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Victor Ribeiro Villon

A História em Desconcerto:
As Anékdota de Procópio de Cesareia e a
Antiguidade Tardia

Tese de Doutorado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011847/CA

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.

Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler

Rio de Janeiro
Agosto de 2014
Victor Ribeiro Villon

A História em Desconcerto:
As Anékdota de Procópio de Cesareia e a
Antiguidade Tardia

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do


grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011847/CA

Profª Flávia Maria Schlee Eyler


Orientadora
Departamento de História – PUC-Rio

Profª Dulcileide Virginio do Nascimento


Departamento de Letras Clássicas e Orientais – UERJ

Profª Maria Elizabeth Bueno de Godoy


Departamento de História - USP

Profª Miriam Sutter Medeiros


Departamento de Letras - PUC-Rio

Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues


Departamento de História – PUC-Rio

Profª. Mônica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio

Rio de Janeiro, 07 de agosto de 2014


Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, do autor e da
orientadora.

Victor Ribeiro Villon

É tradutor; graduado em História pela PUC-Rio;


Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

Villon, Victor Ribeiro

A história em desconcerto: as anékdota de


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011847/CA

Procópio de Cesareia e a antiguidade tardia /


Victor Ribeiro Villon ; orientadora: Flávia Maria
Schlee Eylerl. – 2014.
162 f. : il. (color.) ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
História, 2014.
Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. Anékdota. 3. Procópio


de Cesareia. 4. Antiguidade tardia. 5. Cristianismo
e Paganismo. 6. Justiniano imperador. 7. História
bizantina. 8. História grega. 9. Teoria da história.
I. Eyler, Flávia Maria Schlee. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de História. III. Título.

CDD: 900
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À memória do professor Edson Nery da Fonseca


(*6. XII. 1921-†22. VI. 2014)
Agradecimentos

À professora Flávia Schlee Eyler pela orientação, pelo incentivo e por ter sempre
acreditado neste projeto.

Aos professores que aceitaram fazer parte da banca de defesa: Miriam Sutter;
Antonio Edmilson Martins Rodrigues; Dulci Nascimento; Elizabeth Bueno de
Godoy.

Aos professores que aceitaram fazer parte da banca como suplentes: Eunícia
Fernandes e Márcio Luiz Mointinha Ribeiro.

A professora Sílvia Patuzzi, que participou da banca de qualificação desta tese,


por suas inúmeras sugestões.

Aos professores das disciplinas do programa de pós-graduação: Ricardo


Benzaquen, Marcelo Gantus Jasmin. E, também, aos colegas da turma de
doutorado que deram sugestões durante os Seminários de Tese, especialmente, no
que tange o capítulo “Uma Leitura Literária das Anékdota”.
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Aos professores: Berenice Cavalcante; Ilmar Rohloff de Mattos; Isabela


Fernandes; João Masao Kamita; Luiz Reznik; Maísa Mäder; Margarida de Souza
Neves; Marco Antônio Pamplona que acompanharam em diversos momentos o
meu já longo percurso na PUC-Rio.

Ainda na PUC-Rio: à Edna Timbó, secretária da Pós-Graduação, sempre tão


solicita e gentil. Aos outros funcionários do Departamento de História, Anair
Oliveira dos Santos, Claudio Santiago de Araújo, e Cleusa Ventura de Souza
Silva.

Mais do que especialmente às minhas tias Ivanita Villon e Ivone Villon, que com
paciência revisou cada uma destas páginas, a ambas agradeço por todo carinho,
compreensão e apoio incondicional, seguramente posso dizer: sem elas nada seria
possível! Aos meus pais Luci Ribeiro e Victor Villon por todo o carinho, desvelo,
amizade e atenção ao longo de todos esses anos.

Ao Bruno Moreira-Leite por toda a sempre fiel amizade.

A Barbara Cassará por nossas odisseias editoriais.

À Giselle, Karinna e Lívia Marques Câmara, com quem tenho o privilégio e a


sorte de compartilhar uma grande amizade.

Às tão queridas Priscylla Klein e Suellen Napoleão, que conheci nos idos e
saudosos tempos do segundo grau, eternas confidentes e grandes amigas.

Ao querido “trio primordial”: Louise Medeiros Comte Novais, Simone Bernardo


de Castro e Vanessa Crouzet, por toda nossa vasta e inquebrantável amizade.
A Raphaella Perlingeiro que acompanhou e compartilhou, firme e fielmente, as
aventuras e desventuras que circundaram a elaboração desta tese.

A Maria De Simone Ferreira por dividir, ao longo desses anos, as questões


existenciais da vida de mestrando e doutorando.

À Professora Jenny Elfriede Kellner (In memoriam) e a Susanne Khawaja, pela


constante alegria e incentivo.

À Annie Simone Verrier pela amizade, de todos esses anos, que vence as longas
distâncias atlânticas.

À Catherine (Cathy) Viviès, professora que tive a sorte de se transformar em


amiga, e que revisou o Résumé desta tese.

Ao professor Antonio Mattoso pelas aulas de grega e pela indicação bibliográfica


de Bakhtin.

Ao Dr. Nelson Goldenstein, que acompanhou as minhas angústias redacionais,


por suas palavras de encorajamento.
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Ao CNPq que me proporcionou, ao longo de dois anos, bolsa de mestrado para a


realização deste trabalho.
Resumo
Villon, Victor Ribeiro; Eylerl, Flávia Maria Schlee. A história em
desconcerto: as anékdota de Procópio de Cesareia e a antiguidade
tardia. 2014, 162p. Tese de Doutorado – Departamento de História,
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Procópio de Cesareia foi um historiador de expressão grega que viveu no século V.


Sua obra é uma das principais fontes para conhecer a história do reinado do imperador
Justiniano. Ele escreveu três obras: História das Guerras; as Anékdota ou História Secreta;
e Dos Edifícios. Esta tese concerne às Anékdota. Nesse texto, Procópio de Cesareia
pretendeu relatar as causas e os acontecimentos que não pôde dizer nos seus livros de
história oficial. Nas Anékdota, Procópio de Cesareia mostra o imperador Justiniano e sua
mulher Teodora como a encarnação do mal, chegando mesmo a dizer que o casal imperial
seria, em realidade, demônios. Esta tese está dividida nos seguintes capítulos, abaixo
nomeados: “Os Desconcertos de um Texto” - apresentamos a descoberta do manuscrito
das Anékdota no século XVII; por Nicolau Alemmani, na Biblioteca Vaticana, a estrutura e
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os temas que aí são abordados por Procópio de Cesareia; assim como a repercussão que a
publicação das Anékdota desencadeou nos séculos que se seguiram. “A Antiguidade
Tardia”: primeiramente, analisamos o conceito de Antiguidade Tardia e, depois, detemos
nosso olhar, mais especificamente, na época em que Procópio de Cesareia desenvolveu sua
obra. “Uma leitura Literária das Anékdota”: Com o auxílio do instrumental teórico
elaborado pelo crítico literário alemão Ernest Auerbach, tentamos discernir a presença de
características estilísticas cristãs na escrita procopiana. Em um segundo momento, ainda
nesse capítulo, utilizamos também os conceitos do crítico literário russo, Mikhail Bakhtin,
que tratam da Sátira Menipeia, para fazer uma aproximação entre esse gênero e as
Anékdota. “Outono da História Clássica ou Primavera da Mundividência Cristã na
História?”: Nesse último capítulo, mostramos como as Anékdota podem ser percebidas
como uma obra característica desse período de importantes mudanças, a Antiguidade
Tardia. Nesse texto de Procópio de Cesareia, cruzam-se os elementos característicos da
historiografia grega clássica, mas também elementos que compartilham de uma visão de
mundo cristã, logo, as Anékdota nos conduzem a refletir sobre as diferenças entre uma
visão de mundo pagã e uma visão de mundo cristã.
Palavras-Chave
Anékdota ou História Secreta; Procópio de Cesareia; Antiguidade Tardia;
cristianismo e paganismo; Justiniano imperador; História Bizantina; historiografia
grega; Teoria da História.
Resumé
Villon, Victor Ribeiro; Eylerl, Flávia Maria Schlee. (Advisor) L'Histoire
en Dérèglement: Les Anékdota de Procope de Césarée et l'Antiquité
Tardive. 2014, 162p. Tese de Doutorado – Departamento de História,
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Procope de Cesarée fut un historien d'expression grecque qui vécut au Ve siècle.


Son œuvre est une des principales sources pour connaître l'histoire du règne de l'empereur
Justinien. Il écrivit trois ouvrages : Histoire des Guerres; les Anékdota ou Histoire Secrète
; et Les Édifices. Cette thèse concerne les Anékdota. Dans ce texte Procope de Césarée
prétendit rapporter les causes et les événements qu'il ne put pas dire dans ses livres
d'histoire officielle. Dans les Anékdota, Procope montre l'empereur Justinien et sa femme
Thédora comme l'incarnation du mal, il arrive même à dire que le couple impérial serait,
en réalité, des démons. Cette thèse se rencontre divisée dans les chapitres suivants : « Les
Dérèglements d'un Texte » : nous présentons la découverte du manuscrit des Anékdota
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au XVIIe siècle par Nicolas Alemanni dans la Bibliothèque Vaticane ; la structure et les
thèmes abordés par l’auteur ; ainsi que la répercussion que la publication des Anékdota
déclencha dans les siècles qui se suivirent. « L'Antiquité Tardive » : D'abord, nous
analysons le concept d'Antiquité Tardive et ensuite, nous arrêterons plus spécifiquement
notre regard sur la période dans laquelle Procope de Cesarée écrivit son œuvre. «Une
lecture littéraire des Anékdota » : À l'appui des concepts élaborés par le critique
littéraire allemand Ernest Auerbach, nous essayons de déceler la présence des
caractéristiques stylistiques chrétiennes dans l'écriture procopienne. Dans un second
moment, dans ce même chapitre, nous utilisons les concepts du critique littéraire russe
Bakhtin, concernant la Satyre Menipée, pour faire un rapprochement entre ce genre et les
Anékdota. « Automne de l'Histoire Classique ou printemps d'une vision chrétienne
du monde dans l’Histoire ? »: Dans ce dernier chapitre, nous montrons comme les
Anékdota peuvent être perçue comme un ouvrage caractéristique de cette période
charnière, l'Antiquité Tardive. À l’intérieur de celles-ci se croisent les éléments
caractéristiques de l'historiographie grecque classique, mais aussi des éléments qui
puisent dans une vision chrétienne du monde, donc les Anekdota nous mènent à réfléchir
sur les différences entre une vision païenne et une vision chrétienne du monde.
Mots clefs
Anékdota ou Histoire Secrète; Procope de Césarée; Antiquité Tardive;
Justinien Empereur; Histoire Byzantine; christianisme et paganisme;
históriographie Grecque; Théorie de l’Histoire.
Sumário

1. Introdução 12

2. Desconcertos de um texto 21
2.1. A anedota das Anékdota 21
2.2. Nicolò Alemanni e a pesquisa antiquária 23
2.3. Entre o Estado e a Igreja 27
2.4. Peripécias de um texto “incômodo” 29
2.4.1. As Anékdota: temas e estrutura da obra 31
2.4.2. Fortuna crítica 56

3. A Antiguidade Tardia 67
3.1. Definições de um termo 67
3.2. Procópio de Cesareia 70
3.3. Procópio espelho do historiador ou a História às avessas 74
3.4. Justiniano e sua época 77
3.4.1. Guerra Persa 80
3.4.2. Guerra Vândala 81
3.4.3. Guerra Gótica 82
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3.4.4. Código Justiniano 83

4. Uma leitura literária das Anékdota 85


4.1. As anékdota reflexos de uma mundividência cristã? 85
4.2. Tentativas de uma leitura “auerbachriana” das Anékdota 87
4.2.1. A cicatriz de Ulisses 87
4.2.2. O Trimalcião 92
4.2.3. A negação de Pedro 101
4.2.4. Teodora: entre a História e o Sermo Humilis 103
4.2.5. Sermo humilis 107
4.3. Quando a Sátira Menipeia adentra a História 109
4.3.1. O sério-cômico 110
4.3.2. A Sátira Menipeia 114

5. Outono da História Clássica ou primavera da mundividência cristã na


História? 121
5.1. O “tribunal de Cristo” ou a vigilância interior 121
5.2. A hýbris e o pecado 134
5.3 A φύσις (phýsis) e a transcendência 136
5.4. O Príncipe dos demônios 138

6. Conclusão 143

7. Referências bibliográficas 148

8. Anexos 152
Lista de Figuras

Figura 1: O Império Romano do Oriente, quando da ascensão de Justiniano,


em 527, (laranja); as guerras de reconquista, com os respectivos
anos (setas em vermelho); assim como os territórios conquistados
(amarelo) 80
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Aunque rompimos sus estatuas,
Aunque los expulsamos de sus templos,
No por eso murieron del todo los dioses.
Oh tierra de la Jonia, a ti te aman todavía,
A ti sus almas te recuerdan aún.
Cuando sobre ti amanece una mañana de agosto,
[…]

Konstandinos Kavafis,
“Jónico”.
Tradução de Miguel Castillo Didier
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[...] que a vida


É múltipla e todos os dias são diferentes dos
outros,
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós.

Fernando Pessoa,
“Não a ti, Cristo odeio ou te não quero”,
Odes de Ricardo Reis.

Musa,
Memora mihi causas
Virgílio,
Eneida
1.
Introdução

Essa ideia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico,


penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as
ciências humanas. Minúsculas particularidades paleográficas foram empregadas
como pistas que permitiam reconstruir trocas e transformações culturais [...]. A
representação das roupas esvoaçantes nos pintores florentinos do século XV, os
neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrófula pelos reis da França e da
Inglaterra são apenas alguns entre os exemplos sobre o modo como,
esporadicamente, alguns indícios mínimos eram assumidos como elementos
reveladores de fenômenos mais gerais: a visão de mundo de uma classe social, de
um escritor ou de toda uma sociedade.

Carlos Ginzburg1
“Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”

Diz o provérbio francês que “avec des ‘si’ on mettrait Paris en bouteille”
(Com os ‘se’ colocaríamos Paris dentro de uma garrafa), ressaltando as situações
absurdas às quais somos conduzidos quando resvalamos nos encantos sedutores
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da conjunção “se”. Com essa simples conjunção, podemos construir grandes


empreitadas no mundo da imaginação ou — a nos manter sempre na esfera
imagética dos provérbios e expressões — podemos “construir castelos no ar”. A
imagem das construções imaginárias tem um dos seus mais “sólidos” alicerces no
simples “se”. É preciso admitir que a pequena conjunção é libertadora, pois
proporciona abrir as mais diversas janelas da experiência, permite traçar novas
linhas do horizonte e vivenciar “realidades” que, de outra forma, não seriam
impossíveis. Ilusória panaceia a qual podemos recorrer contra a monotonia da
realidade presente.

Mas a referida conjunção não deixa de possuir um lado mais perigoso e este
se relaciona à escrita da História. Caso existam “pecados” do historiador,
certamente, aventar realidades que não aconteceram seria um deles. E tais pecados
principiam, na maior parte das vezes, com uma pergunta introduzida por “se”.

Mas a pergunta — ainda que tentadora — não conduz necessariamente a um


pecado do historiador, desde que não seja respondida historicamente. E se o
Império Romano do Ocidente não tivesse caído? E se a América não tivesse sido

1
GINZBURG, Carlos: Mitos, emblemas e sinais. 2001. p.p. 177-178
13

descoberta? E se Constantinopla não tivesse sido tomada pelos turcos em 1453? E


se a fuga de Luis XVI não tivesse sido frustrada, em Varennes, naquela noite de
21 de junho de 1791? Formular tais perguntas não é, em si mesmo, um erro
histórico. Basta que tenhamos consciência de que simplesmente não poderemos
respondê-las historicamente. Mas esse tipo de questionamento pode se tornar
salutar, quando nos estimula a analisar com mais atenção e desvelo as forças que
estão em jogo em determinado momento do passado; a refletir sobre as tensões,
diferenças e semelhanças dos atores sociais de uma época. O desejo em prever
realisticamente como teria sido aquele “futuro do passado” que não ocorreu afina
o olhar e desperta o anseio de conhecer os homens e suas sociedades, na esperança
de podermos reconstituir o desdobramento da ação hipotética. Caso perguntemos
— fazendo uso, a título ilustrativo, de um dos exemplos mencionados acima —: o
que teria acontecido se a fuga de Luis XVI não tivesse sido frustrada em
Varennes? E se Luis XVI nem mesmo tivesse colocado o plano da fuga em
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prática? Essas perguntas podem nos estimular a refletir sobre os objetivos do rei,
sobre as ideias políticas que circulavam na França ou, então, sobre o poder de
ação dos émigrés que se refugiavam além das fronteiras da França confabulando
contra a Revolução. Mas jamais saberemos qual teria sido o destino de Luís XVI e
de sua família, se a Revolução teria se radicalizado com o Terror, tampouco se os
émigrés teriam êxito em seus propósitos. As perguntas poderiam seguir ad
infinitum; respondê-las seria sobrepor umas às outras, como pequenos tijolos que
formariam vastos castelos de possibilidades que não aconteceram, todos eles
assombrosa e unicamente alicerçados na conjunção condicional “se”.

O historiador francês Paul Veyne intitulou um dos seus livros Acreditavam


os gregos em seus mitos?, sugestivo título que faz uso de toda enfatização que
uma interrogação pode conceder. O mesmo historiador, mais recentemente,
intitulou outro de seus livros com título não menos expressivo, Quando nosso
mundo se tornou Cristão. Ousado seria quem viesse a se inspirar em Veyne e,
conjugando o título de ambas as obras, intitulasse seu escrito de E se o nosso
mundo não tivesse se tornado Cristão?.

Hei de fazer um mea culpa, ou melhor, um fere mea culpa, um quase mea
culpa, e confessar que, em parte, esta tese nasceu de uma tentação ao “pecado” do
14

historiador. A tentação de responder: “E se o nosso mundo não tivesse se tornado


Cristão?”. Mas ressalto, desde já, que não caí em tentação, pois, responder a tal
pergunta seria sair dos domínios de Clio e seguir pelos domínios de sua irmã
Euterpe — musa da poesia lírica, outra filha dessa grande deusa da Memória,
Mnemósine, que tanto nos fascina e assombra —, seria sair das searas da História
e seguir por aquelas da Literatura. Não cabe à História imaginar o que teria
acontecido se certa situação não tivesse ocorrido. Mas cabe sim à História refletir
sobre diferenças de modo de apreensão do mundo do passado e é sobre isso que
estas linhas tratam.

A minha dissertação de mestrado, intitulada Konstandinos Kavafis e o


Mundo Greco-Romano: diálogos entre a História e a poesia abordou as relações
entre o poeta grego moderno de Alexandria e a cultura clássica da qual sofrera
grande influência. Mais especificamente, tentei apontar a ideia de História que
Kavafis desenvolveu — perdoem-me a redundância — em seus poemas de
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temática histórica, ideia essa a meu ver que foi fortemente


influenciada/reinventada com base no topos da historia magistra vitæ da
Antiguidade. Chegada a hora de buscar um objeto de pesquisa para o doutorado,
decidi que gostaria de continuar na esfera dos textos proveniente da cultura
Greco-romana, mas dessa vez não pelo intermédio de um autor contemporâneo,
mas sim através do contato direto com um autor da época. Mas qual autor? Iniciei
a busca e foi através da página eletrônica da célebre editora francesa Les Belles
Lettres que, pela primeira vez, tomei conhecimento da existência de Procópio de
Cesareia. A primeira sensação que tive ao ler a sinopse das Anékdota foi
desconcertante. Mas não imaginava que o texto que acabava de encontrar viria a
se relacionar com a questão que diversas vezes passara-me pelo espírito: “E se o
nosso mundo não tivesse se tornado Cristão?”.

Tempos depois o livro chegava às minhas mãos e a pesquisa para a redação


do projeto começaria. Logo, descobri que as Anékdota eram um texto que durante
muitos séculos fora dado como perdido e que só seria redescoberto na Biblioteca
Apostólica Vaticana, já no século XVII e que tal descoberta causaria grandes
polêmicas, tanto a respeito da veracidade contida nesse documento, como, até
mesmo, a respeito da sua autenticidade autoral. Descobriria ainda que a palavra
15

“anedota”, corrente na língua portuguesa e, pelo menos, nas principais línguas


ocidentais, teve seu sentido cunhado por influência do próprio livro de Procópio.
Estava diante de um texto rico de significados. Mas foi somente durante o correr
do doutorado que comecei a considerar as Anékdota como um texto representativo
da Antiguidade Tardia, esse período que se configura a partir de uma dimensão
geográfica, o Mediterrâneo, e temporal, as fronteiras entre o período da
Antiguidade e o da Idade Média. A maneira e a intensidade com que Procópio de
Cesareia redigiu e estruturou o seu texto era algo sui generis o que me levou a
indagar sobre as razões disso. Fazendo uso ainda das palavras do historiador
italiano, Carlo Ginzburg, o “faro, golpe de vista, [e] intuição” indicavam-me que
essa obra de Procópio de Cesareia estava entre dois mundos: o dos clássicos da
Antiguidade e aquele da fé cristã. A invectiva que Procópio de Cesareia lançava
contra Justiniano, Teodora, Belizário e Antonina seria a denunciação de seus
pecados. Mas um problema levantou-se contra a minha hipótese: a exacerbada
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crítica aos desregramentos morais da ordem do privado já haviam sido


denunciados na Antiguidade por autores pagãos: Demóstenes contra a hetaira
Neera, Suetônio contra Calígula e Tácito contra Messalina.

Mas a questão não era a denunciação moral em si mesma, mas a forma


como esta se dava e de onde provinha segundo o historiador de Cesareia, isto é, a
origem dos males. Procópio transformara Justiniano e Teodora na encarnação de
demônios. A concepção adotada por Procópio tratava-se de uma concepção
eminentemente cristã. O meu interesse em refletir sobre as diferenças entre as
visões de mundo do paganismo e do cristianismo, fizeram com que visse que
estava em minhas mãos um texto convidativo a tal reflexão e foi por esse caminho
que segui em minha pesquisa.

Tentei apreender o texto das Anékdota como um sugestivo indício para


penetrar em duas diferentes mundividências, com o mesmo espírito das palavras
de Ginzburg que encimam como epígrafe esta introdução. Considerei o texto
procopiano como revelador da adoção de elementos característicos da
mundividência e/ou sensibilidade cristã na escrita de um texto que se propõe ser
eminentemente um texto de História, e que mimetiza os considerados padrões da
historiografia clássica greco-romana. Por conseguinte, através desse ângulo
16

analítico, as Anékdota configuram-se como um texto revelador de um fenômeno


mais geral, o triunfo de elementos tipicamente cristãos na forma de percepção dos
homens e mulheres que viveram na Antiguidade Tardia, o que logo conduz a
refletir não somente sobre o cristianismo, mas também sobre o seu contraponto, o
paganismo.

É preciso, no entanto, fazer uma importante ressalva, a ideia de “um


cristianismo” e de “um paganismo” perenes, coesos e que se contrapõem não se
sustenta. Bem sabemos que entre o paganismo de Homero, o dos estoicos e o dos
mitraístas, por exemplo, há várias e grandes diferenças; do mesmo modo, não
podemos falar de um cristianismo impermeável à variabilidade dos grupos que o
compõem e às mudanças de ordem histórica. Mas sem enfrentar o medo de buscar
pontos em comum, de aproximar significados, de agrupá-los e de tecer
comparações, o trabalho do historiador torna-se uma mera sucessão monótona e
infinita que se compraz em constatar a idiossincrasia impenetrável de cada
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elemento do passado, podendo chegar, até mesmo, à tautológica afirmação de que


cada minuto é um minuto diferente do outro. O passado torna-se assim irredutível
a qualquer análise e resvalamos na impossibilidade de interpretação, em situação
que se aproxima àquela descrita por Ginzburg, ao comentar a análise feita por
Foucault sobre as memórias de um criminoso francês do século XVII: “A
possibilidade de interpretar esse texto foi excluída de forma explícita, porque
equivaleria a alterá-lo, reduzindo-o a uma razão estranha a ele. Não sobra mais
nada, além de ‘estupor’ e ‘silêncio” 2. A percepção das diferenças que subjazem
sob os termos é essencial, mas levá-la a extremos é tão prejudicial à escrita da
História como as grandes generalizações que não levam em conta as sutis
diferenças, sejam elas temporais, espaciais ou sociais. O historiador jaz entre a
tensão de buscar continuidades e especificidades. Resvalar no excesso das
continuidades é interpretar de forma embrutecida e anacrônica, resvalar no
excesso das especificidades é a própria incapacidade de interpretar. Consciente
dessa dificuldade, desse delicado equilíbrio ao qual o historiador deve se manter,
espero ter seguido sempre a recomendação de Horácio, que tão bem expressa o

2
GINZBURG, Carlo: O Queijo e os Vermes. p.17
17

ideal de moderação tão caro à Antiguidade: Dum vitant stulti vitia, in contraria
currunt (Os tolos, ao evitarem os vícios, correm para os vícios opostos) 3.

À título introdutório, é importante ainda dizer certos aspectos que


concernem à estruturação formal desta tese. Esta se divide essencialmente em
quatro capítulos — excluindo a introdução e a conclusão. Gostaria de apresentar
brevemente as razões que me levaram a compor cada um desses capítulos:

• “Os Desconcertos de um Texto” - Visto que penso ser de grande


importância a relação que um texto estabelece com a sua tradição de
interpretações e/ou apropriações, decidi não me limitar somente ao período da
Antiguidade Tardia, mas abordar também a descoberta das Anékdota por Nicoló
Alemmani, na primeira metade do século XVII, as implicações que esse texto, até
então considerado perdido, desencadearam, assim como ele foi interpretado por
determinados intelectuais nos séculos que se seguiram. No entanto, interpus entre
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a apresentação da descoberta das Anékdota e a sua fortuna crítica, uma


apresentação da estrutura da obra, na qual expus o mais objetivamente possível
uma síntese de cada um dos trinta pequenos capítulos. Essa ordem justifica-se,
após inteirar-se das circunstâncias que envolveram a descoberta, o leitor poderá
inteirar-se, de maneira mais consubstancial, sobre o que é tratado propriamente
nas Anékdota, podendo assim acompanhar às constantes referências que lhes são
feitas do desenvolvimento subsequente da tese.

• “A Antiguidade Tardia” ― esse capítulo pretende oferecer primeiramente


um breve histórico do desenvolvimento do conceito de Antiguidade Tardia, assim
como definir o que a historiografia atual entende a respeito deste. Em seguida,
adentro mais especificamente o ambiente do reinado do imperador Justiniano com
a sua política de reconquistas, cenário no qual Procópio de Cesareia desenvolveu
toda a sua obra, sendo, por isso, necessário para uma perfeita compreensão das
Anékdota.

• “Uma leitura literária das Anékdota” ― A partir do instrumental teórico


oferecido pela obra de dois críticos literários, o alemão Ernest Auerbach e o russo

3
HORÁCIO apud TOSSI, Renzo: Dicionário de Sentenças Latinas e gregas. Trad. Ivone
Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2010. (3ª edição).
18

Mikhail Bakhtin, tentei deslindar algumas características textuais do texto


estudado. Primeiramente, mostro como certos traços atribuídos por Auerbach a
uma maneira judaica e posteriormente cristã de abordar os temas se faz presente
nas Anékdota, diferenciando esse texto da tradição historiográfica grega, ainda
que Procópio a mantenha como modelo. A presença de personagens pertencentes
às classes mais baixas, em um texto de gênero sério, assim como a abordagem de
temáticas cotidianas, consideradas “baixas”, aproximam as Anékdota do sermo
humilis cristão. Em um segundo momento, empreendo uma aproximação entre o
gênero da Comédia Menipeia, conforme é apresentado por Bakhtin, e as
Anékdota.

• “Outono da História Clássica ou Primavera da Mundividência Cristã na


História?” ― No último capítulo, pretendo mostrar como as Anékdota são um
texto em que se conjugam os parâmetros da historiografia grega com uma visão
de mundo tipicamente cristã, o que me levou a refletir sobre as diferenças básicas
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entre uma mundividência cristã e uma mundividência pagã.

Gostaria também de comentar a respeito da escolha do título, A História em


Desconcerto. A meu ver as Anékdota desconcertam a história em dois sentidos. O
mais patente é aquele de um historiador que tece afirmações que vão em direção
contrária àquelas que ele mesmo afirmou em outras obras; o de um historiador
que confessa ter omitido propositalmente determinadas informações que seriam as
verdadeiras causas dos acontecimentos. Por esse motivo, as Anékdota
desconcertaram e ainda desconcertam o restante da obra de Procópio. Esse seria o
primeiro sentido, mas outro menos aparente se faz igualmente presente: as
Anékdota desconcertam a história clássica. Procópio pretendeu que as Anékdota
fossem um complemento a sua obra maior, que fossem o nono livro da História
das Guerras — um livro que, por sua vez, tem como modelo a História da
Guerra do Peloponeso de Tucídides. Procópio teve o cuidado de manter um grego
que se assemelhasse ao estilo de seus predecessores clássicos e a justificativa que
apresentou no começo de seus livros, explicando o porquê de escrever seus
relatos, é uma razão característica da historiografia clássica: perpetuar os feitos do
passado, fazer com que a gesta dos homens não fosse tragada pelo tempo,
possibilitar que os homens do futuro pudessem aprender e se orientar através do
19

conhecimento das experiências pretéritas. No entanto, Procópio escreveu as


Anékdota para denegrir o imperador. Ora, para que a sua crítica fosse eficaz —
calando fundo na alma daqueles que viessem a lê-la — era preciso lidar com
parâmetros e valores que pertencessem realmente ao grupo dos seus futuros e
potenciais leitores, foi por isso que deslegitimizou o imperador ao afirmar que ele
e sua mulher, Teodora, eram na verdade demônios. Ora, a visão cristã que se
insere dentro das Anékdota é alheia à historiografia clássica, dessa forma,
podemos dizer que as Anékdota desconcertam os padrões clássicos da história
antiga, sem, entretanto, que Procópio deixe de tê-la como modelo.

Para finalizar, retomo o argumento com o qual dei início a esta introdução, a
afirmação de que um dos pecados do historiador é tentar supor o que teria
acontecido, caso determinado fato tivesse ou não ocorrido. Repito, o problema
não reside propriamente em formular a pergunta com a conjunção “se”, mas sim
em tentá-la responder. Aos historiadores tal resposta afigura-se como um
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“pecado”, simplesmente porque ao dizê-la eles saem dos seus domínios, mas não
à literatura. As Anékdota acabam nos estimulando, no final das contas, a pensar a
respeito das diferenças entre uma mundividência cristã e uma pagã e, sem querer,
escapole de nosso pensamento a pergunta: “E se o nosso mundo não tivesse de
tornado cristão?”. E ainda que a História frustrada nesse ponto tenha que se
conformar com o fato de que somente a literatura é capaz de fornecer uma ou
várias respostas, não deixa de ser interessante notar que Euterpe pode mostrar a
Clio que o “futuro do passado” já esteve um dia em aberto, tal qual é hoje o nosso
futuro. É difícil para a História — assim como é, talvez, para a maioria dos
Homens — a sensação de que o acontecido não necessariamente era o único
possível. Aproveito o ensejo e recordo aqui as palavras da historiadora francesa,
Mona Ozouf ao comentar o episódio da fuga de Varennes:

Do movimento inesperado que podem tomar os destinos, os romancistas se


encantam: é o infinitamente improvável que constitui para eles, como para Hannah
Arendt, a própria textura do real. Eles estão habituados a substituir os
acontecimentos que aconteceram pelos imaginários, a sonhar com a infinitude de
desenlaces possíveis. Os historiadores, em compensação, procuram sempre extrair
da profusão de fatos a necessidade que os ordena. Para eles, impermeáveis ao que é
fortuito, aplicados em reduzir o intervalo entre o possível e o real, o que aconteceu
tinha que acontecer. Conhecer o fim da história é um privilégio ambíguo: estão
inclinados a dobrar os acontecimentos que realmente aconteceram, em encontrar-
lhes uma racionalização, a apagar a reflexão sobre o que poderia ter sido. E
20

enquanto o romancista não está nem um pouco inquieto com as discordâncias de


testemunhos [...] o historiador procura sempre conciliá-los, reduzi-los a parte de
incertezas, sobre uma versão unificada4. (A tradução é nossa)
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4
“Du tour inattendu que peuvent prendre les destins, les romanciers s’enchantent : c’est
l’infiniment improbable qui constitue pour eux, comme pour Hannah Arendt, la texture même du
réel. Ils sont rompus à substituer les événements imaginaires á ceux qui ont eu lieu, à rêver à
l’infinité des dénouements possibles. Les historiens, en revanche, cherchent toujours à débusquer
sous le foisonnement des faits la nécessité qui les ordonne. Pour eux, imperméables à ce qui est
fortuit, appliqués à réduire l’intervalle entre le possible et le réel, ce qui est arrivé le devait.
Connaître la fin de l’histoire est un privilège ambigu : ils les incline à plier les événements à ce
qui est effectivement advenu, à leur trouver une rationalisation, à éteindre la réflexion sur ce qui
aurait pu être. Et alors que le romancier n’est nullement inquiet de la discordance des
témoignages [...] l’historien cherche toujours à les accorder, à réduire la part des incertitudes, à
camper sur une version unifiée.” OZOUF, Mona : Varennes : La mort de la royauté (21 juin
1791), 2005. pp. 20-21
2.
Desconcertos de um texto

2.1.
A anedota das Anékdota

Um monge italiano, em meados do século XV, devotava especial apreço


pelos livros e não media esforços para colecioná-los. Esse jovem e erudito
sacerdote recebera sobre a pia batismal o nome de Tommaso Parentucelli. O amor
e o interesse pela preservação das antigas fontes eram dispendiosos e difíceis,
visto que a oportunidade de aquisição de um raro manuscrito poderia ser única e,
por tal, de valor inestimável. Além disso, a produção de um exemplar consumia
dias a fio do atento trabalho de um copista. Diferentemente de nossa época,
quando a multiplicidade de meios de reprodução é cada vez maior, no século XV
a sobrevivência de uma obra, ou até de um autor, poderia resumir-se na dramática
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preservação de um só manuscrito. Adquirir, copiar e guardar velhos escritos eram


ações determinantes: tratava-se de legar para a humanidade futura as obras do
passado ou, então, perdê-las para todo o sempre, deixando para a posteridade a
aflitiva sensação de imaginar o que se poderia conhecer e jamais se conhecerá.

Mas Parentucelli foi um desses homens teimosos que, direta ou


indiretamente, assumiu a quase sempre inglória luta contra a corrosão do tempo.
Jacob Burckhardt chega a dizer que Parentucelli: “endividou-se para comprar
manuscritos ou mandar copiá-los” 5; e, logo em seguida, o historiador suíço
interpreta a irresistível paixão bibliófila como a genuína expressão de uma época:
“ele [Parentucelli] professava abertamente as duas grandes paixões do
Renascimento: os livros e as edificações” 6. Anos depois, em 6 de março de 1447,
Tommaso Parentucelli tonava-se o Papa Nicolau V e entraria para a História como
o primeiro papa do Renascimento7.

A ascensão do já então Cardeal Parentucelli ao trono de São Pedro fez com


que seu interesse pelas letras pudesse tomar perspectivas ainda maiores. Nicolau
V empreendeu um verdadeiro projeto humanista de valorização das artes e das
5
BURCKHARDT, Jakob: A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. p. 150
6
Idem
7
Cf. MCBRIEN: Santos e Pecadores.
22

letras. Enviados papais vasculharam as antigas bibliotecas da Europa para copiar e


adquirir manuscritos. A abandonada cidade de Roma passaria por uma série de
reformas; o Vaticano transformou-se na residência dos papas e a velha basílica
constantina de São Pedro, prestes a ruir, foi reformada e recebeu uma vasta praça
à sua entrada, no centro o obelisco do circo de Nero seria colocado e até hoje lá
permanece triunfante.

Nicolau V decretara 1450 como ano do jubileu. Entretanto, as


peregrinações se fizeram difíceis, pois a peste iria assolar a cidade de Roma.
Nessa ocasião, o papa deu mais uma prova do afã bibliófilo. Ao refugiar-se em
Fabrino, fugindo da peste, fez com que os copistas e tradutores a seu serviço
também o acompanhassem. É Burckhardt, ainda outra vez, que interpreta tal gesto
como um testemunho da devoção papal à sua estimada coleção, o que nos parece
bastante plausível, porque, talvez, a mais importante obra desse papa tenha sido
realmente sua biblioteca. Ao morrer em 1455:
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Nicolau V deixou 5 mil volumes ― ou 9 mil, dependendo da maneira como se


calcula ― para uma biblioteca criada para o uso efetivo de todos os membros da
cúria, biblioteca esta que se tornou o núcleo da biblioteca do Vaticano8 e que
seria instalada no próprio palácio, na qualidade de seu mais nobre adorno, como
outrora fizera o rei Ptolomeu Filadelfo de Alexandria9.

Mais de um século e meio depois da morte de Nicolau V, em 1614, é


nomeado, como custode da Biblioteca Apostólica Vaticana, Nicolò Alemanni10.
Este era um sacerdote, de origem grega11, nascido, em 1583, em Ancona, cidade
da península itálica, que pertencia então aos domínios papais. Estudara no Colégio
Grego de Roma e, desde cedo, manifestara interesse pelas línguas clássicas. Ainda

8
John Larner, em verbete consagrado ao papa Nicolau V, no Dicionário do Renascimento Italiano,
endossa a afirmação de Burckhardt ao dizer: “Um colecionador compulsivo de livros, pode ser
considerado o verdadeiro criador da biblioteca do Vaticano” Larner, John in Hale, John R.:
Dicionário do Renascimento Italiano. p. 250. Já Jeanne Bignami Odier considera “[...] que os
projetos de Nicolau V não foram realizados, e que o verdadeiro fundador da biblioteca Vaticana
foi Sixto IV” (A tradução é nossa) Odier, Jeanne Bignami: La Bibliothèque Vaticane de Sixte IV
à Pie XI, 1973. p. 9-10. Richard P. Mcbrien concorda em ver Nicolau V como o fundador da
Biblioteca Apostólica Vaticana, pois afirma a respeito desse papa: “Acumulou uma grande
biblioteca pessoal de livros e manuscritos (807 em latim e 353 em grego), que depois da sua morte,
formou a base da biblioteca do Vaticano” Mcbrien, Richard: Os Papas: os pontífices de São Pedro
a João Paulo II, 2000. p.266
9
BURCKHARDT, Jakob: A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio, p. 150
10
A grafia prenome de Alemanni pode ser encontrada das seguintes formas Nicolò ou Niccolò.
Optamos por Nicolò, grafia adotada pelo Dizionario Biografico degli Italiani.
11
Cf. MAZZARINO: La Fine Del Mondo Antico: Le cause della caduta dell’ompero romano, p.
104
23

que muito jovem, foi professor particular de grego do futuro cardeal Cobeluzzi12.
Cobeluzzi indicou Alemanni para ser secretário do Cardeal Scipione Borghese13.
Tanto Borghese como Cobeluzzi ocuparam sucessivamente o posto de Cardeal
Bibliotecário14.

É dos fundos da biblioteca vaticana que Alemanni traz à luz um texto de


Procópio de Cesareia que, até então, era dado como perdido; tratava-se das
Anékdota, que passariam a ser conhecidas igualmente como História Secreta,
devido à tradução latina. Em 1623, foi publicada em Lyon a edição bilíngue de
Alemanni, o original grego seguido da tradução em latim. Na folha de rosto dessa
editio princeps, lê-se: “De Procópio de Cesareia: Anékdota, História Secreta, que
é o nono livro das Histórias. Da Biblioteca Vaticana, Nicoló Alemanni publicou,
em latim traduziu e com notas esclareceu. Agora, pela primeira, vez é trazida à luz
e enriquecida com um triplo índice.15” Essa descoberta desencadearia uma grande
polêmica que haveria de percorrer todo o século XVII e se perpetuaria ainda por
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alguns séculos. Como afirma Santo Mazzarino a respeito das Anékdota “[...] sem
dúvida, foi a obra mais atormentada e discutida da literatura tardo-romana”.16

2.2.
Nicolò Alemanni e a pesquisa antiquária

O mesmo afã renascentista pela descoberta de textos antigos que, mais de


um século antes, incentivara Nicolau V a constituir o núcleo da Biblioteca
Vaticana, havia sido despertado e continuava a gerar seus frutos. A história da
descoberta das Anekdota é representativa desse movimento em relação ao
passado, que surge no Renascimento e prossegue até bem depois dele. O fato de
Alemanni ser custode na biblioteca que se originara daquela de Nicolau V não é
vazio de significado.

12
Cf. Página electronica do Archivum Secretum Vaticanum:
http://www.archiviosegretovaticano.va/scipione-cobelluzzi-1618-1626/ (Consulta em 23.05.2014)
13
Cf.: MERCATI, Silvio Giuseppe: “Alemanni, Nicolò” (verbete): Dizionario Biografico degli
Italiani - Volume 2. 1960.
14
Lembremos que foi durante a administração do cardeal Borghese que Alemanni (4.7.1607 até 8-
7-1609) foi nomeado custode e foi durante a de Cobeluzzi (17.2.1618 até 29.6.1626) que foi
publicada a edition princeps da edição de Alemanni das Anékdota. (Em relação às datas Cf. Odier,
Bignami Jeanne: La Bibliothèque Vaticane de Sixte IV à Pie XI, 1973. p. 328).
15
“PROCOPII CӔSARIENSIS V.I. ANEKΔOTA. ARCANA HISTORIA, Qui est liber nonus
Historiarum. EX BIBLIOTHECA VATICANA Nicolaus Alemmanus protulit, Latinè reddidit.
Notis illustrauit. Nunc primùm in lucem prodit triplici Indice locupletata” Alemanni,1623, p.2
16
Santo Marino: La Fine Del Mondo Antico, 2009. p104
24

Uma das importantes figuras intelectuais que se desenvolveram nesse


período foi aquela do antiquário, espécie de colecionador e de pesquisador que foi
identificada pelo historiador italiano Arnaldo Momigliano. Acreditamos que
Alemanni possa ser considerado um típico antiquário na acepção de Momigliano.
Como um bom antiquário, Alemanni tem por missão agrupar e classificar a maior
quantidade possível de vestígios do passado. Vestígios esses que possam aportar
informações sobre o que aconteceu. A descoberta das Anékdota haverá de
desestabilizar a “verdade” histórica em diversas direções. São os antiquários que
indiretamente parecem modificar a ideia de história.

Antes da construção do baldaquino de Bernini, no interior da Basílica de S.


Pedro, em Roma, o papa Urbano VIII solicitou a Alemanni um parecer visando a
preservação dos antigos vestígios que ali poderiam ser encontrados. Foi somente
após a emissão deste que o Sumo Pontífice deu ordem para que as escavações se
iniciassem. Alemanni foi igualmente designado para acompanhar as escavações
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da referida obra, praticando o que chamaríamos nos dias de hoje de arqueologia


preventiva. No entanto, não pôde seguir adiante com as atividades, visto que,
segundo nos informa a tradição, contraíra justamente durante as escavações uma
febre que logo o levou à morte17. Foi ainda Alemanni que recebeu um dos maiores
tesouros bibliográficos de todos os tempos, a Biblioteca Palatina, que fora
ofertada por Maximiliano Eleitor da Baviera ao papa Gregório XV. Como
podemos constatar, Alemanni era eminentemente um homem que lidava com o
acúmulo e catalogação dos mais variados tipos de achados do passado, fôssem
eles textuais ou arqueológicos.

Ao descobrir as Anékdota, Alemmani acaba por modificar o relato


histórico, ação que remete não somente ao papel que foi desempenhado pelos
antiquários, mas, também, à visão de História e de historiador que era
compartilhada nesse período. Esse ponto é essencial para que possamos apreender
o significado da repercussão que haveria de ser desencadeada pela edição de
Alemanni. Devemos, então, com esse intuito, adentrar, mesmo que de forma
breve, dois conceitos que se relacionam: o de antiquário, desenvolvido por
Momigliano e o topos de historia magistra vitaæ.
17
Cf. NEVEU, Bruno : Biographie et historiographie : le “Dizionario biografico degli Italiani”
(tomes I-X). In: Journal des savants. 1971, N°1. p.38
25

Momigliano assinala que haveria uma diferença na forma e no método de


abordar o passado; por um lado haveria os antiquários e, por outro, os
historiadores. A história teria tido suas matrizes definidas a partir de Tucídides,
isto é, uma narrativa dos acontecimentos políticos e contemporâneos ao
historiador. Já os antiquários tentariam acrescentar informações ao passado,
através do estudo das moedas, das ruínas, dos costumes, da descoberta e da edição
de textos. Os textos clássicos como os de Tucídides, Políbio e Tito Livio não
poderiam ”ser questionados pelos historiadores modernos, a estes caberia
simplesmente comentá-los, sintetizá-los e daí retirar os ensinamentos oferecidos
pela historia magistra vitæ na melhor das acepções, como nos explica
Momigliano:

Quando a história antiga era estudada em si mesma, independentemente da


pesquisa arqueológica e da história universal, a intenção era não só pesquisar
materiais para a reflexão moral e política, como também facilitar a compreensão
de textos lidos em primeiro lugar por razões estilísticas. A exatidão e o caráter
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exaustivo das narrativas tradicionais eram dificilmente colocados em questão. Até


onde se saiba, a ideia que se podia escrever uma história de Roma capaz de
substituir Tito Lívio e Tácito não havia ainda nascido no começo do século XVII.
O primeiro titular da cadeira de história (“Camden” Professorship) na
Universidade de Oxford tinha a obrigação estatutária de comentar Florus e outros
historiadores antigos (1622). [...] Em Cambridge, o primeiro professor de história
foi despedido porque seus comentários sobre Tácito foram julgados politicamente
perigosos18. (A tradução é nossa).

A anedota que nos é narrada por Momigliano é rica em significado, ela


expressa toda uma ideia de História que era compartilhada até meados do século
XVIII. Estamos a falar da História como Ktema — termo grego empregado por
Tucídides, ao dizer que a História era uma aquisição, um bem precioso para o
futuro. Mas foi na expressão latina, cunhada por Cícero, que tal conceito se
cristalizou de forma mais consistente, isto é, a historia magistra vitæ. O fato de
um professor de História não poder fazer comentários a uma fonte histórica
afigura-se a nossos olhos contemporâneos como algo de difícil compreensão. O

18
Quand l’histoire ancienne était étudiée pour elle-même, indépendamment de la recherche
archéologique et de l’histoire universelle, l’intention était soit d’y chercher des matériaux pour la
réflexion morale et politique, soit de faciliter la compréhension des textes lus en premier lieu pour
des raisons stylistiques. L’exactitude et le caractère exhaustif des récits traditionnels était à peine
mis en question. Autant que je sache, l’idée que l’on puisse écrire une histoire de Rome capable de
remplacer Tite-Live et Tacite n’était pas encore née au début du XVII e siècle. Le premier titulaire
de la chaire d’histoire (‘Camden’ Professorship) à l’université d’Oxford avait l’obligation
statutaire de commenter Florus et d’autres historiens antiques (1622) […] À Cambridge, le
premier professeur d’histoire fut renvoyé parce que ses commentaires sur Tacite ont été jugés
politiquement dangereux. MOMIGLIANO: “L’histoire ancienne et l’Antiquaire”. p. 254
26

objetivo principal da História não seria propriamente atingir o idealizado núcleo


do “real”, a “verdade” do que ocorreu. Qual seria então a função do historiador?
Ao historiador caberia a preservação em letra dos feitos do passado e ― caso
fôsse bem sucedido em seus propósitos ― que esse passado, que fora deitado em
letra, proporcionasse, em tempos futuros, uma espécie de “guia” de como se
portar diante das adversidades da existência. Para que tal concepção atingisse
plenamente seu objetivo, era necessário ter por premissa que a natureza humana
fosse sempre a mesma. Desfile das imutáveis paixões humanas, a História
ofereceria assim as ferramentas para saber como os homens dever-se-iam portar
face às mais diversas situações. Cabia ao historiador deslindar o emaranhado de
fatos e paixões que conduziram os acontecimentos, e a partir daí, extrair um
conhecimento de ordem eminentemente moral. No futuro, os que se pusessem a
estudar os seus textos não teriam por preocupação primeira colocar em dúvida o
que fora narrado, mas sim obter o máximo de ensinamentos sobre a natureza
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humana, conhecendo os vícios, virtudes e paixões. A função da História era


essencialmente ensinar aos homens do futuro a não cometer os mesmo erros
daqueles que os precederam, visto que a natureza humana era imutável, o
repertório das possibilidades de desdobramentos da História, em essência,
também o seria. Os homens do presente deveriam saber extrair o que era ensinado
pela História e transformá-lo em uma verdadeira aquisição para a vida. Essa forma
de perceber a narrativa histórica como “estável” e como fonte de ensinamentos
morais é, em linhas gerais, a concepção do topos da historia magistra vitæ.
Quando a Historia é considerada magistra vitæ, leva-se para um segundo plano a
preocupação com a veracidade dos fatos, o principal é que ela possa insuflar de
sabedoria o espírito dos seus leitores.

