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ISSN – 1807 - 2674

REVISTA

33
de ECONOMIA POLÍTICA
e HISTÓRIA ECONÔMICA
Ano 10 – Número 33 – Janeiro de 2015

Índice
05
Antecedentes Desenvolvimentistas na Formação Intelectual de Raúl
Prebisch
Luiz Eduardo Simões de Souza
18
A integração econômica numa perspectiva teórica e a tipologia
histórica dos processos na América Latina
Fábio Guedes Gomes
Thiago Cavalcanti do Nasscimento
63
Um estudo sobre a Divisão Internacional do Trabalho

Apoena Canuto Cosenza


90
Os escritos de Marx sobre a Irlanda nos anos 1860 e sua relevância para
a compreensão do subdesenvolvimento

Patrick Galba de Paula


123
Arranjos Produtivos Locais: uma nova espacialidade nas políticas
públicas
Kilma Gonçalves Cezar
Elimar Pinheiro do Nascimento
173
A Reprodução do Capital Monopolista
Paulo Sérgio Souza Ferreira
211
Breve histórico das tabelas de insumo-produto no Brasil

Rodrigo Emmanuel Santana Borges


Tiago Camarinha Lopes
233
Entre o Marxista e o Liberal: estudo comparado das obras de Caio
Prado Junior e Fernando Henrique Cardoso
Rodrigo Badaró de Carvalho

272
Entre raios e trovoadas: o debate sobre o projeto da criação da
Eletrobrás no interior do governo Juscelino Kubitschek (1956-61)

Marcelo Squinca da Silva


313
Resenha: COGGIOLA, Osvaldo. Alemanha 1918-1924: Hiperinflação e
Revolução. São Paulo: LCTE, 2010.
2
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, Janeiro de 2015.

Expediente
Número 33, Ano 10, Janeiro de 2015.
Uma publicação semestral do GEEPHE – Grupo de Estudos de Economia Política e História
Econômica.
http://rephe01.googlepages.com
e-mail: rephe01@hotmail.com

Conselho Editorial:

Fernando Almeida
Glaudionor Barbosa
Haruf Salmen Espíndola
Jean Luiz Neves Abreu
Júlio Gomes da Silva Neto
Lincoln Secco
Luiz Eduardo Simões de Souza
Marcos Cordeiro Pires
Marina Gusmão de Mendonça,
Osvaldo Luis Angel Coggiola,
Paulo Queiroz Marques,
Pedro Cezar Dutra Fonseca,
Romyr Conde Garcia,
Rubens Toledo Arakaki,
Vera Lucia do Amaral Ferlini,
Wilson do Nascimento Barbosa
Wilson Gomes de Almeida.

Edição:
Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli

Autor Corporativo:
GEEPHE – Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica.

A REPHE – Revista de Economia Política e História Econômica – constitui mais um periódico acadêmico
que visa promover a exposição, o debate e a circulação de ideias referentes às áreas de história
econômica e economia política. A periodicidade da REPHE é semestral.
3
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Editorial

Este número 33 da Revista de Economia Política e


História Econômica inicia-se com um artigo de Luiz Eduardo
Simões de Souza sobre os antecedentes intelectuais de Raúl
Prebisch, a principal mente por trás da formação da Comissão
Econômica para a América Latina – CEPAL. Fábio Guedes
Gomes e Thiago Cavalcanti do Nascimento abordam a
integração econômica numa perspectiva teórica e a
tipologia histórica dos processos na América Latina. Apoena
Canuto Cosenza realiza um estudo sobre a Divisão
Internacional do Trabalho. Patrick Galba de Paula aborda os
escritos de Marx nos anos 1860 sobre a Irlanda. Kilma
Gonçalves Cezar e Elimar Pinheiro do Nascimento apresentam
as questões dos Arranjos Produtivos Locais (APLs) referentes à
sua espacialidade como políticas públicas. Paulo Sergio Souza
Ferreira apresenta considerações sobre a reprodução do
capital monopolista. Rodrigo Emanuel Borges e Tiago
Camarinha Lopes expõem um breve histórico da elaboração
de matrizes de insumo-produto no Brasil. Rodrigo Badaró de
Carvalho realiza uma comparação entre Fernando Henrique
Cardoso e Caio Prado Júnior, em alguns entrecruzamentos
das obras dos dois estudiosos. Marcelo Squinca aborda a
questão da formação do complexo de abastecimento de
energia elétrica no Brasil. Por fim, na seção de resenhas, Tallyta
Rosane Bezerra de Gusmão examina o livro de Osvaldo
Coggiola sobre a hiperinflaçãoe as condições pré-
revolucionárias na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial.
Agradecemos a colaboração de todos os envolvidos na
elaboração de mais este número da REPHE e convidamos à leitura.

A Editora
4
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Ficha Catalográfica
Revista de Economia Política e História Econômica / Maceió,
Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica -
Número 33, Ano 10, Janeiro de 2015 – Governador Valadares,
GEEPHE, 2007.

Semestral

1. História Econômica. 1.Economia Política


NEPHE
5
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Antecedentes Desenvolvimentistas na
Formação Intelectual de Raúl Prebisch1

Luiz Eduardo Simões de Souza2

RESUMO

O pensamento desenvolvimentista latino-americano, até a presente data,


tem fixado suas raízes mais distantes na formação da primeira geração da
CEPAL, entre 1940 e 1950. Dela participaram vários expoentes das ideias
econômicas latino-americanas, dentre os quais o principal nome foi o
economista argentino Raúl Prebisch (1905 – 1986). Por sua vez, as origens
do pensamento desenvolvimentista podem ser identificadas em espaços
reconhecidamente estabelecidos na história do pensamento econômico.
Assim, o objetivo destas não é outro senão o de apresentar uma
explanação sucinta das influências intelectuais locais que, por diversas
razões, interferiram nas concepções desenvolvimentistas de Raúl Prebisch,
postando-se a um passo – este de análise mais direta e profunda das
especificidades de suas linhas de pensamento – de constituir antecedentes
intelectuais do desenvolvimentismo latino-americano.

Palavras-chave: Desenvolvimentismo; CEPAL; América Latina; Pensamento


Econômico; Argentina; Raúl Prebisch.

ABSTRACT

The ideology and social thought of development in Latin America, since


now, has been established its roots on the first generation of local
economists and social thinkers which formed the Economic Comission for
Latin America (ECLAC), in between the years 1940 and 1950. The most
important of them was the argentinean Raúl Prebisch (1901 – 1986). This
paper aims to show some lines of argentinean economic thought which
influenced Prebisch´s idea of development, with the intent to demonstrate
that it can have its origins found more further in argentinean and latin-
american history of thought.

Keywords: Development; ECLAC; Latin America; Economic Thought;


Argentina; Raúl Prebisch.

1 Artigo apresentado em 16/02/2014 e aprovado em 12/04/2014.


2 Doutor em História Econômica (USP), Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de
Juiz de Fora, UFJF, campus Governador Valadares. E-mail: luiz.simoes@ufjf.edu.br.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

1. Introdução

As origens do pensamento desenvolvimentista podem


ser identificadas em espaços reconhecidamente
estabelecidos na história do pensamento econômico. Há a
obra da Escola Histórica Alemã, da segunda metade do
século XIX, e mesmo economistas como Alfred Marshall e
Vilfredo Pareto gastaram mais do que um apêndice de seus
Princípios de Economia tratando da questão do
desenvolvimento. Há a primazia de J. A. Schumpeter, em sua
Teoria do Desenvolvimento Econômico (1916), no
estabelecimento do problema e na definição de seus limites
de análise e agenda de estudos.
A ideologia que constituiu a demanda pelo estudo
desse problema e estabelecimento de tal agenda de estudos
tem sua origem em aspectos mais remotos. Ao colocar-se o
tema do desenvolvimento em pauta, especialmente em
relação às suas origens mais remotas na chamada periferia
(dentro da própria terminologia cepalina de centro-periferia),
adquire relevância o levantamento das influências sofridas
pelo quadro de pensadores latino-americanos que participou
da constituição política e ideológica da CEPAL na primeira
metade dos anos 1940. Segundo Eduardo Devés Valdés
(2000), à época da formação da CEPAL, a América Latina
vivia a intensificação de um movimento ideológico
caracterizado por uma dualidade entre a afirmação da
identidade latino-americana, e o desejo de inserção na
modernidade, materializada no paradigma das sociedades
industriais constituídas na Europa e nos Estados Unidos da
América. A CEPAL, segundo Valdés (2000, p. 16), teria surgido
nos anos 1940 e 1950 como uma expressão modernizadora,
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

com seu projeto de industrialização da América Latina como


forma de superação dos problemas resultantes da relação
periférica adotada desde tempos coloniais com os centros
metropolitanos. A progressão da CEPAL nos anos seguintes
acompanharia o pêndulo da dualidade apresentada por
Valdés, em que a ideologia desenvolvimentista-industrialista
seria progressivamente questionada, em favorecimento de
uma nova onda pró-identidade latino-americana.
Antes de 1850, a geração dos civilizadores,
capitaneada por Domingo Sarmiento, marca a primeira
afirmação do projeto modernizador, do qual participaram à
época Francisco de Paula González Vigil, Justo Arosemena e
Juán Alberdi. Em 1860, quando dos ataques europeus à
América Latina, deflagrou-se uma onda identitária, marcada
pelas obras de Francisco Bilbao, no Chile, e o Martin Fierro, de
José Hernández, na Argentina. Nos anos 1880, a reação do
ideário modernizador ganhou corpo a partir das extensões do
Positivismo no México, na Argentina e no Brasil, no qual foi a
doutrina hegemônica dos abolicionistas e republicanos. No
início do século XX, a reivindicação culturalista nacionalista
cristalizada no Ariel, de José Rodó, marca uma onda
identitária em que o indigenismo e mesmo o
afroamericanismo seriam culturalmente valorizados. A crise de
1929, a ênfase na proteção das economias nacionais e a
valorização dos nacionalismos estenderia essa última onda
identitária até o final da década de 1930. Com o final da
Segunda Guerra Mundial (1945), e a extensão dos interesses
estadunidenses sobre a América Latina, através das Comissões
Mistas, teria início, com a Comissão Econômica Para a
América Latina (CEPAL), uma nova onda de pensamento
modernizador para a região. Aos ícones já estabelecidos
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

dentro da ideologia desenvolvimentista – o pensamento


macroeconômico keynesiano, as concepções de crédito e
empreendedorismo schumpeterianas, a planificação
econômica decalcada da experiência soviética, e as noções
de Estado do bem-estar social de Gunnar Myrdal e dos países
nórdicos – comporia soma uma primeira leva de expoentes
intelectuais latino-americanos.
Dentre tais expoentes, amplamente divulgados na
historiografia do pensamento desenvolvimentista latino-
americano, escolheu-se mais ou menos arbitrariamente Raúl
Prebisch para o estudo proposto nestas notas. Assim, o
objetivo destas não é outro senão o de apresentar uma
explanação sucinta das influências intelectuais locais que, por
diversas razões, interferiram nas concepções
desenvolvimentistas de Raúl Prebisch, postando-se a um passo
– este de análise mais direta e profunda das especificidades
de suas linhas de pensamento – de constituir antecedentes
intelectuais do desenvolvimentismo latino-americano.
Raúl Prebisch enfrentava uma situação bastante
particular, em comparação aos demais membros fundadores,
à época da constituição da CEPAL. Por um lado, ao já se
tratar de economista intelectualmente estabelecido, tanto
prático (foi presidente do BCRA nos anos 1930), quanto
acadêmico (passou a lecionar na UBA desde sua saída do
BCRA em meados dos anos 1930), além de gozar de certo
prestígio externo. Prebisch, assim, exercia reconhecida
ascendência sobre os demais membros da CEPAL, a qual lhe
rendeu a liderança política e ideológica da mesma por
décadas3.

