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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — EMMANUEL LÉVINAS 107

Emmanuel Lévinas
e a idéia do infinito

BENEDITO ELISEU LEITE CINTRA

Resumo Emmanuel Lévinas, discourses the origins


of thought of this French Lithuanian Jew,
O autor, depois de uma breve apresen- mainly as it appears in his maximum work
tação do “fenomenólogo” Emmanuel Totalité et Infini. It indicates how the
Lévinas, discorre sobre as origens do pen- philosopher assumed at Descartes the
samento desse judeo-lituano-francês, prin- “idea of the infinite”, however just in his
cipalmente como aparece em sua obra má- formal outline: “his ideatum exceeds his
xima Totalité et Infini. Indica como o filóso- idea”. Lévinas transfers, into the experience
fo assumiu de Descartes a “idéia do infini- of the face to face, the idea of the infinite,
to”, contudo apenas em seu esquema for- where it becomes wisdom to someone else.
mal: “seu ideatum excede sua idéia”. Lévinas Equally it turns into “desire of the
transfere para a experiência do face a face, invisible” or “metaphysic desire”, from
a idéia do infinito, onde esta se torna saber where the ethics is made first philosophy.
para outrem. Igualmente se torna “desejo The man is suspended to his own freedom,
do invisível” ou “desejo metafísico”, de justifying himself by goodness and
onde a ética se faz filosofia primeira. O generosity.
homem está suspenso à sua própria liber- Key-words: Lévinas; phenomenology;
dade, a se justificar pela bondade e a genero- idea of the infinite; face to face; ethics.
sidade.
Palavras-chave: Lévinas; fenomeno-
logia; idéia do infinito; face a face; ética. Começando

Abstract Emmanuel Lévinas é ainda pouco


conhecido do público acadêmico no
The author, after an abbreviated Brasil. É um pensador judeo-lituano-
presentation of the “phenomenologist” francês. Judeu, porque nascido desse

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povo. Lituano, porque nasceu em “Totalité et Infini: essai sur l’extériori-


Kaunas, na Lituânia. Francês, porque té”, foi escrito por Emmanuel Lévinas
adotou a cidadania francesa. Diz que para a sua livre-docência (Doctorat ès
tem três solos lingüísticos: o hebraico, Lettres) na Sorbonne. Tornou-se a obra
por sua origem judaica; o russo, falado de referência para seu pensamento, da
na Lituânia, e o francês, porque escre- qual sempre fará, em seguida, retoma-
ve nessa língua. Então também diz que da reflexiva. A respeito do livro há uma
pensa nesses três idiomas. Por certo, história contada por Jacques Taminiaux
isso oferece desafio adicional na leitu- nas celebrações do Centenário da Fun-
ra de suas obras. dação do Instituto Superior de Filoso-
Lévinas nasceu no dia 25 de de- fia da Universidade de Lovaina. Na
zembro de 1905 e faleceu em 25 de sessão dedicada ao “movimento
dezembro de 1995. Emigrou para a fenomenológico”, sua exposição traz a
França em 1923. Deste ano até 1930 es- seguinte passagem:
tudou filosofia em Estrasburgo, parti-
cipando em 1928-1929 de seminários A coleção Phaenomenologica tinha nas-
com Husserl e com Heidegger em cido: o primeiro volume fora um ma-
Friburgo, na Brisgóvia. Em 1930 dou- nuscrito de Eugen Fink. Entre os que
torou-se em filosofia com a tese La logo o seguiram, me lembro de um es-
pesso calhamaço mal datilografado,
théorie de l’intuition dans la
coberto de rasuras e correções manus-
phénoménologie de Husserl,1 obra pre- critas, que Van Breda me entregou
miada pelo Institut de France. Foi dos imperiosamente: “Leia isso. Preciso de
primeiros introdutores da fenomenolo- um parecer detalhado dentro de quin-
gia husserliana na França, tendo tra- ze dias. Deus sabe que amo o autor,
duzido, em parceria com Mlle. G. Peiffer, mas vejo que está cheio de críticas a
Méditations cartésiennes, de Husserl. O Husserl. Compreenda que hesito, mas
judeu Emmanuel Lévinas foi prisioneiro confio em você”. Era Totalité et Infini.
em campos de concentração nazistas de Depois de quinze dias, assegurei ao
Padre Van Breda de que o texto era de
1939 a 1945, na Bretanha e na Alema-
extrema importância e deveria ser pu-
nha. Então soube que sua família tinha sido
blicado com toda prioridade. Feliz-
morta na Lituânia. Ensinou nas Universi- mente logo se pôs do meu lado, e, como
dades de Poitiers, Paris-Nanterre, Paris- eu sabia do que se tratava, fez-me seu
Sorbonne, Lovaina, Utrecht e Jerusalém.2 representante na Sorbonne na defesa
de Lévinas. Merleau-Ponty, acometi-
do de crise cardíaca poucos dias an-
1. LÉVINAS, Emmanuel.(1984), La théorie de l’in-
tuition dans la phénoménologie de Husserl. Paris, Vrin. tes, fora substituído na banca por
2. LÉVINAS, Emmanuel. (1976),Difficile liberté: Jankélévitch, que saudou o laureando
essais sur le judaïsme. Paris, Albin Michel, Cf. — cito de memória — desta forma:
CINTRA, Benedito Eliseu Leite. (1998), “Duas no- “Caro Senhor, felicito-o por nos ter
tas sobre Emmanuel Lévinas”. Revista Brasileira de enfim desembaraçado desse pensa-
Filosofia. São Paulo, Instituto Brasileiro de Filoso- mento alemão que nos fez tanto mal!”.
fia, vol. XLIV, fasc. 192, out-dez, pp. 428-446.

