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Esta apostila foi concebida para apoio ao curso de Linguística II, ministrado para os
cursos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ. Nela, são fornecidos, de maneira muito
sucinta, alguns conceitos importantes para a disciplina de Fonologia, bem como são citados
textos-base que poderão (ou deverão, a depender dos objetivos do aluno) ser consultados.
A fonologia é a área da linguística que se dedica ao estudo do mapeamento entre
estruturas dotadas de significação, produzidas no âmbito da morfossintaxe, por um lado, e suas
manifestações concretas na fala, por outro, através de unidades linguísticas (não dotadas de
significados), como traços, segmentos, sílabas, pés métricos etc. Os tópicos estão desdobrados
em capítulos, como segue.
No primeiro capítulo, faremos algumas recordações sobre a fonética. No segundo
capítulo, falaremos sobre concepções de fonema, bem como sobre as relações envolvendo
fonemas, como contraste (ou oposição), distribuição complementar (ou alofonia) e variação.
No terceiro capítulo, trataremos de classes naturais, de processos e de regras fonológicas,
assim como da interação entre essas. No quarto capítulo, daremos uma breve introdução a
fonologia não-linear, na qual abordaremos temas como a geometria de traços e unidades
prosódicas (sílaba, acento e o pé métrico). 1
desaprovação. Como indicado no esquema acima, são poucas as línguas nas quais esse tipo de
segmento tem uso linguístico, cuja ocorrência está circunscrita à região sudoeste do continente
africano: Xhosa [sa], Zulu, entre outras.
Boa parte das línguas do mundo não dispõe de um sistema de escrita. Com o objetivo
de analisar e descrever essas línguas, o pesquisador se vê, muitas vezes, diante de sons não
contemplados pela escrita de sua língua materna, o que torna necessária a existência de
símbolos específicos para a notação desses sons. Além do mais, a ortografia das línguas (nas
sociedades dotadas desta ferramenta cultural), na maior parte das vezes, não expressa detalhes,
que podem se mostrar reveladores de fenômenos nessa língua.
1
Para representar determinado som, além do símbolo, pode ser necessário um diacrítico: [b] (oclusiva bilabial
laringalizada), [z] (fricativa alveolar murmurada) etc.
2
Para mais informações sobre essas questões e seus efeitos sobre o processo de alfabetização, leia: LEMLE, Miriam.
Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1988.
3
Letras como t e d mantêm relação biunívoca com o fonema /t/ e /d/, respectivamente, mas não com o som, como
veremos mais adiante, uma vez que esse fonema pode ter realização africada.
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2) Determinado som pode ser representado por mais de uma letra.
som letra classificação fonética do som da fala exemplos
[s] <s> sapo
<c> cenoura
<x> máximo
[] <g> gesto
<j> jeito
<s> asno4
4
No dialeto carioca, por exemplo. Em outros dialetos, pode representar o som [z].
5
O dígrafo pode ser encarado como uma sequência grafema-diacrítico. Sendo assim, teríamos alguns casos em que há
univocidade (ex.: o <lh> representa apenas o som [] e vice-versa), outros em que não há (ex.: o <ch> apenas representa,
no português, [], que também pode ser representado por outros grafemas, como <x>). O <th> do inglês é um exemplo
de dígrafo que representa dois sons (tanto [] quanto []) na ortografia de outra língua. Já o alemão apresenta o que
poderíamos chamar de trígrafo: a sequência <sch> representa a fricativa []. A sequência de grafemas <tch> é exemplo
de trígrafo no português, como em ‘tchau’, ‘tcheco’, representando, ortograficamente, o som [t].
6
Em algumas variedades do Português do Brasil.
7
No latim, essa letra representava uma fricativa glotal. No inglês e no alemão, a mesma letra representa o mesmo som.
A ortografia do inglês também oferece exemplos de letras que não representam elementos sonoros, como a sequência gh
em light.
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2. Fonologia. Fonema
Sabemos que todo ser humano é dotado de um conjunto de órgãos – conhecido como
aparelho fonador – cuja função primária se relaciona à digestão ou à respiração, mas que são
utilizados também para a produção dos sons da fala (também conhecidos como fones). São
muitas as possibilidades de produção de som. Apesar de esses sons serem muito variados, cada
língua particular utiliza apenas um subconjunto desses sons. A fonologia estuda como os
elementos desse subconjunto se relacionam entre si, formando um sistema, capaz de distinguir
significados. Sendo assim, à fonologia interessa como as línguas particulares organizam seu
sistema sonoro, levando em consideração conceitos como oposição/contraste. Além disso, a
fonologia se interessa pela captura de características universais, buscando dar conta das
semelhanças entre os sistemas sonoros das línguas naturais.
A fonologia8 é o componente gramatical que trabalha com elementos advindos do
léxico, da sintaxe e da morfologia. Tais elementos têm uma estrutura gramatical que é lida
pela fonologia, a qual faz ajustes particulares, considerando essa estrutura, e os desemboca na
fonética. Boa parte das pesquisas em fonologia tenta dar conta do mapeameto entre o que é
externo (fonético) com o que está no âmbito mais interno (gramatical). Sendo assim, itens
como ‘bonita’ {bonit + a} e ‘bonitinha’ {bonit + ia} guardam uma relação semântica,
6
advinda da base comum (‘bonit’). Considerando realizações como [bonita] e [bonitia], a
fonologia precisa estabelecer o mapeamento entre [t] e [t], considerando que, apesar de haver
alternância de sons, não houve mudança de significado na base. Dessa forma, devemos dizer
que ambos são sons atrelados ao mesmo elemento fonológico (ao qual chamamos de
‘fonema’). Esse mapeamento pode ser feito de maneiras distintas, a depender da teoria que
interpreta a noção de fonema.