3 Veja-se para tanto o capítulo “O Grande Heresiarca”, da obra de Celso Furtado, A Fantasia Organizada.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Por outro lado, o fato de já estar política e


ideologicamente consolidado à época também lhe conferia
o ônus de não ter trânsito pelo governo argentino, já que o
peronismo o considerava um inimigo político. Ter participado
efetivamente dos governos argentinos entre 1930 e 1940 o
colocava entre os adversários do governo, dada a lógica
política do peronismo. De pouco adiantaria a postura
“tecnicista” de Prebisch, que, ao contrário do instinto feudal
bastante disseminado no funcionalismo público latino-
americano, preferia remontar à sua postura na época como
algo mais próximo de um burocrata do tipo weberiano,
avaliando seu desempenho a partir dos resultados no âmbito
institucional – criação e consolidação do BCRA, consolidação
de um departamento de estatística do governo, etc – e não
da constituição de uma rede social de intelectuais latino-
americanos preocupados com uma série de temas comuns
que norteariam a constituição da primeira fase ideológica da
CEPAL.
Paradoxalmente, seria justamente a obtenção dessa
segunda meta – a capacidade de aglutinar, com algum
reconhecimento externo e respaldo da comunidade
internacional, a intelectualidade latino-americana, para se
pensar a questão do desenvolvimento da região – o grande
resultado de longo prazo do trabalho de Raúl Prebisch
durante sua vida e a razão do estudo de suas influências
apontarem para alguns antecedentes intelectuais do
desenvolvimentismo na América Latina.

2. Raúl Prebisch e a CEPAL: duas formações

A princípio, tomadas as teses fundamentais da CEPAL, e


os pontos nos quais ela acaba se baseando, a despeito da
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

intenção dos EUA à época com as Comissões Mistas,


encontram-se as mesmas características que remontam a
projetos nacionalistas como os de Sarmiento e José Bonifácio,
ou Rosas e Benjamin Constant, ou mesmo San Martín, e Bolívar,
em última instância.
Tomando-se o pressuposto de que a independência dos
países latino-americanos ainda constitui, mesmo hoje, objeto
de controvérsia, não é fora de propósito assumir-se a
independência e autonomia latino-americana como
prioridade da pauta de qualquer projeto ou iniciativa que
conte com alguma participação ativa de seus quadros
políticos e intelectuais. Então, há o risco de indissociação das
características do pensamento desenvolvimentista da CEPAL
das demais iniciativas empreendidas na região. O critério de
Valdes (2000), portanto, permite a observação do que é
característico da CEPAL, dentro do subconjunto analítico de
projetos “modernizadores”, em seus primórdios, e sua
transição, ao longo de sua primeira fase (1949 – 1970), para o
rol dos projetos de afirmação de “identidade”.
O levantamento das referências da formação
intelectual de Raúl Prebisch constitui, assim, exercício
especulativo do grau de aderência da tese de Valdes a
respeito da CEPAL, ao desagregar-se o conjunto de
observações e suas referências.
Em sua biografia de Prebisch, Carlos Iñiguez (2003), situa
o economista argentino ao lado de pensadores como Juán
Batista Alberdi e Nicolás Avallaneda, como demonstrativos do
caráter bipolar de sua formação, marcado por um lado pelo
interesse pela modernidade, o qual aparecia imiscuído no
ideário industrialista – característico de Avallaneda – e no
projeto urbanizador que marcou não apenas o pensamento
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de Prebisch, mas as diretrizes de planejamento da CEPAL entre


os anos 1950 e 1960. O outro pólo de sua formação seria o
sentimento de identidade nacional presente, por sua vez, no
pensamento de Alberdí.
Marcaria, assim, o pensamento Prebischiano, a princípio,
um forte instinto modernizador-industrializante-integracionista,
com um profundo sentimento nacionalista e de identidade
latino-americana. É interessante notar a identidade quase que
direta entre as posturas de Prebisch e da própria CEPAL, nesse
sentido. Não é demais lembrar que outras personalidades
marcantes passaram pela CEPAL em seus primeiros cinqüenta
anos, pelo menos. Mas não é fora de propósito dizer que, se a
CEPAL saiu-se às feições de algum economista latino-
americano, ela saiu à cara de Prebisch.
Mas Prebisch não foi produto apenas do ambiente
intelectual argentino ou latino-americano. Economista,
homem do mundo e de seu tempo, Prebisch sofreu influências,
em parte, das condições do desenvolvimento das idéias
econômicas de sua época, e de sua formação de
economista na Universidade de Buenos Aires, entre 1918 e
1923. Portanto, em primeiro lugar, há um inegável tributo a
Keynes e Schumpeter, perceptível à primeira vista e
amplamente reconhecido (GURRIERI, 1987). Mas há também
economistas argentinos que exerceram grande influência
sobre a maneira de Prebisch compreender sobretudo a
política econômica em seu papel e direcionamento,
sobretudo em uma de suas preocupações primordiais, qual
seja a eliminação da dependência da Argentina (e do
restante da América Latina) em relação ao exterior.
De tais economistas, destacam-se as figuras de
Alejandro Bunge e Juan B. Justo. O primeiro, de tradição
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

originalmente marginalista, apresentava-se com profundos


traços de nacionalismo à List, propondo a seus alunos o
pensamento de um projeto de “economia nacional
argentina”, realizando análises estruturais e setoriais da
economia argentina em moldes bastante similares aos
relatórios da CEPAL, escritos com uma posterioridade de trinta
ou quarenta anos.
O caráter nacional-desenvolvimentista de Alejandro
Bunge apareceria em várias obras. Em uma obra de 1928, La
Economia Argentina, Bunge realizava uma defesa da indústria
manufatureira da Argentina, afirmando que a geração
presente, de criadores de gado e latifundiários, seria a última,
antes de “uma nova geração de industriais e pequenos
produtores (BUNGE, 1928, p. 33)”.
O estudo das características da população através da
Demografia Econômica era uma grande novidade
metodológica à época e Bunge se servia dela amplamente
em suas obras. É nesse nicho em que encontra espaço para a
defesa do ensino técnico, e para um tema que seria muito
caro a Prebisch nos primeiros anos da CEPAL, o atraso
tecnológico que os países de economia baseada na
agroexportação experimentavam em relação aos países
industrializados.
O papel do Estado como motor do desenvolvimento
dos países em processo de modernização, promovendo a
industrialização e urbanização aparece no pensamento de
Alejandro Bunge em obras como El Estado Industrial y
Comerciante (1933), em que, junto a textos compilados de
autoria de Herbert Hoover e Benito Mussolini, Bunge defende a
ação direta do Estado no empreendimento desse processo,
através do qual a Argentina obteria sua “independência
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

econômica e financeira”. Isso não quer dizer que Bunge


restringisse suas possibilidades de desenvolvimento à
Argentina, somente. Em “Uma Nueva Argentina”, de 1940,
Bunge defende a criação de uma “União Aduaneira do Sul”,
nos moldes do que, duas décadas depois, Prebisch viria a
propor como a ALALC - Área Latino-Americana de Livre
Comércio.
Mesmo o caráter difusor de ideias e favorecedor do
debate múltiplo que a Prebisch, e mesmo a CEPAL adotaram
em sua postura inicial, parece ter sido apreendido com a
convivência com Bunge: este foi um dos primeiros editores de
periódicos acadêmicos econômicos na Argentina, tendo
fundado em 1918 a Revista de Economia Argentina, que teve
a participação discente de Prebisch.
Juan B. Justo daria a Prebisch o tom social dos
resultados do emprego de sua metodologia. Marxista, Justo foi
o fundador do “socialismo científico argentino”, em que
analisava o desenvolvimento estrutural da Argentina sob o
parâmetro da teoria de Marx e Engels.
Não apenas nas concordâncias com Justo, mas
também em suas diferenças – afinal Prebisch não era marxista
– nota-se o profundo impacto que o pensamento de Justo
teve sobre o jovem Prebisch, sobretudo na postura livre-
cambista adotada por Justo, segundo ele, mais adequada ao
desenvolvimento das condições capitalistas que levariam às
contradições causadoras da transformação revolucionária. A
este pensamento, Prebisch parece ter constituído o conceito
de relação “centro e periferia”, o qual, derivado de seu
nacionalismo apreendido com Bunge, certamente o
colocava mais próximo em pensamento à sua classe social. É
importante lembrar que Prebisch, apesar de sua heterodoxia,
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

não se apresentava como um “inimigo” ou “traidor” de sua


classe de origem. A isso, Celso Furtado aventa em suas
memórias da CEPAL (A Fantasia Organizada), que “Prebisch
parecia por demais ligado a seus amigos da Argentina”.
É necessário apontar nesses primeiros anos de
formação de Raúl Prebisch na Argentina, o advento de outras
influências, entre elas as de Eduardo Gonella, Manuel Ugarte e
o grupo que se organizaria em torno do BCRA, dando forte
caráter pragmático ao pensamento prebischiano, através da
rotina real de formulação, elaboração e prática da análise e
política econômicas. Aprender a distinguir ambas e
reconhecer seus limites certamente conferiu a Prebisch o
poder de convencimento e às políticas da CEPAL a solidez
que apenas uma grande reviravolta política poderia derrubar,
como aconteceu com o ciclo ditatorial na América Latina nos
anos 1960 – 1970.
De toda forma, uma marca importante, que daria o
limite do progressismo social de Prebisch, seria sua relação
com o peronismo. Indisposto desde o princípio com Perón e o
peronismo, Prebisch sofreu não apenas boicote político, mas
terminou por sofrer boicote na própria UBA, onde lecionava
nos anos 1930, juntamente com as tarefas do BCRA. Não deixa
de ser curioso que o populismo, e mesmo sua vertente
argentina, o peronismo, adotaram várias das teses cepalinas
para empreender o desenvolvimento em seus países. Mas
Prebisch colocava-se, na CEPAL, a prudente distância político-
institucional de Perón e o peronismo.
Nesse sentido, é possível especular-se que a escolha de
Prebisch para presidir a Comissão Econômica Para a América
Latina, avalizada pelos EUA em meados dos anos 1940, tenha
se dado em função da oposição de Prébisch a Perón, e em
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

total ignorância do caráter identitário e de afirmação da


América Latina que residia na formação e postura intelectual
do economista argentino.

