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RESUMO: Objetivo com esse trabalho fazer a apresentação de Quarto de Despejo de Carolina
Maria de Jesus sob o olhar interseccional, abrangendo a leitura para aspectos nos quais Carolina é remetida
ao longo de sua trajetória como mulher, negra e favelada, bem como analisar a produção bibliográfica
constituída a partir de Carolina e sua retratação na mídia nos períodos compreendidos a partir de 1960 a
2018. Para tanto, analiso aqui, não somente Carolina e seu Quarto de Despejo, mas todo o contexto ao qual
ela e a obra estão inseridos e, primordialmente, de onde Carolina fala.
Em 1960, Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre e mãe solteira
de três filhos, publica um livro retratando o cotidiano da favela do Canindé, local onde
foi moradora por mais de dez anos. Sua trajetória de miséria sai do anonimato quando o
acaso a coloca frente a frente com o repórter Audálio Dantas. A partir de então, Carolina
em seu “Quarto de Despejo” (1960) espalham uma crueza na descrição da vida na favela
para o Brasil e para o mundo. O sucesso do livro, que mais soa como um desabafo da
autora, sobretudo por tratar-se de um diário construído a partir de cadernos e papeis que
Carolina encontra enquanto catadora, é tanto foi traduzido para mais de treze línguas.
Considerando, especificamente que, até então, a literatura que retratava a
pobreza era escrita por “intelectuais” sem quaisquer vivências como as de Carolina, o
sucesso do diário transformado em livro é estrondoso. A escrita áspera de uma
semianalfabeta que pode frequentar somente os primeiros anos de escolarização é a
demonstração pura e genuína de sua experiência. Experiência, essa, que ela utiliza como
arma para descrever os momentos trágicos da miséria que a acompanha e que fez com
que Carolina fosse uma das escritoras mais faladas e renomadas após o lançamento de
seu livro, equiparando-se e, por vezes, ultrapassando o próprio Jorge Amado com a obra
“Gabriela, cravo e canela”, em vendas.
Por manter uma cronologia e formatos de diário, é possível notar os empecilhos
constantes de Carolina para manter-se viva e, ao mesmo tempo, manter seus filhos
alimentados e bem cuidados. Os confrontos não são somente com a pobreza, mas,
segundo a própria autora, o problema também estava, e definitivamente não se tratava de
um fator secundário, na própria favela e em seus moradores. Crítica, Carolina não poupa
palavras ao descrever a frieza e maldade que via naqueles que a cercavam. Vale salientar,
inclusive, que Carolina não se via como “um deles”, justamente por acreditar ser
totalmente o oposto daquilo que ela descrevia em seu diário. Suas críticas sobre o
ambiente em que viveu por tantos anos eram infindáveis, de forma que tratava o diário
como forma de ameaçar os habitantes da favela do Canindé. Repetia constantemente que
os colocaria em seu livro e que não retiraria seus nomes. Por esse fator, o de considerar-
se detentora de algo que os outros não possuíam, Carolina acreditava ser vítima de
perseguição das mulheres e homens, que perseguiam também aos seus filhos. Outro fator
importante a ser destacado é que Carolina era mãe solteira em um ambiente onde boa
parte das mulheres eram casadas, muito embora sofressem violência constante, o que
Carolina abominava, pois possuía verdadeiro afeto por crianças e priorizava manter seus
filhos longe de violências, muito embora o ambiente, em si, fosse uma violência
constante, não só com ela, mas com seus filhos e os outros habitantes, afinal, a
marginalização desses sujeitos já implica em uma violência sofrida cotidianamente.
Necessário pontuar sobre o valor da escrita para Carolina, que consciente de
sua posição de desigualdade, questionava políticos em seu diário, questionava se em
outros países haveria tamanha pobreza e miséria, questionava se algum dia seus filhos
veriam mudança no cenário...os questionamentos da autora eram tantos que nota-se a sua
falta de esperança em ela mesma perceber qualquer mudança enquanto viva. Detinha em
si verdadeira noção de sua posição social, relatando que ali mesmo, onde ela vivia, era o
despejo humano da cidade.
