Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
5PM1C6 - CINTRA - Emmanuel Lévinas e A Ideia Do Infinito PDF
5PM1C6 - CINTRA - Emmanuel Lévinas e A Ideia Do Infinito PDF
Emmanuel Lévinas
e a idéia do infinito
trem e como do Altíssimo... Morrer do rosto o faz sair do ser enquanto cor-
pelo invisível eis a metafísica.13 relativo ao saber... O rosto é o que não
se pode matar, cujo sentido está em di-
Experiência metafísica ou ética, o zer: Tu não matarás... A exigência
face a face se dá pelo desejo bom e gene- ética não é necessidade ontológica. A
roso, contanto que se o deseje! Nele, fica interdição de matar não torna impos-
sível o assassínio... A aparição no ser
o homem suspenso à sua própria liber-
destas estranhezas éticas (étran-
dade, a se justificar pela bondade e a ge- getés éthiques) humanidade do ho-
nerosidade. mem é uma ruptura do ser.15
A respeito da natureza ética do face
a face, Lévinas lembra Tu não matarás, ou como verte
no modo afirmativo, farás tudo para
a importância em Husserl da que o outro viva.16 Há curiosa ou es-
intencionalidade axiológica. O caráter
tranha proposição de Lévinas: O ho-
de valor vem de uma atitude específi-
mem que come é o mais justo dos ho-
ca da consciência, de uma inten-
cionalidade não teorética, liminar- mens,17 porque, afinal, a primeira jus-
mente irredutível ao conhecimento.14 teza ou justiça primeira é o amor à
vida.18 Proposição ética a fundamen-
Todavia, quase a cada passo de sua tar qualquer projeto político!
reflexão, Lévinas afasta da exte- Face a face, o rosto é interioridade
rioridade do rosto a experiência presi- exterior a mim e exterioridade interior a
dida pelo conhecimento. A fenomeno- si. Lévinas fala de segredo, somente pelo
logia, neste ponto, é abandonada por qual é possível o pluralismo da socie-
Lévinas: dade. Conseqüentemente,
se relações éticas devem conduzir a Não devo imaginar que não concebo o
transcendência a seu termo, é que o infinito por uma verdadeira idéia, mas
essencial da ética está na sua intenção somente pela negação do que é finito,
transcendente e porque toda intenção do mesmo modo que compreendo o
transcendente não tem a estrutura repouso e as trevas pela negação do
nóesis-noéma. movimento e da luz: pois, ao contrá-
rio, vejo manifestamente que há mais
Como foi indicado, Lévinas tem pa- realidade na substância infinita do
rágrafo em Totalité et Infini com o título que na substância finita e, portanto,
A transcendência como idéia do Infi- que, de alguma maneira, tenho em mim
a noção do infinito anteriormente à do
nito. Do que vimos, compreende-se
finito, isto é, de Deus antes que de mim
que diga: A presença de um ser que mesmo. Pois, como seria possível que
não entra na esfera do Mesmo, presen- eu pudesse conhecer que duvido e que
ça que a excede, fixa seu estatuto de desejo, isto é, que me falta algo e que
infinito. não sou inteiramente perfeito, se não
Comumente se pensa o infinito a tivesse em mim nenhuma idéia de um
partir do finito: o infinito supõe o fi- ser mais perfeito que o meu, em com-
nito que ele amplia infinitamente. As- paração ao qual eu conheceria as ca-
sim é em Kant, para quem a noção de rências de minha natureza?... E isto
não deixa de ser verdadeiro, ainda que
infinito se põe como um ideal da ra-
eu não compreenda o infinito... pois é
zão. Hegel defende a positividade
da natureza do infinito que minha na-
do infinito, mas exclui toda multipli- tureza, que é finita e limitada, não pos-
cidade: sa compreendê-lo.19
O infinito deverá englobar todas as re- Lévinas toma esse esquema for-
lações. Como o deus de Aristóteles, só mal da idéia do infinito para pensar
se refere a si, que seja apenas ao fim de
a relação com Outrem. E não a partir
uma história. A relação de um particu-
lar com o infinito equivale à entrada da existência de Deus, que Descartes
desse particular na soberania do Esta- vê implicada no fato da idéia: o face a
do. Torna-se infinito ao negar sua pró- face é a experiência da idéia, sem re-
pria finitude. curso a Deus enquanto termo da idéia:
eu penso entretém com o Infinito, ção: Sem que a transcendência da re-
que não pode de nenhum modo conter lação corte os laços que a relação im-
e do qual está separado, a relação cha- plica e Sem que esses laços unam num
mada idéia do infinito. Por certo, as Todo o Mesmo e o Outro. Paradoxal-
coisas, as noções matemáticas e mo-
mente de relação sem relação não cor-
rais são-nos também presentes, segun-
do Descartes, por idéias e delas se dis- ta os laços pois não une num Todo o
tinguem. Mas a idéia do infinito tem Mesmo e o Outro. O eu penso entre-
isso de excepcional: seu ideatum exce- tém com Outrem, quem não pode de
de sua idéia, ao passo que, para as coi- nenhum modo conter e do qual está
sas, a coincidência total de suas reali- separado, a relação chamada idéia do
dades objetiva e formal não fica infinito por Descartes. O excep-
excluída... A distância que separa cional da idéia do infinito é que seu
ideatum e idéia constitui o próprio con- ideatum excede sua idéia. Quer dizer,
teúdo do ideatum. O infinito é próprio
a distância que separa ideatum e idéia
do ser transcendente enquanto trans-
constitui o próprio conteúdo do
cendente, o infinito é o absolutamente
outro. Pensar o infinito, o transcenden- ideatum.