4. Algumas Considerações

As influências formativas de Raúl Prebisch podem, assim,


ser caracterizadas. Em primeiro lugar, há um forte elemento
nacionalista, oriundo do espírito de idéias de sua época,
marcado pela valorização da identidade nacional, a qual
não necessariamente se refletia em uma identidade latino-
americana, podendo espraiar-se por um desejo de
modernização que a conduziria ao projeto de voltar-se para o
mundo. No caso, um não nega o outro.
Em segundo lugar, há o forte caráter tecnicista de sua
época também. Os estudos econômicos de caráter empírico-
quantitativo ganham corpo na ciência econômica, que passa
a produzir dados mais consistentes e ferramentas de análise
mais ricas em relação às estatísticas populacionais, de
comércio exterior e de fluxos e estoques de rendas. Com o
crescimento do papel do Estado, o estudo das contas do
Governo passa a ser também importante, não apenas no
sentido do mapeamento da realidade presente, mas da
projeção e planejamento para o futuro. Trata-se de outro
caráter importante e marcante na formação de Raúl Prebisch.
Há também a influência do pensamento econômico
externo, não apenas nos métodos de análise econômica, mas
também nos enfoques, com as contribuições de Pareto para o
bem-estar, Schumpeter para a teoria do desenvolvimento, e
Keynes para a economia, como um todo. Prebisch não foi
imune ao efeito de tais ideias, incorporando-as e dialogando
com elas ao longo de sua vida acadêmica. Não se pode
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

descartar também as influências de Weber e Marx na teoria


social, sobretudo na formulação de conceitos importantes e
caros à CEPAL dos primeiros anos como o de “dinâmica
centro-periferia”.
Internamente, em sua formação de economista e
pensador social, os principais credores intelectuais de Prebisch
parecem ser Alejandro Bunge e Juan B. Justo. Ambos, pelo
conjunto de problemas e objetos que seriam incorporados e
analisados pelo pensamento prebischiano, bem como pela
prática de construção coletiva do conhecimento, através da
discussão e debate. Bunge em particular, pela incorporação
do ideário nacionalista e protecionista que Prebisch
transformaria em um elemento de afirmação da identidade
latino-americana, ao negar o caráter primário-exportador dos
países periféricos como “vocação” ou “estratégia”,
atribuindo-lhe a pecha do atraso tecnológico e
subdesenvolvimento da região. Justo, em particular, pela
incorporação da questão da necessidade de quebra de
relações seculares de dominação territorial.
É evidente que tais influências têm os seus limites, dados
pela própria natureza do indivíduo, a classe social a que este
pertence e o poder determinístico que esta possui sobre ele, e
mesmo as limitações políticas de sua ação à época. Mas a
identificação das origens do desenvolvimentismo latino-
americano, no campo das influências de seus grandes
demiurgos – dos quais Raúl Prebisch foi, se o maior, não o
único, ou mesmo o mais influente no longo prazo – constitui
exercício necessário na iniciativa de repensar-se o
desenvolvimento como forma ideológica, e mesmo como
projeto político-territorial. O conhecimento a fundo de tais
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

raízes fortalece não apenas a apreensão de novas ideias, mas


a prevenção contra novas formas de colonização intelectual.

Referências Bibliográficas

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XX. Entre la modernización y la identidad. Santiago: Editorial Biblos, 2
tomos, 2000.

IÑIGUEZ, Carlos. Herejías Periféricas. Raúl Prebisch. Vigencia de su


pensamiento. Buenos Aires: Nuevohacer, 2003.

GURRIERI, A. “Introducción” em PREBISCH, R. La obra completa de


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vols, 1989.

BIELSCHOWKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na CEPAL.


São Paulo: Record, 2 volumes, 2000.

FURTADO, Celso. A Fantasia Organizada. São Paulo: Paz e Terra,


1989.

BUNGE, A. La Economía Argentina. Buenos Aires: Agencia General


de Librerias y Publicaciones, 3 volumes, 1928.

BUNGE, A. Uma Nueva Argentina. Buenos Aires: Guillermo Kant, 1940.

VV.AA. El Estado Industrial y Comerciante. Buenos Aires: Prensa


Oficial, 1933.
18
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A integração econômica numa perspectiva


teórica e a tipologia histórica dos processos na
América Latina1
Fábio Guedes Gomes2
Thiago Cavalcanti do Nascimento3

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar as principais teorias que elucidam o processo


de integração econômica. Apesar de estar presente nas discussões sobre o
comércio internacional do século XIX, e incluída nas discussões em torno da
formação de alguns Estados nacionais, como foi no caso da Alemanha e da Itália,
foi na esteira da propulsão do desenvolvimento capitalista, em meados do século
XX, que a integração econômica passou a apresentar-se como uma alternativa
para o desenvolvimento econômico de diversos países e regiões. Nesse sentido,
este trabalho faz uma digressão sobre as principais teorias que balizaram os
processos de integração, bem como faz uma discussão sobre aquelas mais
importantes na América Latina numa perspectiva histórica, até o atual momento, a
qual se caracteriza pelo crescimento de novos blocos regionais no âmbito da nova
fase de internacionalização do capital.

Palavras-chaves: América Latina; integração econômica; protecionismo

ABSTRACT

This paper aims to analyze the major theories that inform the process of economic
integration. Despite being present in discussions on international trade in the
nineteenth century, even included in discussions about the formation of some
nation states, as was the case with Germany and Italy, is propelled in the wake of
capitalist development in the mid-twentieth century, that economic integration
began to present itself as an alternative to the economic development of various
countries and regions. Thus, this work makes a digression on the major theories that
guided the process of integration, and makes a discussion of those most important
in Latin America in historical perspective, until the present moment, which is
characterized by the growth of new regional blocs within the new phase of
internationalization of capital.

Keywords: Latin America; economic integration; protectionism

1 Texto apresentado em 18/11/2013 e aprovado em 10/03/2014.


2 Professor adjunto do Curso de Graduação e Mestrado em Economia FEAC/UFAL e Tutor do Programa de

Educação Tutorial (PET-Economia)/MEC/SESu. E-mail: fbgg30@yahoo.com.br


3 Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB), Campus João

Pessoa. E-mail: tc.nascimento@hotmail.com


19
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

1. Introdução

Existem controvérsias em torno do conceito de


integração. Não pretendemos entrar nessas discussões, mas
apenas discutir o significado desse termo no contexto da
economia internacional, visando ressaltar alguns pontos que
possam servir de apoio para a análise desenvolvida ao longo
deste trabalho.

Na análise econômica, o termo integração pode


assumir vários sentidos. Ela pode referir-se tanto à integração
entre firmas, quanto à integração dentro de uma mesma firma
ou de um mesmo setor econômico; também se refere à
integração entre países na perspectiva do comércio
internacional, ou ainda à pretensão de criação de uma
comunidade econômica onde os objetivos mercantis não são
os únicos. Porém, é basicamente aplicado à perspectiva mais
ampla no campo do comércio internacional, que
pretendemos discutir o termo integração.

Segundo Machlup (1977), pode-se falar em várias


formas de integração: integração nacional (intra-nacional);
integração regional (intra-regional, multinacional ou bloco de
países); e integração mundial. Da mesma forma, pode-se
discutir a integração setorial (referente a um ou mais setores
dos países envolvidos ou, ainda, entre firmas diferentes em
uma determinada economia) distinguindo-a da integração
econômica geral (total da economia).

De uma forma geral, Balassa conceitua integração


econômica como um processo de abolição de discriminações
entre unidades econômicas. Gonçalves, por sua vez, vai mais
20
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

além, definindo a integração econômica como o processo de


criação de um mercado integrado, a partir da progressiva
eliminação de barreiras ao comércio, ao movimento de
fatores de produção e a criação de instituições que permitam
a coordenação, ou unificação, de políticas econômicas em
uma região contígua ou não (BALASSA, 1961; GONÇALVES, et
al. 2004).

A partir desses conceitos podemos considerar a teoria


da integração econômica como um ramo especial da teoria
da economia internacional. Isto ainda é mais verdadeiro
quando se admite que “a divisão do trabalho é a base para
compreensão da integração econômica”, como assinala
Rolim (1994, p. 59). Por isso, a teoria do comércio internacional
assume um importante papel nessa discussão.

Teoricamente, o processo de integração econômica


assume quatro formas básicas: área de livre comércio; união
aduaneira; mercado comum; e união econômica ou
monetária. Por área de livre comércio se compreende um
processo pelo qual um determinado número de países
concorda em eliminar ou reduzir as barreiras alfandegárias
apenas para as importações de mercadorias produzidas no
interior da área constituída (intra-regional). Entretanto, esses
países ainda mantêm políticas comerciais independentes com
outros países que não fazem parte do acordo regional. Uma
área de livre comércio tem idealmente uma tarifa zero entre
os países membros, mas em relação aos países não-membros
essas barreiras são negociadas e definidas de acordo com os
interesses ou conveniências de cada país membro,
independentemente da situação dos outros (GONÇALVES, et.
al., 2004).
21
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Uma união aduaneira é definida como uma área de


livre comércio, onde os países membros acordam em seguir
uma política comercial comum com referência a países não-
membros. Uma característica básica desse estágio de
integração é a adoção da chamada TEC (Tarifa Externa
Comum) aplicável a países não signatários do acordo
regional.4

O mercado comum é uma união alfandegária


(aduaneira) que privilegia a livre circulação dos fatores de
produção. Mão-de-obra e capital podem mobilizar-se
livremente entre os países ou regiões, sem qualquer restrição
que impossibilite a utilização mais produtiva dos mesmos. A
união econômica ou monetária, portanto a integração
econômica total é, na verdade, o somatório dos três estágios
de evolução anteriores e, além disso, a uniformização e
unificação das políticas monetária e fiscal, além da
possibilidade de adotar-se uma moeda única entre os países.
Com o estabelecimento da união econômica, a unificação
dos mercados é atingida, além de se estabelecer uma
autoridade político-econômica central, fazendo com que a
soberania de cada nação seja violada e transferida para essa
nova autoridade (BALASSA, 1961).