Unidade importante para a fonologia, o fonema pode ser relacionado ao fone. Há várias
definições para o fonema, a depender de como a linguagem é concebida. A maneira pela qual
dada teoria (ou dada Escola) encara o fenômeno da linguagem traz desdobramentos para
definição desse elemento (assim como para as demais unidades linguísticas). Veremos, neste
curso, três maneiras básicas de encarar o fonema: a partir de uma realidade próxima à fonética,
uma realidade (propriamente) fonológica e como uma realidade psicológica (para uma
exposição mais aprofundada dessas concepções de fonema, ver Hyman, 1975).
8
Usamos o termo ‘fonologia’ de maneira ambígua, ora para se referir ao componente da gramática do falante, ora para
se referir à subdivisão da linguística que estuda esse componente. O contexto deixará claro o sentido adotado.
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2.1. Fonema como uma realidade fonética
9
O termo ‘segmento’ costuma ser utilizado de maneira neutra, ora se referindo a fone, ora a fonema.
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esses sons nessa língua (ressalte-se que esses três segmentos podem contrastar em outras
línguas; ver exercícios na sequência). Duas palavras que diferem apenas por um som
constituem um par mínimo, situação na qual tais sons apresentam contraste no mesmo
ambiente. No nosso exemplo anterior, os itens ‘pin’ e ‘bin’ constituem um par mínimo no
inglês, pois contrastam no mesmo ambiente (#___in#) 10. Sempre que pudermos estabelecer
pares mínimos para determinados sons, os diferentes sons analisados serão considerados
manifestações de dois diferentes fonemas na língua em questão. No caso em pauta, [p] e [b]
são associáveis, respectivamente, aos fonemas /p/ e /b/ 11.
Ao acharmos um par mínimo, podemos dizer que os sons sob análise estão associados
a fonemas distintos (leia-se, entretanto, a seção 1.1.2 Nota sobre par mínimo). No entanto,
nem sempre podemos encontrar um par mínimo, o que pode ser atribuído a uma lacuna
eventual o fato de a língua não oferece, em seu vocabulário, duas palavras que difiram apenas
pelos sons analisados. Tal fenômeno também pode ser, mais frequentemente, decorrente de
lacuna na base de dados. Nesses casos, pode ser útil a busca por um par análogo (ou par quase
mínimo – near minimal pair).
Em alemão, nas palavras Goethe [g:th] e Götter [gth] ‘deuses’ encontramos um
par análogo, a partir do qual podemos afirmar, a priori, que as vogais tônicas contrastam. Em
casos como esses, devemos apenas nos certificar de que as diferenças em jogo não estejam 8
condicionando a ocorrência dos sons analisados (o ambiente análogo seria [g__thV], onde V
quer dizer vogal). A existência de par análogo é suficiente para concluir que as vogais médias
anteriores arredondadas [] e [] se distinguem entre si no alemão, sendo, portanto, fonemas
vocálicos distintos nessa língua. Não se pode dizer que a vogal [] condiciona a vogal [] (cf.
al. Stöcke [tk] ‘bengala’); tampouco que [] condiciona [] (cf. al. Hörer [h:r]
10
O símbolo # indica fronteira de palavra. Estando à esquerda, indica início de palavra; à direita, final.
11
É comum o uso de colchetes para indicar fones e barras inclinadas para indicar fonemas.
12
Assim como em muitos casos, o par análogo apresentado também poderia ser utilizado para atestar o contraste entre
outros segmentos: aqui, as vogais [o] e [u].
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Para refletir...
De que maneira ‘bule’ e ‘povo’ podem ser considerados como itens validadores de que
não há condicionamento estrutural no par análogo composto por ‘bolo’ e ‘pulo’?
Diferentemente do que dissemos sobre o para ‘bolo’ e ‘pulo’ (que eles atestam o
contraste de [p] e [b]), não podemos dizer que o par ‘Tico’ [tik] e ‘Teco’ [tk] conseguem
evidenciar o contraste de [t] e [t]. Isso por que a ocorrência dos segmentos envolvidos é
O par mínimo é uma ferramenta teórico-metodológica muito útil, porém deve ser
utilizada com certo cuidado. Em primeiro lugar, é apressado dizer que a ocorrência de sons em
tal par caracteriza-os como fonemas em si; entretanto, é pertinente dizer que tal ocorrência
atesta o contraste (ou oposição) entre os mesmos. Sendo assim, a existência do par mínimo
[tia]:[dia] não caracteriza esses sons ([t] e [d]) como fonemas, embora o contraste entre
9
eles seja atestado pela existência desse par e de outros. Portanto, a existência de par mínimo
comprova que os sons envolvidos apresentam contraste, ou seja, tais sons não podem ser
considerados pertencentes ao mesmo fonema. Nesse caso, em português, [t] é pertencente ao
fonema /t/, e [d] pertence ao fonema /d/. Algo muito similar pode ser dito, no inglês, para o
para [kh] e [g] em itens como Kate [khejt] ‘antropônimo’ e gate [gejt] ‘portão’.
Outra questão envolvendo esse tema seria sobre considerar mínimos os pares como
[]:[], []:[taw] e []:[]. Pela definição mais corrente de ‘par mínimo’
esses pares de palavras deveriam ser assim consideradas pares mínimos, uma vez que a
oposição entre os dois está estabelecida pela alternância dos sons [t] e [t]. Desse raciocínio
poderia resultar a assunção de que esses sons constituem fonemas separados na língua
portuguesa, o que não é o caso.
Entretanto, podemos verificar a falta de produtividade desse contraste. Evidência
paralela para não considerar a existência de um fonema [] no português é o fato de alguns
falantes do PB não produzirem esse som em ambientes como [], preferindo as formas
[], [] e [], para as palavras tcheco, tchau e tchaco, respectivamente. Esse
Há situações nas quais encontramos os chamados falsos pares míninos. Nas palavras
[bax] e [bah], vemos a alternância de sons no mesmo ambiente. Essa alternância,
entretanto, não é capaz de causar mudança de significado, de maneira que os sons se alternam
e o significado permanece. Nesse caso, dizemos que os sons envolvidos estão em variação
livre, sendo, portanto, variantes livres de um mesmo fonema.
