16
2.2.
Nicolò Alemanni e a pesquisa antiquária
12
Cf. Página electronica do Archivum Secretum Vaticanum:
http://www.archiviosegretovaticano.va/scipione-cobelluzzi-1618-1626/ (Consulta em 23.05.2014)
13
Cf.: MERCATI, Silvio Giuseppe: “Alemanni, Nicolò” (verbete): Dizionario Biografico degli
Italiani - Volume 2. 1960.
14
Lembremos que foi durante a administração do cardeal Borghese que Alemanni (4.7.1607 até 8-
7-1609) foi nomeado custode e foi durante a de Cobeluzzi (17.2.1618 até 29.6.1626) que foi
publicada a edition princeps da edição de Alemanni das Anékdota. (Em relação às datas Cf. Odier,
Bignami Jeanne: La Bibliothèque Vaticane de Sixte IV à Pie XI, 1973. p. 328).
15
“PROCOPII CӔSARIENSIS V.I. ANEKΔOTA. ARCANA HISTORIA, Qui est liber nonus
Historiarum. EX BIBLIOTHECA VATICANA Nicolaus Alemmanus protulit, Latinè reddidit.
Notis illustrauit. Nunc primùm in lucem prodit triplici Indice locupletata” Alemanni,1623, p.2
16
Santo Marino: La Fine Del Mondo Antico, 2009. p104
24
18
Quand l’histoire ancienne était étudiée pour elle-même, indépendamment de la recherche
archéologique et de l’histoire universelle, l’intention était soit d’y chercher des matériaux pour la
réflexion morale et politique, soit de faciliter la compréhension des textes lus en premier lieu pour
des raisons stylistiques. L’exactitude et le caractère exhaustif des récits traditionnels était à peine
mis en question. Autant que je sache, l’idée que l’on puisse écrire une histoire de Rome capable de
remplacer Tite-Live et Tacite n’était pas encore née au début du XVII e siècle. Le premier titulaire
de la chaire d’histoire (‘Camden’ Professorship) à l’université d’Oxford avait l’obligation
statutaire de commenter Florus et d’autres historiens antiques (1622) […] À Cambridge, le
premier professeur d’histoire fut renvoyé parce que ses commentaires sur Tacite ont été jugés
politiquement dangereux. MOMIGLIANO: “L’histoire ancienne et l’Antiquaire”. p. 254
26
Para Koselleck, o topos da historia magistra vitæ foi constante até meados
do século XVIII, quando este começou a se dissolver. O historiador alemão
recorre ao testemunho da própria língua alemã para endossar a sua tese. Antes de
meados do século XVIII, predominava o vocábulo Historie, palavra plural, para se
referir à História. A progressiva dissolução do topos da historia magistra vitæ é
acompanhado também da ascensão de um outro termo Geschichte. A história
agora não mais seria um conjunto de relatos dos feitos dos homens do passado,
um conjunto de situações que se repetiriam. Agora, a História era vista como
27
2.3.
Entre o Estado e a Igreja
A descoberta das Anékdota ia contra toda uma imagem positiva que, até então,
se formara a respeito de Justiniano. Essa imagem se cristalizara como aquele
19
JASMIN, Marcelo: Apresentação in Koselleck, Reinhard: Futuro Passado: contribuição à
semântica dos tempos históricos. p.11
28
tentava dar conta da história da Igreja, desde os seus primórdios até o século XII,
a partir do ponto de vista da Reforma Protestante. O trabalho de Baronio era
eminentemente antiquarista, “peritissimus antiquaritatis” tinha uma grande
preocupação na recolha de documentos desempenhando importante papel “na
definição do perfil científico inicial da Arqueologia cristã” 22.
frustrado pelo espírito da realpolitik do tratado da Vestafália que pôs fim aos
conflitos. Logo, quando da publicação das Anékdota, a defesa da veracidade do
seu conteúdo e/ou autenticidade autoral era percebida como papista. Como
síntese, mais uma vez Santo Mazzarino:
2.4.
Peripécias de um texto “incômodo”
I. 1. Tudo o que aconteceu até o presente, nas guerras, à nação dos romanos, eu
contei, tanto quanto pude fazê-lo, apresentando todos os acontecimentos segundo
os tempos e lugares. O que segue, contrariamente, não mais será exposto desta
maneira, pois aí será descrito tudo o que aconteceu em todas as regiões do
Império Romano. 2. A razão é que me afigurava impossível, enquanto os atores
dessa história ainda estivessem vivos, de escrevê-la da maneira que convinha.
Não era de fato possível escapar da multidão de espiões, tampouco, caso fosse
descoberto, de perecer de uma morte cruel; nem mesmo aos mais íntimos dos
meus próximos poderia confiar. 3. Bem mais, nos livros que precedem, pela força
tive que calar as causas de vários acontecimentos que contava. Necessário será
então revelar ao mesmo tempo o que ficou dissimulado até agora e as causas dos
22
SPERA, Lucrezia: “Cesare Baronio, ‘peritissimus antiquitatis’, e le origini dell’archeologia
Cristiana”. p. 393
30
São com essas palavras que Procópio de Cesareia abre o mais intrigante de
seus livros: as Anékdota ou História Secreta. Devemos nos deter com um pouco
mais de atenção na análise do que nos diz o historiador bizantino. No prólogo, são
abordados diversos temas que geram questões particularmente pertinentes ao
trabalho do historiador. Procópio faz referência a escritos anteriores, nos quais
não fora possível expressar toda verdade ― pelo menos não relatara o que
acreditava ser a verdade. A razão de seu silêncio é justificada pelo próprio risco de
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perder a vida, pois vivia em tempos de opressão e temor. Diríamos que parece
surgir nas entrelinhas uma espécie de pedido de perdão. Perdão ao leitor, mas,
sobretudo, à idoneidade da História. Talvez, Procópio tenha consciência de que
falhou, pois não expôs todos os fatos e causas que estavam ao seu alcance para
compor o texto. Nas Anékdota, o historiador de Cesareia constrói uma narrativa
em que o reinado de Justiniano é visto como paroxismo dos piores vícios cristãos,
como a luxúria, a cobiça, a corrupção e a injustiça. Teodora, mulher do imperador,
23
I. 1. Tout ce qui est arrivé jusqu’à présent, dans les guerres, à la nation des Romains, je l’ai
raconté, autant que j’ai pu Le faire, en présentant tous les événements suivant les temps et les
lieux. Ce qui suit, en revanche, ne sera plus exposé de la manière susdite, car y sera décrit tout ce
qui est arrivé dans toutes les régions de l’Empire romain. 2. La raison en est qu’il ne m’était pas
possible, tant que les acteurs de cette histoire étaient encore en vie, d’en écrire de la manière qui
convenait. Il n’était possible en effet, ni d’échapper à la multitude des espions, ni, si j’étais
démasqué, de ne pas périr d’une mort cruelle ; même aux plus intimes de mes proches je ne
pouvais faire confiance. 3. Bien plus, dans les livres qui précèdent, force m’a été de taire les
causes de bien des événements que je racontais. Il me faudra donc révéler à la fois ce qui est reste
dissimule jusqu’à présent et les causes des événements que j’ai racontés auparavant dans mon
texte. 4.Au moment pourtant ou je me mets à cette nouvelle besogne, ardue et incroyablement
difficile ― la vie de Justinien et de Théodora ―, me voici à trembler et à hésiter au plus haut
point en me rendant compte que ce que j’écrirai à présent ne paraîtra ni vrai, ni digne de foi à la
postérité. Je crains en particulier, quand Le long temps qui se sera écoulé aura fait de mon récit
quelque chose d’un peu antique, de gagner la réputation d’un conteur d’histoires et d’être range
parmi les poètes tragiques. 5. Je ne reculerai pourtant pas devant l’ampleur de la tache, ayant
l’assurance que mes dires ne seront pas sans répondants. Les hommes d’aujourd’hui qui sont les
plus sérieux témoins des faits seront des garants suffisants, pour le temps à venir, de la créance à
leur accorder. Césarée, Procope de: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre Maraval.
Paris : Les Belles Lettres, 2009.
31
afigura-se como a grande eminência parda que a tudo controla, em uma sucessão
de planos maquiavélicos.
2.4.1.
As Anékdota: temas e estrutura da obra
são conhecidos pelas letras iniciais de seus codex, a saber, “G”; “P”; e “S”.
Mihăescu assim os descreve respectivamente:
P= Parisinus suppl. Gr 1185 data do século XIV, possui 64 folhas, cada uma com
26-28 linhas. A História secreta encontra-se às folhas 1-26v, mas falta-lhe o
começo, isto é, os cinco primeiros capítulos. O manuscrito está conservado, possui
umas notas nas margens, mas não contém desenhos ou figuras. Jacob Haury
acredita que ele nos tramsitiu a mais fiel cópia da História Secreta26. (A tradução é
nossa)
É importante ainda lembrar o caráter não linear das Anékdota, mesmo que
no seu prólogo o autor declare que se trata de um complemento à sua História das
Guerras e que iria estruturá-lo simplesmente mostrando as causas verdadeiras dos
acontecimentos que contara anteriormente. Isso, em um primeiro momento, pode
levar o leitor a pensar que as Anékdota organizam-se basicamente a partir de
constantes referências à História das Guerras. É certo que Procópio remete o
leitor, em vários momentos, a essa sua obra. No entanto, quanto mais as Anékdota
27
“S=Ambrosianus G 14 sup. (olim T 73 I) din secolul AL XIV-lea are 197 foi, fiecare de 25-35
de rînduri, scrise de aceeași mînă, aflat pe veremuri în posesia lui I.V. Pinellus. Acest manuscris a
fost descris mai întîi de M. Krašeninnikov, apoi de J. Haury. Începutul e mutilat.” Idem.
28
Pierre Maraval (1933-), historiador e tradutor francês, professor emérito da Universidade de
Paris IV-Sorbonne. Suas pesquisas são dedicadas à história do cristianismo antigo e da
Antiguidade Tardia.
33
avançam, mais elas se tornam uma crítica ampla e geral ao reinado de Justiniano,
deixando de lado a remissão à História das Guerras, como conclui Maraval: “E a
obra não aparece mais como um complemento às Guerras, mas como uma
releitura negativa, pelo historiador, de 32 anos de reino (518-550), uma crítica
generalizada e feroz dos soberanos e de todos os aspectos de sua política”29.
Prólogo
I. A má conduta de Antonina
29
MARAVAL, Pierre: “Introduction” in CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. p. 11.
34
marido, ficando a sós, caísse em si e, sem mais temer seus sortilégios, tomasse no
seu lugar alguma decisão necessária, tinha o cuidado de acompanhá-lo por todos
os lugares” 30.
30
CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. Tradução para o francês de Pierre Maraval. (II:2)
p.32-31
31
Ibid., (II:12) p.34
32
Ibid. (II: 21) p.35
33
Ibid. (III: 21) p.39
34
Ibid. (III: 25) p.39
35
Belizário perde todas as honras de general e se arrasta pelas ruas com medo
de ser morto a mando da imperatriz. Teodora mantém-se amiga de Antonina,
porque esta última era necessária aos seus planos. Belizário humilha-se ao receber
uma carta de perdão da imperatriz:
[Belizário] subiu até seu quarto com esses sentimentos de temor, ficou sentado,
sozinho sobre a cama, sem nenhuma coragem, esquecendo o homem que ele fora,
constantemente molhado de suor, totalmente consternado, tomado por um grande
tremor, atormentado por medos de escravo e preocupações totalmente covardes
por sua vida. Quanto à Antonina, como se ela ignorasse tudo o que havia
ocorrido, e não duvidasse do que ia acontecer, passeava sem cessar pelos lugares,
fingindo ter problemas de estômago [sic], pois eles tinham uma atitude de
suspeita mútua. Naquele momento, quando o sol já se pusera, chegou um homem
do palácio chamado Quadratus. Após atravessar a porta do pátio, deteve-se
repentinamente naquela do apartamento dos homens, dizendo que era enviado
pela imperatriz. Quando Belizário ouviu isso, estendeu os braços e pernas sobre a
cama e aí ficou estendido pronto para ser morto, de tanto que a coragem viril o
havia abandonado. Então, Quadratus entrou, aproximou-se e mostrou uma carta
da imperatriz. A carta exprimia-se nesses termos: “O que nos fizeste, tu sabes.
Mas eu, porque tenho muitas obrigações em relação a sua mulher, decidi perdoar
todos esses seus erros se tu fizeres dom da tua vida a esta última. A partir de
então, tu poderás estar seguro da tua vida e dos teus bens; mas o que tu serás em
relação a ela, saberemos por teu comportamento futuro”. Belizário leu a carta, ao
mesmo tempo transido de alegria e no mesmo instante querendo dar uma prova de
35
Ibid. (III: 28) p.39
36
Ibid. (IV: 5-6) p.40
37
Ibid. (IV: 13). p.41
36
Teodora quer que seu neto se case com a única filha de Belizário e
Antonina, pois tem o objetivo de se apropriar das riquezas que ela viria a herdar.
Os pais, para retardar o casamento, alegam que estão na Itália e não poderiam
comparecer à cerimônia. Teodora, obstinada em seu propósito, obriga os dois
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jovens a viverem juntos. O casal acaba por se apaixonar, mas, após a morte de
Teodora, Antonina impediria que o casamento fosse oficializado.
Na época em que o imperador Leon reinou, três jovens pobres vão para
Constantinopla tentar a vida e se alistam no exército. Em seguida, são convocados
para a guarda do palácio. Já sob o reinado de Anastácio, o general João, o
38
“Etant monté dans sa chambre dans ces sentiments de crainte, il était assis, seul, sur son lit,
sans aucun courage, oubliant quel homme il avait été, constamment trempré de sueur, tout
boulversé, saisi d’un grand tremblement, tourmenté par des peurs d’esclave et des préoccupations
tou à fait lãches pour sa vie. Quant à Antonina, comme si elle ignorait tout de ce qui s’était passé
et ne se doutait pas de ce qui allait arriver, elle se promenait sans cesse dans les parages en
feignant d’avoir des maux d’estomac, car ils avaient encore une attitude de suspicion mutuelle.
Sur ces entrefaites, alors que le soleil était déjà couché, arrivait un homme de palais, nommé
Quadratus. Ayant passé la porte de la cour, il se tint soudain devant celle de l’apartement des
hommes, en disant qu’il était envoyé là para l’impératrice. Quand Bélisaire entendit cela, il
étendit bras et jambes sur sa couche et y resta étendu, tout à fait prêt à ce qu’on le tue, tant l’avait
abandonné tout courage viril. Alors Quadratus, entré là auprès de lui, lui montra une lettre de
l’impératrice. La lettre s’exprimait en ces termes: ‘Ce que tu nous as fait, très cher, tu le sais.
Mais moi, parce que j’ai beaucoup d’obligations envers ta femme, j’ai décidé de te pardonner tous
ces griefs si tu fais don de ta vie à celle-ci. Désormais, tu peux avoir confiance pour ta vie et tes
biens ; mais ce que tu seras envers elle, nous le saurons par ta conduite à venir’ Quand Bélisaire
eut lu cela, à la fois transporté de joie et voulant à l’instant même donner une preuve de ses
sentiments, il se leva aussitôt et tomba sur le visage aux pieds de sa femme. Tout en tenant ses
deux jambes de chaque main et en ne cessant de promener sa bouche sur les chevilles de sa
femme, il l’appelait cause de sa vie et de son salut et assurait qu’à partir de ce moment, il ne
serait plus so mari, mais son fidèle esclave. ” Ibid
37
Corcunda, condena Justino à morte, mas um sonho acaba fazendo com ele mude
de ideia. O Imperador Anastásio nomeia Justino chefe da guarda do palácio.