No que se refere ao estabelecimento de uma


autoridade político-econômica central, a tônica da
integração européia nos anos 50 é um bom exemplo. Naquele
momento discutiam-se propostas de redução da intervenção
estatal, na medida em que era defendido o
supranacionalismo, enfatizado pelo processo integracionista,

4 De início, é importante esclarecermos que a palavra regional é utilizada aqui para caracterizar as tentativas de
liberação comercial (ou ampliação do mercado) entre países. Em outras palavras, regional, para nossos
objetivos, é aplicado num contexto onde existe uma integração econômica entre diversos países contíguos ou
não, que irão compor uma economia internacional.
22
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

opondo-se à força interventora das políticas nacionais.5 Vale


ainda salientar, que essas formas de integração podem entrar
em ação não necessariamente nessa mesma ordem, ou
dando prosseguimento às mesmas. Por exemplo, a área de
livre comércio pode evoluir ou não para o mercado comum,
ou este pode ser adotado diretamente sem que seja preciso
aprofundar-se aos demais níveis de integração.

Teoricamente, a integração econômica tem duas


vertentes econômicas. Uma delas é derivada da teoria pura
do comércio internacional, baseada nos pressupostos da
teoria das vantagens comparativas. A outra é inspirada por
argumentos protecionistas, sob o pretexto de proteger a
indústria nascente utilizando, entretanto, conceitos de teorias
do desenvolvimento. Essas duas correntes básicas de
interpretação serão abordadas nas duas seções seguintes.
Mais a frente, buscamos interpretar o processo histórico de
integração econômica na América Latina a partir das
tipologias descritas por Rosenthal (1990). Por último, tecemos
algumas notas conclusivas tocando brevemente sobre o
processo mais recente de integração na região.
2. A Teoria Livre-Cambista

A teoria da integração praticamente surge com a teoria


das uniões aduaneiras, desenvolvidas pelo economista
canadense Jacob Viner (1892-1970). Por sua vez, a teoria das
uniões aduaneiras é originária da teoria do comércio

5É interessante observar que Mandel ao analisar a concentração e centralização internacional do capital, mais
especificamente a relação entre a centralização internacional do capital e o Estado no capitalismo tardio em
1972, já percebia que esse processo levaria a formação de superestruturas de comando supranacional. Para o
autor, a internacionalização do capital, ou seja, a verdadeira centralização do capital, implica numa transferência
de propriedade, seja de um país para outro, seja de um grupo nacional de proprietários para outros. Então, se
existe uma fusão internacional do capital sem a predominância de nenhum grupo específico de capitalistas
nacionais, a centralização do capital faz-se “acompanhar pelo desmantelamento do poder de vários Estados
nacionais burgueses e pelo surgimento de um novo poder estatal federal, um Estado burguês supranacional”
(MANDEL, 1982, pp. 228-231). Para exemplificar a tendência do surgimento de um estado supranacional, o
autor também cita o caso da CEE (Comunidade Econômica Européia).
23
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

internacional. No entanto, considera-se que a teoria da


integração econômica parte, também, dos pressupostos da
teoria pura do comércio internacional. Nela, estão as bases
das discussões dos processos de integração, pelo menos no
que se refere às questões livre-cambistas.

Em sua obra clássica, “The Customs Union Issue”


publicada em 1950, Viner expôs dois conceitos que vão formar
a base de sua teoria sobre a integração econômica: “criação
de comércio” e “desvio de comércio”. Esses conceitos foram
desenvolvidos a partir de suas preocupações em estudar as
implicações econômicas das uniões alfandegárias na Europa.

Como vimos anteriormente, uma união alfandegária


vem acompanhada, em alguns casos, da criação de uma
Tarifa Externa Comum (TEC). Se, por exemplo, a TEC for
reduzida aos países signatários, pressupõe-se que o comércio
intra-regional deva aumentar e, com isso, mais produtos
seriam transacionados, algo que era limitado antes da
redução tarifária. Consequentemente, os preços domésticos
se reduzem nos países da região, elevando-se,
consequentemente, o nível de bem-estar. Este movimento
corresponde ao conceito de criação de comércio.

Em outras palavras, existe criação de comércio, numa


integração econômica, quando, dada a eliminação das
barreiras alfandegárias (TEC), o comércio intra-regional
aumenta, fazendo diminuir os preços internos ocasionando
aumento do nível de bem-estar. Nesse sentido, os produtores
domésticos menos eficientes em cada país membro da união,
serão preteridos em favor de produtores mais eficientes em
outros países membros.
24
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Nos países desenvolvidos a criação de comércio tem


grande probabilidade de ser alcançada, pelo fato desse
grupo seleto de países dispor de uma estrutura econômica
complexa, abrangendo quase toda a gama de setores
produtivos, tornando possível a substituição dos produtores
menos eficientes pelos mais eficientes. Além disso, os
desinvestimentos ocasionados por esse processo são
perfeitamente suportáveis em países plenamente
desenvolvidos por causa do alto grau de complementaridade
de suas economias.

Pode ser atribuído o conceito de desvio de comércio


quando a TEC reduz o comércio com países fora da união
aduaneira, em função do aumento das barreiras tarifárias
com relação aos países não-membros. Isto também permite
que o comércio intra-regional aumente. Todavia, nesse caso,
poderá haver um aumento nos preços dos produtos em
alguns dos países da união alfandegária, diminuindo-se,
consequentemente, o nível de bem-estar.

De acordo com a teoria de Viner, uma união


alfandegária é benéfica se os efeitos de criação de comércio
forem superiores aos efeitos de desvio de comércio, isto é, se o
resultado desse processo for mais comércio, menores preços e
maior bem-estar. Desta forma, uma união alfandegária deve
ser vista como um second best, a medida que uma política de
redução multilateral das tarifas alfandegárias for impossível.6
Por outro lado, Viner considerava que se essas reduções
fossem feitas universalmente, mesmo que de forma unilateral,
os efeitos de criação de comércio seriam ampliados.

6 A noção de que o bem-estar é maximizado com a liberalização geral do comércio internacional e que as
uniões, ou as integrações têm efeito apenas limitado no aumento do bem-estar (second best), é desenvolvido
inicialmente, também, por Lipsey e Kelvin Lancaster (1956), os quais deram continuidade aos argumentos
desenvolvidos por Viner.
25
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A teoria de Viner não poderia fugir dos pressupostos das


teorias tradicionais que defendem o livre comércio com o
objetivo de elevar a eficiência produtiva e, com isso,
maximizar o bem-estar. Como regra geral, admite-se duas
hipóteses básicas: a existência no mercado da concorrência
perfeita, tanto em nível interno como nas relações comerciais
entre países, e um dado nível de crescimento.

No caso dos países subdesenvolvidos, os efeitos da


integração econômica sob essa ótica, podem ser contrários
aos que acontecem nos países desenvolvidos. Os países
subdesenvolvidos têm uma estrutura de produção pouco
diversificada em relação aos países desenvolvidos. Desta
maneira, as possibilidades de criação de comércio, através
da substituição de produtores, são bastante limitadas.
Consequentemente pode-se afirmar que os efeitos da
integração econômica não são tão significativos para os
países subdesenvolvidos, se levarmos em conta a perspectiva
puramente estática de Viner. Nestes países a estrutura
monopólica é muito forte e as taxas de crescimento têm sido
influenciadas por um conjunto de fatores de várias ordens de
diferenças em relação às economias do centro (GONÇALVES,
2005).

De qualquer maneira, a teoria de Viner ainda


demonstra certa inconsistência quando, seguindo os
pressupostos da teoria do equilíbrio geral, passa a apresentar
elementos na direção da substituição dos custos
comparativos em termos de custos reais para termos de custos
de oportunidade. Isto ocorre, sobretudo, a partir da
contribuição de Heckscher, refinada por Ohlin, onde se
substitui a hipótese da existência de custos comparativos
26
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

diferenciados pela hipótese de dotação relativa de fatores de


produção entre dois países com distintas estruturas
econômicas e naturais (HOLLANDA FILHO, 1998). Para esses
dois autores, a teoria do comércio internacional resumiria-se,
basicamente, a uma questão de alocação internacional de
recursos produtivos. Sob essa ótica, a América Latina, por
exemplo, teria que participar da divisão internacional do
trabalho especializando-se na produção de produtos
primários, já que os fatores terra e trabalho apresentam-se em
abundância nos países da região. No entanto, Raúl Prebisch
em seu famoso texto de 1949 desmistificou teoricamente esse
argumento que tanto influenciara a ciência econômica e
ainda persiste nas correntes neoliberais (PREBISCH, [1949],
2000).

Em contraste com o período clássico, quando a teoria


do comércio internacional deu importantes contribuições
para análise econômica, sendo a teoria das vantagens
comparativas o exemplo mais significativo, a teoria do
comércio internacional, sob a égide dos neoclássicos,
progrediu essencialmente através da utilização de técnicas
analíticas oriundas da teoria econômica convencional,
baseada nos princípios do equilíbrio geral. A integração nesse
sentido assume um conjunto das atividades econômicas
regionais, constituída pelas redes que envolvem os diversos
setores econômicos, em efeitos encadeados, aproximando-se
de um modelo geral de equilíbrio, com total mobilidade dos
fatores de produção e dos produtos, insumos e mercadorias
finais (MACHLUP, 1977, pp. 65-66).

Nessa perspectiva, não existem maiores preocupações


com os impactos de uma liberalização comercial mais ampla
27
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

entre países com graus de desenvolvimento econômico


diferentes. O interesse maior reside, como vimos, no aumento
da eficiência produtiva que possa auferir aquelas empresas
que participam do comércio internacional. Os objetivos da
integração econômica, sob a ótica vinerniana, estão
estreitamente ligados com os de livre comércio, a saber:
geração de níveis de especialização, economias de escala,
promoção da eficiência produtiva pelo aumento da
concorrência dos produtos domésticos em relação aos
estrangeiros e a busca por um maior nível de crescimento, a
partir desses pressupostos.