Mais recentemente o termo ‘livre’, não sem razão, tem sido rebatido. Pesquisadores,
sobretudo sociolinguistas, veem o termo certa reserva. De fato, de certa forma o termo parece
indicar a ideia de assistematicidade, de caos. Com a contribuição desses pesquisadores, fatores
externos à estrutura têm sido estudados e têm trazido muita luz à questão da variação, presente
em qualquer língua natural. Para este curso, o termo ‘livre’ será usado como sinônimo de ‘sem
condicionamento estrutural’. 11
Exercícios (Grupo I)
2) Procure definir, dando exemplos com os dados acima e do português, os seguintes termos.
a) Par mínimo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
b) Par análogo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________ 12
c) Alofone.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
d) Variante livre.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
3) Em dada variedade de espanhol, ocorrem dados como os que seguem (Dados em Hyman,
1975):
a. [baka] ‘banco’ d. [saer] ‘saber’ g. [la aka] ‘o banco’
5) A aspiração é marcada na transcrição fonética por um h sobrescrito ( h). Assim sendo, comente
a diferença, em termos fonêmicos, da atuação dessa coarticulação nas duas línguas abaixo
(dados em Fromkin, V. & Rodman, R, 1993:84-85)
Inglês Tai
[pl]~[p l] ‘pílula’
h
[paa] ‘floresta’ [phaa] ‘separar’
[tl]~[thl] ‘até’ [tam] ‘esmagar’ [tham] ‘fazer’
[kat] ‘morder’ [khat] ‘interromper’
[kl]~[khl] ‘matar’
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
Como cada sistema fonológico tem suas próprias oposições, o conteúdo fonológico de cada
fonema depende da língua em questão. Mais precisamente, depende das oposições apresentadas pelo
fonema na língua em questão.
No português, por exemplo, os segmentos labiais são /p b f v m/; no espanhol, por seu turno,
são /p b f m/. Assim, o fonema /f/ no português será uma ‘fricativa’ (por oposição a /p/, que é uma
plosiva), ‘labial’ (por oposição a /s/, coronal), e ‘surdo’ (por oposição a /v/). Já no espanhol, o fonema
/f/ será apenas ‘fricativa labial’, por não haver o fonema /v/.
Quadro 1
13
Veremos mais adiante que a unidade mínima reconhecida hoje na fonologia é o traço distintivo, que é menor que o
fonema.
14
TRUBETZKOY (1939:59).
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O conteúdo fonológico também leva em consideração os segmentos opositivos da língua em
questão. Vejamos a seguir a tradução de um excerto de Trubetzkoy (1939). Na sequência, veremos as
oposições trubetzkoyanas, presentes no mesmo livro, e que representam o primeiro insight para os
traços distintivos.
1. Oposições bilaterais versus multilaterais. Nas oposições bilaterais (ou ‘unidimensionais’: cf.
al. eindimensional), a totalidade das características fonéticas comuns a ambos os membros da
oposição – chamada de base de comparação – é comum a apenas esses dois membros. Em português,
/p/ e /b/ estão em oposição e têm em comum o fato de serem oclusivas labiais. A oposição é bilateral,
porque não há outras consoantes sob o rótulo de ‘oclusivas labiais’ no português. A afirmação pode
ser estendida para a oposição desses segmentos em línguas como o alemão e o espanhol, por exemplo.
Se tomarmos, por exemplo, os fonemas /v/ e /p/, do português (que são obstruintes 18 labiais),
notaremos que essa oposição é multilateral (ou ‘multidimensional’: cf. al. mehrdimensional), porque
/f/ e /b/ também são ‘obstruintes labiais’. Para Trubezkoy, esse tipo de oposição está presente em
qualquer sistema opositivo. Como exemplo, o autor cita, no sistema ortográfico de base latina
(sistema opositivo visual, portanto!), a oposição existente entre os grafemas E e F, por um lado, e P e
R, por outro. Ao compararmos E e F, podemos observar que eles têm em comum uma haste vertical e 16
duas hastes horizontais: nenhum outro elemento do alfabeto partilha dessas características: a oposição
entre E e F é, portanto, bilateral. Se compararmos, por outro lado, os grafemas P e R, vemos que a
semelhança entre ambos são a haste vertical e a semicircunferência na parte superior, características
que o grafema B também tem: sendo assim a oposição entre P e R seria multilateral, uma vez que a
base de comparação entre ambos também é compartilhada por B.
2. Oposições proporcionais versus isoladas. A oposição entre dois fonemas é dita proporcional
se a relação entre seus membros é idêntica à relação entre membros de outra oposição ou outras
oposições no mesmo sistema. Do contrário, será uma oposição isolada. A oposição estabelecida entre
os fonemas /p/ e /b/ do português, por exemplo, é proporcional, pois a relação entre esses fonemas é
idêntica àquela encontrada entre /t/ e /d/ ou mesmo /k/ e /g/. Em contrapartida, a oposição entre /l/ e
// é isolada, pois não há outros segmentos no Português que tenham a mesma oposição. Note que a
oposição /l/ : // é proporcional à oposição /n/ : //. Tanto as oposições em 2 quanto aquelas em 1 se
referem à relação estabelecida entre a oposição (ou o par opositivo) e o sistema como um todo.
17
Excerto de “TRUBETZKOY, N. S. Grundzüge der Phonologie. TCLP 7, Prague, 1939”, p. 59-60. Tradução: Gean
Damulakis.
18
Termo que recobre oclusivas, fricativas e africadas. N. do T.
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3. Oposições privativas, graduais e equipolentes. Nessas oposições, é relevante a relação entre
os membros da oposição. Em oposições privativas, um membro carrega uma característica fonética
que falta ao outro, o que significa ser uma questão de presença/ausência de uma característica
fonética. A oposição /t/:/d/, no português, é privativa, pois o vozeamento falta ao /t/. Oposições
graduais ocorrem quando há gradação de dada característica fonética, como no caso das vogais no
português. A oposição /i/:/e/ do português, por exemplo, é gradual, pois a vogal // seria o terceiro
grau da mesma característica que diferencia /i/ de /e/, ou seja, a altura. Membros de uma oposição
eqüipolente são considerados ‘logicamente equivalentes’. Na oposição /t/:/p/, cada um tem uma
característica que falta ao outro, sendo essa oposição, portanto, equipolente.