Justino é apresentado como sem nenhuma espécie de preparação para exercer a
função imperial, além de ser facilmente manipulável:
Ele já era um velho próximo do túmulo, totalmente ignorante das letras e, como
se diz, analfabeto, o que jamais acontecera anteriormente, pelo menos entre os
imperadores romanos. O costume pedia que o imperador colocasse sua própria
assinatura nos documentos que transmitiam suas ordens, mas ele não era capaz
de dar ordens tampouco de verificar o que fora feito. Mas àquele que coube a
tarefa de conselheiro, certo Protocolos, que exercia o ofício a que chamamos de
questor, decidia tudo segundo a sua vontade. Para ter, no entanto, um atestado
feito pela própria mão do imperador, aqueles a quem cabia essa tarefa
imaginaram a seguinte coisa.
imperador, eles passavam a pena pelo recorte das quatro letras, seguindo todos os
pequenos entalhos da madeira, conseguindo dessa forma obter as assinaturas do
imperador.39
39
“Il était alors déjà un vieillard proche du tombeau, totalement ignorant des lettres et, comme on
dit, analphabète, ce qui n’était jamais arrivé auparavant chez les Romains du moins. Alors que la
coutume voulait que l’empereur appose sa propre signature sur les documents qui transmettaient
ses ordres, lui n’était pas capable de donner des ordres ni de vérifier ce qui avait été fait. Mais
celui à qui échut la tâche de conseiller, un nommé Proclos, qui exerçait l’office de celui qu’on
appelle le questeur, décidait de tout selon son gré. Pour avoir cependant une attestation de la
main de l’empereur, ceux à qui incombait cette charge imaginèrent la chose suivante. // Ayant fait
creuser dans un petit morceau de bois travaillé le dessin des quatre lettres qui signifient, en
langue latine, qu’on a lu, ils plongeaient la plume dans l’encre dont les empereurs se servent
habituellement pour écrire et la mettaient dans la main de cet empereur. Plaçant alors ce morceau
de bois dont j’ai parlé sur le document et prenant la main de l’empereur, ils passaient avec la
plume dans la marque des quatre lettres et suivaient toutes les encoches du bois, réussissant ainsi
à obtenir des signatures de l’empereur.” Ibid (VI : 11-16) p. 50
40
A respeito das duas facções do hipódromo, que incitavam verdadeiras paixões em
Constantinopla, traduzimos aqui a nota explicativa de Maraval, na sua edição das Anékdota: “As
duas principais facções do circo, designadas segundo a cor dos cocheiros que elas apoiavam, os
Verdes e os Azuis (Venetoi e Prasinoi) desempenharam no império bizantino, e em Bizâncio
[Constantinopla] em particular, um papel político importante. Procópio falou delas em seu relato
da revolta de Nika, quando os Azuis e os Verdes, em um primeiro tempo, se ligaram contra o
imperador (I, 24). Já nessa passagem ofereceu uma apresentação muito crítica e qualificava a
atitude dos membros dessas facções como ‘uma doença da alma’ (I, 1-6). Os membros dessas
facções eram na sua maior parte pessoas do povo, mas seus dirigentes pareciam ser originários, do
lado dos Azuis, da velha aristocracia senatorial, aquela dos grandes proprietários de terras; do lado
dos Verdes, a burguesia enriquecida pelo comércio e a indústria e funcionários que haviam feito
38
Domiciano:
[...] do qual os romanos sofreram a perversidade a tal ponto que, mesmo após tê-
lo cortado em pedaços, não apaziguaram a sua cólera contra ele; mas houve um
decreto do senado declarando que até o nome desse imperador não figuraria nos
documentos e não seria conservada nenhuma espécie de imagem dele. 43
Não saberia descrevê-lo exatamente, pois esse homem era ao mesmo tempo
velhaco e ingênuo, daqueles que chamamos de “louco e malvado”, não dizendo
jamais a verdade àqueles que o encontravam, mas falando e agindo em tudo e
sempre com um espírito de enganação, e aliás expondo-se facilmente a quem
quisesse enganá-lo44.
carreira, destes muitos eram originários das províncias orientais. Em matéria religiosa, os Azuis
eram ortodoxos, os Verdes monofisitas. Os acontecimentos relatados nesse capítulo sobre o
reinado de Justino, apoiado pela aristocracia, foi o triunfo da facção dos Azuis” (A tradução é
nossa) MARAVAL, Pierre (nota 1, capítulo VII) in CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. p.
163.
41
Procópio de Cesareia direciona também aqui essa crítica a Justino e não a seu sobrinho
Justiniano, como se poderia pensar em uma primeira leitura. Maraval diz que alguns comentadores
acreditaram que Procópio falava de Justiniano e não de Justino, o que não é exato.
42
Ibid., (VII, 3) p. 57
43
Ibid., (VIII, 13) p. 58
44
“[..] je ne saurais le décrire exactement. Car cet homme était à la fois un coquin et un naïf, de
ceux qu’on appelle ‘fous et méchants’, ne disant jamais lui-même la vérité à ceux qu’il
rencontrait, mais parlant et agissant en tout et toujours dans un esprit de tromperie, et para
ailleurs s’exposant facilement à quei voulait le tromper.” Ibid, VIII, 22. p. 59
39
Akakios, que era “guardião dos animais selvagens do circo, da facção dos
45
Verdes, chamado de Mestre dos Ursos” , morre na época do reinado de
Anastácio e deixa três filhas: Comito; Teodora e Anastácia. A viúva de Akakios
casa-se novamente. Seu segundo marido vem a desempenhar, igualmente, a
função de “guardião das feras”. Entretanto, este é destituído do referido cargo,
apesar das súplicas de suas enteadas. O padrasto de Teodora passa a ser “Mestre
dos Ursos” da facção adversária, os Azuis. Visto que as três irmãs eram de grande
beleza, a mãe faz com que elas sejam atrizes.
45
Ibid., IX: 1. p.p. 60-61
46
Ibid., IX: 10. p. 61
47
Ibid., IX: 11 p. 61
48
Ibid., IX:31 p. 64
40
50
prosternavam diante dela [Teodora] como diante de uma Deusa” . Critica,
também, padres e o povo pela aceitação dessa união. Descreve de Teodora como
“[...] bela de rosto e por outro lado encantadora [...] tinha o olhar sempre
51
imperioso e direto” . Justiniano e Teodora “[...] não fizeram nada um sem o
outro durante toda sua vida em comum”52, mesmo quando aparentavam estar em
lados opostos, estavam em conformidade entre si; agiam dessa forma “[...] para
que seus súditos, caso não compartilhassem o ponto de vista deles, não se lhes
opusessem, assim as opiniões a respeito deles poderiam ser diferentes em todos as
partes”53. Ficam em lados opostos em relação às facções do circo. Teodora apoia
os azuis e concede-lhes demasiados poderes. Ao incitar a rivalidade entre as
facções, diversos crimes são cometidos. Conclui-se que: “através dessas
maquinações, estavam sempre em acordo um com o outro, fingindo exteriormente
estarem em desacordo, e conseguir semear a divisão entre seus súditos e fortificar
com muita firmeza sua tirania”54.
49
Ibid., X:2 p. 67
50
Ibid., X:6 p. 67
51
Ibid., X: 11 p. 68
52
Ibid., X: 13 p.68
53
Ibid., X: 14
54
Ibid., X:23 p. 69
41
55
Ibid., XI:2 p. 70
56
Ibid., XI: 34. p. 73
42
57
automaticamente os herdeiros” . A intensidade e a quantidade de males
perpetrados pelo casal imperial são apresentados por Procópio como prova do
caráter demoníaco de Justiniano e Teodora. Diversos relatos de pessoas que
teriam presenciado manifestações sobrenaturais e demoníacas do casal imperial.
• Era “afável e doce”, assim como acessível a todos que vinham ter com ele,
porém era com um “[...] semblante plácido, sem mostrar a menor emoção e com a
voz doce que ordenava o massacre de milhares de pessoas completamente
inocentes, a destruição de cidades e a confiscação de todos os bens para o tesouro
público [...]” 58.
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• Aparentava possuir fé em Cristo, mas alegava isso para permitir que os padres
usassem de força contra as pessoas, permitindo que eles se apropriassem das
riquezas alheias.
• Possuía um caráter volúvel, “[...] sua opinião seguia contrariamente ao que dizia
e ao que desejava manifestar” 59 e possuía um desenfreado apego pelos elogios.
• Era implacável com suas inimizades e infiel com as amizades: “Como inimigo,
era resoluto e inabalável, mas em relação aos amigos era inconstante de modo que
causou verdadeiramente a ruína da maior parte daqueles que lhe eram devotados
[...]” 60.
57
Ibid. (XII: 1). p. 75
58
Ibid. (XIII: 2) p.p. 78-79
59
Ibid. (XIII: 14). p.80
60
Ibid. (XIII: 16). p.80
43
•Era capaz de altear as leis que ele próprio promulgara mediante o recebimento de
dinheiro, “mas se eles [os enviados] houvessem feito prova de moderação em
relação às pessoas, ficava desde então indisposto e hostil com eles” 61.
• Honrava aqueles seus enviados que agiam com violência e pilhavam as riquezas.
61
Ibid. (XIII: 24). p.81
62
Ibid. (XIII: 28). p.81
63
Ibid. (XIV: 8). p. 83
64
Ibid. (XIV: 10). p. 83
65
Ibid. (XV: 18). p. 84
44
Um patrício, de idade já avançada, vai até a Teodora e solicita que ela faça
com que um de seus serviçais pague o que lhe deve. Avisada de antemão e para
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66
Ibid. (XV: 6). p.85
67
Ibid. (XV: 12). p.86
68
Ibid, (XV: 13). p.86
69
Procópio faz referência a essa personagem simplesmente como “Pedro”, é Maraval que o
identifica como Pedro o Patrício.
45
70
Ibid., XVI: 23. p. 91
71
Idem
72
Ibid., XVI: 25. p. 92
73
Ibid., XVI: 28. p. 92
74
Ibid., XVII: 3. p. 92
75
Ibid., XVII: 5. p. 93
46
agora imperatriz. “Após, tê-lo visto [...] entregou-o a um dos seus criados [...]. E
eu não saberia dizer de qual maneira o infeliz desapareceu de dentre os homens,
mas ninguém pôde revê-lo até o dia de hoje, mesmo após a morte da imperatriz”
79
.
76
Idem
77
Ibid., XVII: 7. p.93
78
Ibid., XVII: 11. p. 11
79
Ibid., XVII: 22-23. p.94
80
Ibid., XVII: 33. p. 95
47
sucederam “[...] por quase todo o ano, a partir do momento em que Justiniano
recebeu o governo dos romanos [...]’’84, Procópio calcula que, “[...] em cada uma
dessas invasões, mais de 200.000 romanos foram mortos ou reduzidos à
escravidão”85. Após enunciar os males causados pelas guerras na Europa e na
África, são abordados aqueles causados pelas invasões dos sarracenos e dos persas
no Oriente, assim como seus motivos. A respeito das invasões, Procópio conclui:
“não são somente os romanos, mas também quase todos os bárbaros que sofreram
os efeitos do furor homicida de Justiniano”86.O capítulo é concluído com o relato
de uma série de catástrofes naturais que seriam causadas pelo caráter demoníaco
de Justiniano ou, então, seriam manifestação da revolta de Deus contra esse
imperador.
81
Ibid., XVIII: 1. p. 97
82
Ibid., XVIII: 8 p. 97
83
Ibid., XVIII: 9 p. 97
84
Ibid., XVIII: 20 p. 98
85
Ibid., XVIII 21 p.98
86
Ibid., XVIII: 27. p. 99
48
elevação do preço dos gêneros de primeira necessidade, três vezes mais. Criação
de duas magistraturas: o Pretor da Plebe, que se encarrega dos ladrões, e o
Quaesitor, que tem “[...] a função de punir os pederastas, aqueles que se uniam
ilegalmente a mulheres e a qualquer um que não praticasse a religião de maneira
ortodoxa [...]”90.
Todos que exerceram tal função teriam acumulado imensas fortunas, com
exceção de Phocas e Bassus, pois eram “[...] completamente estrangeiros ao
87
Ibid., XIX, 2. p. 101
88
Ibid., XIX, 3. p. 101-102
89
Ibid., XIX, 6. p. 102
90
Ibid., XX, 9. p. 104
91
Ibid., XXI, 4-5. p. 107
49
92
Ibid., XXI, 7. p. 107
93
“Plus tard, il imagina encore autre chose qui passe l’entendement. Celles des magiostratures
qu’il estimait être les plus importantes, tant à Byzance que dans les autres villes, il décida de ne
plus les vendre comme auparavant, mais après enquête, il désignait des mercenaires et leur
imposait, en tant que salariés, de lui remmetre tout leur butin. Eux, aprés avoir reçu leur salaire,
rassemblaient sans crainte tout ce qui venait de toute la terre et le lui apportaient, et l’arbitre d’un
mercenaire dépouillait les sujets sous les dehors de l’autorité” (Ibid., XXI, 20-22. p. 108)
94
Ibid., XXI, 29. p. 109-110
95
Ibid., XXII, 3. p. 110
96
Ibid., XXII, 21. p. 112
50
98
cavalos pagando tudo isso a preços exorbitantes” . 2) epibolé — Imposto que
deveria ser divido pelos proprietários circundantes às terras abandonadas ou
quando da morte dos proprietários sem herdeiros. 3) Diagraphai — impostos
extras, “aqueles que possuíam domínios pagavam estes [os impostos extras] em
proporção ao imposto fixado para cada um”99.
97
Ibid., XXII, 25. p. 112
98
Ibid., XXIII, 12. p. 115-116
99
Ibid., XXIII, 19. p. 116
100
Ibid., XXIV,5. p. 118
51
cada cinco anos, uma gratificação a todos os soldados. Justiniano nunca pagou tal
gratificação. O imperador extinguiu uma espécie de plano de carreira que havia
para os que “vigiam o palácio, se ocupam dos despachos ou cumprem algum
serviço ao imperador e às autoridades de Bizâncio”105.
101
Ibid., XXIV, 6. p. 118
102
Ibid., XXIV, 9. p. 119
103
Ibid., XXIV, 14. p. 119
104
Ibid., XXIV, 21. p. 120.
105
Ibid., XXIV: 30. p.121
106
Ibid., XXV: 5. p. 122
52
107
Ibid., (XXV: 8). p. 123
108
Ibid., (XXVI: 4). p. 125
109
Ibid., (XXVI: 8). p. 126
110
Ibid., (XXVI: 19). p. 127
111
Ibid., (XXVI: 21). p. 127
112
Ibid., (XXVI: 22). p. 128
53
imperador foi informado, como estava muito pressionado pela imperatriz, logo
lançou toda a culpa em Paulo, Rhodon e Arsênio, como se ele houvesse
114
completamente esquecido as instruções enviadas a esses homens” . Libério é
nomeado governador de Alexandria, segue para a cidade com uma comissão para
averiguar a morte de Psoé. Paulo é destituído; Rhodon, apesar de mostrar diversas
cartas do imperador nas quais ordenava-lhe apoiar integralmente as ordens do grã-
padre, é decapitado em Constantinopla; por fim, Arsênio é empalado. Paulo
oferece “ao Imperador sete centenaria de ouro e pede para receber novamente o
cargo, considerando que o haviam destituído ilegalmente”115. Justiniano aquiesce,
mas o papa Vigílio proíbe que Paulo volte a sua condição.
116
Faustino, “[...] palestino de origem e de ascendência samaritana” é
nomeado governador de sua província. Entretanto, alguns padres o acusam de
“[...] praticar em segredo os ritos samaritanos e de ter tratado de maneira ímpia os
cristãos que viviam na Palestina”117. Faustino é condenado pelos senadores ao
exílio. Justiniano recebe vultosa soma de dinheiro de Faustino e o recoloca
novamente no posto.
113
Ibid, XXVII: 14. p.132
114
Ibid, XXVII: 16. p.132
115
Ibid, XXVII: 20. p.132
116
Ibid, XXVII: 26. p.133
117
Ibid, XXVII: 27. p. 133
54
118
Atualmente é a cidade de Homs na Síria que se situa a aproximadamente 37 Km com a fronteira
Norte do Líbano.
119
Ibid. (XXVIII: 7). p.134
120
Ibid. (XXVIII: 13). p. 135
121
Ibid (XXIX: 2). p. 136
122
Ibid (XXIX: 5). p. 136
123
Ibid (XXIX: 8). p. 136
55
124
Ibid (XXIX: 24). p. 138
125
Ibid (XXIX: 25). p. 138
126
Ibid (XXIX: 29). p. 138
127
Ibid (29: 35) p. 139
128
Idem (XXX: 5) p. 140
56
era estimulada com a presença desses postos, pois os produtores locais vendiam
ao Estado a alimentação que era fornecida aos cavalos. Justiniano diminui
drasticamente a quantidade desses postos, o que faz com que as notícias cheguem
muito atrasadas, dificultando a tomada de decisões a tempo; “o que resultou em
muitos erros [...] entre outros a Lazica foi tomada pelos inimigos, pois os romanos
não foram informados sobre o lugar em que se encontravam o rei dos persas e seu
129
exército” . Além disso, a produção de grãos das proximidades dos postos é
destruída, visto que o mercado consumidor fora extinto.
Procópio finaliza afirmando, mais uma vez, que Justiniano é o príncipe dos
demônios, assim como a veracidade do seu relato.
2.4.2.
Fortuna crítica
129
Idem (XXX: 14) p. 141
130
“La raison en est qu’autrefois, pour les autorités, il était possible d’agir de manière juste
légale, d’après leur jugement indépendant. Les magistrats, pour administrer les affaires
habituelles, résidaient dans leurs bureaux, et les sujets qui ne voyaient aucune violence ni
entendaient parler d’aucune, importunaient fort peu l’empereur, comme on pouvait s’y attendre”
Idem (XXX: 28-29)
131
Idem (XXX: 30) p.143
57
132
Bailly
133
Illustrius [in status];[1] of Caesarea in Palestine.[2] Rhetor and sophist. He wrote a Roman
History, i.e. the wars of Belisarius the patrician,[3] the actions performed in Rome and Libya. He
lived in the time of the emperor Justinian, was employed as Belisarius' secretary, and
accompanied him in all the wars and events which he recorded. He also wrote another book, the
so-called Anecdota,[4] on the same events; both works [sc. together] are 9 books.[5]
[Note that] the book of Procopius called Anecdota contains abuse and mockery of the emperor
Justinian and his wife Theodora, and indeed of Belisarius himself as well, and his wife.[6]
Προκόπιος, Ἰλλούστριος, Καισαρεὺς ἐκ Παλαιστίνης, ῥήτωρ καὶ σοφιστής. ἔγραψεν Ἱστορίαν
Ῥωμαϊκήν, ἤγουν τοὺς πολέμους Βελισαρίου πατρικίου, τὰ κατὰ Ῥώμην καὶ Λιβύην πραχθέντα.