Ainda nessa perspectiva teórica, considera-se que os


fatores produtivos têm livre mobilidade. Isso não tem respaldo
na realidade quando se verifica que apenas o fator capital,
na sua forma genérica, goza desse privilégio quase absoluto.
Sabe-se que na maioria dos processos de integração em
curso, a mobilidade do fator trabalho é condicionada a uma
série de restrições em diversos países.

3. A Teoria Integracionista Protecionista

A outra vertente teórica responsável em grande medida


pelo debate em torno do processo de integração econômica,
parte das proposições das vantagens do protecionismo. No
século XIX, o economista e político alemão Friendrich List
(1789-1846), preocupado com o atraso da economia
capitalista alemã em relação à Inglaterra, argumentou a favor
da proteção da indústria nascente (infant industry).

Seus argumentos serviram para a formação de uma


associação de comerciantes e industriais alemães (Zollverein),
que lutavam pela unificação econômica do país, com a
eliminação das barreiras alfandegárias entre seus Estados
28
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

independentes e a criação de taxas para os produtos


estrangeiros. A esse argumento acrescentaram-se mais dois,
surgidos no ínterim do debate teórico entre comércio
internacional e desenvolvimento econômico no pós-guerra: os
efeitos advindos de externalidades e os efeitos positivos de
economias de escala e escopo (GONÇALVES, et. al., 2004).7

A partir dos anos cinqüenta do século XX, surge uma


vasta literatura preocupada com os aspectos econômico-
estruturais que impediam o desenvolvimento econômico
daqueles países mais frágeis dentro da estrutura capitalista
mundial. Esta literatura tem por base os artifícios protecionistas
elaborados inicialmente por List e aperfeiçoados por
instituições preocupadas com o desenvolvimento da periferia,
como é o caso da Cepal (Comissão Econômica para América
Latina).

A maior parte dessa literatura defendia alguma forma


de proteção à indústria local (do país em desenvolvimento), e
isso tinha por base os argumentos da indústria infante, bem
parecida com a versão elaborada por List, a qual indicava
que a proteção deveria ser dirigida a toda indústria ou a um
amplo conjunto de setores “infantes” cujo estabelecimento no
país seria essencial para seu desenvolvimento (HOLLANDA
FILHO, 1998).8

7 Esses dois argumentos são contrários à idéia da capacidade das teorias de equilíbrio estáticas para enfrentar
os problemas de investimentos. Os modelos estáticos não podem lidar com problemas dinâmicos,
principalmente ligados aos efeitos dos mecanismos do mercado internacional. Alguns efeitos do comércio
internacional sobre os países subdesenvolvidos não são reconhecidos pelas teorias estáticas do livre comércio:
(a) deterioração dos termos de troca; (b) desemprego, como resultado do baixo crescimento da demanda
internacional por produtos primários e como determinante da deterioração dos termos de intercâmbio, quando
absorvido em atividades primárias; (c) desequilíbrio estrutural do balanço de pagamentos, como resultado das
especificidades dos países subdesenvolvidos em processo de rápida industrialização necessária; e (d)
vulnerabilidade a ciclos econômicos resultante da especialização em atividades de exportação
(BIELSCHOWSKY, 2000).
8 Isto não quer dizer que a proposta de desenvolvimento do setor industrial dos países do Terceiro Mundo,

principalmente os países da América Latina, tenha sido elaborada sob a influência dos argumentos listianos. Na
verdade o que se tinha em vista era modernizar a estrutura produtiva desses países, procurando romper com a
dualidade estrutural que permeava os sistemas produtivos, onde conviviam um setor produtivo moderno voltado
29
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Diferentemente da teoria de Viner, o comércio


internacional é tratado, aqui, não de forma isolada, mas
associado à problemática do desenvolvimento econômico,
como podemos verificar. Certamente não houve grandes
preocupações de se discutir essencialmente a maximização
do bem-estar mundial com abstração da questão distributiva.

Esta concepção rompe, em tese, com a possibilidade


de aprofundamento da divisão internacional do trabalho nos
termos clássicos da teoria do comércio internacional. Isto é
possível porque o que se defende é a reestruturação da base
produtiva dos países subdesenvolvidos, passando de
produtores e exportadores de bens primários a produtores e
exportadores, no médio e longo prazo, de produtos
industrializados.

Cooper e Massel (apud NETO, 1991) apontam duas


diferenças entre a análise do enfoque liberal e o protecionista.
A primeira é de que os países possuem uma preferência pelo
desenvolvimento industrial, e optam pela indústria mesmo
fazendo sacrifícios à renda nacional, mesmo privilegiando
setores que possam administrar o mercado doméstico
praticando preços de monopólio.

A segunda diferença é que as taxas alfandegárias não


são variáveis exógenas, mas instrumentos da política de
proteção. Neste sentido, não podemos afirmar que no
comércio internacional o comportamento dos países seja
racional, procurando apenas alcançar o livre comércio na
busca da maximização do bem-estar. Ao contrário, eles

para o comércio externo, e um outro setor atrasado, voltado para o abastecimento do mercado doméstico. O
que tornava esse sistema econômico extremamente vulnerável às vissitudes do comércio internacional no
quadro do modelo primário-exportador.
30
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

impõem barreiras e dificuldades ao livre trânsito das


mercadorias e fatores de produção.

Isso é demonstrável pela história econômica de alguns


países como Estados Unidos, Alemanha e Japão, por exemplo.
O mercado nacional desses países sempre contou com
políticas protecionistas que procuravam defender da
concorrência estrangeira aqueles setores considerados
estratégicos para o desenvolvimento, bem como outros que
ainda não tinham condições de enfrentar a competitividade
internacional (CHANG, 2004; 2009).

Algumas experiências importantes de formação de


blocos econômicos entre países surgem a partir dos
argumentos em torno da integração como estratégia de
desenvolvimento econômico. No pós-guerra, não se pode
negar o fato de que esses processos integracionistas tinham
um componente político muito forte.

Por exemplo, um dos fatores políticos que condicionou a


criação da União Européia, por exemplo, foi a resistência de
alguns países à expansão soviética e a afirmação de uma
potência econômica independente dos Estados Unidos. A
idéia básica era da criação de um “Reino do Meio”. Assim, um
dos objetivos centrais da integração européia era diminuir o
nível de hostilidades entre seus signatários e, com a
integração, a região representar uma força alternativa,
econômica e politicamente, no contexto histórico da
nascente Guerra Fria.

Ademais a integração econômica européia


intencionava combater o nacionalismo exacerbado (os
movimentos nazistas e fascistas) presentes em algumas nações
da região. Tais movimentos, levados ao extremo, foram
31
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

responsáveis, em boa medida, pelas duas grandes guerras


mundiais. Todavia, a integração européia esteve fortemente
inspirada nos desejos de paz e harmonia econômica e política
entre as nações da Europa, isto é, a integração buscava
reduzir a força do nacionalismo e fortalecer o
internacionalismo, a cooperação e a ajuda mútua.

Historicamente, o processo de integração econômica


na Europa surge da Convenção de Benelux assinada em
Londres, em 1944, vindo a ser completada em 1947, com a
assinatura do Protocolo de Haia, que instituiu a união
aduaneira entre a Bélgica, Luxemburgo e os Países Baixos. Em
1951, a integração econômica européia avançou com a
constituição do Tratado de Paris que criou a Comunidade
Européia do Carvão e do Aço. E, finalmente, em 1957, foi
criada a Comunidade Econômica Européia (CEE) através da
assinatura do Tratado de Roma.

Na Europa, discutia-se o processo de integração


econômica sob duas óticas, a liberal e a dirigista. Na corrente
liberal, a integração econômica era tratada apenas como
uma estratégia de abolição das restrições alfandegárias e
liberalização do comércio – como vimos na seção anterior -,
de acordo com os ideais livre-cambistas do século XIX. Por
outro lado, a integração econômica era também tratada
pela corrente dirigista como uma estratégia de integrar o
planejamento econômico dos países e coordenar as políticas
econômicas nacionais na busca do desenvolvimento
econômico (BALASSA, 1961).

Assim, pode-se afirmar que o processo de integração


econômica na Europa evoluiu de preocupações centradas
principalmente em questões comerciais, para questões de
32
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

coordenação e integração de políticas públicas e estímulos à


formação de redes e outros processos de integração formal
(BALASSA, 1991). Desta forma, a CEE através de vários acordos
e tratados assinados ao longo da história, superou os desafios
impostos pela corrente liberal, caminhando para um modelo
de integração não só econômico, mas também político que
privilegia a união total. As vantagens advindas desse processo
são múltiplas e dentre elas pode-se destacar: a criação de um
grande mercado sem fronteiras, propiciando a elevação dos
níveis de crescimento e produtividade entre os países
comunitários; a redução ou eliminação dos conflitos
existentes; e, melhor alocação dos recursos em cada país,
reduzindo preços domésticos e propiciando a geração de
economias de escala para as indústrias de cada uma das
nações européias envolvidas no processo.

Na América Latina a idéia de integração econômica


atendeu também a um objetivo importante. Para modernizar
a estrutura produtiva predominante até meados de 1940, a
maioria dos países latino-americanos adotou o modelo de
substituição de importações, com ênfase no processo de
constituição de suas economias industriais. Nesse caso, a
integração econômica serviria para expandir o mercado
regional, já que o mercado doméstico de alguns países não
era suficientemente grande para absorver a oferta de
produtos, decorrente das necessidades de se alcançar um
ponto ótimo na escala de produção das novas indústrias.9

9 Conforme Balassa (1961), em mercados de tamanho reduzidos é quase impossível o aproveitamento de


economias de escalas promovido por programas de industrialização. E é justamente esse problema que os
processos de integração propostos na América Latina no pós-guerra vão enfrentar; o objetivo de expansão dos
mercados estava, portanto, em função das necessidades de ampliação da estrutura industrial da região dentro
do modelo de substituição de importações como um dos passos centrais para a superação do
subdesenvolvimento.
33
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Na próxima seção o objetivo é analisar, mais


especificamente, como surgiram as necessidades de
superação do subdesenvolvimento das economias latino-
americanas, qual o seu conteúdo e como a integração servia
aos propósitos desenvolvimentistas.