Para Koselleck, o topos da historia magistra vitæ foi constante até meados
do século XVIII, quando este começou a se dissolver. O historiador alemão
recorre ao testemunho da própria língua alemã para endossar a sua tese. Antes de
meados do século XVIII, predominava o vocábulo Historie, palavra plural, para se
referir à História. A progressiva dissolução do topos da historia magistra vitæ é
acompanhado também da ascensão de um outro termo Geschichte. A história
agora não mais seria um conjunto de relatos dos feitos dos homens do passado,
um conjunto de situações que se repetiriam. Agora, a História era vista como
27

irrefreável, a indomável inauguradora de um processo temporal sempre novo. Já


não mais serviria saber como os que nos precederam se comportaram diante de
determinada situação, pois os homens sentiam então o tempo como irrepetível.
Como nos explica Jasmin, a respeito das ideias de Koselleck:

Se a histórias (no plural) guardava a sabedoria acumulada pelos exemplos do


passado para servir de guia à conduta presente, evitando a repetição dos erros e
estimulando a reprodução do sucesso, a História (como singular coletivo) tornou-
se uma dimensão inescapável do próprio devir, obrigando toda ação social a
assumir horizontes de expectativa futura que a inscrevam como um
desdobramento consoante com o processo temporal. Não se trata tão somente de
uma alteração nos significados tradicionais, mas de uma verdadeira revolução nas
maneiras de conceber a vida em geral, de imaginar o que nela é possível ou não,
assim como o que dela se deve esperar 19.

Levando em conta essa forma de apreensão da função da História fazem-se


mais claras as razões que levaram o professor de Cambridge a ser demitido, ele
saíra dos limites atribuídos a sua função. Mas Alemanni não era um historiador,
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enquadrava-se, sobretudo, na acepção de um antiquário. O trabalho do antiquário


consistia no lento e sistemático acúmulo, catalogação e análise das fontes,
vestígios e documentos do passado, o que acabaria incidindo sobre o olhar com
que os textos canônicos da historiografia eram vistos, em suma, o relato da
História viria a se modificar, influenciado indiretamente pelo trabalho dos
antiquários. E foi tal processo que se deu com a descoberta das Anékdota.

O trabalho de Alemanni não seria vazio de grandes consequências. A


publicação das Anékdota iria desestabilizar a imagem consagrada do Imperador
Justiniano. Era o antiquário, como descrito por Momigliano, que através do seu
metódico ofício modificava o conhecimento que os homens tinham a respeito da
História. Mas quais eram as implicações políticas de tal descoberta? O que
continham essas páginas que por tanto tempo permaneceram desconhecidas? E
quem havia sido Procópio de Cesareia?

2.3.
Entre o Estado e a Igreja

A descoberta das Anékdota ia contra toda uma imagem positiva que, até então,
se formara a respeito de Justiniano. Essa imagem se cristalizara como aquele

19
JASMIN, Marcelo: Apresentação in Koselleck, Reinhard: Futuro Passado: contribuição à
semântica dos tempos históricos. p.11
28

imperador que empreendera um gigantesco e sistemático trabalho de unificação


jurídica das leis e que tentara concretamente, pela última vez, reconstituir a
unidade territorial do Império Romano. Mas a descoberta de Alemanni se dá
inteiramente por acaso, ela ocorre no seio da corte papal. Aos interesses políticos
do papado convinha um documento histórico que destituía Justiniano da sua
grandiosidade. Como diz Santo Mazzarino:

Alemanni, natural de Ancona, de origem grega, formou-se em estudos de história


eclesiástica, no seio de uma tradição inaugurada pelo cardeal Baronio com os
Annali, publicados de 1588 a 1607. Essa tradição baroniana não podia ter
excessiva simpatia por Justiniano; esse grande imperador, realmente preocupado
em conservar a todo custo o Egito, havia tentado conciliar a ortodoxia com os
rebeldes ao Concílio da Calcedônia, e por isso tivera que manter um conflito, às
vezes áspero, às vezes moderado, com os papas. A descoberta das Anékdota
aparece aos historiadores de tendência baroniana como uma bênção: agora,
finalmente, vinha à luz um novo perfil de Justiniano, príncipe dominado pela
demoníaca Teodora. E, na verdade, Alemanni foi, em certo sentido, um pequeno
Löwenklav abatendo o mito de Constantino, assim o novo livro de Procópio
levou a uma revisão do juízo sobre a personalidade de Justiniano. (As descobertas
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de novos textos são, em certo sentido, menos “casuais” do que parecem à


primeira vista; há, pelo menos, um quê de “necessário” no encontro entre o
pesquisador e sua a descoberta)20.

Como podemos constatar, Santo Mazzarino filia Alemanni à escola


historiográfica fundada por Cesare Baronio (1538-1607), este que foi Cardeal
Bibliotecário da Biblioteca Vaticana e é considerado como pater historiæ
ecclesiasticæ, pai da história eclesiástica21. Através dos seus Annales ecclesiastici
a Christo nato ad annum 1198 (Anais eclesiásticos do nascimento de Cristo até o
ano de 1198), ou simplesmente Annales, organizou a resposta historiográfica da
Contra Reforma à Ecclesiastica Historia, mais conhecida como Centúrias de
Magdeburgo. As Centúrias eram o primeiro grande esforço historiográfico que
20
“Alemanni era un anconoteano di origine greca, formatosi agli studi di storia ecclesiastica, nel
segno di una tradizione inaugurata dal Cardinale Baronio con gli Annali, pubblicati dal 1588 al
1607. Questa tradizione baroniana non poteva avere eccessive simpatie per Giustiniano; quel
grande imperatore, infattipreoccupato di conservare a tutti i costi l'Egitto, aveva cercato di
conciliare l'ortodossia con i rebelli al Concilio di Calcedonia, e perciò aveva dovuto sostenere un
conflitto aspro or moderato, coi papi. La scoperta delle Anékdota parve, agli storici di tendenza
baroniana, una benedizione: ora, finalmente, veniva alla luce un nuovo volto di Giustiniano,
principe dominato dalla demoniaca Teodora. Ed in verità, Alemanni fu, in un certo senso, un
piccolo Löwenklav. Come la tradizione di Zosimo aveva indotto Löwenklav ad abbattere il mito di
Costantino, così il nuovo libro di Procopio indusse Alemanni ad una revisione del giudizio sulla
personalità di Giustiniano. (Le scoperte di nuovi testi sono, in un certo senso, meno "casuali" di
quel che sembra a prima vista; c'è, per li più, un che di "necessario" nell'incontro tra il
ricercatore e la sua scoperta.)” SANTO, Mazzarino: La Fine del Mondo Antico: le cause della
caduta dell’impero romano, 2009. p.104
21
Cf. KLANICZAY, TIBOR (Org.) et alii: Histoire comparée des littératures de langues
européennes – L’Époque de la Renaissance, 1996-2000. p. 25
29

tentava dar conta da história da Igreja, desde os seus primórdios até o século XII,
a partir do ponto de vista da Reforma Protestante. O trabalho de Baronio era
eminentemente antiquarista, “peritissimus antiquaritatis” tinha uma grande
preocupação na recolha de documentos desempenhando importante papel “na
definição do perfil científico inicial da Arqueologia cristã” 22.

A publicação das Anékdota foi percebida pelos defensores do


fortalecimento do Estado, em sua maioria juristas das regiões protestantes, e, por
tal, contrários a intervenção da Igreja, como um ataque a seus ideias. Não nos
esqueçamos de que a edição de Alemanni é publicada em plena Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648). Conflito desencadeado pela tensão entre católicos e
protestantes no seio do Sacro Império Romano Germânico, refletindo, em grande
parte, a aspiração política de autonomia dos príncipes protestantes face aos
imperadores Habsburgo, que, por sua vez, eram endossados pelo desejo político
de hegemonia do papado — ainda que esse desejo de hegemonia viesse a ser
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frustrado pelo espírito da realpolitik do tratado da Vestafália que pôs fim aos
conflitos. Logo, quando da publicação das Anékdota, a defesa da veracidade do
seu conteúdo e/ou autenticidade autoral era percebida como papista. Como
síntese, mais uma vez Santo Mazzarino:

A questão de fundo era moderna. O problema que estimulou a polêmica


procopiana foi aquele das relações entre Estado e Igreja. A Alemanni, e
geralmente aos “baronianos”, Justiniano aparecia como o adversário do papado.
Aos juristas adversários de Alemanni, Justiniano aparecia como o defensor do
direito do Estado.

2.4.
Peripécias de um texto “incômodo”

I. 1. Tudo o que aconteceu até o presente, nas guerras, à nação dos romanos, eu
contei, tanto quanto pude fazê-lo, apresentando todos os acontecimentos segundo
os tempos e lugares. O que segue, contrariamente, não mais será exposto desta
maneira, pois aí será descrito tudo o que aconteceu em todas as regiões do
Império Romano. 2. A razão é que me afigurava impossível, enquanto os atores
dessa história ainda estivessem vivos, de escrevê-la da maneira que convinha.
Não era de fato possível escapar da multidão de espiões, tampouco, caso fosse
descoberto, de perecer de uma morte cruel; nem mesmo aos mais íntimos dos
meus próximos poderia confiar. 3. Bem mais, nos livros que precedem, pela força
tive que calar as causas de vários acontecimentos que contava. Necessário será
então revelar ao mesmo tempo o que ficou dissimulado até agora e as causas dos

22
SPERA, Lucrezia: “Cesare Baronio, ‘peritissimus antiquitatis’, e le origini dell’archeologia
Cristiana”. p. 393
30

acontecimentos que contara anteriormente em meu texto. 4. Entretanto no


momento em que me ponho nesta nova tarefa, árdua e inacreditavelmente difícil
― a vida de Justiniano e Teodora ― eis-me aqui a tremer e a hesitar no mais alto
grau ao me dar conta que o que agora escrevo não haverá de parecer verdadeiro,
nem digno de fé para a posteridade. Temo particularmente, quando muito tempo
tiver passado e tiver feito do meu texto algo um pouco antigo, de receber a
reputação de um contador de história e de ser colocado entre os poetas trágicos. 5.
No entanto, não hei de recuar diante da amplidão da tarefa, tendo a certeza de que
os meus dizeres não serão sem respostas. Os homens de hoje que são os mais
sérios testemunhos dos fatos, serão garantias suficientes, para os tempos
vindouros, do crédito que lhes devem conceder23. (A tradução é nossa)

São com essas palavras que Procópio de Cesareia abre o mais intrigante de
seus livros: as Anékdota ou História Secreta. Devemos nos deter com um pouco
mais de atenção na análise do que nos diz o historiador bizantino. No prólogo, são
abordados diversos temas que geram questões particularmente pertinentes ao
trabalho do historiador. Procópio faz referência a escritos anteriores, nos quais
não fora possível expressar toda verdade ― pelo menos não relatara o que
acreditava ser a verdade. A razão de seu silêncio é justificada pelo próprio risco de
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perder a vida, pois vivia em tempos de opressão e temor. Diríamos que parece
surgir nas entrelinhas uma espécie de pedido de perdão. Perdão ao leitor, mas,
sobretudo, à idoneidade da História. Talvez, Procópio tenha consciência de que
falhou, pois não expôs todos os fatos e causas que estavam ao seu alcance para
compor o texto. Nas Anékdota, o historiador de Cesareia constrói uma narrativa
em que o reinado de Justiniano é visto como paroxismo dos piores vícios cristãos,
como a luxúria, a cobiça, a corrupção e a injustiça. Teodora, mulher do imperador,

23
I. 1. Tout ce qui est arrivé jusqu’à présent, dans les guerres, à la nation des Romains, je l’ai
raconté, autant que j’ai pu Le faire, en présentant tous les événements suivant les temps et les
lieux. Ce qui suit, en revanche, ne sera plus exposé de la manière susdite, car y sera décrit tout ce
qui est arrivé dans toutes les régions de l’Empire romain. 2. La raison en est qu’il ne m’était pas
possible, tant que les acteurs de cette histoire étaient encore en vie, d’en écrire de la manière qui
convenait. Il n’était possible en effet, ni d’échapper à la multitude des espions, ni, si j’étais
démasqué, de ne pas périr d’une mort cruelle ; même aux plus intimes de mes proches je ne
pouvais faire confiance. 3. Bien plus, dans les livres qui précèdent, force m’a été de taire les
causes de bien des événements que je racontais. Il me faudra donc révéler à la fois ce qui est reste
dissimule jusqu’à présent et les causes des événements que j’ai racontés auparavant dans mon
texte. 4.Au moment pourtant ou je me mets à cette nouvelle besogne, ardue et incroyablement
difficile ― la vie de Justinien et de Théodora ―, me voici à trembler et à hésiter au plus haut
point en me rendant compte que ce que j’écrirai à présent ne paraîtra ni vrai, ni digne de foi à la
postérité. Je crains en particulier, quand Le long temps qui se sera écoulé aura fait de mon récit
quelque chose d’un peu antique, de gagner la réputation d’un conteur d’histoires et d’être range
parmi les poètes tragiques. 5. Je ne reculerai pourtant pas devant l’ampleur de la tache, ayant
l’assurance que mes dires ne seront pas sans répondants. Les hommes d’aujourd’hui qui sont les
plus sérieux témoins des faits seront des garants suffisants, pour le temps à venir, de la créance à
leur accorder. Césarée, Procope de: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre Maraval.
Paris : Les Belles Lettres, 2009.
31

afigura-se como a grande eminência parda que a tudo controla, em uma sucessão
de planos maquiavélicos.

Mas antes que possamos analisar o autor, o momento de redação das


Anékdota, assim como as implicações histórico-culturais levantadas por esse
texto, é essencial, em primeiro lugar, esboçar o conteúdo da obra. Em segundo,
devemos tecer uma análise, ainda que brevemente, da fortuna crítica das
Anékdota, assim como da mudança semântica pela qual a palavra “anedota” ―
derivada do título do livro de Procópio ― passou.

2.4.1.
As Anékdota: temas e estrutura da obra

Segundo Mihăescu, existem quinze manuscritos das Anékdota, mas somente


três deles são considerados importantes para o estabelecimento do texto, visto que
os outros treze restantes são cópias mais recentes. Os três manuscritos principais
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são conhecidos pelas letras iniciais de seus codex, a saber, “G”; “P”; e “S”.
Mihăescu assim os descreve respectivamente:

G= Vaticanus Græcus 1001 (olim [antigamente] 709) foi descrito por M.


Krašeninnikov e j. Haury24. Data do século XIV, possui 151 folhas, escritas em
duas colunas de aproximadamente 25-30 linhas. O começo e o fim da História
Secreta estão faltando, e alguns capítulos 1, 1-13 e 30, 2-34. O texto da História
Secreta encontra-se nas folhas 1-50. Esse manuscrito foi seguido por N. Alemanni,
que fez sobre as amrgens anotações e emendas, úteis até hoje 25. (A tradução é
nossa)

P= Parisinus suppl. Gr 1185 data do século XIV, possui 64 folhas, cada uma com
26-28 linhas. A História secreta encontra-se às folhas 1-26v, mas falta-lhe o
começo, isto é, os cinco primeiros capítulos. O manuscrito está conservado, possui
umas notas nas margens, mas não contém desenhos ou figuras. Jacob Haury
acredita que ele nos tramsitiu a mais fiel cópia da História Secreta26. (A tradução é
nossa)

S= Ambrosinus G 14 sup (olim [antigamente] T 73 I), do século XIV, possui 176


folhas, cada uma com 25-34 linhas, escritas pela mesma mão, encontrou-se por
24
Cf. subcapítulo Fortuna Crítica
25
“G=Vaticanus Graecus 1001 (olim 709) a fost descris de M. Krašeninnikov și J. Haury. El
datează din secolul al XVI-lea, are 151 foi, scrise pe două coloane de aproximativ 25-30 de
rînduri. Începutul și sfîrșitul Istoriei secrete lipsesc, și anume capitolele 1,1 - 13 și 30, 2-34. Textul
Istorie secrete se află pe foile 1-50. Acest manuscris a fost folosit de N. Alemannus, care a făcut pe
margine adnotații și emendații, astăzi.” MIHĂESCU, H. “Introducere”, 1972. p.6-7
26
“P=Parisinus suppl. Graecus 1185 datează din secolul al XIV-lea, are 64 foi, fiecare de 26-28
de rînduri. Istoria secretă se află pe folie 1-26v, dar îi lipesește începutul, adică primele cinci
capitole. Manuscrisul este îngrijt, are unele însemnări pe margine, dar nu conține desene sau
figuri. Jacob Haury, crede că el na-a transmis cea mai fidelă copie a Istorie secrete.” Idem p. 7
32

algum tempo na posse de I. V. Pinellus. Esse manuscrito foi descrito


primeiramente por M. Krašeninnikov, depois por J. Haury. O começo está
mutilado27. (A tradução é nossa)

As edições das Anékdota, até onde sabemos, são inexistentes em língua


portuguesa, por conseguinte, podemos considerá-las de difícil acesso. Assim
sendo, para que o leitor possa acompanhar de forma mais eficaz a pesquisa que
aqui expomos, acreditamos ser essencial a apresentação de um resumo da obra.
Desde logo, estamos conscientes de que todo esforço de síntese implica uma
seleção subjetiva. Porém, tal constatação não fez com que desistíssemos da
elaboração de uma síntese que fosse a mais objetiva possível, oferecendo ao leitor
uma ideia da estrutura e dos temas principais tratados nas Anékdota. Nosso
resumo estruturar-se-á a partir dos capítulos e de seus respectivos títulos,
conforme constam na edição francesa de Pierre Maraval28. Naquelas passagens,
que acreditamos ser de maior relevância para a interpretação da obra, abrimos
mão da síntese feita com nossas próprias palavras e preferimos citar diretamente o
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texto das Anékdota. Resumimos igualmente alguns episódios que podem, à


primeira vista, parecer de caráter secundário. Entretanto, acreditamos que estes
por serem eminentemente anedóticos, são mais do que representativos do espírito
da obra e, por tal, importantes para serem transmitidos ao leitor. Em todo caso, é
preciso lembrar que aqui demos maior destaque aos trechos e seus respectivos
conteúdos que não foram citados e analisados em outros capítulos ou subcapítulos
desta tese, pretendendo assim ter evitando desnecessárias repetições.

É importante ainda lembrar o caráter não linear das Anékdota, mesmo que
no seu prólogo o autor declare que se trata de um complemento à sua História das
Guerras e que iria estruturá-lo simplesmente mostrando as causas verdadeiras dos
acontecimentos que contara anteriormente. Isso, em um primeiro momento, pode
levar o leitor a pensar que as Anékdota organizam-se basicamente a partir de
constantes referências à História das Guerras. É certo que Procópio remete o
leitor, em vários momentos, a essa sua obra. No entanto, quanto mais as Anékdota

27
“S=Ambrosianus G 14 sup. (olim T 73 I) din secolul AL XIV-lea are 197 foi, fiecare de 25-35
de rînduri, scrise de aceeași mînă, aflat pe veremuri în posesia lui I.V. Pinellus. Acest manuscris a
fost descris mai întîi de M. Krašeninnikov, apoi de J. Haury. Începutul e mutilat.” Idem.
28
Pierre Maraval (1933-), historiador e tradutor francês, professor emérito da Universidade de
Paris IV-Sorbonne. Suas pesquisas são dedicadas à história do cristianismo antigo e da
Antiguidade Tardia.
33

avançam, mais elas se tornam uma crítica ampla e geral ao reinado de Justiniano,
deixando de lado a remissão à História das Guerras, como conclui Maraval: “E a
obra não aparece mais como um complemento às Guerras, mas como uma
releitura negativa, pelo historiador, de 32 anos de reino (518-550), uma crítica
generalizada e feroz dos soberanos e de todos os aspectos de sua política”29.

Prólogo

Procópio demonstra o grande temor que possui em escrever as Anékdota.


Justifica, entretanto, o que o conduziu a isso.

I. A má conduta de Antonina

Breve descrição da história e do caráter de Antonina ― mulher de


Belizário, importante general de Justiniano a quem Procópio de Cesareia serviu ―
a mãe era prostituta no teatro e o pai cocheiro.
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Em Cartago, Belizário encontra Antonina, em um quarto subterrâneo,


tendo relações extraconjugais com Teodósio, seu filho adotivo. Entretanto
Belizário acredita nas falsas desculpas de sua mulher: alega que estaria aí
simplesmente escondendo um tesouro.

Em Siracusa, na Sicília, uma criada chamada Macedônia conta a Belizário


sobre a infidelidade de Antonina. Belizário manda matar Teodósio, mas este foge
para Éfeso. Antonina, “como um escorpião, que esconde sua maldade à sombra
[...] persuade seu marido ou por artifícios mágicos, ou por adulação, a acredita que
a acusação dessa mulher não tinha fundamento”. Belizário permite que Teodósio
volte e manda cortar a língua da criada Macedônia. Em seguida, ordena que seja
esquartejada aos poucos. Teodósio teme que Belizário descubra realmente a
traição e foge outra vez para Éfeso, fingindo que se tornara monge.

II. Belizário em Campanha contra os persas

Belizário é enviado em campanha contra os persas. Antonina permanece


em Constantinopla, o que não era habitual: “visto que tinha medo de que seu

29
MARAVAL, Pierre: “Introduction” in CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. p. 11.
34

marido, ficando a sós, caísse em si e, sem mais temer seus sortilégios, tomasse no
seu lugar alguma decisão necessária, tinha o cuidado de acompanhá-lo por todos
os lugares” 30.

Fotios, filho de Antonina, denuncia a própria mãe a Belizário. Belizário


pede que o enteado prenda Teodósio. Fotios “de fato não tinha nenhuma
confiança no caráter sem firmeza, pelo menos no que dizia respeito à mulher de
Belizário e várias coisas o incomodavam, especialmente o destino de Macedônia”
31
. Após juramentos “que para os cristãos são os mais solenes”, combinam que
esperariam que Antonina viesse ao encontro do marido e Fotios prenderia
Teodósio quando ele chegasse a Éfeso. Belizário toma o Forte de Sisaurana, mas
resolve recuar o exército, pois sabe que Antonina chegará: “Belizário foi acusado
por todos os romanos de ter subordinado os interesses mais importantes do Estado
a seus assuntos domésticos” 32.
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III. Belizário, Antonina e Teodora

Belizário mantém Antonina presa. Novas acusações de práticas mágicas.


Teodósio refugia-se no Santuário do Apóstolo João para não ser capturado por
Photios. A imperatriz Teodora ao saber do que ocorria com Antonina, manda que
Belizário retorne a Constantinopla. Teodora submete Fotios a terríveis torturas,
encerrando-o nos seus “quartos secretos totalmente desconhecidos, obscuros e
isolados, nos quais não era possível distinguir a noite do dia” 33 e, por fim, entrega
Teodósio aos braços de Antonina. Fotios consegue fugir e refugia-se,
primeiramente, no templo da Mãe de Deus, mas Teodora viola o templo e o
detém. Fotios, pela segunda vez, escapa da prisão, refugiando-se agora no
santuário da Sabedoria, “mas mesmo lá a mulher [Teodora] consegue arrancá-lo,
pois nenhum lugar inviolável foi por ela respeitado. Pelo contrário, violar tudo
34
que era sagrado parecia não ser nada diante dos seus olhos” . Fotios passa três
anos preso, até que lhe aparece em sonho o profeta Zacarias. O profeta diz que
poderia fugir, pois iria protegê-lo: “Impulsionado por essa visão, fugiu e de lá

30
CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. Tradução para o francês de Pierre Maraval. (II:2)
p.32-31
31
Ibid., (II:12) p.34
32
Ibid. (II: 21) p.35
33
Ibid. (III: 21) p.39
34
Ibid. (III: 25) p.39
35

atingiu secretamente Jerusalém, enquanto milhares de homens o procuravam.


Nenhum reconheceu o jovem, mesmo quando eles o encontravam” 35.

IV. Desgraça e volta às graças de Belizário

A peste assola Constantinopla. O Imperador Justiniano fica gravemente


doente. Justiniano se recupera. Pedro, o General, e João, o Glutão, dizem ter
escutado Belizário e Buzés afirmar que, caso Justiniano viesse a morrer, não
reconheceriam Teodora como sua sucessora; “a imperatriz Teodora ficou louca de
raiva [...]. Logo os chamou a Bizâncio e instaurou um inquérito sobre esses
rumores” 36. Buzés é encarcerado na prisão subterrânea de Teodora e aí passa dois
anos e quatro meses sem ver a luz do dia. “Quanto a Belizário, ainda que não
tenha sido provado nenhum dos erros que lhe eram atribuídos, o imperador
destituiu-lhe sob pressão da imperatriz e de seu cunhado, e em seu lugar
estabeleceu Martinho como general do Exército do Oriente” 37.
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Belizário perde todas as honras de general e se arrasta pelas ruas com medo
de ser morto a mando da imperatriz. Teodora mantém-se amiga de Antonina,
porque esta última era necessária aos seus planos. Belizário humilha-se ao receber
uma carta de perdão da imperatriz:

[Belizário] subiu até seu quarto com esses sentimentos de temor, ficou sentado,
sozinho sobre a cama, sem nenhuma coragem, esquecendo o homem que ele fora,
constantemente molhado de suor, totalmente consternado, tomado por um grande
tremor, atormentado por medos de escravo e preocupações totalmente covardes
por sua vida. Quanto à Antonina, como se ela ignorasse tudo o que havia
ocorrido, e não duvidasse do que ia acontecer, passeava sem cessar pelos lugares,
fingindo ter problemas de estômago [sic], pois eles tinham uma atitude de
suspeita mútua. Naquele momento, quando o sol já se pusera, chegou um homem
do palácio chamado Quadratus. Após atravessar a porta do pátio, deteve-se
repentinamente naquela do apartamento dos homens, dizendo que era enviado
pela imperatriz. Quando Belizário ouviu isso, estendeu os braços e pernas sobre a
cama e aí ficou estendido pronto para ser morto, de tanto que a coragem viril o
havia abandonado. Então, Quadratus entrou, aproximou-se e mostrou uma carta
da imperatriz. A carta exprimia-se nesses termos: “O que nos fizeste, tu sabes.
Mas eu, porque tenho muitas obrigações em relação a sua mulher, decidi perdoar
todos esses seus erros se tu fizeres dom da tua vida a esta última. A partir de
então, tu poderás estar seguro da tua vida e dos teus bens; mas o que tu serás em
relação a ela, saberemos por teu comportamento futuro”. Belizário leu a carta, ao
mesmo tempo transido de alegria e no mesmo instante querendo dar uma prova de

35
Ibid. (III: 28) p.39
36
Ibid. (IV: 5-6) p.40
37
Ibid. (IV: 13). p.41
36

seus sentimentos, logo se levantou e se jogou de rosto aos pés da mulher.


Segurando as duas pernas, com cada uma das mãos, não parava de passar a boca
sobre os calcanhares da mulher, chamando-a de razão da sua vida e de sua
salvação e assegurava que, a partir daquele momento, não mais seria seu marido,
mas seu fiel escravo.38

Belizário é reabilitado e enviado pela segunda vez à Itália para combater.

V. Segunda Campanha da Itália. Intrigas de Teodora.

Na Itália, Belizário durante cinco anos consegue desembarcar somente


onde havia fortalezas. Totila deseja enfrentar o exército romano, mas Belizário
teme a guerra do lado de fora, desprotegido das muralhas.

Teodora quer que seu neto se case com a única filha de Belizário e
Antonina, pois tem o objetivo de se apropriar das riquezas que ela viria a herdar.
Os pais, para retardar o casamento, alegam que estão na Itália e não poderiam
comparecer à cerimônia. Teodora, obstinada em seu propósito, obriga os dois
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jovens a viverem juntos. O casal acaba por se apaixonar, mas, após a morte de
Teodora, Antonina impediria que o casamento fosse oficializado.

VI. História de Justino. Seu sobrinho Justiniano

Na época em que o imperador Leon reinou, três jovens pobres vão para
Constantinopla tentar a vida e se alistam no exército. Em seguida, são convocados
para a guarda do palácio. Já sob o reinado de Anastácio, o general João, o

38
“Etant monté dans sa chambre dans ces sentiments de crainte, il était assis, seul, sur son lit,
sans aucun courage, oubliant quel homme il avait été, constamment trempré de sueur, tout
boulversé, saisi d’un grand tremblement, tourmenté par des peurs d’esclave et des préoccupations
tou à fait lãches pour sa vie. Quant à Antonina, comme si elle ignorait tout de ce qui s’était passé
et ne se doutait pas de ce qui allait arriver, elle se promenait sans cesse dans les parages en
feignant d’avoir des maux d’estomac, car ils avaient encore une attitude de suspicion mutuelle.
Sur ces entrefaites, alors que le soleil était déjà couché, arrivait un homme de palais, nommé
Quadratus. Ayant passé la porte de la cour, il se tint soudain devant celle de l’apartement des
hommes, en disant qu’il était envoyé là para l’impératrice. Quand Bélisaire entendit cela, il
étendit bras et jambes sur sa couche et y resta étendu, tout à fait prêt à ce qu’on le tue, tant l’avait
abandonné tout courage viril. Alors Quadratus, entré là auprès de lui, lui montra une lettre de
l’impératrice. La lettre s’exprimait en ces termes: ‘Ce que tu nous as fait, très cher, tu le sais.
Mais moi, parce que j’ai beaucoup d’obligations envers ta femme, j’ai décidé de te pardonner tous
ces griefs si tu fais don de ta vie à celle-ci. Désormais, tu peux avoir confiance pour ta vie et tes
biens ; mais ce que tu seras envers elle, nous le saurons par ta conduite à venir’ Quand Bélisaire
eut lu cela, à la fois transporté de joie et voulant à l’instant même donner une preuve de ses
sentiments, il se leva aussitôt et tomba sur le visage aux pieds de sa femme. Tout en tenant ses
deux jambes de chaque main et en ne cessant de promener sa bouche sur les chevilles de sa
femme, il l’appelait cause de sa vie et de son salut et assurait qu’à partir de ce moment, il ne
serait plus so mari, mais son fidèle esclave. ” Ibid
37

Corcunda, condena Justino à morte, mas um sonho acaba fazendo com ele mude
de ideia. O Imperador Anastásio nomeia Justino chefe da guarda do palácio.
Justino é apresentado como sem nenhuma espécie de preparação para exercer a
função imperial, além de ser facilmente manipulável:

Ele já era um velho próximo do túmulo, totalmente ignorante das letras e, como
se diz, analfabeto, o que jamais acontecera anteriormente, pelo menos entre os
imperadores romanos. O costume pedia que o imperador colocasse sua própria
assinatura nos documentos que transmitiam suas ordens, mas ele não era capaz
de dar ordens tampouco de verificar o que fora feito. Mas àquele que coube a
tarefa de conselheiro, certo Protocolos, que exercia o ofício a que chamamos de
questor, decidia tudo segundo a sua vontade. Para ter, no entanto, um atestado
feito pela própria mão do imperador, aqueles a quem cabia essa tarefa
imaginaram a seguinte coisa.

Mandaram furar em um pequeno pedaço de madeira na qual havia recortado o


desenho das quatro letras que significavam, em língua latina, “lido”,
mergulhavam a pena na tinta que era utilizada habitualmente pelos imperadores
para escrever, e a colocavam na mão desse imperador. Colocavam então esse
pequeno pedaço de madeira sobre o documento, e segurando a mão do
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imperador, eles passavam a pena pelo recorte das quatro letras, seguindo todos os
pequenos entalhos da madeira, conseguindo dessa forma obter as assinaturas do
imperador.39

VII. Os tumultos provocados pelas facções

A população estava dividida em duas facções opostas: os azuis e os


verdes40. Justino apoiava os azuis, esse apoio incitou ainda mais as paixões das

39
“Il était alors déjà un vieillard proche du tombeau, totalement ignorant des lettres et, comme on
dit, analphabète, ce qui n’était jamais arrivé auparavant chez les Romains du moins. Alors que la
coutume voulait que l’empereur appose sa propre signature sur les documents qui transmettaient
ses ordres, lui n’était pas capable de donner des ordres ni de vérifier ce qui avait été fait. Mais
celui à qui échut la tâche de conseiller, un nommé Proclos, qui exerçait l’office de celui qu’on
appelle le questeur, décidait de tout selon son gré. Pour avoir cependant une attestation de la
main de l’empereur, ceux à qui incombait cette charge imaginèrent la chose suivante. // Ayant fait
creuser dans un petit morceau de bois travaillé le dessin des quatre lettres qui signifient, en
langue latine, qu’on a lu, ils plongeaient la plume dans l’encre dont les empereurs se servent
habituellement pour écrire et la mettaient dans la main de cet empereur. Plaçant alors ce morceau
de bois dont j’ai parlé sur le document et prenant la main de l’empereur, ils passaient avec la
plume dans la marque des quatre lettres et suivaient toutes les encoches du bois, réussissant ainsi
à obtenir des signatures de l’empereur.” Ibid (VI : 11-16) p. 50
40
A respeito das duas facções do hipódromo, que incitavam verdadeiras paixões em
Constantinopla, traduzimos aqui a nota explicativa de Maraval, na sua edição das Anékdota: “As
duas principais facções do circo, designadas segundo a cor dos cocheiros que elas apoiavam, os
Verdes e os Azuis (Venetoi e Prasinoi) desempenharam no império bizantino, e em Bizâncio
[Constantinopla] em particular, um papel político importante. Procópio falou delas em seu relato
da revolta de Nika, quando os Azuis e os Verdes, em um primeiro tempo, se ligaram contra o
imperador (I, 24). Já nessa passagem ofereceu uma apresentação muito crítica e qualificava a
atitude dos membros dessas facções como ‘uma doença da alma’ (I, 1-6). Os membros dessas
facções eram na sua maior parte pessoas do povo, mas seus dirigentes pareciam ser originários, do
lado dos Azuis, da velha aristocracia senatorial, aquela dos grandes proprietários de terras; do lado
dos Verdes, a burguesia enriquecida pelo comércio e a indústria e funcionários que haviam feito
38

referidas torcidas, o que teria conduzido à mais completa desorganização do


estado. Segue-se a enumeração dos mais diversos distúrbios da ordem pública
gerados por essa rivalidade entre facções.

VIII. Justiniano: aspecto e caráter

Comparação do caos que se havia instaurado no Império a uma doença. O


imperador, ainda que frequentasse de forma assídua o hipódromo, não faria
questão de perceber os problemas que aí ocorriam. Justino41 é assim qualificado:
“era extraordinariamente idiota e se parecia completamente a um asno estúpido
pronto para seguir, agitando continuamente as orelhas, a quem lhe puxasse as
42
rédeas” . Justiniano logo que recebera o império de seu tio, Justino, gastou de
forma inconsequente os recursos públicos. Concedia vultosas somas aos hunos, o
que provocou ainda mais incursões desse povo em busca de dinheiro. Discrição
do aspecto físico de Justiniano, este seria parecido com o imperador romano
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Domiciano:

[...] do qual os romanos sofreram a perversidade a tal ponto que, mesmo após tê-
lo cortado em pedaços, não apaziguaram a sua cólera contra ele; mas houve um
decreto do senado declarando que até o nome desse imperador não figuraria nos
documentos e não seria conservada nenhuma espécie de imagem dele. 43

No que diz respeito ao caráter de Justiniano, Procópio afirma que:

Não saberia descrevê-lo exatamente, pois esse homem era ao mesmo tempo
velhaco e ingênuo, daqueles que chamamos de “louco e malvado”, não dizendo
jamais a verdade àqueles que o encontravam, mas falando e agindo em tudo e
sempre com um espírito de enganação, e aliás expondo-se facilmente a quem
quisesse enganá-lo44.

carreira, destes muitos eram originários das províncias orientais. Em matéria religiosa, os Azuis
eram ortodoxos, os Verdes monofisitas. Os acontecimentos relatados nesse capítulo sobre o
reinado de Justino, apoiado pela aristocracia, foi o triunfo da facção dos Azuis” (A tradução é
nossa) MARAVAL, Pierre (nota 1, capítulo VII) in CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète. p.
163.
41
Procópio de Cesareia direciona também aqui essa crítica a Justino e não a seu sobrinho
Justiniano, como se poderia pensar em uma primeira leitura. Maraval diz que alguns comentadores
acreditaram que Procópio falava de Justiniano e não de Justino, o que não é exato.
42
Ibid., (VII, 3) p. 57
43
Ibid., (VIII, 13) p. 58
44
“[..] je ne saurais le décrire exactement. Car cet homme était à la fois un coquin et un naïf, de
ceux qu’on appelle ‘fous et méchants’, ne disant jamais lui-même la vérité à ceux qu’il
rencontrait, mais parlant et agissant en tout et toujours dans un esprit de tromperie, et para
ailleurs s’exposant facilement à quei voulait le tromper.” Ibid, VIII, 22. p. 59
39

IX. Teodora: infância, juventude e casamento

Akakios, que era “guardião dos animais selvagens do circo, da facção dos
45
Verdes, chamado de Mestre dos Ursos” , morre na época do reinado de
Anastácio e deixa três filhas: Comito; Teodora e Anastácia. A viúva de Akakios
casa-se novamente. Seu segundo marido vem a desempenhar, igualmente, a
função de “guardião das feras”. Entretanto, este é destituído do referido cargo,
apesar das súplicas de suas enteadas. O padrasto de Teodora passa a ser “Mestre
dos Ursos” da facção adversária, os Azuis. Visto que as três irmãs eram de grande
beleza, a mãe faz com que elas sejam atrizes.

Procópio afirma que Teodora, mesmo não estando completamente


formada, já se deitava com escravos e fazia uso “contra a natureza de seu
corpo”46. Teodora, assim que “chegou à adolescência e estava suficientemente
crescida, juntou-se àquelas que se produzem no palco e logo se tornou uma
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cortesã daquelas que os antigos chamavam de infantaria” 47.

Segue-se a longa e minuciosa descrição das práticas sexuais de Teodora.


Procópio a caracteriza como de uma devassidão sem limite e nenhuma forma de
pudor. Teodora torna-se amante de Hékebolos, governador de Pentapole. Por tê-
lo ofendido, é expulsa e fica sem meios de subsistência. Para sobreviver se
prostitui por todo o Oriente e ganha grande renome. Por fim, retorna à
Constantinopla. Justiniano apaixona-se perdidamente por Teodora e se tornam
amantes; “Teodora consegue adquirir uma extraordinária influência e riquezas
consideráveis”48. Justiniano fica gravemente doente. As duas facções, os Verdes e
os Azuis, se enfrentam e cometem vários crimes, entre estes, assassinam, dentro
do templo da Sabedoria, Hipatios. Justino ordena que o prefeito do Pretório, então
um certo Teódoto, investigue e descubra os assassinos. Nesse meio tempo, contra
todas as expectativas, Justiniano se recupera e volta a exercer sua influência no
governo de seu tio, Justino. Justiniano, para poder condenar Teódoto, prende seus
familiares, retirando destes confissões sob tortura que acusavam Teódoto de
feitiçaria. Somente o questor Protoclos põe-se em defesa de Teódoto. Este último

45
Ibid., IX: 1. p.p. 60-61
46
Ibid., IX: 10. p. 61
47
Ibid., IX: 11 p. 61
48
Ibid., IX:31 p. 64
40

é deportado para Jerusalém, mas avisado que seria morto refugia-se em um


santuário. A imperatriz Eufemia, mulher de Justino, opõe-se ao casamento de
Justiniano e Teodora. Com a morte da imperatriz Eufemia, Justiniano faz com que
seu tio revogue a lei que impedia que um senador desposasse uma cortesã, o que
possibilita o consórcio de Justiniano com Teodora. Justiniano, que já se
encontrava “completamente decrépito e prestava-se ao riso de seus súditos”,
tornam-se os únicos senhores de todo o Império.

X. Teodora imperatriz. Sua política

Procópio lamenta o casamento de Teodora com Justiniano, afirmando que


este poderia desposar “[...] uma mulher que fosse de melhor nascimento que todas
[as outras] e que tivesse sido criada à parte, uma mulher que não tivesse ignorado
49
o pudor, mas que tivesse habitado com a castidade [...]” . Critica os senadores
por não se terem colocado contra esse casamento, mas, pelo contrário, “[...] se
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50
prosternavam diante dela [Teodora] como diante de uma Deusa” . Critica,
também, padres e o povo pela aceitação dessa união. Descreve de Teodora como
“[...] bela de rosto e por outro lado encantadora [...] tinha o olhar sempre
51
imperioso e direto” . Justiniano e Teodora “[...] não fizeram nada um sem o
outro durante toda sua vida em comum”52, mesmo quando aparentavam estar em
lados opostos, estavam em conformidade entre si; agiam dessa forma “[...] para
que seus súditos, caso não compartilhassem o ponto de vista deles, não se lhes
opusessem, assim as opiniões a respeito deles poderiam ser diferentes em todos as
partes”53. Ficam em lados opostos em relação às facções do circo. Teodora apoia
os azuis e concede-lhes demasiados poderes. Ao incitar a rivalidade entre as
facções, diversos crimes são cometidos. Conclui-se que: “através dessas
maquinações, estavam sempre em acordo um com o outro, fingindo exteriormente
estarem em desacordo, e conseguir semear a divisão entre seus súditos e fortificar
com muita firmeza sua tirania”54.

49
Ibid., X:2 p. 67
50
Ibid., X:6 p. 67
51
Ibid., X: 11 p. 68
52
Ibid., X: 13 p.68
53
Ibid., X: 14
54
Ibid., X:23 p. 69
41

XI. Política de Justiniano em relação aos Bárbaros

Justiniano procede a uma grande alteração nas leis, introduz modificações


nas magistraturas e no exército, faz todas essas modificações: “sem se deter no
que era justo, nem se deixar guiar pelo interesse público, mas para que tudo fosse
novo e levasse seu nome”55. Liberalidades financeiras em relação aos bárbaros: o
imperador dá vultosas somas de dinheiro para provocar as guerras entre as tribos
bárbaras. Procópio critica a política imperial contra grupos religiosos que não
comungavam da ortodoxia (samaritanos, arianos e, também, pagãos). Proscrição
da “pederastia”; eram punidos “não somente os delitos cometidos após a
promulgação da lei, mas, até mesmo, aqueles que antigamente haviam sido
tomados por essa doença”56. Falsas acusações de pederastia com o intuito de se
apropriar de riquezas e punir opositores; os acusados são castigados com
castrações e humilhações públicas. São perseguidos igualmente os versados em
astrologia.
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XII Saque dos bens dos senadores. Características demoníacas de Justiniano

Zenão é nomeado governador do Egito, embarca suas riquezas para levá-


las para onde assumiria o novo posto. A mando do imperador, um grupo de
pessoas se faz passar por fieis empregados de Zenão, incendeiam o barco e
informam que as riquezas haviam sido perdidas, quando, na verdade, haviam sido
roubadas por Justiniano. Pouco tempo depois, o mesmo Zenão vem a morrer, um
testamento é forjado para que o Imperador receba a herança. Da mesma forma,
Justiniano se apropria da herança dos mais importantes senadores: Tatianos,
Demóstenes e Hilara. Apropria-se ainda de heranças, forjando cartas. João, filho
de Basílio, estava como refém dos persas e sua avó obtém a quantia necessária
para o resgate. No entanto, o imperador não permite que o resgate seja entregue
aos persas, alegando que a “riqueza dos romanos” não poderia ir para os bárbaros.
Tempos depois, o referido João vem a morrer, uma carta falsificada é apresentada,
na qual João diz que desejava fazer de Justiniano seu herdeiro. Procópio afirma:
“não poderia enumerar os nomes de todas as outras gentes das quais se tornaram

55
Ibid., XI:2 p. 70
56
Ibid., XI: 34. p. 73
42

57
automaticamente os herdeiros” . A intensidade e a quantidade de males
perpetrados pelo casal imperial são apresentados por Procópio como prova do
caráter demoníaco de Justiniano e Teodora. Diversos relatos de pessoas que
teriam presenciado manifestações sobrenaturais e demoníacas do casal imperial.

XIII. Comportamento de Justiniano

Procópio tece uma série de críticas que se relacionam, sobretudo, às características


e aos hábitos mais pessoais de Justiniano:

• Era “afável e doce”, assim como acessível a todos que vinham ter com ele,
porém era com um “[...] semblante plácido, sem mostrar a menor emoção e com a
voz doce que ordenava o massacre de milhares de pessoas completamente
inocentes, a destruição de cidades e a confiscação de todos os bens para o tesouro
público [...]” 58.
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• Aparentava possuir fé em Cristo, mas alegava isso para permitir que os padres
usassem de força contra as pessoas, permitindo que eles se apropriassem das
riquezas alheias.

• Reprimia com extrema violência as dissidências religiosas.

• Possuía um caráter volúvel, “[...] sua opinião seguia contrariamente ao que dizia
e ao que desejava manifestar” 59 e possuía um desenfreado apego pelos elogios.

• Era implacável com suas inimizades e infiel com as amizades: “Como inimigo,
era resoluto e inabalável, mas em relação aos amigos era inconstante de modo que
causou verdadeiramente a ruína da maior parte daqueles que lhe eram devotados
[...]” 60.

57
Ibid. (XII: 1). p. 75
58
Ibid. (XIII: 2) p.p. 78-79
59
Ibid. (XIII: 14). p.80
60
Ibid. (XIII: 16). p.80
43

•Era capaz de altear as leis que ele próprio promulgara mediante o recebimento de
dinheiro, “mas se eles [os enviados] houvessem feito prova de moderação em
relação às pessoas, ficava desde então indisposto e hostil com eles” 61.

• Honrava aqueles seus enviados que agiam com violência e pilhavam as riquezas.

•Era parcimonioso na alimentação e dormia muito pouco, pois “tais coisas


pareciam-lhe necessidades secundárias impostas pela natureza [...]” 62.

XIV. Desordens em matéria de direito

Procópio acusa Justiniano de permanecer um bárbaro tanto na sua


linguagem e no seu aspecto exterior, assim como na sua maneira de pensar. O
imperador escrevia ele mesmo as leis e em seguida as mandava publicar, passando
por cima do cargo de questor, apesar das suas deficiências em grego.
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O senado torna-se uma instituição figurativa. O casal imperial fingia


divergir sobre os assuntos em pauta no senado, “[...] mas o que importava é o que
havia sido combinado entre eles a esse respeito”63. Acusação da criação e
alteração das leis mediante recebimento de dinheiro por parte do Imperador, o que
fazia com que “as decisões provenientes do Palácio achavam-se na praça do
mercado: lojas as colocavam à venda, não somente aquelas que diziam respeito à
justiça, mas também aquelas que diziam respeito às leis” 64.

Leon, originário da região da Cilícia, extremamente hábil e ganancioso por


riquezas, foi quem convenceu Justiniano a receber dinheiro em troca de leis e de
decisões; “qualquer um que tivesse vontade de acusar injustamente um homem de
bem ia diretamente a Leon e, depois de ter prometido ao tirano e a ele uma parte
dos bens que seriam confiscados, saía do palácio, imediatamente, vencedor contra
toda justiça”65

61
Ibid. (XIII: 24). p.81
62
Ibid. (XIII: 28). p.81
63
Ibid. (XIV: 8). p. 83
64
Ibid. (XIV: 10). p. 83
65
Ibid. (XV: 18). p. 84
44

XV. Comportamento de Teodora

Teodora é descrita como obstinada e inamovível em seus projetos cruéis.