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Lévinas com espanto retorquiu sem raison dialectique6, Sartre entendia a


demora: “Senhor, mas eu sou feno- intencionalidade de Husserl à maneira
menólogo!“.3 de Lévinas:

Fenomenólogo, mas não tanto! Jus- Contra a filosofia digestiva do empi-


tamente em Totalité et Infini 4 diz que “a riocriticismo, do neokantismo, contra
fenomenologia husserliana tornou pos- todo “psicologismo”, Husserl não se
sível a passagem da ética à exteriori- cansa de afirmar que não podemos dis-
dade metafísica”. Isso em semelhança solver as coisas na consciência. Vedes
a que o “idealismo” de Platão tornou esta árvore, certo. Mas a vedes no lu-
possível o “realismo” de Aristóteles. gar mesmo em que está: à beira da es-
trada, no meio da poeira, sozinha e
Se, conforme jargão de certa aristotélica
curvada sob o calor… Não poderia
medieval, nihil in intellectu quod prius entrar na vossa consciência, porque a
non fuerit in sensu, “nada no intelecto árvore não é da mesma natureza que a
que antes não esteja no sentido”, Lévi- consciência... É que Husserl vê na cons-
nas repete para a fenomenologia “In- ciência um fato irredutível que nenhu-
tencionalidade e sensação”. Sob este ma imagem física pode manifestar...
título, escreve: Conhecer é “explodir para”, arrancar-
se da úmida intimidade gástrica e des-
A intencionalidade trazia a idéia nova lizar para fora além de si, rumo ao que
de uma saída de si, acontecimento pri- não é si mesmo, para longe, para junto
mordial que condicionava todos os da árvore e no entanto fora dela, por-
outros, não podendo ser interpretado que ela me escapa e me rejeita... A cons-
por qualquer movimento mais pro- ciência é clara como um grande vento,
fundo e mais interno da Alma. Esta não há nada dentro dela, exceto um
transcendência prevalecia mesmo so- movimento para fugir de si, um desli-
bre a consciência de si... No primeiro zamento para fora de si; se, impos-
contacto com Husserl só contava essa sivelmente, entrásseis numa consciên-
abertura, essa presença no mundo “na cia, “em” uma consciência, seríeis to-
rua e nas estradas” e essa revelação de mados por um turbilhão e expelidos
que em breve se iria falar.5 para fora, para junto da árvore, expos-
tos à poeira, porque a consciência não
tem “dentro”; não é senão o “fora” dela
Isso lembra Sartre. Já muito antes
mesma... o sentido profundo da desco-
de sua obra monumental, Critique de la
berta que Husserl exprime nessa famo-
sa frase: “Toda consciência é consciên-
cia de alguma coisa”. Não é preciso
3. TAMINIAUX, Jacques. (1990), “Centenaire de
algo mais para acabar com a frouxa
la Fondation de L’INSTITUT SUPÉRIEUR DE PHILOSO-
PHIE”. Revue Philosophique de Louvain, 88:250, mai.
filosofia da imanência… A filosofia da
4. LÉVINAS, Emmanuel. (1988), Totalité et Infini: transcendência nos joga sobre a gran-
essai sur l’extériorité. 4ème édition. Dordrecht/
Boston/London, Kluwer Academic Publishers.
5. LÉVINAS, Emmanuel. (1967), En découvrant 6. SARTRE, Jean-Paul. (1960), Critique de la raison
l’existence avec Husserl et Heidegger. Paris, Vrin. dialectique. Paris, Gallimard.