17
Decorrência direta do último tipo de oposição é a neutralização, caracterizada pela perda da
força distintiva entre dois (ou mais) fonemas. Na posição de neutralização, é postulado um
arquifonema (indicada na transcrição fonêmica em caixa alta), que seria a totalidade das
características distintivas comuns aos dois fonemas ou, em outras palavras, uma unidade fonológica
que compartilha das propriedades comuns aos fonemas cuja oposição foi neutralizada. No caso do
português, em contexto final de sílaba, haveria um arquifonema /S/, representando as fricativas
coronais (articuladas com a parte anterior da língua). Assim, a representação fonológica de ‘pasta’
seria /paSta/.
No alemão, a oposição entre obstruintes surdas e sonoras não é constante, uma vez que em
final de palavras, apenas a surda se manifesta: Rad [rat] ‘roda’: Rat [rat] ‘conselho’; Räder
[rd]‘roda – pl’: Räte [rt] ‘conselho – pl’. Fenômeno similar ocorre no russo e no polonês.
19
TRUBETZKOY (1939:71). Tradução minha. Uma vez que o autor se referia a oposições definidas dualmente,
neutralizações que alcançam mais de dois segmentos, como nas nasais do português, por exemplo, não são abarcadas
nessa implicação.
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Essas classificações são cumulativas, de forma que uma mesma oposição poderá ser
classificada em quatro rótulos, a depender das características consideradas. Pensemos, por exemplo,
no inventário consonantal do português (descartados os assim chamados arquifonemas), expresso a
seguir:
p t k
b d g
f s
v z
m n
l
r
O sistema fonológico do português, por exemplo, oferece 171 oposições consonantais (assim
como o alemão) e 21 vocálicas20. A seguir, classificamos algumas delas:
Quadro 2
20
Sendo 19 segmentos, temos n.(n-1)/2 = 19x18/2 = 171. Para as vogais, temos: 7x6/2: 21.
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2) Classifique as mesmas oposições entre isoladas e proporcionais.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
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__________________________________________________________________________
4) Considere o seguinte sistema vocálico do turco. As oposições /u/:/o/ e /i/:/e/ são graduais?
Justifique sua resposta.
i y u
e a o
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
Considere os inventários segmentais abaixo como referência para as questões que os seguem:
Sistema 1 19
p t k i y u
b d g e o
f s x
v z a
ts t
m n ŋ
l
r
Sistema 2
p t k i y u
e o
f s
z
m n ŋ
l
p t k y i u
b d g e a o
f s x
v
m n
l
j w
i. p t k f s x _______________________________________
ii. p t k b d g _______________________________________
iii. b d g v _______________________________________
iv. f s x v _______________________________________
v. w j l m n a e i o u y _______________________________________
vi. m n l j w _______________________________________
vii. t d s n l j _______________________________________
viii. a e i o u y _______________________________________
ix. y u o _______________________________________
x. y i u _______________________________________
xi. i e _______________________________________
xii. j w _______________________________________
O fonema pode ser visto como uma unidade possuidora de realidade psicológica. Por essa
forma de ver, o fonema é encarado como uma unidade psicológica à qual são associadas realizações
fonéticas. A associação entre esses níveis pode ser feita de maneiras diferentes a depender da teoria
adotada.
A visão mentalista sobre o fonema é antiga e pode ser atribuída originariamente a Badouin
de Courtenay, que defendeu que o fonema seria “um som imaginado ou intencionado, oposto ao som
emitido como um fenômeno psicofonético para um fato fisiofonético” (Jakobson e Halle, 1956: 11).
Sendo assim, quando um falante de português, por exemplo, em dialetos em que haja palatalização
de plosivas alveolares, realiza [ti], esse falante está intentando [ti], ou seja, essa seria a imagem
abstrata do que produz. Em línguas como o inglês ou o alemão, por exemplo, realizações de [t h]
costumam ser feitas, em determinados contextos, quando os respectivos falantes intentam /t/.
Uma passagem de Sapir (1933) ficou famosa dentro desta visão de fonema. O autor explica
que, certa vez, ao solicitar de um falante nativo de Paiute (família Uto-Asteca), que este falasse
palavras sílaba por sílaba, ele pronunciou a sequência ‘pa:ah’, da seguinte forma: [pa:], pausa,
[pah], sem que percebesse que sua realização das sequência [pah] era diferente da realização em
22
contexto intervocálico. Desse fato, Sapir concluiu que o som [] era apenas uma realização do que o
Mais recentemente, a visão de fonema como realidade psicológica é adotada por teorias
fonológicas de base gerativa. Desde a publicação de The Sound Pattern of English, de Noam
Chomsky e Morris Halle, em 1968, que lançou as bases para a fonologia gerativa padrão, o
mapeamento entre fonema e suas realizações se dá através de regras fonológicas. Conceito
importante também para esse mapeamento será o de traço distintivo, como veremos a seguir. Aqui, o
fonema é encarado como um conjunto de traços distintivos, que pode ser mapeado com suas
manifestações fonéticas a partir da mudança de valores de traços, como veremos na sequência.
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2.3.1. Traços distintivos
O primeiro sistema de traços distintivos foi apresentado por Jakobson, Fant & Halle (1952,
Preliminaries to speech analysis, PSA) e Jakobson & Halle (1956, Fundamentals of Language),
embora a ideia de traço já estivesse latente desde os trabalhos de Trubetzkoy (1939) 21. Foi dada
ênfase, em PSA, à caracterização de segmentos em traços baseada em propriedades acústicas. No
trabalho de Chomsky e Halle (1968, The Sound Pattern of English, doravante SPE) houve alguns
acréscimos, sobretudo porque este último procurou caracterizar os segmentos baseados em traços
articulatórios, uma vez que havia o interesse em descrever regras fonológicas. Do modelo
jakobsoniano, permaneceram, em SPE, alguns traços22. O aluno interessado na história desses traços
poderá consultar a bibliografia. Aqui nos ateremos a alguns traços em SPE e algumas alterações
subsequentes. Embora algumas propostas recentes não sejam contempladas, o conjunto de traços
aqui trabalhados serve ao propósito deste curso.