γέγονεν ἐπὶ τῶν χρόνων Ἰουστινιανοῦ τοῦ βασιλέως, ὑπογραφεὺς χρηματίσας Βελισαρίου καὶ
ἀκόλουθος κατὰ πάντας τοὺς συμβάντας πολέμους τε καὶ πράξεις τὰς ὑπ' αὐτοῦ συγγραφείσας.
ἔγραψε καὶ ἕτερον βιβλίον, τὰ καλούμενα Ἀνέκδοτα, τῶν αὐτῶν πράξεων: ὡς εἶναι ἀμφότερα βιβλία
θ#. ὅτι τὸ βιβλίον Προκοπίου τὸ καλούμενον Ἀνέκδοτα ψόγους καὶ κωμῳδίαν Ἰουστινιανοῦ
βασιλέως περιέχει καὶ τῆς αὐτοῦ γυναικὸς Θεοδώρας, ἀλλὰ μὴν καὶ αὐτοῦ Βελισαρίου καὶ τῆς
γαμετῆς αὐτοῦ.
58
Se Procópio, que é o único autor do qual nos resta anedotas, tivesse deixado por
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escrito as regras desse gênero de texto, eu não seria obrigado a fazer um prefácio,
porque a autoridade desse excelente historiador, que a Imprensa Real acaba de nos
dar tão corretamente, seria suficiente para colocar-me ao abrigo de todo tipo de
crítica, supondo que eu as tivesse observado com exatidão135. (A tradução é nossa)
134
Santo Mazzarino : La fine del mondo antico: le cause della caduta dell’impero. p. 105
135
Si Procope, qui est le seul Auteur dont il nous reste des Anecdotes, avait laisé par écrit les
règles de ce genre d’écrire, je ne serais pas obligé de faire une préface, parce que l’autorité de cet
excellent Historien, que l’imprimerie Royale vient de nous donner si correctement, sufirait pour
mettre à couvert de toutes sortes de reproches, suposé que je les eusse observées avec exactitude.
VARILLAS, Antoine: Les Anecdotes de Florence ou l'Histoire Secrète de la Maison de Médicis.
Haia: Adrian Moetiens, 1689.p2.
59
Termo do qual se servem alguns historiadores para intitular as histórias que fazem
das coisas secretas e escondidas dos príncipes, quer dizer, as memórias que não
vieram à luz e que não foram publicadas. Eles imitaram nisso Procópio, historiador
que assim intitulou um livro que fizera contra Justiniano e sua mulher Teodora. É o
único dos antigos que nos deixou anedotas, e que mostrou os Príncipes tais quais
eram em casa. Varillas fez as Anedotas, ou História Secreta da Casa de Médicis.
Essa palavra vem do grego que significa coisas que não foram publicadas, que
foram mantidas secretas, que não foram dadas ao publico136. (FURETIÈRE, 1701,
p.158) (A tradução é nossa)
137
VOLTAIRE: Le Siècle de Louis XIV. p. 303
60
Anedota, s.f. p. (Hist. anc. & mod.) nome que os gregos davam às coisas que se
fazia conhecer pela primeira vez ao público, composto do a privativo α com um ν
para a doçura da pronúncia, e ἔκδοτος que vem ele mesmo de ἐκ e de δίδωμι.
Assim anedotas quer dizer coisas não publicadas. Essa palavra está em uso na
literatura para significar historias secretas de fatos que se passaram no interior do
gabinete ou das cortes dos Príncipes e nos mistérios de sua política141.
138
idem
139
idem
140
idem
141
ANECDOTES, s. f. p. (Hist. anc. & mod.) nom que les Grecs donnoient aux choses qu’on
faisoit connoître pour la premiere fois au public, composé d’α privatif avec un ν pour la douceur
de la prononciation, & d’ἔκδοτος qui vient lui-même d’ἐκ & de δίδωμι. Ainsi anecdotes veut dire
choses non publiées. Ce mot est en usage dans la Littérature pour signifier des histoires secretes de
faits qui se sont passés dans l’intérieur du cabinet ou des cours des Princes, & dans les mysteres de
leur politique.
61
Cícero, na XVII de suas epístolas a Aticcus, Liv. XIV, serviu-se dessa palavra
anedota. Procópio intitulou anedotas um livro, no qual ele pinta com cores odiosas
o Imperador Justiniano e Teodora, esposa desse príncipe. Parece que de todos os
antigos, esse autor é o único que se deu semelhante permissão; pelo menos não há
outro escrito desse gênero [além] do seu. Varillas, entre os modernos, publicou
supostas anedotas da casa de Florença ou de Medicis, e semeou em várias outras
obras diferentes traços de imaginação que deu como anedotas, e que não pouco
contribuíram para desacreditar seus livros142.
Esse momento de mudança de significado foi retido com uma nitidez quase
fotográfica por Raphael Bluteau, no verbete “Anecdotos”, do seu Vocabulário
Portuguez & Latino, a ambiguidade, entre inédito e história privada das grandes
personagens, foi explicitamente regitrada pelo lexicógrafo:
142
Ciceron dans la xvij. de ses épîtres à Atticus, Liv. XIV. s’est servi de ce mot anecdote. Procope
a intitulé anecdotes un livre, dans lequel il peint avec des couleurs odieuses l’Empereur Justinien,
& Théodore épouse de ce Prince. Il paroît que de tous les anciens, cet auteur est le seul qui se soit
donné une pareille licence ; au moins n’a-t-on point d’autre écrit en ce genre que le sien. Varillas
parmi les modernes a publié de prétendues anecdotes de la maison de Florence ou de Medicis, & a
semé dans plusieurs autres de ses ouvrages différens traits d’imagination qu’il a donnés comme
anecdotes, & qui n’ont pas peu contribué à décréditer ses livres.
143
Mais outre ces histoires secretes prétendues vraies, la plûpart du tems fausses ou du moins
suspectes, les critiques donnent le nom d’anecdotes à tout écrit de quelque genre qu’il soit, qui n’a
pas encore été publié. C’est dans ce sens que M. Muratori en faisant imprimer un grand nombre
d’écrits trouvés dans les. Bibliotheques, leur a donné le titre d’anecdotes Greques. Dom Martene a
pareillement publié un thresor d’anecdotes en cinq vol. in-fol. (G)
62
144
Bluteau, Rafael: Vocabulario Portuguez & Latino. 1827. p.48
145
Houaiss, 2001, p.211
63
Montesquieu utilizou as Anékdota como uma das fontes para a redação das
Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência.
Apesar de algumas reservas quanto à fiabilidade dessa fonte, em geral
considerou-a digna de confiança:
Eu não seria naturalmente levado a acreditar em tudo o que Procópio nos diz na sua
História Secreta, porque os elogios magníficos que fizera desse príncipe
[Justiniano] em suas outras obras enfraquecem seu testemunho nesta, onde ele o
descreve como o mais estúpido e o mais cruel dos tiranos. || Mas confesso que duas
coisas fazem com que eu seja pela História Secreta: a primeira, é que ela se liga
melhor com a espantosa fraqueza em que se achava esse império no fim desse reino
e nos seguintes. || O outro é um monumento que ainda existe entre nós: são as leis
desse imperador, onde se vê, no correr de alguns anos, a jurisprudência variar mais
do que fez nos trezentos últimos anos de nossa monarquia. || Essas variações
concernem, na maior parte, a coisas de tão pequena importância que não se vê
nenhuma razão que tivesse levado um legislador a fazê-las, a menos que se
explique isso pela História Secreta, e que se diga que esse príncipe vendia
igualmente seus julgamentos e leis146. (A tradução é nossa)
Edward Gibbon parece ter sentido uma mescla de rubor e fascínio com a
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descrição de Procópio sobre a vida licenciosa de Teodora no teatro, como nos diz
Cameron a respeito da atitude do historiador inglês do século XVIII:
[...] Gibbon escreveu que isso devia sujar a reputação e detratava o crédito de
Procópio e decretava que certas passagens tinham, na sua inimitável frase, que ficar
“na obscuridade da linguagem erudita”. Ao mesmo tempo dava-se ao trabalho de
informar que lia com gosto a censura de Alemanni do notório capítulo nove sobre
os hábitos sexuais de Teodora, e anotava com falsa solenidade que “um prelado
erudito, que já havia morrido, gostava muito de citar essa passagem na conversa”.
Assim, ele deu o tom de todas as subsequentes reações. No entanto, Gibbon (ao
contrário dos juristas do século XVII) não teve dúvida sobre a autenticidade da
História Secreta [...].147
146
Je ne serais point naturellement porté à croire tout ce que Procope nous dit là-dessus dans son
Histoire secrète, parce que les éloges magnifiques qu’il a faits de ce prince dans ses autres
ouvrages affaiblissent son témoignage dans celui-ci, où il nous le dépeint comme le plus stupide et
le plus cruel des tyrans.|| Mais j’avoue que deux choses font que je suis pour l’Histoire secrète : la
première, c’est qu’elle est mieux liée avec l’étonnante faiblesse où se trouva cet empire à la fin de
ce règne et dans les suivants.|| L’autre est un monument qui existe encore parmi nous : ce sont les
lois de cet empereur, où l’on voit, dans le cours de quelques années, la jurisprudence varier
davantage qu’elle n’a fait dans les trois cents dernières années de notre monarchie.|| Ces
variations sont la plupart sur des choses de si petite importance qu’on ne voit aucune raison qui
eût dû porter un législateur à les faire, à moins qu’on n’explique ceci par l’Histoire secrète, et
qu’on ne dise que ce prince vendait également ses jugements et ses lois. MONTESQUIEU,
Charles de : Considérations sur les Causes de la Grandeur des Romains et de leurs Décadence.
p.113
147
“[...] Gibbon wrote that it must “sully the reputation and detract from the credit of Procopius,
and of which he decreed that certain passages must, in his inimitable phrase, be left “in the
obscurity of a ‘learned language’. At the same time he took the trouble to inform the reader with
relish of Alemanni’s bowdlerization of notorious chapter that ‘a learned prelate, now deceased,
was fond of quoting this passage in conversation’. Thereby he set the tone of all subsequent
64
A História Secreta é, sob esse aspecto, uma obra preciosa e sem igual, uma
verdadeira obra de arte, sem que o autor tivesse desconfiado disso. O ideal da
banalidade e do mal, o quadro de um século baixo e malvado, não achará jamais
um tal mestre para pintá-lo. Após ter lido esse livro estranho, não mais nos
espantamos com a hipótese à qual o autor recorreu para explicar tantos crimes; é
que Justiniano e Teodora não são Homens, mas os demônios que, para fazer a
maior quantidade de mal possível, tomaram a forma de seres humanos150. (A
tradução é nossa)
reactions. Whereas however Gibbon (unlike the seventeenth-century lawyers), had felt no doubts
about the authenticity of the Secret History [...]” Cameron, Averil: Procopius and the sixth
century, 2006. p.49
148
Gibbon faz referência a História das Guerras de Justiniano e Dos Edifícios, publicadas quando
da vida de Procópio e que não denigrem a imagem de Justiniano e Teodora.
149
L’adulateur trompé dans ses espérances, se laissa peut-être aller au plaisir d’une vengeance
secrète, et un coup d’œil de faveur put le déterminer à suspendre ou à supprimer un libelle, où le
Cyrus romain n’est plus qu’un odieux et méprisable tyran ; où Justinien et sa femme Théodora
sont sérieusement représentés comme des démons qui ont pris une forme humaine pour détruire le
genre humain. Ces honteuses variations ternissent sans doute la réputation de Procope, et nuisent
à la confiance qu’il pourrait inspirer ; toutefois, lorsqu’on a mis à l’écart ce que lui dicte sa
malignité, on trouve que le fond de ses anecdotes, et même les faits les plus honteux dont il avait
laissé entrevoir quelques-uns dans son histoire publique, sont appuyés sur la vraisemblance ou sur
des témoignages authentiques et contemporains. GIBBON, Edward: Histoire de la Décadence et
de la Chute de l’Empire Romain pp.212-213
150
L’Histoire secrète est, sous ce rapport, une œuvre précieuse et sans pareille, une véritable
œuvre d’art, sans que l’auteur s’en soit douté. L’idéal de la platitude et du mal, le tableau d’un
65
siècle bas et méchant, ne trouvera jamais un tel maître pour le peindre. Après avoir lu ce livre
étrange, on ne s’étonne plus de l’hypothèse à laquelle l’auteur a recours pour expliquer tant de
crimes ; c’est que Justinien et Théodora ne sont pas des hommes, mais les démons qui, pour faire
le plus de mal possible, ont pris la forme d’êtres humains. Renan, Ernest: Anekdota ou Histoire
Secrète de Procope in Procope de Césarée: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre
Maraval. p.202
151
Mihăescu, H. “Introducere”, 1972. p. 10
152
Cameron: Procopius and the Sixth Century, 2005. p.IX
153
idem
66
154
Ma io conosco uma sola opera in cui la corruzione Del governo diventi Il soggeto stesso della
storia e informi quindi la sua stessa strutturi. Alludo, come si capisce, agli Anecdota, alla Storia
Arcana di Procopio, questo strano prodotto di uma osservazione e di uma vendetta tenute segrete
per anni e forse decenni. L’opera si presenta come uma parte delle Storie delle Guerre di Procpio
e pare che originariamente dovesse rappresentare il libro VIII. Il nome di Anecdota e il contenuto
suggeriscono uma qualche connessione com gli Anecdota di Cicerone – um libro che Boezio
ancora leggeva (“Tullius in libro quem de consiliis suis composuit”, De inst. Mus. I, I); ma poiché
noi abbiamo solo la più vaga idea di quel che il libro di Cicerone fosse (anche ammessa l’identitá
di Anecdota e De consiliis suis), è scarsa consolazione saperlo um precedente di Procopio. Nella
letteratura antica giunta a noi, gli Anecdota di Procopio isolati, benché non sai difficile trovare
pagine analoghe a conferma in scrittori contemporanei comme Giovanni Lido e lo storico
ecclesiastico Giovanni di Efeso – il cui texto, come è noto, ci é parzialmente conservato in
versione siriaca. MOMIGLIANO, Arnaldo: Il Trapasso fra storiografia antica e storiografia
medievale in Contributo alla storia degli studi classici. Tomo primeiro. Edizione di Storia e
Letteratura, 1975. p.65
3.
A Antiguidade Tardia
3.1.
Definições de um termo
Média seria o Baixo Império, esse período crepuscular em que o mundo Greco-
romano entraria em franca decadência, prenúncio da “grande noite” medieval. A
visão estereotipada incide não somente sobre a Idade-Média, mas igualmente
sobre o período que imediatamente a precedeu.
unidade própria”158. Nesse livro, Riegel, em resposta aos que acusavam a arte
tardo-romana como detentora de uma técnica rudimentar, defende o argumento de
que os artistas desse período estariam preocupados em transmitir a transcendência
e o conteúdo, mais do que elaborar uma representação fidedigna da natureza
conforme os padrões clássicos159.
que iria, em princípio, dos últimos decênios do século II até o século VIII, é
caracterizado, antes de tudo, pela lenta passagem de uma mentalidade identitária
cívica a uma mentalidade identitária religiosa. Privilegiando a história cultural e
religiosa em suas dimensões sociais e mentais, Brown, seus colegas e discípulos,
têm insistido na importância das transformações lentas para a definição do
período: trata-se, sobretudo, de analisar o impacto das religiões emergentes (o
cristianismo e o islamismo) sobre as concepções e os comportamentos pessoais e
coletivos. Nessa perspectiva, as mudanças políticas, como a queda do Império do
Ocidente e a conquista árabe, são minimizadas e as fronteiras da Antiguidade
Tardia são progressivamente alargadas para abarcar, segundo alguns autores, até
o século X 161.
160
« Laissons pour le moment de côté les aspects proprement « décadents» qui résultent dans le
monde occidental des contrecoups des invasions barbares ; il faudrait que le terme ‘antiquité
tradive’ reçoive enfin une connotation positive ― comme, on l’a rappelé, il est arrivé pour ‘moyen
âge’ ― ; mais peut-on dire que l’expression soit véritablement entrée dans l’usage courant ? En
français (comme ses équivalent italien ou anglais), elle conserve encore quelque chose
d’ésoterique ; seul l’aalmeand, plus palstique, semble avoir fait meilleur accueil à celle de
Spätantike. Il faudrait enfin consentir à admettre que l’antiquité tardive n’est pas seulement
l’ultime phase d’un développement continu ; c’est une autre antiquité, une autre civilisation, qu’il
faut apprendre à reconnaître dans son originalité et a juger pour elle-même et non à travers les
canons des âges antérieurs. » Marrou: Décadence romaine ou Antiquité tardive ? p.12 e 13
161
Oliveira, Julio Cesar Magalhães de: O Conceito de Antiguidade Tardia e as Transformações da
cidade antiga: o caso da áfrica do norte. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da
Antiguidade.