Tratando-se de uma mulher que reconhece sua falta de direitos, crítica em
relação a políticos e a política destes, detentora de um diário que circularia o mundo,
Carolina adentra o mundo da literatura, sendo apagada anos depois no círculo midiático
por um projeto desenvolvimentista, que incluía a camuflagem de toda a pobreza ainda
existente no país. O surto de reportagens, notas, críticas e vendas sobre “Quarto de
Despejo” compreende o período de 1960 a 1964 em dois jornais do eixo Rio-São Paulo
(Jornal O Globo e Jornal Folha de São Paulo), tornando a mencioná-la assiduamente e
retomar as discussões acerca de seu livro e de sua experiência como mulher, negra e
favelada somente no ano de 1977, com sua morte. Carolina morre pobre, parcialmente
desconhecida e invisibilizada.
Todo esse contexto de exclusão de Carolina dentro da literatura parte também
de uma academia que restringe as margens e suas representações, especificamente
tratando-se de uma escritora semianalfabeta.
É através deste retrato da favela que Carolina nos incita a inúmeros
questionamentos envolvendo sua vivência como mulher, negra e pobre em um país que
ruma um traço desenvolvimentista e excludente, especialmente com todos os atributos
que a envolvem. Isto é, gênero, raça/etnia e classe. Voltar-se para esses atributos, é olhá-
los sob o aspecto interseccional. Para tanto, Avtar Brah, em seu “Diferença, Diversidade
e Diferenciação”, nos direciona para encarar as especificidades de opressões particulares.
Nesse caso, é necessário estabelecer que Carolina, mulher, negra e favelada,
enquadra-se em três minorias específicas. Ao mesmo tempo em que, somente por existir,
luta contra o machismo, ela luta com o racismo e com a elite que, como a autora mesmo
descreve em sua obra, a despreza. De acordo com Brah, as opressões relacionadas a
Carolina são ligadas umas às outras, de modo que a diferença racial se liga aos outros
marcadores como o gênero e a classe.
É tratando-se da ligação de marcadores, através de Brah, que a discussão acerca
da interseccionalidade e de como Carolina Maria de Jesus é involuntariamente parte de
opressões particulares se dá.
Para isso, a interseccionalidade auxilia na compreensão por reconhecer as
múltiplas camadas de sua vida com as quais se é necessário lidar, como no caso de
Carolina, não somente o machismo, não somente o racismo e não somente com a
invisibilidade que a pobreza lhe garante, mas com todos em conjuntos, como fatores não
dependentes, porém interligados. Uma abordagem interseccional procura denunciar esses
fatores. Portanto, para Brah (2006, p. 341), “nosso gênero é constituído e representado de
maneira diferente segundo nossa localização dentro de relações globais de poder”, ou
seja, mulheres brancas experienciam o sexismo de forma diferente das mulheres negras.
Nesse aspecto, a autora explica sobre “a construção social de diferentes categorias de
mulheres envoltas em um campo ideológico e estrutural mais amplo” (BRAH, 2006, p.
341), estrutura esta que se dá por meio de raça/etnia e classe, uma vez que a colocação do
sexismo já está nítida na vida de uma mulher, tomada por “segundo sexo” e parte de uma
estrutura de dominação que tem como principal aliado o patriarcado.
As teóricas do feminismo radical, no entanto, tendem a excluir ou invisibilizar
fatores como o racismo ou a classe no discurso de enfrentamento ao patriarcado, haja
vista que consideram o sexismo como único e maior elemento para a opressão sofrida por
mulheres e desconsideram as estruturas étnicas e econômicas como interligadas as de
gênero. Isolam parcialmente as experiências específicas de categorias diferentes de
mulheres e concebem uma visão unificadora de combate ao patriarcado, que, no caso das
inúmeras categorias de mulheres, não é o único combate diário.