No plano pessoal era demasiadamente vaidosa: “De seu corpo cuidava mais do
66
que era necessário, mas menos do que ela desejava” . Justiniano era acessível a
todos os seus súditos, pois: “Toda licença era concedida às gentes, fossem elas de
condição modesta e totalmente desconhecidas, não só para se aproximarem desse
67
tirano, mas para conversar e tratar em privado com ele.” . Já Teodora era
praticamente inabordável:

“Junto à imperatriz, em compensação, mesmo para um magistrado, o acesso era


possível somente depois de muito tempo e esforço, e todos não deixavam de ficar
servilmente na antecâmara, esperando todo tempo em um cômodo estreito e
sufocante. Era de fato, para um magistrado, muito perigoso estar ausente.”68

Um patrício, de idade já avançada, vai até a Teodora e solicita que ela faça
com que um de seus serviçais pague o que lhe deve. Avisada de antemão e para
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escarnecer do suplicante, a imperatriz convoca seus eunucos e ordena que eles


repitam em coro todas as suas respostas. Após ouvir a súplica do velho patrício,
Teodora simplesmente diz: “Tu tens uma grande corcunda”, os coros de eunucos
repete a mesma frase. Já exausto, o patrício se retira.

XVI. Teodora e seus inimigos

•Amalasunte, rainha ostrogoda, pretende ir à Constantinopla. Teodora com


ciúmes e, por isso, temerosa da sua presença, convence Justiniano a enviar Pedro
o Patrício69 como embaixador à Itália. Teodora promete grandes riquezas a Pedro
o Patrício para que ele ponha fim em Amalasunte. Chegando à Itália, Pedro o
Patrício convence Théodat a assassinar Amalasunte.

•Prsicos, secretário de Justiniano. Teodora relata a Justiniano que Priscos


fora arrogante com ela. Sem resultados imediatos, Teodora sequestra Priscos e faz
com que ele se torne padre. O imperador aparenta não sentir a ausência do seu
secretário, no entanto, apodera-se de seus bens.

66
Ibid. (XV: 6). p.85
67
Ibid. (XV: 12). p.86
68
Ibid, (XV: 13). p.86
69
Procópio faz referência a essa personagem simplesmente como “Pedro”, é Maraval que o
identifica como Pedro o Patrício.
45

•Areobindos, serviçal de Teodora. A Imperatriz apaixona-se por esse seu


belo serviçal. Com receio dos rumores que começam a circular sobre sua paixão,
submete Aerobindos às piores torturas. Depois disso, esse jovem desaparece.

•Basianos, membro da facção dos Verdes, lança injúrias contra Teodora.


Basianos refugia-se no Templo do Arcanjo. A imperatriz dá ordem de prendê-lo,
não por tê-la injuriado, mas sim o acusando de ser pederasta. Apesar dos pedidos
de clemência do povo, Basianos é supliciado e castrado.

•Diógenes, membro da facção dos Verdes, “[...] um homem de espírito,


70
amado por todos e pelo próprio imperador [...]” . Visto que Diógenes era da
71
facção dos Verdes, a imperatriz o acusa de ter praticado “amores masculinos” .
Não tendo êxito em seu plano de acusação, Teodora “[...] manda encerrar
72
Teodoro, um dos parentes de Diógenes, nas suas prisões habituais” . A
imperatriz oferece a Teodoro recompensas, na esperança de que ele prestasse um
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testemunho contra Diógenes. Sem resultado, submete-o às piores torturas, mas,


mesmo assim, não obtém o almejado testemunho. “Os juízes absolvem Diógenes,
por falta de testemunhos, e a cidade festeja publicamente o acontecimento” 73.

XVII. Outros crimes de Teodora

Dois membros da facção dos Azuis atacam o governador da Província da


Segunda Cilícia, Callinicos. O escudeiro de Callinicos, tentando proteger o seu
senhor, acaba sendo morto. Os dois referidos membros da facção dos Azuis são
condenados. Teodora, ao se inteirar da notícia, “[...] para mostrar seu favor em
relação aos Azuis [...]”74, ordena que Callinicos seja empalado.

Teodora ordena que 500 mil prostitutas sejam enclausuradas no monastério


75
de Metanóia, “[...] forçando-as a mudar de vida” . Mas o projeto fracassa, pois

70
Ibid., XVI: 23. p. 91
71
Idem
72
Ibid., XVI: 25. p. 92
73
Ibid., XVI: 28. p. 92
74
Ibid., XVII: 3. p. 92
75
Ibid., XVII: 5. p. 93
46

“algumas se jogavam de noite do alto desse monastério e escapavam assim a essa


transformação que não desejavam” 76.

A imperatriz obriga duas nobres viúvas da mais alta linhagem a se casarem


77
com “[...] dois homens do comum, grosseiros personagens [...]” . As duas
mulheres refugiam-se no Santuário da Sabedoria, mas Teodora viola o Santuário,
fazendo com que elas cedam à sua ordem; “estas então, contra a vontade,
desposaram homens pobres e muito inferiores a seu status, ainda que tivessem
pretendentes de nobre família” 78.

Teodora, na época em que trabalhava no teatro, fica grávida. Mas o estado


avançado da gravidez não permite que, como de costume, ela aborte. O pai da
criança acaba por reconhecer o filho, dando-lhe o nome de João. Em seguida, pai
e filho vão para a Arábia. Pouco antes de morrer, o pai revela a João a identidade
de sua mãe. João vai a Constantinopla e consegue uma audiência com sua mãe, a
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agora imperatriz. “Após, tê-lo visto [...] entregou-o a um dos seus criados [...]. E
eu não saberia dizer de qual maneira o infeliz desapareceu de dentre os homens,
mas ninguém pôde revê-lo até o dia de hoje, mesmo após a morte da imperatriz”
79
.

Procópio afirma que “[...] nessa época os costumes de quase todas as


mulheres se perverteram”, pois qualquer mulher que cometesse o adultério
encontrava proteção junto à Imperatriz. Afirma, igualmente, que Teodora escolhia
a seu bel prazer os casamentos, contrariando a vontade dos noivos; dá o exemplo
de Saturnino, filho de Hermógenes, que, mesmo tendo o quarto nupcial já
preparado, “foi levado a outro quarto nupcial e aí desposou, não sem lágrimas e
gemidos, a filha de Chrysomallo” 80.

76
Idem
77
Ibid., XVII: 7. p.93
78
Ibid., XVII: 11. p. 11
79
Ibid., XVII: 22-23. p.94
80
Ibid., XVII: 33. p. 95
47

XVIII. Guerras e catástrofes sob Justiniano

A dimensão dos males causados por Justiniano é apresentada como prova


81
de que ele seria “[...] um demônio que tomou a forma humana” . Procópio
calcula que milhões de pessoas pereceram: “se asseguramos, desde já, que cinco
milhões de homens pereceram na Líbia, eu acredito que não damos conta
82
suficientemente da realidade” . Elenca as razões para essas mortes na Líbia,
começando por apontar que, após a derrota dos Vândalos, Justiniano chamou de
volta “[...] Belizário, acusando-o de tirano ― o que era completamente
injustificado ―, a fim de poder em seguida, administrando a Líbia a seu gosto,
despojá-la e pilhá-la completamente”83. E continua o elenco de medidas nefastas:
instalação de inspetores de terras; impostos altos; confisco das melhores
propriedades; proibição dos arianos de realizar seus sacramentos. Na Itália, aos
mesmos males é acrescida a presença dos logotetas. Já na Ilíria e na Trácia, são
mencionadas as constantes invasões dos hunos, dos sclavenos e dos antes, estas se
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sucederam “[...] por quase todo o ano, a partir do momento em que Justiniano
recebeu o governo dos romanos [...]’’84, Procópio calcula que, “[...] em cada uma
dessas invasões, mais de 200.000 romanos foram mortos ou reduzidos à
escravidão”85. Após enunciar os males causados pelas guerras na Europa e na
África, são abordados aqueles causados pelas invasões dos sarracenos e dos persas
no Oriente, assim como seus motivos. A respeito das invasões, Procópio conclui:
“não são somente os romanos, mas também quase todos os bárbaros que sofreram
os efeitos do furor homicida de Justiniano”86.O capítulo é concluído com o relato
de uma série de catástrofes naturais que seriam causadas pelo caráter demoníaco
de Justiniano ou, então, seriam manifestação da revolta de Deus contra esse
imperador.

XIX. Saque das riquezas por Justiniano

Relato do sonho que um notável teve: estava nas proximidades da cidade


da Calcedônia, à beira mar, quando avistou Justiniano de pé “no meio do

81
Ibid., XVIII: 1. p. 97
82
Ibid., XVIII: 8 p. 97
83
Ibid., XVIII: 9 p. 97
84
Ibid., XVIII: 20 p. 98
85
Ibid., XVIII 21 p.98
86
Ibid., XVIII: 27. p. 99
48

estreito”87. O imperador começou a beber toda a água do estreito de forma que


acabou por secá-lo, “mas em seguida apareceu outra água, cheia de sujeiras, que
corria borbulhante a partir dos esgotos de cada margem, e aquele [Justiniano] a
bebia também e fazia novamente desse lugar um lugar sem água”88. A
interpretação do sonho seria a dilapidação dos recursos do império por Justiniano
em decorrência das “loucas construções marítimas” e das “larguezas com os
89
bárbaros” . Anastasios, que fora imperador por mais de vinte e sente anos, ao
terminar o seu reinado teria deixado nos cofres públicos a quantia de “3200
centenaria”. A essa quantia, durante o reinado de Justino, teria sido acrescida de
forma ilegal, aos cofres públicos a quantia de 4000 centenaria.

XX. Monopólios. Novidades na magistratura

Justiniano estabelece um prefeito ao qual os comerciantes deveriam pagar


uma taxa anual para obter permissão de vender seus produtos, o que acarreta na
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elevação do preço dos gêneros de primeira necessidade, três vezes mais. Criação
de duas magistraturas: o Pretor da Plebe, que se encarrega dos ladrões, e o
Quaesitor, que tem “[...] a função de punir os pederastas, aqueles que se uniam
ilegalmente a mulheres e a qualquer um que não praticasse a religião de maneira
ortodoxa [...]”90.

XXI. Reforma das magistraturas

A cada ano Justiniano recebia uma taxa do prefeito do pretório. Os


encarregados de recolher a taxa:

alegavam entregar essa taxa ao imperador, mas se apropriavam sem dificuldade


da riqueza imperial. Justiniano fechava os olhos a essas práticas, mas aguardava a
ocasião, quando eles já haviam adquirido grande abundância de riquezas, para
poder repentinamente despojá-los e apresentava contra eles uma acusação
irreparável 91.

Todos que exerceram tal função teriam acumulado imensas fortunas, com
exceção de Phocas e Bassus, pois eram “[...] completamente estrangeiros ao

87
Ibid., XIX, 2. p. 101
88
Ibid., XIX, 3. p. 101-102
89
Ibid., XIX, 6. p. 102
90
Ibid., XX, 9. p. 104
91
Ibid., XXI, 4-5. p. 107
49

espíritos do tempo”92. As magistraturas seriam assim vendidas aos piores homens


e a preços exorbitantes. O imperador procederia em relação aos magistrados da
mesma forma que procedia com os responsáveis de recolher as taxas para o
prefeito do pretório, isto é, depois que haviam acumulado riquezas, Justiniano
tomava-lhes a fortuna. Entretanto, o imperador:

[...] imaginou ainda outra coisa que ultrapassava o entendimento. As


magistraturas que considerava ser as mais importantes, tanto em Bizâncio como
nas outras cidades, decidiu não mais vendê-las como anteriormente, mas, depois
de uma investigação, designava os mercenários e impunha-lhes, enquanto
assalariados, de entregar-lhe todo o butim. Estes, após ter recebido o seu salário,
juntavam sem temor tudo o que vinha de toda terra e levavam-lhe, e o arbítrio de
um mercenário despojava seus súditos fora da autoridade.93 (A tradução é nossa)

Menção à carta de Justiniano que impedia os generais da Trácia e da Ilíria


de atacarem os Hunos, mesmo que estes tivessem devastado partes do império,
pois os hunos seriam necessários na luta contra os godos. Às vezes, os fazendeiros
dessas regiões reagiam, atacando os hunos. Mas, enviados de Bizâncio, através de
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“torturas, mutilações e multas”94, faziam com que restituíssem aos hunos os


cavalos e outros butins.

XXII. Abuso de Pedro Barsymes

Com a queda de João da Capadócia, Justiniano e Teodora buscam alguém


para substituí-lo. Finalmente, colocam no posto Pedro Barsymes, “que trabalhava
há muito tempo no banco da moeda de bronze, e que obtinha graças a essa
atividade os mais sórdidos ganhos, exercendo habilmente a fraude com os óbolos
e enganando constantemente os clientes com a destreza de seus dedos”95. Relato
de diversas iniquidades cometidas por Barsymes. Os militares se revoltam por não
ter recebido soldo, além disso, Justiniano desconfia que Barsymes esconde
“somas prodigiosas desviadas do tesouro público”96. Por tais razões, o imperador
resolve destituí-lo do cargo. No entanto, Teodora o protege. Basymes possuía “um

92
Ibid., XXI, 7. p. 107
93
“Plus tard, il imagina encore autre chose qui passe l’entendement. Celles des magiostratures
qu’il estimait être les plus importantes, tant à Byzance que dans les autres villes, il décida de ne
plus les vendre comme auparavant, mais après enquête, il désignait des mercenaires et leur
imposait, en tant que salariés, de lui remmetre tout leur butin. Eux, aprés avoir reçu leur salaire,
rassemblaient sans crainte tout ce qui venait de toute la terre et le lui apportaient, et l’arbitre d’un
mercenaire dépouillait les sujets sous les dehors de l’autorité” (Ibid., XXI, 20-22. p. 108)
94
Ibid., XXI, 29. p. 109-110
95
Ibid., XXII, 3. p. 110
96
Ibid., XXII, 21. p. 112
50

interesse considerável pelos feiticeiros e pelos demônios e era cheio de admiração


97
por aqueles que chamamos de maniqueístas.” . O imperador destitui Barsymes
de seu cargo, mas sob as instâncias de Teodora, acaba sendo nomeado para o
cargo de “mestre dos tesouros”.

XXIII. Política Fiscal

Os imperadores tinham por costume perdoar os impostos atrasados.


Durante os seus trinte e dois anos de reinado, Justiniano não procede assim nem
sequer uma vez. Medas e Sarracenos devastam a maior parte da Ásia; os hunos,
sclavenos e os antes devastam toda a Europa. Somente as cidades devastadas é
que foram dispensadas dos impostos uma única vez. Explicação de três tipos de
impostos considerados iníquos: 1) requisição – consistia em entregar ao exército
provisões que correspondessem ao imposto que deveria ser pago. Os proprietários
eram obrigados a importar o que fosse “necessário para os soldados e para os
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98
cavalos pagando tudo isso a preços exorbitantes” . 2) epibolé — Imposto que
deveria ser divido pelos proprietários circundantes às terras abandonadas ou
quando da morte dos proprietários sem herdeiros. 3) Diagraphai — impostos
extras, “aqueles que possuíam domínios pagavam estes [os impostos extras] em
proporção ao imposto fixado para cada um”99.

XXIV - Medidas desfavoráveis aos militares

Justiniano cria um grupo de funcionários denominado logotetas e os coloca


na direção do exército. Os logotetas tinham o direito de se apropriar de 12/100 de
tudo que obtivessem. O soldo, que era recebido pelos soldados, correspondia à
idade e ao tempo de serviço prestado por cada um. À medida que os soldados
superiores morriam, soldados mais jovens ascendiam. Entretanto, os “logotetas
não permitiam que os nomes dos mortos fossem retirados da lista de efetivos”100,
chegando, até mesmo, a deixar de existir a referida lista, “resultou para o Estado
que o número de soldados fosse sempre insuficiente; para os soldados que
permaneciam, bloqueados por aqueles que estavam mortos, ficavam em uma

97
Ibid., XXII, 25. p. 112
98
Ibid., XXIII, 12. p. 115-116
99
Ibid., XXIII, 19. p. 116
100
Ibid., XXIV,5. p. 118
51

patente inferior àquela do seu mérito”101. Relação de diversos outros tormentos


que levaram ao extremo empobrecimento dos soldados, “é, por essa razão, que as
possessões romanas da Itália caíram”102. Deterioração dos limitanei, contingente
de soldados que guardava as fronteiras, devido ao atraso no pagamento de soldos
e a cobranças indevidas: “os confins do romano permaneceram desprovidos de
guardas, e os soldados de repente tiveram que voltar o seu olhar e mãos àqueles
habituados às obras beneficentes”103. Os scholarii eram a guarda do palácio.
Desde do reinado de Zenão essa corporação vinha se degradando. Primeiramente
Justiniano aumenta o número de componentes dessa guarda, depois resolve
diminuí-los. Sabendo que os Scholarii não estavam preparados para lutar em
campanhas militares, anunciava a sua convocação para lutar em diversas guerras.
O resultado era que os membros dessa corporação renunciavam a seu soldo
durante determinado tempo para não serem obrigados a fazer a guerra, “por várias
104
vezes, os scholarii foram vítimas dessa maneira de agir” . Lei que atribuía a
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cada cinco anos, uma gratificação a todos os soldados. Justiniano nunca pagou tal
gratificação. O imperador extinguiu uma espécie de plano de carreira que havia
para os que “vigiam o palácio, se ocupam dos despachos ou cumprem algum
serviço ao imperador e às autoridades de Bizâncio”105.

XXV. Medidas desfavoráveis aos comerciantes, armadores etc.

Justiniano ordena a instalação de duas alfândegas, uma no estreito do


Helesponto e outra na entrada do Ponto-Euxino. A cada uma dessas envia um
magistrado: “[...] prescrevia-lhes que lhe fizessem chegar, utilizando todos os
106
meios, o máximo de dinheiro possível” . Em Bizâncio instala um de seus
familiares chamado Adé: “este não deixava mais partir livremente nenhum navio
que aportasse no porto de Bizâncio, ou infligia taxas aos armadores conforme o
valor de seus navios, ou então os obrigava partir com mercadorias para a Líbia ou

101
Ibid., XXIV, 6. p. 118
102
Ibid., XXIV, 9. p. 119
103
Ibid., XXIV, 14. p. 119
104
Ibid., XXIV, 21. p. 120.
105
Ibid., XXIV: 30. p.121
106
Ibid., XXV: 5. p. 122
52

para Itália”107. Os comerciantes compensavam os custos que lhes eram imputados


pelo Estado, elevando os preços, o que provocava a fome.

XXVI Medidas desfavoráveis às profissões liberais e aos pobres

Justiniano suprime a dignidade de Retor. Aqueles que a possuíam são


levados “[...] a uma extrema pobreza e retiravam de seu ofício somente
insultos”108. Suprime também os subsídios destinados aos médicos e professores;
assim como aqueles destinados aos teatros, hipódromos e circos, ainda que foi
nesses “[...] lugares precisamente onde sua mulher havia nascido, crescido e
recebido sua educação”109. Enumeração dos mais diversos segmentos que foram
prejudicadas pelo governo: assistentes dos magistrados; guardas do palácio;
camponeses; proprietários e senhores de domínios; redatores de discursos;
comerciantes; armadores; marinheiros; artesãos; trabalhadores; pequenos
comerciantes e atores. Procópio inicia a enumeração dos males causados aos
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pobres. Justiniano “[...] depois de ter tomado o controle de todos os comércios e


estabelecido o que era denominado de monopólio sobre os gêneros de primeira
necessidade, fez com que todos pagassem por estes três vezes mais o preço
habitual.”110 Além disso, eleva o preço do pão e obriga que à massa sejam
misturadas cinzas “[...] para poder, todos os anos tirar, daí mais de três centenaria
[...]”111. Isso causa fome na população pobre, visto que “[...] era absolutamente
proibido a qualquer um mandar vir até mesmo trigo de fora, mas todos eram
obrigados a comprar esses pães e a comê-los.” 112 Apesar da necessidade de água,
Justiniano não repara o aqueduto. Justiniano não se contenta em fazer o mal
somente em Constantinopla, mas também em outras partes. Seguem-se alguns
exemplos de medidas nefastas à população, que foram apoiadas pelo imperador
em outros lugares: um certo Alexandre, chamado de “Tesouras”, corta soldos
(pensões) de antigos funcionários do palácio de Roma, assim como a tradicional
distribuição de trigo aos pobres. Na Grécia, o mesmo Alexandre não aplica os
recursos públicos para os fins a que eram destinados. Em Alexandria, o

107
Ibid., (XXV: 8). p. 123
108
Ibid., (XXVI: 4). p. 125
109
Ibid., (XXVI: 8). p. 126
110
Ibid., (XXVI: 19). p. 127
111
Ibid., (XXVI: 21). p. 127
112
Ibid., (XXVI: 22). p. 128
53

governador Hefaistos estabelece o monopólio sobre vários produtos e, da mesma


forma, extingue a tradicional distribuição de trigo aos pobres.

XXVII. Exemplos de política inconsequente

Justiniano ordena a Rhodon, governador da Alexandria, que apoie todas as


ações de Paulo, novo grã-padre, que nomeara para essa cidade, esperando trazer à
ortodoxia os refratários ao Concílio de Calcedônia. Arsênio, um palestino de
religião samaritana, que se convertera aparentemente ao cristianismo por razões
políticas, e que ascendera à condição de senador, acompanha Paulo até Alexandria
para auxiliá-lo na missão. Paulo, o recém-nomeado grão-padre, entrega ao
governador um diácono de nome Psoé e pede que ele seja condenado à morte “[...]
alegando que ele sozinho era o obstáculo que o impedia de executar as decisões
113
do Imperador” . Instado pelo imperador através de várias cartas, Rhodon
decide interrogar sob tortura o diácono Psoé, que acaba morrendo. “Quando o
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imperador foi informado, como estava muito pressionado pela imperatriz, logo
lançou toda a culpa em Paulo, Rhodon e Arsênio, como se ele houvesse
114
completamente esquecido as instruções enviadas a esses homens” . Libério é
nomeado governador de Alexandria, segue para a cidade com uma comissão para
averiguar a morte de Psoé. Paulo é destituído; Rhodon, apesar de mostrar diversas
cartas do imperador nas quais ordenava-lhe apoiar integralmente as ordens do grã-
padre, é decapitado em Constantinopla; por fim, Arsênio é empalado. Paulo
oferece “ao Imperador sete centenaria de ouro e pede para receber novamente o
cargo, considerando que o haviam destituído ilegalmente”115. Justiniano aquiesce,
mas o papa Vigílio proíbe que Paulo volte a sua condição.

116
Faustino, “[...] palestino de origem e de ascendência samaritana” é
nomeado governador de sua província. Entretanto, alguns padres o acusam de
“[...] praticar em segredo os ritos samaritanos e de ter tratado de maneira ímpia os
cristãos que viviam na Palestina”117. Faustino é condenado pelos senadores ao
exílio. Justiniano recebe vultosa soma de dinheiro de Faustino e o recoloca
novamente no posto.
113
Ibid, XXVII: 14. p.132
114
Ibid, XXVII: 16. p.132
115
Ibid, XXVII: 20. p.132
116
Ibid, XXVII: 26. p.133
117
Ibid, XXVII: 27. p. 133
54

XXVIII. Outros exemplos de desprezo às leis

A igreja da cidade de Emesa118torna-se a herdeira de Mammianos, um rico


patrício. Anos depois, Priscos, um hábil falsário de escrita, entra em comum
acordo com a igreja local, falsifica diversos documentos que atestam que os
antepassados de ricas famílias dessa cidade eram devedores de Mammianos. Visto
que “[...] a lei impedia isso, fixando para a maior parte das dívidas uma prescrição
119
de trinta anos, e para algumas poucas [...] até quarenta anos.” , os articuladores
do golpe oferecem grandes somas de dinheiro para Justiniano. Este promulga uma
lei válida para todo o Império que eleva a cem anos o prazo de prescrição das
dívidas com a igrejas. Longino é enviado à Emesa, a mando de Justiniano, para
supostamente resolver o problema. Solicita os documentos a Priscos, que se
recusa a fornecê-los. Longino agride-o violentamente. Priscos supõe que Longino
está a par de seus planos e acaba por confessá-los integralmente. Procópio atribui
à “Providência Divina” 120 tal desfecho.
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Menção à proibição imposta aos judeus por Justiniano de celebrar a Páscoa


quando essa festa religiosa caísse em data anterior à Páscoa Cristã.

XXIX. Velhacarias de Justiniano

Justiniano destitui Libério da sua magistratura e o substitui por Laxarion.


Pelágio, “[...] que era um dos grandes amigos de Libério [...]” 121, ao inteirar-se da
notícia, indaga o Imperador. Este último nega a veracidade da informação.
Eudaimon, administrador da fortuna imperial e que era tio de Laxarion, “[...]
interrogou também o imperador para saber se seu sobrinho tinha verdadeiramente
122
essa magistratura” . Justiniano escreve a Laxarion ordenando que ele assuma o
posto. Libério “[...] apoiando-se, evidentemente, ele também, em uma carta do
imperador,”123 recusa a abandonar seu posto. Libério e Laxárion enfrentam-se
com suas respectivas tropas, na refrega Laxarion morre. Libério é chamado a

118
Atualmente é a cidade de Homs na Síria que se situa a aproximadamente 37 Km com a fronteira
Norte do Líbano.
119
Ibid. (XXVIII: 7). p.134
120
Ibid. (XXVIII: 13). p. 135
121
Ibid (XXIX: 2). p. 136
122
Ibid (XXIX: 5). p. 136
123
Ibid (XXIX: 8). p. 136
55

Constantinopla. O senado instaura um inquérito, mas acaba por absolvê-lo.


Mesmo assim, Justiniano o pune, obrigando-o a pagar uma multa.

A filha de Anatólios, rico curial da cidade de Ascalon, casa-se com


Mamilianos, curial de Cesareia. Uma lei decretava que quando da morte de um
curial sem filhos homens, um quarto de seus bens seria destinado ao Tesouro
Público e à Cúria. Justiniano reverte a lei e decreta que a herdeira deveria
permanecer com somente um quarto, sendo que o restante seria destinado ao
Tesouro e à Cúria. Anatólios morre e, conforme dispunha a referida lei, sua filha
recebe um quarto da herança. Tempos depois. Mamilianos também morre. Da
união de Mamilianos com a filha de Anatolios nascera uma única filha que vem a
falecer antes de sua mãe, “Justiniano confisca todos os seus bens, alegando a
espantosa razão que seria coisa ímpia que a filha de Anatólios, uma velha mulher,
124
se enriquecesse com os bens de seu marido e de seu pai” . Mas Justiniano
atribui-lhe uma mísera pensão, justificando-se: “é meu hábito agir de maneira
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santa e piedosa” 125.

Malthanés ocupa o cargo de referendário na Cilícia. O imperador dá


instruções para deter os distúrbios que aí ocorriam, “[...] Malthanés, com esse
pretexto, comete os piores excessos cruéis contra a maior parte dos habitantes da
Cilícia [...]”126. Os membros da facção dos azuis — aquela à qual Justiniano fazia
parte — acreditando serem imunes às punições, lançam impropérios contra
Malthanés, que começa a persegui-los. O imperador ordena que sejam
investigados os desmandos de Malthanés. Leon, o sogro de Maltanés, oferece
“[...] uma grande quantidade de ouro, faz cessar ao mesmo tempo sua cólera e sua
afeição aos Azuis” 127.

XXX. O correio imperial, os espiões, o cerimonial da corte

O correio imperial era organizado da seguinte forma: ao logo do trajeto feito


pelos mensageiros, havia vários postos nos quais os cavalos eram trocados, assim
era possível “[...] fazer em um dia o trajeto de dez dias [...]” 128. A economia local

124
Ibid (XXIX: 24). p. 138
125
Ibid (XXIX: 25). p. 138
126
Ibid (XXIX: 29). p. 138
127
Ibid (29: 35) p. 139
128
Idem (XXX: 5) p. 140
56

era estimulada com a presença desses postos, pois os produtores locais vendiam
ao Estado a alimentação que era fornecida aos cavalos. Justiniano diminui
drasticamente a quantidade desses postos, o que faz com que as notícias cheguem
muito atrasadas, dificultando a tomada de decisões a tempo; “o que resultou em
muitos erros [...] entre outros a Lazica foi tomada pelos inimigos, pois os romanos
não foram informados sobre o lugar em que se encontravam o rei dos persas e seu
129
exército” . Além disso, a produção de grãos das proximidades dos postos é
destruída, visto que o mercado consumidor fora extinto.

Instituição da obrigação de todos os senadores se prosternarem no solo e


beijarem os pés tanto de Justiniano como de Teodora. Os imperadores anteriores
recebiam poucas pessoas no Palácio:

A razão é que, antigamente, para as autoridades, era possível agir de maneira


justa e legal, conforme o seu julgamento independente. Os magistrados, para
administrar os assuntos habituais, residiam em seus escritórios e os súditos que
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não viam nenhuma violência, tampouco escutavam falar de nada, importunavam


muito pouco o imperador, como se era de esperar.130 (A tradução é nossa)

Com o governo de Justiniano e de Teodora, o palácio passa a estar sempre


com grande movimento de pessoas, porque “[...] obrigavam que todos os
cercassem, da maneira mais servil. Podia-se ver, quase todo dia, de um lado a
maioria dos tribunais vazios, do outro, na corte do imperador, multidões —
insolência, um grande tumulto, e todo tempo todo espécie de servilidade”131.

Procópio finaliza afirmando, mais uma vez, que Justiniano é o príncipe dos
demônios, assim como a veracidade do seu relato.

2.4.2.
Fortuna crítica

Anékdota (Ἀνέκδοτα) significa literalmente em grego “o que não foi


publicado”. O prefixo ἀ, indicador da negação, antecede o adjetivo ἔκδοτος
(ékdotos), do verbo ἐκδίδωμι (ekidídomi), que significa “produzir para fora”,

129
Idem (XXX: 14) p. 141
130
“La raison en est qu’autrefois, pour les autorités, il était possible d’agir de manière juste
légale, d’après leur jugement indépendant. Les magistrats, pour administrer les affaires
habituelles, résidaient dans leurs bureaux, et les sujets qui ne voyaient aucune violence ni
entendaient parler d’aucune, importunaient fort peu l’empereur, comme on pouvait s’y attendre”
Idem (XXX: 28-29)
131
Idem (XXX: 30) p.143
57

“entregar” e “publicar um discurso”, como nos explica o dicionário Bailly132. A


referida obra de Procópio de Cesareia era um texto de caráter eminentemente
inédito e secreto, tanto que se intitula em grego simplesmente Anékdota e, mais
tarde, em latim Historia Arcana, o que resulta na tradução em português História
Secreta, como já assinalamos.

A existência de uma obra inédita de Procópio de Cesareia era somente


conhecida através da Souda, essa espécie de enciclopédia literária bizantina avant
la lettre com aproximadamente trinta mil entradas, onde às etimologias somam-se
informações sobre personagens notórios e fragmentos de diversos autores. Até a
descoberta e conseguinte publicação de Alemanni no século XVII, as Anékdota
eram conhecidas somente através do verbete consagrado a Procópio de Cesareia
que assim referia-se:

Illustrius de Cesareia na Palestina. Reitor e sofista. Escreveu a História Romana,


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isto é as Belizário patrício, as ações empreendidas em Roma e na Líbia. Viveu no


tempo do imperador Justiniano, foi empregado de Belizário, e o acompanhou em
todas as guerras e eventos dos quais recorda. Escreveu também um outro livro, a
assim chamada Anekdota com os mesmos eventos. As duas obras têm nove
volumes. [Note-se] que o livro de Procópio chamado Anékdota contem abusos e
deboches ao imperador Justiniano e a sua mulher Teodora, e a Belizário e a sua
mulher.133

Várias vozes entre os juristas se levantaram para contestar as Anékdota. Três


anos somente após a publicação da edição de Alemanni, do outro lado do Canal
da Mancha, o jurista inglês Thomas Ryves já mostrava sua indignação contra o
documento exarado da Biblioteca Apostólica Vaticana. Em defesa do Imperador
Justiniano, lançava o seu Imperatoris Iustiniani defensio adversus Alemannun

132
Bailly
133
Illustrius [in status];[1] of Caesarea in Palestine.[2] Rhetor and sophist. He wrote a Roman
History, i.e. the wars of Belisarius the patrician,[3] the actions performed in Rome and Libya. He
lived in the time of the emperor Justinian, was employed as Belisarius' secretary, and
accompanied him in all the wars and events which he recorded. He also wrote another book, the
so-called Anecdota,[4] on the same events; both works [sc. together] are 9 books.[5]
[Note that] the book of Procopius called Anecdota contains abuse and mockery of the emperor
Justinian and his wife Theodora, and indeed of Belisarius himself as well, and his wife.[6]
Προκόπιος, Ἰλλούστριος, Καισαρεὺς ἐκ Παλαιστίνης, ῥήτωρ καὶ σοφιστής. ἔγραψεν Ἱστορίαν
Ῥωμαϊκήν, ἤγουν τοὺς πολέμους Βελισαρίου πατρικίου, τὰ κατὰ Ῥώμην καὶ Λιβύην πραχθέντα.
γέγονεν ἐπὶ τῶν χρόνων Ἰουστινιανοῦ τοῦ βασιλέως, ὑπογραφεὺς χρηματίσας Βελισαρίου καὶ
ἀκόλουθος κατὰ πάντας τοὺς συμβάντας πολέμους τε καὶ πράξεις τὰς ὑπ' αὐτοῦ συγγραφείσας.
ἔγραψε καὶ ἕτερον βιβλίον, τὰ καλούμενα Ἀνέκδοτα, τῶν αὐτῶν πράξεων: ὡς εἶναι ἀμφότερα βιβλία
θ#. ὅτι τὸ βιβλίον Προκοπίου τὸ καλούμενον Ἀνέκδοτα ψόγους καὶ κωμῳδίαν Ἰουστινιανοῦ
βασιλέως περιέχει καὶ τῆς αὐτοῦ γυναικὸς Θεοδώρας, ἀλλὰ μὴν καὶ αὐτοῦ Βελισαρίου καὶ τῆς
γαμετῆς αὐτοῦ.
58

auctore (Defesa do Imperador Justiniano contra o autor Alemanni). Para Santo


Mazzarino, o mais intransigente foi Johann Eichel von Rautenkron (1621-1688),
jurista da casa ducal de Brunswick-Lüneburg, que afirmou que as Anékdota eram
absurdas e por isso não poderiam ser autênticas134.

O interesse que suscitou o livro pode ser demonstrado pela incorporação da


palavra anecdote à língua francesa ainda no século XVII, o mesmo século que
vira a descoberta desses inéditos de Procópio. É ao historiador francês Antoine
Varillas (1624-1696) que se atribui a primeira utilização do termo. No prefácio do
livro Les Anecdotes de Florence ou l'Histoire Secrète de la Maison de Médicis,
Varillas declarou que possuía as Anékdota de Procópio como modelo e, por isso
mesmo, tentara, na mais legítima imitatio, seguir-lhe o método na sua gesta
secreta dos Médicis:

Se Procópio, que é o único autor do qual nos resta anedotas, tivesse deixado por
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escrito as regras desse gênero de texto, eu não seria obrigado a fazer um prefácio,
porque a autoridade desse excelente historiador, que a Imprensa Real acaba de nos
dar tão corretamente, seria suficiente para colocar-me ao abrigo de todo tipo de
crítica, supondo que eu as tivesse observado com exatidão135. (A tradução é nossa)

Como se há de perceber, o século XVII parecia compreender as Anékdota


como pertecentes a um gênero historiográfico que possuiria as próprias regras.
Varillas esmerou-se em retirá-las da leitura de Procópio, visto que desconhecia
tratado que fixasse as regras do gênero. Era a palavra que era reinventada em
francês, com sentido moldado em referência às Anékdota de Procópio de Cesareia;
já distante do antigo significado grego de “não publicados” ou “inéditos”. Antoine
Furetière, um dos primeiros e mais importantes lexicógrafos franceses, não só
explicita a relação etimológica direta da palavra anecdote com as Anékdota, como
também endossa Varillas ao considerá-la uma forma específica de se fazer
história:

134
Santo Mazzarino : La fine del mondo antico: le cause della caduta dell’impero. p. 105
135
Si Procope, qui est le seul Auteur dont il nous reste des Anecdotes, avait laisé par écrit les
règles de ce genre d’écrire, je ne serais pas obligé de faire une préface, parce que l’autorité de cet
excellent Historien, que l’imprimerie Royale vient de nous donner si correctement, sufirait pour
mettre à couvert de toutes sortes de reproches, suposé que je les eusse observées avec exactitude.
VARILLAS, Antoine: Les Anecdotes de Florence ou l'Histoire Secrète de la Maison de Médicis.
Haia: Adrian Moetiens, 1689.p2.
59

Termo do qual se servem alguns historiadores para intitular as histórias que fazem
das coisas secretas e escondidas dos príncipes, quer dizer, as memórias que não
vieram à luz e que não foram publicadas. Eles imitaram nisso Procópio, historiador
que assim intitulou um livro que fizera contra Justiniano e sua mulher Teodora. É o
único dos antigos que nos deixou anedotas, e que mostrou os Príncipes tais quais
eram em casa. Varillas fez as Anedotas, ou História Secreta da Casa de Médicis.
Essa palavra vem do grego que significa coisas que não foram publicadas, que
foram mantidas secretas, que não foram dadas ao publico136. (FURETIÈRE, 1701,
p.158) (A tradução é nossa)

A veracidade contida no que pretendia ser a continuidade da História das


Guerras de Justiniano será motivo de grandes debates, o que se refletirá no
próprio deslocamento semântico da palavra “anedota”. Como vimos, em um
primeiro momento, o termo simplesmente aludia a escritos e/ou acontecimentos
inéditos; em um segundo momento ― por influência direta do livro de Procópio
― o termo passa a concernir àquela categoria de história que se dedicava a
desvelar os grandes na intimidade e pequenez. Ousaria uma aproximação, talvez o
“gênero anedota” assemelhasse, em parte, à História da Vida Privada de nossos
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dias ― tentativa de apreender os gestos íntimos e os significados recônditos do


cotidiano, visto que estes possuíam menor espaço na então edificante gesta dos
feitos históricos.

Uma das primeiras manifestações da palavra “anedota”, com o sentido


próximo do que possui atualmente, parece ter saído da pena de Voltaire, no seu Le
Siècle de Louis XIV (O século de Luís XIV). Mas elas continuam intimamente
relacionadas à escrita História, mesmo que sejam as sobras da História. O filósofo
iluminista assim define o termo: “As anedotas são um campo fechado em que
respigamos após a vasta colheita da história: são pequenos detalhes por muito
tempo escondidos, e daí vem o nome de anedotas: elas interessam ao público
quando concernem às pessoas ilustres” 137. Dos trinta e nove capítulos desse livro,
Voltaire faz uso da palavra para nomear três: o capítulo 25, “Particularité et
anecdotes du règne de Louis XIV” (Particularidade e anedotas do reino de Luis
XIV), e os capítulos 26 e 27, ambos homônimos, “Suite des particularités et
anecdotes” (Continuação das particularidades e anedotas). Perguntava o filósofo
de Ferney se As Vidas Paralelas, de Plutarco, não seriam também: “[...] uma
coletânea de anedotas mais agradáveis do que exatas: como haveria tido memórias

137
VOLTAIRE: Le Siècle de Louis XIV. p. 303
60

fieis sobre a vida privada de Teseu e de Licurgo?”138. E o próprio Voltaire


respondia perspicazmente, já percebendo que o que mais importava na escrita da
História dos antigos — no topos da Historia Magistra Viatæ — era o que dela se
poderia tirar como exemplar: “Há, na maioria das máximas que ele [Plutarco]
coloca na boca de seus heróis, mais utilidade moral do que verdade histórica”139.
Mas Voltaire não só definia o que era “anedota”, mas mencionava diretamente o
fundador do gênero, chegando à conclusão, ao comparar as Anékdota às outras
obras de Procópio, de que estas eram uma sátira mentirosa: “A História Secreta de
Justiniano por Procópio é uma sátira ditada pela vingança; , ainda que a vingança
possa dizer a verdade, essa sátira, que contradiz a história pública de Procópio,
não parece sempre verdadeira”140

A Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des


Métiers, essa gigantesca obra que representa todo o espírito e ideal de um século,
registra “anecdotes” entre seus verbetes. Relaciona o termo tanto à História
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Antiga, quanto à Moderna e oferece as tradicionais informações etimológicas,


restringindo o termo às histórias secretas, não de qualquer indivíduo, mas dos
príncipes e dos demais que fizessem parte do cenário da política:

Anedota, s.f. p. (Hist. anc. & mod.) nome que os gregos davam às coisas que se
fazia conhecer pela primeira vez ao público, composto do a privativo α com um ν
para a doçura da pronúncia, e ἔκδοτος que vem ele mesmo de ἐκ e de δίδωμι.
Assim anedotas quer dizer coisas não publicadas. Essa palavra está em uso na
literatura para significar historias secretas de fatos que se passaram no interior do
gabinete ou das cortes dos Príncipes e nos mistérios de sua política141.

Como podemos ver, a definição apresentada por Voltaire aproxima-se


mais do uso da palavra contemporaneamente do que aquela apresentada pela
Encyclopédie. Voltaire nos diz que as anedotas “interessam ao público quando
concernem às pessoas ilustres”, logo podemos supor que qualquer pessoa poderia
ser tema de uma anedota, mesmo que poucos ou até ninguém viesse a se

138
idem
139
idem
140
idem
141
ANECDOTES, s. f. p. (Hist. anc. & mod.) nom que les Grecs donnoient aux choses qu’on
faisoit connoître pour la premiere fois au public, composé d’α privatif avec un ν pour la douceur
de la prononciation, & d’ἔκδοτος qui vient lui-même d’ἐκ & de δίδωμι. Ainsi anecdotes veut dire
choses non publiées. Ce mot est en usage dans la Littérature pour signifier des histoires secretes de
faits qui se sont passés dans l’intérieur du cabinet ou des cours des Princes, & dans les mysteres de
leur politique.
61

interessar. Mas a Encylopédie simplesmente faz referência às personagens ilustres


sugerindo assim que uma anedota obrigatoriamente referia-se a essa categoria de
pessoas.

Cícero, na XVII de suas epístolas a Aticcus, Liv. XIV, serviu-se dessa palavra
anedota. Procópio intitulou anedotas um livro, no qual ele pinta com cores odiosas
o Imperador Justiniano e Teodora, esposa desse príncipe. Parece que de todos os
antigos, esse autor é o único que se deu semelhante permissão; pelo menos não há
outro escrito desse gênero [além] do seu. Varillas, entre os modernos, publicou
supostas anedotas da casa de Florença ou de Medicis, e semeou em várias outras
obras diferentes traços de imaginação que deu como anedotas, e que não pouco
contribuíram para desacreditar seus livros142.

Mas a palavra poderia guardar ainda o seu sentido etimológico, o de inédito,


sem sofrer a influência do olhar melífula que o historiador de Cesareia derramara
sobre os bastidores do governo de Justiniano. Qualquer escrito nunca antes
publicado poderia ser uma anedota, logo as Anedotas Gregas de Muratori não
tinham relação nenhuma com as de Procópio, pois simplesmente retomavam o
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sentido da palavra em grego:

Mas além dessas histórias secretas pretensamente verdadeiras, a maior parte do


tempo falsas ou no mínimo suspeitas, os críticos dão o nome de anedotas a todo
escrito de qualquer gênero que seja, que ainda não foi publicado. É nesse sentido
que M. Muratori mandou imprimir um grande número de escritos encontrados nas
bibliotecas, dando-lhes o nome de anedotas gregas, Dom Martene publicou um
tesouro das anedotas em cinco vol. In-fol. (G)143

Esse momento de mudança de significado foi retido com uma nitidez quase
fotográfica por Raphael Bluteau, no verbete “Anecdotos”, do seu Vocabulário
Portuguez & Latino, a ambiguidade, entre inédito e história privada das grandes
personagens, foi explicitamente regitrada pelo lexicógrafo:

142
Ciceron dans la xvij. de ses épîtres à Atticus, Liv. XIV. s’est servi de ce mot anecdote. Procope
a intitulé anecdotes un livre, dans lequel il peint avec des couleurs odieuses l’Empereur Justinien,
& Théodore épouse de ce Prince. Il paroît que de tous les anciens, cet auteur est le seul qui se soit
donné une pareille licence ; au moins n’a-t-on point d’autre écrit en ce genre que le sien. Varillas
parmi les modernes a publié de prétendues anecdotes de la maison de Florence ou de Medicis, & a
semé dans plusieurs autres de ses ouvrages différens traits d’imagination qu’il a donnés comme
anecdotes, & qui n’ont pas peu contribué à décréditer ses livres.
143
Mais outre ces histoires secretes prétendues vraies, la plûpart du tems fausses ou du moins
suspectes, les critiques donnent le nom d’anecdotes à tout écrit de quelque genre qu’il soit, qui n’a
pas encore été publié. C’est dans ce sens que M. Muratori en faisant imprimer un grand nombre
d’écrits trouvés dans les. Bibliotheques, leur a donné le titre d’anecdotes Greques. Dom Martene a
pareillement publié un thresor d’anecdotes en cinq vol. in-fol. (G)
62

ANECDOTOS, he palavra Grega, composta do a privativo, e de Exdidomin, que


Val tanto como dizer Dar à luz, Dar ao publico, cousa que ainda não foy publicada.
Usa Cicero desta palavra na 19. Das suas Epistolas do livro 14. A Attico, fallando
em huma obra, que ainda não havia dado à luz, onde diz Librum meum illum
anecdoton, nondum ut volui, perpolivi; ista vero, quæ tu [...]. Primeiro que Cicero,
usou Procopio Historiador desta palavra no titulo do livro, que ele fez contra
Justiniano, e sua mulher Theodora; He obra singular, e quase sem exemplo, porque
nella descobre as acçoens do Principe, propriamente como erão na vida privada, e
domestica. Nestes nossos tempos Antonio Varilhas chamou Anecdotos de
Florença, successos do Estado de Florença dos quaes ainda não havia noticia. Nos
idiomas, em que fica introduzido este vocábulo, ainda não acho, que os Criticos
tenhaõ decidido o genuíno significado, e uso próprio delle, a saber, se Anecdotos
significaõ noticias de successos ainda não sabidos, e não dados à luz, se são
historia das acçoens, e costumes particulares de hum Principe, ou historia, que o
Author tem occulta, por descrever nella comnimia liberdade as acçoens de pessoa
poderosa, que se poderia offender da declaração da verdade144.

Mas se os dicionários atuais ainda preservam a definição de:


“particularidade curiosa que acontece à margem dos eventos mais importantes, e
por isso geralmente pouco divulgada, de uma determinada personagem ou
passagem histórica145”, dificilmente haveremos de encontrar atualmente quem
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endosse o outro segmento da definição oferecida por Varillas e Furetière. Escrever


uma anedota era mais do que narrar particularidades curiosas do passado, era todo
um modo específico de constituir o relato do que ocorrera em tempos pretéritos ―
ainda que Procópio de Cesareia, pai desse gênero, não haja deixado as regras para
tal, o que era motivo de lamento da parte de Varillas. Em outras palavras,
diríamos que de gênero historiográfico no século XVII, a “anedota” passou a ser o
relato de algo simplesmente risível, sem maiores intuitos e sem qualquer vínculo
mais direto com a atividade dos antiquários e, ainda mais distante, daquela dos
historiadores.

O apanhado de boatos maliciosos que corria pelos corredores da corte de


Justiniano fora, possivelmente, recolhido e, em parte, reinventados pelo cálamo
fértil de Procópio. Para a redação das suas Anékdota, a confiabilidade das fontes
foi relegada em nome de uma irascível e profunda inimizade a Justiniano e sua
gente. Mas foi essa característica do livro secreto do historiador de Cesareia,
verdadeiro compêndio de fatos íntimos, e muitas vezes a beirar o cômico, que fará
com que as Anékdota transformem-se em um substantivo comum dicionarizado, a
anedota, já longínquo das raízes semânticas originais, isto é, “os inéditos”.