te, o Estrangeiro, não é então pensar Considere-se em destaque as den-
um objeto. É pensar o que não tem os sas proposições na continuidade do
traços do objeto, na realidade é fazer texto:
mais ou melhor do que pensar. O infi-
nito no finito, o mais no menos que se O infinito é próprio do ser trans-
realiza pela idéia do Infinito, produz- cendente enquanto transcendente,
se como Desejo. Não como um Desejo o infinito é o absolutamente outro.
que a posse do Desejável apazigua,
Pensar o infinito, o transcendente,
mas como Desejo do Infinito que o de-
sejável suscita, em lugar de satisfazer.
o Estrangeiro, não é então pensar
Desejo perfeitamente desinteressado um objeto.
bondade.20
O termo Estrangeiro é próprio da
É preciso entender o que diz no in- tradição bíblica da qual se alimenta
terior do pensamento que diz. É sem- Emmanuel Lévinas, tal como muitos se
pre preciso dizer o dito.21 Lévinas se- alimentam da mitologia grega. Está
culariza a idéia do infinito de Des- presente na quatríade do profeta Isaías,
cartes. Ela diz respeito à relação do profeta ao modo dos celebrados poetas
Mesmo [do eu] com o Outro [do eu]. gregos Homero e Hesíodo. Não sei
Todavia, trata-se de uma estranha rela- por que tanto se celebra a cultura helê-
nica contra a cultura semita . A qua-
tríade é a seguinte: o pobre (que não
20. LÉVINAS, Emmanuel. (1988), Totalité et Infini, tem recursos econômicos), a viúva
op. cit., pp. 18-23.
21. LÉVINAS, Emmanuel. (1978), Autrement
(que não tem marido que a sustente),
quêtre ou au-delà de lessence. La Haye, Martinus
Nijhoff.
o órfão (que não tem abrigo que o que os homens estão juntos. Sempre se
recolha), o estrangeiro (que não tem soube disso ao se falar do segredo da
pátria onde pisar). Em síntese, são os subjetividade. Mas este segredo foi ri-
condenados da terra, que hoje chama- dicularizado por Hegel.22
mos de excluídos. Pois bem, para
Lévinas, a única idéia que lhes cabe é a Prosseguindo
idéia do infinito!
Por fim: Há também em Emmanuel Lévinas
o emprego do termo infinição. Es-
O infinito no finito, o mais no me- creve no Préface de Totalité et Infini:
nos que se realiza pela idéia do In-
A relação com o infinito não pode, por
finito, produz-se como Desejo.
certo, ser dita em termos de experiên-
Não como um Desejo que a posse
cia, porque o infinito desborda o pen-
do Desejável apazigua, mas como samento que o pensa. Nesse transbor-
Desejo do Infinito que o desejável damento, precisamente se produz a sua
suscita, em lugar de satisfazer. De- própria infinição, de sorte que será pre-
sejo perfeitamente desinteressado ciso dizer a relação com o infinito em
bondade. outros termos que não em termos de
experiência objetiva. Mas, se experiên-
Veja-se que idéia do Infinito vira cia significa precisamente relação com
desejo do Infinito, contanto que seja o absolutamente outro... a relação com
o infinito plenifica a experiência por
desejo perfeitamente desinteressado
excelência.
bondade. Para muitos bondade é ilu-
são ou utopia, como se a política pudesse
Não é fácil, contudo se pode enten-
tomar todo o lugar da ética!