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de estrada, no meio das ameaças, sob papéis, na Proximidade estamos face a


uma luz ofuscante... Esta necessidade face. “Face a face” é primordial em
para a consciência de existir como Lévinas, mais do que um mero leitmotiv
consciência de outra coisa, Husserl a de seu pensamento, experiência origi-
denomina “intencionalidade”.
nária do inter-humano, quer dizer, do
Husserl reinstalou o horror e o charme
nas coisas. Restituiu-nos o mundo dos humano: a posteriori na função de a priori.
artistas e dos profetas: medonho, hos- Experiência originária, na proximida-
til, perigoso, com enseadas de graça e de ética de alguém, de nudez sem más-
de amor. Abriu espaço livre para um cara. Por conseguinte: La morale n’est pas
novo tratado das paixões que se inspi- une branche de la philosophie, mais la
re nesta verdade tão simples mas tão philosophie première, “a moral não é um
desconhecida por nossos refinados… ramo da filosofia, mas a filosofia pri-
Não é mais em um não sei qual retiro meira”.9
que a nós mesmos haveríamos de nos
descobrir: é na rua, na cidade, no meio
da multidão, coisa entre as coisas, ho-
Caminhando
mem entre os homens.7
Em 1951 Lévinas publicou em Revue
O subtítulo de Totalité et Infini é de Métaphysique et de Morale o texto “A
“essai sur l’extériorité”. Mas, de qual filosofia e a idéia do infinito”.10 Ele apa-
“exterioridade” Lévinas fala? Sartre diz rece republicado em En découvrant
para nos descobrirmos “coisa entre as l’existence avec Husserl et Heidegger.11 Um
coisas, homem entre os homens”. Lé- texto na origem de Totalité et Infini,
vinas diz originariamente da exte- onde, dentro de LE MÊME ET L’AUTRE,
rioridade de “outrem”, João, Maria, A. MÉTAPHYSIQUE ET TRANSCENDANCE
Pedro, Josefa... É para eles que se repor- está “5. La transcendance comme idée
ta “a idéia do infinito”. Enrique Dussel 8 de l’infini”.12
interpreta muito bem Lévinas ao dizer Seria longo explicar adequadamen-
de diferente e distinto. O diferente se dá te todas essas subsunções. Brevemen-
na Totalidade e o distinto se dá na Pro- te, se o “face a face” se dá entre o “eu
ximidade. Na Totalidade cumprimos de mim mesmo” e o “outro de mim mes-

7. SARTRE, Jean-Paul. (1947), “Une idée fonda-


9. LÉVINAS, Emmanuel. (1988), Totalité et Infini,
mentale de la phénoménologie de Husserl:
L’Intentionnalité (janvier 1939)”. Situations I. Pa- op. cit., p. 281.
ris, Gallimard, p.29-32. 10. LÉVINAS, Emmanuel. (1951), “La philoso-
phie et l’idée de l’infini” Revue de Métaphysique et
8. DUSSEL, Enrique. (1996), Para uma ética da li-
bertação latino-americana. São Paulo, Piracicaba, Morale, 56(1):88-98, jan.-mars.
Loyola, UNIMEP, sd., 5v. Cf. CINTRA, Benedito 11. LÉVINAS, Emmanuel. (1967), En découvrant
Eliseu Leite. “A verdade supõe a justiça”. Refle- l’existence avec Husserl et Heidegger, op. cit.,
xão. Revista do Instituto de Filosofia e Teologia pp. 165-178.
da Pontifícia Universidade Católica de Campi- 12. LÉVINAS, Emmanuel. (1988), Totalité et Infini,
nas, 21(66):150-175 set.-dez. op. cit., pp. 18-23.