144
Bluteau, Rafael: Vocabulario Portuguez & Latino. 1827. p.48
145
Houaiss, 2001, p.211
63

Montesquieu utilizou as Anékdota como uma das fontes para a redação das
Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência.
Apesar de algumas reservas quanto à fiabilidade dessa fonte, em geral
considerou-a digna de confiança:

Eu não seria naturalmente levado a acreditar em tudo o que Procópio nos diz na sua
História Secreta, porque os elogios magníficos que fizera desse príncipe
[Justiniano] em suas outras obras enfraquecem seu testemunho nesta, onde ele o
descreve como o mais estúpido e o mais cruel dos tiranos. || Mas confesso que duas
coisas fazem com que eu seja pela História Secreta: a primeira, é que ela se liga
melhor com a espantosa fraqueza em que se achava esse império no fim desse reino
e nos seguintes. || O outro é um monumento que ainda existe entre nós: são as leis
desse imperador, onde se vê, no correr de alguns anos, a jurisprudência variar mais
do que fez nos trezentos últimos anos de nossa monarquia. || Essas variações
concernem, na maior parte, a coisas de tão pequena importância que não se vê
nenhuma razão que tivesse levado um legislador a fazê-las, a menos que se
explique isso pela História Secreta, e que se diga que esse príncipe vendia
igualmente seus julgamentos e leis146. (A tradução é nossa)

Edward Gibbon parece ter sentido uma mescla de rubor e fascínio com a
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descrição de Procópio sobre a vida licenciosa de Teodora no teatro, como nos diz
Cameron a respeito da atitude do historiador inglês do século XVIII:

[...] Gibbon escreveu que isso devia sujar a reputação e detratava o crédito de
Procópio e decretava que certas passagens tinham, na sua inimitável frase, que ficar
“na obscuridade da linguagem erudita”. Ao mesmo tempo dava-se ao trabalho de
informar que lia com gosto a censura de Alemanni do notório capítulo nove sobre
os hábitos sexuais de Teodora, e anotava com falsa solenidade que “um prelado
erudito, que já havia morrido, gostava muito de citar essa passagem na conversa”.
Assim, ele deu o tom de todas as subsequentes reações. No entanto, Gibbon (ao
contrário dos juristas do século XVII) não teve dúvida sobre a autenticidade da
História Secreta [...].147

146
Je ne serais point naturellement porté à croire tout ce que Procope nous dit là-dessus dans son
Histoire secrète, parce que les éloges magnifiques qu’il a faits de ce prince dans ses autres
ouvrages affaiblissent son témoignage dans celui-ci, où il nous le dépeint comme le plus stupide et
le plus cruel des tyrans.|| Mais j’avoue que deux choses font que je suis pour l’Histoire secrète : la
première, c’est qu’elle est mieux liée avec l’étonnante faiblesse où se trouva cet empire à la fin de
ce règne et dans les suivants.|| L’autre est un monument qui existe encore parmi nous : ce sont les
lois de cet empereur, où l’on voit, dans le cours de quelques années, la jurisprudence varier
davantage qu’elle n’a fait dans les trois cents dernières années de notre monarchie.|| Ces
variations sont la plupart sur des choses de si petite importance qu’on ne voit aucune raison qui
eût dû porter un législateur à les faire, à moins qu’on n’explique ceci par l’Histoire secrète, et
qu’on ne dise que ce prince vendait également ses jugements et ses lois. MONTESQUIEU,
Charles de : Considérations sur les Causes de la Grandeur des Romains et de leurs Décadence.
p.113
147
“[...] Gibbon wrote that it must “sully the reputation and detract from the credit of Procopius,
and of which he decreed that certain passages must, in his inimitable phrase, be left “in the
obscurity of a ‘learned language’. At the same time he took the trouble to inform the reader with
relish of Alemanni’s bowdlerization of notorious chapter that ‘a learned prelate, now deceased,
was fond of quoting this passage in conversation’. Thereby he set the tone of all subsequent
64

Gibbon aproximou-se de Montesquieu no que tange à avaliação da


veracidade contida nas Anékdota. Entre as fontes consultadas para Declínio e
Queda Do Imperio Romano, ao traçar o perfil de Justiniano, o historiador inglês
do século XVIII concluiu sobre Procópio de Cesareia parecer não muito distante
daquele do filósofo francês:

O adulador, enganado em suas esperanças, deixou-se ir talvez pelo prazer da


vingança secreta e um gesto de favor poderia tê-lo determinado a suspender ou a
suprimir um libelo, no qual o Ciro romano é somente um odioso e desprezível
tirano, onde Justiniano e sua mulher Teodora são seriamente representados como
demônios que assumiram a forma humana para destruir o gênero humano. Essas
vergonhosas variações mancham sem dúvida a reputação de Procópio e prejudicam
a confiança que ele poderia inspirar; entretanto quando separamos o que lhe dita a
malignidade, descobrimos que o fundo das anedotas e mesmo os fatos mais
vergonhosos, dos quais alguns deixara entrever em sua história pública148 são
endossados na verossimilhança ou em testemunhos autênticos contemporâneos.149
(A tradução é nossa)

Já Ernest Renan admirou o estilo e a originalidade de Procópio de Cesareia,


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compartilhou o estranhamento que as Anékdota nos causam, mas também como


bom exegeta percebeu as intenções tácitas inerentes ao texto. Em artigo publicado
no Journal des Débats afirmava Renan que:

A História Secreta é, sob esse aspecto, uma obra preciosa e sem igual, uma
verdadeira obra de arte, sem que o autor tivesse desconfiado disso. O ideal da
banalidade e do mal, o quadro de um século baixo e malvado, não achará jamais
um tal mestre para pintá-lo. Após ter lido esse livro estranho, não mais nos
espantamos com a hipótese à qual o autor recorreu para explicar tantos crimes; é
que Justiniano e Teodora não são Homens, mas os demônios que, para fazer a
maior quantidade de mal possível, tomaram a forma de seres humanos150. (A
tradução é nossa)

reactions. Whereas however Gibbon (unlike the seventeenth-century lawyers), had felt no doubts
about the authenticity of the Secret History [...]” Cameron, Averil: Procopius and the sixth
century, 2006. p.49
148
Gibbon faz referência a História das Guerras de Justiniano e Dos Edifícios, publicadas quando
da vida de Procópio e que não denigrem a imagem de Justiniano e Teodora.
149
L’adulateur trompé dans ses espérances, se laissa peut-être aller au plaisir d’une vengeance
secrète, et un coup d’œil de faveur put le déterminer à suspendre ou à supprimer un libelle, où le
Cyrus romain n’est plus qu’un odieux et méprisable tyran ; où Justinien et sa femme Théodora
sont sérieusement représentés comme des démons qui ont pris une forme humaine pour détruire le
genre humain. Ces honteuses variations ternissent sans doute la réputation de Procope, et nuisent
à la confiance qu’il pourrait inspirer ; toutefois, lorsqu’on a mis à l’écart ce que lui dicte sa
malignité, on trouve que le fond de ses anecdotes, et même les faits les plus honteux dont il avait
laissé entrevoir quelques-uns dans son histoire publique, sont appuyés sur la vraisemblance ou sur
des témoignages authentiques et contemporains. GIBBON, Edward: Histoire de la Décadence et
de la Chute de l’Empire Romain pp.212-213
150
L’Histoire secrète est, sous ce rapport, une œuvre précieuse et sans pareille, une véritable
œuvre d’art, sans que l’auteur s’en soit douté. L’idéal de la platitude et du mal, le tableau d’un
65

A mais consubstancial contribuição para a autenticidade das Anékdota viria


no começo do século XX, com o trabalho de filólogo alemão Jakob Haury, que
“[...] dedicou toda a vida às pesquisas da obra de Procópio e realizou uma edição
magistral [...]”151, sendo considerado um dos mais importantes estudiosos da obra
de Procópio de Cesareia. Haury nasceu em 1862, foi professor do ginásio de
Augsburg (1891), no ginásio de Munique (1892) e “diretor de estudos superiores”
no ginásio de Kaiserlautern (1893). Entre os anos de 1905 e 1913, publicou na
Bibliotheca Teubneriana, a edição da obra completa de Procópio de Cesareia,
Cameron afirma que graças a essa edição foi “[...] estabelecida a uniformidade de
estilo entre a História das Guerras, a História Secreta e Dos Edifícios”152.
Segundo Mihăescu, Haury “leu com cuidado todos os manuscritos, buscou ver
quais dentre eles eram originais e quais simples cópias e compôs o stemma
codicum colocando a base das suas edições” 153.

Mais recentemente, é Arnaldo Momigliano que aponta para interessante


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aspecto desse livro de Procópio de Cesareia. Para o historiador italiano haveria


muitos exemplos de textos da Antiguidade que se aproximavam das Anékdota.
Mas a semelhança dava-se somente em determinados trechos. Em Procópio, a
corrupção do governo de Justiniano é o tema principal a que se dedica o
historiador. Assim nos diz Momigliano:

Mas eu conheço somente uma obra na qual a corrupção do governo torna-se o


próprio assunto da história e dá forma por isso a sua própria estrutura. Aludo,
como se percebe, a Anecdota, à História Secreta de Procópio, esse estranho
produto de uma observação e de uma vingança mantida em segredo por anos e
talvez por decênios. A obra apresenta-se como parte das Histórias das Guerras de
Procópio e parece que deveria originariamente corresponder ao livro VIII. O nome
de Anecdota e o conteúdo sugerem alguma conexão com as Anecdota de Cícero ―
um livro que Boécio ainda lia (“Tullius in libro quem consiliis suis com posuit”, De
int. Mus I, I); mas, visto que nós só temos uma vaga idéia do que fora o livro de
Cícero (também admitindo a identidade da Anecdota e do Consiliis suis), é escassa
consolação sabê-lo um precedente de Procópio. Na literatura antiga que chegou até
nós, as Anedotas de Procópio são isoladas, ainda que não seja difícil encontrar

siècle bas et méchant, ne trouvera jamais un tel maître pour le peindre. Après avoir lu ce livre
étrange, on ne s’étonne plus de l’hypothèse à laquelle l’auteur a recours pour expliquer tant de
crimes ; c’est que Justinien et Théodora ne sont pas des hommes, mais les démons qui, pour faire
le plus de mal possible, ont pris la forme d’êtres humains. Renan, Ernest: Anekdota ou Histoire
Secrète de Procope in Procope de Césarée: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre
Maraval. p.202
151
Mihăescu, H. “Introducere”, 1972. p. 10
152
Cameron: Procopius and the Sixth Century, 2005. p.IX
153
idem
66

páginas análogas como confirmação em escritores contemporâneos tal como João


de Lido e o historiador eclesiástico João de Éfeso – em qual texto, como é notório,
conservou-se parcialmente uma versão siríaca 154. (A tradução e os grifos são
nossos)

As observações de Momigliano são de extrema importância. Ele manifesta o


estranhamento que causa a História Secreta e indica a originalidade desta no
contexto historiográfico da Antiguidade. Procópio estruturou seu livro na
descrição da corrupção da corte de Justiniano. Em tal contexto, a corrupção não é
simplesmente um mal a ser relatado ou denunciado, registrá-la para a posteridade
é o próprio objetivo da obra. Mas havemos de nos perguntar: a qual tipo de
corrupção Procópio de Cesareia se refere? O que podemos de imediato perceber é
que os costumes, a devassidão e a moral ocupam um lugar fundamental dentro dos
argumentos do historiador de Cesareia. Por hora devemos reter os comentários de
Momigliano, pois estes ― mais a frente ―serão fundamentais para o
desenvolvimento de nossas hipóteses.
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154
Ma io conosco uma sola opera in cui la corruzione Del governo diventi Il soggeto stesso della
storia e informi quindi la sua stessa strutturi. Alludo, come si capisce, agli Anecdota, alla Storia
Arcana di Procopio, questo strano prodotto di uma osservazione e di uma vendetta tenute segrete
per anni e forse decenni. L’opera si presenta come uma parte delle Storie delle Guerre di Procpio
e pare che originariamente dovesse rappresentare il libro VIII. Il nome di Anecdota e il contenuto
suggeriscono uma qualche connessione com gli Anecdota di Cicerone – um libro che Boezio
ancora leggeva (“Tullius in libro quem de consiliis suis composuit”, De inst. Mus. I, I); ma poiché
noi abbiamo solo la più vaga idea di quel che il libro di Cicerone fosse (anche ammessa l’identitá
di Anecdota e De consiliis suis), è scarsa consolazione saperlo um precedente di Procopio. Nella
letteratura antica giunta a noi, gli Anecdota di Procopio isolati, benché non sai difficile trovare
pagine analoghe a conferma in scrittori contemporanei comme Giovanni Lido e lo storico
ecclesiastico Giovanni di Efeso – il cui texto, come è noto, ci é parzialmente conservato in
versione siriaca. MOMIGLIANO, Arnaldo: Il Trapasso fra storiografia antica e storiografia
medievale in Contributo alla storia degli studi classici. Tomo primeiro. Edizione di Storia e
Letteratura, 1975. p.65
3.
A Antiguidade Tardia

3.1.
Definições de um termo

Não é nosso intuito fazer a exaustiva história do conceito de “Antiguidade


Tardia”, no entanto, este se liga diretamente à nossa leitura das Anékdota. Assim
sendo, é preciso estabelecer, ainda que de forma sucinta, a história do emprego
desse termo.

A Antiguidade Tardia relaciona-se indiretamente àquela de Idade-Média. A


visão da Idade-Média como um período de estagnação e decadência, entre um
passado clássico Greco-romano glorioso e um Renascimento, traz, por
conseguinte, a imagem dos estertores da Antiguidade. O prenúncio da Idade-
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Média seria o Baixo Império, esse período crepuscular em que o mundo Greco-
romano entraria em franca decadência, prenúncio da “grande noite” medieval. A
visão estereotipada incide não somente sobre a Idade-Média, mas igualmente
sobre o período que imediatamente a precedeu.

O conceito de Antiguidade Tardia vem justamente dar voz ―se assim


podemos dizer ― a esse próprio período, deixando de vê-lo como o fim dos
tempos gloriosos e início das “trevas”. A Antiguidade Tardia ainda que seja de
contornos fluidos, estabelece-se, grosso modo, entre o final da Antiguidade e o
início da Idade-Média. Para a historiadora inglesa Averil Cameron, o período em
questão inicia-se com a morte do Imperador Teodósio I em 395, ficando o Império
Romano dividido entre seus dois filhos: o Oriente permaneceu sob o domínio de
Arcádio e o Ocidente sob o de Honório. Justifica Cameron a opção dessa data,
relacionando-a à situação de definitiva ruptura política e administrativa que daí
adveio entre as regiões ocidentais e orientais do Império:

A partir desse momento, o império romano ficou definitivamente dividido para


efeitos administrativos em duas metades, que, à medida que foi aumentando a
pressão dos bárbaros sobre as fronteiras no correr do século V, começaram a reagir
de maneira significativamente distinta. O ano de 395 constitui, pois, um autêntico
68

momento crucial na definitiva separação do Oriente e do Ocidente155. (A tradução é


nossa)

No que concerne, mais especificamente, à formação do conceito, segundo


Lançon, a primeira menção do termo é a que foi feita por Burckhadt, em 1853, no
seu Die Zeit Constantins des Großen (O Tempo de Constantino o grande), quando
o utiliza como um adjetivo para qualificar a palavra zeit (tempo), “spätantike
Zeit”, “tempo tardo-antigo”. No final do século XIX, o historiador alemão Otto
Seeck apresentou “[...] uma visão mais pessimista da Antiguidade Tardia”156. Já o
historiador francês Fustel de Coulanges, defendeu o que para a época era algo
novo “[...] uma continuidade romana além de 476”157.

Mas é, sobretudo, o historiador da arte austríaco, Alois Riegel (1858-1905),


no seu Spätrömische Kunstindustrie nach dem Funden in Osterreich, (A Indústria
da arte tardo-romana segundo os achados na Áustria) “que foi o primeiro
intelectual do século XX a considerar a Antiguidade Tardia como possuindo uma
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unidade própria”158. Nesse livro, Riegel, em resposta aos que acusavam a arte
tardo-romana como detentora de uma técnica rudimentar, defende o argumento de
que os artistas desse período estariam preocupados em transmitir a transcendência
e o conteúdo, mais do que elaborar uma representação fidedigna da natureza
conforme os padrões clássicos159.

No entanto, o marco para a consolidação do termo veio com a obra de


Henri- Irenée Marrou. Logo no começo de Decadência Romana e Antiguidade
Tardia, explicita o seu propósito:

Deixemos de lado no momento os aspectos propriamente “decadentes” que


resultam nos golpes das invasões bárbaras. É preciso que o termo “antiguidade
tardia” receba enfim uma conotação positiva ― como, lembramos, aconteceu com
a “Idade Média”―; mas pode-se dizer que a expressão entrou verdadeiramente no
uso corrente ? Em francês (como seus equivalentes em italiano e inglês), ela
conserva ainda alguma coisa de esotérico; só o alemão, mais plástico, parece ter
155
“A partir de esse momento, el imperio romano quedó definitivamente dividido a efectos
administrativos em dos mitades, que, a medida que fue aumentando la presión de los bárbaros
sobre las fronteras a lo largo del siglo V, empezaron a reaccionar de manera significativamente
distinta. El aão 395 constituye, pues, un auténtico momento crucial en la definitiva separación de
Oriente y Occidente”
156
Lançon: L’Antiquité Tardive, 1997 p.10
157
Idem
158
Ibid p.14
159
CARRIÉ, Jean-Michel: Elitismo cultural e ‘democratização da cultura’ no Império Romano
Tardio in História. Trad. Deivid Valério Gaia. 2010, vol.29, n.1, p.p. 456-474.
69

recebido melhor aquele de Spätantike. Seria preciso finalmente consentir em


admitir que a antiguidade tardia não é somente a última fase de um
desenvolvimento contínuo; é uma outra antiguidade, uma outra civilização, que é
preciso aprender a reconhecer na sua originalidade e a julgar por ela mesma não
através dos cânones das épocas anteriores.160 (A tradução é nossa)

É importante mencionar os trabalhos provenientes do mundo anglo-saxão


que adotaram explicitamente o conceito de late antiquity, pois foi, em grande
parte, a partir desse espaço linguístico que o termo se afirmou. Assim, devemos
mencionar especialmente os trabalhos fundadores para a delimitação do conceito
do historiador irlandês Peter Brown: The World of Late Antiquity: AD 150-750 de
1971, The Making of Late Antiquity de 1978; Society & the Holy in Late Antiquity
de 1982. Segundo Oliveira, Brown fundou uma verdadeira escola historiográfica
que defende a visão de uma:

[...] Antiguidade Tardia como um período distinto na história do Mediterrâneo,


durante o qual um mundo novo e extraordinariamente criativo se desenvolvera a
partir de uma dupla revolução, social e espiritual. Esse bloco temporal extenso,
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que iria, em princípio, dos últimos decênios do século II até o século VIII, é
caracterizado, antes de tudo, pela lenta passagem de uma mentalidade identitária
cívica a uma mentalidade identitária religiosa. Privilegiando a história cultural e
religiosa em suas dimensões sociais e mentais, Brown, seus colegas e discípulos,
têm insistido na importância das transformações lentas para a definição do
período: trata-se, sobretudo, de analisar o impacto das religiões emergentes (o
cristianismo e o islamismo) sobre as concepções e os comportamentos pessoais e
coletivos. Nessa perspectiva, as mudanças políticas, como a queda do Império do
Ocidente e a conquista árabe, são minimizadas e as fronteiras da Antiguidade
Tardia são progressivamente alargadas para abarcar, segundo alguns autores, até
o século X 161.

Outra importante contribuição proveniente do mundo de expressão anglo-


saxã são os trabalhos da historiadora inglesa Avril Cameron especialista na obra
de Procópio de Cesareia: The Mediterranean World in Late Antiquity, AD 395-
600; Dialoguing in Late Antiquity de 2014. E ainda o volume XIV da coleção The

160
« Laissons pour le moment de côté les aspects proprement « décadents» qui résultent dans le
monde occidental des contrecoups des invasions barbares ; il faudrait que le terme ‘antiquité
tradive’ reçoive enfin une connotation positive ― comme, on l’a rappelé, il est arrivé pour ‘moyen
âge’ ― ; mais peut-on dire que l’expression soit véritablement entrée dans l’usage courant ? En
français (comme ses équivalent italien ou anglais), elle conserve encore quelque chose
d’ésoterique ; seul l’aalmeand, plus palstique, semble avoir fait meilleur accueil à celle de
Spätantike. Il faudrait enfin consentir à admettre que l’antiquité tardive n’est pas seulement
l’ultime phase d’un développement continu ; c’est une autre antiquité, une autre civilisation, qu’il
faut apprendre à reconnaître dans son originalité et a juger pour elle-même et non à travers les
canons des âges antérieurs. » Marrou: Décadence romaine ou Antiquité tardive ? p.12 e 13
161
Oliveira, Julio Cesar Magalhães de: O Conceito de Antiguidade Tardia e as Transformações da
cidade antiga: o caso da áfrica do norte. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da
Antiguidade.
70

Cambridge Ancient History organizado por Averil Cameron, Bryan Ward-


Perkins, Michael Whitby, intitulado: Late Antiquity: Empires and Successors, AD
425-600.

Atualmente, o termo Antiguidade Tardia é utilizado como uma forma de


ressaltar as idiossincrasias desse período que ― ainda que de contornos
cronológicos indefinidos, visto a falta de consenso entre os autores ― se afigura
com características que o diferenciam tanto da Antiguidade como da Idade-Média.
Tempo fincado no passado, mas ao mesmo tempo de novas e drásticas
reinterpretações desse mesmo passado. É justamente nessa transição que
encontramos o específico da sua temporalidade histórica, como resume Lançon:

A concepção tenebrosa de um Baixo-Império Romano decadente e de uma pré


Idade-Média bárbara substitui-se hoje em dia pela noção de Antiguidade Tardia.
Esse período de quatro séculos não foi em nada aquele de um desabamento. Ele
viu delinear-se progressivamente profundas mutações. Essa época, ainda há pouco
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reputada de obscura, não foi uma volta às nostalgias medrosas, mas sim a abertura
em direção do futuro graças ao domínio de um passado mais do que milenar.162

3.2.
Procópio de Cesareia

Após esboçar as conjunturas da descoberta das Anékdota, assim como as


linhas gerais que caracterizam o texto, é mister que nos perguntemos sobre quem
foi Procópio de Cesareia e as vicissitudes de seu tempo.

Procópio de Cesareia nasceu, por volta do início do século VI, em uma rica
família da elite da cidade de Cesareia, na antiga província da Palestina, quando
esta pertencia ao Império Bizantino ― local que atualmente é parte integrante do
Estado de Israel e está fora dos limites do que em nossos dias entendemos por
Palestina. Na realidade, Cesareia na época do nascimento de Procópio era uma
cidade pertencente à parte oriental do Império Romano, pois, como bem sabemos,
a denominação bizantina foi a posteriori. As convulsões que deram fim às
estruturas políticas e administrativas do Império Romano do Ocidente não

162
“A la conception ténébreuse d’un Bas-Empire romain décadent et d’un pré-Moyen âge
barbare se substitue donc aujourd’hui la notion d’Antiquité Tardive. Cette période de quatre
siècles ne fut en rien celle d’un écroulement. Elle vit se dessiner progressivement de profondes
mutations. Cet âge, naguère réputé obscur, ne fut pas celui du repli sur frileuses nostalgies, mais
celui de l’ouverture vers l’avenir grâce à la maîtrise d’un passé plus que millénaire.” Lançon,
Bertrand: L’Antiquité Tardive.1997 p.117
71

atingiram a parte Oriental e esta haveria ainda de se manter por mais alguns
séculos, até a tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos. A região que se
estendia pelas bordas orientais do Mare Nostrum, o Mediterrâneo, em grande
parte helenizada há muito, desde as conquistas de Alexandre o Grande, onde o
grego era a língua de cultura, pouco se deixou penetrar pelo latim. Embora se
autodenominando de “romanos”, continuavam como herdeiros diretos da língua
grega. Procópio não foi exceção, toda sua obra foi escrita em grego e teve como
modelos os historiadores gregos, como Tucídides, Deodoro da Sicília e Políbio.

Como assinalou o bizantinista estadunidense Warren Treadgold, Procópio


fora criado dentro dos princípios de um cristianismo ortodoxo, o que então
implicava acreditar em milagres e demônios. E, como bom cristão da época,
achava que os demônios poderiam fazer tanto mal quanto os deuses pagãos. Mas
Procópio de Cesareia também teve uma formação baseada na leitura dos antigos
escritores que compunham o panteão das letras greco-romanas. Como afirma
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Treadgold, a respeito da formação de Procópio:

Como convinha a um aristocrata, Procópio adquiriu uma vasta educação clássica,


que lhe capacitava a escrever em um límpido e gracioso grego ático163, com as
apropriadas alusões literárias, sobretudo, a Tucídides. Ele pôde estudar retórica na
cidade próxima de Gaza, naquele tempo famoso centro de estudos clássicos. E
também teve uma vasta educação de jurista e bom conhecimento de latim, que
estudara, como ele indica, com certo Berytus de Constantinopla. Depois disso,
parece provável que não mais teve contacto com Berytus, chegando jovem à
Capital [Constantinopla]164. (A tradução é nossa.)

163
Os mais antigos documentos em grego são as célebres tabuinhas micênicas em linear B datadas
de meados do segundo milênio a.C e que seriam decifradas pelo inglês Michel Ventris na década
de cinquenta do século XX. Estas foram encontradas em sítios arqueológicos localizados nas
cidades de Cnossos (Creta), Micenas, Tirinto e Tebas e já apresentavam indícios de variantes
dialetais. Com a queda da civilização micênica, por volta do ano de 1200 a.C. até o século VIII a.
C., estende-se um grande vazio no que diz respeito aos testemunhos escritos. Esse período ficou
conhecido na historiografia como “período obscuro”. No entanto, a partir do século VIII a. C., a
escrita ressurge no domínio helenofônico. Desde esse período até os dias de hoje, a história da
língua grega pode ser acompanha ininterruptamente através de documentos escritos, o que faz com
que o grego seja um dos raros idiomas que pode ter sua história retraçada até período tão recuado
temporalmente. No que concerne à divisão dialetal do grego antigo, esta se inicia já no primeiro
milênio antes de Cristo, quando da instalação das populações protogregas no extremo da Península
Balcânica. Na época arcaica e clássica podemos dividir o grego em quatro grupos dialetais: o
arcádio-chipriota; o eoliano; o dórico e o jônio-ático. Foi o jônico-ático, mais especificamente na
sua variante ática, que, devido à pujante influência socioeconômica da cidade de Atenas, tornou-se
o modelo linguístico nos séculos posteriores. O que consideramos atualmente como grego clássico
é o dialeto ático escrito no século V a.C. em Atenas, o século de Péricles.
164
As befitted an aristocrat, Procopius acquired a superb classical education, which enabled him
to write limpid and graceful Atticizing Greek with the appropriate literary allusions, above all to
Thucydides. He may well have studied rhetoric at the nearby city of Gaza, then a famous center of
72

Preocupado em manter em seus escritos um grego digno do século de


Péricles, Procópio chegou a recorrer a extremos de preciosismo. Caso houvesse
palavra inexistente no período linguístico que lhe servia de modelo, fazia uso de
uma “espécie de máscara clássica, tal qual se tratasse de um grego do século V
que desconhecesse aquilo e que falasse de ouvido a um contemporâneo de
Tucídides”165. Assim, ao falar de uma igreja cristã poderia referir-se: “o templo ao
qual chamam de igreja” 166.

Como podemos constatar, a obra de Procópio de Cesareia inscreve-se nessa


dimensão temporal da história do Ocidente que denominamos de Antiguidade
Tardia, quando à cultura clássica mescla-se o aporte do cristianismo. Procópio era
um homem de sólida formação clássica, que se inspirou nos antigos modelos da
historiografia grega, mas que possuía também a cosmovisão da ainda
relativamente nova religião, o cristianismo.
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Procópio de Cesareia adentrou os cânones da historiografia com sua


História das Guerras. Aí nesses oito livros, ele nos narra as guerras levadas a
cabo por aquele que é considerado o último imperador romano com o intuito de
reaver e manter a integridade dos territórios do Império. No ano de 527, Procópio
começou a trabalhar com o General Belizário e graças a tal atividade pode
presenciar, no próprio local, uma parte do objeto de estudo de sua obra. Esteve na
guerra contra os persas e parece que permaneceu no Oriente até 531; já estava no
Norte da África, na guerra contra os Vândalos, no ano de 533; e ficou entre a
Sicília e a península Itálica de 536 até 540, ocasião em que tinha lugar a luta
contra os ostrogodos, guerra gótica167.

A História das Guerras não faz o panegírico de Justiniano, porém,


tampouco o denigre. Talvez, o imperador estivesse sedento por elogios, porque se
acredita que encomendou a Procópio de Cesareia Dos Edifícios. O historiador de
Cesareia fez nesse livro o repertório das grandes construções do reino de

classical learning. He also had the full training of lawyer and a good working knowledge of Latin,
both of which indicate he had studied law at either Berytus de Constantinople. The latter seems
more likely, since he had no known connection with Berytus and came to the capital as a young
man. Treadgold, 2009, 177 e 178.
165
GARCÍA ROMERO, 2000: 9
166
GARCÍA ROMERO, 2000: 9
167
Cf. Signes Codoñer, 2000: 12-13
73

Justiniano, derramando-se em elogios. Leiamos alguns fragmentos do prefácio do


livro Dos Edifícios:

Não é pelo desejo de parecer eloquente, tampouco de passar por muito hábil na
topografia do Império, que empreendi esta história. O conhecimento que tenho de
minha pouca suficiência afasta-me muito desses pensamentos de vaidade. Porém,
muitas vezes considerei a excelência das muitas vantagens que a história oferece
aos Estados, quando ela transmite à posteridade uma imagem fiel dos séculos
passados, quando ela combate a malignidade do tempo, que se esforça
continuamente em arruinar as coisas mais belas e, finalmente, quando ela ergue a
virtude, glorificada por seus leitores na medida em que merece ser, e ao contrário,
abaixa e detém o progresso do vício.

O único dever de um Historiador é de representar fielmente as coisas e as ações, e


de marcar claramente os autores, o que lho é fácil, ainda que tenha pouca facilidade
para explicar. // [...] Justiniano, que vimos chegar ao Império, em um tempo de em
grande agitação e de desordem muito estranha, aumentou notavelmente a extensão
e o poderio do Império, expulsando diversas nações que aí faziam destruições
inacreditáveis168. (A tradução é nossa)

Como podemos ver, o início Dos Edifícios insere-se na tradição da tópica. A


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tópica era uma espécie de “pedagogia do discurso”, graças a ela o leitor


conseguiria apreender de forma mais eficaz a mensagem presente no texto.
Leiamos o que diz o filólogo alemão Ernest Curtius a respeito da tópica:

No antigo sistema, a tópica é o celeiro de provisões. Contém os mais variados


pensamentos: os que podem empregar-se em quaisquer discursos e escritos em
geral. Todo escritor deve, por exemplo, tentar conciliar o leitor. Para tanto,
recomendava-se, até a revolução literária do século XVIII, uma atitude modesta.
Ao autor competia conduzir a seu tema. Para a introdução (exordium) havia, pois,
uma tópica especial; e igualmente para a conclusão. As fórmulas de modesta, as de
introdução e conclusão são obrigatórias em qualquer obra169.

168
Ce n’est pas par le désir de paraître éloquent ni de passer pour fort habile dans la topographie
de l’Empire que j’ai entrepris cette histoire. La connaissance que j’ai de mon peu de suffisance
m’éloigne fort de ces pensées da vanité. Mais c’est que j’ai souvent considéré la multitude, et
l’excellence des avantages que l’histoire procure aux Etats, lorsqu’elle transmet à la postérité une
image fidèle des siècles passés, qu’elle combat contre la malignité du temps, qui s’efforce
continuellement de ruiner les plus belles choses, et qu’enfin elle relève la vertu, en la faisant louer
par ses lecteurs autant qu’elle mérite de l’être, e qu’au contraire elle abaisse le vice, et en arrête
le progrès. || L’unique devoir d’un Historien est de représenter fidèlement les choses, et les
actions, et d’en marquer clairement les auteurs, ce qu’il lui est aisé de faire pour peu qu’il ait de
facilité de s’expliquer. […] Justinien que nous avons vu parvenir à l’Empire, en un temps où il
était dans une agitation et dans un désordre tout-à-fait étrange, en a accru notablement l’étendue,
et la puissance et en a chassé diverses Nations qui y exerçaient d’incroyables violences
[…].CÉSARÉE, Procope. Des Edifices in Histoire de Constantinople depuis le règne de l'ancien
Justin, jusqu'à la fin de l'Empire. Tradução de Louis Cousin. Paris: Chez Damien Foucault,
Imprimeur et Libraire Ordinaire du Roi, 1685. p. 221-222
169
CURTIUS, Ernest Robert: Literatura Europeia e Idade Média. São Paulo: Edsup, 1996. p.
121-122
74

A tópica era considerada mais do que uma mera técnica retórica. A tópica
era essa “pedagogia do discurso” que tentava conduzir de forma gradual o leitor
ao conteúdo da obra. No trecho acima citado Dos Edifícios, temos um típico
exemplo de topos de “falsa modéstia” em que o autor alega a sua pouca
competência para realizar o objetivo de sua obra, no entanto, tendo consciência da
importância das construções de Justiniano, não poderá desistir. A utilização da
tópica por Procópio de Cesareia afigura-se como mais um traço que o insere na
tradição clássica. Mas não devemos nos deixar levar unicamente por esses traços,
pois Procópio é um homem da fronteira de dois mundos e quando faz uso da mais
legítima tradição clássica, não deixa também de ser inovador, não deixa de
apropriar-se e, portanto, reinventar e colocar velhas técnicas a serviço de novas
maneiras de interpretar e sentir.

Como é sabido, nosso interesse volta-se aqui, mais especificamente para a


parte inédita da obra do historiador de Cesareia, as Anékdota. O que não pôde ser
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dito na história oficial não deixou de ser posto em papel. Seguramente, não sem
grande temor e tergiversações de diversas ordens, pois é o próprio autor que abre
as suas Anékdota afirmando seu grande receio, conforme pudemos ver
anteriormente. Nada mais distante em termos de conteúdo Dos Edifícios do que as
Anékdota.

3.3.
Procópio espelho do historiador ou a História às avessas

Um dos aspectos mais sui generis nas Anékdota é que estamos diante de
um historiador que desestabiliza grande parte da própria obra. Não se trata do
ataque de opositores, tampouco da crítica formulada por alguma escola
historiográfica posterior, fruto de novas análises históricas. O que nos surpreende
é que o grande imperador Justiniano, que é retratado de forma tão benévola, no
livro Dos Edifícios, transmuta-se aqui em contraexemplo máximo. Contraexemplo
que não deveria de forma alguma ser seguido, que serve como advertência aos
tiranos que viriam a surgir no futuro. A tensão que aí se origina, inegavelmente,
suscita questões que extrapolam as específicas circunstâncias relatadas por
Procópio de Cesareia. Quero dizer que a leitura crítica das Anékdota inflama os
75

espíritos para uma profunda reflexão do que é ser historiador e qual seria a nossa
função na sociedade.

Independente do quanto de verdade ou mentira se encerre nos escritos de


Procópio, somos levados a questionar os limites da “verdade” e da
responsabilidade do fazer história. Procópio assim se faz um espelho do
historiador, onde nos vemos confrontados com a nossa própria imagem, no que
ela possui de mais fascinante, de mais difícil e, também, de mais temível. A
escrita da história assemelha-se a uma fotografia, que tenta apreender por meio de
seus engenhos o espírito de um tempo e deixá-lo marcado sobre as já antigas
folhas de filme de máquina. O negativo conteria o resultado das descobertas. Mas
não podemos nos esquecer de que a fotografia é também a expressão do fotógrafo
e da sua subjetividade. A escolha do próprio ângulo, tal qual a escolha do próprio
objeto de pesquisa, parte de um interesse: por que este ângulo e não algum outro
qualquer no infinito de possibilidades? Como os fotógrafos escolhem a textura do
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papel, o nível de contraste, a saturação e a luminosidade da foto; os historiadores,


igualmente, têm de fazer suas escolhas. Os objetos retratados são ilusões? Em
princípio não. É na tela do “real” — dentro dessa delimitação — que o fotógrafo
expressa não só sua arte, mas também a interpretação de dado momento ou, então,
do que quer tenha sido retratado.

As Anékdota nos conduzem a refletir sobre esse jogo de tensões que


frequentemente subjaz camuflado pela “nitidez” do texto de História. As Anékdota
parecem ser um espelho, no qual o historiador se vê refletido e o incita a pensar a
própria história não como o relato do que ocorreu, mas bem mais como uma
fotografia. A paisagem, os seres e os objetos que ali figuram existem, mas vários
outros fatores entram em jogo, a representação se dá entre a tensão do real e o
olhar do fotógrafo; as perspectivas são sempre passíveis de mudança.

Quando nos inteiramos do historiador que escreveu um livro no qual


revelou as coxias ou o avesso da própria história, muitas perguntas surgem: Por
que Procópio de Cesareia escreveu textos que não se coadunavam
verdadeiramente com aquilo em que acreditava? É lícito ao historiador quando
vive em um governo despótico calar-se? Seriam as Anékdota um sincero mea
culpa de Procópio de Cesareia, ou antes, a manipulação falaciosa de dados
76

históricos? Se todo ato é político, até que ponto impõe-se o limite ético na escrita
da história? Até que ponto chegam as possibilidades de uma interpretação que
precisa fazer uso da imaginação de forma idônea e a manipulação intencional dos
jogos de interesse?

São todas essas questões que incitam a nossa reflexão e acredito que o
debate em torno da obra de Procópio nos proporciona tal ensejo. São perguntas
prementes que vemos desencadeadas pelas Anékdota, estranho texto que faz o
desconcerto da História. As Anékdota afiguram-se metaforicamente como o
“mundo às avessas” da historiografia. Fazemos alusão aqui a uma tradição de
imagens populares que durante vários séculos existiu na Europa. Nessas imagens
podemos ver as atividades invertidas: os animais dominam os seres humanos; as
mulheres fazem trabalhos então atribuídos exclusivamente aos homens; as serras
cortam lenhadores. As imagens do mundo às avessas são cômicas, curiosas,
engraçadas, possuem algo de arte naïf. Acreditamos, porém, que seu principal
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interesse é desestabilizar a “naturalidade” de nossos costumes.

Cada época faz uma leitura dos clássicos. Em nosso tempo, pensamos, ao
ler as Anékdota, algo que se assemelha metaforicamente à tradição das imagens do
“mundo às avessas”, ou seja: um historiador que desdiz o que narrara. Estamos
diante de um convite cheio de sugestões para refletir sobre o ato de escrever a
História. A História como campo do conhecimento que nos seduz e fascina. Mas
também não devemos nos esquecer de que a História é filha de Clio, uma das
musas. As musas inspiram os aedos, elas são criativas, são artistas da sedução que
nos encantam, mas igualmente, em certas ocasiões, nos enganam; da mesma
forma pode acontecer com a História. Engano que pode ser doce, mas, às vezes,
também perigoso.

O ofício do historiador é perpassado por um dilema: ao mesmo tempo em


que deve provar e narrar o que aconteceu, deve também interpretar. Entre escrever
e simplesmente descrever situa-se a escrita da História; entre a busca esmerada
pelos vestígios do pretérito e a ousadia da escrita marcadamente autoral. É o que
77

nos diz François Hartog: “como escrever sem escrever? Com o risco de não ser
um historiador, o historiador não deve escrever e ele não pode não escrever170”.

Pensamos que essa questão implicitamente encontra-se no âmago da


discussão que se estabeleceu a respeito da veracidade sobre Procópio de Cesareia.
Mas, tendo feito essas considerações ― sobre os questionamentos que a obra do
historiador de Cesareia pode nos incitar, ou pelo menos, nos convidar ― não é
nosso propósito nos aprofundar por tais searas, ainda que estas se façam sempre
presentes. Quanto a endossar a longa lista dos defensores ou detratores da
idoneidade histórica de Procópio, acreditamos que os debates historiográficos
atuais já tendem para um salutar equilíbrio, longe dos acirrados debates de
outrora. No entanto, as Anékdota podem nos conduzir por caminhos que não
passam necessariamente pelo embate entre a Verdade e a Mentira, entre o quanto
há de crível no escrito inédito de Procópio, e entre o quanto há de falso. As
Anékdota encerram um modo de pensar, entre suas linhas surgem-nos a maneira
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de sentir de uma época, matéria quase palpável do zeitgeist do século VI e é,


justamente, por esses caminhos que haveremos de seguir.

3.4.
Justiniano e sua época

É mister que abordemos, ainda que de forma sucinta, a figura de Justiniano,


pois a obra de Procópio constitui-se em torno do imperador e de sua época, seja
para exaltá-lo, seja para criticá-lo e denegri-lo.

Justiniano, que tinha por nome completo Flavius Petrus Sabbatius


Justinianus, provinha de uma família de camponeses trácios dos confins do
Império. Nascera em 482, na obscura Tauresium,vilarejo situado na província da
Dardania, nas proximidades de Berediana. Região não longe da cidade do que é
hoje Skopoj, capital da República da Macedônia. O destino glorioso de Justiniano
liga-se ao de seu tio materno Justino, homem de poucas ou nenhumas letras, além
de “inativo e pouco dotado para o mando”171. Se há homens que marcam
indelevelmente a História, há também aqueles que ficam registrados nos anais da

170
HARTOG, François: Le XIXe siècle et l’histoire: Le cas Fustel de Coulanges. Paris: Éditions
du Seuil, 2001. p.p. 27, 28.
171
TREADGOLD, Warren: Breve Historia de Bizancio. p.76
78

História mais como os proporcionadores da ascensão de importantes personagens,


do que como agentes de qualquer outra grande atuação ou obra de relevo mais
específica. Estranho, mas não menos essencial papel, foi o de Justino. Segundo
Maraval, Justiniano já possuía o nome de Justinianus antes de seu tio tornar-se
imperador o que indicaria que já era adotado por Justino172.

Acredita-se que chegou a Constantinopla por volta da segunda década de


sua vida, talvez em 502173. Viera a pedido de Justino e graças a este conseguiu ter
uma sólida formação:

A educação que recebera ― da qual se pode ter uma ideia a partir daquela
que deu, após a morte de Teodora, a um pequeno menino do seu vilarejo ―
havia sem dúvida combinado o aspecto cultural e o aspecto militar.
Justiniano seguiu o cursus ordinário da paideia antiga, estudou retórica e
direito, mas também foi iniciado em teologia. Sua formação, aliás, é
essencialmente latina e faz dele um romano, com os traços característicos de
um estado de espírito romano, que lhe inspira a admiração a Roma e a sua
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história, não menos que aquela da “Antiguidade infalível”; parece também


que não dominava tão bem o grego como o latim174. (A tradução é nossa)

Justiniano foi o último imperador que tinha por língua materna o latim, fato
não menos importante, pois o Império do Oriente viria a ser cada vez mais de
expressão grega. A partir do século VII, o latim deixaria de ser a língua oficial; a
língua da administração passaria a ser exclusivamente o grego175. O afã de
Justiniano de reconstituir o império em sua antiga dimensão seria, talvez, em parte
devido a essa base cultural e identitária de originário das regiões de língua latina
do Império. A Dardania situava-se próximo da fronteira do Danúbio e era um
território constantemente ameaçado pelas pressões dos povos bárbaros. Quiçá, por
conhecer a aflição dessas gentes que viviam em terras sob constante ameaça e por
possuir uma identificação com a parte ocidental do Império, Justiniano faria da

172
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p.22
173
TATE, Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p.
174
« L’éducation qu’il avait reçue ― dont on peut se faire une idée à partir de celle qu’il fit
donner, après la mort de Théodora, à un petit garçon de son village ― avait sans doute combiné
l’aspect culturel combiné l’aspect culturel et l’aspect militaire. Justinien a suivi le cursus
ordinaire de la paideia antique, étudié la rhétorique et le droit, mais s’est aussi initié à la
théologie. Sa formation par ailleurs, est essentiellement latine et fait de lui un Romain, avec les
traits caractéristiques d’un était esprit romain, qui lui inspire l’admiration de Rome et de son
histoire, non moins que celle de l’Antiquité infaillible » ; il semble aussi qu’il ait moins bien
possédé le grec que le latin. » MARAVAL: Pierre: L’Empereur Justinien. p. 23.
175
KAPLAN, Michel: Byzance. p.206
79

retomada dos territórios do Ocidente uma das grandes razões de seu governo.
Hipótese esta que é aventada por Tates:

Justiniano e sua família não eram somente arrivistas pelo fato de suas
origens sociais, pobres e rurais, eram também marginais no seio do Império
do Oriente, pela língua e pela ligação eclesiástica da região de origem deles.
É provável ― mas como provar? ― que eles retinham de suas origens uma
ligação com a cultura latina, a lembrança da antiga unidade romana e da
igreja de Roma que quase não teve, provavelmente, equivalente no Oriente.
Anastásio também era originário dos Bálcãs, mas era helenófono e não era
voltado para o Ocidente. Justino e sua família eram portanto estrangeiros no
Império? Eles não o eram nem um pouco visto, que o latim permanecia,
oficialmente, como a língua do poder, da administração e da legislação. Seu
conhecimento era, ao contrário, um trunfo para aqueles que se destinavam à
administração. Desconhecer o grego, pelo contrário, era uma deficiência176.
(A tradução é nossa).

A influência de Justiniano no governo de Justino foi cada vez maior, tanto


por suas capacidades e formação, quanto pelo envelhecimento de Justino. O
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cursus honorum de Justiniano foi rápido e pleno de êxitos: “Em 518, era
domesticus (oficial) nas Scholes Palatines; foi nomeado logo illustris comes
domesticorum e patrício, o que o fez ascender ao consistório. Em 520, tornou-se
mestre das milícias praesentalis, e, em 520, foi cônsul [...]”177. Quando da
ascensão ao consulado, promoveu uma série de comemorações de grande fausto
para colher as simpatias do povo de Constantinopla, “[...] com jogos magníficos
no hipódromo e distribuição de dinheiro”178. Em 527, foi associado ao Império
como herdeiro de seu tio. Meses depois, em 1º de agosto, com a morte de Justino,
herdava plenamente as insígnias imperiais, ascensão que na verdade começara
gradativamente e muitos anos antes.

176
« Justinien et sa famille n’étaient pas seulement des parvenus du fait de leurs origines sociales,
pauvres et rurales, ils étaient aussi des marginaux au sein de l’Empire d’Orient, par la langue et
par le rattachement ecclésiastique de leur région d’origine. Il est probable, mais comment le
prouver ? qu’ils tenaient de leurs origines un attachement à la culture latine, au souvenir de
l’ancienne unité romaine et à l’église de Rome qui n’eut probablement guère d’équivalent en
Orient. Anastase aussi originaire des Balkans mais il était hellénophone et n’était nullement
tourné vers l’Occident. Justin et sa famille étaeint-ils pour autant des étrangers dans l’Empire ?
Ils n’en étaient pas du tout puisque le latin demeurait, officiellement, la langue du pouvoir, de
l’administration et de la législation. Sa conaissance était, au contraire, un atout pour ceux qui se
destinaient à l’administration. Méconnaitre le Grec, en revanche, était un handicap. » TATE,
Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p.76
177
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p. 22
178
idem
80
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Figura 1: O Império Romano do Oriente, quando da ascensão de Justiniano, em 527, (laranja); as


guerras de reconquista, com os respectivos anos (setas em vermelho); assim como os territórios
conquistados (amarelo).

3.4.1.
Guerra Persa

Uma das maiores ameaças do Império eram os persas, sob o governo da


dinastia Sassânida, que pressionava as fronteiras orientais. Segundo Maas, os
persas eram o principal elemento que configurava o cenário geopolítico da época
de Justiniano:

O enorme e multiétnico império [persa] apresentou-se como a maior ameaça aos


romanos durante toda a época de Justiniano, a guerra ocorreu frequentemente entre
as duas grandes potências. Cosroes I foi o maior adversário de Justiniano. Suas
constantes invasões ao território causaram grandes danos para as ricas cidades da
região. A perda de recursos, em razão dos contínuos conflitos e ataques persas às
riquezas romanas, teve um efeito deletério à economia romana, ainda que não tenha
afetado a produtividade.179 (A tradução é nossa)

179
“The huge, multiethnic empire posed the greatest threat to Romans throughout the Age of
Justinian, as warfare grew more frequent between the great powers. Khusro I was Justinian’s
greteast adversary. His frequent invasions of Roman territory caused great damage to the rich
cities of the region. The loss of revenues due to the continuing conflict and to Persian seizure of
81

A pressão persa impedia que os esforços se concentrassem nas partes do


império Romano do Ocidente, que haviam sido perdidas gradativamente até a
queda final de Roma, em 476, nas mãos de Odoacro, rei dos Hérulos, e a
subsequente deposição de Romulus Augustulus. A solução encontrada por
Justiniano foi estabelecer um tratado de paz com seu homólogo persa Cosroes,
que acabara de ascender ao trono. A paz, que se dizia “eterna”, 180 seria concluída
em 532, associada a um pesado tributo de onze mil libras de ouro pago aos persas.
A fronteira oriental ficava agora desprotegida, o que não tardaria a atiçar a
ambição de Cosroes que violaria o acordo de paz em 540: a “paz eterna”181 havia
durado somente oito anos.