A autora Avtar Brah (2006, p. 344) introduz o conceito de racialização do
gênero, exemplificando que cada racismo possui sua própria história e modo de
concepção. No caso de Carolina, vale salientar que trata-se de um Brasil estruturado por
uma escravidão negra com um fim tardio e que resultou em uma sociedade com um traço
marcado fortemente pelo racismo, muito embora seja um país miscigenado. No caso, a
racialização do gênero, permite que se trabalhe com o que é comum, mas que não exclua
a heterogeneidade das experiências provindas de mulheres com diferentes vivências, ou
seja, que experienciam outros elementos necessários de combate.
Para compreensão, é necessário introduzir aqui um ponto específico a respeito
dos feminismos e de suas pautas prioritárias, ainda segundo Brah. O feminismo
majoritariamente branco, provindo de mulheres que estruturalmente são mulheres “para
casar”, enfrenta conceitos como os de reprodução, o de dominação familiar do sexo
masculino, alegando que o modo com que são tratadas deriva de um modelo feudal e que
sua liberdade no meio social é fundamental para o projeto progressista. Friso que esse é
um modelo de enfrentamento de feministas brancas ocidentais, que novamente procuram
centralizar o ocidente como superior “aos outros”.
No caso das feministas negras, seus enfoques são voltados para a objetificação e
o constante racismo sofrido no cotidiano por parte não só de homens brancos, mas
também de homens negros que veem seus corpos como disponíveis para sua satisfação
sexual. Como bem cita Elza Soares em sua canção “A carne”: A carne mais barata do
mercado é a carne negra. Especialmente a de mulheres negras, aviltadas por opressões de
todos os lados. Neste sentido, vale salientar que, em um discurso social racista, misógino
e elitista, mulheres como Carolina de Jesus não servem para muito além de trabalho e
para ser objeto sexual masculino.
Assim, é de fácil entendimento que, num percurso trilhado por diferentes
categorias femininas em que todas sofrem de uma opressão em comum, a intensidade em
que esta ocorre varia de forma significativa. Para isso, basta voltar-se para o fator de que,
enquanto mulheres brancas lutam por melhorias em suas condições como cidadãs e como
pessoas, as mulheres negras lutam para serem reconhecidas como tal, criando políticas de
enfrentamento contra a objetificação de seus corpos e, ao mesmo tempo, lutando contra
o racismo imposto em uma sociedade que absorve sem problematização um discurso
masculinizado, branco, ocidental, heterossexual e elitista.
É através desse olhar que Carolina Maria de Jesus é observada quando ascende
com a publicação de seu livro. Uma academia que recusa a voz marginal, uma mídia
tendenciosa, uma política juscelinista desenvolvimentista e, após, uma ditadura militar
que pretende invisibilizar os fossos sociais e desigualdades, mantendo Carolina no
esquecimento logo após estrondoso sucesso, dentro e fora do país. A retratação fiel e a
aspereza em seus escritos chamam atenção de inúmeros estudiosos de outros locais, que
a concebem de forma muito mais atenta do que os próprios brasileiros acerca de uma
situação em seu próprio território, situação, esta, que era a mesma de mais de 130 mil
pessoas no ano de 1977, segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo.
Carolina reconstrói sua identidade através de sua escrita, visibilizando sua
própria vivência e dando real valor, isto é, enfrentando as forças repressivas do Estado
que implicam que figuras como Carolina Maria de Jesus devam permanecer no
anonimato. A questão que deve ser posta a respeito da identidade de Carolina é justamente
a de que por pertencer ao setor marginalizado no momento da escrita de seu diário, a
autora sonha em passar para o outro lado e realmente sentir-se parte da sociedade, como
crítica cidadã, como detentora de direitos simples, enfim, como ser humano.
Não é surpreendente, nesse cenário, compreender porque o sucesso de Carolina
no exterior foi maior do que em seu próprio país de origem. Documentários alemães e
estadunidenses tiveram proibidas suas transmissões no Brasil nas décadas de 60 e 70,
muito embora em 1961, houvessem peças de teatro retratando Carolina e sua trajetória na
favela do Canindé, através de sua obra “Quarto de Despejo”.