70
reputada de obscura, não foi uma volta às nostalgias medrosas, mas sim a abertura
em direção do futuro graças ao domínio de um passado mais do que milenar.162
3.2.
Procópio de Cesareia
Procópio de Cesareia nasceu, por volta do início do século VI, em uma rica
família da elite da cidade de Cesareia, na antiga província da Palestina, quando
esta pertencia ao Império Bizantino ― local que atualmente é parte integrante do
Estado de Israel e está fora dos limites do que em nossos dias entendemos por
Palestina. Na realidade, Cesareia na época do nascimento de Procópio era uma
cidade pertencente à parte oriental do Império Romano, pois, como bem sabemos,
a denominação bizantina foi a posteriori. As convulsões que deram fim às
estruturas políticas e administrativas do Império Romano do Ocidente não
162
“A la conception ténébreuse d’un Bas-Empire romain décadent et d’un pré-Moyen âge
barbare se substitue donc aujourd’hui la notion d’Antiquité Tardive. Cette période de quatre
siècles ne fut en rien celle d’un écroulement. Elle vit se dessiner progressivement de profondes
mutations. Cet âge, naguère réputé obscur, ne fut pas celui du repli sur frileuses nostalgies, mais
celui de l’ouverture vers l’avenir grâce à la maîtrise d’un passé plus que millénaire.” Lançon,
Bertrand: L’Antiquité Tardive.1997 p.117
71
atingiram a parte Oriental e esta haveria ainda de se manter por mais alguns
séculos, até a tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos. A região que se
estendia pelas bordas orientais do Mare Nostrum, o Mediterrâneo, em grande
parte helenizada há muito, desde as conquistas de Alexandre o Grande, onde o
grego era a língua de cultura, pouco se deixou penetrar pelo latim. Embora se
autodenominando de “romanos”, continuavam como herdeiros diretos da língua
grega. Procópio não foi exceção, toda sua obra foi escrita em grego e teve como
modelos os historiadores gregos, como Tucídides, Deodoro da Sicília e Políbio.
163
Os mais antigos documentos em grego são as célebres tabuinhas micênicas em linear B datadas
de meados do segundo milênio a.C e que seriam decifradas pelo inglês Michel Ventris na década
de cinquenta do século XX. Estas foram encontradas em sítios arqueológicos localizados nas
cidades de Cnossos (Creta), Micenas, Tirinto e Tebas e já apresentavam indícios de variantes
dialetais. Com a queda da civilização micênica, por volta do ano de 1200 a.C. até o século VIII a.
C., estende-se um grande vazio no que diz respeito aos testemunhos escritos. Esse período ficou
conhecido na historiografia como “período obscuro”. No entanto, a partir do século VIII a. C., a
escrita ressurge no domínio helenofônico. Desde esse período até os dias de hoje, a história da
língua grega pode ser acompanha ininterruptamente através de documentos escritos, o que faz com
que o grego seja um dos raros idiomas que pode ter sua história retraçada até período tão recuado
temporalmente. No que concerne à divisão dialetal do grego antigo, esta se inicia já no primeiro
milênio antes de Cristo, quando da instalação das populações protogregas no extremo da Península
Balcânica. Na época arcaica e clássica podemos dividir o grego em quatro grupos dialetais: o
arcádio-chipriota; o eoliano; o dórico e o jônio-ático. Foi o jônico-ático, mais especificamente na
sua variante ática, que, devido à pujante influência socioeconômica da cidade de Atenas, tornou-se
o modelo linguístico nos séculos posteriores. O que consideramos atualmente como grego clássico
é o dialeto ático escrito no século V a.C. em Atenas, o século de Péricles.
164
As befitted an aristocrat, Procopius acquired a superb classical education, which enabled him
to write limpid and graceful Atticizing Greek with the appropriate literary allusions, above all to
Thucydides. He may well have studied rhetoric at the nearby city of Gaza, then a famous center of
72
classical learning. He also had the full training of lawyer and a good working knowledge of Latin,
both of which indicate he had studied law at either Berytus de Constantinople. The latter seems
more likely, since he had no known connection with Berytus and came to the capital as a young
man. Treadgold, 2009, 177 e 178.
165
GARCÍA ROMERO, 2000: 9
166
GARCÍA ROMERO, 2000: 9
167
Cf. Signes Codoñer, 2000: 12-13
73
Não é pelo desejo de parecer eloquente, tampouco de passar por muito hábil na
topografia do Império, que empreendi esta história. O conhecimento que tenho de
minha pouca suficiência afasta-me muito desses pensamentos de vaidade. Porém,
muitas vezes considerei a excelência das muitas vantagens que a história oferece
aos Estados, quando ela transmite à posteridade uma imagem fiel dos séculos
passados, quando ela combate a malignidade do tempo, que se esforça
continuamente em arruinar as coisas mais belas e, finalmente, quando ela ergue a
virtude, glorificada por seus leitores na medida em que merece ser, e ao contrário,
abaixa e detém o progresso do vício.
168
Ce n’est pas par le désir de paraître éloquent ni de passer pour fort habile dans la topographie
de l’Empire que j’ai entrepris cette histoire. La connaissance que j’ai de mon peu de suffisance
m’éloigne fort de ces pensées da vanité. Mais c’est que j’ai souvent considéré la multitude, et
l’excellence des avantages que l’histoire procure aux Etats, lorsqu’elle transmet à la postérité une
image fidèle des siècles passés, qu’elle combat contre la malignité du temps, qui s’efforce
continuellement de ruiner les plus belles choses, et qu’enfin elle relève la vertu, en la faisant louer
par ses lecteurs autant qu’elle mérite de l’être, e qu’au contraire elle abaisse le vice, et en arrête
le progrès. || L’unique devoir d’un Historien est de représenter fidèlement les choses, et les
actions, et d’en marquer clairement les auteurs, ce qu’il lui est aisé de faire pour peu qu’il ait de
facilité de s’expliquer. […] Justinien que nous avons vu parvenir à l’Empire, en un temps où il
était dans une agitation et dans un désordre tout-à-fait étrange, en a accru notablement l’étendue,
et la puissance et en a chassé diverses Nations qui y exerçaient d’incroyables violences
[…].CÉSARÉE, Procope. Des Edifices in Histoire de Constantinople depuis le règne de l'ancien
Justin, jusqu'à la fin de l'Empire. Tradução de Louis Cousin. Paris: Chez Damien Foucault,
Imprimeur et Libraire Ordinaire du Roi, 1685. p. 221-222
169
CURTIUS, Ernest Robert: Literatura Europeia e Idade Média. São Paulo: Edsup, 1996. p.
121-122
74
A tópica era considerada mais do que uma mera técnica retórica. A tópica
era essa “pedagogia do discurso” que tentava conduzir de forma gradual o leitor
ao conteúdo da obra. No trecho acima citado Dos Edifícios, temos um típico
exemplo de topos de “falsa modéstia” em que o autor alega a sua pouca
competência para realizar o objetivo de sua obra, no entanto, tendo consciência da
importância das construções de Justiniano, não poderá desistir. A utilização da
tópica por Procópio de Cesareia afigura-se como mais um traço que o insere na
tradição clássica. Mas não devemos nos deixar levar unicamente por esses traços,
pois Procópio é um homem da fronteira de dois mundos e quando faz uso da mais
legítima tradição clássica, não deixa também de ser inovador, não deixa de
apropriar-se e, portanto, reinventar e colocar velhas técnicas a serviço de novas
maneiras de interpretar e sentir.
dito na história oficial não deixou de ser posto em papel. Seguramente, não sem
grande temor e tergiversações de diversas ordens, pois é o próprio autor que abre
as suas Anékdota afirmando seu grande receio, conforme pudemos ver
anteriormente. Nada mais distante em termos de conteúdo Dos Edifícios do que as
Anékdota.
3.3.
Procópio espelho do historiador ou a História às avessas
Um dos aspectos mais sui generis nas Anékdota é que estamos diante de
um historiador que desestabiliza grande parte da própria obra. Não se trata do
ataque de opositores, tampouco da crítica formulada por alguma escola
historiográfica posterior, fruto de novas análises históricas. O que nos surpreende
é que o grande imperador Justiniano, que é retratado de forma tão benévola, no
livro Dos Edifícios, transmuta-se aqui em contraexemplo máximo. Contraexemplo
que não deveria de forma alguma ser seguido, que serve como advertência aos
tiranos que viriam a surgir no futuro. A tensão que aí se origina, inegavelmente,
suscita questões que extrapolam as específicas circunstâncias relatadas por
Procópio de Cesareia. Quero dizer que a leitura crítica das Anékdota inflama os
75
espíritos para uma profunda reflexão do que é ser historiador e qual seria a nossa
função na sociedade.
históricos? Se todo ato é político, até que ponto impõe-se o limite ético na escrita
da história? Até que ponto chegam as possibilidades de uma interpretação que
precisa fazer uso da imaginação de forma idônea e a manipulação intencional dos
jogos de interesse?
São todas essas questões que incitam a nossa reflexão e acredito que o
debate em torno da obra de Procópio nos proporciona tal ensejo. São perguntas
prementes que vemos desencadeadas pelas Anékdota, estranho texto que faz o
desconcerto da História. As Anékdota afiguram-se metaforicamente como o
“mundo às avessas” da historiografia. Fazemos alusão aqui a uma tradição de
imagens populares que durante vários séculos existiu na Europa. Nessas imagens
podemos ver as atividades invertidas: os animais dominam os seres humanos; as
mulheres fazem trabalhos então atribuídos exclusivamente aos homens; as serras
cortam lenhadores. As imagens do mundo às avessas são cômicas, curiosas,
engraçadas, possuem algo de arte naïf. Acreditamos, porém, que seu principal
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Cada época faz uma leitura dos clássicos. Em nosso tempo, pensamos, ao
ler as Anékdota, algo que se assemelha metaforicamente à tradição das imagens do
“mundo às avessas”, ou seja: um historiador que desdiz o que narrara. Estamos
diante de um convite cheio de sugestões para refletir sobre o ato de escrever a
História. A História como campo do conhecimento que nos seduz e fascina. Mas
também não devemos nos esquecer de que a História é filha de Clio, uma das
musas. As musas inspiram os aedos, elas são criativas, são artistas da sedução que
nos encantam, mas igualmente, em certas ocasiões, nos enganam; da mesma
forma pode acontecer com a História. Engano que pode ser doce, mas, às vezes,
também perigoso.
nos diz François Hartog: “como escrever sem escrever? Com o risco de não ser
um historiador, o historiador não deve escrever e ele não pode não escrever170”.
3.4.
Justiniano e sua época
170
HARTOG, François: Le XIXe siècle et l’histoire: Le cas Fustel de Coulanges. Paris: Éditions
du Seuil, 2001. p.p. 27, 28.
171
TREADGOLD, Warren: Breve Historia de Bizancio. p.76
78
A educação que recebera ― da qual se pode ter uma ideia a partir daquela
que deu, após a morte de Teodora, a um pequeno menino do seu vilarejo ―
havia sem dúvida combinado o aspecto cultural e o aspecto militar.
Justiniano seguiu o cursus ordinário da paideia antiga, estudou retórica e
direito, mas também foi iniciado em teologia. Sua formação, aliás, é
essencialmente latina e faz dele um romano, com os traços característicos de
um estado de espírito romano, que lhe inspira a admiração a Roma e a sua
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Justiniano foi o último imperador que tinha por língua materna o latim, fato
não menos importante, pois o Império do Oriente viria a ser cada vez mais de
expressão grega. A partir do século VII, o latim deixaria de ser a língua oficial; a
língua da administração passaria a ser exclusivamente o grego175. O afã de
Justiniano de reconstituir o império em sua antiga dimensão seria, talvez, em parte
devido a essa base cultural e identitária de originário das regiões de língua latina
do Império. A Dardania situava-se próximo da fronteira do Danúbio e era um
território constantemente ameaçado pelas pressões dos povos bárbaros. Quiçá, por
conhecer a aflição dessas gentes que viviam em terras sob constante ameaça e por
possuir uma identificação com a parte ocidental do Império, Justiniano faria da
172
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p.22
173
TATE, Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p.
174
« L’éducation qu’il avait reçue ― dont on peut se faire une idée à partir de celle qu’il fit
donner, après la mort de Théodora, à un petit garçon de son village ― avait sans doute combiné
l’aspect culturel combiné l’aspect culturel et l’aspect militaire. Justinien a suivi le cursus
ordinaire de la paideia antique, étudié la rhétorique et le droit, mais s’est aussi initié à la
théologie. Sa formation par ailleurs, est essentiellement latine et fait de lui un Romain, avec les
traits caractéristiques d’un était esprit romain, qui lui inspire l’admiration de Rome et de son
histoire, non moins que celle de l’Antiquité infaillible » ; il semble aussi qu’il ait moins bien
possédé le grec que le latin. » MARAVAL: Pierre: L’Empereur Justinien. p. 23.
175
KAPLAN, Michel: Byzance. p.206
79
retomada dos territórios do Ocidente uma das grandes razões de seu governo.
Hipótese esta que é aventada por Tates:
Justiniano e sua família não eram somente arrivistas pelo fato de suas
origens sociais, pobres e rurais, eram também marginais no seio do Império
do Oriente, pela língua e pela ligação eclesiástica da região de origem deles.
É provável ― mas como provar? ― que eles retinham de suas origens uma
ligação com a cultura latina, a lembrança da antiga unidade romana e da
igreja de Roma que quase não teve, provavelmente, equivalente no Oriente.
Anastásio também era originário dos Bálcãs, mas era helenófono e não era
voltado para o Ocidente. Justino e sua família eram portanto estrangeiros no
Império? Eles não o eram nem um pouco visto, que o latim permanecia,
oficialmente, como a língua do poder, da administração e da legislação. Seu
conhecimento era, ao contrário, um trunfo para aqueles que se destinavam à
administração. Desconhecer o grego, pelo contrário, era uma deficiência176.
(A tradução é nossa).
cursus honorum de Justiniano foi rápido e pleno de êxitos: “Em 518, era
domesticus (oficial) nas Scholes Palatines; foi nomeado logo illustris comes
domesticorum e patrício, o que o fez ascender ao consistório. Em 520, tornou-se
mestre das milícias praesentalis, e, em 520, foi cônsul [...]”177. Quando da
ascensão ao consulado, promoveu uma série de comemorações de grande fausto
para colher as simpatias do povo de Constantinopla, “[...] com jogos magníficos
no hipódromo e distribuição de dinheiro”178. Em 527, foi associado ao Império
como herdeiro de seu tio. Meses depois, em 1º de agosto, com a morte de Justino,
herdava plenamente as insígnias imperiais, ascensão que na verdade começara
gradativamente e muitos anos antes.
176
« Justinien et sa famille n’étaient pas seulement des parvenus du fait de leurs origines sociales,
pauvres et rurales, ils étaient aussi des marginaux au sein de l’Empire d’Orient, par la langue et
par le rattachement ecclésiastique de leur région d’origine. Il est probable, mais comment le
prouver ? qu’ils tenaient de leurs origines un attachement à la culture latine, au souvenir de
l’ancienne unité romaine et à l’église de Rome qui n’eut probablement guère d’équivalent en
Orient. Anastase aussi originaire des Balkans mais il était hellénophone et n’était nullement
tourné vers l’Occident. Justin et sa famille étaeint-ils pour autant des étrangers dans l’Empire ?
Ils n’en étaient pas du tout puisque le latin demeurait, officiellement, la langue du pouvoir, de
l’administration et de la législation. Sa conaissance était, au contraire, un atout pour ceux qui se
destinaient à l’administration. Méconnaitre le Grec, en revanche, était un handicap. » TATE,
Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p.76
177
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p. 22
178
idem
80
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3.4.1.
Guerra Persa
179
“The huge, multiethnic empire posed the greatest threat to Romans throughout the Age of
Justinian, as warfare grew more frequent between the great powers. Khusro I was Justinian’s
greteast adversary. His frequent invasions of Roman territory caused great damage to the rich
cities of the region. The loss of revenues due to the continuing conflict and to Persian seizure of
81
3.4.2.
Guerra Vândala
Roman property had a deleterious effect on the Roman economy, thought it did not affect
productivity.” Maas, Michael: Roman Questions, Byzantine Answers in Maas, Michael: The
Cambridge Companion of the Age of Justinian. p. 10
180
“Desse modo, pois, pactuaram a chamada ‘paz indefinida’, quando Justiniano já contava seis
anos ocupando o trono. Os romanos entregaram aos persas Farangio e a fortaleza de Bolo além do
dinheiro combinado, e os persas aos romanos as praças fortes de Lácica.” (Guerra Persa 17-18)
181
Em grego aspérantos eirene, Francisco Antonio Garcia Romero traduz para o espanhol como
“paz indefinida”, mas sublinha, em nota, que também é conhecida como paz eterna ou perpétua.
Cf. Cesarea: Historia de lãs Guerras p.135.
82
3.4.3.