4. A Abordagem Desenvolvimentista e a Integração


Econômica

Os objetivos da integração econômica na América


Latina eram bastante limitados até os anos 1950. Para se
compreender esses objetivos, é necessário recorrermos à
chamada “abordagem desenvolvimentista”, defendida na
região pela CEPAL. Esta abordagem se contrapõe aos
princípios do livre comércio, ou seja, da eficiência da
alocação dos recursos a nível interno e externo, por meio dos
mecanismos de mercado. Existe uma influencia muito forte
sobre essa perspectiva da concepção da infant industry de
List, vista na seção anterior, principalmente no que diz respeito
ao protecionismo como instrumento de desenvolvimento do
mercado doméstico.

Apesar de não ter sido central nas teses cepalinas, o


argumento da infant industry influenciou, digamos, nos
propósitos de proteção das indústrias criadas na região. Até a
década de 1940, o Brasil, por exemplo, utilizou-se desse
argumento em favor de sua industrialização, com ampla
participação do Estado nesse processo. Porém, com o modelo
de substituição de importações, os instrumentos de proteção
ampliaram-se e tiveram como objetivo estratégico atender o
desenvolvimento de vários setores produtivos, principalmente
departamentos ligados a produção de bens de capital e
produtos intermediários.
34
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A CEPAL não foi simplesmente uma formuladora de


propostas protecionistas. Ao contrário, elaborou, também, um
amplo e original sistema analítico, que se constituiu em um
poderoso instrumento de compreensão do processo de
transformação das economias latino-americanas.

A origem da teoria cepalina advém principalmente dos


estudos de Prebisch sobre a deterioração dos termos de
intercâmbio e pela sua interpretação estruturalista do
processo inflacionário (PREBISCH, [1949] 2000). O seu ponto de
partida foi a crítica ao padrão de desenvolvimento no modelo
primário-exportador, o qual, para Prebisch, era responsável
pelo subdesenvolvimento das economias latino-americanas.
Nesse sentido, uma das razões para o subdesenvolvimento das
economias latino-americanas seria era a “limitação do
progresso técnico às atividades primárias” (FURTADO, 1992, p.
62).

Outros elementos faziam parte do quadro analítico do


que ocorria na América Latina: a caracterização do
subdesenvolvimento como uma condição da periferia (a
dicotomia centro-periferia); a identificação do processo de
industrialização anárquica, desde os anos 1930; e, o baixo
grau de diversificação da estrutura produtiva (alto grau de
especialização) e a baixa produtividade de todos os setores,
exceto os de exportação (heterogeneidade estrutural - tese
da dualidade) (BIELSCHOWSKY, 2000).

Prebisch constatou, empiricamente, a iniquidade das


relações econômicas internacionais, tal como se
manifestavam superficialmente na esfera da circulação
(RODRIGUEZ, 1987, p. 29). Ao analisar a evolução dos preços
dos produtos agrícolas e industriais num período de 65 anos
35
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

(1880-1945), ele observou que existia uma tendência clara


para a deterioração das relações de troca contra a
agricultura. Em seu estudo, Prebisch chegou à conclusão de
que a relação entre os preços da agricultura e da indústria,
que era de 1 para 1 em 1850, caiu para 0,687 para 1 em 1945.

Diante disso, vários economistas latino-americanos


começaram a argumentar que os principais problemas sócio-
econômicos da região tenderiam a se agravar pela queda do
poder de compra de suas exportações, predominantemente
originárias do setor primário. Isso era uma realidade, levando-
se em conta que a grande maioria dos países da região era
produtora desses bens. Além disso, existia outra preocupação:
a consequente impossibilidade de transferência dos ganhos
do progresso técnico nos países centrais para a periferia,
provocando, desta maneira, um aumento na diferença de
desenvolvimento entre os países centrais e os da periferia
capitalista (PREBISCH, [1949] 2000, seção II; FURTADO, 1992, pp.
22-24).

Prebisch admitia que a acentuação da divisão


internacional do trabalho, de acordo com as idéias de
Ricardo, provocava, portanto, uma disparidade crescente
entre países ricos e pobres, isto é, entre o centro e a periferia.
Essa disparidade acentuava-se à medida que os países
centrais iam reduzindo a taxa de expansão de suas
importações de produtos primários, diante do progressivo
avanço técnico, poupador de insumos primários.10 Em

10 A Cepal sustentava a tese que os centros dinâmicos da economia capitalista não transferiam seus aumentos
de produtividade para os países da periferia atrasada e, ainda por cima, aqueles estariam se apropriando dos
modestos incrementos de produtividade obtidos por esses (FURTADO, 1992). Nurske nos traz dados
reveladores sobre a perda de mercado dos produtos primários. Ele aponta que desde o final da década de
1920, “as exportações dos produtores primários para os Estados Unidos e Europa Ocidental”, por exemplo,
“caíram de cerca de 3,5% para menos de 3% do produto nacional bruto desta área industrializada”. Isto
incluindo o petróleo. Sem este produto, “a queda seria para provavelmente menos de 2,5%”. Isso significa dizer,
segundo o autor, que “no decurso das três últimas décadas, a maioria dos países de produção primária sofreu
36
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

conseqüência disto, a taxa de crescimento da periferia, que


dependia da dinâmica de seu setor primário-exportador,
tendia ao declínio.

Bielschowsky (2000) aponta que Prebisch estava


preocupado com os níveis de produtividade do sistema
econômico. Para ele, a modernização da estrutura produtiva
das economias latino-americanas era a principal saída para o
desenvolvimento econômico. Nascia, então, a proposta de
industrialização da periferia como uma estratégia para
diminuir as disparidades econômicas com o centro
desenvolvido e, com isso, neutralizar as perdas nas relações de
intercâmbio comercial. Entretanto, é preciso enfatizar que do
ponto de vista histórico, a industrialização já vinha ocorrendo
na região em razão da crise do modelo-primário exportador e
a depressão econômica de 1929, que marcaram o início do
que Furtado batizou de deslocamento do eixo dinâmico.

Baseado nos argumentos de Prebisch, o principal


objetivo da teoria cepalina foi dar suporte a medidas
governamentais, em particular ao planejamento e ao
protecionismo, como meios de se alcançar a industrialização
rápida e eficiente e, consequentemente, de se alterar o curso
da história dos países subdesenvolvidos. O planejamento era
visto nesse caso, como um procedimento indispensável à
racionalização de um processo de industrialização
espontâneo e anárquico que, subitamente, teria passado a
ocorrer nas estruturas produtivas atrasadas das economias
latino-americanas (BIELSCHOWSKY, 2000, 2004).

um encolhimento de mercado que é marcante na importância de suas exportações em relação ao produto e


renda do mundo industrializado”. O autor ainda afirma enfaticamente que “a elasticidade-renda da demanda por
consumo para muitas mercadorias agrícolas tende a ser baixa” (NURSKE, 1979, p. 416).
37
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Alterar o curso da história dos países subdesenvolvidos


pode ser interpretado também como uma proposição
política. A proposta de industrialização era muito pretensiosa.
Significava um meio de superar a pobreza ou de reduzir a
diferença entre a periferia e centro, além de procurar atingir
independência política e econômica através de um
crescimento econômico auto-sustentado.

A integração econômica assumiu um papel secundário


nesse contexto. A idéia de desenvolvimento hacia a dentro,
no liame do modelo de substituição de importações, não
favoreceu o alcance de maiores resultados no sentido do
aumento da interdependência entre os países latino-
americanos. Além disso, a política externa deliberada dos
Estados Unidos impediu o fortalecimento político-econômico
que podia derivar da integração da região (VIZZENTINI, 1995).
A integração era vista apenas como uma estratégia que
compensaria os exíguos mercados domésticos. A citação
abaixo reforça essa argumentação.

“O tamanho mínimo das instalações é uma


importante consideração prática, que muitas vezes
limita a diversificação da indústria em qualquer país
isoladamente. Isto nos leva imediatamente ao
ponto crucial de que a defesa do crescimento da
produção diversificada não pode se confinar aos
limites nacionais. A manufatura para os mercados
domésticos nos países menos desenvolvidos tem de
incluir também a produção para exportação
visando aos ‘mercados de cada um’. Isto é
particularmente importante para os países menores
e constitui um forte argumento para a liberalização
das políticas comerciais, levando, se possível, a
uniões aduaneiras entre grupos de países na classe
subdesenvolvida” (NURSKE, 1979, p. 437).

A ideia subjacente às propostas de desenvolvimento


econômico na América Latina, propunha a superação da
dualidade. De um lado, existia um setor privilegiado por
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

políticas econômicas específicas, de incentivo às exportações


de produtos primários. Este setor apresentava um alto nível de
produtividade. Por outro lado, encontrava-se o resto da
economia, com algumas poucas exceções, onde
predominava uma estrutura produtiva atrasada, diríamos pré-
capitalista, que apresentava níveis de produtividade muito
aquém das necessidades de consumo da sociedade.11 O
objetivo, portanto, era modernizar a estrutura produtiva das
economias latino-americanas, dotando-as de uma estrutura
diversificada e, simultaneamente, homogênea do ponto de
vista de uma produtividade elevada.

Entretanto, a proposta de modernização ultrapassava


os interesses apenas domésticos de cada país. Pode-se inferir,
também, que depois que a estrutura produtiva estivesse
diversificada e consolidada, tornar-se-ia mais fácil aumentar
as exportações de bens manufaturados para as economias
mais avançadas e, assim, diminuir as perdas com o
intercâmbio no comércio internacional e aumentar o nível da
capacidade para importar.12

Todavia, a integração latino-americana funcionava,


num segundo momento, como uma estratégia de
concentração demográfica do setor urbano, propiciando as
condições naturais para o desenvolvimento industrial no
continente, dada a insuficiência de demanda de alguns
mercados domésticos. Esta insuficiência, por sua vez, limitava
a adoção de tecnologias produtivas mais eficientes, capazes

11 “Um dos paradoxos da economia subdesenvolvida está em que o seu sistema produtivo apresenta
segmentos que operam com níveis tecnológicos diferentes, como se nela coexistissem épocas distintas. Os
grupos sociais de alta renda requerem uma oferta baseada em tecnologia sofisticada, enquanto grandes
massas de população lutam para ter acesso a bens considerados obsoletos e mesmo produzidos com
tecnologia rudimentar” (FURTADO, 1992, p. 56).
12 “[...] para penetrar nos mercados internacionais, o caminho mais eficaz consiste em utilizar um ‘misto’ de

tecnologias: tirar partido da abundância de certos fatores primários e, ao mesmo tempo, apoiar-se em
tecnologias de vanguarda” (FURTADO, 1992, p. 56.).
39
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de gerar economias de escala. Sem a superação dessa


ineficiência, um projeto de industrialização de maior
envergadura enfrentaria grandes dificuldades.