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mo”, tomo a atitude de “primado do por isso implicando, na liberdade de cada


mesmo ou narcisismo” ou tomo a atitu- um, bondade e generosidade. As próprias
de “metafísica e transcendente”. O ter- palavras de Lévinas:
mo “metafísica” tem em Lévinas signi-
ficado próprio. Não é o de Kant, afinal O desejo metafísico tende para coisa
com os paradoxos das idéias meramen- totalmente outra, para o absolutamente
te reguladoras da Dialética Transcen- outro... Na base do desejo comumente
dental; nem o de Heidegger ao subs- interpretado encontrar-se-ia a neces-
sidade (bésoin): o desejo marcaria um
tituir a metafísica ocidental por esque-
ser indigente e incompleto ou decaí-
cida ontologia. Para Lévinas a ética tem do de sua grandeza passada. Coinci-
o nome de metafísica porque se refere à diria com a consciência do que foi
transcendência de “outrem”, que não é perdido. Seria essencialmente nostal-
meramente física. O indicativo dessa gia, saudade. Mas, desse modo, nem
transcendência é “a idéia do infinito”. sequer suspeitaria o que é o verdadei-
Diga-se também de desejo e idéia do ramente outro... Porque se fala levia-
infinito, seguindo o título do primeiro namente de desejos satisfeitos ou ne-
parágrafo de Totalité et infini, “Désir de cessidades sexuais ou, ainda, de ne-
cessidades morais e religiosas... O de-
l’invisible”, “Desejo do invisível”. Ao
sejo metafísico tem outra intenção —
lado de certa solenidade do estilo, pa-
deseja o que está além de tudo o que
rece que todo o destino do livro se joga possa simplesmente completá-lo. É
nessas primeiras linhas. Há comoção como a bondade — o Desejado não o
nas imagens e nas idéias que inaugu- cumula mas o escava.
ram a primeira seção do texto. Tudo Generosidade alimentada pelo Dese-
para marcar que “o desejo metafísico jado, relação que não é desapareci-
tende para coisa totalmente outra, para o mento da distância, não é aproxima-
absolutamente outro”. Considere-se que ção ou, tomando de mais perto a es-
Lévinas não está dizendo de Deus, pois sência da generosidade e da bonda-
de, relação cuja positividade vem do
não faz teologia!
distanciamento, da separação... Dis-
Totalmente, absolutamente! Se usar- tanciamento que só é radical se o de-
mos advérbios como radicalmente, fun- sejo não é possibilidade de antecipar
damentalmente, essencialmente, substan- o desejável, não o pensa previamente
cialmente, ultimamente, ou um outro que e vamos para ele numa aventura, isto
se possa ainda sugerir, estaremos só é, para a alteridade absoluta, inantici-
representando o irrepresentável: a se- pável, como vamos para a morte... A
paração infinita de Outrem no face a face, visão é adequação da idéia e a coisa,
“relação última e irredutível que ne- compreensão que engloba. O Desejo é
desejo do absolutamente Outro... que
nhum conceito abrange”.
precisamente, entende o distanciamen-
O face a face não é a priori como con-
to, a alteridade e a exterioridade do
ceito e menos ainda como princípio ló- Outro. Para o Desejo esta alteridade,
gico ou axioma. É fato da experiência inadequada à idéia, tem um sentido.
cotidiana, fato metafísico, isto é, ético, É entendida como alteridade de Ou-