Guerra Gótica
do bárbaro para terras distantes da capital imperial. Teodorico, ainda que fosse
imbuído de cultura greco-romana, pois havia sido criado em Constantinopla,
desejava manter a separação entre os dois povos, por um lado os invasores
ostrogodos, que professavam o arianismo e, por outro, a elite local romana
católica. Na prática, isso se traduzia pela proibição de casamentos entre as duas
etnias. Apesar dessa separação entre romanos e ostrogodos, defendida por
Teodorico, sua política caracterizava-se por ser filoromana e de amizade com o
imperador. Entretanto, já em tempos de Justino, tio de Justiniano, o rei os
ostrogodos afastou-se de tal posição e desenvolveu uma política de hostilidade
com os romanos, haja vista que Justino arrogou-se de defensor do Concílio de
Calcedônia e pôs-se a perseguir os arianos. Uma das consequências dessa nova
posição de Teodorico foi o assassinato de Boécio e a prisão do papa. Mas o rei
dos ostrogodos veio a morrer em 525. O herdeiro seria seu neto, Atalarico, ainda
menor de idade e que teria por regente sua mãe, a filha de Teodorico, Amalasunta.
Mas os ostrogodos tinham dificuldade de reconhecer uma mulher como chefe do
exército. Após diversas vicissitudes e a morte de seu filho, Atalarico, Amalasunta
“sabendo que não pode continuar a governar sozinho, comete o erro de chamar
182
Identifica-se, atualmente, o monte Papúa na cadeia de montanhas de Kroumirie, que se estende
entre as atuais fronteiras da Argélia e da Tunísia. Cf: in Cesarea, Procopio: Historia de las Guerras
Vandalas. Nota 21. p.218-219
83
Theolahat, que se fez detestar na Toscana por suas intromissões, suas brutalidades
e seus confiscos dos bens dos romanos”183. Théodahat tornara-se o defensor do
partido ostrogodo, e acabou por assassinar Amalasunta em 535. Esse assassinato é
o ensejo perfeito para a intervenção de Constantinopla na península itálica, e
Justiniano não haverá de perdê-lo.
3.4.4.
Código Justiniano
183
TATE, Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p. 591
184
« La nécessité d’une reforme du droit s’imposait donc avec urgence et l’effort qu’elle requérait
était immense. Les textes disponibles n’étaient pas seulement très nombreux, ils étaient prolixes,
souvent confus et, parfois, se contredisaient. Le résultat était que la justice dépendait de plus en
plus de la volonté des juges, de leur subjectivité, éventuellement de leurs intérêts. Pour des causes
similaires, ils rendaient des verdicts parfois très différents. » TATE, Georges: Justinien: l’épopée
de l’empire d’Orient p. 427
84
185
ROLIM, Luiz Antonio: Instituições de direito Romano. p. 88-89
186
AHRENS, Enrique: Historia del Derecho. p.165
187
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p. 36
188
Idem p. 37
4.
Uma leitura literária das Anékdota
A História Secreta é um documento histórico único. Nenhum autor anterior havia
exposto ainda os crimes de um regime com uma combinação de análises
institucional, legal e militar, com ataques pessoais e rumores obscenos, tão
completamente como Procópio fez aqui. Nesse denso panfleto de bastidores, ele
astuciosamente combina os papéis que hoje em dia estão divididos entre os
repórteres de tabloides, jornalistas investigativos, intelectuais públicos e
descontentes iniciados na administração.
Anthony Kaldellis189
4.1.
As Anékdota: reflexos de uma mundividência cristã?
A pergunta que devemos fazer é por que as Anékdota surgem como a única
obra da Antiguidade que se debruça com especial desvelo a esmiuçar a corrupção
e os males de um governo. O fato da obra ter sido escrita nos estertores do que
consideramos a Antiguidade não há de ser atribuído a mera coincidência. Acredito
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189
“The Secret History is a unique historical document. No previous author had get exposed the
crimes of a regime by combining institutional, legal and military analysis with personal attack and
salacious rumor quite as Prokopios does here. In this dense, behind-the-scenes pamphlet, he
artfully combines the roles the that today are divided among tabloid reporter, investigative
journalists, public intellectuals and “disgruntled” administration insiders” Kaldellis, Anthony:
Procopius of Caesarea: Tyranny, History, and Philosophy at the End of Antiquity.
University of Pennsylvania Press, 2004. (Edição Kindle)
86
que poderá nos revelar uma importante chave de entendimento. Não seriam as
Anékdota um documento revelador de uma mudança de mentalidade? Não
estariam em suas linhas as forças maiores que perpassam a Antiguidade Tardia?
4.2.
Tentativas de uma leitura “auerbachriana” das Anékdota
4.2.1.
A cicatriz de Ulisses
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190
Auerbach, Erich : Mímesis. p. 2
88
Já este princípio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero. Onde estão os
dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe muito bem que
normalmente não se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve
vir de algum lugar, deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno,
para falar com Abraão. De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto
191
Auerbach, Erich : Mímesis p.4
89
é dito. Ele não vem, como Zeus ou Poseidon, das Etiópias, onde se regozijara
com um holocausto. Nada se diz, também, da causa que o movera a tentar
Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, como Zeus, com outros deuses,
numa assembleia em ordenado discurso; também não nos é comunicado o que
ponderara no seu próprio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena
chegado de altura ou profundeza desconhecidas e chama: “Abraão!”.192
escutar pedido de tão sofrida execução. A imprecisão do estilo bíblico, que produz
um efeito de omissão misteriosa, pode ser lida como uma espécie de reflexo da
imprecisão das próprias personagens, humanamente criadas e transformadas ao
calor das experiências de suas próprias vidas. Imprecisão estilística, mas também
imprecisão inerente à condição humana, condição essa em que a coerência e a
clareza são sabidamente falhas.
192
Auerbach, Erich : Mímesis p. 5 e 6
90
11. Belizário tinha uma mulher ― fiz menção dela nos livros precedentes ― cujo
avô e pai eram cocheiros e haviam exercido essa profissão em Bizâncio e em
Tessalônica, e a mãe era daquelas que se prostituem no teatro. 12. Essa mulher
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193
Procope de Césarée: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre Maraval. p.28 e 29.
91
incompatíveis com o status social que viria a ocupar. É como se Procópio nos
dissesse: Antonina, já por suas origens não poderia ser a mulher de um dos mais
importantes generais do Império. Em seguida, intensifica ainda mais a
desqualificação genealógica que empreende, visto que nos informa que sua mãe
fora prostituta. Ora, ao frisar tal fato, o autor põe em jogo uma série de
significados que se ligam à representação dessa atividade. Fora a degradação
moral, pois o comércio do corpo seria um pecado, segundo os padrões cristãos, ser
a filha de uma prostituta implicaria uma paternidade duvidosa. Dentro desses
parâmetros morais, mais degradante do que ser a filha e neta de cocheiros, seria
não ter a identidade do pai assegurada. Ser filha de “ninguém” pode ser
considerado como uma das mais graves acusações em uma sociedade patriarcal;
trata-se da falta de liame legítimo que insere a pessoa em determinado grupo que
lhe concede razão e coerência social para viver. O retrato de Antonina vai sendo
composto com os mesmos elementos, mas agora aplicados à retratada em si
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mesma, Antonina teria levado também uma “vida dissoluta”, manifestação talvez
como que de uma espécie de herança materna, pois deixara “a rédea solta a seu
próprio comportamento”. Mas a paternidade, ainda que Procópio possa nos incitar
tacitamente a desconfiar de sua autenticidade, nem por isso deixaria de transmitir
de maneira eficaz as suas marcas, porque foi no seio do ambiente paterno que
aprenderia a prática da feitiçaria. Criatura tão ignóbil, pelo menos no dizer de
nosso autor, só por artimanhas da ordem do mágico poderia conseguir se tornar “a
legítima esposa de Belizário”.
devassidão e corrupção, mas estas são praticadas por indivíduos que ontem
mesmo ocupavam o que Procópio considera como a escória social. Configuram-se
diante de nós não mulheres de origem aristocrática que se degradaram — como
nos apresentam muitos escritores da Roma Clássica — mas são prostitutas do
povo que ascenderam à mais elevada das condições.
4.2.2.
O Trimalcião
194
Auerbach, Erich : Mímesis p. 22
94
objetiva, mas como imagem subjetiva, tal como se apresenta na cabeça daquele
comensal que entretanto também faz parte do círculo. Petrônio não diz isto é
assim, - mas deixa que um eu, que não é idêntico a ele, nem ao fingido narrador
Encólpio, lance o holofte de seu olhar sobre os comensais – um processo
extremamente artístico perspectivo, uma espécie de dupla reflexão, que, naquilo
que se conserva da literatura antiga, não me atrevo a dizer que seja única, mas é
sem dúvida, muito rara. A forma exterior deste emprego da perspectiva não é
senão uma forma de exposição, tratada por demais objetivamente, como no caso
dos relatos de Ulisses ante os feácios ou de Eneas ante Dido, ou se trata da
tomada de posição de alguém perante homens ou acontecimentos que o atingem
diretamente, nos limites de uma ação , onde portanto, o subjetivo é inevitável e,
também, naturalmente carente de artifício. Aqui, porém, trata-se do mais aguçado
subjetivismo, que é ainda salientado pela linguagem individual, por um lado –
por outro trata-se de uma intenção objetiva, pois a intenção visa a descrição
objetiva dos comensais, inclusive de quem fala, através de um processo subjetivo.
Este processo a uma ilusão mais sensível e concreta da vida, na medida em que
um dos convidados descreve os comensais, um grupo ao qual ele pertence interior
e exteriormente; o ponto de vista é introduzido no próprio quadro, este ganha em
profundidade, e a luz que o ilumina parece provir de algum dos seus cantos.195
195
Auerbach, Erich : Mímesis p.p. 23 e 24
95
texto de Petrônio, provavelmente, estaria - pelo menos no que tange a tal aspecto
da sua forma -, mais próximo do relato bíblico, visto que seria destituído do
afastamento descritivo de uma realidade objetiva, como se daria nos versos do
aedo da Jônia. No sacrifício de Isaac podemos não ter a “imagem subjetiva”, mas
estamos diante de um texto repleto de silêncios e imprecisões. Em outras palavras,
diríamos entrever na análise de Auerbach duas categorias, a saber: 1) aquela de
um narrador que se esforçaria por dar a impressão de uma realidade límpida,
quase um realismo literário avant la lettre. 2) Já a outra, seria a de um narrador
que não teria entre suas preocupações a transmissão dessa realidade “fotográfica”,
mas sim um narrador que constituiria seu texto por intermédio da “imagem
subjetiva” ou, então, de omissões, silêncios e imprecisões. Em suma, o grande
contraste seria o texto homérico com seu especial desvelo de clareza e
objetividade.
“realidade objetiva”. Por mais que Procópio deseje macular para todo o sempre a
memória de Justiniano — expondo o que afirma ser a mais pura “realidade” dos
fatos — seu texto não deixa de possuir várias marcas que permitem, em grande
parte, entrever que se trata de sua opinião. A partir da apreensão dessas marcas
que parecem ter “escapulido” do ferino cálamo procopiano, podemos perceber a
costura textual. E se a metáfora nos é lícita, ao vermos as linhas, cerzidos e pontos
de junção de uma roupa, a presença de alguém que os costurou emerge mais do
que nunca em nossas mentes — embora sempre tenhamos sabido que uma manus
artifex sempre esteve ali presente. Essa nossa observação não aborda a veracidade
histórica ou não contida nas Anékdota, mas simplesmente assinala um traço
estilístico: o autor parece não ter tido a preocupação de esconder seu narrador
através de artifícios que fizessem com que o leitor pudesse sentir a sensação de
estar diante de uma realidade objetiva, o que ocorreria no texto homérico.
Auerbach prossegue:
chegado é definido mediante dados acerca de sua família paterna e materna. Com
isto não se quer provar tanto a impressão da mudança histórica, quanto, e
muito mais, a ilusão de uma fundamentação firme e imutável da constituição
social, ao lado da qual a mudança das personagens e do seu destino pessoal
parece relativamente insignificante197. (Os grifos são nossos)
196
Auerbach, Erich : Mímesis p.p. 24 e 25
197
Auerbach, Erich: Mímesis. p. 24
98
famílias parece ter sido subvertida. Temos a impressão de assistir a uma peça de
teatro em que as mais inesperadas situações, conduzem a resultados
surpreendentes, pequenos atos ou gestos que podem levar um escravo à condição
de senhor, uma prostituta à condição de grande do império. Tanto Petrônio como
Procópio trazem ao leitor um mundo que não só insiste na instabilidade das
condições sociais, mas facilmente poderia resvalar na comédia. Escravos,
cocheiros e prostitutas se cruzam na narrativa e conformam uma realidade em que
não podemos apreender nem sequer alguma espécie de resquício da gravitas
romana. Delineam-se diante dos olhos do leitor quase que personagens bufos.
Mas o Trimalcião, como bem nos diz Auerbach, é um texto que tenta
inspirar o riso. O mesmo não poderíamos dizer, em princípio, das Anékdota. O
leitor moderno pode perceber o excesso de maledicência que estimula o autor de
Cesaréia a empreender o complemento da sua História das Guerras de Justiniano.
Não é à toa que a palavra “anedota”, que é utilizada na maior parte dos idiomas
modernos ocidentais, tem seu sentido cunhado a partir do livro de Procópio. A
fortuna crítica das Anékdota dividiu os eruditos entre os que nela acreditaram e
aqueles que desconfiaram do seu conteúdo. Ousaria dizer que, pelo menos, o
senso comum ― que plasma, dá vida ou morte às palavras nos idiomas ― parece
ter se aliado mais ao grupo dos que desconfiaram do conteúdo do livro inédito de
Procópio de Cesareia, visto que o título deste tornou-se sinônimo de pequena
narrativa peculiar, curiosa e risível. Mas esse não era o intuito de Procópio de
Cesareia, como sabemos. Seu intuito era o de escrever um último e complementar
livro da sua obra maior, no qual pudesse dizer a verdade da corte de Justiniano,
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Mas Petrônio não faz questão nenhuma do aspecto histórico da sua obra. Se
tivesse ligado as diferentes circunstâncias e os diferentes acontecimentos a
situações político-econômicas determinadas dos primeiros tempos do Império,
teria surgido aos olhos do leitor um pano de fundo histórico que teria sido
completado pela memória — teria resultado numa profundidade histórica, ao lado
da qual o perspectivismo de Petrônio [...] pareceria mera superfície; então poder-
se-ia falar real, e não só relativamente, de movimento histórico. Mas isto teria
explodido o estilo dentro do qual Petrônio pretendia se manter, o que não teria
sido possível sem uma ideia, que lhe era inacessível: a ideia das “forças
históricas”. Tal como é o movimento, não obstante toda a sua vivacidade,
permanece dentro dos limites do próprio quadro; atrás dele nada se move, o
mundo é estático. É sem dúvida, nitidamente uma pintura da época, mas o tempo
se apresenta como se tivesse sido sempre assim como aparece aqui e agora, com
senhores que deixam aos escravos que satisfazem seus gostos sexuais grande
parte de suas fortunas, com imensos lucros que podem ser obtidos no comércio, e
100
198
Auerbach, Erich: Mimesis. p.p.28-29
199
A ideia de que a historiografia antiga debruça-se, sobretudo, na busca de identificar os vícios e
as virtudes, quer dizer, uma história que se preocupa mais com uma abordagem moral do que com
a intenção de compreender os grandes movimentos sociais, políticos e econômicos que conduzem
a história, talvez, relaciona-se com o topos da historia magistra vitæ da qual nos fala Koselleck —
breve e anteriormente abordado nesta tese. A percepção da História como um grande repositório
dos tipos humanos e possibilidades de situação, que nos guiaria através do tempo, pressupõe a
repetição e a certeza de variáveis que se dão no interior de um quadro que, na sua configuração
geral, é a maior parte do tempo imutável. Somente através da dissolução desse antigo topos
historia magistra vitæ é que veríamos o gradativo desenvolvimento de uma historiografia que se
voltaria para a busca de grandes impulsionadores sociais que formam as mudanças na História. No
entanto, Auerbach considera que essa percepção das causas que emanam do povo como um todo e
provocam as modificações estaria mais presente no relato bíblico. Mas não podemos considerar a
Bíblia como História, na acepção que foi desenvolvida na Grécia. Seguir por essa reflexão desviar-
101
4.2.3.
A negação de Pedro
nos-ia de nossos propósitos. Em todo caso, queremos simplesmente assinalar a possível relação
entre a dissolução do topos da Historia Magistrae Vitae e a afirmação de Auerbach sobre tal
ausência na Historiografia Greco-romana.
200
Auerbach, Erich: Mimesis. p.p. 32-33
201
Visto que Auerbach não cita diretamente o referido trecho dos Evangelhos, mas o reproduz
através de paráfrases, optamos por transcrever o episódio da negação São Pedro direta e
integralmente da Bíblia. Acreditamos que isso proporcionará ao leitor uma apreensão mais linear
do episódio e, por conseguinte, poderá acompanhar a comparação empreendida pelo crítico alemão
de forma mais eficaz.