Os traços, em sua maioria, costumam ser binários, ou seja, têm dois valores: o positivo (+) e
o negativo (–). Alguns, porém, são monovalorados (unários ou monovalentes), ou seja, possuem
apenas o valor de presença; quando não for especificado para dado segmento (ou seja, indicar uma
característica ausente no segmento), não será assinalado para o mesmo. É o caso dos principais
traços de ponto de articulação, aqui assinalados em VERSALETE. As definições abaixo se referem aos 23
segmentos valorados positivamente para o traço, no caso de traços binários.
O chamado vozeamento espontâneo pode ser entendido como a vibração involuntária das
cordas vocais em decorrência da abertura de cavidade acima da glote, durante a produção de alguns
tipos de segmentos, como vogais, nasais etc.
21
Muito embora Trubetzkoy afirme que fonema seja a menor unidade, ele já prenunciara a decomposição do fonema em
características fonéticas (phonetische Eigenschaften).
22
Permaneceram os traços [consoantal], [tenso], [sonoro], [contínuo], [nasal] e [estridente]. Os demais foram
substituídos em SPE.
23
Em Clements & Hume (1995), os traços de classe maior são [soante], [aproximante] e [vocoide].
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Vejamos a tabela abaixo, na qual podemos ver a capacidade que esses traços têm de
distinguir as grandes classes de sons das línguas do mundo. Acrescentamos o traço [nasal] para dar
conta da distinção entre consoantes nasais e líquidas.
Traço Vogais: Glides: Obstruintes: Nasais: Líquidas:
(a, e, i, o, u ...) (j, w...) (p, b, t, s...) (m, n, , ...) (l, r, , ...)
[silábico] + – – – –
[soante] + + – + +
[consonantal] – – + + +
[nasal] – – – + –
Quadro 3
Vogais24:
[±alto] – o corpo da língua está acima da posição neutra; a língua fica próxima ao palato.
[±baixo] – o corpo da língua está abaixo da posição neutra; a língua se distancia do palato.
24
[±recuado] – o corpo da língua está retraído a partir da posição neutra; retrai-se a partir do centro da
cavidade oral para trás.
[±arredondado] – envolve protrusão labial.
[±tenso] – envolve considerável esforço muscular.
[±ATR] – levantamento da raiz da língua para cima (advanced tongue root). 25
Vemos no quadro 4, a distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português ou no
italiano), dispensando [ATR] e [tenso]. No quadro 5, vemos a representação com algumas das
redundâncias assinaladas entre parênteses:
i e a o u
[alto] + – – – – – +
[baixo] – – + + + – –
[recuado] – – – + + + +
[arredondado] – – – – + + +
Quadro 4
24
Traços também aplicáveis a consoantes.
25
Os traços sublinhados não serão abordados de maneira exaustiva neste curso. Para alguns fonólogos, um desses traços
pode ser necessário para a distinção entre médias (caso em que todas as médias seriam [- baixo]).
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i e a o u
i e a o u
[alto] + – – – – – +
[baixo] – – – + – – –
[ATR] + + – – – + +
[recuado] – – – + + + +
[arredondado] – – – – + + +
Quadro 6. 25
Outra maneira de indicar os valores dos traços para o mesmo conjunto de vogais é
demonstrada no quadro 7. No 8, outra maneira, agora com uso de [ATR]:
[– recuado] [+ recuado]
[+ alto] i u ([– baixo])
[– alto] e o [– baixo]
([–alto]) a [+ baixo]
[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 7
[– recuado] [+ recuado]
[+ alto] i u
[+ ATR]
e o
[–alto][–baixo]
[– ATR]
[+ baixo] a
[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 8
fv sz x
[estridente] – + – + + – +
[anterior] NA NA + + – NA NA
[distribuído] + – + – + + –
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
26
Quadro 9
Mais recentemente, tem-se advogado que não apenas [±anterior] como também de
[±distribuído] têm poder distintivo apenas no âmbito das coronais, não sendo, portanto, aplicável a
segmentos que não sejam [coronal]. De fato, como vemos na tabela acima, no caso das fricativas
labiais e dorsais, não é necessário dispor tanto de [±estridente] quanto de [±distribuído] para
distingui-las entre si. Note que, entre as labiais e as dorsais, esse traço pode ser relevante, uma vez
que [±distribuído] não as abrange28. Assim:
fv sz x
[estridente] – + – + + – +
[anterior] + + –
[distribuído] + – +
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
Quadro 10
26
O traço [anterior] se referia, em SPE, a qualquer obstrução antes da região alveolar, sendo, portanto, os segmentos
labiais considerados [+ anterior]. Propostas ulteriores restringiram esse traço apenas a segmentos coronais. Isso torna o
traço [anterior] não aplicável a segmentos labiais e dorsais.
27
Realizações fonéticas como [x h] são [ – estridente].
28
No caso das dorsais, o traço [±alto] tem sido evocado para distinguir [x ], (+), de [ ], (–).
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Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Traços de modo
[±contínuo] – sons produzidos sem bloqueio da corrente de ar (na cavidade oral). Esse traço
diferencia oclusivas e africadas (–) de fricativas (+), entre as obstruintes; e separa as nasais (–) das
líquidas (+).
[±soltura retardada] – sons produzidos com bloqueio seguido de fricção. Apenas as africadas são
marcadas positivamente com esse traço. Sendo assim, o mesmo distingue oclusivas (–) de africadas
(+).
[±nasal] – sons produzidos com abaixamento do véu palatino. Diferencia sons orais (–) de nasais
(+).