3.4.2.
Guerra Vândala

Enquanto a fronteira persa estava pacificada, os esforços voltaram-se para o


Ocidente. Os vândalos instalados no Norte da África professavam a vertente
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ariana do cristianismo e mantiveram por longa data uma política de perseguição


aos católicos, estes eram, por sua vez, formados majoritariamente pela população
local romanizada. Essa política anticatólica alterar-se-á com a ascensão de
Hilderico, em 523, que se aliará a Justiniano. Mas, em 530, Gelimar derruba
Hilderico e o encarcera. A conjuntura faz-se mais do que propícia para a
intervenção de Justiniano que aproveita o ensejo dessa disputa interna para reaver
territórios perdidos pelos romanos. O reino dos vândalos já se esboroava restrito à
estreita faixa litorânea, constantemente atacada pelos berberes que resistiam no
interior do continente. Em 15 de setembro de 533, as tropas de Belizário
adentravam Cartago e, logo em seguida, conquistavam Hipona ― cidade que se
celebrizara por seu Bispo, Santo Agostinho. Gelimer é capturado nas alturas do

Roman property had a deleterious effect on the Roman economy, thought it did not affect
productivity.” Maas, Michael: Roman Questions, Byzantine Answers in Maas, Michael: The
Cambridge Companion of the Age of Justinian. p. 10
180
“Desse modo, pois, pactuaram a chamada ‘paz indefinida’, quando Justiniano já contava seis
anos ocupando o trono. Os romanos entregaram aos persas Farangio e a fortaleza de Bolo além do
dinheiro combinado, e os persas aos romanos as praças fortes de Lácica.” (Guerra Persa 17-18)
181
Em grego aspérantos eirene, Francisco Antonio Garcia Romero traduz para o espanhol como
“paz indefinida”, mas sublinha, em nota, que também é conhecida como paz eterna ou perpétua.
Cf. Cesarea: Historia de lãs Guerras p.135.
82

monte Papúa182, nas proximidades de Hipona, em março de 352. A reconquista


das cidades do norte da África, provavelmente, possuía uma importante carga
simbólica.

3.4.3.
Guerra Gótica

Para a potência que desejasse dominar o Mediterrâneo, era necessário ter


sob o seu poderio as duas margens centrais do Mare Nostrum ― o que já havia
sucedido nos tempos áureos de Roma, quando das Guerras Púnicas. Já tendo
conquistado o Norte da África, restava a Justiniano reaver a Itália. Desde 493, a
península Itálica tinha por mestre Teodorico, rei dos Ostrogodos, que mantivera
Ravena como capital de seu reino. Teodorico ali havia chegado, em parte, pelo
incentivo de Zenão, soberano do Império Romano do Oriente, que o incentivou a
destituir Odoacro, rei dos Hérulos. O incentivo de Zenão, na verdade, tinha por
objetivo afastar o rei dos ostrogodos de Constantinopla, e assim desviar a cobiça
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do bárbaro para terras distantes da capital imperial. Teodorico, ainda que fosse
imbuído de cultura greco-romana, pois havia sido criado em Constantinopla,
desejava manter a separação entre os dois povos, por um lado os invasores
ostrogodos, que professavam o arianismo e, por outro, a elite local romana
católica. Na prática, isso se traduzia pela proibição de casamentos entre as duas
etnias. Apesar dessa separação entre romanos e ostrogodos, defendida por
Teodorico, sua política caracterizava-se por ser filoromana e de amizade com o
imperador. Entretanto, já em tempos de Justino, tio de Justiniano, o rei os
ostrogodos afastou-se de tal posição e desenvolveu uma política de hostilidade
com os romanos, haja vista que Justino arrogou-se de defensor do Concílio de
Calcedônia e pôs-se a perseguir os arianos. Uma das consequências dessa nova
posição de Teodorico foi o assassinato de Boécio e a prisão do papa. Mas o rei
dos ostrogodos veio a morrer em 525. O herdeiro seria seu neto, Atalarico, ainda
menor de idade e que teria por regente sua mãe, a filha de Teodorico, Amalasunta.
Mas os ostrogodos tinham dificuldade de reconhecer uma mulher como chefe do
exército. Após diversas vicissitudes e a morte de seu filho, Atalarico, Amalasunta
“sabendo que não pode continuar a governar sozinho, comete o erro de chamar

182
Identifica-se, atualmente, o monte Papúa na cadeia de montanhas de Kroumirie, que se estende
entre as atuais fronteiras da Argélia e da Tunísia. Cf: in Cesarea, Procopio: Historia de las Guerras
Vandalas. Nota 21. p.218-219
83

Theolahat, que se fez detestar na Toscana por suas intromissões, suas brutalidades
e seus confiscos dos bens dos romanos”183. Théodahat tornara-se o defensor do
partido ostrogodo, e acabou por assassinar Amalasunta em 535. Esse assassinato é
o ensejo perfeito para a intervenção de Constantinopla na península itálica, e
Justiniano não haverá de perdê-lo.

Belizário chega a Sicília em 535. Concomitantemente outro exército invade


a península pelo Norte. Em 536, Belizário, já vitorioso na Sicília, atinge o
continente, aí permanecendo de 536 até 540. As vitórias sucedem-se até Roma,
mas Belizário ficará sitiado em Roma durante dois anos. A invasão da Itália, ainda
que vitoriosa, deixaria a península arrasada. À custa de grandes esforços, Roma
voltava agora a ser “romana”. As reconquistas de Justiniano atingirão ainda o sul
da Península Ibérica. Mas o sonho de reconstrução do Orbis romanum já não mais
era possível, e logo se desfará após a morte de Justiniano, em 565.
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Justiniano também permanecerá no imaginário do Ocidente, associado a sua


vasta empreitada de regularização e organização da grande quantidade de leis e
decretos existentes no Império, acumulação caótica que provinha do trabalho
legislativo de vários séculos. Na prática jurídica a situação afigurava-se da
seguinte forma:

A necessidade de uma reforma do direito impunha-se e a urgência e o esforço que


ela requeria eram imensos. Os textos disponíveis não eram somente muito
numerosos, eram prolixos, frequentemente confusos e, às vezes, contradiziam-se. O
resultado era que a justiça dependia cada vez mais da vontade dos juízes, da sua
subjetividade, e, eventualmente de seus interesses. Por causas similares, proferiam
vereditos, por vezes, muito diferentes184. (A tradução é nossa).

3.4.4.
Código Justiniano

A comissão dirigida pelo jurista Tribonium, a quem Justiniano encarregara a


tarefa de organização das leis, não só reuniu, mas também fez um verdadeiro
trabalho de edição. O material basicamente era composto de três compilações

183
TATE, Georges: Justinien: l’épopée de l’empire d’Orient p. 591
184
« La nécessité d’une reforme du droit s’imposait donc avec urgence et l’effort qu’elle requérait
était immense. Les textes disponibles n’étaient pas seulement très nombreux, ils étaient prolixes,
souvent confus et, parfois, se contredisaient. Le résultat était que la justice dépendait de plus en
plus de la volonté des juges, de leur subjectivité, éventuellement de leurs intérêts. Pour des causes
similaires, ils rendaient des verdicts parfois très différents. » TATE, Georges: Justinien: l’épopée
de l’empire d’Orient p. 427
84

antigas, tentativas anteriores de sistematização das leis. Estas eram: o Codex


Gregoriani, realizado pelo jurista Gregório, por volta de 291, onde se
encontravam leis que iam de 196 até 291; o Codex Hermogeniani, realizado por
outro jurista Hermógenes, em 295, com a legislação do reinado de Diocleciano de
293 até 294; e, por fim, o Codex Theodosianus, elaborado a mando do Imperador
Teodósio II, contendo as leis do reinado de Constantino até a época do próprio
Teodósio185. Das atividades dessa comissão jurídica, surgiu o Codex Justinianus,
em 529. Mais tarde, o Codex Justinianus seria revisto e alterado. À nova versão
dá-se o nome de Codex repetitæ praelectionis.

Em 530, Justiniano compõe uma comissão de 17 juristas186, igualmente sob


a direção de Triboniano, agora com o intuito de fazer uma grande recolha da
jurisprudência do direito romano que abarcava um período indo do século II A.C.
ao século III D.C.. Os textos a serem sistematizados materializavam-se em “1528
livros de 3 milhões de linhas”187. O resultado final da sistematização desses cinco
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séculos de jurisprudência romana deu-se em “50 livros ― 432 capítulos ― e 150


188
000 linhas” , nascendo assim os Digesta ou Pandectæ e publicado em 16 de
dezembro de 533.

A preocupação do imperador voltou-se igualmente para a formação dos


estudantes de direito. Concomitante aos trabalhos dos Digesta ou Pandectae,
nomeou além de Triboniano, dois professores de direito, Teófilo e Doroteu, para
redigirem um manual destinado aos alunos da Escola de Direito de
Constantinopla. Esse manual intitulou-se Institutiones, também publicado em 533
e possuindo caráter oficial. Além disso, Justiniano publicou diversas leis e
decretos. A recolha destes, a partir do ano de 535 até 565, são as Novellæ. Ao
conjunto desse trabalho monumental ― o Codex Justinianus; o Codex repetitæ
praelectionis; os Digesta ou Pandectae; e as Novellæ ― os juristas da
Renascença, mais precisamente no século XVI, viriam a conceder o nome de
Corpus Iuris Civilis.

185
ROLIM, Luiz Antonio: Instituições de direito Romano. p. 88-89
186
AHRENS, Enrique: Historia del Derecho. p.165
187
MARAVAL, Pierre: L’Empereur Justinien. p. 36
188
Idem p. 37
4.
Uma leitura literária das Anékdota
A História Secreta é um documento histórico único. Nenhum autor anterior havia
exposto ainda os crimes de um regime com uma combinação de análises
institucional, legal e militar, com ataques pessoais e rumores obscenos, tão
completamente como Procópio fez aqui. Nesse denso panfleto de bastidores, ele
astuciosamente combina os papéis que hoje em dia estão divididos entre os
repórteres de tabloides, jornalistas investigativos, intelectuais públicos e
descontentes iniciados na administração.

Anthony Kaldellis189

4.1.
As Anékdota: reflexos de uma mundividência cristã?

A pergunta que devemos fazer é por que as Anékdota surgem como a única
obra da Antiguidade que se debruça com especial desvelo a esmiuçar a corrupção
e os males de um governo. O fato da obra ter sido escrita nos estertores do que
consideramos a Antiguidade não há de ser atribuído a mera coincidência. Acredito
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que a afirmação de Momigliano, quando escreveu “mas eu conheço somente uma


obra na qual a corrupção do governo torna-se o próprio assunto da história e dá
forma por isso a sua estrutura”, expressa o desconforto interpretativo ao qual as
Anékdota nos conduz. Momigliano sublinha o fato da corrupção estruturar a obra
em si mesma, em outras palavras, poder-se-ia dizer que Procópio disseca o mal
que permeava então a esfera suprema do poder imperial.

Lembremos que “corrupção” não necessariamente se restringe ao campo


das finanças públicas, mas também abarca toda forma de deterioração moral.
Dissertar sobre a corrupção, a deterioração moral, obviamente não é apanágio das
Anékdota, e Momigliano tem consciência disso. O que sobressai aos olhos do
historiador italiano são a intensidade e o local ocupado no texto pela matéria da
corrupção. Outros autores na Antiguidade o fizeram no que concerne ao conteúdo,
mas não no que concerne à intensidade e à forma. Abordaremos essa questão mais
adiante. Poderíamos dizer que o estranhamento de Momigliano origina-se

189
“The Secret History is a unique historical document. No previous author had get exposed the
crimes of a regime by combining institutional, legal and military analysis with personal attack and
salacious rumor quite as Prokopios does here. In this dense, behind-the-scenes pamphlet, he
artfully combines the roles the that today are divided among tabloid reporter, investigative
journalists, public intellectuals and “disgruntled” administration insiders” Kaldellis, Anthony:
Procopius of Caesarea: Tyranny, History, and Philosophy at the End of Antiquity.
University of Pennsylvania Press, 2004. (Edição Kindle)
86

justamente aí: na maneira como o mal ocupa um lugar essencial na análise


histórica que nos é apresentada por Procópio.

Mais recentemente, foi Kaldellis que assinalou a idiossincrasia das


Anékdota, como podemos ler na epígrafe que encima este capítulo. Ousaríamos
supor que Kaldellis parece levar suas conclusões até mais adiante, pois diz que
vários dos nossos gêneros atuais como que se mesclam em um único e mesmo
texto nas Anékdota: a identificação de um conjunto de temáticas atuais que já se
fariam presentes nesse livro de Procópio.

Mas o que devemos reter, acima de tudo, é o desconforto gerado pelas


Anékdota. Tanto Momigliano quanto Kaldellis apontam nitidamente para a
originalidade de como o texto se estrutura. A percepção de estranhamento e/ou
originalidade desse texto do século VI deve servir-nos como incitação à
indagação, em outras palavras, como uma pista pela qual é preciso enveredar e
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que poderá nos revelar uma importante chave de entendimento. Não seriam as
Anékdota um documento revelador de uma mudança de mentalidade? Não
estariam em suas linhas as forças maiores que perpassam a Antiguidade Tardia?

Acreditamos que nos é lícito buscar resposta para tais indagações na


maneira cristã de estar no mundo — se assim for permitido denominar a outillage
mentale do homem cristão ou, melhor diríamos, a outillage mentale que é
compartilhada não pelo homem cristão no singular, mas sim pelos homens
cristãos em sua pluralidade.

Nessa busca em delinear, ainda que seja de forma impressionista, as


idiossincrasias cristãs, havemos de voltar nossos olhos para o seu Outro no
período da Antiguidade Tardia. E no jogo de luz e sombra, sempre móvel e
fugidio — no entanto inevitável em qualquer análise — da definição, nada melhor
do que compararmos as alteridades que se enfrentaram e se interpenetraram em
determinada temporalidade; em nosso caso: o cristão e o pagão.

O homem cristão diverge em muito do pagão greco-romano, seus anseios e


seu modo de estar perante a vida são guiados por mundividências distintas. Mas é
preciso ressaltar igualmente que, ao nos referir a um homem e/ou a uma cultura
87

greco-romana de caráter pagão, não pretendemos simplificar a complexa


variedade dos contextos históricos que se estenderam por diversos séculos,
entremeada de diferenças sociais, de governo, entre muitas outras. Entretanto, não
podemos deixar de considerar que há traços em comum que perpassam as culturas
pré-cristãs de expressão grega e latina. É, justamente, a essa unidade plural de
matizes à qual nos atentamos. Atenção que não pode se furtar de perceber as
continuidades e, sobretudo, as oposições que se seguiram ao advento do
cristianismo.

4.2.
Tentativas de uma leitura “auerbachriana” das Anékdota

4.2.1.
A cicatriz de Ulisses
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O crítico literário alemão Ernest Auerbach ― no célebre primeiro capítulo


de Mímesis, intitulado “A Cicatriz de Ulisses” ― apresenta uma análise da cena
do canto XIX da Odisseia em que a velha criada de Ulisses, Euricleia, reconhece
seu amo. Aí vemos Ulisses, ainda disfarçado como um simples forasteiro,
recebendo o acolhimento que era devotado, conforme as leis da hospitalidade na
Grécia Antiga, aos hóspedes. Euricleia põe-se a lavar os pés daquele que, até
então, pensava ser um simples estrangeiro. Entretanto, ao ver uma cicatriz sobre
um dos pés de Ulisses, toma consciência da verdade: não estava diante de um
estrangeiro, mas sim do seu próprio senhor que finalmente havia retornado a Ítaca.
Auerbach assinala que nesse momento da epopeia homérica uma interpolação de
“mais de setenta versos” explica “a origem da cicatriz, um acidente dos tempos de
juventude de Ulisses, durante uma caça ao javali por ocasião de uma visita ao seu
avô Autólico”190. O aedo não está mais a falar do espanto de Euricleia quando
reconhece o seu senhor, mas leva-nos diretamente para o próprio momento da
caçada ao javali durante a qual Ulisses se ferira. A continuação da cena do
reconhecimento será retomada depois de várias dezenas de versos. Auerbach
acrescenta: “poder-se-ia acreditar que as muitas interpolações, o frequente avançar
e retroceder, deveriam criar uma espécie de perspectiva temporal e espacial; mas o

190
Auerbach, Erich : Mímesis. p. 2
88

estilo homérico jamais dá esta impressão”. Em outras palavras, poderíamos dizer


que o autor de Mímesis nos alerta que a narrativa homérica não faz uso de uma
visão em retrospectiva ― tão comum em romances modernos e filmes ―, o leitor
não ascende à memória de Euricleia, como em um primeiro momento poderia
pensar. A interpolação é a própria narrativa do episódio. Segundo Auerbach esse
tipo de interpolação, que se sucede ao longo das duas epopeias homéricas, seria
devido ao “próprio impulso fundamental do estilo homérico: representar os
fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente
definidos em suas relações espaciais e temporais”191. Assim, o texto homérico não
daria margem a dúvidas, nem sequer a nebulosidade de uma possível
rememoração da personagem poderia interferir na cena, pois, quando a
interpolação se inicia, a narrativa automaticamente passa a ser a do episódio que
explica a origem ― neste caso, a caçada ao Javali ― e não mais aquele em que o
efeito já está estabelecido ―, isto é, o reconhecimento de Euricleia.
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Com o intuito de acentuar essas características do epos homérico, Auerbach


contrapõe outra narrativa fundacional de um povo, trata-se do relato bíblico. O
crítico alemão debruça-se com tamanha atenção sobre o episódio bíblico do
sacrifício de Isaac que poderíamos dizer que a importância dessa análise acaba por
se tornar o cerne do próprio capítulo. A análise da “cicatriz de Ulisses”, ainda que
dê o nome ao capítulo em questão, acaba por ficar como um contraponto em
relação à análise do “sacrifício de Isaac”. No episódio bíblico do sacrifício de
Isaac, somos apresentados ao ideal da cega obediência às ordens de Deus. Deus
misteriosamente irrompe na cena e chama por Abraão e pede que o patriarca
sacrifique o seu único e amado filho. Javé não dá explicações e em nenhum
momento Abraão insinua o desejo de inquirir as razões de exigência tão extrema.
A resposta do patriarca é sucinta, mas cheia da reverente firmeza de um servo de
Deus: “eis-me aqui”. Auerbach assinala a imprecisão de referências espaciais na
descrição dessa hierofania:

Já este princípio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero. Onde estão os
dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe muito bem que
normalmente não se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve
vir de algum lugar, deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno,
para falar com Abraão. De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto

191
Auerbach, Erich : Mímesis p.4
89

é dito. Ele não vem, como Zeus ou Poseidon, das Etiópias, onde se regozijara
com um holocausto. Nada se diz, também, da causa que o movera a tentar
Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, como Zeus, com outros deuses,
numa assembleia em ordenado discurso; também não nos é comunicado o que
ponderara no seu próprio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena
chegado de altura ou profundeza desconhecidas e chama: “Abraão!”.192

Essa imprecisão enevoada de misteriosos silêncios não seria meramente


um efeito estilístico dos autores bíblicos, mas sim a expressão de uma própria
forma de conceber o sagrado. A sucessão de personagens, que são arrebatadas
pelas mais diversas vicissitudes da vida, seria típica do Velho Testamento;
personagens estas que podem decair e ascender conforme as provações e os
desígnios de Deus. O texto judaico possuiria assim uma pretensão histórica e
universalista, por isso mesmo, estaríamos diante de homens e mulheres que se
plasmam no movimento da própria vida. Os heróis homéricos seriam mais
estáticos, figuras hieráticas, comportando-se de maneira mais uniforme e coerente.
Desconhecemos quais foram os sentimentos que passaram pela alma de Abraão ao
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escutar pedido de tão sofrida execução. A imprecisão do estilo bíblico, que produz
um efeito de omissão misteriosa, pode ser lida como uma espécie de reflexo da
imprecisão das próprias personagens, humanamente criadas e transformadas ao
calor das experiências de suas próprias vidas. Imprecisão estilística, mas também
imprecisão inerente à condição humana, condição essa em que a coerência e a
clareza são sabidamente falhas.

Levando em consideração os argumentos desenvolvidos por Auerbach,


podemos concluir que as características do Velho Testamento fundariam uma
tradição que se comunicaria com os evangelhos. Tais textos, escritos em grego
koiné, no âmbito da comunidade judaica, dariam continuidade ao conteúdo e à
forma do Antigo Testamento, em oposição à translúcida escrita homérica.

Após analisar sucintamente o que Auerbach identifica como as duas


tradições da literatura ocidental, devemos nos deter em outro viés da tradição
Greco-latina. Tal viés nos é apresentado no capítulo que logo se segue à “Cicatriz
de Ulisses”. Refiro-me ao capítulo intitulado “Fortunata”. Mas para que possamos
utilizar a argumentação de Auerbach, apreendendo assim melhor o texto de
Procópio, é mister interromper nossa apresentação das duas tradições — que têm

192
Auerbach, Erich : Mímesis p. 5 e 6
90

por paradigmas primevos respectivamente a narrativa homérica e bíblica — para


analisar uma significativa passagem das Anékdota. A digressão é necessária, pois
é a partir dela que poderemos abordar o texto procopiano com o instrumental
teórico fornecido pelo crítico Auerbach.

Depois do prólogo, Procópio de Cesareia apresenta ao leitor a personagem


de Antonina, mulher de Belizário. Já nesse princípio, o historiador põe-se a
esmiuçar as origens de Antonina. Sem pejo e tergiversações somos apresentados
ao cenário lúgubre do submundo de Bizâncio. A riqueza de detalhes e a
criatividade com que Procópio tece o seu antipanegírico são elucidativos do
universo de valores do historiador e ― por que não dizer? ― de uma boa parte da
sociedade de então.

11. Belizário tinha uma mulher ― fiz menção dela nos livros precedentes ― cujo
avô e pai eram cocheiros e haviam exercido essa profissão em Bizâncio e em
Tessalônica, e a mãe era daquelas que se prostituem no teatro. 12. Essa mulher
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levou primeiramente uma vida dissoluta, deixando a rédea solta a seu


temperamento. Depois de muito frequentar os feiticeiros do círculo paterno e
adquirir os conhecimentos necessários, ela tornou-se em seguida a legítima
esposa de Belizário, quando já era mãe de numerosos filhos. 13. Ela prontamente
decidiu ser adúltera, logo no começo, tomando cuidado em esconder esse
comportamento; não que ela tivesse vergonha das práticas que lhe eram
habituais, nem que ela sentisse algum temor por seu marido (ela jamais teve
vergonha de qualquer ação que fosse e se fizera senhora de seu marido por
múltiplos sortilégios), mas porque temia o castigo da Imperatriz. Teodora, de
fato, ‘irritava-se violentamente e rangia os dentes contra ela’. 14. Mas depois esta
a ela ligou-se, por lhe ter feito favores em circunstâncias muito prementes. Em
primeiro lugar quando do assassinato de Silvério [...] em seguida causando a
ruína de João da Capadócia (como disse nos livros precedentes), então com
menos temor ainda e sem mais se esconder, ela não mais hesitou a cometer toda
espécie de crime193.

A apresentação de Antonina, que acabamos de ler, pode ser dividida em


três partes. Acompanhemos a forma como nosso autor desenvolve o perfil da
mulher de Belizário e as ideias que aí subjazem.

Em primeiro, e logo no começo, Antonina é definida como oriunda da mais


baixa extração, pois seu pai e avô seriam cocheiros. Não estamos aqui diante de
um texto que tenta denegrir somente a personagem de Antonina, no que tange
exclusivamente à sua moralidade, pois, como sabemos, suas raízes familiares são
alvo de ataque desde o princípio. Raízes que seriam manifestamente

193
Procope de Césarée: Histoire Secrète. Tradução e Comentários de Pierre Maraval. p.28 e 29.
91

incompatíveis com o status social que viria a ocupar. É como se Procópio nos
dissesse: Antonina, já por suas origens não poderia ser a mulher de um dos mais
importantes generais do Império. Em seguida, intensifica ainda mais a
desqualificação genealógica que empreende, visto que nos informa que sua mãe
fora prostituta. Ora, ao frisar tal fato, o autor põe em jogo uma série de
significados que se ligam à representação dessa atividade. Fora a degradação
moral, pois o comércio do corpo seria um pecado, segundo os padrões cristãos, ser
a filha de uma prostituta implicaria uma paternidade duvidosa. Dentro desses
parâmetros morais, mais degradante do que ser a filha e neta de cocheiros, seria
não ter a identidade do pai assegurada. Ser filha de “ninguém” pode ser
considerado como uma das mais graves acusações em uma sociedade patriarcal;
trata-se da falta de liame legítimo que insere a pessoa em determinado grupo que
lhe concede razão e coerência social para viver. O retrato de Antonina vai sendo
composto com os mesmos elementos, mas agora aplicados à retratada em si
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mesma, Antonina teria levado também uma “vida dissoluta”, manifestação talvez
como que de uma espécie de herança materna, pois deixara “a rédea solta a seu
próprio comportamento”. Mas a paternidade, ainda que Procópio possa nos incitar
tacitamente a desconfiar de sua autenticidade, nem por isso deixaria de transmitir
de maneira eficaz as suas marcas, porque foi no seio do ambiente paterno que
aprenderia a prática da feitiçaria. Criatura tão ignóbil, pelo menos no dizer de
nosso autor, só por artimanhas da ordem do mágico poderia conseguir se tornar “a
legítima esposa de Belizário”.

Em segundo, a nova condição de Antonina parece não desmentir as bases


nas quais Procópio fundamenta seu terrível retrato, com aparência de uma ilação
lógica, nos diz que “prontamente decidiu ser adúltera”. Temos a impressão de que
resvalava no pecado não como quem resvala no erro por um descuido, em
decorrência de alguma tentação, mas sim por convicção plena. Antonina parece
estar firme em sua incessante busca de prazer, é o que nos deixa depreender
Procópio, quando diz que ela, se por algum tempo, escondia seus atos adúlteros,
não seria por vergonha, mas sim por temor à imperatriz Teodora.

O terceiro e último momento do quadro é quando Antonina liga-se de


amizade à imperatriz; o ódio que separava essas duas mulheres transforma-se
92

agora em amizade. Teodora, que na própria descrição de sua inimizade, aproxima-


se bem mais de uma fera de arroubo irracional do que da plácida e idealizada
beatitude que, em princípio, conviria a uma imperatriz bizantina, adota postura
totalmente diferente em relação à Antonina. Os motivos dessa mudança não são
dos mais nobres, baseiam-se em criminosos favores: o “assassinato de Silvério” e
“a ruína de Joao da Capadócia”. A própria amizade é desprovida de qualquer
sentimento mais nobre de uma reciprocidade fraterna. Os laços que passam a unir
as duas mulheres são descritos por Procópio, na verdade, mais como o conchavo
interesseiro entre duas criminosas. Atingimos aqui o paroxismo do retrato de
Antonina. Teodora, a imperatriz, a mulher daquele que deveria ser a representação
de Cristo na Terra, liga-se à filha de uma prostituta que, por sua vez, tal como a
mãe, seria de uma promiscuidade empedernida. Nesse trecho presenciamos um
verdadeiro desconcerto estilístico dos padrões clássicos no que se refere à
temática. A mais alta esfera do poder está eivada não só da mais desenfreada
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devassidão e corrupção, mas estas são praticadas por indivíduos que ontem
mesmo ocupavam o que Procópio considera como a escória social. Configuram-se
diante de nós não mulheres de origem aristocrática que se degradaram — como
nos apresentam muitos escritores da Roma Clássica — mas são prostitutas do
povo que ascenderam à mais elevada das condições.

4.2.2.
O Trimalcião

Após a análise desse trecho das Anékdota, podemos retomar a explicação


dos argumentos desenvolvidos por Auerbach, para aplicá-los ao fim ao qual aqui
nos propomos. A descrição procopiana de Antonina facilmente nos remete à
análise que Auerbach faz do banquete de Trimalcião, em “Fortunata”. Nesse
capítulo o crítico literário alemão começa por analisar um dos episódios do
Satíricon, romance de cunho satírico — como já deixa entrever o próprio título —
e que mescla prosa e verso. Sua autoria é atribuída ao cônsul e governador da
Bitínia, o romano Petrônio, que viveu no primeiro século da Era Cristã. O texto do
Satíricon não se conservou integralmente, chegando até nós somente certos
trechos. Destes o único episódio completo que se preservou foi aquele do
banquete de Trimalcião. O Satíricon consiste no relato das “aventuras indecorosas
de Encôlpio e Ascilto —, e seu criado (Gíton) em suas andanças pelo sul da
93

Itália”. Encôlpio e Ascilto participam de um banquete que é oferecido por uma


personagem que Petrônio caracteriza de forma grotesca, trata-se do novo-rico
Trimalcião. Da mesma maneira que Antonina é descrita no texto procopiano como
provinda da mais baixa das extrações sociais, o romano Petrônio descreve
Trimalcião, sua mulher Fortunata e os demais convivas que participam do
banquete. É a forma de retratar as personagens e onde o olhar do autor se põe –
seja ele um escritor ficcional, como Petrônio, sela ele um historiador, como
Procópio – que nos interessa aqui refletir.

Em determinado momento, Encólpio pergunta a um dos convidados da


festa quem seria certa mulher que se encontrava entre os presentes. É exatamente
a resposta desse convidado que foi escolhida para ser analisada por Auerbach. Por
ora, façamos atenção ao cenário rico em detalhes que nos é transmitido por
Petrônio:
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Esta é Fortunata, a mulher de Trimalcião, que conta o dinheiro às arrobas. E


antes, o que pensas que tenha sido? Não o leves a mal, mas não terias aceito de
suas mãos nem um pedaço de pão. Mas agora ela entrou no céu, sem mais nem
menos, e é tudo para Trimalcião. Enfim, se ela lhe disser em pleno meio-dia que é
de noite, ele acredita. Esse aí nem sabe quanto tem, de tão rico que é; mas ela, a
tratante cuida de tudo, e até onde menos se espera. Ela não bebe, é parca, de bom
conselho, mas também tem má língua, uma verdadeira pega. De quem gosta,
gosta, e de quem não gosta, não gosta mesmo. Esse Trimalcião tem terras até
onde voam os falcões, incontáveis milhões. No porão do seu zelador há mais
dinheiro do que outra gente tem como fortuna. E os escravos! Eu acredito que
nem a décima parte deles chega a ver o seu senhor. Enfim, ao lado desse aí, todos
estes basbaques podem fechar o bico. E não penses que ele precisa comprar
alguma coisa: é tudo produção própria: lã, cera, pimenta — e se quisesses leite de
galinha encontrarias. Uma vez pareceu-lhe que não tinha bastante produção
própria de boa lã; comprou, então, carneiros de Tarento, e somou-os ao seu
rebanho... Estás vendo quantas almofadas há por aqui? Não há uma que não esteja
recheada com lã purpúrea ou escarlate: tanta é a felicidade deste homem. E
também os seus colibertos não devem ser desprezados. Eles já têm com que
viver... Estás vendo aquele ali atrás? Deve possuir atualmente os seus oitocentos
mil. E começou do nada. Não faz tempo que carregava lenha. Mas segundo dizem
— eu nada sei, só me contaram — ele pegou um íncubo dormindo e achou
tesouro. Bem, eu não sou invejoso, quando um deus dá... Aliás, ele acaba de ser
liberto e está cheio de ares (?). Há pouco, pôs a casa para alugar com um anúncio
que dizia assim: “C. Pompeu Diógenes aluga casa desde o dia 1° de julho; ele
acaba de comprar um palacete”. E esse outro, que está no lugar do liberto, como
estava bem! Não quero falar mal dele, já teve um milhão, mas as coisas
começaram a andar mal, e hoje não creio que lhe pertençam nem os cabelos...194

194
Auerbach, Erich : Mímesis p. 22
94

Auerbach utiliza-se também de Homero para tecer uma comparação com o


autor latino, apresentando três pontos a respeito do episódio supracitado que se
diferenciam do relato épico. Vejamos quais seriam esses pontos e em que medida
podem ser utilizados para a compressão das Anékdota.

O primeiro ponto: enquanto em Homero a apresentação tem por intuito um


espelho fiel da realidade — qualquer traço que pudesse revelar a “subjetividade”
de um narrador parece ser eliminado — Petrônio dá voz a um dos comensais. O
autor romano faz com que o leitor escute a própria resposta de uma de suas
personagens, um dos indivíduos que compõem, ele mesmo, aquele meio; e é
somente por intermédio do olhar desse conviva que o leitor tem acesso à casa de
Trimalcião:

Evidentemente, também existem diferenças importantes com a maneira de


Homero. Em primeiro lugar, a modelagem é completamente subjetiva; pois o que
nos é apresentado não é porventura o círculo de Trimalcião como realidade
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objetiva, mas como imagem subjetiva, tal como se apresenta na cabeça daquele
comensal que entretanto também faz parte do círculo. Petrônio não diz isto é
assim, - mas deixa que um eu, que não é idêntico a ele, nem ao fingido narrador
Encólpio, lance o holofte de seu olhar sobre os comensais – um processo
extremamente artístico perspectivo, uma espécie de dupla reflexão, que, naquilo
que se conserva da literatura antiga, não me atrevo a dizer que seja única, mas é
sem dúvida, muito rara. A forma exterior deste emprego da perspectiva não é
senão uma forma de exposição, tratada por demais objetivamente, como no caso
dos relatos de Ulisses ante os feácios ou de Eneas ante Dido, ou se trata da
tomada de posição de alguém perante homens ou acontecimentos que o atingem
diretamente, nos limites de uma ação , onde portanto, o subjetivo é inevitável e,
também, naturalmente carente de artifício. Aqui, porém, trata-se do mais aguçado
subjetivismo, que é ainda salientado pela linguagem individual, por um lado –
por outro trata-se de uma intenção objetiva, pois a intenção visa a descrição
objetiva dos comensais, inclusive de quem fala, através de um processo subjetivo.
Este processo a uma ilusão mais sensível e concreta da vida, na medida em que
um dos convidados descreve os comensais, um grupo ao qual ele pertence interior
e exteriormente; o ponto de vista é introduzido no próprio quadro, este ganha em
profundidade, e a luz que o ilumina parece provir de algum dos seus cantos.195

Acreditamos que essa característica relaciona-se diretamente com a


questão das duas tradições que foram exemplificadas anteriormente com o
episódio da “cicatriz de Ulisses” e com o do “sacrifício de Isaac”, visto que
Auerbach está tratando da translucidez do texto homérico versus o filtro da
“imagem subjetiva”, pelo qual passaria o episódio do “banquete de Trimalcião”.
Ousaríamos dizer que, nesse caso, ainda que se tratando de um autor “pagão”, o

195
Auerbach, Erich : Mímesis p.p. 23 e 24
95

texto de Petrônio, provavelmente, estaria - pelo menos no que tange a tal aspecto
da sua forma -, mais próximo do relato bíblico, visto que seria destituído do
afastamento descritivo de uma realidade objetiva, como se daria nos versos do
aedo da Jônia. No sacrifício de Isaac podemos não ter a “imagem subjetiva”, mas
estamos diante de um texto repleto de silêncios e imprecisões. Em outras palavras,
diríamos entrever na análise de Auerbach duas categorias, a saber: 1) aquela de
um narrador que se esforçaria por dar a impressão de uma realidade límpida,
quase um realismo literário avant la lettre. 2) Já a outra, seria a de um narrador
que não teria entre suas preocupações a transmissão dessa realidade “fotográfica”,
mas sim um narrador que constituiria seu texto por intermédio da “imagem
subjetiva” ou, então, de omissões, silêncios e imprecisões. Em suma, o grande
contraste seria o texto homérico com seu especial desvelo de clareza e
objetividade.

Ora, o texto das Anékdota aproximar-se-ia igualmente desse viés, senão


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exatamente através do recurso que é utilizado por Petrônio, quando transforma em


narrador uma das próprias personagens, mas quando deixa marcas que
possibilitam entrever o narrador. Lembremos que em vários momentos há
remissões a informações que Procópio afirma ter dito em seus livros precedentes.
Cita acontecimentos que teria escutado de fontes indeterminadas, nem sequer
dizendo de forma específica o cargo ou dado congênere do informante, por
exemplo. O próprio sentido que a palavra anedota tomou, como já dissemos, a
partir da obra de Procópio, serve-nos para ressaltar esse lado pouco objetivo das
Anékdota. A ideia de “anedota” está intimamente ligada a algo não muito seguro
que é passado de boca a boca, relato que não possui verdade assegurada.

Há outros momentos em que o narrador das Anékdota deixa-se fazer sentir


ainda mais diretamente. Lembremos também do próprio prólogo, quando o
autor/narrador manifesta seu grande receio em deitar sobre o papel as verdades
que diz conhecer sobre o reinado de Justiniano. Além disso, faz referências
constantes de informações que teria oferecido em seus livros anteriores. O
narrador das Anékdota permite-se revelar, embora insista em mostrar que tudo o
que expõe é a mais absoluta verdade. Nem por isso se oculta por trás de artifícios
que incitariam o leitor, em princípio, a acreditar que estaria diante de uma
96

“realidade objetiva”. Por mais que Procópio deseje macular para todo o sempre a
memória de Justiniano — expondo o que afirma ser a mais pura “realidade” dos
fatos — seu texto não deixa de possuir várias marcas que permitem, em grande
parte, entrever que se trata de sua opinião. A partir da apreensão dessas marcas
que parecem ter “escapulido” do ferino cálamo procopiano, podemos perceber a
costura textual. E se a metáfora nos é lícita, ao vermos as linhas, cerzidos e pontos
de junção de uma roupa, a presença de alguém que os costurou emerge mais do
que nunca em nossas mentes — embora sempre tenhamos sabido que uma manus
artifex sempre esteve ali presente. Essa nossa observação não aborda a veracidade
histórica ou não contida nas Anékdota, mas simplesmente assinala um traço
estilístico: o autor parece não ter tido a preocupação de esconder seu narrador
através de artifícios que fizessem com que o leitor pudesse sentir a sensação de
estar diante de uma realidade objetiva, o que ocorreria no texto homérico.

Como nos diz Auerbach, em Homero não há planos temporais, os


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acontecimentos abrem-se e a explicação sobre a cicatriz de Ulisses é o próprio


acontecimento. O narrador não se faz presente ao logo do texto, a narração
ludibria o leitor a pensar que o que está sendo lido é a própria “realidade
objetiva”. Ao considerarmos tais observações, podemos concluir que as Anékdota
diferenciam-se nesse ponto do epos homérico e comungam bem mais de um viés
que mescla a expressão “subjetiva” do narrador e do explicitamente
indeterminado, como se faz presente no Satíricon ou, até mesmo, no relato
bíblico.

A segunda e a terceira características — desse conjunto que poderíamos


nomear também de as diferenças entre Homero e Petrônio enunciadas por
Auerbach — relacionam-se intimamente. Trata-se da instabilidade das posições
sociais e da sua contrapartida, a sensação de estabilidade que oferecem os relatos
genealógicos das epopeias homéricas. Destarte, pedimos licença ao leitor para que
possamos proceder à análise de ambas de forma simultânea, visto que a
abordagem de uma, consequentemente leva-nos em vários momentos, à outra.
Então, já avisados dessa contiguidade, leiamos:
97

Mas o nosso comensal tem em mente o que se modifica historicamente, os


reveses da fortuna (e nisto, como em tudo o que ele fala, ele sente de forma
idêntica à dos seus semelhantes). Para ele o mundo está em constante movimento;
nada é seguro, mas, acima de tudo, o bem-estar e a posição social são
extremamente instáveis. O seu senso histórico é unilateral, pois só gira em torno
da posse de dinheiro, mas é autêntico. (Também os outros comensais falam
repetidamente da instabilidade da vida.) A aquisição e perda dos bens materiais é
aquilo que lhe interessa na vida, e o que lhe ensinou, a ele e aos seus semelhantes,
a desconfiar de toda estabilidade. Ainda ontem você era escravo, carregador,
prostituto — podia ser chicoteado, vendido, expulso — e de repente
encontra-se no luxo mais desmedido, como rico latifundiário e especulador
196
— e amanhã tudo poderá de novo acabar.

Auerbach prossegue:

[...] Também Homero gosta, como observamos antes, de intercalar a origem, o


nascimento e a história pregressa de suas personagens. Mas os seus dados são de
espécie totalmente diversa. Eles não nos levam ao evolutivo e mutante; ao
contrário, conduzem-nos a um ponto de apoio fixo. O ouvinte grego educado na
genealogia e na mitologia, deve reconhecer a ascendência e a família da pessoa em
questão, deve classificá-la desta maneira, da mesma forma como nos tempos
modernos, num círculo fechado aristocrático ou da velha burguesia, o recém-
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chegado é definido mediante dados acerca de sua família paterna e materna. Com
isto não se quer provar tanto a impressão da mudança histórica, quanto, e
muito mais, a ilusão de uma fundamentação firme e imutável da constituição
social, ao lado da qual a mudança das personagens e do seu destino pessoal
parece relativamente insignificante197. (Os grifos são nossos)

Para nossos propósitos, a segunda e terceira características são de especial


interesse. O narrador dá grande importância em precisar o que cada uma das
personagens foi. Se nos relatos homéricos as genealogias enfatizam a
imutabilidade, no caso de Fortunata, de seu marido, Trimalcião, e de seus
convivas, é justamente o contrário. As origens são narradas para acentuar a súbita
ascensão dessas pessoas. Diante do leitor afigura-se um mundo em que nada é
perene no que diz respeito à hierarquia social, os componentes do banquete têm
suas vidas transmutadas completamente ao sabor das vicissitudes do destino. A
voragem da roda da fortuna é inexorável e os componentes da cena seriam a mais
eloquente prova desses incessantes altos e baixos que a todos levam e dispõem
sem nenhum sem-cerimônia.

Essa possibilidade de ascensão também está presente nas Anékdota,


conforme pudemos ler no trecho que descreve as origens de Antonina.

196
Auerbach, Erich : Mímesis p.p. 24 e 25
197
Auerbach, Erich: Mímesis. p. 24
98

Lembremo-nos que, segundo Procópio, Antonina, a mulher de Belizário, era filha


de um cocheiro e de uma prostituta e, por meio de artimanhas da feitiçaria, ter-se-
ia tornado a esposa oficial de um dos mais importantes generais de então. Dessa
segunda característica decorre uma nítida diferença entre a epopeia homérica e o
Satíricon que — acreditamos nós — poderia ser, em grande parte, aplicada às
Anékdota. O que Auerbach frisa como sendo os principais traços distintivos do
meio social daqueles convivas que se fazem presentes na casa de Trimalcião são
traços que poderiam ser identificados na descrição das origens de Antonina, que
nos é retratada por Procópio.

Por esse ângulo de análise que seguimos, o Satíricon e as Anékdota


estariam igualmente próximos, visto que retratariam personagens das mais
modestas origens que, por um golpe da sorte, do destino — ou até mesmo pela
transformação da realidade por meios mágicos — lograriam galgar posição social
jamais imaginada. Aludimos a essa atmosfera em que a estabilidade das antigas
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famílias parece ter sido subvertida. Temos a impressão de assistir a uma peça de
teatro em que as mais inesperadas situações, conduzem a resultados
surpreendentes, pequenos atos ou gestos que podem levar um escravo à condição
de senhor, uma prostituta à condição de grande do império. Tanto Petrônio como
Procópio trazem ao leitor um mundo que não só insiste na instabilidade das
condições sociais, mas facilmente poderia resvalar na comédia. Escravos,
cocheiros e prostitutas se cruzam na narrativa e conformam uma realidade em que
não podemos apreender nem sequer alguma espécie de resquício da gravitas
romana. Delineam-se diante dos olhos do leitor quase que personagens bufos.

O “senso histórico unilateral” que “só gira em torno da posse do dinheiro”


não é o cerne em Procópio. Suas personagens não poderiam ser reduzidas a esse
único fator de transformação. Nesse ponto — talvez o único — há um
distanciamento entre os dois autores. Mas esse afastamento em nada debilita a
aproximação que empreendemos entre Petrônio e Procópio. A segunda e terceira
características apontadas por Auerbach, a instabilidade das condições e as
vicissitudes da transformação histórica que incidem sobre as personagens,
permanecem em sua essência válida para as Anékdota.
99

Mas o Trimalcião, como bem nos diz Auerbach, é um texto que tenta
inspirar o riso. O mesmo não poderíamos dizer, em princípio, das Anékdota. O
leitor moderno pode perceber o excesso de maledicência que estimula o autor de
Cesaréia a empreender o complemento da sua História das Guerras de Justiniano.
Não é à toa que a palavra “anedota”, que é utilizada na maior parte dos idiomas
modernos ocidentais, tem seu sentido cunhado a partir do livro de Procópio. A
fortuna crítica das Anékdota dividiu os eruditos entre os que nela acreditaram e
aqueles que desconfiaram do seu conteúdo. Ousaria dizer que, pelo menos, o
senso comum ― que plasma, dá vida ou morte às palavras nos idiomas ― parece
ter se aliado mais ao grupo dos que desconfiaram do conteúdo do livro inédito de
Procópio de Cesareia, visto que o título deste tornou-se sinônimo de pequena
narrativa peculiar, curiosa e risível. Mas esse não era o intuito de Procópio de
Cesareia, como sabemos. Seu intuito era o de escrever um último e complementar
livro da sua obra maior, no qual pudesse dizer a verdade da corte de Justiniano,
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até então, indizível. Se muitas características textuais são comuns ao Trimalcião e


às Anékdota, o intuito que moveu as respectivas redações é, em contrapartida,
bastante diferente.

Petrônio não escreveu seu texto com o objetivo de se filiar à tradição


historiográfica de então. Detém em suas linhas o movimento de ascensão e
possível queda das suas personagens, mas não busca as razões para tal. Petrônio
não se volta para a análise do contexto social ou político que rodeia suas
personagens e não poderia proceder dessa forma, pois caso o fizesse estaria a
escrever História. Assim nos explica Auerbach:

Mas Petrônio não faz questão nenhuma do aspecto histórico da sua obra. Se
tivesse ligado as diferentes circunstâncias e os diferentes acontecimentos a
situações político-econômicas determinadas dos primeiros tempos do Império,
teria surgido aos olhos do leitor um pano de fundo histórico que teria sido
completado pela memória — teria resultado numa profundidade histórica, ao lado
da qual o perspectivismo de Petrônio [...] pareceria mera superfície; então poder-
se-ia falar real, e não só relativamente, de movimento histórico. Mas isto teria
explodido o estilo dentro do qual Petrônio pretendia se manter, o que não teria
sido possível sem uma ideia, que lhe era inacessível: a ideia das “forças
históricas”. Tal como é o movimento, não obstante toda a sua vivacidade,
permanece dentro dos limites do próprio quadro; atrás dele nada se move, o
mundo é estático. É sem dúvida, nitidamente uma pintura da época, mas o tempo
se apresenta como se tivesse sido sempre assim como aparece aqui e agora, com
senhores que deixam aos escravos que satisfazem seus gostos sexuais grande
parte de suas fortunas, com imensos lucros que podem ser obtidos no comércio, e
100

assim por diante. O condicionamento temporal, ou a historicidade de todas estas


circunstâncias, não interessam, como tais, nem a Petrônio, nem aos seus leitores
antigos; só nós os constatamos e os modernos estudiosos da História Econômica
tiram disto suas conclusões198.