Tratando-se de um testemunho de sua vivência e ao mesmo tempo de um texto
de cunho político-social, Quarto de Despejo detém inúmeras críticas, notas e reportagens
as quais analiso no eixo Rio-São Paulo, com base nos jornais O Globo e Folha de São
Paulo. Além disso, analiso a bibliografia produzida acerca de Carolina nesse presente
trabalho.
Proponho, então, uma análise sob um olhar interseccional.
Leituras do Quarto
A escritora foi lembrada especialmente nos cem anos de Carolina, como bem
pontua a reportagem do jornal O Globo do dia 06 de setembro. Uelliton Farias Alves,
jornalista e escritor ressalta um ponto importante quando diz que Carolina dissera que
seria melhor nunca ter feito sucesso e ter continuado a morar na favela antes de sua morte
em 1977. Farias diz: “Em verdade, nunca lhe saíram da curtida pele os efeitos de sua
pobre vida, como catadora de papel e intelectual da miséria”, pontuando então, os danos
psicológicos de Carolina pela vida que tivera, com pouca consideração pela sua dignidade
e humanidade.
As inúmeras biografias relacionadas à Carolina, que continuam sendo produzidas
inclusive nos dias atuais, com outros olhares, alguns voltados para o âmbito econômico
das mudanças sociais e geopolíticas iniciadas na época em que o diário fora escrito e
outros voltados para o pessoal da vida de Carolina como sujeito histórico e objeto de
estudo, especialmente de gênero e étnicos. Atentar o olhar para Carolina nesses aspectos
é reconhecê-la como provedora de questionamentos que continuam a ser evitados
inclusive nos dias atuais. Enviar luzes no Quarto de Despejo, retirando-o da obscuridade
ao qual os subalternizados como Carolina são submetidos diariamente é comprometer-se
com um novo modo de historicizar sujeitos tomados como abjetos por discursos
hegemônicos associados aos olhares de cima para os que estão em baixo, como a própria
escritora e o restante dos habitantes da favela do Canindé.
Observar as estruturas subalternas que compunham Carolina não somente no
âmbito econômico como também aliando-se ao patriarcado que a sujeitava a inúmeros
preconceitos provindos de habitantes da favela, da academia, da mídia, da moral
conservadora brasileira, que persiste até os dias de hoje, e também da esquerda brasileira,
é compreender o gênero como um fator decisivo para a formação da identidade de
Carolina na sua visão sobre si e na visão do outro sobre a mesma. Alia-se também, nesse
aspecto, a raça que, em um país racista e que tende a violentar simbólica e
escancaradamente negros e negras, invisibilizando-os e subtraindo-os da sociedade,
boicotando-os em locais majoritariamente habitados por brancos e homens, como por
exemplo, o local que Carolina habitou por tempos: o de escritora. A voz da favela não era
bem recebida pela união desses marcadores em um Brasil que repudia a fala do pobre,
que repudia a fala da mulher e que repudia a fala do negro. De forma geral, o repúdio era
triplo.
Não é sem motivações que os estudos interseccionais, subalternos e negros
abraçam as obras e a vida de Carolina Maria de Jesus. Aviltada por opressões de um poder
que ainda permanece subalternizando Carolinas, as luzes voltadas diretamente para
Quartos de Despejos no Brasil e no mundo ascendem Carolinas em volta do globo e as
analisam como figuras históricas, como intelectuais e, principalmente, como centrais,
mesmo em um majoritário funcionamento que insiste em envolvê-las, ainda, na
obscuridade e no silêncio.
Carolinas falam. Carolinas existem. Carolinas resistem.
Referências Bibliográficas
SCOTT, Joan W. A invisibilidade da experiência. Proj. História, São Paulo, pp. 297-325.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo:
Francisco Alves, 1960. São Paulo: Ática, 2001
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.
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BROWN, Kristin Alexis. "The Political, Social, Historical, and Literary Significance of
the Writings of Carolina Maria de Jesus" (2011). All Theses and Dissertations. 2598.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Repensando Carolina Maria de Jesus. Unigranrio, Duque
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