[±lateral] – sons produzidos com a seção medial da língua abaixada pelos lados.
Traços laríngeos 27
[±sonoro] – são produzidos com vibração das pregas vocais. Diferencia sons vozeados (+) de
desvozeados (–).
[±glote espalhada] – sons produzidos com as pregas vocais separadas. Distingue obstruintes
vozeadas e desvozeadas (–) das aspiradas e murmuradas (+).
[±glote constrita] – sons produzidos com fechamento da glote. Costuma ser usado para marcar
positivamente as consoantes glotal ([]), ejectivas e implosivas. 29
29
A maior parte dos sons nas línguas naturais é [– glote espalhada] e [– glote constrita].
Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014)
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[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
[+ anterior] [– anterior]
[– soante] p t [– nasal] [– contínuo]
b d
f s [+ contínuo]
v z
[+ soante] m [+ nasal] [– contínuo]
l [– nasal] [+ lat] [– cont]
[– lat] [+ cont]
[+ contínuo]
Quadro 11
Para o segmento [l], o valor para o traço [±contínuo] costuma variar translinguisticamente.
Defendemos aqui que, no português, esse segmento é [– contínuo]. Temos dois argumentos, um de
caráter histórico e outro sincrônico. Em algumas palavras, como ‘alma’[anima>anma>alma], por
exemplo, houve uma dissimilação da nasalidade, que transformou [n] em [l]. Essa transformação de
caráter dissimilatório opera apenas na mudança para o traço [±nasal], o que nos leva a intuir que os
demais traços que caracterizam os dois segmentos têm o mesmo valor, aí incluído [±contínuo].
Sendo assim, [n] e [l] são igualmente [– contínuo]. De caráter sincrônico, podemos relatar as trocas
28
segmentais ocorrentes em itens como neblina ~ lebrina, nutrido ~ lutrido e Leblon ~ Neblon.
A adoção de traços distintivos torna a descrição de regras fonológicas mais econômica,
mostra a motivação para o processo, além de permitir a notação de que o processo ocorre com
classes naturais (ver a seguir).
Exercícios
1) Complete a tabela abaixo com os valores dos traços relativos aos segmentos em pauta e
responda às questões a seguir (para traços monovalorados, indique onde for pertinente).
±soante ±silábico ±contínuo ±nasal ±sonoro LABIAL CORONAL DORSAL
[p]
[b]
[m]
[f]
[v]
[t]
[s]
[n]
[l]
[k]
[x]
29
Como dissemos, a noção de traços distintivos é muito útil, pois torna a descrição de regras
mais econômica e mostra a motivação para o processo, além de demonstrar que o processo ocorre
com classes naturais. Classe natural é um grupo de segmentos, identificados sob um rótulo comum,
que apresentam características partilhadas apenas por eles dentro de um sistema. Um bom sistema
de traços fonológicos permite reunir classes naturais com um número pequeno de traços.
Note que, para definir [p, t, k] no português (no espanhol, no alemão ou no inglês), é
necessária a utilização dos seguintes traços: [- soante], [- contínuo]. Através dessa combinação,
abrangemos apenas esses segmentos (não há outros, nessas línguas, que possam ser definidos por
esses traços). Disso decorre que [p, t, k] constituem uma classe natural (e que o sistema de traços
adotado consegue dar conta disso!). Por outro lado, para definir apenas o [p], é preciso usar mais
traços: além dos traços [- soante] e [- contínuo], teríamos de acrescentar [ LABIAL]. Se pensarmos no
conjunto [p, s, l], o único traço que poderíamos utilizar para esse grupo, seria [+ consonantal], que
envolve outros segmentos do inventário do português, digamos [f, t, g]. Isso significa que o grupo
[p, s, l] não constitui uma classe natural nessa língua. 30
Além disso, devemos dizer que os segmentos reunidos em uma classe natural costumam estar
envolvidos nos mesmos processos. Por exemplo, há, em espanhol, um processo chamado de
espirantização, que transforma [b], [d] e [g] em [], [] e [], respectivamente. Se o fenômeno é
descrito atomicamente, ao se afirmar que são três processos distintos, perderemos a generalização de
que o processo leva todas as plosivas sonoras do espanhol, a serem realizadas, sob certas
circunstâncias, como as fricativas homorgânicas correspondentes.
A fonologia gerativa proveu a teoria fonológica da noção de regras fonológicas, sobre as
quais falaremos a seguir.
Regra pode ser entendida como um comando (internalizado) responsável por um ajuste
sonoro (ou uma adequação de outra ordem) em um determinado contexto estrutural. Uma das
funções do analista é a de ‘descobrir’ quais são as regras que atuam em determinado sistema e qual é
a sua ordem de aplicação. No caso da fonologia, essas regras podem ser de vários tipos (como
veremos a seguir). O formato dessas regras costuma ser apresentado na forma: A B / C __ D.
Os fonemas /t/ e /d/ fazem parte de uma classe natural chamada de oclusivas ([–soante], [–
contínuo]) coronais ([CORONAL]). Formalizando o mesmo processo por meio de traços, teremos o
esquema abaixo. Notem que a formalização da regra da maneira que segue dá conta tanto da
palatalização que ocorre com /t/ e com /d/:
A B C
Quadro 12
31
O elemento A indica a descrição estrutural (o alvo da regra); B indica a mudança estrutural; e
C indica o ambiente – também conhecido como gatilho (ou trigger) da regra. Vale observar que C
pode não ser um segmento, mas indicar uma posição estrutural (como coda silábica, por exemplo).
Em A, não precisa ser indicado o traço modificado, uma vez que já sabemos que os traços em A tem
o valor contrário dos encontrados em B.
1) Formalize, através de traços distintivos, as regras dos seguintes processos, alguns vistos em
sala de aula.
2) Formalize as regras dos processos nos itens a, b e c em uma única regra (como ocorre no
Espanhol). Lembre-se de que, nesse caso, você deverá pensar no conceito de classe natural
(ver acima).