102
Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar
onde o puseram. Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede
na Galiléia. Lá o vereis, como vos tinha dito.”202 O que fora dito teria se
confirmado. O Cristo não mais estaria ali, havia ressuscitado, logo, a redenção da
humanidade se efetivara e já não mais havia morte. Forte e bela imagem de
significado mítico que atinge diretamente o leitor ou o ouvinte.
Quando Pedro estava embaixo, no pátio, chegou uma das criadas do Sumo
Sacerdote. E, vendo Pedro que se aquecia, fitou-o e disse: “Também tu estavas
com Jesus Nazareno. Ele, porém, negou dizendo: “Não sei nem compreendo o
que dizes”. E foi para fora, para o pátio anterior. E um galo cantou, E a criada,
vendo-o, começou de novo a dizer aos presentes: “Este é um deles!”. Ele negou
de novo! Pouco depois, os presentes novamente disseram a Pedro: “De fato, és
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um deles; pois és galileu”. Ele porém, começou a mal dizer e a jurar: “Não
conheço esse homem de quem falais!”. E, imediatamente, pela segunda vez, um
galo cantou. E Pedro se lembrou da palavra que Jesus lhe havia dito: “Antes que
o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes”. E começou a chorar.203
Nessa cena, “[...] Pedro cai mais baixo do que os outros, que pelo menos
não tiveram a oportunidade de negar Jesus explicitamente; como sua fé era
profunda, mas não suficiente, a ele acontece o pior que pode acontecer a um
crente neófito: teme pela sua própria vida”204. Aí vemos um homem a ser
engolfado por um redemoinho de acusações e tentando se salvar da contínua
queda. São Pedro tem medo; entra no pátio sorrateiramente; tenta não se fazer ver;
é acusado por uma criada; por covardia, renega o seu verdadeiro credo; a criada
insiste que ele é um dos seguidores do homem que fora preso; ele volta a renegar
o seu senhor; o burburinho da multidão cresce e agora toda a gente o acusa; ele
desesperado, já gritando, persiste em sua negação; e, por fim, põe-se a chorar,
demonstrando humanamente insegurança e vergonha. A cena configura-se com
elementos extremamente populares. Podemos ver uma horrenda criada, de espírito
malévolo que tem prazer em delatar. O povo sôfrego por ver, em breve, o sangue
derramado de mais um acusado. Um herói Greco-romano não poderia fugir de
202
Bíblia de Jerusalém, Marcos (16: 6-7). p.1784
203
Bíblia de Jerusalém, Marcos (14: 66-72). p.1782
204
Auerbach, Mímesis. p.36
103
uma criada, não poderia estar em meio a multidão em posição amedrontada, como
afirma Auerbach:
Uma figura trágica de tal procedência, um herói de tal debilidade, mas que
ganha de sua própria fraqueza a maior das forças, um tal vaivém do
pêndulo, tudo isto é incompatível com o estilo elevado da literatura clássica
antiga. Mas também a natureza e o cenário do conflito ficam totalmente fora
dos limites da antiguidade clássica antiga. Encarada superficialmente, trata-se
de uma ação policial e de suas consequências; desenvolve-se inteiramente entre
pessoas do dia-a-dia do povo. Coisa semelhante só é concebível na
Antiguidade como farsa ou comédia na Antiguidade. Por que não é assim, por
que desperta a participação mais séria e significativa? Por que apresenta algo que
nem a Poesia nem a Historiografia antigas jamais apresentaram: o surgimento de
um movimento espiritual nas profundezas do povo comum, em meio aos
acontecimentos ordinários e contemporâneos, que ganham, assim, uma
significação que nunca lhes coube na literatura antiga. Desperta perante os nossos
olhos “um novo coração e um novo espírito”. Tudo isso se aplica não só à
negação de Pedro, nas a todos os acontecimentos marrados no Novo Testamento.
Neles trata-se sempre da mesma questão, do mesmo conflito que se apresenta
fundamentalmente a todo homem, e que é assim, aberto e infinito — o mundo
todo entra em movimento por sua causa — enquanto que os enredos acerca do
destino e da paixão que a Antiguidade Greco-romana conhece interessam
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4.2.4.
Teodora: entre a História e o Sermo Humilis
205
idem
104
Tal era, pois, o caráter de Justiniano, pelo menos como pudemos descrevê-lo. Ele
era casado com uma mulher da qual vou contar como foi o nascimento e a
educação e como depois de se unir em casamento com esse homem, ela aniquilou
até a raiz o Estado Romano. Havia em Bizâncio certo Akakios, guardador de
animais selvagens no circo, da facção dos Verdes, chamado o Mestre dos Ursos.
Esse homem morreu de doença sob o reinado do imperador Anastásio, deixando
três crianças do sexo feminino, Comito, Teodora e Anastácia; a mais velha não
tinha ainda atingido os sete anos. Sua mãe caída em seu estado anterior, desposou
outro homem que viria futuramente a se ocupar com ela da sua casa e retomar
esse trabalho. Mas o mestre de dança dos Verdes chamado Astérios, subornado
por alguma outra pessoa, os afastou desse posto e colocou em seu lugar, sem
nenhuma dificuldade, aquele lhe dera dinheiro. De fato era possível aos mestres
de dança dispor livremente de tais postos. Quando a mulher viu todo o povo
junto no circo, colocou coroas na cabeça e nas mãos de suas filhas e fez com que
se sentassem como suplicantes. Mas os Verdes não quiserem de maneira
nenhuma aceitar a súplica, enquanto que os azuis os restabeleceram nesse posto,
pois o seu Mestre de Ursos acabava também de morrer. // Quando essas crianças
chegaram à adolescência, a mãe delas logo fez com que subissem ao palco, pois
eram muito bonitas de serem vistas; mas não todas ao mesmo tempo, mas quando
cada uma pareceu-lhe estar com idade suficiente para esse trabalho. Logo
Comino, a primeira, havia obtido grande sucesso entre suas companheiras;
Teodora, mais nova, vestida com uma pequena túnica com mangas como aquela
de uma escrava, a seguia para prestar-lhe diversos serviços; em particular, ela
trazia sempre sobre seus ombros a cadeira sobre a qual aquela tinha o hábito de
se sentar nas assembleias. Durante certo tempo, Teodora, estando impúbere, não
podia se deitar com um homem nem ter relações sexuais como uma mulher, mas
se deitava como um menino com miseráveis, especialmente com escravos, que ao
acompanhar seus senhores ao teatro, aproveitavam dessa ocasião para cometer
essa funesta ação, e ela passava muito tempo no lupanar a fazer uso contra
natureza de seu corpo. Mas, logo que ela atingiu a adolescência e que ficou
105
206
“Tel était donc le caractère de Justinien, pour autant du moins que nous ayions pu le décrire. Il
était marié à une femme dont je vais raconter quelles furent la naissance et l’éducation et
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comment, après s’être unie en mariage à cet homme, elle anéantie jusquà la racine l’État romain.
Il y avait à Byzance un certain Akakios, gardien de bêtes sauvages au cirque, de la faction des
Verst, appelé le Maître des Ours. Cet homme mourut de maladie sous le regre de l’empereur
Anastase en laissant trois enfant de sexe féminin, Comito, Théodora et Anastasia ; la plus âgée
n’avait pas encore atteint ses sept ans. Sa femme tombée de son état antérieur, épousa um autre
homme, qui devait à l’avenir s’occuper avec elle de sa maison et reprendre ce travail. Mais Le
maître de danse des Verts, nommé Astérios, acheté par quelq’un d’autre, les écarta de cette
charge et mit à leur place, sans aucune difficulté, celui qui lui avait donné de l’argent. Il était
possible en efffet au maîtres de danse de dispososer librement de tels postes. Lorsque la femmme
vit tout le peuple rassemblé dans le cirque, elle plaça des couronnnes sur la tête et dans les mains
de ses enfants et les fit s’asseoir comme des supppliantes. Mais les Verts ne voulurent aucunement
accepter la supplique, alors que les Bleus les établirent dans cette charge, car leur Maître des
Ours venait aussi de mourrrir.// Lorsque ces enfants parvinrent à l’adolescende, leur mère les fit
monter aussitôt sur la scéne qui est lá, car elles étaient fort belles à voir ; non pourtant toutes en
même temps, mais lorsque chacune nlui parut être assez âgée pour ce travail. Déjà donc Comito,
la première, avait obtenu grand succès parmi ses compagnes ; Théodora, sa cadette, vêtue d’une
petite tunique à manches comme celle d’un esclave, la suivait pour lui rendre divers services ; en
particulier, elle portait toujours sur ses épaules le siège sur lequel celle-ci avait l’habitude de
s’asseoir dans les assemblées. Pendant un certain temps, Théodora, étant impubère, ne pouvait
coucher avec un homme ni avoir des relations sexuelles comme une femme, mais elle couchait
comme un garçon avec des misérables, à savoir avec des esclaves, qui, en accompagnant leur
maître au théâtre, profitaient de cette occasion pour accomplir cette funeste action, et elle passait
beaucoup de temps au lupanar à faire cet usage contre nature de son corps. Mais aussitôt qu’elle
arrive à l’adoslescence et qu’elle fut assez grande, elle se joignit à celles qui se produisent sur
scène et devint aussitôt une cortisane, de celles que les anciens appelaient d’infanterie.Elle n’était
en effet ni joueuse de flûte, ni harpiste et ne pratiquait même pas l’art de la danse, mais elle
vendait seulement sa beauté à tous les passants, travaillant avec tout son corps. Par la suite, elle
était associée aux mimes pour tout ce qui se fait au théâtre et participait aux activités qui sont les
leurs en les assistant dans les bouffonneries burlesques. Elle était en effet extrêmement vive et
moqueuse, et avait aussitôt suscité l’admiration dans cette activité. Elle n’avait aucun sentiment
de honte, et personne ne la vit jamais se troubler, mais elle se prêtait sans aucune hésitations à
des pratiques impudentes. Elle était telle que, souffletée et frappée sur les joues, elle plaisantait ou
même éclatait de rire. Elle se déshabillait et montrait nus à ceux qui étaient présents son devant et
sonderrière, des parties qui doivent rester cachées et invisibles aux hommes.” Cesarée, Procope :
Histoire Secrète (IX :1-7). Tradução de Pierre Maraval. 2009. p 60-61.
106
aqui se desfaz. Lembremos também do perfil que Procópio traça de Justino, tio de
Justiniano e que lhe facultou à ascensão ao trono imperial: é um homem rude e
para assinar o próprio nome sobre os documentos precisa, até mesmo, do auxílio
de uma espécie de molde em madeira, solução criada pelo engenho de seus
assessores. Não se trata de uma ascensão isolada, a sociedade que emerge das
Anékdota é uma sociedade às avessas, onde os impeditivos de ordem aristocrática
parecem não mais existir e Procópio tende a associar tal fenômeno à corrupção
moral que se alastra pelo Estado.
4.2.5.
Sermo humilis
207
Auerbach, Erich: Sermo humilis in Ensaio de Literatura Ocidental. São Paulo, Editora 34, 2007.
p.39.
108
fazer.
Pudemos analisar linhas acima uma das mais famosas passagens das
Anékdota. Trata-se, sem sombra de dúvida, da descrição do passado amoral de
Teodora, que é feita no nono capítulo. Devemos recorrer a essa passagem
novamente, pois ela é ilustrativa do que identificamos como o sermo humilis das
Anékdota. A mulher que haveria de chegar à condição de imperatriz era, quando
da sua juventude, uma atriz e prostituta, e nada em sua vida poderia fazer prever a
ascensão a essa posição tão destacada. Frisemos, o relato procopiano não concerne
ao comportamento dissoluto de um membro das classes superiores, mas sim de
uma mulher comum do povo. É do submundo de Constantinopla que surgiria uma
das figuras históricas de maior proeminência, pois, Procópio nos mostra Teodora
exercendo uma influência hegemônica sobre Justiniano.
4.3.
Quando a Sátira Menipeia adentra a História
208
Conca, Fabrizio Introduzione in Procopio: Storie Segrete, 2010. p. 8
209
Idem
110
4.3.1.
O sério-cômico
211
BAKHTIN, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. p.p.
121-122
111
212
Idem p.p. 122-123
213
Idem
214
Vários foram os autores ainda na própria Antiguidade que acusaram a veracidade das Histórias
de Heródoto: “Sua reputação foi por muito tempo das piores: mitólogo para Aristóteles (Poética),
homo fabulator para Aulo Gélio... Perde-se a conta, na Antiguidade, de Ctésias a Libanios, do IV
século a.C. ao IV século d.C., dos livros escritos para denunciar suas mentiras. Plutarco, o mais
célebre de seus detratores, no seu tratado sobre a malignidade de Heródoto, único panfleto que nos
chegou, não poupa palavras: ‘Ele bem abusou dos leitores com sua própria simplicidade; seriam
necessários vários livros para passar em revista o conjunto de suas mentiras e de suas
especulações’ (Sobre a Malignidade de Heródoto)” (A tradução é nossa) SAÏD, Suzanne et alii:
Histoire de la littérature grecque. 2004. p.185
215
BOWRA, C.M.: Historia da la Literatura Griega. p.99
216
BAKHTIN, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 2013
p.p. 121-122
112
leitor às fraquezas de um conhecido qualquer ou, pelo leitor atual, a uma figura
digna do mais rasteiro dos jornais. Se a história antiga solenizava ou, pelo menos,
tratava com certa distância seus retratados, Procópio rebaixava-os não só com
requinte, mas também com arte. Finda a primeira peculiaridade do sério-cômico,
façamos atenção à segunda:
Em síntese, Bakhtin aqui nos diz que a lenda seria livremente reinventada
com um sentido eminentemente crítico. Ora, nas Anékdota não encontramos,
propriamente e à primeira vista, um tratamento crítico da lenda. A crítica
desenvolvida por Procópio não visa nenhuma narrativa mítica em si mesma. No
entanto, o fato de ele resolver a questão da malignidade de Justiniano, afirmando
que o imperador e Teodora seriam demônios, não deixa de ser uma forma de
apropriação mítica, pois o historiador não poderia encontrar tal afirmação em
217
Ibid p.123
113
A fusão de estilos propriamente, como foi possível ver, não se faz presente
nas Anékdota, não há a presença de “gêneros intercalados”, a narrativa não se
compõe da mescla de “cartas, manuscritos encontrados [e] diálogos relatados”.
Procópio não reproduz os diálogos de suas personagens, tampouco reproduz
documentos ou interrompe a narrativa com versos, mas utiliza ininterruptamente a
prosa. Além disso, as Anékdota não são uma paródia, visto que esta se define por:
“[...] ridicularizar uma tendência ou um estilo que, por qualquer motivo, se torna
219
apreciado ou dominante ”. O objetivo do autor é criticar o reinado de
Justiniano, mas não está em questão ridicularizar a História como gênero em si.
Mas o fato de não intercalar gêneros de forma direta — cartas, manuscritos,
diálogos, paródias — não exclui por completo as Anékdota da terceira
peculiaridade. Como foi possível constatar diversas vezes, sobretudo quando nos
utilizamos dos conceitos de Auerbach, “a pluralidade de estilos” está nitidamente
marcada nas Anékdota, é suficiente que nos lembremos que aos padrões
historiográficos clássicos misturam-se a comicidade da descrição exagerada e a
demonologia cristã.
218
Idem
219
Moisés, Massaud: Dicionário de Termos Literários, 2004. p. 340
114
é chegada a hora de seguir por um dos seus ramos. Pretendemos afinar ainda mais
o nosso olhar e nos enveredar por aquele gênero que parece possuir mais pontos
em comum com o texto do historiador de Cesareia.
4.3.2.
A Sátira Menipeia
220
SAÏD, Suzanne et allii: Histoire de la littérature grecque. 2004. p. 369
221
Idem
115
filosófica. Para Rey222, viria do adjetivo κυνικóς (kynikós), que significa “relativo
aos cães”, que, por sua vez, procede do substantivo κύων, κυνóς (kýon, kynós),
cão. Daí poderíamos concluir que a praça e o ginásio receberam o nome em
referência ao animal, haja vista que os cínicos defendiam que os seres humanos
deveriam viver com a mesma espontaneidade dos cães ou, então, o nome da praça
já fazia referência a um cão branco, e a associação com as ideias cínicas logo se
fez patente. Seja como for o importante é assinalar a mais completa desenvoltura
das restrições impostas pela sociedade, optando pela busca da mais completa
naturalidade que, muitas vezes, poderia beirar o grotesco, visto que a imagem do
filósofo cínico é do homem “[...] que usa barba, cabelos compridos e sujos, anda
com os pés nus e não se separa do seu casaco (tribôn) imundo. Come, urina,
masturba-se e se une sexualmente com sua companheira em público.223” Para
Brisson224, a raridade dos documentos concernentes aos cínicos deve-se
especialmente à própria natureza de seu pensamento, o que fez com que poucos de
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222
REY, Alain (direc.) Dictionnaire Historique de la Langue Française, 2006. (vol. I) p.982
223
BRISSON, Luc: “Cynisme” in Dictionnaire de l’Antiquité. p. 608
224
Idem p. 607
225
Gadara é a atual cidade de Umm Qeis na Jordânia.