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trem e como do Altíssimo... Morrer do rosto o faz sair do ser enquanto cor-
pelo invisível — eis a metafísica.13 relativo ao saber... O rosto é o que não
se pode matar, cujo sentido está em di-
Experiência metafísica ou ética, o zer: “Tu não matarás”... A exigência
face a face se dá pelo desejo bom e gene- ética não é necessidade ontológica. A
roso, contanto que se o deseje! Nele, fica interdição de matar não torna impos-
sível o assassínio... A aparição no ser
o homem suspenso à sua própria liber-
destas “estranhezas éticas” (“étran-
dade, a se justificar pela bondade e a ge- getés éthiques”) — humanidade do ho-
nerosidade. mem — é uma ruptura do ser.15
A respeito da natureza ética do face
a face, Lévinas lembra “Tu não matarás”, ou como verte
no modo afirmativo, “farás tudo para
a importância em Husserl da que o outro viva”.16 Há curiosa ou es-
intencionalidade axiológica. O caráter
tranha proposição de Lévinas: “O ho-
de valor vem de uma atitude específi-
mem que come é o mais justo dos ho-
ca da consciência, de uma inten-
cionalidade não teorética, liminar- mens”,17 porque, afinal, a primeira jus-
mente irredutível ao conhecimento.14 teza ou justiça primeira é o “amor à
vida”.18 Proposição ética a fundamen-
Todavia, quase a cada passo de sua tar qualquer projeto político!
reflexão, Lévinas afasta da exte- Face a face, o rosto é interioridade
rioridade do rosto a experiência presi- exterior a mim e exterioridade interior a
dida pelo conhecimento. A fenomeno- si. Lévinas fala de segredo, somente pelo
logia, neste ponto, é abandonada por qual é possível o pluralismo da socie-
Lévinas: dade. Conseqüentemente,

Não sei se posso falar de fenomenologia


do rosto, pois a fenomenologia descre- 15. LÉVINAS, Emmanuel. (1982), Éthique et Infini,
ve o que aparece. Da mesma forma, me op. cit., pp. 79-80. Visage é o termo de Lévinas,
aqui traduzido por “rosto”. Caldas Aulete regis-
pergunto se posso falar de olhar volta-
tra visagem em português, também com sentido
do para o rosto, porque o olhar é co- de cara, rosto, mas não julgo, por ser termo antigo,
nhecimento, percepção. Penso antes que se deva empregá-lo para a significação
que o acesso ao rosto é liminarmente levinasiana. Susin traduz por “olhar”, olhar de
ético... O rosto é significação sem con- alguém por detrás de seu aspecto para mim (SUSIN,
texto... O rosto tem sentido sozinho. Luiz Carlos. O homem messiânico. Petrópolis, Vo-
Você é você. Por isso, pode-se dizer que zes, 1984).
o rosto não é “visto”... A significação 16. LÉVINAS, Emmanuel (1984), Transcendance
et intelligibilité. Genève, Labor et Fides. Cf.
LÉVINAS, Emmanuel. (1992), De Dieu qui vient
13. LÉVINAS, Emmanuel (1988), Totalité et Infini, à l’idée. Paris, Vrin.
op. cit., pp. 1-5. 17. LÉVINAS, Emmanuel. (1986), De l’existence à
14. LÉVINAS, Emmanuel. ( 1982), Éthique et Infini: l’existant. Paris, Vrin.
Dialogues avec Philippe Nemo, Paris, Fayard, 18. LÉVINAS, Emmanuel.(1988), Totalité et Infini,
1982. op. cit., pp. 81-93.