Portanto, a integração apresentava-se como uma das


condições para a industrialização, vista do ângulo continental,
e esta por sua vez, era sua mais importante motivação. Em
síntese, duas questões básicas se colocam para a
compreensão da proposta cepalina de integração latino-
americana: (a) a ênfase em acelerar a industrialização de
acordo com a tese de que o desenvolvimento econômico
seria impossível sem a mesma; e, (b) a condição de que os
problemas básicos da industrialização na região estavam
atrelados às limitações dos mercados nacionais a que as
indústrias estavam circunscritas.

Não parece haver dúvidas que, do ponto de vista


teórico, a abordagem desenvolvimentista exerceu (e ainda
exerce) um papel importante, ao criticar as premissas básicas
e essenciais da teoria ortodoxa do comércio internacional,
constatando, empiricamente, o irrealismo de suas propostas.

Para Rodriguez, as concepções desenvolvimentistas


elaboradas por Prebisch e aperfeiçoadas pela Cepal,
“iniciaram um processo de descolonização ideológica e
questionaram alguns dos princípios fundamentais do
pensamento econômico internacional burguês”. Além dessa
guinada revolucionária, o pensamento econômico latino-
americano assumiu “certas posições antiimperialistas, que em
seu desenvolvimento ulterior exerceram uma notável
influência na América Latina e, em geral, em todo o mundo
subdesenvolvido” (RODRIGUEZ, 1987, p. 32).
40
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

4.1 Algumas Limitações da Abordagem Desenvolvimentista

Não podemos esquecer o contexto político


internacional que serviu como ambiente favorável ao
surgimento das idéias e principais teses sobre o
desenvolvimento econômico proposto para os países latino-
americanos pela Cepal. A abordagem desenvolvimentista
não deixava de ser uma expressão dos avanços da estrutura
capitalista sobre os países periféricos da América Latina, que
apresentavam formas pré-capitalistas de produção. Essa
estrutura econômica capitalista teria que ter capacidade
própria de acumulação, sob o domínio dos oligopólios
nacionais e estrangeiros, e com forte participação e forte
apoio estatal.

Mas, a história nos revelou que esse tripé, que seria


responsável pelo dinamismo das forças modernizadoras, não
sustentou o ideário cepalino. Houve, na verdade, o
predomínio do capital estrangeiro e, sobretudo, da
participação estatal no desenvolvimento da estrutura
produtiva.

“O ‘DESENVOLVIMENTISMO’ TAL COMO FOI CONCEBIDO E


PRATICADO REFLETIU NÃO SÓ UM ESTADO DE COISAS, MAS
PRINCIPALMENTE A PRÓPRIA EXPANSÃO TRANSNACIONAL DO
CAPITAL DE BASE NORTE-AMERICANO, QUE NOS VINTE E CINCO
ANOS QUE SE SEGUIRAM AO FIM DA GUERRA EXPERIMENTOU
SURTO SEM PRECEDENTES” (PUIG, 1995, P. 21).

A proposta de desenvolvimento da região também tem


fortes contornos políticos, que não poderiam ser deixados de
lado quando tratamos esse contexto numa visão mais ampla
de difusão do sistema capitalista em nível mundial. O contexto
geopolítico mundial do pós-guerra caracterizou-se pela
acentuada divergência entre os dois principais modelos de
sociedade: a capitalista, liderada pelos Estados Unidos; e, a
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

experiência socialista-comunista levada a cabo pela União


Soviética.

“Eram os tempos da guerra fria, quando um dos


objetivos era favorecer políticas nacionais de
desenvolvimento econômico e provocar mudanças
sociais que tornassem a questão social menos
tensa, não revolucionária. Simultaneamente, essa
foi uma época de rearranjo das relações sociais,
econômicas, políticas e culturais em escala
mundial, no âmbito da guerra fria” (IANNI, 1997, pp.
102-103).

Então, foi nesse clima, e a exemplo do que aconteceu


na Europa, o não-alinhamento das economias latino-
americanas ao regime socialista foi um dos objetivos centrais
da influência dos Estados Unidos na região. O
desenvolvimento econômico latino-americano e sua
respectiva integração no pós-guerra eram apresentados
como uma opção totalmente simétrica ao pan-americanismo.
A grande quantidade de investimentos externos diretos tinha
origem no deslocamento dos capitais norte-americanos, os
quais se constituíram como uma das principais fontes de
financiamento do desenvolvimento econômico da região
após a II Guerra Mundial.13

A Aliança para o Progresso14 refletia bem o espírito de


alinhamento das economias latino-americanas. Essa

13 Uma das maiores investidas americanas na região, principalmente em países como a Argentina, o Brasil e o
México, situaram-se no setor da indústria de bens de consumo duráveis – automóveis e eletrodomésticos,
principalmente. Só no Brasil, por exemplo, após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente nos anos
1950, o montante de capital estrangeiro investido foi da ordem de US$ 294 milhões. Isto reflete,
significativamente, uma poderosa corrente econômica e política de defesa de uma relação de interdependência
com os EUA. Essa corrente buscou atrair fundos externos e capitais de risco para empreender planos de
desenvolvimento. Essa estratégia alcançou seu êxito à medida que o montante de investimentos externos no
Brasil alcançou os US$ 2,5 bilhões, em 1960. Revista Retrato do Brasil, pp. 86-89, 1984.
14 A Aliança para o Progresso tratou-se de um programa de cooperação multilateral criado em 1961, pelos

signatários da Carta de Punta del Este. Esse programa foi lançado pelo então presidente norte-americano John
Kennedy, com o objetivo de incrementar o desenvolvimento econômico-social na América Latina. Na verdade,
esse programa foi uma resposta aos movimentos revolucionários em Cuba e a pressões de setores políticos e
governamentais conservadores da América Latina, preocupados com a situação econômica e social da região.
Santos aponta que essa aliança foi um “passo no sentido de fortalecer os vínculos intercontinentais, apoiados
ao mesmo tempo numa ação militar cada vez mais intensiva em torno do princípio de luta contra a agressão
‘extracontinental’, ampliado com o conceito da ‘agressão interna’ representada pelas guerrilhas, e com as
técnicas da contra-insurreição dirigida à eliminação dessa ‘ameaça externa’ convertida em ‘agressão interna’”
(SANTOS, 1995, p. 114).
42
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

estratégia teria sido vitoriosa em sua plenitude, se não


existissem, na região, economias que se contrapuseram aos
desígnios de expansão da estrutura capitalista. Nesse sentido,
o caso do movimento revolucionário cubano é bastante
simbólico.15

“A América Latina, com poucas exceções de


países e momentos, a mais importante das quais foi
certamente a Revolução Cubana, seguiu a quase
imposição ‘geopolítica’ do alinhamento com o
hegemônico vizinho do Norte, retomando no plano
econômico a também tradicional postura
dependente-reivindicatória, da qual a natimorta
Operação Pan-Americana parece ter sido um bom
exemplo” (PUIG, 1995, pp. 20-21).

Entretanto, de qualquer forma, a estratégia de


desenvolvimento econômico na América Latina obteve
resultados importantes do ponto de vista da industrialização
de alguns países, como é o caso da Argentina, Brasil e México.
Passou-se de um sistema desarticulado para um sistema
integrado, auto-sustentado em alguns setores. A
industrialização contribuiu para dar dinamismo às economias
em seu conjunto. A estrutura produtiva dos países da região
diversificou-se e houve uma crescente diferenciação da
estrutura social (ROSENTHAL, 1990, p. 75. Cf. FURTADO, 1982, p.
54).

Esses avanços estavam “em função da própria


sociedade nacional, suas necessidades e recursos, ou seja,
vislumbrando um autêntico esforço de desenvolvimento”. Por
outro lado, no Brasil, por exemplo, o nacional-
desenvolvimentismo não atendia propriamente aos interesses

15Outros movimentos políticos na região foram bastante expressivos nesse sentido. Entre eles destacam-se: a
experiência, de cunho marxista, da Frente Popular Chilena, que alcançou o poder com Salvador Allende e foi
esmagada em 1973, ao contrariar os interesses de grandes grupos econômicos internacionais, com o apoio dos
Estados Unidos, que desestabilizaram o governo chileno e depois o derrubaram, em luta sangrenta; o
Movimento Nacionalista Revolucionário boliviano na década de 1950, chefiado por Paz Estenssoro e, depois,
em 1952, por Siles Suazo, comandaram uma reforma agrária e a nacionalização das minas, levando, assim, o
país a sofrer uma pressão internacional muito forte e sujeito a vários golpes de Estado pelos militares
(SANTOS, 1995; ANDRADE, 1997; MONIZ BANDEIRA, 2008).
43
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

do grosso da nação, como sustentavam os seus ardorosos


adeptos, mas beneficiava, sobretudo, as frações mais
modernas da burguesia, vinculadas a acumulação
monopolista (PUIG, 1995, p. 20).

Todavia, os interesses maiores prevaleceram. Os


objetivos norte-americanos para a região não foram
revertidos. O pan-americanismo não sucumbiu aos
movimentos revolucionários na região. Nem mesmo a principal
contribuição teórica da região – a escola cepalina – não
parece ter superado essa tendência de alinhamento da
grande maioria dos países latino-americanos à economia
norte-americana.

A seguir, abordaremos o processo de integração


econômica na América Latina no contexto histórico de suas
dificuldades em avançar e obstáculos, os quais fizeram das
primeiras experiências um laboratório fracassado do velho
sonho bolivariano da segunda metade do século XX em
diante. Para tal finalidade, fizemos livre emprego da análise
de Rosenthal (1990), na qual este autor trabalha aquele
processo de integração a partir de algumas tipologias.

5. Breve Retrospectiva dos Processos de Integração


na América Latina

Os antecedentes das primeiras idéias de integração na


América Latina correspondem ao século XVIII, mais
precisamente quando a região lutava por sua independência
política, então empreendida pela figura legendária de Simon
Bolívar (1723-1830), o grande libertador crioulo que pregou o
latino-americanismo, em contraposição ao pan-americanismo
da Doutrina Monroe (que obedecia ao princípio de “uma
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

América para os americanos”). O pan-americanismo, por sua


vez, tinha como proposição libertar a região do colonialismo
português, hispânico e britânico.