226
Olbia atualmente é uma cidade da Ucrânia.
227
Boristênide é o nome com que os gregos antigos denominavam o rio Dnieper.
228
Saïd, Suzanne et allii: Histoire de la littérature grecque. 2004. p. 370
116
seus expoentes com: Varrão (116-27 a.C), que escreveu as suas Saturae
Menippea, estas misturam o verso, a prosa e diálogos; Sêneca, com a
Apocolocyntosis divi Claudii; Luciano de Samósata, que viveu e no século II,
com o Mortuorum Dialogi (Diálogo dos Mortos), em que representa o próprio
Menipo como uma das suas personagens. Segundo Saïd:
229
idem
230
Bakhtin lista e enumera quatorze particularidades fundamentais da Sátira Menipeia. Destas
citamos, conforme a numeração do autor, as de número: 1; 4; 9;10; e 14. No entanto, para simples
efeito didático a numeração em romano entre colchetes que aparece no texto é nossa.
231
Bakhtin, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski, 2013. p.p. 129-130
117
232
Ibid p.131
233
Ibid p.134
118
contrastes na própria forma como o assunto da obra se apresenta, isto é, uma hagiografia
ao contrário. Não é a vida de um santo que é narrada, mas sim a de um demônio. No que
concerne às personagens, esses constastes não se fazem menos significativos. Temos:
Justino, o imperador plebeu; Justiniano, o imperador que deveria ser semelhante a Cristo,
mas na verdade é um demônio; Teodora, a Imperatriz prostituta; Belizário, o general que
é covarde; Antonina a esposa do poderoso general que na verdade o manipula. Procópio
está a todo tempo mostrando o reinado de Justiniano como a mais completa inversão de
valores: as virtudes se tornam vícios, os funcionários são escolhidos não por suas
qualidades positivas, mas sim pela capacidade em fazer o mal.
234
Idem p.134
119
O caráter publicista das Anékdota foi bem percebido por Kaldellis quando
afirma que “nesse denso panfleto de bastidores, ele [Procópio] astuciosamente
combina os papéis que hoje em dia estão divididos entre os repórteres de
tabloides, jornalistas investigativos, intelectuais públicos [...]”. As Anékdota
possuem um marcante caráter panfletário e Procópio parece que agrupou os mais
diversos boatos que escutou ao longo de suas vida como alto funcionário e, ainda
que seu propósito fosse de publicar as Anékdota somente após a sua morte, sua
crítica refere-se integralmente à sua atualidade, aos problemas que imediatamente
o circundavam.
Anékdota não são uma sátira no sentido pleno do termo. Para Highet, um dos
principais traços definidores da sátira é “[...] criticar e desvalorizar a vida humana,
mas fing[indo] contar toda a verdade e nada mais do que a verdade”. Esse traço
poderia nos levar a caracterizar as Anékdota como uma sátira tout court. É bem
verdade, como já foi vist em vários momentos, que Procópio afirma várias vezes a
absoluta verdade das suas informações. Mas, ainda que a sátira também afirme a
veracidade do que narra, seu principal objetivo é criticar através da ironia e do
deboche, mas não se preocupa em trazer informações detalhadas de ordem
política, administrativa ou militar. A sátira trabalha com essas informações de
modo cômico.
235
Idem p. 135.
120
5.1.
O “tribunal de Cristo” ou a vigilância interior
Michel Rouche236
236
ROUCHE, Michel: “Alta Idade Média” in História da Vida Privada. 2010. Tradução:
Hildegard Feist. p.503
237
Atos dos Apóstolos (9:4)
238
Ibid (9:5)
122
palavras: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade e te
dirão o que deves fazer”239.
em princípio e essência, não pode ser considerada um ato coletivo. É preciso que
cada indivíduo, tal qual São Paulo, passe por uma experiência particular para que
possa se transformar. Estamos diante de um importante traço que se situa na base
da fé cristã e que irá modelar sua mundividência. A conversão exige um
aprofundamento do que é pessoal, trata-se de um trabalho interior que é
desencadeado por um evento específico a cada um. Ora, não é isso que vemos ao
longo dos Evangelhos, uma sucessão de conversões que se dão em situações que
relacionam diretamente ao contexto da vida de cada um dos conversos? Temos a
sensação de que na narrativa cristã a divindade opera uma modificação profunda.
Mas essa modificação parece não ser imposta pela divindade, a conversão cristã
parte de um ato de visão interior do próprio fiel. O divino parece manifestar-se
não para insuflar, mas para iluminar e apontar o novo caminho. Assim, no relato
do Ato dos Apóstolos, não lemos nada que se assemelhe às tradicionais descrições
homéricas de deuses que insuflam vontades e inspirações nos homens.
239
Ibid (9:6)
123
240
Ato dos Apóstolos (9:10-16)
124
Santo Agostinho é transcendente, mas é a partir do seu ato de pagar o livro e lê-lo
que o processo interior será desencadeado.
rendia-lhe um culto! Cada povo, dizia-se, “havia” seus deuses, cada indivíduo
podia ter os seus (theous nomizein). (A tradução é nossa) (Os grifos são nossos)241
moral. O cristão deve a todo tempo policiar-se, pois há uma força superior única
que a tudo domina e que exige de cada indivíduo um cultivo diário de palavras e
atos. É Veyne que também nos explica: “Com o cristianismo [...] a moral é
ordenada por Deus (e não pelo costume). É este último que dita regras absolutas
que não conhecem derrogação. A moral cristã não consiste em ensinar o que se
faz, mas fazer o que Deus quer.242”.
241
“Sur ce point, le christianisme se distinguait par un trait encore plus accusé : c’était une
réligion à profession de foi. Il ne suffisait pas d’être chrétien, il fallait se dire chrétien, le
professer, car on y avait avec Dieu (comme dans le judaïsme et les Psaumes) une relation
personelle qu’ignorait le paganisme ; on endurait le martyre pour ne pas renier sa foi. Un païen
ne professait rien, ne disait pas croire à ses dieux : il allait sans dire qu’il y croyait, puisqu’il leur
rendait un culte ! Chaque peuple, disait-on, ‘avait’ ses dieux à lui, chaque individu pouvait ‘avoir’
les siens (theous nomizein)”VEYNE, Paul :Quand notre monde est devenu chrétien (312-394),
2007, p. 69-70
242
VEYNE, 2005, p.94.
126
243
“Après la victoire Du Pont Milvius, lês païens pouvaient supposer qu’envers le dieu qui lui
avait donné la victoire Constantin aurait la même attitude que ses prédécesseurs : après la victoire
à Actium sur Antoine et Cléopâtre, Auguste avait payé sa dette à Apollon en lui consacrant,
comme on sait, un sanctuaire et un culte local. Or le chrisme qui figurait sur les boucliers de
l’armée constantinienne signifiait que la victoire avait été remportée grâce au dieu des chrétiens.
C’était méconnaître qu’entre ce Dieu et ses créatures le rapport était permanent, passionné, mutuel
et intime, tandis qu’entre la race humaine et la race des dieux païens, qui vivaient surtout pour eux-
même, les rélations étaient pour ainsi dire internationales, contractuelles et occasionnelles ;
Apollon n’avait pas pris les devants envers Auguste, qui s’était adressé à lui, et ne lui avait pas dit
de vaincre sous son signe” VEYNE, Paul :Quand notre monde est devenu chrétien (312-394),
2007, p. 17-18
127
este conduzira seu ser ao longo de toda sua existência enquanto pessoa. Tal
aspecto foi bem apreendido por Hanna Arendt:
Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a experiência comum de um
mundo em declínio, talvez moribundo; e a “a boa nova” do cristianismo, em seus
aspectos escatológicos, era suficientemente clara: a você, que acreditou que os
homens morrem mas o mundo é perene, basta converter-se à fé de que o mundo
chega a um fim, mas você mesmo terá a vida eterna. Assim é claro, a questão
da “justiça”, isto é, de merecer essa vida eterna, ganha importância
pessoal completamente nova244. (Os grifos são nossos)
chegar era justificar um dos seus atos como a vontade de certo deus ou, no
máximo, a vontade dos deuses, mas nada asseguraria que o consenso formado por
tais deuses, algum dia, não viesse a se desfazer devido a antagonismos divinos.
244
ARENDT, Hanna: A Vida do Espírito, 2010. p.328.
245
2 Coríntios (5:10)
128
seu meio não perdoam à esposa de Justiniano é ser uma mulher independente, que
toma iniciativas, que longe de ser submissa, submete o marido[...]”247. Nada mais
contrário às palavras de São Paulo na Epístola aos Efésios: “Como a Igreja está
sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos maridos”248.
246
COLLINGWOOD: A Ideia de História, 2001, p.73
247
MARAVAL, Pierre « introduction » In CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète.2009, p.19
248
Efésios, Bíblia de Jerusalém (5:24).
129
A ideia do santo homem que impunha respeito aos demônios e que fazia ceder a
vontade de Deus por suas orações acaba por dominar a sociedade da antiguidade
tardia. Por vários aspectos, esse conceito é tão novo quanto a sociedade que o
engendrou. Pois ele coloca um homem, um “homem de poder”, no centro da
imaginação popular249. (A tradução é nossa)
249
BROWN, Peter: La Toge et la Mitre : le monde de l’antiquité tardive. p.96
130
como tais e tampouco ascenderam a tal posição por seus méritos e virtudes.
Independente da qualidade de suas ações, sempre serão criaturas imortais. Os
heróis também se diferenciam nitidamente dos santos, ainda que sejam mortais,
eles são criaturas de um tempo pretérito e de contornos bem definidos. Basta que
nos lembremos do que diz o poeta beócio ao escrever que Zeus teria feito
250
“ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος” , “clã de homens divinos heróis”. Os heróis não
nascem do povo, mergulham suas linhagens em tempos imemoriais e, ainda que
não possam fugir da morte, corre em suas veias o sangue dos deuses, pois deles
descendem. A fronteira entre os heróis e o vulgo faz-se clara no episódio da
Ilíada, quando a obscura massa anônima de soldados parece tentar, pela única vez,
manifestar-se. Referimos, como bem se sabe, ao célebre episódio da assembleia
dos aqueus, em que Tersites, o homem do povo, ousa proferir fortes palavras a
Agamémnon, diante da aristocracia aqueia. A Tersites resta unicamente a
repreensão de Ulisses: “Não queiras entrar sozinho em conflito com reis. Pois eu
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afirmo que não há criatura mortal mais abjeta que tu [...]”251. E continua o herói de
muitos ardis, ressaltando ainda mais a fronteira instransponível à qual fazemos
alusão: “Por isso não devias andar com nomes dos reis na boca [...]”252” e faz com
que Tersites volte ao seu lugar, castigando-o com objeto de inequívoco poder
simbólico, um cetro de ouro: “Logo lhe apareceu nas costas um inchaço
ensanguentado, sob o cetro de ouro. Mas sentou-se amedrontado; e cheio de
dores, com expressão desesperada, limpou as lágrimas. ”253 .
Já a santidade não é atributo de uma era mítica, não é apanágio das gentes
de mais nobre cepa. Que nos diga a fonte por excelência da mensagem cristã, os
Evangelhos, onde encontramos uma coorte de personagens humildes e
estigmatizados socialmente ― pescadores, samaritanos, leprosos e prostitutas ― a
quem o Cristo dirige especialmente suas palavras, sendo ele mesmo, ainda que
pertencente à casa de David, nascido em uma estrebaria e filho de um carpinteiro.
250
HESÍODO: Trabalhos e Dias (v.159)
251
HOMERO: Ilíada, (II: 248-249). p.55
252
Idem (II: 250)
253
Idem (II: 266-267)
131
254
EYLER, Flávia Schlee: História Antiga, Grécia e Roma: A formação do Ocidente. p.47
132
Não quero dizer que Procópio não faça severas críticas relacionadas a
virtus política de Justiniano ― virtus que, diga-se de passagem, na opinião de
Procópio, é totalmente inexistente na pessoa desse imperador. Essas críticas
fazem-se mais do que presentes. Mas Procópio de Cesareia mescla essas críticas
com ataques pessoais de uma intensidade inaudita e a justificativa que dá para a
origem de todos esses males é algo que não se encontra na realidade terrena. A
origem, no final das contas, está em um plano religioso, pois o mau imperador e a
perversa imperatriz nada mais são do que demônios. Aí estaria a explicação do
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mau governo. Ousaria dizer que para Procópio o vício não é a causa dos males, na
verdade eles são o resultado de interferência de forças demoníacas. Os
argumentos persuasivos são de outra ordem, caso façamos uma comparação com a
argumentação da Antiguidade Clássica. Talvez, o estranhamento sentido pelo
historiador italiano em relação à mais polêmica das obras de Procópio de Cesareia
― como acabamos de ver algumas linhas acima255― se dê por esta ser a
expressão do limiar de dois mundos. As Anékdota são, de alguma forma, ―
acreditamos nós ― o reflexo da maneira cristã de perceber o mau governo. Os
erros de Justiniano são, antes de tudo, pecados, não são mais a hýbris, a
desmedida dos antigos.
Não estamos a dizer que a Antiguidade pagã não possuíra textos em que
homens e mulheres eram difamados. Sim, eles existiram, mas o que está em jogo
aqui é o que poderíamos denominar de economia crítica, ou seja, a forma, a
ênfase como a difamação se estrutura. As críticas configuradas por Procópio a
Justiniano, Teodora e sua corte como um todo, são críticas de alguém que enxerga
a partir do prisma da constante vigilância que o cristianismo impusera a seus fiéis.
255
Cf. MOMIGLIANO, 1983: 65
133
256
MARAVAL, 2009: 11
257
MOMIGLIANO, 1983: 65
134
5.2.
A hýbris e o pecado
Ainda que acredite que tal asserção é válida, necessário será enfrentar a
objeção que provavelmente poderá ser levantada a essa leitura. A objeção à qual
me refiro é que a vida dos imperadores já havia sido exposta. Suas misérias
morais já haviam sido apresentadas à luz através do cálamo de alguns
historiadores que, com um repúdio quase que entrecortado por arroubos de prazer,
não se furtaram em descrever os detalhes dos vícios. As Anékdota nos fazem
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lembrar alguns textos da Antiguidade que enveredam por essas sendas. Por
exemplo, o retrato do imperador romano Calígula que nos é apresentado por
Suetônio. Ora, estamos a falar de contextos muito distintos, a vida de Suetônio
transcorreu entre meados do primeiro século até os princípios do segundo século
da era cristã, isto é, muito distante do triunfo do cristianismo e de seus valores.
Procópio escreveria sua obra em outra realidade histórica, tratava-se de um cristão
do século VI.
Não poupou nem o seu próprio pudor nem o pudor alheio. Conta-se que Marco
Lépido Mnester, o pantomimo., e alguns reféns foram objeto da sua paixão, e que
manteve com eles comércio infame. Valério Catulo, jovem pertencente a uma
família consular, censurou-o, mesmo, em voz alta, dizendo que ele o maculara, e
que tinha os flancos esgotados pelo seu comércio com Calígula. Sem falar dos
seus incestos com as irmãs e do seu amor, tão conhecido, pela Prostituta Pirralis,
não houve uma só mulher, por ilustre que fosse, que ele não desrespeitasse. As
mais das vezes convidava-as para jantar com os maridos e, quando passavam
diante dele, examinava-as atentamente, com lentidão, à maneira dos mercadores
135
extraordinária, com rapidez incrível, pois atraso que houvesse era castigado com
a morte. E, para não descer a pormenores, devorou, em menos de um ano, somas
enormes e todo esse fabuloso tesouro de Tibério, que ascendia a dois bilhões e
setecentos milhões de sestércios.
Ainda que acreditemos que a forma como Procópio de Cesareia faça sua
crítica ― isto é: uma especial atenção aos mais particulares e íntimos pecados de
suas personagens ― possa ser considerada uma marca da visão de mundo cristã,
de um aprofundamento da interioridade, temos que concordar que é um traço
muito sutil. Entretanto, há uma característica nas Anékdota que pode nos conduzir
por caminhos mais seguros no que concerne à interpretação dessa obra como
essencialmente marcada pela noção cristã de pecado.
5.3.
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Além disso, o divino para gregos e romanos não estava fora da φύσις
(phýsis). Os deuses são criaturas imortais, mais fortes e poderosas do que os
Homens seguramente, porém todos se originaram do mesmo caos primevo. O
Deus hebreu, que mais tarde também será o Deus cristão, está fora do tempo, é
“alfa e ômega”, princípio e fim; a existência da qual os seres humanos fazem parte
faz-se simples e unicamente graças a sua vontade.
vestígio criacional sua presença já reinava absoluta e triunfante. Não nos é dado a
conhecer a origem divina, pois esta é intrinsecamente infinita, logo, jamais teve
um começo porque sempre existiu. Não se pode falar de uma origem de Deus,
visto que Ele já existia antes do tempo. Um começo e um fim só são possíveis
quando há a passagem do tempo, e o tempo só passa a existir pela vontade do
Deus bíblico. A cosmogonia grega diferencia-se de forma patente. Por tal,
podemos dizer que a visão bíblica do divino concebe Deus como o único e
possível fundador da existência.