der. Se a relação com o infinito é re-
A relação com Outrem é infinita!
lação com outrem, não se entenda que
Mas, a separação do face a face não é
outrem seja ontologicamente infinito!
tragédia! A história está aí, sem prede-
Seria o Deus cartesiano. É infinita por-
terminação, infinita, metafísica, sem
que desborda o pensamento que o pen-
termo conclusivo, sempre futura. Aven-
sa. Por isso, na relação com outrem,
tura da bondade e generosidade! Se-
se produz [da relação] a sua própria
gredo do homem:
infinição. Não será
Minha vida e a história não formam
em termos de experiência objetiva. Mas,
totalidade. O comum que permite falar
se experiência significa precisamente
de sociedade objetivada, e pelo qual o
relação com o absolutamente outro... a
homem se assemelha a coisa e se indi-
relação com o infinito plenifica a expe-
vidualiza como coisa, não é primeiro.
riência por excelência.
A verdadeira subjetividade humana é
indiscernível, na expressão de Leibniz,
e não é como indivíduos de um gênero 22. LÉVINAS, Emmanuel. (1982), Éthique et Infini:
Secret et liberté, op. cit., pp. 67-75.
Ainda é preciso citar Emmanuel Lé- de, o Mesmo, o mesmo do eu, no entan-
vinas para dar crédito ao que escrevo: to contém em si o que não pode nem
conter nem receber pela força somente
A idéia do infinito é o modo de ser a de sua identidade.
infinição do infinito. O infinito não
existe antes para se revelar em seguida. A idéia do infinito é o modo de ser
Sua infinição se produz como revela- da subjetividade. Significa que o infi-
ção, como inserção em mim de sua nito da subjetividade é a infinição da
idéia. Produz-se no fato inverossímil subjetividade. Subversão da subjetivi-
em que um ser separado, fixo à sua dade moderna, porque o famigerado
identidade, o Mesmo, o mesmo do eu, sujeito (Eu penso, je pense, Ich denke)
no entanto contém em si o que não pode se sujeita a Outrem! Paradoxo: sujeitan-
nem conter nem receber pela força so-
do-se vira sujeito!
mente de sua identidade. A subjetivi-
dade realiza essas exigências impos-
síveis: o fato supreendente de conter Concluindo
mais do que é possível conter. Este li-
vro apresentará a subjetividade como Costumo dizer aos meus alunos de
acolhedora de Outrem, como hospita- filosofia que é mais fácil ler Kant, Hegel,
lidade. Nela se consuma a idéia do in- Heidegger do que ler Lévinas.24 Para
finito. A intencionalidade, onde o pen- ilustrar, o testemunho é de Enrique
samento permanece adequação ao obje- Dussel:
to, não define então a consciência no
seu nível fundamental. Todo saber en-
Quando li pela primeira vez o livro de
quanto intencionalidade já supõe a
Lévinas Totalidade e Infinito, produziu-
idéia do infinito, a inadequação por ex-
se em meu espírito um desencaixe de
celência.23
tudo que até então fora apreendido.
Conversando pessoalmente em Paris,
Há revelação da infinição da subje- no início de 1971, pude comprovar o
tividade. Essa revelação é a inserção em grau de semelhança de nosso pensa-
mim da idéia do infinito. Também mento com o do filósofo francês.25
Descartes diz de inserção em mim da
idéia do infinito, operada por Deus. Certamente, tratando-se sobretudo
Lévinas, porém, diz que a infinição se de Emmanuel Lévinas, muitas coisas
produz: ficaram obscuras. Mas, espero que al-
gumas tenham ficado claras. Termino
Produz-se no fato inverossímil em que
um ser separado, fixo à sua identida-
24. Cf. DERRIDA, Jacques. (1967), Violence et
23. Cf. CINTRA, Benedito Eliseu Leite. (1996), Métaphysique. Essai sur la pensée dEmmanuel
Lévinas: O Prefácio de Totalité et Infini - Re- Lévinas. In: Lécriture et la différence. Paris, Seuil.
vista Brasileira de Filosofia - Instituto Brasileiro de 25. DUSSEL, Enrique e GUILLOT, Daniel. (1975),
Filosofia São Paulo SP 43(184):436-468 out.- Liberación latinoamericana y Emmanuel Lévinas.
dez; 44(185): 67-94 jan-mar. 1997. Buenos Aires, Bonum.
Recebido em 28/8/2002
Aprovado em 30/10/2002