Para o autor de Mímesis, a perspectiva histórica que fornece os grandes


movimentos de mudança não faria parte da preocupação dos autores antigos. Se o
movimento é apreendido, ele o é no detalhe e a investigação não se aprofunda na
busca pelas raízes sócio-espirituais que impulsionam essas mudanças. A
historiografia Greco-latina estaria interessada no embate entre vícios e virtudes e
como esses configuravam o curso da História. Por que ex-escravos ascenderiam
socialmente? Quais seriam os motores que viabilizariam essa mudança? Quais
seriam os anseios e as novas ideias que perpassariam os espíritos em certa época?
E por qual razão se apegariam a tais ideias? Para Auerbach, esse tipo de pergunta
não estava na esfera de indagações da pesquisa histórica clássica, não que
evitassem responder, mas simplesmente porque não seriam nem sequer
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levantadas, seus olhares e sua atenção estariam direcionados para outras


indagações. Leiamos o que o crítico literário alemão explica sobre essa questão
mais especificamente:

Na Antiguidade não existiu uma pesquisa histórica profunda que tratasse


metodicamente do desenvolvimento dos movimentos sociais e espirituais. Isto já
foi notado, de passagem, por pesquisadores modernos, tais como Noprden, na sua
Antike Kunstprosa (II, 647), que escreve: “...devemos considerar que
Historiografia antiga jamais atingiu ou se propôs uma representação das ideias
gerais, das ideias que impulsionam o mundo”. — E Rostovtzeff, no seu livro
sobre a sociedade e economia Romano (educação alemã, I, 78), escreve: “os
historiadores não se interessam pela vida econômica do Império”. Estas duas
manifestações, escolhidas ao acaso, não parecem ter muito em comum, à
primeira vista, mas o que exprimem remete à mesma peculiaridade da maneira
antiga de ver os acontecimentos: ela não vê as forças, mas somente vícios e
virtudes199, êxitos e erros; a sua maneira de colocar os problemas não é

198
Auerbach, Erich: Mimesis. p.p.28-29
199
A ideia de que a historiografia antiga debruça-se, sobretudo, na busca de identificar os vícios e
as virtudes, quer dizer, uma história que se preocupa mais com uma abordagem moral do que com
a intenção de compreender os grandes movimentos sociais, políticos e econômicos que conduzem
a história, talvez, relaciona-se com o topos da historia magistra vitæ da qual nos fala Koselleck —
breve e anteriormente abordado nesta tese. A percepção da História como um grande repositório
dos tipos humanos e possibilidades de situação, que nos guiaria através do tempo, pressupõe a
repetição e a certeza de variáveis que se dão no interior de um quadro que, na sua configuração
geral, é a maior parte do tempo imutável. Somente através da dissolução desse antigo topos
historia magistra vitæ é que veríamos o gradativo desenvolvimento de uma historiografia que se
voltaria para a busca de grandes impulsionadores sociais que formam as mudanças na História. No
entanto, Auerbach considera que essa percepção das causas que emanam do povo como um todo e
provocam as modificações estaria mais presente no relato bíblico. Mas não podemos considerar a
Bíblia como História, na acepção que foi desenvolvida na Grécia. Seguir por essa reflexão desviar-
101

espiritual nem materialmente histórico-evolutiva, mas moralista. Isto está,


porém, na mais exata das relações com a concepção geral que se manifesta
na separação dos estilos entre o trágico-problemático e o realista; ambos
baseiam-se num medo aristocrático diante dos processos evolutivos que se
realizam na profundidade, e que são sentidos como vis, orgiásticos e
ilegais200. (Os grifos são nossos)

4.2.3.
A negação de Pedro

Ainda no capítulo intitulado “Trimalcião”, Auerbach aborda outro


episódio bíblico confrontando-o, dessa vez, com o Satíricon. O episódio escolhido
é a negação de São Pedro201, um dos momentos de especial dramaticidade dos
Evangelhos.

O referido episódio está inserido em um conjunto de cenas de crescente


dramaticidade que chega a seu ápice com a crucificação de Jesus Cristo. A traição,
a prisão, a negação do mais próximo dos apóstolos, o julgamento perante Poncio
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Pilatos e os diversos sofrimentos impingidos marcam um nítido confronto com a


imagem do filho de Deus. Essa sucessão de cenas, em que a humilhação atinge
um grau cada vez mais intenso, parece, à primeira vista, vir desmentir a
mensagem crística. Aquele que trouxera o advento da redenção da humanidade, o
triunfo sobre a morte, teria agora sido traído, abandonado pelos discípulos e morto
da forma mais degradante para a época, isto é, crucificado. A sensação
experimentada pelo leitor é que aquele pequeno grupo de judeus dissidentes está
praticamente desfeito para todo o sempre e irá soçobrar nas implacáveis vagas do
esquecimento histórico.

Mas, na verdade, a sucessão de cenas contribui para proporcionar um


efeito de glorificação de enorme intensidade. Toda a extrema degradação é
bruscamente interrompida, quando Maria, Madalena e Salomé vão prestar
homenagem ao morto e recebem a mensagem do anjo: “Não vos espanteis!

nos-ia de nossos propósitos. Em todo caso, queremos simplesmente assinalar a possível relação
entre a dissolução do topos da Historia Magistrae Vitae e a afirmação de Auerbach sobre tal
ausência na Historiografia Greco-romana.
200
Auerbach, Erich: Mimesis. p.p. 32-33
201
Visto que Auerbach não cita diretamente o referido trecho dos Evangelhos, mas o reproduz
através de paráfrases, optamos por transcrever o episódio da negação São Pedro direta e
integralmente da Bíblia. Acreditamos que isso proporcionará ao leitor uma apreensão mais linear
do episódio e, por conseguinte, poderá acompanhar a comparação empreendida pelo crítico alemão
de forma mais eficaz.
102

Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar
onde o puseram. Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede
na Galiléia. Lá o vereis, como vos tinha dito.”202 O que fora dito teria se
confirmado. O Cristo não mais estaria ali, havia ressuscitado, logo, a redenção da
humanidade se efetivara e já não mais havia morte. Forte e bela imagem de
significado mítico que atinge diretamente o leitor ou o ouvinte.

Tendo em mente os diversos elementos de construção literária, da qual o


episódio da negação de São Pedro é um dos elos, façamos atenção ao que nos diz
o próprio evangelista:

Quando Pedro estava embaixo, no pátio, chegou uma das criadas do Sumo
Sacerdote. E, vendo Pedro que se aquecia, fitou-o e disse: “Também tu estavas
com Jesus Nazareno. Ele, porém, negou dizendo: “Não sei nem compreendo o
que dizes”. E foi para fora, para o pátio anterior. E um galo cantou, E a criada,
vendo-o, começou de novo a dizer aos presentes: “Este é um deles!”. Ele negou
de novo! Pouco depois, os presentes novamente disseram a Pedro: “De fato, és
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um deles; pois és galileu”. Ele porém, começou a mal dizer e a jurar: “Não
conheço esse homem de quem falais!”. E, imediatamente, pela segunda vez, um
galo cantou. E Pedro se lembrou da palavra que Jesus lhe havia dito: “Antes que
o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes”. E começou a chorar.203

Nessa cena, “[...] Pedro cai mais baixo do que os outros, que pelo menos
não tiveram a oportunidade de negar Jesus explicitamente; como sua fé era
profunda, mas não suficiente, a ele acontece o pior que pode acontecer a um
crente neófito: teme pela sua própria vida”204. Aí vemos um homem a ser
engolfado por um redemoinho de acusações e tentando se salvar da contínua
queda. São Pedro tem medo; entra no pátio sorrateiramente; tenta não se fazer ver;
é acusado por uma criada; por covardia, renega o seu verdadeiro credo; a criada
insiste que ele é um dos seguidores do homem que fora preso; ele volta a renegar
o seu senhor; o burburinho da multidão cresce e agora toda a gente o acusa; ele
desesperado, já gritando, persiste em sua negação; e, por fim, põe-se a chorar,
demonstrando humanamente insegurança e vergonha. A cena configura-se com
elementos extremamente populares. Podemos ver uma horrenda criada, de espírito
malévolo que tem prazer em delatar. O povo sôfrego por ver, em breve, o sangue
derramado de mais um acusado. Um herói Greco-romano não poderia fugir de

202
Bíblia de Jerusalém, Marcos (16: 6-7). p.1784
203
Bíblia de Jerusalém, Marcos (14: 66-72). p.1782
204
Auerbach, Mímesis. p.36
103

uma criada, não poderia estar em meio a multidão em posição amedrontada, como
afirma Auerbach:

Uma figura trágica de tal procedência, um herói de tal debilidade, mas que
ganha de sua própria fraqueza a maior das forças, um tal vaivém do
pêndulo, tudo isto é incompatível com o estilo elevado da literatura clássica
antiga. Mas também a natureza e o cenário do conflito ficam totalmente fora
dos limites da antiguidade clássica antiga. Encarada superficialmente, trata-se
de uma ação policial e de suas consequências; desenvolve-se inteiramente entre
pessoas do dia-a-dia do povo. Coisa semelhante só é concebível na
Antiguidade como farsa ou comédia na Antiguidade. Por que não é assim, por
que desperta a participação mais séria e significativa? Por que apresenta algo que
nem a Poesia nem a Historiografia antigas jamais apresentaram: o surgimento de
um movimento espiritual nas profundezas do povo comum, em meio aos
acontecimentos ordinários e contemporâneos, que ganham, assim, uma
significação que nunca lhes coube na literatura antiga. Desperta perante os nossos
olhos “um novo coração e um novo espírito”. Tudo isso se aplica não só à
negação de Pedro, nas a todos os acontecimentos marrados no Novo Testamento.
Neles trata-se sempre da mesma questão, do mesmo conflito que se apresenta
fundamentalmente a todo homem, e que é assim, aberto e infinito — o mundo
todo entra em movimento por sua causa — enquanto que os enredos acerca do
destino e da paixão que a Antiguidade Greco-romana conhece interessam
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imediatamente só ao indivíduo atingido. Só em virtude da relação mais geral, isto


é, só porque somos seres humanos, ou seja, sujeitos ao destino e à paixão,
sentimos temor e compaixão.205

São Pedro está diametralmente oposto aos padrões estilísticos elevados da


literatura clássica. Está em meio de um cenário popular, mas nem por isso perde
em seriedade e em importância de significado, pois a ação liga-se a algo maior. É
a história da própria salvação da humanidade. Do baixo e comezinho do povo, da
miséria do cotidiano emerge algo que irá transformar o curso da História.

4.2.4.
Teodora: entre a História e o Sermo Humilis

Ora, nas Anékdota também presenciamos esse processo, mas isso se dá


como um evangelho ou uma hagiografia ao contrário, é uma escrita sagrada às
avessas. A visão não se fixa na salvação da humanidade, mas sim em uma
tentativa de sua perdição ou destruição. Se os Evangelhos narram o nascimento de
um movimento popular que conduz à salvação, as Anékdota narram o polo oposto,
elas relatam como personagens provindas do submundo conseguiram ser alçadas
ao comando do império e como estas se puseram a destruir a humanidade. O
processo é semelhante, mas se dá de forma negativa. Procópio, de certa maneira,

205
idem
104

quer convencer seu leitor de que Justiniano é a encarnação de um demônio, assim


como Cristo era a encarnação de Deus. Se o imperador bizantino era visto como a
figura de Deus na Terra, não haveria melhor maneira de deslegitimá-lo do que
procedendo uma demonização.

Mas antes de abordarmos a demonização de Justiniano e Teodora — o que


faremos mais à frente — devemos nos manter na apreciação do lugar que ocupam
os elementos populares na narrativa procopiana, ou, nos apropriando das palavras
de Auerbach: o “surgimento de um movimento espiritual nas profundezas do povo
comum”. Mas nunca é demasiado frisar que nas Anékdota o movimento espiritual
é negativo, ele é demonizado. Talvez, um dos momentos mais significativos para
mostrar como se dá nas Anékdota esse movimento do povo e que parece
conquistar todo o Império seja a célebre passagem em que Procópio nos conta a
juventude de Teodora. O quadro desenhado por Procópio é repleto de lugubridade
e vulgaridade, mas é desse meio que surge a imperatriz. Vejamos:
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Tal era, pois, o caráter de Justiniano, pelo menos como pudemos descrevê-lo. Ele
era casado com uma mulher da qual vou contar como foi o nascimento e a
educação e como depois de se unir em casamento com esse homem, ela aniquilou
até a raiz o Estado Romano. Havia em Bizâncio certo Akakios, guardador de
animais selvagens no circo, da facção dos Verdes, chamado o Mestre dos Ursos.
Esse homem morreu de doença sob o reinado do imperador Anastásio, deixando
três crianças do sexo feminino, Comito, Teodora e Anastácia; a mais velha não
tinha ainda atingido os sete anos. Sua mãe caída em seu estado anterior, desposou
outro homem que viria futuramente a se ocupar com ela da sua casa e retomar
esse trabalho. Mas o mestre de dança dos Verdes chamado Astérios, subornado
por alguma outra pessoa, os afastou desse posto e colocou em seu lugar, sem
nenhuma dificuldade, aquele lhe dera dinheiro. De fato era possível aos mestres
de dança dispor livremente de tais postos. Quando a mulher viu todo o povo
junto no circo, colocou coroas na cabeça e nas mãos de suas filhas e fez com que
se sentassem como suplicantes. Mas os Verdes não quiserem de maneira
nenhuma aceitar a súplica, enquanto que os azuis os restabeleceram nesse posto,
pois o seu Mestre de Ursos acabava também de morrer. // Quando essas crianças
chegaram à adolescência, a mãe delas logo fez com que subissem ao palco, pois
eram muito bonitas de serem vistas; mas não todas ao mesmo tempo, mas quando
cada uma pareceu-lhe estar com idade suficiente para esse trabalho. Logo
Comino, a primeira, havia obtido grande sucesso entre suas companheiras;
Teodora, mais nova, vestida com uma pequena túnica com mangas como aquela
de uma escrava, a seguia para prestar-lhe diversos serviços; em particular, ela
trazia sempre sobre seus ombros a cadeira sobre a qual aquela tinha o hábito de
se sentar nas assembleias. Durante certo tempo, Teodora, estando impúbere, não
podia se deitar com um homem nem ter relações sexuais como uma mulher, mas
se deitava como um menino com miseráveis, especialmente com escravos, que ao
acompanhar seus senhores ao teatro, aproveitavam dessa ocasião para cometer
essa funesta ação, e ela passava muito tempo no lupanar a fazer uso contra
natureza de seu corpo. Mas, logo que ela atingiu a adolescência e que ficou
105

suficientemente adulta, juntou-se àquelas que se apresentam no palco e logo se


tornou uma cortesã, daquelas que os antigos chamam de infantaria. Ela não era
de fato nem tocadora de flauta, nem harpista e não praticava nem sequer a arte da
dança, mas vendia somente sua beleza a todos os passantes, trabalhando com seu
corpo. Em seguida, associou-se aos mímicos para tudo o que se faz no teatro e
participava das atividades deles auxiliando-os nas bufonarias burlescas. Era de
fato extremamente viva e debochada, e logo suscitara a admiração nessa
atividade. Não tinha nenhum sentimento de vergonha, e ninguém jamais a viu se
incomodar, mas prestava-se sem nenhuma hesitação às práticas impudentes. Era
tal que mesmo estapeada e batida nas bochechas, brincava e até mesmo morria de
rir. Despia-se e mostrava desnuda a parte da frente e de trás, partes que devem
permanecer escondidas e invisíveis aos homens206. (A tradução é nossa)

Após falar do caráter de Justiniano, Procópio principia tecendo uma


associação entre o imperador e Teodora, deixando claro desde logo que não se
limitara ao simples papel de consorte do soberano, pois afirma que ela, após seu
casamento, conseguiria aniquilar “até a raiz o Estado Romano”. Trata-se, como se

206
“Tel était donc le caractère de Justinien, pour autant du moins que nous ayions pu le décrire. Il
était marié à une femme dont je vais raconter quelles furent la naissance et l’éducation et
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comment, après s’être unie en mariage à cet homme, elle anéantie jusquà la racine l’État romain.
Il y avait à Byzance un certain Akakios, gardien de bêtes sauvages au cirque, de la faction des
Verst, appelé le Maître des Ours. Cet homme mourut de maladie sous le regre de l’empereur
Anastase en laissant trois enfant de sexe féminin, Comito, Théodora et Anastasia ; la plus âgée
n’avait pas encore atteint ses sept ans. Sa femme tombée de son état antérieur, épousa um autre
homme, qui devait à l’avenir s’occuper avec elle de sa maison et reprendre ce travail. Mais Le
maître de danse des Verts, nommé Astérios, acheté par quelq’un d’autre, les écarta de cette
charge et mit à leur place, sans aucune difficulté, celui qui lui avait donné de l’argent. Il était
possible en efffet au maîtres de danse de dispososer librement de tels postes. Lorsque la femmme
vit tout le peuple rassemblé dans le cirque, elle plaça des couronnnes sur la tête et dans les mains
de ses enfants et les fit s’asseoir comme des supppliantes. Mais les Verts ne voulurent aucunement
accepter la supplique, alors que les Bleus les établirent dans cette charge, car leur Maître des
Ours venait aussi de mourrrir.// Lorsque ces enfants parvinrent à l’adolescende, leur mère les fit
monter aussitôt sur la scéne qui est lá, car elles étaient fort belles à voir ; non pourtant toutes en
même temps, mais lorsque chacune nlui parut être assez âgée pour ce travail. Déjà donc Comito,
la première, avait obtenu grand succès parmi ses compagnes ; Théodora, sa cadette, vêtue d’une
petite tunique à manches comme celle d’un esclave, la suivait pour lui rendre divers services ; en
particulier, elle portait toujours sur ses épaules le siège sur lequel celle-ci avait l’habitude de
s’asseoir dans les assemblées. Pendant un certain temps, Théodora, étant impubère, ne pouvait
coucher avec un homme ni avoir des relations sexuelles comme une femme, mais elle couchait
comme un garçon avec des misérables, à savoir avec des esclaves, qui, en accompagnant leur
maître au théâtre, profitaient de cette occasion pour accomplir cette funeste action, et elle passait
beaucoup de temps au lupanar à faire cet usage contre nature de son corps. Mais aussitôt qu’elle
arrive à l’adoslescence et qu’elle fut assez grande, elle se joignit à celles qui se produisent sur
scène et devint aussitôt une cortisane, de celles que les anciens appelaient d’infanterie.Elle n’était
en effet ni joueuse de flûte, ni harpiste et ne pratiquait même pas l’art de la danse, mais elle
vendait seulement sa beauté à tous les passants, travaillant avec tout son corps. Par la suite, elle
était associée aux mimes pour tout ce qui se fait au théâtre et participait aux activités qui sont les
leurs en les assistant dans les bouffonneries burlesques. Elle était en effet extrêmement vive et
moqueuse, et avait aussitôt suscité l’admiration dans cette activité. Elle n’avait aucun sentiment
de honte, et personne ne la vit jamais se troubler, mais elle se prêtait sans aucune hésitations à
des pratiques impudentes. Elle était telle que, souffletée et frappée sur les joues, elle plaisantait ou
même éclatait de rire. Elle se déshabillait et montrait nus à ceux qui étaient présents son devant et
sonderrière, des parties qui doivent rester cachées et invisibles aux hommes.” Cesarée, Procope :
Histoire Secrète (IX :1-7). Tradução de Pierre Maraval. 2009. p 60-61.
106

percebe, não de um movimento isolado, como nas personagens do banquete de


Trimalcião, mas sim de algo que assume vasta amplidão, alastrando-se por todo o
Estado. Depois da referência à dimensão dos males, que atingiram amplamente a
esfera pública, Procópio passará a buscar a origem de parte desses males na esfera
do privado, no microcosmo das origens de Teodora — tal como faz com
Antonina, seu objetivo é desqualificar não somente a pessoa da Imperatriz, mas
igualmente suas origens. Estamos em um meio extremamente popular, o meio das
torcidas do hipódromo. O leitor pode, até mesmo, sentir os ecos das multidões
ferventes e das paixões que ensanguentavam Constantinopla. O preconceito
aristocrático de Procópio é patente, mas sua visão de História já está influenciada
pela percepção dos Evangelhos. Já pode interpretar a História perscrutando o que
se passa nas esferas populares e está consciente de que as coisas que aí ocorrem
são capazes de perpetrar mudanças de envergadura na História. O olhar exclusivo,
que se detém unicamente no que se passa nas esferas mais elevadas da sociedade,
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aqui se desfaz. Lembremos também do perfil que Procópio traça de Justino, tio de
Justiniano e que lhe facultou à ascensão ao trono imperial: é um homem rude e
para assinar o próprio nome sobre os documentos precisa, até mesmo, do auxílio
de uma espécie de molde em madeira, solução criada pelo engenho de seus
assessores. Não se trata de uma ascensão isolada, a sociedade que emerge das
Anékdota é uma sociedade às avessas, onde os impeditivos de ordem aristocrática
parecem não mais existir e Procópio tende a associar tal fenômeno à corrupção
moral que se alastra pelo Estado.

Queremos assinalar que Procópio parece introduzir em um gênero


considerado “sério”, a História, um repertório de cenas, personagens e atos que no
mundo clássico eram circunscritos à comédia ou a textos similares, como é o caso
do Trimalcião. O que teria permitido essa incorporação? Nesse caso, levando em
conta a análise empreendida por Auerbach, poderíamos sugerir como resposta
parcial à pergunta acima que as Anékdota bebem da tradição do relato bíblico.
Elas afastam-se da tradição translúcida do relato homérico, aproximando-se
fortemente do “Trimalcião” de Petrônio. No entanto, é a sua condição de texto
historiográfico que não permite que elas possam ser incluídas na mesma categoria,
a categoria dos textos que pretendem escarnecer ou serem risíveis. Não podemos
nos esquecer de que as Anékdota são um texto de História, escrito com o objetivo
107

de ser um complemento à História das Guerras, e, ipso facto, causam tanto


estranhamento. A partir da leitura que Auerbach empreende da Bíblia, podemos
identificar essa mesma tradição no texto procopiano. A Bíblia é um relato que
pretende transmitir uma verdade histórica, a História do povo de Deus. Para os
cristãos, o Velho Testamento é o prenúncio da vinda do Cristo, seu conteúdo deve
ser lido pelo prisma da alegoria teológica. Todo esse prenúncio efetiva-se no Novo
Testamento, com o advento da Boa Nova, fato indelével, de suprema importância
para o cristianismo, que significa a redenção da Humanidade. Mensagem que traz
em si o anúncio do final dos tempos com o retorno do Cristo Pantocrator; começo
e fim do drama da história humana abarcado em um mesmo relato.

4.2.5.
Sermo humilis

Talvez o argumento levantado por Auerbach em outro de seus livros seja


interessante para a nossa compreensão. No ensaio, Sermo humilis, Auerbach
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explana sobre a concepção clássica de estilos, a saber: “o sublime, o médio e o


baixo”. A cada um desses estilos enquadrar-se-ia um repertório de temas. Assim
sendo, pessoas de extração social inferior, lugares do submundo e devassidão
moral caberiam, por excelência, ao estilo baixo. Entretanto, com o advento do
cristianismo essa configuração alterar-se-ia. Assim nos diz Auerbach:

A tripartição ciceroniana sustenta-se apenas para os casos forenses, não para os


temas espirituais com que lidamos. Cícero chama de “pequenos” os temas
referentes ao dinheiro e de “grandes” os que lidam com a salvação e a vida da
humanidade; os médios estariam entre esses dois casos. Isso não pode servir para
nós, cristãos; para nós, são grandes todos os temas, especialmente quando
falamos ao povo do alto do púlpito: nosso tema é sempre a salvação da
humanidade, não só a salvação terrena, mas também a eterna, de modo que até
mesmo questões de dinheiro tornam-se importantes, a despeito da soma
envolvida. A justiça não é menor por ser praticada em pequenas questões
monetárias, pois o Senhor disse: “Quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também
no muito207.

Tal qual se pode dissertar sobre questões financeiras e assuntos


comezinhos, pode-se também mostrar a corrupção moral de um imperador. Pode-
se adentrar os bastidores de sua corte e trazer ao público as intrigas e o mais
baixos conchavos pelo poder. Agora, nas Anékdota utilizava-se uma cristalina

207
Auerbach, Erich: Sermo humilis in Ensaio de Literatura Ocidental. São Paulo, Editora 34, 2007.
p.39.
108

prosa em grego ático, a seguir o modelo de Tucídides e, concomitantemente,


abriam-se as portas da História ao sermo humilis. Esse mundo de personagens
desprovidas de grandeza — passíveis mesmo de provocar o riso — poderiam
figurar no cerne daquele tipo de relato que, até então, se identificava com a
perenização dos grandes feitos. Os mais elevados cargos do Império eram
acusados de devassidão e de corrupção e ao lado deles poderia constar, por
exemplo, a criada Macedônia que fora punida pelo seu próprio excesso de zelo ao
denunciar o adultério de Antonina a Belizário. Para a visão de mundo cristã não
haveria impedimento de temas, pois todos teriam como único objetivo levar à
salvação. Era justamente esse o motivo que levara Procópio de Cesareia a escrever
as Anékdota, mostrar o mal de Justiniano, para que os governantes no futuro
pensassem duas vezes antes de cometê-lo, pois o futuro haveria de revelá-los. A
corrupção e a miséria dessa hagiografia ao contrário parece que possuíam como
intuito mostrar temas baixos, para que os Homens soubessem o que não deveriam
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fazer.

Pudemos analisar linhas acima uma das mais famosas passagens das
Anékdota. Trata-se, sem sombra de dúvida, da descrição do passado amoral de
Teodora, que é feita no nono capítulo. Devemos recorrer a essa passagem
novamente, pois ela é ilustrativa do que identificamos como o sermo humilis das
Anékdota. A mulher que haveria de chegar à condição de imperatriz era, quando
da sua juventude, uma atriz e prostituta, e nada em sua vida poderia fazer prever a
ascensão a essa posição tão destacada. Frisemos, o relato procopiano não concerne
ao comportamento dissoluto de um membro das classes superiores, mas sim de
uma mulher comum do povo. É do submundo de Constantinopla que surgiria uma
das figuras históricas de maior proeminência, pois, Procópio nos mostra Teodora
exercendo uma influência hegemônica sobre Justiniano.

Depois de apresentados os argumentos de Auerbach e feita a nossa


apropriação, como chave interpretativa para as Anékdota, podemos finalizar este
subcapítulo com uma tentativa de síntese das relações aqui estabelecidas. O
desvio da tradição retórica e literária que é apontado por Auerbach é igualmente
identificável nas Anékdota. Procópio as escreveu como sendo um complemento à
História das Guerras. Esse complemento aporta à narrativa histórica uma série de
109

cenas dignas do Trimalcião de Petrônio. O olhar cristão atento aos mínimos


detalhes desenvolveu uma nova percepção, a salvação dava-se nesses pequenos
gestos, na reflexão dos meandros da alma. O insignificante passava assim ― por
paradoxal que possa parecer — a ser essencial à economia da salvação, para que o
cristão se possa fazer completamente temente a Deus. Diríamos que o sermo
humilis parece adentrar a História. Quando Varillas diz que as Anékdota é um
gênero historiográfico que viria os grandes em sua intimidade, aponta para uma
característica que, talvez, nossos olhos contemporâneos já não percebam com
tamanha clareza, isto é, o texto das Anékdota é um texto histórico, em outras
palavras, é escrito com o intuito de se inserir na linhagem da longa tradição dos
historiadores. A incorporação de uma temática que traz em si muito da comédia
legitima-se na concepção de que tudo que envolve a salvação do homem é
legítimo de ser abordado. A intimidade do Imperador é fundamental, pois ela
prova a proximidade desse governante com Deus. Atacá-la é atacar a sua própria
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legitimidade, é provar que o imperador perdeu a sua sacralidade e não é mais “o


208
βασιλεύς terreno, imitação do μέγας βασιλεύς celeste e seu vicário ὕπαρχος”
não podendo mais cumprir a sua missão de “assegurar continuidade de vida ao
império, que realiza a sua história no seio do Lógos”209.

4.3.
Quando a Sátira Menipeia adentra a História

A relação que estabelecemos entre as Anékdota e o Satíricon leva-nos a


alargar os nossos horizontes analíticos. Vimos a semelhança de enredo e de
abordagem entre ambos, mas igualmente as diferenças que se dão entre as duas
intenções autorais. O primeiro foi escrito com o propósito de ser um texto de
História, em um grego que almejava se aproximar daquele dos historiadores
clássicos e seguir os parâmetros consagrados da escrita da História. Procópio
pretendia inserir-se na tradição historiográfica, tratava-se, em princípio, de um
texto do gênero elevado. Já o segundo foi redigido como uma obra que possuía
eminentemente o objetivo de incitar o riso, — ou, pelo menos, o escárnio — por
conseguinte, Petrônio pretendia escrever um texto do chamado gênero baixo.

208
Conca, Fabrizio Introduzione in Procopio: Storie Segrete, 2010. p. 8
209
Idem
110

O crítico literário russo Mikhail Bakhtin afirmou: “O Satíricon de Petrônio


210
não passa de uma ‘Sátira Menipeia’ desenvolvida até os limites do romance” .
Considerando tal afirmação, pretendemos ampliar nosso enfoque e relacionar as
Anékdota não somente com o Satíricon, mas também com o gênero ao qual ele
pertence, conforme afirmou Bakhtin, isto é, a Sátira Menipeia. Mas antes de
abordarmos esse tipo de sátira é mister compreendermos, ainda que em sucinta
explanação, o que é o sério-cómico, ao qual o crítico russo filia a Sátira Menipeia.

4.3.1.
O sério-cômico

Bakhtin identifica uma grande categoria de gênero literário intermédio na


Antiguidade Clássica denominado sério-cômico, na verdade — se nos é lícito a
apropriação do vocabulário da linguística comparativa — uma grande família que
agruparia variada ramificação de gêneros. Assim nos diz o crítico literário russo:
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Neste, os antigos incluíam os mimos de Sófron, o diálogo de Sócrates” (como


gênero específico), a vasta literatura dos simpósios (também gênero específico), a
primeira memorialística (Íon de Quios, Crítias), os panfletos, toda a poesia
bucólica, a “sátira menipeia” (como gênero específico) e alguns outros gêneros.
Dificilmente poderíamos situar os limites precisos e estáveis desse campo do
sério-cômico. Mas os antigos percebiam nitidamente a originalidade essencial
desse campo e o colocavam em oposição aos gêneros sérios, como a epopeia, a
tragédia, a retórica clássica, etc.211

São Três as peculiaridades que definiriam a família do gênero sério-


cômico. Vejamos o primeiro:

A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério-cômico é o novo


tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia a dia, é o
objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação, a
apreciação e formalização da realidade. Pela primeira vez, na literatura antiga, o
objeto da representação séria (e simultaneamente cômica) é dado sem qualquer
distância épica ou trágica, no nível da atualidade, na zona de contato imediato e
até profundamente familiar com os contemporâneos vivos, e não no passado
absoluto dos mitos e lendas. Nesses gêneros, os heróis míticos e as
personalidades históricas do passado são deliberada e acentuadamente
atualizados, falam e atuam na zona de um contato familiar com a atualidade
inacabada. Daí ocorrer, no campo do sério-comico, uma mudança radical da zona

211
BAKHTIN, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. p.p.
121-122
111

propriamente valorativo-temporal de construção da imagem artística. É essa a


primeira peculiaridade desse campo212.

O distanciamento solene, através do qual as personagens eram retratadas


na épica e na tragédia, é no campo do sério-cômico, desfeito. Bakhtin nos fala do
“dia-a-dia” e de um “[...] contato imediato e até profundamente familiar com os
213
contemporâneos vivos” . Diríamos que as personagens são trazidas para um
mundo que mantém vários pontos de contato com o leitor e/ou ouvinte. O mundo
dos heróis, dos tempos longínquos da gesta memorável e do dilema trágico
encenado diante da plateia não é componente do sério-cômico.

Apesar de Bakhtin não acrescentar a História à sua lista de gêneros sérios,


poderíamos também aí mencioná-la. Heródoto pode ter, em parte, destoado da
gravidade que consagraria a historiografia clássica; pode ter sido considerado por
muitos como um mentiroso214 e acumulador de pequenas histórias — o que levou
o helenista inglês de Oxford, Sir Maurice Bowra, a dizer que “algumas de suas
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narrações têm o sabor do conto profissional e possuem o gosto e o tempero dos


215
mercados” . No entanto, seria exagerado afirmar que o estilo herodotiano
descreveria as personagens com uma acentuada atualização, assim como dizer que
216
estas falariam e atuariam “[...] na zona de um contato familiar” . A História,
logo depois de seu fundador, receberia contornos ainda mais circunspectos,
afastando-se de Heródoto. Tucídides fez-se por excelência o modelo dos
historiadores. O autor de A Guerra do Peloponeso é o mais paradigmático
exemplo de uma história séria, com a recriação solene dos discursos que
incitariam as nobres virtudes.

212
Idem p.p. 122-123
213
Idem
214
Vários foram os autores ainda na própria Antiguidade que acusaram a veracidade das Histórias
de Heródoto: “Sua reputação foi por muito tempo das piores: mitólogo para Aristóteles (Poética),
homo fabulator para Aulo Gélio... Perde-se a conta, na Antiguidade, de Ctésias a Libanios, do IV
século a.C. ao IV século d.C., dos livros escritos para denunciar suas mentiras. Plutarco, o mais
célebre de seus detratores, no seu tratado sobre a malignidade de Heródoto, único panfleto que nos
chegou, não poupa palavras: ‘Ele bem abusou dos leitores com sua própria simplicidade; seriam
necessários vários livros para passar em revista o conjunto de suas mentiras e de suas
especulações’ (Sobre a Malignidade de Heródoto)” (A tradução é nossa) SAÏD, Suzanne et alii:
Histoire de la littérature grecque. 2004. p.185
215
BOWRA, C.M.: Historia da la Literatura Griega. p.99
216
BAKHTIN, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 2013
p.p. 121-122
112

Mas o estilo historiográfico que nos é apresentado nas Anékdota comunga


desse “contato imediato”, ao qual Bakhtin se refere, de forma bastante clara.
Procópio escreve sobre fatos que vivera, mas não só isso — Tucídides também o
fizera —, o principal é que ele nos mostra as personagens históricas com extrema
crueza. Se as idealiza é, exatamente, uma idealização às avessas. Tenta, a todo
custo, apresentar as personagens como seres cúpidos que não possuem nada de
grandioso, nem em suas origens, nem em seus atos; são seres torpes e mesquinhos
ávidos por qualquer tipo de lucro, prontos a abrir mão de todo ideal coletivo, em
prol única e exclusivamente dos seus vis interesses. Belizário fora explicitamente
traído por Antonina e acreditara prontamente em suas desculpas; em outro
episódio, deixara de seguir adiante, em batalha contra os persas, para esperar a
chegada da mesma Antonina, ou seja, teria subjugado os interesses do Estado
imperial ao comezinho de sua vontade. O maior dos generais do seu tempo é
transformado por Procópio em um ser fraco, que poderia ser comparado pelo
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leitor às fraquezas de um conhecido qualquer ou, pelo leitor atual, a uma figura
digna do mais rasteiro dos jornais. Se a história antiga solenizava ou, pelo menos,
tratava com certa distância seus retratados, Procópio rebaixava-os não só com
requinte, mas também com arte. Finda a primeira peculiaridade do sério-cômico,
façamos atenção à segunda:

A segunda peculiaridade é inseparável da primeira: os gêneros do sério cômico


não se baseiam na lenda nem se consagram através dela. Baseiam-se
conscientemente na experiência (se bem que ainda insuficientemente madura) e
na fantasia livre; na maioria dos casos seu tratamento da lenda é profundamente
crítico, sendo às vezes, cínico desmascarador. Aqui, por conseguinte, surge pela
primeira vez uma imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na
experiência e na fantasia livre. Trata-se de uma verdadeira reviravolta na história
da imagem literária217.

Em síntese, Bakhtin aqui nos diz que a lenda seria livremente reinventada
com um sentido eminentemente crítico. Ora, nas Anékdota não encontramos,
propriamente e à primeira vista, um tratamento crítico da lenda. A crítica
desenvolvida por Procópio não visa nenhuma narrativa mítica em si mesma. No
entanto, o fato de ele resolver a questão da malignidade de Justiniano, afirmando
que o imperador e Teodora seriam demônios, não deixa de ser uma forma de
apropriação mítica, pois o historiador não poderia encontrar tal afirmação em

217
Ibid p.123
113

nenhum dos escritos sagrados do cristianismo. O processo consiste em reelaborar


a mitologia cristã do demônio, como uma solução explicativa. Vemos nesse
processo não a crítica ao mito, mas sim uma maneira de modelá-lo em prol da
crítica de caráter político e histórico. Nas Anékdota não está em jogo ridicularizar
a crença em demônios, mas sim apropriar-se da demonologia cristã para tecer uma
acerba invectiva ao casal imperial. O historiador de Cesareia, ao mesmo tempo
que interpreta a realidade através de um mito, está também a interpretar o próprio
mito, colocando-o em benefício de seus propósitos. Sigamos para a terceira
peculiaridade do sério-comico:

A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de


todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à
unicidade estilística) da epopeia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica.
Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do
vulgar, do sério e do cômico e empregam amplamente os gêneros intercalados:
cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros
elevados, citações recriadas em paródia, etc. Em alguns deles observa-se a fusão
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do discurso e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilinguismo


direto na etapa romana), surgem diferentes disfarces de autor 218.

A fusão de estilos propriamente, como foi possível ver, não se faz presente
nas Anékdota, não há a presença de “gêneros intercalados”, a narrativa não se
compõe da mescla de “cartas, manuscritos encontrados [e] diálogos relatados”.
Procópio não reproduz os diálogos de suas personagens, tampouco reproduz
documentos ou interrompe a narrativa com versos, mas utiliza ininterruptamente a
prosa. Além disso, as Anékdota não são uma paródia, visto que esta se define por:
“[...] ridicularizar uma tendência ou um estilo que, por qualquer motivo, se torna
219
apreciado ou dominante ”. O objetivo do autor é criticar o reinado de
Justiniano, mas não está em questão ridicularizar a História como gênero em si.
Mas o fato de não intercalar gêneros de forma direta — cartas, manuscritos,
diálogos, paródias — não exclui por completo as Anékdota da terceira
peculiaridade. Como foi possível constatar diversas vezes, sobretudo quando nos
utilizamos dos conceitos de Auerbach, “a pluralidade de estilos” está nitidamente
marcada nas Anékdota, é suficiente que nos lembremos que aos padrões
historiográficos clássicos misturam-se a comicidade da descrição exagerada e a
demonologia cristã.

218
Idem
219
Moisés, Massaud: Dicionário de Termos Literários, 2004. p. 340
114

A terceira peculiaridade leva-nos a refletir sobre a idiossincrasia desse


texto. Procópio tem o desvelo de imitar o cânone histórico clássico no que
concerne a seu estilo, mas essa unidade aparente abre-se para o elemento do dia-a-
dia, para a acentuação da cotidianidade e para a reelaboração da lenda. Das
características que Bakhtin elenca como definidoras do sério-cômico, as Anékdota
comungam, de uma forma ou de outra, de todas elas. Mas os diversos pontos em
comum não devem levar-nos precipitadamente a concluir que esse texto
enquadrar-se-ia complemente no sério-cômico. Um dos pontos de diferenciação
mais marcante, a nosso ver, é o fato das Anékdota manterem a unidade estilística
dos gêneros ditos elevados, isto é, não mesclam à prosa os diálogos, tampouco
versos.

Como assinalamos linhas acima, o que mais nos interessa na família de


gêneros do sério-cômico é, mais precisamente, a Sátira Menipeia. Até aqui,
identificamos vários pontos de contato entre o sério-cômico e as Anékdota. Agora
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é chegada a hora de seguir por um dos seus ramos. Pretendemos afinar ainda mais
o nosso olhar e nos enveredar por aquele gênero que parece possuir mais pontos
em comum com o texto do historiador de Cesareia.

4.3.2.
A Sátira Menipeia

A Sátira Menipeia liga-se em suas origens diretamente à escola filosófica


cínica. No entanto, como observa Saïd, esta, na verdade, não seria propriamente
uma escola filosófica, mas antes um movimento espiritual que estaria “[...] na
origem de uma tradição de paródia e de crítica radical que marcou profundamente
a evolução posterior da literatura” 220. Os cínicos contestavam as regras sociais, as
escolas filosóficas e pregavam uma moral que se dava em uma prática de vida,
pretendendo mostrar que o ser humano era nada mais e nada menos que um
animal entre os outros. O próprio nome como o movimento ficou conhecido
remete-se ao desejo de anular as convenções sociais. Para Saïd,221 o nome
originar-se-ia da praça e do ginásio atenienses denominados Κυνóσαργες
(Kynósarghes), isto é, “cão branco”, local de reunião dos adeptos da corrente

220
SAÏD, Suzanne et allii: Histoire de la littérature grecque. 2004. p. 369
221
Idem
115

filosófica. Para Rey222, viria do adjetivo κυνικóς (kynikós), que significa “relativo
aos cães”, que, por sua vez, procede do substantivo κύων, κυνóς (kýon, kynós),
cão. Daí poderíamos concluir que a praça e o ginásio receberam o nome em
referência ao animal, haja vista que os cínicos defendiam que os seres humanos
deveriam viver com a mesma espontaneidade dos cães ou, então, o nome da praça
já fazia referência a um cão branco, e a associação com as ideias cínicas logo se
fez patente. Seja como for o importante é assinalar a mais completa desenvoltura
das restrições impostas pela sociedade, optando pela busca da mais completa
naturalidade que, muitas vezes, poderia beirar o grotesco, visto que a imagem do
filósofo cínico é do homem “[...] que usa barba, cabelos compridos e sujos, anda
com os pés nus e não se separa do seu casaco (tribôn) imundo. Come, urina,
masturba-se e se une sexualmente com sua companheira em público.223” Para
Brisson224, a raridade dos documentos concernentes aos cínicos deve-se
especialmente à própria natureza de seu pensamento, o que fez com que poucos de
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seus adeptos consignassem por escrito sua doutrina. As informações que


chegaram até nós baseiam-se essencialmente em referências e anedotas escritas
por aqueles que detratavam ou então simpatizavam com esse movimento.

Segundo Bakhtin, as origens da Sátira Menipeia podem ser remontadas a


Bíon de Boristênide225. Este nascera, por volta do ano de 325 a.C., na cidade de
Olbia226, uma das colônias gregas às margens do Mar Negro, próximo da
desembocadura do rio Boristênide227. Bíon é conhecido, sobretudo, por suas
diatribes, outro gênero que foi consagrado entre os cínicos e que consiste em “[...]
um relato que interpela um interlocutor imaginário em um tom familiar e constrói
todo um arsenal retórico de perguntas, personificações, comparações tiradas da
vida cotidiana e anedotas para dar mais eficácia à lição de moral” 228.

Mas foi Menipo originário da cidade Síria de Gadara, que viveu em


meados do século III a.C., que foi consagrado por Varrão como o iniciador da
Sátira Menipeia. Em Roma o estilo de Menipo teve grande fortuna e contou entre

222
REY, Alain (direc.) Dictionnaire Historique de la Langue Française, 2006. (vol. I) p.982
223
BRISSON, Luc: “Cynisme” in Dictionnaire de l’Antiquité. p. 608
224
Idem p. 607
225
Gadara é a atual cidade de Umm Qeis na Jordânia.
226
Olbia atualmente é uma cidade da Ucrânia.
227
Boristênide é o nome com que os gregos antigos denominavam o rio Dnieper.
228
Saïd, Suzanne et allii: Histoire de la littérature grecque. 2004. p. 370
116

seus expoentes com: Varrão (116-27 a.C), que escreveu as suas Saturae
Menippea, estas misturam o verso, a prosa e diálogos; Sêneca, com a
Apocolocyntosis divi Claudii; Luciano de Samósata, que viveu e no século II,
com o Mortuorum Dialogi (Diálogo dos Mortos), em que representa o próprio
Menipo como uma das suas personagens. Segundo Saïd:

A sátira mistura de fato livremente a prosa e o verso (trata-se o mais


frequentemente de uma retomada paródica de passagem bem conhecida). Ela
associa, sobretudo, o “sério (spoudaion/ σπουδαῖον) e o “cômico (geloion/
γελοῖον) e cria, assim, o “sério-cômico” σπουδαιογέλοινον, que consiste menos
em escarnecer os assuntos mais sérios do que colocar o riso a serviço de um
autêntico argumento filosófico229.

Das quatorze particularidades listadas por Bakhtin, como sendo os


principais elementos definidores da Comédia Menipeia, acreditamos que cinco230
possuem relevantes pontos de contato com as Anékdota. Vejamos quais são essas
cinco características e como elas se relecionam com as Anékdota:
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[I] Em comparação com o “diálogo socrático”, na menipeia aumenta globalmente


o peso específico do elemento cômico, embora esse peso oscile
consideravelmente em diferentes variedades desse gênero flexível: a presença do
elemento cômico é muito grande, por exemplo, em Varro, desaparecendo ou
melhor, reduzindo-se em Boécio231.

O elemento cômico pode ser facilmente repertoriado em alguns trechos da


Anékdota, como, por exemplo, no início, quando Procópio nos narra as origens de
Teodora e de Antonina. O próprio exagero como a crítica é apresentada facilmente
aproxima momentos de crueldade a cenas de comédia. O elemento cômico foi
percebido pela própria apropriação da palavra “anedota” em várias línguas que,
geralmente, refere-se a uma narrativa que lida com aspectos curiosos e engraçados
da vida.

[II] Uma particularidade muito importante da menipeia é a combinação orgânica


do fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso
com o naturalismo de submundo extremado e grosseiro (do nosso ponto de vista).
As aventuras da verdade na terra ocorrem nas grandes estradas, nos bordéis, nos
covis de ladrões, nas tabernas, nas feiras, prisões e orgias eróticas dos cultos
secretos etc. Aqui a ideia não teme o ambiente do submundo nem a lama da vida.

229
idem
230
Bakhtin lista e enumera quatorze particularidades fundamentais da Sátira Menipeia. Destas
citamos, conforme a numeração do autor, as de número: 1; 4; 9;10; e 14. No entanto, para simples
efeito didático a numeração em romano entre colchetes que aparece no texto é nossa.
231
Bakhtin, Mikhail: Problemas da Poética de Dostoiévski, 2013. p.p. 129-130
117

O homem de ideia, um sábio, se choca com a expressão máxima do mal


universal, da perversão, baixeza e vulgaridade. Tudo indica que esse naturalismo
de submundo já aparece nas primeiras menipeias. Referindo-se a Bíon de
Boristênide, os antigos já diziam que ele era o “primeiro a enfeitar a filosofia
com a roupagem multicolor da hetera”. Há muito naturalismo de submundo em
Varro e Luciano Mas esse naturalismo pôde desenviolver-se de modo mais
amplo e pleno apenas nas menipeias de Petrônio e Apuleio, convertidas em
romance232.

As personagens que encarnam a sabedoria e/ou a virtude surgem


esporadicamente ao longo das Anékdota, mas essa segunda característica acontece
de forma mais patente nas Anékdota quando nos focalizamos em seu narrador.
Procópio corresponde ao parâmetro moral, apresenta-se nas entrelinhas como um
indivíduo honesto que viveu, segundo seu ponto de vista, na mais baixa e
criminosa de todas as épocas.

[III] São muito características da menipeia as cenas de escândalo, de


comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, ou seja, as
diversas violações da marcha universalmente aceita e comum dos
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acontecimentos, das normas comportamentais estabelecidas e da etiqueta,


incluindo-se também as violações do discurso. Pela estrututura artística, esses
escândalos diferem acentuadamente dos acontecimentos épicos e das catástrofes
trágicas. Diferem essencialmente, também, dos desmascaramentos e brigas da
comédia. Pode-se dizer que, na menipeia, surgem novas categorias artísticas do
escandaloso e do excêntrico, inteiramente estranhas à epopeia clássica e aos
gêneros dramáticos [...]. Os escândalos e excentricidades destroem a integridade
épica e trágica do mundo, abrem uma brecha na ordem inabalável, normal
(“agradável”) das coisas e acontecimentos humanos e livram o comportamento
humano das normas e motivações que o predeterminam. Os escândalos e
manifestações excêntricas penetram as reuniões dos deuses no Olimpo (em
Lucino, Sêneca e Juliano, O Apóstata, e outros), o mesmo ocorrendo com as
cenas no inferno e as cenas na Terra (em Petrônio, por exemplo, são os
escândalos na praça pública, nas hospedarias e nos banhos). A “palavra
inoportuna” é inoportuna por sua franqueza cínica ou pelo desmascaramento
profanador do sagrado ou pela veemente violação da etiqueta, também
característica da menipeia233.