258
Pour notre démonstrations, traçons au tableau un cercle, qui représentera le monde selon le
christianisme : par son importance, l’homme en sera la moitié. Et Dieu ? Il est si haut et si
sublime qu’il restera très au-dessus du tableau. Nous nous contenterons de faire partir du cercle
une flèche pontant vers le haut et nous écrirons à côté d’elle le signe de l’infini. Passons au monde
selon le paganisme : dessinons un carré divisé en quatre bandes horizontales, une sorte d’escalier
à quatre degrés. La bande inférieur sera le monde inanimé, ou plutôt immobile : pierres et
plantes ; le degré au-dessus sera pour les animaux ; l’avant dernière marche sera pour les
hommes ; le degré le plus haut sera celui des dieux. Conséquence : le passage des dieux aux
hommes est une simple question de degré. Pour devenir dieu point n’est besoin de s’évader très
au-delà du monde : les dieux sont tout juste au-dessus des hommes sur l’échelle des habitants de
l’univers. On peut dire légitimement qu’un dieu n’est rien de plus qu’n surhomme. Aussi bien, en
latin ou en grec, a-t-on intérêt à traduire « divin » par « surhumain ». Nous comprenons alors
bien des choses. VEYNE : Sexe et pouvoir à Rome. p.60-61
259
Gênesis 1.
138
260
“espaço aberto”, “abismo”, “garganta funda” . Como diz Vernant em relação
aos Deuses gregos:
Esses deuses múltiplos estão no mundo e dele fazem parte. Não o criaram por um
ato que, no caso do deus único, marca a completa transcendência deste em relação
a uma obra cuja existência deriva e depende inteiramente dele. Os deuses
nasceram do mundo. A geração daqueles aos quais os gregos prestam um culto, os
olimpianos, veio à luz ao mesmo tempo que o universo, diferenciando-se e
ordenando-se, assumia sua forma definitiva de cosmos organizado. Esse processo
de gênese operou-se a partir de Potências primordiais, como Vazio (Cháos) e
Terra (Gaîa), das quais saíram, ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, o
mundo, tal como os humanos que habitam uma parte dele podem contemplá-lo, e
os deuses, que a ele presidem invisíveis em sua morada celeste.261
5.4.
O Príncipe dos demônios
presença de uma força do mal que intervém no curso da história e, por isso
mesmo, de essencial importância para compreendermos o caráter cristão que
perpassa a obra.
260
A respeito do significado da palavra Chaos em grego cita-se aqui: “O grego diz Chaos, não com
a noção que tem para nós de “desordem”, e consagarada a partir de autores latinos como Ouvídio
(Metamorfoses, 1.5-7), mas provavelmente de um “espaço aberto” preexistente [...] o Chaos ligar-
se-ia ao verbo chaskein, “abrir a boca para gritar”, pelo que poderia ser entendido como um
‘abismo’ ou ‘garganta funda’ anterior tudo quanto nele se veio a desenvolver [...].” PINHEIRO,
Ana Elias e FERREIRA, José Ribeiro in Hesíodo: Teogonia
261
VERNANT, Jean-Pierre: Mito e Religião na Grécia Antiga, p.6-7
139
14. É por isso que, para mim mesmo assim como para a maioria de nós, essas
gentes jamais deram a impressão de serem homens, mas demônios sujos de
sangue e, como dizem os poetas, “funestos aos mortais”, que haviam decidido
conjuntamente destruir todas as raças e todas as obras humanas tão fácil e
rapidamente quantos fossem capazes. Ao se terem incorporado em uma forma
mortal e ao se tornarem homens-demônios, atazanaram dessa maneira o mundo
inteiro. 15. Pode-se dar a prova de tal afirmação de várias formas, entre outras
quando se considera o poder das suas ações. Os demônios de fato se distinguem
dos homens por uma grande diferença. 16. Muitos homens, é certo, existiram
durante o curso das épocas que, por acidente ou por natureza, mostraram-se
terríveis, no mais elevado grau, arruinando só com o seu poder algumas cidades,
outros, regiões, ou realizando alguma outra ação semelhante, mas ninguém,
senão esses dois personagens, foram capazes de produzir a perda de todos os
homens e a infelicidade de toda a terra. É verdade que o destino veio auxiliá-los
nesse projeto contribuíndo para a destruição dos homens. 17. Com sismos,
pestes, inundações, houve nesses tempos destruições consideráveis, como vou
contar agora. Por isso, não é através de uma potência humana, mas por outra que
eles realizaram essas terríveis ações.262 (A tradução é nossa)
262
“C’est pourquoi, à moi-même comme à la plupart d’entre nous, ces gens n’ont jamais donné
l’impression d’être des hommes, mais des démons souillés de sang et, comme le dissent les poètes,
‘funestes aux mortels’, qui avaient décidé de concert de détruire toutes les races et toutes les
oeuvres humaines aussi aisément et rapidement qu’ils en étaient capables. S’étant enveloppés
d’une forme mortelle et étant devenus des hommes-démons, ils bouleversèrent de cette façon le
monde entier. On peut donner la prévue d’une telle affirmation de bien des façons, entre autres en
considérant le pouvoir de leurs actions. Les démons en effet se distinguent des hommes par une
grande différence. Beaucoup d’hommes, certes ont existé Durant la suite des âges qui, par
accicent ou par nature, se sont montrés redoutables au plus haut dégrée, ruinant par leur seul
140
Para nosso autor, os males que teriam sido causados pelo casal imperial,
por serem de tamanha grandeza, só poderiam ter sido cometidos por terrível força
sobrenatural. Tal constatação serviria para endossar a afirmação que perpassa toda
sua obra, como sabemos, o caráter demoníaco dos governantes do império. A
relação que se estabelece entre a grandeza de como os males se dão e a concepção
cristã do demônio é intrínseca. Lembremos que os demônios são os anjos
decaídos, justamente por desejarem rivalizar com Deus. Se a obra da Criação é
algo que extrapola qualquer feito humano, dando-se no plano de forças
incontroláveis à ação humana, as tentativas de equiparação do demónio a Deus
também acontecerão nessa esfera. É o que podemos constatar quando Procópio
nos fala de “sismos, pestes e inundações.” Segundo a tradição cristã, o Verbo
Divino é o criador natureza e o demônio seria o seu constante rival. Rival este que
aplicaria suas forças em uma constante tentativa de desvirtuar e contrariar a
vontade absoluta de Deus e, por isso mesmo, seus intentos poderiam ocorrer em
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Contam que sua mãe teria dito a alguns de seus íntimos que ele não era filho de
seu marido Sabbatios nem de nenhum homem. Pois, no momento em que ia
concebê-lo, um demônio a visitara. Ela não o vira, mas teve a impressão da sua
presença junto dela, da mesma forma que quando um homem tem comércio com
uma mulher, antes de desaparecer como se estivesse em um sonho. // Alguns
daqueles que viviam com ele encontravam-se no palácio já tarde da noite,
pessoas de alma pura, acreditaram ver em seu lugar uma espécie de fantasma, um
demônio que não lhes era familiar. Um deles narrou que ele levantava-se
repentinamente do trono imperial e passeava de um lado para o outro ― não
tinha o hábito de permanecer sentado por muito tempo. Mas a cabeça de
Justiniano desaparecia subitamente e o resto do seu corpo parecia realizar esses
grandes passeios, enquanto que ele próprio [o que narrara os fatos], como se não
pudesse acreditar no testemunho de seus olhos, permanecia estático, inquieto e
perplexo. Depois, quando a cabeça voltava para o corpo, as partes que faltavam
pareciam-lhe, de maneira surpreendente, se terem juntado. // Outro dizia que,
estando perto dele quando estava sentado, via de repente seu rosto ficar
semelhante a uma carne indistinta: sem sobrancelhas, sem olhos e sem qualquer
pouvoir les un des villes, les autres des régions, ou accomplissant quelque autre action semblable,
mais personne, sinon ces deux personnages, ne fut capable de réaliser la perte de tous les hommes
et de produire des malheurs pour la terre entière. Il est vrai que le destin vint en aide à leurs
projets en contribuant ä la destruction des hommes. Par des séismes, des pestes, des inondations,
il eut en ce temps-là des destructions considérable, comme je vais raconteur maintenant. Ainsi ce
n’est pas par une puissance” humaine, mais par une autre qu’ils accomplirent de terribles
actions.” Cesareia, Procopio de : Anékdota” (XII: 14-17). p. 76
141
263
“On dit que sa mère aurait dit à quelques-uns de ses intimes qu’il n’était pas le fils de son mari
Sabbatios ni d’aucun homme. Car au moment où elle allait le concevoir, un démon l´avait visitée.
Elle ne l´avait pas vu, mais il lui avait donné l’impression de sa présence auprès d´elle comme
lorsqu’un home a commerce avec une femme, avant de disparaitre comme en songe. // Quelques-
uns de ceux qui vivaient auprès de lui et, tard dans la nuit, se trouvaient avec lui dans le palais,
des gens à l’âme pure, crurent voir à sa place une sorte de fantôme, un démon qui ne leur était pas
familier. L’un rapportait qu’il se levait soudain du trône impérial et se promenait de ci de là — il
n’y avait pas l’habitude de rester assis très longtemps Mais la tête de Justinien disparaissait
subitement et le reste de son corps semblait faire ces grandes promenades, pendant que lui-même,
comme s’il ne pouvait en croire le témoignage de ses yeux, restait, restait longuement sur place,
inquiet et perplexe. Ensuite, lorsque la tête était revenue sur le corps, les parties manquantes lui
paraissaient, de manière surprenante, s’être ajoutées // Un autre disait que, se tenant près de lui
quand il était assis, il voyait soudain son visage devenir semblable à une chair indistincte : il n’y
avait ni les sourcils, ni les yeux à leur place et n’avait absolument aucun autre trait distinctif.
Après un moment pourtant, on pouvait À nouveau distinguer l’aspect de ses traits. Cela, je l’écris
sans l’avoir moi-même, mais je l’ai entendu dire de ceux qui avaient l’occasion de le voir. // On
raconte qu’un moine, un grand ami de die convaincu par ceux qui vivaient avec lui dans le désert,
fut envoyé à Byzance pour plaider la cause de gens résidant dans leur voisinage, qui étaient
maltraités et avaient à souffrir d’une manière intolérable. Arrivé là, il obtint aussitôt d’accéder
auprès de l’empereur. Alors qu’il s’apprêtait à venir en sa présence, il franchit le seuil d’un seul
pied, mais revenant soudain sur ses pas, il repartit en arrière. L’eunuque qui le conduisait et ceux
qui étaient là présents priaient l’homme avec insistance d’aller de l’avant, mais lui, sans rien
répondre et comme s’il avait reçu un coup, revint de là dans la maison où il était descendu.
Comme ceux qui l’accompagnaient lui demandaient pourquoi il avait fait cela, il déclara, dit-on,
qu’il avait vu en face le prince des démons assis sur le trône dans le palais, et qu’il ne voulait ni le
rencontrer, ni lui demander quelque chose.”
264
Houaiss p.211
142
Toda crítica é uma excelente forma de acesso ao mundo daquele que emite
a crítica. Denunciar é também dizer os valores sobre os quais repousam a nossa
visão de mundo. Por que voltar a atenção para “x” e não para “y”? Por que
denunciar e criticar alguém e não outrem? É porque consideramos o alvo de nossa
146
do demônio, podemos supor que o recurso a tal imagem fazia sentido em sua
sociedade. É através desse jogo inverso que fomos levados a perceber os valores
que estavam em jogo na sociedade em Procópio redigiu seus texto. E concluímos
que eram valores que se relacionavam eminentemente com o cristianismo. Toda
sociedade possui seus parâmetros críticos e seu repertório de imagens — não
menos reveladoras dessa mesma sociedade — que são empregados quando
denúncias, críticas e invectivas são tecidas, pois eles são a expressão dos valores e
da mundividência mais profunda de qualquer grupo humano. Ousaríamos dizer
que, direta ou indiretamente, os ecos desses parâmetros e imagens das Anékdota
ainda se fazem sentir em nossa sociedade atual, talvez seja por isso que refletir
sobre as Anékdota é refletir sobre um mundo distante, mas paradoxalmente tão
próximo, e de mesmos.
AUERBACH, Erich: Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. (4ª edição)
CESAREA, Procopio de: Historia de las guerras libros V-VI: Guerra Gotica
Introdução, tradução e notas de Francisco Antonio García Romero Biblioteca
Clásica Gredos. Madri: Gredos, 2007.
CESAREA, Procopio de: Historia de las guerras: libros I-II Guerra Persa.
Introdução, tradução e notas de Francisco Antonio García Romero. Biblioteca
Clásica Gredos. Madrid: Gredos, 2000.
DUFFY, Eamon: Santos e Pecadores. Trad. Luiz Antônio Araújo. São Paulo:
Cosac & Naify, 2000.
OZOUF, Mona : Varennes : La mort de la royauté (21 juin 1791). 2005. Paris,
Gallimard, 2005.
ANÉKDOTA
OU
HISTÓRIA SECRETA
DE PROCÓPIO
Por
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Ernest Renan
por
Victor Villon
19 de julho de 1857
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aos bárbaros. Resoluto em criticar tudo, ele não desejava que se pactuasse com os
inimigos de fora, e achava ruim que cobrassem impostos para combatê-los. Só
pensar nos bárbaros o impacientava e retirava-lhe o senso; acreditava que
fechando os olhos afastava os perigos que ameaçavam a ordem social em que se
comprazia.
sacrificam seu orgulho para permanecer nos negócios. Depois, eles se vingam da
humilhação com desdenho de fidalgo e com injusta severidade. É essa, confesso, a
objeção que sempre estive tentado a fazer a Saint-Simon. Se seu século era tão
mal como dizeis, se a estada na corte era tão humilhante, porque aí ficastes? Digo
o mesmo de Procópio. Quando o sábio, que aceitou a obscuridade sem tristeza,
desvela as fraquezas de seu século, acredito nele de bom grado. Mas um senador
descontente que vem se queixar das humilhações que suportou, difamar o senhor
ao qual serviu, dizer suas queixas porque esperou ser recebido entre os lacaios,
porque um dos seus amigos foi ridicularizado pelos eunucos, porque um dia a
imperatriz o recebeu de uma maneira rápida no meio de um bando de solicitantes,
uma tal crítica para mim é um testemunho suspeito. Prova em um sentido geral
contra o governo que o empregou, pois o próprio dos maus governos é humilhar
aqueles que os servem; mas ele merece pouca confiança, pois o rancor mais
implacável é aquele do orgulho ferido, e o homem que menos perdoa em seu
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indivíduo comum; mas nos governos absolutos o gosto dos soberanos não é coisa
indiferente, não é permitido àquele de quem as preferências são leis possuir esse
tipo de literaturas que lhe agrada. A tolice encorajada pelo imperador fez enormes
progressos. Para o cúmulo da infelicidade, ele resultou em um gosto desenfreado
de controvérsias teológicas. Espírito reto e absoluto, Justiniano acreditava
seriamente ter razão nesse tipo de matéria, e derramou por insignificantes
subtilidades torrentes de sangue. A Ásia Menor, a mais bela região do mundo,
tornou-se um deserto. Pode-se dizer sem exagero que nenhum soberano, nem
mesmo Filipe II, ordenou tantos suplícios por suas razões religiosas. Severo,
consciencioso à sua maneira, trouxe para a religião a ferocidade da lei antiga e a
sombria devoção do perseguidor laico.
dos grandes jurisconsultos está próxima a desaparecer. É certo, pelo menos, que
as épocas de codificação não são sempre as mais bem dotadas de amor pela justiça
e de sentimento moral. Jamais as instituições verdadeiramente políticas saíram de
instituições judiciárias. Os magistrados, excelentes conservadores de algumas das
garantias sociais, não sabem nem um pouco fundar as garantias políticas
tampouco a liberdade.
Sem ser tão mal como gostaria Procópio, o século de Justiniano foi na
realidade um século abominável. Sem ser demônios com rosto humano, Justiniano
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e Teodora foram soberanos muito ruins. A História Secreta fosse ela uma mentira
de uma ponta a outra, sua existência sozinha seria uma prova documental
irrefutável; pois, para que o ódio não tenha podido se satisfazer sem esse enorme
refinamento de malícia, para que tenha chegado a esse medonho grau de
concentração, foi preciso um despotismo verdadeiramente inaudito. Justiniano
pode não ser culpado de todos os delitos dos quais o panfleto de Procópio o acusa:
mas é culpado do aviltamento das almas e do servilismo que supõe essa obra
prima do rancor e de hipocrisia. A verdade comprimida vinga-se pela calúnia: ela
tem culpa sem dúvida: a perfeita sabedoria gostaria que fossemos justos com
todos. Mas de quem é o erro? Daqueles que, suprimindo a liberdade, confessaram
que tinham algo a esconder; daqueles que, falsificando a opinião, prestaram a
aprovação suspeita e o mal só crível. A História Secreta é o castigo daqueles: a
mentira do ódio serve de resposta à mentira da adulação. Havia um meio bem
simples de prevenir um e outro, o respeito aos caracteres e à liberdade!
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