+ contínuo 32
Temos os seguintes principais tipos de regras fonológicas (nomeadas pelo processo que
desencadeiam):
Transformação: A e B são segmentos foneticamente distintos. É o tipo de regra que
captura a relação entre alofones (também podendo expressar regras neutralizadoras). As regras R =
/p/ [ph]/ #___ (do inglês), P = /t/ [t / __i (do português) e Q = /b/ [] / V___ (do espanhol)
como ‘vrido’ [] para ‘vidro’ também podem ser consideradas exemplos de aplicação de regra
Muitas vezes, para garantir o mapeamento entre uma forma subjacente e sua realização
fonética, é necessário atribuir a aplicação de mais de uma regra. Dessa forma, pode-se dizer que as
34
regras se aplicam sequencialmente. A essa sequência de aplicação de regras, chamamos de
derivação. Input é o ponto de partida de uma regra e output é o resultado de sua aplicação. Podemos
dizer que, na derivação, uma regra toma como input o output da anterior. Sendo assim, podemos
dizer que as regras são ordenadas. Do ordenamento de regras, podem surgir quatro tipos de
interação, dos quais destacamos dois: alimentação (feeding, em inglês) e sangramento (bleeding).
Alimentação. Dizemos que duas regras R e P quaisquer estão em relação de alimentação,
quando uma regra (digamos, R) cria o contexto para que a regra P, seguinte, seja aplicada. Vejamos:
/net/ /advogado/
R – Inserção: net
Outras regras: … …
Saída: net
Quadro 13
que a inserção da vogal alta diante de /t/ cria o contexto para a palatalização do plosiva coronal.
Algo semelhante ocorre com o item []. Sendo assim, podemos dizer que a regra R
sílaba seguinte (ressilabação), vaga disponível na sílaba que inicia a palavra ‘aguda’. Em outras
palavras, a regra R sangra a regra P, ao retirar-lhe o contexto de aplicação.
Há casos em que a situação se inverte: uma regra que alimentaria a outra ocorre antes desta,
situação na qual teríamos a contra-alimentação. De maneira análoga, se uma regra que sangraria
outra ocorre depois desta, teremos o que chamamos de contrassangramento. Em ambos os casos,
temos formas opacas, que contrariam uma generalização fonológica na língua. Notem-se, a seguir,
exemplos do português de casos de contra-alimentação e contrassangramento. 35
/prta#insenso/
A – Alteamento [pxta# ises]
B – Africação n.a
C – Res. de Hiato [pxtØ# ises]
D – Silabificação [px.t i.se.s]
Subaplicação de regra (contra-alimentação; cf. Damulakis, 2010)
Quadro 15
/pte#azuw/
A – Alteamento [pt#azuw]
B – Africação [pt#azuw]
C – Res. de Hiato [ptØ#azuw]
D – Silabificação [p.ta.zuw]
Sobreaplicação de regra (contrassangramento)
Quadro 16
Quadro 17
Quadro 18
O segundo conjunto (em 18) de dados nos mostra que a regra de vozeamento ocorre depois
da regra de espirantização nesse dialeto. Se fosse o oposto, para /la kama/, teríamos *[la ama], o
2) Mostre que o sequenciamento inverso daria formas agramaticais como *[la ama] (a partir
Vimos que a fonologia, não lidando diretamente com elementos portadores de significados –
embora aqueles sejam relevantes para a distinção destes –, atua na pronunciação de elementos
significativos, advindos da morfossintaxe. Foram dadas algumas concepções distintas para o
fonema. Além de fonemas, há unidades menores que estes, como os traços distintivos, e alguns
podem ser maiores, como a sílaba e o pé métrico, por exemplo.
As unidades morfossintáticas e as fonológicas não são isomórficas: não há como fazer um
mapeamento de um para um entre elementos morfossintáticos e elementos fonológicos, ocorrendo a
isomorfia apenas acidentalmente. Assim, em pintor, temos dois morfemas pint+or30, mas o primeiro
morfema se separa em duas sílabas: pin.tor; já em pré-sal, os dois morfemas estão cada qual em
uma sílaba. A palavra paraíso se separa em quatro sílabas, que se agrupam em dois pés métricos,
assim divididos (pa.a)(i.z)31, embora sua divisão morfológica seja /pa.ai.z+/. Para este curso,
optamos por resumir os princípios universais que regem essas unidades, deixando algumas sugestões
de leitura para que os alunos se aprofundem no assunto.
No que ficou conhecido como Fonologia Linear (SPE), o segmento era visto como uma
matriz de traços distintivos, que não apresentavam níveis hierárquicos. Entre esses traços, postulava-
se a existência de [silábico], que seria positivo para o núcleo da sílaba, e [acentuado], que indicaria a 37
4.3 A sílaba
A sílaba pode ser vista como uma unidade fonológica constituída de um onset (ou ataque),
seguida de um núcleo (ou pico) e uma coda (ou declive). Esses dois últimos constituintes formam a
rima. Esquematicamente, temos (usa-se a letra grega sigma ‘σ’ para indicar a categoria sílaba):
30
O símbolo ‘+’ delimita o limite entre elementos morfológicos.
31
Os diacríticos ‘’ e ‘’ indicam, respectivamente, os acentos primário e secundário. O ponto ‘.’ indica o limite de sílaba.
Em algumas publicações, usam-se os símbolos ‘´’ e ‘`’ nas respectivas vogais com a mesma finalidade: (pà.a)(í.z).
Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014)
Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Uma sílaba completa seria, então, do tipo ONC. Desses elementos, apenas o núcleo é
obrigatório. Sem este elemento não há sílaba. Podemos encontrar, portanto, sílabas desprovidas de
onset e sílabas desprovidas de coda. O padrão mais comumente encontrável nas línguas do mundo é
ON, ou seja onset seguido de núcleo. Isso significa que há línguas que não apresentam sílabas
(O)NC, mas não há aquela que repila ON(C).