Seguramente essa terceira característica é a que mais se aplica às


Anékdota. Bakhtin nos fala de escândalo e comportamento excêntrico. Estes
constituem a maior parte das Anékdota. A própria maneira como Procópio nos
apresenta o reinado de Justiniano leva-nos a considerá-lo como um grande
escândalo. O tom que percorre o livro é o de espanto, é o da indignação de como
teria sido possível abrir-se na história da humanidade período de tamanha
corrupção financeira, política e moral. Lembremo-nos também de que os

232
Ibid p.131
233
Ibid p.134
118

comportamentos excêntricos pontuam constantemente o relato — sem mencionar


os desregramentos sexuais de Teodora e Antonina —, como os trechos em que
Procópio faz questão de frisar que as decisões tomadas pelo casal imperial, muitas
vezes, visam unicamente causar a maior quantidade de males e sofrimentos
possíveis. Ora, soberanos que possuem um plano de governo que tem como uma
das suas principais metas provocar a maior quantidade de danos, de forma gratuita
e inconsequente, sem nenhum objetivo mais preciso, configura-se como um
comportamento não só perverso, mas também excêntrico.

[IV] A menipeia é plena de contrastes agudos e jogos de oxímoros: a hetera


virtuosa, autêntica liberdade do sábio e sua posição de escravo, o imperador
convertido em escravo, a decadência moral e a purificação, o luxo e a miséria, o
bandido nobre, etc. A menipeia gosta de jogar com passagens e mudanças
bruscas, o alto e o baixo, ascensões e decadências, aproximações inesperadas do
distante e separado, com toda sorte de casamentos desiguais234.

As Anékdota estão repletas de contrastes. Poderíamos começar a identificar esses


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contrastes na própria forma como o assunto da obra se apresenta, isto é, uma hagiografia
ao contrário. Não é a vida de um santo que é narrada, mas sim a de um demônio. No que
concerne às personagens, esses constastes não se fazem menos significativos. Temos:
Justino, o imperador plebeu; Justiniano, o imperador que deveria ser semelhante a Cristo,
mas na verdade é um demônio; Teodora, a Imperatriz prostituta; Belizário, o general que
é covarde; Antonina a esposa do poderoso general que na verdade o manipula. Procópio
está a todo tempo mostrando o reinado de Justiniano como a mais completa inversão de
valores: as virtudes se tornam vícios, os funcionários são escolhidos não por suas
qualidades positivas, mas sim pela capacidade em fazer o mal.

[V] Por último, a derradeira particularidade da menipeia é sua publicística


atualizada. Trata-se de uma espécie de gênero “jornalístico” da Antiguidade, que
enfoca em tom mordaz a atualidade ideológica. As sátiras de Luciano são, no
conjunto, uma autêntica enciclopédia da sua atualidade: são impregnadas de
polêmica aberta e velada com diversas escolas ideológicas, filosóficas, religiosas
e científicas, com tendências e correntes da atualidade, são plenas de imagens de
figuras atuais ou recém desaparecidas, dos “senhores das ideias” em todos os
campos da vida social e ideológica (citados nominalmente ou codificados), são
plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da época, perscrutam as
novas tendências da evolução do cotidiano, mostram os tipos socias em
surgimento em todas as camadas da sociedade, etc. Trata-se de uma espécie de
“Diário de escritor”, que procura vaticinar e avaliar o espírito geral e a tendência
da atualidade em formação. As sátiras de Varro, tomadas em conjunto,
constituem esse “diário de escritor” (porém, com acentuado predomínio do
elemento cômico-carnavalesco). Encontramos a mesma particularidade em

234
Idem p.134
119

Petrônio, Apuleio e outros. O caráter jornalístico, a publicística, o folhetinismo e


a atualidade mordaz caracterizam, em diferentes graus, todos os representantes da
menipeia. A última particularidade por nós indicada combina-se com todos os
outros indícios do mencionado gênero. São essas as particularidades
fundamentais do gênero da menipeia235.

O caráter publicista das Anékdota foi bem percebido por Kaldellis quando
afirma que “nesse denso panfleto de bastidores, ele [Procópio] astuciosamente
combina os papéis que hoje em dia estão divididos entre os repórteres de
tabloides, jornalistas investigativos, intelectuais públicos [...]”. As Anékdota
possuem um marcante caráter panfletário e Procópio parece que agrupou os mais
diversos boatos que escutou ao longo de suas vida como alto funcionário e, ainda
que seu propósito fosse de publicar as Anékdota somente após a sua morte, sua
crítica refere-se integralmente à sua atualidade, aos problemas que imediatamente
o circundavam.

Lembremos também que, apesar dos vários pontos em comum, as


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Anékdota não são uma sátira no sentido pleno do termo. Para Highet, um dos
principais traços definidores da sátira é “[...] criticar e desvalorizar a vida humana,
mas fing[indo] contar toda a verdade e nada mais do que a verdade”. Esse traço
poderia nos levar a caracterizar as Anékdota como uma sátira tout court. É bem
verdade, como já foi vist em vários momentos, que Procópio afirma várias vezes a
absoluta verdade das suas informações. Mas, ainda que a sátira também afirme a
veracidade do que narra, seu principal objetivo é criticar através da ironia e do
deboche, mas não se preocupa em trazer informações detalhadas de ordem
política, administrativa ou militar. A sátira trabalha com essas informações de
modo cômico.

O caráter panfletário das Anékdota foi bem percebido por Maraval.


Acreditamos assim que podemos denominar as Anékdota de uma história satírico-
panfletária. Entendamos aqui história panfletária como um texto histórico que
assume visível e exageradamente a defesa de um propósito político —
entendamos a palavra político aqui no seu sentido mais amplo — mas, ao tomar
posicionamento tão parcial, seu autor não deixa de utilizar informações históricas
e constituir o seu texto como sendo História. Independente do quanto de verdade,

235
Idem p. 135.
120

exagero ou mentiras contenham as Anékdota, o autor apresenta aos seus possíveis


leitores o livro como História e é dentro dessa tradição que deseja integrá-lo.
Diríamos nós que as Anékdota são uma História satírico-panfletária, mas, ainda
assim, História.
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5.
Outono da História Clássica ou primavera da
mundividência cristã na História?

5.1.
O “tribunal de Cristo” ou a vigilância interior

O peso da violência, o medo do sexo e da morte criavam em todos uma culpa


surda. Remetiam então às relações pessoais com o sagrado. A relação individual
com a esfera divina torna-se, com efeito, proeminente quando o cristianismo
triunfa sobre o paganismo. A intimidade e a interioridade transformam-se em
categorias mentais de conteúdo novo. O sagrado pagão — nas mãos da Igreja —,
a escritura, o clero e o escriba tornam-se agentes fundamentais desses novos
comportamentos interiores e mediadores entre o homem e Deus, portadores ou
reveladores dos segredos de cada um numa ambiguidade pesada de contínuos
questionamentos.

Michel Rouche236

Em meados da terceira década do primeiro século da era cristã, um judeu


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originário da cidade de Tarso, região da Cilícia, seguia em direção a Damasco.


Esse judeu, que deitava suas raízes na tribo de Benjamin e que desfrutava da
qualidade de cidadão romano, havia estudado em Jerusalém. Nessa cidade
sagrada, fora discípulo de um mestre chamado Gamaliel de quem recebera uma
sólida formação aferrada aos mais estritos princípios da lei judaica. Os rígidos
ensinamentos plasmaram seu espírito de tal forma que ele se tornara um
perseguidor dos adeptos do que era ainda uma seita judaica de tendência
cismática. Mas ao decidir seguir para Damasco o obcecado perseguidor não tinha
consciência de que esse caminho no âmbito do espaço geográfico, de Jerusalém
para Damasco, o conduziria por caminhos totalmente contrários àqueles em que
até então vivera. Já quase às portas de Damasco, uma misteriosa bola de luz veio
em sua direção, fazendo com que fosse derrubado por terra. Uma voz disse-lhe:
“Saul, Saul, por que me persegues?”237, Atônito diante de tal manifestação,
retorquiu: “Quem és, Senhor?”238 e do seio da misteriosa luz provieram essas

236
ROUCHE, Michel: “Alta Idade Média” in História da Vida Privada. 2010. Tradução:
Hildegard Feist. p.503
237
Atos dos Apóstolos (9:4)
238
Ibid (9:5)
122

palavras: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade e te
dirão o que deves fazer”239.

O acontecimento hierofânico foi mais do que suficiente para gerar uma


verdadeira revolução interior naquele homem. A partir de então, a mesma força
obstinada, que o levara a lutar contra os cristãos, o impulsionaria a viajar
incansavelmente com o objetivo de fazer com que todas as gentes pudessem
enxergar em seus espíritos a luz que desencadeara nele próprio mudança tão
radical de posição. É assim que o Ato dos Apóstolos nos narra a surpreendente
conversão de São Paulo; paradigmática conversão ao cristianismo que bem
expressa o sentido transformador que exigiria a nova fé. A conversão de São
Paulo mostra-nos de forma eloquente o caráter pessoal que implicava a adesão ao
cristianismo. A conversão, aliás, é uma novidade trazida pelo cristianismo, ou
seja, a possibilidade de alguém transformar-se em uma nova pessoa ao abraçar
uma determinada crença, excluindo todas as demais. Mas a verdadeira conversão,
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em princípio e essência, não pode ser considerada um ato coletivo. É preciso que
cada indivíduo, tal qual São Paulo, passe por uma experiência particular para que
possa se transformar. Estamos diante de um importante traço que se situa na base
da fé cristã e que irá modelar sua mundividência. A conversão exige um
aprofundamento do que é pessoal, trata-se de um trabalho interior que é
desencadeado por um evento específico a cada um. Ora, não é isso que vemos ao
longo dos Evangelhos, uma sucessão de conversões que se dão em situações que
relacionam diretamente ao contexto da vida de cada um dos conversos? Temos a
sensação de que na narrativa cristã a divindade opera uma modificação profunda.
Mas essa modificação parece não ser imposta pela divindade, a conversão cristã
parte de um ato de visão interior do próprio fiel. O divino parece manifestar-se
não para insuflar, mas para iluminar e apontar o novo caminho. Assim, no relato
do Ato dos Apóstolos, não lemos nada que se assemelhe às tradicionais descrições
homéricas de deuses que insuflam vontades e inspirações nos homens.

O episódio da conversão de São Paulo nos oferece ainda muitas outras


informações a serem analisadas, fornecendo assim elementos para que possamos
entender o processo interior em que se dá a conversão. Após cair por terra e

239
Ibid (9:6)
123

escutar a voz do Cristo ressuscitado, São Paulo, ofuscado pela magnificência da


hierofania, permanece três dias sem poder ver. O relato dos Atos dos Apóstolos
interrompe muito brevemente o foco sobre a pessoa de São Paulo, para deter-se
em Ananias que é chamado para auxiliar no “nascimento” desse novo homem
cristão:

Ora, vivia em Damasco um discípulo, chamado Ananias. O Senhor lhe disse em


visão: “Ananias!” Ele respondeu: “Estou aqui Senhor!” E o Senhor prosseguiu:
“Levanta-te, vai pela rua Chamada Direita e procura, na casa de Judas, por
alguém de nome Saulo, de Tarso. Ele ora e acaba de ver um homem chamado
Ananias entrar e lhe impor as mãos, para que recobre a vista”. Ananias respondeu:
“Senhor, ouvi de muitos, a respeito deste homem, quantos males fez a teus santos
em Jerusalém. E aqui está com autorização dos chefes dos sacerdotes para prender
a todos os que invocam teu nome”. Mas o senhor insistiu: “Vai, porque este
homem é para mim um instrumento de escol para levar o meu nome diante das
nações pagãs dos reis e dos israelitas. Eu mesmo lhe mostrarei quanto lhe é
preciso sofrer em favor do meu nome.240 (Os grifos são nossos)

A passagem supracitada possui dois pontos que devem ser observados.


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Primeiramente, temos um exemplo, mais uma vez, da dimensão da modificação


acarretada pela conversão. É algo tão surpreendente que Ananias indaga o seu
próprio Senhor, incrédulo e sem compreender o que ouvira. Como aquele cruel
perseguidor de seus irmãos de fé poderia agora fazer parte dos planos do seu
Deus? Como uma pessoa, que se punha totalmente contra a mais forte razão e
esperança do viver dos cristãos, poderia agora ser beneficiada pela graça daquele
que Ananias considerava o único e absoluto Deus da Verdade? Para convencer
Ananias é preciso insistir. O Saulo que aí vemos não é mais o mesmo, é um novo
homem, um homem de alma transformada, prestes a se tornar o apóstolo dos
gentios. Mas a transformação não é um mero passe de mágica ou um
cumprimento da ordem de Deus. Uma das condições para a conversão é o livre-
arbítrio e sem este não seria possível haver a conversão. Algo foi despertado em
São Paulo que faz com que, a partir da sua interioridade, nasça um novo homem,
assim como séculos mais tarde a misteriosa voz diria a Santo Agostinho “Tolle et
Lege”. A cena Das Confissões é sugestiva, aponta tanto para a interioridade
quanto para a parte de vontade que parecem estar em jogo na conversão cristã. A
conversão não se faz simplesmente a partir da divindade, é como se ela
convidasse o futuro converso e despertasse algo em seu interior. A voz que fala a

240
Ato dos Apóstolos (9:10-16)
124

Santo Agostinho é transcendente, mas é a partir do seu ato de pagar o livro e lê-lo
que o processo interior será desencadeado.

Ato dos Apóstolos, o Cristo Ressuscitado diz a Ananias que mostraria a


Saulo o quanto era preciso sofrer pela defesa de sua palavra. O Cristo mostrará de
forma tão forte que não será possível a Saulo seguir por um outro caminho que
não seja o seu. Temos a impressão de estar aqui mais próximos de um trabalho de
convencimento, do que da não consciência quase hipnótica que leva muitas vezes
os heróis da Ilíada e da Odisseia a cumprir o desejo dos deuses. É um ato de
vontade específica ao converso, o divino cristão o convence, mostra o caminho,
mas não insufla autoritariamente. O convencimento pode até passar por caminhos
que agem misteriosamente, incompreensíveis à razão humana daqueles que veem
ou se interam da conversão, mas extremamente eficazes para uma espécie de
covencimento místico do fiel. A conversão é paradigmática da análise interior que
exige a adesão ao cristianismo. Da mesma forma que a conversão exige esse
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esforço de aprofundamento interno, exige também uma disciplina moral, firme e


constante que não pode ser quebrada em nenhum momento.

Mas por que analisamos tão pormenorizadamente o episódio da conversão


de São Paulo? Pois ele nos instrui de maneira exemplar sobre a tão radical e
profunda diferença entre o paganismo e o cristianismo. O que a partir do advento
e triunfo do cristianismo estava em jogo era a salvação do indivíduo e para que
uma conversão se desse verdadeiramente era preciso que ela tivesse lugar no mais
profundo âmbito de cada um desses. É aí na luta interna e cotidiana de cada
pessoa que ela haverá de obter ou não a sua salvação, é no angustiante conflito
entre a adesão e o cumprimento às verdades irrefutáveis, por um lado, e a sua
transgressão, por outro, que se dá o drama do homo cristianus. Como afirma
Veyne:

Sobre esse ponto, o cristianismo distinguia-se por um aspecto ainda mais


acentuado: era uma religião de profissão de fé. Não era suficiente ser cristão,
era preciso se dizer cristão, professá-lo, pois se tinha com Deus (como no
judaísmo e os Salmos) uma relação pessoal que o paganismo ignorava;
suportava-se o martírio para não renegar a fé. Um pagão não professava nada, não
dizia acreditar em seus deuses: subentendia-se que acreditava neles, visto que
125

rendia-lhe um culto! Cada povo, dizia-se, “havia” seus deuses, cada indivíduo
podia ter os seus (theous nomizein). (A tradução é nossa) (Os grifos são nossos)241

O que Veyne nos descreve aplica-se perfeitamente à conversão de São


Paulo. Após o episódio da estrada de Damasco, sua vida terá como única razão a
inabalável fé na mensagem de Cristo e a pregação dessa mensagem. Há um corte
decisivo e irreversível. A fé possui uma dimensão que passa a ser a característica
fundamental daquele homem. Tal situação tão drástica e visceral não seria
possível no paganismo: prestar libações a um deus não proíbe prestá-las a um
outro deus, mesmo o pertencimento a um culto de mistério não implica a negação
da existência de outros deuses e o deus impessoal dos neoplatônicos, antes um
ideal filosófico do que uma profissão de fé, não conduz seus adeptos a missões de
conversão. A adesão pessoal e total ao cristianismo tem como corolário um
comportamento que se justifica na própria fé e não mais no costume.

O cristianismo trará ao mundo greco-romano uma exigente disciplina


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moral. O cristão deve a todo tempo policiar-se, pois há uma força superior única
que a tudo domina e que exige de cada indivíduo um cultivo diário de palavras e
atos. É Veyne que também nos explica: “Com o cristianismo [...] a moral é
ordenada por Deus (e não pelo costume). É este último que dita regras absolutas
que não conhecem derrogação. A moral cristã não consiste em ensinar o que se
faz, mas fazer o que Deus quer.242”.

O certo e o errado receberiam uma dimensão, cada vez mais, interior. A


vida eterna relacionar-se-ia a cada indivíduo, condicionada às ações e escolhas
dos homens em suas individualidades. O judaísmo preocupava-se com a retidão
coletiva do povo eleito face ao seu Deus; os gregos e romanos, com o não
esquecimento, almejavam que ao morreram seus nomes fossem inscritos na
perenidade gloriosa da memória do seu γένος (ghuénos). Além disso, não
poderiamos aplicar verdadeiramente a nenhuma dessas religiões o qualificativo de

241
“Sur ce point, le christianisme se distinguait par un trait encore plus accusé : c’était une
réligion à profession de foi. Il ne suffisait pas d’être chrétien, il fallait se dire chrétien, le
professer, car on y avait avec Dieu (comme dans le judaïsme et les Psaumes) une relation
personelle qu’ignorait le paganisme ; on endurait le martyre pour ne pas renier sa foi. Un païen
ne professait rien, ne disait pas croire à ses dieux : il allait sans dire qu’il y croyait, puisqu’il leur
rendait un culte ! Chaque peuple, disait-on, ‘avait’ ses dieux à lui, chaque individu pouvait ‘avoir’
les siens (theous nomizein)”VEYNE, Paul :Quand notre monde est devenu chrétien (312-394),
2007, p. 69-70
242
VEYNE, 2005, p.94.
126

proselitistas. O pertencimento ao seio da comunidade judaica dava-se por


nascimento e não por conversão. Da mesma forma, a ideia de conversão, como é
vivenciada pelo cristianismo, é, em si mesma, desprovida de sentido para o
politeísmo greco-romano; cultuar um deus não era sinônimo de negar a verdade
pertencente ao culto de um outro deus, o panteão grego não aniquilou o panteão
romano, pelo contrário, os deuses gregos foram assimilados e relacionados aos já
existentes deuses romanos. Cultuar determinada divindade não significava a
mudança de concepção de mundo, tampouco acreditar em uma verdade absoluta
que, justamente por ser absoluta, possuía o poder indiscutível de separar o bem e o
mal e ditar as leis. Um exemplo que ilustra com perfeição a diferença da natureza
relacional entre um pagão com seus deuses e um cristão com seu Deus, nos é
oferecido por Veyne, ao supor o que teria passado na mente dos pagãos quando
souberam que o imperador Constantino atribuira a vitória sobre Magêncio, na
batalha da Ponte Mílvia, ao deus dos cristãos:
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Após a vitória da Ponte Mílvia, os pagãos poderiam supor que, em relação ao


deus que lhe dera a vitória, Constantino teria a mesma atitude de seus
predecessores: após sua vitória em Actium contra Antonio e Cleópatra, Augusto
pagara sua dívida com Apolo consagrando-lhe, como se sabe, um santuário e um
culto local. Ora o crisma que figurava sobre os escudos do exército de
Constantino significava que a vitória havia sido ganha graças ao deus dos
cristãos. Isso seria desconhecer que entre esse Deus e suas criaturas a relação era
permamente, apaixonada, mútua e íntima, enquanto que entre a raça humana e a
raça dos deuses pagãos, que viviam, sobretudo, para eles mesmos, as relações
eram por assim dizer internacionais, contratuais e ocasionais; Apolo não havia se
adiantado a Augusto, que foi quem se dirigira a ele, e não havia dito de vencer
com o seu sinal 243. (A tradução é nossa)

Outro importante aspecto é que o cristianismo detinha-se em uma vida


individual post-mortem, o que estava em jogo era a “minha” salvação pessoal,
nada poderia assegurar uma salvação coletiva. A vida eterna remetia-se,
sobretudo, ao mundo da interioridade e das intenções do crente, a forma como

243
“Après la victoire Du Pont Milvius, lês païens pouvaient supposer qu’envers le dieu qui lui
avait donné la victoire Constantin aurait la même attitude que ses prédécesseurs : après la victoire
à Actium sur Antoine et Cléopâtre, Auguste avait payé sa dette à Apollon en lui consacrant,
comme on sait, un sanctuaire et un culte local. Or le chrisme qui figurait sur les boucliers de
l’armée constantinienne signifiait que la victoire avait été remportée grâce au dieu des chrétiens.
C’était méconnaître qu’entre ce Dieu et ses créatures le rapport était permanent, passionné, mutuel
et intime, tandis qu’entre la race humaine et la race des dieux païens, qui vivaient surtout pour eux-
même, les rélations étaient pour ainsi dire internationales, contractuelles et occasionnelles ;
Apollon n’avait pas pris les devants envers Auguste, qui s’était adressé à lui, et ne lui avait pas dit
de vaincre sous son signe” VEYNE, Paul :Quand notre monde est devenu chrétien (312-394),
2007, p. 17-18
127

este conduzira seu ser ao longo de toda sua existência enquanto pessoa. Tal
aspecto foi bem apreendido por Hanna Arendt:

Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a experiência comum de um
mundo em declínio, talvez moribundo; e a “a boa nova” do cristianismo, em seus
aspectos escatológicos, era suficientemente clara: a você, que acreditou que os
homens morrem mas o mundo é perene, basta converter-se à fé de que o mundo
chega a um fim, mas você mesmo terá a vida eterna. Assim é claro, a questão
da “justiça”, isto é, de merecer essa vida eterna, ganha importância
pessoal completamente nova244. (Os grifos são nossos)

Arendt aponta para o processo de uma justiça — merecer ou não a


salvação — que anda de mãos dadas com a valoração cometida pelos atos de cada
fiel. Mas qual seria o princípio básico para se estabelecer essa valoração? Em
linhas gerais, é a obediência à vontade de Deus. Um pagão não poderia
estabelecer como parâmetro absoluto e exclusivo de verdade a vontade de um
deus específico, visto que havia inúmeros deuses e as suas variadas vontades
poderiam perfeitamente ser contrárias umas às outras. O máximo que poderia
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chegar era justificar um dos seus atos como a vontade de certo deus ou, no
máximo, a vontade dos deuses, mas nada asseguraria que o consenso formado por
tais deuses, algum dia, não viesse a se desfazer devido a antagonismos divinos.

O cristianismo funda-se com o pressuposto da culpa; não nos esqueçamos


de que o Cristo viera redimir a humanidade do pecado original. E as culpas
haveriam de ser julgadas quando do fim da história. É ainda São Paulo que ao
escrever aos cidadãos de Corinto nos fala de um “tribunal de Cristo”: “Porquanto
todos nós teremos de comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a
fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida no
corpo, seja para o bem, seja para o mal 245”.

Ora, considerando diferenças tão marcantes de formas de apreender o


divino, poderíamos aventar algumas hipóteses interpretativas da singularidade das
Anékdota. É bem entendido que não pretendo resolver todas as questões que são
levantadas pelas afirmações que acabo de fazer. Trata-se de um conjunto de
hipóteses que ainda encontra-se em fase de pesquisa, entretanto já seria possível
indicar os principais traços que até aqui se afiguram.

244
ARENDT, Hanna: A Vida do Espírito, 2010. p.328.
245
2 Coríntios (5:10)
128

Procópio de Cesareia escreve para denegrir a memória de Justiniano e não


poupa esforços para avivar todos os vícios e defeitos do imperador, independente
do grau de veracidade de cada um deles. Para o pensamento cristão não haveria
forma mais eficaz do que mostrar o quanto Justiniano e sua mulher Teodora
contrapunham-se às inquestionáveis virtudes que cada Homem cristão deveria
cumprir. O pecador é aquele que se contrapõe à vontade divina; é aquele que faz
ouvidos moucos à mensagem de Cristo, é o que aponta Collingwood:

O dever do indivíduo é tornar-se um instrumento voluntário da prossecução das


suas finalidades objectivas. Se lhe faz oposição, não pode detê-lo ou alterá-lo;
tudo o que pode fazer é assegurar a sua própria condenação, frustrando-se e
reduzindo a sua vida à futilidade. Trata-se de uma doutrina patrística: o Diabo é
definido por Hipólito ― um dos primeiros escritores cristãos ― como o
αντιτατταῶν τοις χοσμιξοις. (Aquele que se opõe às coisas do universo) 246.

A imperatriz Teodora, alvo do ódio de Procópio de Cesareia, nada mais é


do que um dos exemplos desses pecadores, como diz Maraval: “O que Procópio e
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seu meio não perdoam à esposa de Justiniano é ser uma mulher independente, que
toma iniciativas, que longe de ser submissa, submete o marido[...]”247. Nada mais
contrário às palavras de São Paulo na Epístola aos Efésios: “Como a Igreja está
sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos maridos”248.

Para o historiador alemão Reinhardt Koselleck, até meados do século


XVIII, a escrita da História se daria sob o signo do que denominamos de topos da
Historia Magistrӕ Vitӕ. Através do estudo dos feitos e das vicissitudes dos
homens do passado, poder-se-ia não só conhecer o que ocorrera em tempos
pretéritos, mas, sobretudo, retirar ensinamentos para a vida. A História era então
compreendida como um manancial de exempla, haja vista que a natureza humana
era ad ӕternum a mesma. Ao debruçar-se atentamente sobre as narrativas de
Heródoto, Tucídides ou Plutarco, o leitor estaria a formar o seu espírito, sabendo
dessa forma como agir perante situações semelhantes àquelas vividas por seus
precedentes.

Procópio de Cesareia não foge ao topos da Historia Magistrӕ Vitae,


entretanto, faz com que este atue de forma um tanto diversa. Aqui não mais

246
COLLINGWOOD: A Ideia de História, 2001, p.73
247
MARAVAL, Pierre « introduction » In CÉSARÉE, Procope de: Histoire Secrète.2009, p.19
248
Efésios, Bíblia de Jerusalém (5:24).
129

estamos diante dos exempla edificantes da virtude; Procópio também não


emparelha a virtude e o vício, lado a lado ― como fizera Plutarco ao inserir dois
anti-heróis nas Vidas Paralelas: o Rei Demétrio e Antônio ― o que estrutura a
narrativa é o vício da corte de Justiniano em si mesmo. É a intimidade do casal
imperial que é atacada. Procópio tece uma hagiografia ao contrário, apresenta
exemplos que não devem ser seguidos por cristãos. A interiorização do
Homem cristão pode ser exemplificada na figura do santo, aquele que fez escolhas
conforme a vontade de Deus, aquele que traçou o curso de sua vida em direção à
santidade. Os santos seriam exempla morais a serem seguidos pelos fiéis. Nas
hagiografias, os Homens poderiam se iteirar de modelos que os guiariam na vida
mais pessoal, nos mais íntimos detalhes. A hagiografia é a sagração da
individualidade santificada. Já as anékdota apresentam-nos um conjunto de maus
exempla, as escolhas de um soberano que levam ao pecado, o que não há de ser
seguido. Ao redigir seu panfleto, Procópio de Cesareia reviveu nas personagens
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de Justiniano, Teodora, Antonina e Belizário o repertório dos mais infames


pecados para um cristão.

O historiador irlandês Peter Brown nos fala do quanto a figura do santo é


representativa das sensibilidades da Antiguidade Tardia. Estamos diante do
surgimento de homens que se retiram de todo o convívio com seus semelhantes
para se refugiar nas distâncias inóspitas dos desertos; e eles, ali mesmo, em
particular e solitária reflexão com o divino, buscam a salvação por caminhos, até
então, jamais percorridos no mundo de cultura greco-romana:

A ideia do santo homem que impunha respeito aos demônios e que fazia ceder a
vontade de Deus por suas orações acaba por dominar a sociedade da antiguidade
tardia. Por vários aspectos, esse conceito é tão novo quanto a sociedade que o
engendrou. Pois ele coloca um homem, um “homem de poder”, no centro da
imaginação popular249. (A tradução é nossa)

Os santos ao contrário dos deuses são criaturas terrenas, homens e


mulheres comuns, que possuíram uma história humana. Os Deuses, obviamente,
também possuíam uma história, mas essa história diferenciava-se por sua
dimensão e pelo caráter de imortalidade que reveste aquelas personagens. Zeus,
Apolo, Athená, Deméter ou Dionísio não se tornaram deuses, eles já nasceram

249
BROWN, Peter: La Toge et la Mitre : le monde de l’antiquité tardive. p.96
130

como tais e tampouco ascenderam a tal posição por seus méritos e virtudes.
Independente da qualidade de suas ações, sempre serão criaturas imortais. Os
heróis também se diferenciam nitidamente dos santos, ainda que sejam mortais,
eles são criaturas de um tempo pretérito e de contornos bem definidos. Basta que
nos lembremos do que diz o poeta beócio ao escrever que Zeus teria feito
250
“ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος” , “clã de homens divinos heróis”. Os heróis não
nascem do povo, mergulham suas linhagens em tempos imemoriais e, ainda que
não possam fugir da morte, corre em suas veias o sangue dos deuses, pois deles
descendem. A fronteira entre os heróis e o vulgo faz-se clara no episódio da
Ilíada, quando a obscura massa anônima de soldados parece tentar, pela única vez,
manifestar-se. Referimos, como bem se sabe, ao célebre episódio da assembleia
dos aqueus, em que Tersites, o homem do povo, ousa proferir fortes palavras a
Agamémnon, diante da aristocracia aqueia. A Tersites resta unicamente a
repreensão de Ulisses: “Não queiras entrar sozinho em conflito com reis. Pois eu
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afirmo que não há criatura mortal mais abjeta que tu [...]”251. E continua o herói de
muitos ardis, ressaltando ainda mais a fronteira instransponível à qual fazemos
alusão: “Por isso não devias andar com nomes dos reis na boca [...]”252” e faz com
que Tersites volte ao seu lugar, castigando-o com objeto de inequívoco poder
simbólico, um cetro de ouro: “Logo lhe apareceu nas costas um inchaço
ensanguentado, sob o cetro de ouro. Mas sentou-se amedrontado; e cheio de
dores, com expressão desesperada, limpou as lágrimas. ”253 .

Já a santidade não é atributo de uma era mítica, não é apanágio das gentes
de mais nobre cepa. Que nos diga a fonte por excelência da mensagem cristã, os
Evangelhos, onde encontramos uma coorte de personagens humildes e
estigmatizados socialmente ― pescadores, samaritanos, leprosos e prostitutas ― a
quem o Cristo dirige especialmente suas palavras, sendo ele mesmo, ainda que
pertencente à casa de David, nascido em uma estrebaria e filho de um carpinteiro.

Queremos ressaltar que a santidade é acompanhada de um aprofundamento


da interioridade, ela só é possível através de escolhas; escolhas por atitudes de

250
HESÍODO: Trabalhos e Dias (v.159)
251
HOMERO: Ilíada, (II: 248-249). p.55
252
Idem (II: 250)
253
Idem (II: 266-267)
131

restrita moral nos mais variados campos da existência. Em resumo, atitude


independente e solitária de mortificação e controle dos desejos. O filósofo busca
também o controle das paixões, mas a sabedoria que busca não envolve o
isolamento do monasticismo, insere-se em uma tradição clássica de conhecimento
aprendida com mestres e através de debates. A santidade não seria passível de
aprendizado, seria uma viagem solitária, pessoal em busca da revelação.

Se fizermos algumas comparações, a singularidade das Anékdota talvez


serão ressaltadas. Na Ilíada quase sempre os heróis estão preocupados com a
imortalidade, não aquela da alma, mas de sua memória. Os deuses gregos eram
perfeitos em seu poder e imortalidade, porém, tinham inveja, paixão, ciúme como
todos os mortais. Bem mais tarde, Plutarco ― citemos como exemplo ― para
estimular a virtude, escreveu as Vidas Paralelas: as qualidades dos biografados
são a capacidade política, a coragem, a sabedoria frente à adversidade. Não são
mais as virtudes cívicas ou políticas, tampouco a temperança do μηδέν ἄγαν grego
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ou do ne quid nimis romano, “nada em demasia”, que se desdobraram


anteriormente em correntes filosóficas como o estoicismo e o epicurismo. Agora,
o que está em jogo é a perfeita adequação à moral cristã, pois só há um Deus; é
uma única e precisa verdade que se encontra nas escrituras. O governante mais do
que ninguém há de ser um bom cristão. Os novos cânones estavam estabelecidos e
teriam longa vida, de uma forma ou de outra, nos panfletos e nas disputas políticas
então vindouras.

Já no cristianismo não há medida no pecado, ele é em si mesmo mal. Deus a


tudo vê e a vigilância deve ser interna, cada homem deve ser sua própria sentinela.
A relação do homem com a divindade pré-cristã pode ser exemplificada, em
grande parte, pela relação que os gregos da época clássica estabeleciam com seus
deuses, como bem nos lembra Eyler:

A dependência da divindade, para os gregos, não significava servidão, pois o


mundo dos deuses ficava a tal distância que não impedia a autonomia dos
homens ou, por outro lado, não implicava seu aniquilamento perante a infinidade
do divino. A religiosidade do homem grego não desembocava na via da renúncia
ao mundo, e sim na sua estetização 254.

254
EYLER, Flávia Schlee: História Antiga, Grécia e Roma: A formação do Ocidente. p.47
132

Teodora é acusada de ser prostituta, promíscua, feiticeira, atriz, assassina e


obcecada pelo poder. Acusações, sobretudo, que estão muito próximas dos
conceitos de pecado do cristianismo. As críticas voltam-se para o comportamento
de Teodora e atingem todas as esferas de sua pessoa. O comportamento é uma das
mais fortes marcas exteriores de interiorização, caracterização psicológica
suprema que particulariza os seres humanos.

Não quero dizer que Procópio não faça severas críticas relacionadas a
virtus política de Justiniano ― virtus que, diga-se de passagem, na opinião de
Procópio, é totalmente inexistente na pessoa desse imperador. Essas críticas
fazem-se mais do que presentes. Mas Procópio de Cesareia mescla essas críticas
com ataques pessoais de uma intensidade inaudita e a justificativa que dá para a
origem de todos esses males é algo que não se encontra na realidade terrena. A
origem, no final das contas, está em um plano religioso, pois o mau imperador e a
perversa imperatriz nada mais são do que demônios. Aí estaria a explicação do
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mau governo. Ousaria dizer que para Procópio o vício não é a causa dos males, na
verdade eles são o resultado de interferência de forças demoníacas. Os
argumentos persuasivos são de outra ordem, caso façamos uma comparação com a
argumentação da Antiguidade Clássica. Talvez, o estranhamento sentido pelo
historiador italiano em relação à mais polêmica das obras de Procópio de Cesareia
― como acabamos de ver algumas linhas acima255― se dê por esta ser a
expressão do limiar de dois mundos. As Anékdota são, de alguma forma, ―
acreditamos nós ― o reflexo da maneira cristã de perceber o mau governo. Os
erros de Justiniano são, antes de tudo, pecados, não são mais a hýbris, a
desmedida dos antigos.

Não estamos a dizer que a Antiguidade pagã não possuíra textos em que
homens e mulheres eram difamados. Sim, eles existiram, mas o que está em jogo
aqui é o que poderíamos denominar de economia crítica, ou seja, a forma, a
ênfase como a difamação se estrutura. As críticas configuradas por Procópio a
Justiniano, Teodora e sua corte como um todo, são críticas de alguém que enxerga
a partir do prisma da constante vigilância que o cristianismo impusera a seus fiéis.

255
Cf. MOMIGLIANO, 1983: 65
133

A Historia Magistræ Vitæ invertida, que se faz presente nas Anékdota ― a


perceber Justiniano como encarnação do demônio ― é um dos primeiros textos
historiográficos que apontam nitidamente para uma releitura da ideia de História
clássica. Releitura com cores que refletem, em muitos aspectos, o pensamento
cristão sobre a História e a forma como esta é apreendida. Se nas hagiografias
encontramos a trajetória de um homem ou de uma mulher que, através de um
esforço constante e por vontade própria, desenvolveu uma relação particular com
Deus, obtendo a salvação por práticas piedosas e comportamento irreprochável, já
nas Anékdota parece que Procópio nos conduz à conclusão do caráter demoníaco
de Justiniano, através de práticas viciosas e comportamento mais do que
reprovável. Diríamos, estruturas semelhantes para demonstrar extremos opostos.

Todo panfleto para ser verdadeiramente eficaz necessita operar com


padrões compartilhados pelo grupo social ao qual é destinado ― e, por isso
mesmo, traz em si a expressão de determinada mentalidade histórica ―, caso
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contrário, permanecerá sem efeito. Se as Anékdota são um panfleto256, estas


trazem as marcas não só do escritor, mas, também, dos seus leitores em potencial.

O fato de Momigliano dizer a respeito das Anékdota: ― repita-se ― “Mas


eu conheço somente uma obra na qual a corrupção do governo torna-se o próprio
assunto da história e dá forma por isso a sua própria estrutura.”257, talvez,
explique-se por ser um dos primeiros textos que visam denegrir a imagem de um
governante em época na qual o cristianismo já é triunfante como religião. A
maneira de estar no mundo mudara e por que não haveria de também mudar a
forma de detratar? A esse Deus omnisciente e omnipotente corresponderia outra
forma de conduta moral. Conduta esta que interiorizava a intermitente vigilância
no mais profundo do ser. A moderação e o caminho do meio davam agora lugar à
ideia de uma verdade absoluta. “Verdade absoluta” que emanaria de um único
Deus que não só criou o mundo, mas fundou o próprio tempo, a própria phýsis.

256
MARAVAL, 2009: 11
257
MOMIGLIANO, 1983: 65
134

5.2.
A hýbris e o pecado

O que foi exposto no precedente subcapítulo poderia ser resumido da


seguinte forma: o específico das Anékdota seria uma crítica mais direcionada para
os pecados do imperador do que para seu governo. A Arete grega ou a virtus
romana não mais estariam em jogo, porém, sim, a virtude cristã de como os
homens e as mulheres devem ser conforme os princípios morais e as leis criadas
por Deus.

Ainda que acredite que tal asserção é válida, necessário será enfrentar a
objeção que provavelmente poderá ser levantada a essa leitura. A objeção à qual
me refiro é que a vida dos imperadores já havia sido exposta. Suas misérias
morais já haviam sido apresentadas à luz através do cálamo de alguns
historiadores que, com um repúdio quase que entrecortado por arroubos de prazer,
não se furtaram em descrever os detalhes dos vícios. As Anékdota nos fazem
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lembrar alguns textos da Antiguidade que enveredam por essas sendas. Por
exemplo, o retrato do imperador romano Calígula que nos é apresentado por
Suetônio. Ora, estamos a falar de contextos muito distintos, a vida de Suetônio
transcorreu entre meados do primeiro século até os princípios do segundo século
da era cristã, isto é, muito distante do triunfo do cristianismo e de seus valores.
Procópio escreveria sua obra em outra realidade histórica, tratava-se de um cristão
do século VI.

Suetônio descreve Calígula como um soberano cruel, sanguinário,


despótico, capaz dos atos mais vis; assim como Procópio nos apresenta Justiniano
e sobretudo, como descreve Teodora, a imperatriz, mulher de Justiniano. Para que
as semelhanças possam ser visíveis, leiamos o que nos diz Suetônio a respeito de
Calígula:

Não poupou nem o seu próprio pudor nem o pudor alheio. Conta-se que Marco
Lépido Mnester, o pantomimo., e alguns reféns foram objeto da sua paixão, e que
manteve com eles comércio infame. Valério Catulo, jovem pertencente a uma
família consular, censurou-o, mesmo, em voz alta, dizendo que ele o maculara, e
que tinha os flancos esgotados pelo seu comércio com Calígula. Sem falar dos
seus incestos com as irmãs e do seu amor, tão conhecido, pela Prostituta Pirralis,
não houve uma só mulher, por ilustre que fosse, que ele não desrespeitasse. As
mais das vezes convidava-as para jantar com os maridos e, quando passavam
diante dele, examinava-as atentamente, com lentidão, à maneira dos mercadores
135

de escravas, soerguendo-lhes, mesmo, a cabeça com a mão. Se porventura a


baixavam por pudor; em seguida saía da sala de jantar, as vezes que queria,
levando consigo aquela que merecera as suas preferências, e, quando voltava,
algum tempo depois, com sinais bem visíveis da devassidão, louvava ou criticava
claramente, ponto por ponto, o que achara agradável ou defeituoso em cada uma
e o número de relações que tivera com elas. A algumas notificou mesmo o
divórcio, em nome dos maridos ausentes, e deu ordem para que o fato fosse
mencionado nas atas oficiais. As suas prodigalidades ultrapassaram tudo que se
podia imaginar até então. Inventou uma nova espécie de banhos e manjares e
repastos de preço fabuloso, banhando-se em essências quentes e frias,
absorvendo pérolas de um valor extraordinário, dissolvidas em vinagre, fazendo
servir aos seus convidados pão e iguarias de ouro, repetindo a cada passo: “Que
era preciso ou ser-se econômico ou viver-se como César”. Mais ainda, fez chover
sobre o povo, do alto da basílica Júlia, durante alguns dias, dinheiro em moedas,
que representava uma grande soma. Mandou mesmo construir galeras liburnas
com dez pares de remo, de popas guarnecidas a pedras preciosas e velas de cores
cambiantes, onde havia banhos quentes, pórticos e salas de jantar muito
espaçosas e até mesmo vinhas e árvores de fruto de toda espécie: aí sentados à
mesa, em pleno dia, no meio das danças e dos concertos, percorria as costas da
Campânia. Quando mandava construir palácios ou casas de campo, primava em
fazer executar o que era considerado irrealizável. Assim, diques foram lançados
num mar tempestuoso e profundo, lapidadas as pedras duras, com aterros elevava
planícies à altura de montanhas, nivelava altos cumes, cavando as rochas, e, coisa
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extraordinária, com rapidez incrível, pois atraso que houvesse era castigado com
a morte. E, para não descer a pormenores, devorou, em menos de um ano, somas
enormes e todo esse fabuloso tesouro de Tibério, que ascendia a dois bilhões e
setecentos milhões de sestércios.

Encontramos a mesma descrição de uma libertinagem desenfreada e sem


limites nas palavras de Prócópio de Cesareia quando nos conta sobre a juventude
de Teodora

Em um primeiro momento, poderíamos nos perguntar: visto que autores


pagãos também denunciam a libertinagem moral, não seria possível afirmar que a
elaboração de uma obra como as Anékdota fosse, sobretudo, o resultado de uma
visão cristã? Como constatamos, Suetônio descreveu os vícios de Calígula da
mesma forma que Procópio os descreveu em relação à Teodora. Mas essa
semelhança deve ser matizada. É preciso que as similitudes não nos enganem,
devemos fazer uma leitura atenta às intensidades e às formas como as diferentes
críticas se realizam. Sem dúvida, há múltiplos pontos em comum, mas é
necessário que tenhamos a percepção histórica sempre aguçada para que
percebamos as pequenas diferenças ―às vezes são estas que nos fazem apreender
de forma mais eficaz a visão de mundo de uma época.
136

Os autores da Antiguidade Clássica estão ancorados em uma moral


contrária aos excessos. Um vício não é contrário à virtude por essência, mas sim
por ser uma desmedida, um abandono da “boa medida”, algo que desequilibra as
leis do cosmos. Em Procópio de Cesareia, os vícios de Justiniano, na verdade, são
pecados.

Ainda que acreditemos que a forma como Procópio de Cesareia faça sua
crítica ― isto é: uma especial atenção aos mais particulares e íntimos pecados de
suas personagens ― possa ser considerada uma marca da visão de mundo cristã,
de um aprofundamento da interioridade, temos que concordar que é um traço
muito sutil. Entretanto, há uma característica nas Anékdota que pode nos conduzir
por caminhos mais seguros no que concerne à interpretação dessa obra como
essencialmente marcada pela noção cristã de pecado.

5.3.
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A φύσις (phýsis) e a transcendência

É preciso que entremos mais especificamente na maneira cristã de


entender a criação para que possamos dessa forma identificar como as Anékdota
se plasmam, em grande parte, com base nesses princípios.

Além disso, o divino para gregos e romanos não estava fora da φύσις
(phýsis). Os deuses são criaturas imortais, mais fortes e poderosas do que os
Homens seguramente, porém todos se originaram do mesmo caos primevo. O
Deus hebreu, que mais tarde também será o Deus cristão, está fora do tempo, é
“alfa e ômega”, princípio e fim; a existência da qual os seres humanos fazem parte
faz-se simples e unicamente graças a sua vontade.

A diferença entre os Homens e os deuses para o mundo Greco-romano era,


sobretudo, de ordem qualitativa, no que tange às capacidades dos seres humanos e
divinos. Veyne faz um paralelo entre a visão Greco-romana e a cristã,
evidenciando essa diferença essencial:

Para nossa demonstração, tracemos sobre o quadro um círculo, que representará o


mundo segundo o cristianismo: por sua importância, o homem será a metade
deste. E Deus? Ele é tão elevado e tão sublime que permanecerá muito acima do
quadro. Contentar-nos-emos em puxar a partir do círculo uma flecha apontando
para cima e escreveremos ao lado dela o sinal do infinito. Passemos para o mundo
137

segundo o paganismo: desenhemos um quadrado dividido em quatro faixas


horizontais, uma espécie de escada com quatro degraus: a faixa inferior será o
mundo inanimado, ou de preferência imóvel: pedras plantas; o degrau acima será
para os animais; o penúltimo degrau será para os homens, o degrau mais alto será
aqueles dos deuses. Consequência: a passagem dos deuses para os homens é uma
simples questão de grau. Para se tornar deus não há a necessidade de se afastar
muito além do mundo: os deuses estão logo acima dos homens, na escala dos
habitantes do universo. Pode-se dizer legitimamente que um deus não é nada mais
do que um sobre homem. Tanto é assim que, em latim e em grego, tem-se muitas
vezes interesse em traduzir “divino” por “sobrehumano”.258 (A tradução é nossa)

Para um cristão é inconcebível afirmar que Deus é simplesmente um ser


com capacidades e potencialidades maiores, pois Deus é em essência diferente das
criaturas que criou, é a partir Dele que emana toda a criação. Incluamos aí a
própria possibilidade de existência. Para que tal diferença se faça ainda mais clara,
comparemos o início da cosmogonia bíblica com aquele da cosmogonia grega. O
primeiro versículo dos Gênesis afirma: “No princípio, Deus criou o céu e a terra.
Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus
agitava a superfície das águas”259. Deus é anterior à criação, antes de qualquer
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vestígio criacional sua presença já reinava absoluta e triunfante. Não nos é dado a
conhecer a origem divina, pois esta é intrinsecamente infinita, logo, jamais teve
um começo porque sempre existiu. Não se pode falar de uma origem de Deus,
visto que Ele já existia antes do tempo. Um começo e um fim só são possíveis
quando há a passagem do tempo, e o tempo só passa a existir pela vontade do
Deus bíblico. A cosmogonia grega diferencia-se de forma patente. Por tal,
podemos dizer que a visão bíblica do divino concebe Deus como o único e
possível fundador da existência.