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se relações éticas devem conduzir a Não devo imaginar que não concebo o
transcendência a seu termo, é que o infinito por uma verdadeira idéia, mas
essencial da ética está na sua intenção somente pela negação do que é finito,
transcendente e porque toda intenção do mesmo modo que compreendo o
transcendente não tem a estrutura repouso e as trevas pela negação do
nóesis-noéma. movimento e da luz: pois, ao contrá-
rio, vejo manifestamente que há mais
Como foi indicado, Lévinas tem pa- realidade na substância infinita do
rágrafo em Totalité et Infini com o título que na substância finita e, portanto,
“A transcendência como idéia do Infi- que, de alguma maneira, tenho em mim
a noção do infinito anteriormente à do
nito”. Do que vimos, compreende-se
finito, isto é, de Deus antes que de mim
que diga: “A presença de um ser que mesmo. Pois, como seria possível que
não entra na esfera do Mesmo, presen- eu pudesse conhecer que duvido e que
ça que a excede, fixa seu ‘estatuto’ de desejo, isto é, que me falta algo e que
infinito”. não sou inteiramente perfeito, se não
Comumente se pensa o infinito a tivesse em mim nenhuma idéia de um
partir do finito: “o infinito supõe o fi- ser mais perfeito que o meu, em com-
nito que ele amplia infinitamente”. As- paração ao qual eu conheceria as ca-
sim é em Kant, para quem “a noção de rências de minha natureza?... E isto
não deixa de ser verdadeiro, ainda que
infinito se põe como um ideal da ra-
eu não compreenda o infinito... pois é
zão”. Hegel “defende a positividade
da natureza do infinito que minha na-
do infinito”, mas exclui toda multipli- tureza, que é finita e limitada, não pos-
cidade: sa compreendê-lo.19

O infinito deverá englobar todas as re- Lévinas toma esse “esquema for-
lações. Como o deus de Aristóteles, só mal” da idéia do infinito para “pensar”
se refere a si, que seja apenas ao fim de
a relação com Outrem. E não a partir
uma história. A relação de um particu-
lar com o infinito equivale à entrada da existência de Deus, que Descartes
desse particular na soberania do Esta- vê implicada no fato da idéia: o face a
do. Torna-se infinito ao negar sua pró- face é a experiência da idéia, sem re-
pria finitude. curso a Deus enquanto termo da idéia:

Opondo-se a Kant e a Hegel, Lévi- A relação do Mesmo com o Outro, sem


nas toma de Descartes a “idéia do infi- que a transcendência da relação corte
nito”, à parte sua “prova” da existên- os laços que a relação implica, mas
também sem que esses laços unam num
cia de Deus Infinito, que precisamente
Todo o Mesmo e o Outro, é fixada na
não pertence ao caso da “idéia do infi-
situação descrita por Descartes onde o
nito” no filósofo judeu-lituano-francês.
Conhecemos o que diz Descartes na
Terceira de suas Meditações: 19. DESCARTES, René. Meditações. (1973), Trad.
J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo,
Abril Cultural.

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“eu penso” entretém com o Infinito, ção: “Sem que a transcendência da re-
que não pode de nenhum modo conter lação corte os laços que a relação im-
e do qual está separado, a relação cha- plica” e “Sem que esses laços unam num
mada “idéia do infinito”. Por certo, as Todo o Mesmo e o Outro”. Paradoxal-
coisas, as noções matemáticas e mo-
mente de “relação sem relação” não cor-
rais são-nos também presentes, segun-
do Descartes, por idéias e delas se dis- ta os laços pois não une num Todo o
tinguem. Mas a idéia do infinito tem Mesmo e o Outro. O “eu penso” entre-
isso de excepcional: seu ideatum exce- tém com Outrem, quem não pode de
de sua idéia, ao passo que, para as coi- nenhum modo conter e do qual está
sas, a coincidência total de suas reali- separado, a relação chamada “idéia do
dades “objetiva” e “formal” não fica infinito” por Descartes. O “excep-
excluída... A distância que separa cional” da idéia do infinito é que “seu
ideatum e idéia constitui o próprio con- ideatum excede sua idéia”. Quer dizer,
teúdo do ideatum. O infinito é próprio
“a distância que separa ideatum e idéia
do ser transcendente enquanto trans-
constitui o próprio conteúdo do
cendente, o infinito é o absolutamente
outro. Pensar o infinito, o transcenden- ideatum.”
te, o Estrangeiro, não é então pensar Considere-se em destaque as den-
um objeto. É pensar o que não tem os sas proposições na continuidade do
traços do objeto, na realidade é fazer texto:
mais ou melhor do que pensar. O infi-
nito no finito, o mais no menos que se — O infinito é próprio do ser trans-
realiza pela idéia do Infinito, produz- cendente enquanto transcendente,
se como Desejo. Não como um Desejo o infinito é o absolutamente outro.
que a posse do Desejável apazigua,
— Pensar o infinito, o transcendente,
mas como Desejo do Infinito que o de-
sejável suscita, em lugar de satisfazer.
o Estrangeiro, não é então pensar
Desejo perfeitamente desinteressado — um objeto.
bondade.20
O termo “Estrangeiro” é próprio da
É preciso entender o que diz no in- tradição bíblica da qual se alimenta
terior do pensamento que diz. É sem- Emmanuel Lévinas, tal como muitos se
pre preciso “dizer o dito”.21 Lévinas se- alimentam da mitologia grega. Está
culariza a “idéia do infinito” de Des- presente na quatríade do profeta Isaías,
cartes. Ela diz respeito à “relação do profeta ao modo dos celebrados poetas
Mesmo [do eu] com o Outro [do eu]”. gregos Homero e Hesíodo. — Não sei
Todavia, trata-se de uma estranha rela- por que tanto se celebra a cultura helê-
nica contra a cultura semita —. A qua-
tríade é a seguinte: “o pobre” (que não
20. LÉVINAS, Emmanuel. (1988), Totalité et Infini, tem recursos econômicos), “a viúva”
op. cit., pp. 18-23.
21. LÉVINAS, Emmanuel. (1978), Autrement
(que não tem marido que a sustente),
qu’être ou au-delà de l’essence. La Haye, Martinus
Nijhoff.