No português, o onset e a coda podem ser ramificados. Alguns defendem que o núcleo pode
ser ramificado no inglês. Essa ramificação é bastante restringida nessas línguas, não sendo admitidos
quaisquer elementos. No onset do português, por exemplo, está proibida uma sequência como [st],
permitida no inglês ou no holandês, por exemplo.
Forma muito comum de tratar a sílaba seria através do que chamamos de ‘camada CV’,
postulada como estrutura intermediária entre os segmentos e a sílaba. Para preencher essa camada, 38
duas características dos segmentos são avaliadas: a) a representação de sua duração, e b) sua
designação de silabicidade, ou seja, se pode ocupar o pico da sílaba ou, alternativamente, o onset ou
a coda.
Há duas propostas que dão conta da intermediação entre os segmentos e a sílaba: a teoria CV
(McCarthy, 1979) e a teoria moraica (Hayes, 1985). Pela primeira proposta teórica, os segmentos
são incorporados à sílaba através de uma estrutura CV, onde C seria a posição de consoante e V a
posição de vogal, conforme o esquema abaixo 32:
32
Vogais longas e ditongos podem ser representados como uma sequência de VV vinculadas à mesma sílaba (σ).
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Outra maneira de representar a estrutura interna da sílaba é através de moras. A mora é tida
como uma unidade de peso silábico. Dessa forma, apenas os elementos da rima são dotados dessa
unidade. Assim o onset se liga diretamente à silaba. As línguas que têm vogais longas, esses
segmentos recebem duas moras (como em b, a seguir). Em outras línguas, a coda silábica pode
receber uma mora, situação na qual as sílabas travadas receberão duas moras (compare d e c).
Sílabas trimoraicas (ou superpesadas) costumam ser evitadas nas línguas do mundo.
Esquematicamente:
Para expressar sua duração, as consoantes geminadas devem contar peso. Dessa forma, esses
segmentos, em ambiente intervocálico, esses segmentos não contam mora no onset, mas o fazem na
coda. Vale ressaltar que, nesse caso, esses elementos são considerados ambissilábicos. Veja o
exemplo de par mínimo do italiano para duração consonantal, formado pelos itens fato ‘destino’ (em
a) e fatto ‘fato’ (em b).
39
Como dito acima, o núcleo é o único constituinte obrigatório em uma sílaba. Em uma palavra
portuguesa como há [a], existe apenas o núcleo silábico, não existindo onset nem coda. O padrão
silábico mais recorrente translinguisticamente, porém, é o CV, ou seja, sílaba constituída de onset e
núcleo.
Isso significa que há uma assimetria no que se refere aos constituintes da sílaba: o onset é
mais frequente que a coda. Há várias línguas do mundo em cujas sílabas o onset é obrigatório, entre
as quais estão línguas muito distantes geneticamente, como o alemão, o havaiano e o japonês. A
ampla maioria das línguas do mundo não faz exigência da existência de coda, embora muitas delas
proíbam esse constituinte. Dessa forma, podemos dizer que existe uma tendência (universal) nas
línguas de exigir onset e de proibir a coda.
O acento pode ser entendido como uma proeminência relativa de uma sílaba em comparação
a outra. Essa proeminência se manifesta foneticamente através de indicadores como duração e
intensidade. Fonologicamente, o acento tem sido considerado como uma posição estrutural no pé
33
Sendo assim, podemos dizer que segmentos proibidos na coda estão mais propensos a figurarem em oposições
constantes, ao passo que aqueles presentes permitidos na coda costumam figurar em oposições neutralizáveis.
Apontamentos em Teoria Fonológica. Apostila utilizada na disciplina Linguística II (2014)
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métrico, constituinte fonológico intermediário entre a sílaba e a palavra, o que descarta a
necessidade de postular o traço distintivo referente a ele.
O pé métrico é constituído por uma sílaba fraca (dominada; abreviada por w, de weak, ing.) e
uma sílaba forte (dominante; abreviada por s, de strong, ing., id.), sendo esta chamada
correntemente de núcleo (ou cabeça) do pé. Em uma palavra com mais de um pé, um deles é mais
proeminente e portará, em seu núcleo, o acento primário. O pé métrico dominado será o portador do
acento secundário.
Retomando nosso exemplo, (pa.a)(i.z), vemos aqui dois pés métricos: (pa.a) e (i.z). O
pé (i.z) é o mais proeminente e porta, em seu núcleo ([i]), o acento primário (indicado por ‘’). O
temos três pés binários, ao passo que em (le)(gali)(dade), temos dois pés binários e um pé, o
primeiro, degenerado.
Em relação à segunda tendência, verifica-se, nas línguas do mundo, que uma reatribuição de 41
acento primário, decorrente de processo morfológico, por exemplo, pode fazer que acentos se
desloquem para evitar a colisão. Assim: (ka)(f) + (zio) resulta em (kaf)(zio); (ka)(u)+(ejro)
resulta em (kau)(ejro).
Os tipos de pés mais frequentes nas línguas do mundo são os troqueus (com núcleo à
esquerda) e os iambos (com núcleo à direita). Troqueus podem ser silábicos ou moraicos, ou seja,
podem contar sílabas ou unidades de peso silábico. Sobre o português, afirma Collischonn (1994:
44):
“Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é par, o padrão é sempre este: a primeira sílaba é
acentuada e cada segunda sílaba à direita desta. Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é
ímpar, observamos dois padrões possíveis: (a) a segunda sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à
direita desta; ou (b) a primeira sílaba é acentuada e o acento seguinte somente cai sobre a terceira
sílaba à direita desta”.
34
Em alguns casos, utiliza-se o acento (gráfico) agudo (´) para indicar o acento primário, e o acento grave (`) para o
secundário: [pà.ra.í.zo], [kàfezío]. Em alguns casos, adoto essa forma, conjugada com a ortografia convencional.
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Em alguns dialetos do inglês, a atribuição de acentos primário e secundário está associada à
neutralização vocálica em favor do xuá (schwa: []): photograph [] e photography
[:].
Referências
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