Já a cosmogonia grega, que chegou até nós pelo cantar de Hesíodo,


descortina as origens da criação com a imagem do caos, esse infindo vazio,

258
Pour notre démonstrations, traçons au tableau un cercle, qui représentera le monde selon le
christianisme : par son importance, l’homme en sera la moitié. Et Dieu ? Il est si haut et si
sublime qu’il restera très au-dessus du tableau. Nous nous contenterons de faire partir du cercle
une flèche pontant vers le haut et nous écrirons à côté d’elle le signe de l’infini. Passons au monde
selon le paganisme : dessinons un carré divisé en quatre bandes horizontales, une sorte d’escalier
à quatre degrés. La bande inférieur sera le monde inanimé, ou plutôt immobile : pierres et
plantes ; le degré au-dessus sera pour les animaux ; l’avant dernière marche sera pour les
hommes ; le degré le plus haut sera celui des dieux. Conséquence : le passage des dieux aux
hommes est une simple question de degré. Pour devenir dieu point n’est besoin de s’évader très
au-delà du monde : les dieux sont tout juste au-dessus des hommes sur l’échelle des habitants de
l’univers. On peut dire légitimement qu’un dieu n’est rien de plus qu’n surhomme. Aussi bien, en
latin ou en grec, a-t-on intérêt à traduire « divin » par « surhumain ». Nous comprenons alors
bien des choses. VEYNE : Sexe et pouvoir à Rome. p.60-61
259
Gênesis 1.
138

260
“espaço aberto”, “abismo”, “garganta funda” . Como diz Vernant em relação
aos Deuses gregos:

Esses deuses múltiplos estão no mundo e dele fazem parte. Não o criaram por um
ato que, no caso do deus único, marca a completa transcendência deste em relação
a uma obra cuja existência deriva e depende inteiramente dele. Os deuses
nasceram do mundo. A geração daqueles aos quais os gregos prestam um culto, os
olimpianos, veio à luz ao mesmo tempo que o universo, diferenciando-se e
ordenando-se, assumia sua forma definitiva de cosmos organizado. Esse processo
de gênese operou-se a partir de Potências primordiais, como Vazio (Cháos) e
Terra (Gaîa), das quais saíram, ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, o
mundo, tal como os humanos que habitam uma parte dele podem contemplá-lo, e
os deuses, que a ele presidem invisíveis em sua morada celeste.261

5.4.
O Príncipe dos demônios

Então, nossa atenção volta-se para importante ponto das Anékdota, a


afirmação de que Justiniano e Teodora são demônios. Acreditamos que essa
presença é algo totalmente estranho à historiografia clássica: a clara e objetiva
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presença de uma força do mal que intervém no curso da história e, por isso
mesmo, de essencial importância para compreendermos o caráter cristão que
perpassa a obra.

O título deste subcapítulo origina-se no artigo de Rubin, intitulado Der


Fürst der Dämonen, publicado na zeitschrift Byzantinisch. Foi Rubin que chamou
a atenção para a expressão utilizada por Procópio de Cesareia: daimónon archon,
esta poderia ser traduzida como “príncipe dos demônios”.

A evolução semântica da palavra δαίμων, [daímon], “demônio”, pode ser


reveladora das diferenças entre a Antiguidade greco-latina e o cristianismo. O
daímon em princípio é um termo que faz referência a um deus ou a um gênio que
pode influir sobre a vida dos indivíduos. Não é algo em essência mau, poder-se-ia,
ao contrário, encontrar um bom daímon. Por exemplo, Heródoto, quando descreve
os rituais egípcios em honra da deusa Isis, emprega a palavra em sentido

260
A respeito do significado da palavra Chaos em grego cita-se aqui: “O grego diz Chaos, não com
a noção que tem para nós de “desordem”, e consagarada a partir de autores latinos como Ouvídio
(Metamorfoses, 1.5-7), mas provavelmente de um “espaço aberto” preexistente [...] o Chaos ligar-
se-ia ao verbo chaskein, “abrir a boca para gritar”, pelo que poderia ser entendido como um
‘abismo’ ou ‘garganta funda’ anterior tudo quanto nele se veio a desenvolver [...].” PINHEIRO,
Ana Elias e FERREIRA, José Ribeiro in Hesíodo: Teogonia
261
VERNANT, Jean-Pierre: Mito e Religião na Grécia Antiga, p.6-7
139

preferencialmente positivo: Τὴν μεγίστην δαίμονα ἣγηνται, isto é, “Da deusa de


maior veneração”.

Tal diferenciação semântica faz-se ainda mais clara quando nos


lembramos da palavra felicidade em grego antigo εὐδαιμονία [eudaimonía]. O
prefixo “ευ-” indica-nos geralmente algo de valor positivo. Até os dias de hoje,
encontramos esse prefixo como indicador do mesmo significado de positividade
em grego moderno, por exemplo: ευεργετώ [everguetó], (fazer o bem); ευδοκίμηση
[evdokímissi], (êxito); εύκολος [efkólos], (fácil). Poderíamos então dizer que
εὐδαιμονία [eudaimonía], no seu sentido primevo, referia-se a um “bom daímon”.

Em Procópio de Cesareia, a palavra daímon já é desprovida de todo o


conteúdo clássico. O elemento demoníaco aparece aqui como fator que interfere
na história e, por tal, deve ser levado em consideração para compreendê-la. É
desestabilizador da ordem. Trata-se da fonte de todo o mal, nada mais distante do
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antigo sentido da palavra. Vejamos:

14. É por isso que, para mim mesmo assim como para a maioria de nós, essas
gentes jamais deram a impressão de serem homens, mas demônios sujos de
sangue e, como dizem os poetas, “funestos aos mortais”, que haviam decidido
conjuntamente destruir todas as raças e todas as obras humanas tão fácil e
rapidamente quantos fossem capazes. Ao se terem incorporado em uma forma
mortal e ao se tornarem homens-demônios, atazanaram dessa maneira o mundo
inteiro. 15. Pode-se dar a prova de tal afirmação de várias formas, entre outras
quando se considera o poder das suas ações. Os demônios de fato se distinguem
dos homens por uma grande diferença. 16. Muitos homens, é certo, existiram
durante o curso das épocas que, por acidente ou por natureza, mostraram-se
terríveis, no mais elevado grau, arruinando só com o seu poder algumas cidades,
outros, regiões, ou realizando alguma outra ação semelhante, mas ninguém,
senão esses dois personagens, foram capazes de produzir a perda de todos os
homens e a infelicidade de toda a terra. É verdade que o destino veio auxiliá-los
nesse projeto contribuíndo para a destruição dos homens. 17. Com sismos,
pestes, inundações, houve nesses tempos destruições consideráveis, como vou
contar agora. Por isso, não é através de uma potência humana, mas por outra que
eles realizaram essas terríveis ações.262 (A tradução é nossa)

262
“C’est pourquoi, à moi-même comme à la plupart d’entre nous, ces gens n’ont jamais donné
l’impression d’être des hommes, mais des démons souillés de sang et, comme le dissent les poètes,
‘funestes aux mortels’, qui avaient décidé de concert de détruire toutes les races et toutes les
oeuvres humaines aussi aisément et rapidement qu’ils en étaient capables. S’étant enveloppés
d’une forme mortelle et étant devenus des hommes-démons, ils bouleversèrent de cette façon le
monde entier. On peut donner la prévue d’une telle affirmation de bien des façons, entre autres en
considérant le pouvoir de leurs actions. Les démons en effet se distinguent des hommes par une
grande différence. Beaucoup d’hommes, certes ont existé Durant la suite des âges qui, par
accicent ou par nature, se sont montrés redoutables au plus haut dégrée, ruinant par leur seul
140

Para nosso autor, os males que teriam sido causados pelo casal imperial,
por serem de tamanha grandeza, só poderiam ter sido cometidos por terrível força
sobrenatural. Tal constatação serviria para endossar a afirmação que perpassa toda
sua obra, como sabemos, o caráter demoníaco dos governantes do império. A
relação que se estabelece entre a grandeza de como os males se dão e a concepção
cristã do demônio é intrínseca. Lembremos que os demônios são os anjos
decaídos, justamente por desejarem rivalizar com Deus. Se a obra da Criação é
algo que extrapola qualquer feito humano, dando-se no plano de forças
incontroláveis à ação humana, as tentativas de equiparação do demónio a Deus
também acontecerão nessa esfera. É o que podemos constatar quando Procópio
nos fala de “sismos, pestes e inundações.” Segundo a tradição cristã, o Verbo
Divino é o criador natureza e o demônio seria o seu constante rival. Rival este que
aplicaria suas forças em uma constante tentativa de desvirtuar e contrariar a
vontade absoluta de Deus e, por isso mesmo, seus intentos poderiam ocorrer em
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escala sobre-humana. Ao constituir uma argumentação para denegrir o casal


imperial, Procópio demonstra, de forma patente, estar imerso na visão de mundo
cristã e, por conseguinte, faz dessa mesma visão um elemento de interpretação
histórica.

Contam que sua mãe teria dito a alguns de seus íntimos que ele não era filho de
seu marido Sabbatios nem de nenhum homem. Pois, no momento em que ia
concebê-lo, um demônio a visitara. Ela não o vira, mas teve a impressão da sua
presença junto dela, da mesma forma que quando um homem tem comércio com
uma mulher, antes de desaparecer como se estivesse em um sonho. // Alguns
daqueles que viviam com ele encontravam-se no palácio já tarde da noite,
pessoas de alma pura, acreditaram ver em seu lugar uma espécie de fantasma, um
demônio que não lhes era familiar. Um deles narrou que ele levantava-se
repentinamente do trono imperial e passeava de um lado para o outro ― não
tinha o hábito de permanecer sentado por muito tempo. Mas a cabeça de
Justiniano desaparecia subitamente e o resto do seu corpo parecia realizar esses
grandes passeios, enquanto que ele próprio [o que narrara os fatos], como se não
pudesse acreditar no testemunho de seus olhos, permanecia estático, inquieto e
perplexo. Depois, quando a cabeça voltava para o corpo, as partes que faltavam
pareciam-lhe, de maneira surpreendente, se terem juntado. // Outro dizia que,
estando perto dele quando estava sentado, via de repente seu rosto ficar
semelhante a uma carne indistinta: sem sobrancelhas, sem olhos e sem qualquer

pouvoir les un des villes, les autres des régions, ou accomplissant quelque autre action semblable,
mais personne, sinon ces deux personnages, ne fut capable de réaliser la perte de tous les hommes
et de produire des malheurs pour la terre entière. Il est vrai que le destin vint en aide à leurs
projets en contribuant ä la destruction des hommes. Par des séismes, des pestes, des inondations,
il eut en ce temps-là des destructions considérable, comme je vais raconteur maintenant. Ainsi ce
n’est pas par une puissance” humaine, mais par une autre qu’ils accomplirent de terribles
actions.” Cesareia, Procopio de : Anékdota” (XII: 14-17). p. 76
141

outro traço distintivo. Depois de alguns momentos, podia-se novamente


distinguir os aspectos dos seus traços. Isso escrevo sem tê-lo eu mesmo visto,
mas ouvi dizer daqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo. // Conta-se que um
monge, um grande amigo de Deus, convencido por aqueles que viviam com ele
no deserto, foi enviado a Bizâncio para defender a causa das pessoas que
residiam na sua vizinhança, que eram maltratadas e sofriam de uma maneira
intolerável. Lá chegando logo obteve uma audiência com o imperador. 25. No
momento em que ia se apresentar, quando cruzou com um pé a soleira da porta,
deu um passo para trás e retornou. O eunuco que o conduzia e outros presentes
pediram com insistência que o homem fosse adiante, mas, sem responder, e,
como se tivesse recebido um golpe, voltou para a casa em que estava. Visto que
aqueles que o acompanhavam perguntaram-lhe por que havia feito isso, declarou,
diz-se, que havia visto de frente o príncipe dos demônios sentado sobre o trono
no palácio, e que não queria nem encontrá-lo, tampouco pedir-lhe qualquer coisa
263
. (A tradução é nossa)

Ora, como podemos ver, o daímon não é algo intrinsecamente ruim. Ao


receber uma conotação negativa na pena dos historiadores cristãos, a ambiguidade
se desfez. A nítida dicotomia entre o bem e o mal, típica do pensamento cristão,
muito se diferencia da visão de mundo do paganismo.
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O fato do conteúdo das Anékdota ter superado, digamos assim, o sentido


original não parece ser mero acaso. O sentido que se afirmou de “narrativa breve
de um fato engraçado ou picante”264 leva-nos a pensar que há algo intrínseco ao

263
“On dit que sa mère aurait dit à quelques-uns de ses intimes qu’il n’était pas le fils de son mari
Sabbatios ni d’aucun homme. Car au moment où elle allait le concevoir, un démon l´avait visitée.
Elle ne l´avait pas vu, mais il lui avait donné l’impression de sa présence auprès d´elle comme
lorsqu’un home a commerce avec une femme, avant de disparaitre comme en songe. // Quelques-
uns de ceux qui vivaient auprès de lui et, tard dans la nuit, se trouvaient avec lui dans le palais,
des gens à l’âme pure, crurent voir à sa place une sorte de fantôme, un démon qui ne leur était pas
familier. L’un rapportait qu’il se levait soudain du trône impérial et se promenait de ci de là — il
n’y avait pas l’habitude de rester assis très longtemps Mais la tête de Justinien disparaissait
subitement et le reste de son corps semblait faire ces grandes promenades, pendant que lui-même,
comme s’il ne pouvait en croire le témoignage de ses yeux, restait, restait longuement sur place,
inquiet et perplexe. Ensuite, lorsque la tête était revenue sur le corps, les parties manquantes lui
paraissaient, de manière surprenante, s’être ajoutées // Un autre disait que, se tenant près de lui
quand il était assis, il voyait soudain son visage devenir semblable à une chair indistincte : il n’y
avait ni les sourcils, ni les yeux à leur place et n’avait absolument aucun autre trait distinctif.
Après un moment pourtant, on pouvait À nouveau distinguer l’aspect de ses traits. Cela, je l’écris
sans l’avoir moi-même, mais je l’ai entendu dire de ceux qui avaient l’occasion de le voir. // On
raconte qu’un moine, un grand ami de die convaincu par ceux qui vivaient avec lui dans le désert,
fut envoyé à Byzance pour plaider la cause de gens résidant dans leur voisinage, qui étaient
maltraités et avaient à souffrir d’une manière intolérable. Arrivé là, il obtint aussitôt d’accéder
auprès de l’empereur. Alors qu’il s’apprêtait à venir en sa présence, il franchit le seuil d’un seul
pied, mais revenant soudain sur ses pas, il repartit en arrière. L’eunuque qui le conduisait et ceux
qui étaient là présents priaient l’homme avec insistance d’aller de l’avant, mais lui, sans rien
répondre et comme s’il avait reçu un coup, revint de là dans la maison où il était descendu.
Comme ceux qui l’accompagnaient lui demandaient pourquoi il avait fait cela, il déclara, dit-on,
qu’il avait vu en face le prince des démons assis sur le trône dans le palais, et qu’il ne voulait ni le
rencontrer, ni lui demander quelque chose.”
264
Houaiss p.211
142

próprio texto e que foi perfeitamente percebido pelo inconsciente da grande


maioria das línguas ocidentais, tal percepção manifesta-se no atual sentido da
palavra. Podemos dizer que o movimento semântico traz o próprio reflexo das
marcas que perpassam a análise de Procópio. Refiro-me ao fato de que uma
anedota remete-nos a algo que está na esfera do íntimo e do familiar. Trata-se de
uma narrativa que traz à tona o comezinho dos nossos atos. Não foi nenhum outro
livro ou texto que concedeu seu título para se tornar um substantivo dicionarizado
e portador desse significado, tal associação é diretamente vinculada às Anékdota.
A força das descrições detalhadas, sucessivas ― e, até mesmo, caóticas ― dos
desmandos de Justiniano, Teodora, Belizário e Antonina foram mais fortes que o
sentido de “inéditos”. O historiador de Cesareia faz-se aqui um grande olho que a
tudo devassa, perscruta não só as alcovas reais, mas também deslinda as origens
pouco nobres de seus protagonistas, os motivos pequenos e torpes que os levaram
a decidir políticas de Estado, assim como os rumores que circulavam pelos vastos
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corredores e pátios dos palácios de Constantinopla. Aqui a comédia parece


adentrar sem cerimônia a narrativa dos feitos históricos. O que nos é narrado por
Procópio não é a desmedida do ser humano, mas sim o próprio “mal”. Com um
afã descritivo, o historiador deseja não somente constatar o “mal”, ele deseja ir
mais além, almeja, sim, mostrar a fonte de onde os padecimentos do Império
proveem. Tal fonte é tudo o que se opõe a Deus e diante de Deus não há
“desequilíbrio”, há simplesmente a cega obediência a seus desígnios ou a
desobediência da rebelião, personificada por excelência na figura do anjo decaído,
do demônio. Para provar que Justiniano é o “príncipe dos demônios”, Procópio
não mede esforços para convencer seu leitor: é preciso devassar a intimidade
imperial, demonstrar a seu público por quais razões sua revelação é
fundamentada. Esses indícios devem ser identificados no cerne dos espíritos de
seus inimigos.
6.
Conclusão

Principiamos nosso percurso abordando a descoberta das Anékdota, no


século XVII e, a partir daí, tentamos acompanhar as diversas opiniões que o texto
inédito de Procópio recebeu. Essa primeira parte não nos remeteu propriamente à
temporalidade na qual o texto procopiano foi elaborado, mas sim às maneiras
como este foi apreendido e interpretado ao longo dos séculos até os nossos dias.

Vimos, logo em seguida, a conceitualização de Antiguidade Tardia,


período de mudanças — quando o analisamos inserido entre o seu passado e o seu
futuro —, mas que se afigura também como período de confrontos, aquele do
crepúsculo do paganismo e da ascensão do cristianismo. A Antiguidade Tardia é,
por tal, época de especial interesse, pois é o momento em que se operam
modificações profundas na maneira de sentir e de se expressar, em suma, na forma
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como aqueles homens e mulheres, que circundavam então a Bacia do


Mediterrâneo, viam a vida. Abordar a Antiguidade Tardia nos interessou, pois
inscrevemos as Anékdota como uma obra eminentemente tardo antiga. Detivemos
nosso olhar, com mais apuro e vagar, no Império Romano do Oriente, durante o
século VI, visto que foi nessa circunscrição espacial e temporal que viveu
Procópio de Cesareia. Aí buscamos entender a época histórica na qual o
historiador de Cesareia formou-se enquanto homo historicus, autor de um texto
que dialoga, cria, funda e refunda com e na sua própria temporalidade.

Em um terceiro momento, dando continuidade ao nosso percurso,


recorrermos às ideias de dois críticos literários. Auxiliados pelos conceitos de
Auerbach e Bakhtin, buscamos discernir traços de uma estilística cristã que
perpassa o texto das Anékdota. Como pudemos ver, Auerbach, em seus livros
Mímesis e Ensaio de Literatura Ocidental, defende a ideia de uma tradição
judaica e, sobretudo, cristã de representação da realidade. O crítico alemão
contrapõe esta à outra grande tradição formadora da cultura ocidental, a greco-
romana. Segundo Auerbach, a percepção greco-romana dá preferência a painéis
descritivos nítidos, à representação de personagens solidamente estáticas e à
tendência para a separação mais rígida de temática — sendo os temas escolhidos
conforme o gênero que é trabalhado. Em contraponto, a tradição judaico-cristã
144

não demonstra a mesma necessidade de detalhismo, representa de preferência


personagens que são maleavelmente constituídos ao sabor de suas experiências
pessoais, que proveem de diferentes extrações sociais, além de não possuir uma
valoração temática consoante ao gênero. A partir dessa análise de Auerbach, foi
possível identificar como Procópio compartilha desse modo de representação da
realidade cristã, ao mesmo tempo em que o insere em um gênero eminentemente
clássico, a História.

Foi possível igualmente mostrar como o Satíricon de Petrônio possui


pontos em comum com as Anékdota, mas, por outro lado, afasta-se destas quanto
aos propósitos do autor, pois o Satíricon é um texto satírico e as Anékdota um
texto historiográfico. É exatamente a questão da separação de temas que os
diferencia, ao Satíricon, como um texto que objetiva incitar o escárnio, cabe
abordar temas e personagens menos “nobres”, entretanto, no que concerne às
Anékdota essa correlação desfaz-se. As Anékdota sem nenhum constrangimento
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nos falam de mulheres devassas e de origem popular que chegaram a usufruir do


mais alto status imperial, nos fala de homens que submeteram as razões de estado
aos seus mais comezinhos e pessoais interesses. Todas as cores da realidade são
tratadas nesse texto de Procópio, cenas que, segundo os padrões clássicos seriam
convenientes somente aos gêneros cômicos, são descritas aqui no mais solene dos
espaços, a corte de Constantinopla, a alta cúpula do poder imperial.

A comparação entre os dois textos levou-nos à Comédia Menipeia e, por


conseguinte, a análise que Bakhtin tece sobre esta mais especificamente e sobre o
sério-cômico como um todo.

Na quarta e última parte, chegamos ao cerne de nossa questão, ler as


Anékdota como um documento que expressa de forma exemplar a mundividência
da Antiguidade Tardia, um texto que conjuga a tradição clássica na sua forma a
uma interpretação cristã da vida e dos homens. E, sem sombra de dúvida, é à
quarta parte que esta conclusão nos remete mais diretamente. Em nosso caso,
ousaríamos dizer que, no final das contas, a “Conclusão” há de ser percebida mais
como uma continuação do capítulo do que uma parte integral. Continuação que
aqui se separa, sobretudo, por imposições de ordem formal. E acreditamos que
abordar as razões que nos levaram a intitular esta tese de A História em
145

Desconcerto: as Anékdota de Proócpio de Cesareia e a Antiguidade Tardia é uma


forma eloquente e eficaz de abordarmos o cerne de nossas indagações.

Como explicamos, na já longínqua introdução desta tese, o título “A


História em Desconcerto” possui duas camadas semânticas: a primeira, de
apreensão mais imediata, remete-nos ao fato de um historiador que desconstrói,
ele mesmo, a sua história: o contraste desconcertante entre a personagem histórica
oficial da História das Guerras, a idealização incensória e hiperbólica do
imperador construtor com aquela do “príncipe dos demônios”, que faz o mal
simplesmente pelo prazer de fazê-lo, figura que irrompe o palco da escrita da
história nas Anékdota beirando a comicidade.

Mas há uma segunda e mais profunda camada semântica. A história que


estaria em desconcerto é a história clássica, a história tucidideana por excelência.
Parece que estamos diante de um paradoxo, pois Procópio tem Tucídides por
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modelo, mas ao mesmo tempo, o conteúdo, as imagens e a estrutura das Anékdota


parecem se afastar desse ideal principalmente tucidideano. Entramos assim na
segunda camada semântica do nosso título. A História que aqui se desconcerta é
justamente esse paradigma da História Clássica. As bases de uma mundividência
parecem aflorar nas Anékdota. Ao escrever um livro que pretende destruir a
memória de Justiniano, Procópio deve recorrer a uma série de figuras e imagens
que se remetem diretamente ao mais fundo da mentalidade e do espírito das
gentes de seus tempo. Procópio, mais do que nunca, deseja ser lido, quer
convencer. Não tenta mais construir uma história oficial dentro de paradigmas que
o engessem a seu relato. Ele precisa convencer, tocar diretamente o seu público
leitor em potencial, mexer com as referências, com as crenças e com as
sensibilidades daqueles que um dia o lerão. É por isso que as Anékdota
configuram-se como um excelente documento para compreendermos não só as
afluências entre a historiografia clássica e o cristianismo, mas também que nos
leva a refletir sobre os aportes trazidos pelo cristianismo.

Toda crítica é uma excelente forma de acesso ao mundo daquele que emite
a crítica. Denunciar é também dizer os valores sobre os quais repousam a nossa
visão de mundo. Por que voltar a atenção para “x” e não para “y”? Por que
denunciar e criticar alguém e não outrem? É porque consideramos o alvo de nossa
146

crítica, de algum modo, mau — independente do grau, da intensidade e da


importância com que criticamos — e nada mais revelador do nosso universo de
valores do que discernir entre o bem e o mal. Quando Procópio de Cesareia
escreveu as Anékdota tinha em mente possíveis leitores, o que ele deixa explícito
nas primeiras linhas de seu livro. Não saberíamos precisar a qual classe social
mais especificamente intencionava atingir, quando o texto viesse a público após a
sua morte. Mas, seguramente, denunciou e construiu seus argumentos persuasivos
a partir das referências que conhecia, a partir de seu universo de valores.
Empregou em sua escrita aquilo que acreditava que calaria fundo no espírito de
seus possíveis e futuros leitores. Exemplifiquemos com exemplos livres, não
necessariamente voltados para as Anékdota: acusar que alguém não possui origens
nobres só surtirá efeito em uma sociedade que preze os valores aristocráticos,
assim como acusar alguém de poligamia só fará sentido em uma sociedade que
preze os valores da monogamia. Quando Procópio de Cesareia recorre à imagem
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do demônio, podemos supor que o recurso a tal imagem fazia sentido em sua
sociedade. É através desse jogo inverso que fomos levados a perceber os valores
que estavam em jogo na sociedade em Procópio redigiu seus texto. E concluímos
que eram valores que se relacionavam eminentemente com o cristianismo. Toda
sociedade possui seus parâmetros críticos e seu repertório de imagens — não
menos reveladoras dessa mesma sociedade — que são empregados quando
denúncias, críticas e invectivas são tecidas, pois eles são a expressão dos valores e
da mundividência mais profunda de qualquer grupo humano. Ousaríamos dizer
que, direta ou indiretamente, os ecos desses parâmetros e imagens das Anékdota
ainda se fazem sentir em nossa sociedade atual, talvez seja por isso que refletir
sobre as Anékdota é refletir sobre um mundo distante, mas paradoxalmente tão
próximo, e de mesmos.

Para findar, permitimo-nos fazer uma breve consideração a respeito da


palavra conclusão; esta transmite, muitas vezes, um sentido pretensioso, ainda
mais quando aplicada a uma pesquisa histórica. Sua etimologia ajuda-nos a
compreender porque tal sentido pode frequentemente vir às nossas mentes. A
palavra “conclusão” tem sua origem no latim “conclusĭo, conclusiōnis,” isto é,
“reclusão”, “clausura”, “encerramento”. Assim sendo, uma “conclusão” pode ser
percebida como algo que “fecha” o debate sobre determinado tema. Ora, a
147

vitalidade da História reside justamente na constante interpretação dos


documentos. Então, entendamos aqui “conclusão” não no sentido de “clausura”,
de algo que possui a pretensão de “encerrar” determinada questão, mas sim como
um encerramento meramente espacial, ou seja, o fim das folhas que são o suporte
material desta pesquisa. Um fim que tem plena consciência da sua incapacidade
de “fechar” as leituras que podem nascer de um documento. E, se, por ventura,
algum dia, estas linhas incitarem futuras pesquisas — não encerrarem, mas sim
abrirem novos caminhos de leitura e novos horizontes de reflexão sobre as
Anékdota — seguramente, terão cumprido plenamente o seu propósito. Se assim
for, ainda que estejamos conscientes da sua inevitável condição provisória, terão
elas, de algum modo, continuado pelo campo das ideias.
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7.
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8.
Anexos

ANÉKDOTA

OU

HISTÓRIA SECRETA

DE PROCÓPIO

Por
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Ernest Renan

Traduzido do original em francês

por

Victor Villon

Texto publicado originalmente no

Journal des Débats,

19 de julho de 1857
153

De todos os problemas que levantam a crítica histórica, não há um mais singular do


que aquele desencadeado pela História Secreta de Procópio. Até o começo do
século XVII, a história havia sido para Justiniano somente um longo panegírico.
Poucas figuras apareciam no passado com tanta majestade. Último herdeiro da
grandeza romana, Justiniano parecia ter agrupado todos os raios, na entrada da
noite da Idade Média. Seu nome, ligado à grande compilação que se tornou a
legislação universal dos povos civilizados, desempenhava entre os juristas o papel
de autoridade irrefragável, como aquela de Aristóteles entre os filósofos, como a
Bíblia entre os teólogos. Sentado ao lado dele, a cortesã Teodora participava das
mesmas homenagens, e o mosaico de São Vital de Ravena, mostrava-nos todos os
dois no santuário e quase no patamar dos santos, era somente um eco na opinião
acreditada pelos séculos.

Essa opinião parecia sem recurso, quando um hábil helenista, Nicolau


Alemanni, descobriu por volta de 1620, entre os manuscritos do Vaticano, as
páginas que deviam expor o monarca, por tanto tempo, adulado a todas as
severidades da história. Sabia-se, por vagas informações, que em continuação a
oito livros oficiais dedicados pelo historiador Procópio de Cesareia à glória de
Justiniano constava um nono livro, que trazia o título suspeito de Anékdota
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(inédito), onde o autor vingara-se das adulações com singulares maledicências. É


esse documento, colocado por muito tempo entre as obras perdidas ou de uma
existência incerta, que Alemanni acabava de entregar à ciência. Logo nas
primeiras linhas do pérfido apêndice, o autor faz confissões completas: sob o
golpe do medo, em luta contra uma espionagem contínua, não pode, em sua
história oficial, apresentar os fatos tal como ocorreram; agora, ao revelar as
torpezas que teve que esconder em um primeiro momento, sabe perfeitamente ao
que se expõe; a posteridade julgará como inverossímil o que ele vai dizer e irá
colocá-lo entre os fazedores de tragédias.

A imaginação mais fecunda não saberia ultrapassar os sombrios horrores


de quadro que nos oferece a História Secreta. Que imaginemos uma sociedade
despida de sentido moral, onde a avidez grosseira das naturezas perversas seja a
única lei, no inferno, onde dois funestos gênios reinam em vista do mal, cultivam
com arte, amam por eles mesmos e pelo prazer que eles têm em fazê-lo, uma
venalidade inaudita, uma degradação dos costumes que dificilmente se acredita, o
roubo organizado, nenhuma segurança para as pessoas, o próprio bom senso
atingido e a razão ameaçada, Bizâncio transformada ora em uma gaiola de loucos,
ora em uma medonho covil onde o assassinato de milhares de pessoas era
cometido de bom grado e em plena luz do dia, um mundo de envenenadores e de
154

assassinos, de frenéticos e de loucos; eis o pavoroso pesadelo que depreende, em


duzentas páginas, o escrito singular que nós analisamos. Não é de forma alguma o
crime grandioso da Itália do século XV, o crime cometido pelo arrebatamento de
naturezas fogosas, tal como encontramos entre os celerados heroicos da escola dos
Borgia; não é de forma alguma o crime cometido por teoria e com raciocínio, do
qual o nosso Terror deu talvez o único exemplo; não é o crime covarde e vil, a
perversidade por esgotamento, uma vergonhosa parte de devassidão de eunucos
embriagados; a História Secreta é, sob esse aspecto, uma obra preciosa e sem
igual, uma verdadeira obra de arte, sem que o autor tivesse desconfiado disso. O
ideal da banalidade e do mal, o quadro de um século baixo e malvado, não achará
jamais um tal mestre para pintá-lo. Após ter lido esse livro estranho, não mais nos
espantamos com a hipótese à qual o autor recorreu para explicar tantos crimes; é
que Justiniano e Teodora não são Homens, mas os demônios que, para fazer a
maior quantidade de mal possível, tomaram a forma de seres humanos.
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Uma questão se apresenta logo de primeira quando da publicação da


História Secreta, e mantém ainda hoje a crítica em suspenso. Procópio adulador
ou Procópio panfletário, qual deles merece confiança? Em um mentiroso, que
revela ele mesmo suas mentiras, deve-se acreditar somente mediante provas; os
motivos que o incitam a adular podem levá-lo a caluniar e, se, com uma confissão,
ele retira todo crédito em seus primeiros relatos, desacredita, ao mesmo tempo,
aqueles que substituem. Daí uma dúvida importante que dividiu os historiadores
em dois campos: uns, como Montesquieu e Gibbon concederam confiança total à
História Secreta; outros como Ludewig, La Ravalière e, em geral, a escola dos
jurisconsultos, viram na História Secreta somente um libelo calunioso e buscaram
explicar por motivos interesseiros essa estranha palinódia.

Para todo espírito não preocupado e, antes de qualquer exame, parece


natural dar preferência à História Secreta. A crítica é desconfiada: todo golpe
lançado contra a liberdade de falar ou de escrever a inquieta; o crime que ela
menos perdoa aos soberanos é ter desejado enganá-la. Certo, do ponto de vista da
moralidade da história, a presunção deve ser sempre feita contra aqueles que
desconfiam da liberdade. No entanto, quando se trata de uma história velha de mil
e trezentos anos, a imparcialidade é permitida, sobretudo quando motivos
155

particulares exigem que o historiador se mantenha atento e suspenda o seu


julgamento.

A natureza humana, de fato, nunca é má sem compensação, e todas as


vezes que um caráter nos é apresentado como absolutamente perverso é uma razão
para duvidar da verdade desse retrato. É preciso dizer que, se os relatos de
Procópio são exatos, Justiniano e Teodora foram, desde os tempos históricos, os
dois seres mais malvados que existiram. Deixo de lado Teodora; cabe a outros
examinar se as infâmias pelas quais é acusada são possíveis ou devem ser vistas
como o fruto de uma imaginação suja que sonha com crimes quiméricos. Limitar-
me-ei a Justiniano, direi que a tese fundamental de Procópio destrói-se pelo seu
próprio exagero. Essa tese, repetida a cada página, é que Justiniano foi um
inimigo gratuito da espécie humana e em particular do Império Romano. Todos os
atos do seu governo, as medidas as mais inofensivas e às vezes as mais justas da
sua administração são interpretadas nesse sentido. Ora, se excetuamos alguns dos
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primeiros Césares a quem um poder inaudito até então na humanidade deu


vertigem, não parece que o amor do mal pelo mal tenha jamais sido um móbile
suficiente para sustentar uma vida inteira e servir de princípio a um sistema de
governo. Mesmo dando margem, tão grande quanto possível, à mentira oficial;
mesmo separando profundamente o caráter pessoal dos soberanos e o seu papel
histórico; mesmo confessando que celerados puderam fazer grandes coisas e se
passar por grandes homens, para mim é impossível acreditar que um frenético
haja deixado na história uma figura como aquela de Justiniano, nem admitir que
um reino tão glorioso pela administração, pela legislação e pelas conquistas, haja
podido ser a obra de um Domiciano assistido por uma Messalina. Homens
execráveis, eu sei, reinaram sobre Roma sem que Roma tenha por isso deixado de
ser a senhora do mundo; mas aqui o problema é bem diferente; é preciso explicar
um renascimento, um último momento de vida em um corpo extenuado; é preciso
explicar que um Império, no seu declínio que, pôde retomar ainda o cetro
universal, exercer a soberania desde a Bretanha e o Saara até o Tigre, e fracassar
os planos do mundo bárbaro já é mais do que metade vitorioso.

A desconfiança aumenta quando se examina de perto os procedimentos da


crítica familiar a nossa história e seus hábitos de espírito. Ora são declamações
156

vagas sem feitos articulados; ora bisbilhotices de cidades gregas, palavras de


criados pessoais, queixas de criados de um absurdo inacreditável.
Frequentemente, por singulares distrações, o mesmo fato serve de base a críticas
opostas. Justiniano é ao mesmo tempo um astucioso tirano que gastou uma
prodigiosa atividade de espírito para torturar o gênero humano, e “um idiota como
nunca foi visto, um grosseirão, um asno que obedece a rédea agitando as orelhas”.
Procópio não imagina que ao mostrar o objeto de sua antipatia com essas cores
ridículas, retira de si o direito de apresentá-lo como atroz. Uma violenta ideia
preconcebida faz com que aceite as informações mais contraditórias quando se
trata de denegrir o que ele odeia.

Mas é, sobretudo, nos julgamentos sobre a política exterior de Justiniano


que sentimos a acusação de que tudo é sistematicamente interpretado no sentido
do mal. Os negócios estrangeiros foram o grande lado do reino de Justiniano. Esse
príncipe deu o modelo da verdadeira política que fora preciso seguir com os
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bárbaros; isolando-os e os ligando ao Império, fez no Oriente em relação aos


eslavos o que deveriam ter tentado no Ocidente em relação aos germanos. Ora, é
preciso dizer, seja tolice, seja cegueira voluntária, Procópio não entendeu nada
dessa hábil conduta que assegurou ao Império do Oriente um prolongamento de
mil anos de vida. As conquistas de Justiniano, se fossemos acreditar em seu
detrator, foram motivadas somente pelo desejo de ter mais homens para tiranizar!
É evidente que Procópio pertencia a um partido exclusivo, conservador de velhas
tradições romanas, oposto à adoção dos eslavos e a todo entendimento com eles.
Jamais as tendências estreitas do espírito grego e seu desdém pelo estrangeiro
traíram-se com mais ingenuidades. Certo, Procópio de Cesareia era escusável,
como todos os seus contemporâneos, de não perceber o elemento sério e moral
que as raças germânicas e eslavas traziam para o mundo, e o serviço que eles
prestavam fazendo um contrapeso aos povos do Sul. Mas como explicar de outra
forma, a não ser por uma estranha pequenez de visão as críticas que direciona a
Justiniano a respeito dos gastos desse príncipe para aumentar para além a ação do
Império? A grande política exterior custa sempre caro: Justiniano, para reerguer
sua marinha e sustentar até a extremidade do mundo seu papel de soberano, foi
obrigado a enormes sacrifícios: tudo isso parece a Procópio um efeito da
resolução que o imperador havia tomado de fazer passar as riquezas dos romanos
157

aos bárbaros. Resoluto em criticar tudo, ele não desejava que se pactuasse com os
inimigos de fora, e achava ruim que cobrassem impostos para combatê-los. Só
pensar nos bárbaros o impacientava e retirava-lhe o senso; acreditava que
fechando os olhos afastava os perigos que ameaçavam a ordem social em que se
comprazia.

Esse espírito do fanariota desdenhoso, que não admite nada fora do


pequeno mundo em que está habituado a viver, parece-me o traço essencial do
caráter de Procópio. Sente-se que uma grande parte de sua antipatia por Justiniano
e seu predecessor Justino vem porque tanto um como o outro representavam a
intrusão dos eslavos e dos albaneses nos negócios de Bizâncio. Nascidos na
Albânia, sabendo escrever com dificuldade e falando muito mal o grego, não
tendo as maneiras delicadas da antiga classe aristocrática, esses imperadores
bárbaros eram muito impopulares entre os gregos refinados de Constantinopla.
Vemos por toda parte atrás de Procópio um pequeno cenáculo de descontentes,
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que os dois últimos reinados haviam vilipendiado as pretensões e ferido os


instintos, e dos quais as confidências iam aumentar a caderneta secreta de onde
surgiu a mais atroz vingança que havia meditado o orgulho dos patrícios feridos.

Da multidão de explicações aquela que busca a origem de toda oposição


em um descontentamento pessoal é facilmente acolhida. Também os defensores
de Justiniano atribuíram as calúnias de Procópio a uma desgraça ou aos desgostos
de uma ambição decepcionada. Nada prova a realidade de tal suposição. A
carreira de Procópio parece ter sido tão regular e tão honrada como pode ser uma
carreira sob um governo despótico. Eu o imagino mais como um homem honesto,
mas fraco, que foi servil a contragosto e que busca se reabilitar pela difamação.
Sentimos nele um ódio sincero para o mal, um gosto natural pela ordem, mas um
espírito limitado que aprecia toda coisa com preconceitos de camarilha. Suas
críticas são bem mais críticas de casta do que críticas de interesse pessoal. Os
homens pertencentes às classes habituadas a desempenhar um papel oficial
escrevem em geral bastante mal a história do seu tempo. Sentem de maneira viva
a injúria; mas não sabem de nenhuma maneira se esconder. Ao se acreditarem
necessários ao espetáculo desse mundo e ao imaginarem que as coisas humanas
não saberiam existir sem eles, pensam que fazem ato de abnegação quando
158

sacrificam seu orgulho para permanecer nos negócios. Depois, eles se vingam da
humilhação com desdenho de fidalgo e com injusta severidade. É essa, confesso, a
objeção que sempre estive tentado a fazer a Saint-Simon. Se seu século era tão
mal como dizeis, se a estada na corte era tão humilhante, porque aí ficastes? Digo
o mesmo de Procópio. Quando o sábio, que aceitou a obscuridade sem tristeza,
desvela as fraquezas de seu século, acredito nele de bom grado. Mas um senador
descontente que vem se queixar das humilhações que suportou, difamar o senhor
ao qual serviu, dizer suas queixas porque esperou ser recebido entre os lacaios,
porque um dos seus amigos foi ridicularizado pelos eunucos, porque um dia a
imperatriz o recebeu de uma maneira rápida no meio de um bando de solicitantes,
uma tal crítica para mim é um testemunho suspeito. Prova em um sentido geral
contra o governo que o empregou, pois o próprio dos maus governos é humilhar
aqueles que os servem; mas ele merece pouca confiança, pois o rancor mais
implacável é aquele do orgulho ferido, e o homem que menos perdoa em seu
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século é aquele que, não tendo a coragem de renunciar ao mundo, vinga-se no


mundo do menosprezo que sofreu.

Longe de nós essa complacente filosofia da história que, sob o pretexto do


bem comum, sabe achar uma desculpa para todas as tiranias; mas evitemos
também de aceitar sem controle o testemunho dos descontentes melindrados pela
fatalidade dos tempos. O abuso no mundo resulta sempre de um privilégio, e o
crime obrigado dos reformadores é de atingir os direitos consagrados. Os
privilegiados atingidos por esses reformadores apresentam naturalmente como
tiranos os soberanos que foram os promotores. Eles têm razão, pois a supressão
dos direitos antigos não pode acontecer sem levar ao despotismo; mas têm falta de
largueza de espírito, quando não veem que os direitos antigos com o tempo se
tornam injustiça, e produzem um tecido de males tão prejudicial para o povo
como o despotismo dos reformadores. A espécie humana na sua caminhada
claudicante, avança apoiando-se alternativamente sobre duas dores: o privilégio
que leva ao despotismo de vários, a reforma dos privilégios que leva ao
despotismo de um só. Justiniano foi no mais alto grau o que podemos chamar de
um soberano revolucionário. Diga o que for Procópio, estou persuadido que o
cuidado desinteressado do bem o guiou em suas reformas. Mas para remediar o
mal, cometeu um erro mais grave talvez do que o mal: substituiu sua vontade às
159

instituições; enfraqueceu todos os corpos, rebaixou os caracteres. Os homens


elevados nos antigos princípios de dignidade pessoal, sem cessar humilhados
diante dos funcionários e dos criados do imperador, perderam a estima deles
mesmos. Permaneceu de pé somente o imperador e seu séquito, o palácio, uma
espécie de Versalhes, onde se era asfixiado e onde as almas perdiam todo valor. O
coração sangra ao ver as duas classes de homem dos quais deveríamos ter
esperado alguma virtude e de honra, os bispos e os militares, de joelhos diante de
Teodora, e esperando da sua servidão o aumento da sua fortuna. Que juntemos a
isso uma administração intriguista e se envolvendo em tudo, uma centralização
que suprimia todos os poderes intermediários entre o soberano e os seus súditos,
teremos uma ideia do trasbordamento de intrigas no qual um regime assim teve
que resultar e da importância colossal que os defeitos do espírito e os caprichos do
soberano tomaram nos negócios do mundo.

Quanto aos costumes infames que Procópio atribui a Justiniano, são


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difíceis de serem conciliados com a sobriedade, a atividade incansável e o ardor


para o trabalho que seu detrator não lhe nega. A verdade é, acredito, que sob essa
relação como sob tantas outras, Justiniano foi um homem muito pouco delicado,
mas não foi pior do que o seu século. O enfraquecimento do patriciado e o
desaparecimento quase que total das ideias da nobreza hereditária haviam
rebaixado a um grau inacreditável os costumes da alta na sociedade. O nascimento
não valendo de mais nada para as mulheres, e o charme das qualidades morais
sendo pouco compreendido em um século tão grosseiro, os homens ricos ou
poderosos não eram mais guiados em suas uniões somente por apetites inferiores,
e assim quase todos os casamentos importantes faziam através do teatro. Fez uma
lei para proibir os senadores e os grandes dignitários de casarem com atrizes; o
imperador foi o primeiro a violá-la. Essas mulheres conservavam em sua nova
posição costumes detestáveis, e sua fortuna era um encorajamento público à
aventura e à frivolidade.

Penso que há também algum exagero, mas um fundo real de verdade, no


que Procópio nos diz sobre a tolice de Justiniano: foi um espírito sério e aplicado,
mas pesado e grosseiro. Os exercícios de cavalo e os bailes parecem ter sido toda
a sua literatura. Essas imperfeições teriam sido de pouco consequência em um
160

indivíduo comum; mas nos governos absolutos o gosto dos soberanos não é coisa
indiferente, não é permitido àquele de quem as preferências são leis possuir esse
tipo de literaturas que lhe agrada. A tolice encorajada pelo imperador fez enormes
progressos. Para o cúmulo da infelicidade, ele resultou em um gosto desenfreado
de controvérsias teológicas. Espírito reto e absoluto, Justiniano acreditava
seriamente ter razão nesse tipo de matéria, e derramou por insignificantes
subtilidades torrentes de sangue. A Ásia Menor, a mais bela região do mundo,
tornou-se um deserto. Pode-se dizer sem exagero que nenhum soberano, nem
mesmo Filipe II, ordenou tantos suplícios por suas razões religiosas. Severo,
consciencioso à sua maneira, trouxe para a religião a ferocidade da lei antiga e a
sombria devoção do perseguidor laico.

O trabalho de codificação, que é o principal título de glória de Justiniano,


assinalava por ele mesmo uma decadência: esses trabalhos, asseguram as pessoas
versadas em história da legislação, são sempre empreendidos só quando a geração
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dos grandes jurisconsultos está próxima a desaparecer. É certo, pelo menos, que
as épocas de codificação não são sempre as mais bem dotadas de amor pela justiça
e de sentimento moral. Jamais as instituições verdadeiramente políticas saíram de
instituições judiciárias. Os magistrados, excelentes conservadores de algumas das
garantias sociais, não sabem nem um pouco fundar as garantias políticas
tampouco a liberdade.

Nada aliás é mais perigoso do que apreciar a força e a moral de um povo


a partir da perfeição abstrata de seu Código. Se compararmos, no século VI, as
legislações informes do mundo germânico e a legislação erudita de Bizâncio, à
primeira vista a preferência não saberia ser duvidosa. De um lado, é a barbárie, o
preço do assassinato, o preço das pessoas calculado em dinheiro, anomalias
revoltantes do ponto de vista do que nós chamamos civilização, do outro, é o
direito filosófico, universal, fundado sobre a razão absoluta. E, no entanto, não
hesito em dizer: o direito germânico valia mais. Da organização bizantina surgiu
um dos mais vergonhosos aviltamentos de que se tem notícia na História; do
espírito germânico surgiu a verdadeira noção de dignidade humana pela
consagração do indivíduo. O sangue tinha um preço entre os germânicos; ele não
o tinha em Constantinopla. Mais vale para a liberdade o direito mais subordinado
161

do que a igualdade na sujeição. A pessoa da Idade-Média feudal sofria o


privilégio, mas por sua vez ela o exercia. Tinha nesse privilégio uma propriedade
inamissível, que a garantia contra todo poder humano. Cada homem possuía uma
espécie de carta que transmitia como um domínio a seus filhos. O Estado, esse
autocrata sem igual, que tem direitos contra todos e contra quem ninguém tem
direitos, não existia ainda. Eis porque a Idade-Média feudal, da qual a legislação
é, do ponto de vista filosófico, tão imperfeita, não teve nenhum tirano como
Justiniano. Se um poder análogo àquele do César bizantino houvesse tentado aí se
formar, os feudatários, os bispos, os abades, as comunas, os homens livres de toda
espécie, mil direitos, em uma palavra, organizados contra aquele do soberano, ter-
se-iam ligado em grupo. O Papa teria apoiado a liga; o tirano teria sido
excomungado e preso logo nos seus primeiros passos.

Sem ser tão mal como gostaria Procópio, o século de Justiniano foi na
realidade um século abominável. Sem ser demônios com rosto humano, Justiniano
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e Teodora foram soberanos muito ruins. A História Secreta fosse ela uma mentira
de uma ponta a outra, sua existência sozinha seria uma prova documental
irrefutável; pois, para que o ódio não tenha podido se satisfazer sem esse enorme
refinamento de malícia, para que tenha chegado a esse medonho grau de
concentração, foi preciso um despotismo verdadeiramente inaudito. Justiniano
pode não ser culpado de todos os delitos dos quais o panfleto de Procópio o acusa:
mas é culpado do aviltamento das almas e do servilismo que supõe essa obra
prima do rancor e de hipocrisia. A verdade comprimida vinga-se pela calúnia: ela
tem culpa sem dúvida: a perfeita sabedoria gostaria que fossemos justos com
todos. Mas de quem é o erro? Daqueles que, suprimindo a liberdade, confessaram
que tinham algo a esconder; daqueles que, falsificando a opinião, prestaram a
aprovação suspeita e o mal só crível. A História Secreta é o castigo daqueles: a
mentira do ódio serve de resposta à mentira da adulação. Havia um meio bem
simples de prevenir um e outro, o respeito aos caracteres e à liberdade!
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ITA DIIS PLACUIT


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