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“o órfão” (que não tem abrigo que o que os homens estão juntos. Sempre se
recolha), “o estrangeiro” (que não tem soube disso ao se falar do segredo da
pátria onde pisar). Em síntese, são “os subjetividade. Mas este segredo foi ri-
condenados da terra”, que hoje chama- dicularizado por Hegel.22
mos de excluídos. Pois bem, para
Lévinas, a única idéia que lhes cabe é a Prosseguindo
“idéia do infinito”!
Por fim: Há também em Emmanuel Lévinas
o emprego do termo “infinição”. Es-
— O infinito no finito, o mais no me- creve no “Préface” de Totalité et Infini:
nos que se realiza pela idéia do In-
A relação com o infinito não pode, por
finito, produz-se como Desejo.
certo, ser dita em termos de experiên-
Não como um Desejo que a posse
cia, porque o infinito desborda o pen-
do Desejável apazigua, mas como samento que o pensa. Nesse transbor-
Desejo do Infinito que o desejável damento, precisamente se produz a sua
suscita, em lugar de satisfazer. De- própria infinição, de sorte que será pre-
sejo perfeitamente desinteressado ciso dizer a relação com o infinito em
— bondade. outros termos que não em termos de
experiência objetiva. Mas, se experiên-
Veja-se que “idéia do Infinito” vira cia significa precisamente relação com
“desejo do Infinito”, contanto que seja o absolutamente outro... a relação com
o infinito plenifica a experiência por
“desejo perfeitamente desinteressado
excelência.
— bondade”. Para muitos bondade é ilu-
são ou utopia, como se a política pudesse
Não é fácil, contudo se pode enten-
tomar todo o lugar da ética!
der. Se “a relação com o infinito” é re-
A relação com Outrem é infinita!
lação com outrem, não se entenda que
Mas, a separação do face a face não é
outrem seja “ontologicamente” infinito!
tragédia! A história está aí, sem prede-
Seria o Deus cartesiano. É infinita “por-
terminação, infinita, metafísica, sem
que desborda o pensamento que o pen-
termo conclusivo, sempre futura. Aven-
sa”. Por isso, na relação com outrem,
tura da bondade e generosidade! Se-
“se produz [da relação] a sua própria
gredo do homem:
infinição”. Não será
Minha vida e a história não formam
em termos de experiência objetiva. Mas,
totalidade. O comum que permite falar
se experiência significa precisamente
de sociedade objetivada, e pelo qual o
relação com o absolutamente outro... a
homem se assemelha a coisa e se indi-
relação com o infinito plenifica a expe-
vidualiza como coisa, não é primeiro.
riência por excelência.
A verdadeira subjetividade humana é
indiscernível, na expressão de Leibniz,
e não é como indivíduos de um gênero 22. LÉVINAS, Emmanuel. (1982), Éthique et Infini:
“Secret et liberté”, op. cit., pp. 67-75.

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Ainda é preciso citar Emmanuel Lé- de, o Mesmo, o mesmo do eu, no entan-
vinas para dar crédito ao que escrevo: to contém em si o que não pode nem
conter nem receber pela força somente
A idéia do infinito é o modo de ser — a de sua identidade.
infinição — do infinito. O infinito não
existe antes para se revelar em seguida. A idéia do infinito é o modo de ser
Sua infinição se produz como revela- da subjetividade. Significa que o infi-
ção, como inserção em mim de sua nito da subjetividade é a infinição da
idéia. Produz-se no fato inverossímil subjetividade. Subversão da subjetivi-
em que um ser separado, fixo à sua dade moderna, porque o famigerado
identidade, o Mesmo, o mesmo do eu, “sujeito” (Eu penso, je pense, Ich denke)
no entanto contém em si o que não pode se sujeita a Outrem! Paradoxo: sujeitan-
nem conter nem receber pela força so-
do-se vira sujeito!
mente de sua identidade. A subjetivi-
dade realiza essas exigências impos-
síveis: o fato supreendente de conter Concluindo
mais do que é possível conter. Este li-
vro apresentará a subjetividade como Costumo dizer aos meus alunos de
acolhedora de Outrem, como hospita- filosofia que é mais fácil ler Kant, Hegel,
lidade. Nela se consuma a idéia do in- Heidegger do que ler Lévinas.24 Para
finito. A intencionalidade, onde o pen- ilustrar, o testemunho é de Enrique
samento permanece adequação ao obje- Dussel:
to, não define então a consciência no
seu nível fundamental. Todo saber en-
Quando li pela primeira vez o livro de
quanto intencionalidade já supõe a
Lévinas Totalidade e Infinito, produziu-
idéia do infinito, a inadequação por ex-
se em meu espírito um desencaixe de
celência.23
tudo que até então fora apreendido.
Conversando pessoalmente em Paris,
Há revelação da infinição da subje- no início de 1971, pude comprovar o
tividade. Essa revelação é a inserção em grau de semelhança de nosso pensa-
mim da idéia do infinito. Também mento com o do filósofo francês.25
Descartes diz de inserção em mim da
idéia do infinito, operada por Deus. Certamente, tratando-se sobretudo
Lévinas, porém, diz que a infinição se de Emmanuel Lévinas, muitas coisas
produz: ficaram obscuras. Mas, espero que al-
gumas tenham ficado claras. Termino
Produz-se no fato inverossímil em que
um ser separado, fixo à sua identida-
24. Cf. DERRIDA, Jacques. (1967), “Violence et
23. Cf. CINTRA, Benedito Eliseu Leite. (1996), Métaphysique. Essai sur la pensée d’Emmanuel
“Lévinas: O Prefácio de ‘Totalité et Infini’” - Re- Lévinas”. In: L’écriture et la différence. Paris, Seuil.
vista Brasileira de Filosofia - Instituto Brasileiro de 25. DUSSEL, Enrique e GUILLOT, Daniel. (1975),
Filosofia — São Paulo SP — 43(184):436-468 out.- Liberación latinoamericana y Emmanuel Lévinas.
dez; 44(185): 67-94 jan-mar. 1997. Buenos Aires, Bonum.

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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — EMMANUEL LÉVINAS 117

ainda como uma citação de Lévinas.


Afinal, mais vale ler Lévinas do que
ler sobre Lévinas:

A responsabilidade não é um simples


atributo da subjetividade, como se esta
existisse já em si mesma, antes da rela-
ção ética. A subjetividade não é um
para si; é inicialmente para outrem.

Definir o sujeito como responsável, a


subjetividade como responsabilidade, ain-
da seriam muitas coisas a explicar. Já
se disse que Emmanuel Lévinas é insu-
portável!

Recebido em 28/8/2002
Aprovado em 30/10/2002

Benedito Eliseu Leite Cintra, professor de Ética


no Departamento de Filosofia da PUC-SP. Mem-
bro do Cebel (Centro Brasileiro de Estudos sobre o
pensamento de Emmanuel Lévinas).
E-mail: elcintra@terra.com.br

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