Símon Bolívar, ao contrário, concebia uma América


hispânica, independente dos Estados Unidos, cujas origens
culturais, herdadas da Grã-Bretanha, eram bastante distintas,
e o poder econômico e suas ambições expansionistas não
refletiam os interesses libertários da região. Bolívar não poupou
esforços para que fosse instituído o primeiro protocolo de
intenção de integração na América Latina, o Tratado de
União, Liga e Confederação Perpétua, que só chegou a ser
assinado em 1836, após a sua morte.

Esse Tratado visava à união das Repúblicas da


Colômbia, da América Central, do Peru e do México. Além
disso, buscava-se, também, a união em uma só república da
Colômbia, Venezuela, Equador e Peru. O sonho de Bolívar era
formar um novo mundo, uma só nação, com um só vínculo
que ligasse suas partes entre si e com o todo, aproveitando as
características comuns da região, a língua, os costumes, a
religião (o predomínio do catolicismo), com um só governo
que confederasse os diferentes estados que se formassem.

As primeiras propostas integracionistas de caráter


econômico na América Latina foram formuladas,
basicamente, na década de 50. De acordo com Rosenthal
(1990), três grandes etapas caracterizam os processos de
integração latino-americana: a etapa voluntarista, a etapa
revisionista e a etapa pragmática. Todas elas apresentam suas
especificidades que merecem nossa atenção.
45
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

5.1. Etapa Voluntarista

A etapa voluntarista descrita por Rosenthal (1990)


compreende o período 1950/1960. A integração econômica
nesse período obedecia aos objetivos da estratégia
desenvolvimentista elaborada pela Cepal, abordado
anteriormente.

O modelo de substituição de importações pressupunha,


para o seu sucesso, a existência de um mercado interno que
viabilizasse a escala mínima de produção dos recentes
empreendimentos industriais. Apenas três países na região,
Argentina, Brasil e México, possuíam mercado interno em
dimensão tal, que permitia o avanço do processo de
industrialização em um grau considerável de complexidade.
Enquanto isso, os demais não apresentavam uma estrutura de
mercado à altura das propostas desenvolvimentistas.

Então, se o modelo de substituição de importações


dependia da dimensão do mercado interno, e alguns países
da região não apresentavam circunstâncias favoráveis, a
estratégia criada pela Cepal foi de integrar os vários
pequenos mercados dos países latino-americanos.

Dois outros fatores foram importantes e contribuíram


para se levar adiante a proposta de integração econômica
nesse período. O primeiro, diz respeito ao limite imposto pelas
barreiras alfandegárias e não alfandegárias, que se
justificavam pela proteção dos empreendimentos industriais
nascentes. A excessiva proteção de alguns mercados
domésticos poderia resultar na criação de uma estrutura
monopolista e, desta maneira, prejudicar os objetivos de
diversificação da estrutura produtiva na região. Para que isso
não ocorresse, e os efeitos monopólicos fossem atenuados,
46
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

tinha-se a idéia de que a integração econômica também


poderia proporcionar a região um maior nível de
competitividade.

O segundo fator era a impossibilidade de alguns Estados


nacionais financiarem e colocarem em prática as estratégias
de crescimento econômico. Os recursos eram escassos,
portanto, também nesse contexto, a integração econômica
seria uma alternativa para viabilizar uma estratégia de
desenvolvimento, que seria irrealizável nas dimensões das
pequenas economias periféricas.

Portanto, objetivando promover a integração


econômica regional e avançar nas primeiras definições de
uma proposta que concretizasse esse processo, a Cepal em
1957, através de seu “Comitê de Comércio” deu origem ao
“Grupo de Trabalho para o Mercado Regional Latino-
Americano”, o qual, por sua vez, instituiu, em 1959, “O
Mercado Comum Latino-Americano”. Em seguida a esta
conformação, foi assinado em 1960 o Tratado de Montevidéu,
instituindo a ALALC (Associação Latino-Americana de Livre
Comércio), a primeira experiência propriamente dita de
integração econômica. Ratificaram este Tratado a Argentina,
Brasil, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e
Venezuela.16 O objetivo último da ALALC era constituir, na
região, um mercado comum nos moldes da experiência
avançada da Europa. Para que isso fosse alcançado, o
projeto inspirava-se numa visão de avanços graduais, porém,

16 Essa época foi bastante favorável para que outros tratados fossem assinados, dando origem a outras
tentativas de integração, como foi o caso da criação do Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), em 1960;
em 1968 foram criados a Associação de Livre Comércio do Caribe (CARIFTA) e o Mercado Comum do Caribe
(MCCO), posteriormente transformado na Comunidade do Caribe (CARICOM); e, em 1969, a criação do Pacto
Andino.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

progressivos em direção a metas pré-determinadas


(ROSENTHAL, 1990, p. 76).

Na retórica, todos os tratados assinados nessa época


estabeleciam compromissos relativamente rígidos: lograr uma
zona de livre comércio juntamente com a adoção de uma
Tarifa Externa Comum (TEC) frente a terceiros países. A
constituição dessa área livre-cambista tinha um prazo fixado
em 12 anos, a partir da assinatura do Tratado de Montevidéu.

No início, segundo Rosenthal, a integração regional


proporcionou um aumento do volume de comércio na região.
Porém, devido ao lento processo de negociação de Listas de
Concessão e Listas Comuns dos produtos sujeitos ao comércio
preferencial, o comércio intra-regional praticamente estagnou
no final dos anos 1960.17

A desaceleração do processo de liberalização


comercial no âmbito da ALALC foi basicamente a causa do
fracasso da tentativa de integração econômica em termos
continentais. Os países se mostraram cada vez menos
dispostos a negociar ao ter-se esgotado a etapa “fácil” da
substituição regional de importações e ao terem que abordar
a negociação de produtos que competiam diretamente com
suas respectivas produções internas. Isto indica que houve
mais benefícios advindos de desvios de comércio, em nível
extra-regional, do que a criação de comércio intra-regional. A
grande ênfase no protecionismo tarifário, que caracterizava o
período, acarretou para os países membros desses acordos,

17 De acordo com Montoya e Guilhoto (1987), as exportações regionais quase dobraram entre os anos de 1961
em 1964, passando de US$ 490 milhões para US$ 835 milhões. Contudo, a participação relativa do comércio
intra-regional sobre as exportações totais da ALALC, cresceu em torno de 8% entre 1960-64, 11,4% até 1971-
1972 e 13,8% em 1979-80. Porém, supõe-se um aumento proporcional do comércio intra-regional em relação
às exportações totais de 29,8% no período 1960-72 e de 17,4% no período 1972-80. Assim, tem-se que o
crescimento do comércio intra-regional dos primeiros anos da década de 1960, não pôde ser sustentado entre
1970-80.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

significativos efeitos de desvio de comércio (trade diversion)


que nessas pequenas economias poderiam mesmo superar os
benefícios da criação de comércio (trade creation)
decorrente da redução das barreiras tarifárias regionais
(GONÇALVES, et. al., 2004)

A preocupação em não negociar Listas de Concessão e


Listas Comuns de produtos deveu-se ao fato, no âmbito da
ALALC, de coexistirem países com níveis desiguais de
desenvolvimento econômico. Isto é, os países menos
desenvolvidos não tiveram condições de participar dessas
negociações em pé de igualdade com os países mais
desenvolvidos, como era o caso da Argentina, Brasil e México,
os quais apresentavam um nível de produtividade bem acima
dos demais países da região. A rigidez dos acordos
multilaterais exigia que qualquer benefício que dois ou mais
países se concedessem deveria ser estendido aos demais
membros da organização. Nesse sentido, a falta de
mecanismos compensatórios na ALAC, que pudessem
proporcionar aos países menos desenvolvidos a viabilização
de acordos que não trouxessem prejuízos para os respectivos
balanços de pagamentos, foi um dos pontos que mais
corroboraram para o fracasso das várias negociações
multilaterais, impedindo, com isso, o avanço nas propostas de
integração.

Rosenthal reconhece que existia uma tendência a


minimizar os ganhos com a integração, inclusive em seus anos
de auge. Todavia, ia se perdendo de vista que o intercâmbio
recíproco na década de 1960, foi o elemento mais dinâmico
do comércio exterior na região. Esse dinamismo foi
responsável pelo aumento significativo dos níveis de
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

interdependência econômica entre os países membros de


organizações sub-regionais, sobretudo os países de menor
dimensão.

“Assim mesmo, se empreenderam projetos


conjuntos de infra-estrutura, se criaram instituições
comuns e se geraram instâncias de cooperação
entre associações sub-regionais ou regionais
representativas de diversos grupos e interesses [...]
Todavia, a integração econômica não avançou de
acordo com os postulados originais, e o marco
conceitual que orientou o desenvolvimento dos
países da região durante os anos cinqüenta passou
a ser questionado” (ROSENTHAL, 1990, p. 77).

Como a participação dos países menos desenvolvidos


no comércio intra-regional diminuía, o itinerário da formação
das zonas de livre comércio não se cumpria, e se via que a
integração não necessariamente era um processo progressivo,
nem muito menos linear, senão que podia ser descontínuo e
inclusive, às vezes, apresentar retrocessos. Portanto, a fixação
de metas excessivamente ambiciosas e marcos institucionais
rígidos, não somente contribuíram pouco para se alcançar os
objetivos, como também se apresentavam
contraproducentes, na medida em que a crescente distância
entre expectativas e logros criava frustrações entre os países
membros da ALALC.

Somado a esses fatos, a desigualdade econômica entre os


países da região também se constituiu num obstáculo. Os menos
desenvolvidos consideravam seus respectivos mercados
domésticos como um ativo estratégico para expô-los à
concorrência de seus vizinhos latino-americanos de economias
mais desenvolvidas, principalmente no fornecimento daqueles
produtos que tinham uma demanda no mercado internacional
de baixa elasticidade-renda, como é o caso dos produtos
50
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

primários. Nesse caso, os mecanismos de Listas de Concessões e


Listas Comuns, não apresentavam instrumentos de política
compensatória eficientes para contrabalançar os efeitos
negativos da competitividade regional nos países de menor
desenvolvimento econômico.

Por causa desses aspectos, tentativas de formação


daquilo que seria um projeto ambicioso, rumo a um mercado
comum, semelhante ao exemplo europeu, não passou nem
mesmo da formação simples de uma área de livre comércio. Os
processos de liberalização comercial entre países signatários de
acordos regionais ou sub-regionais na América Latina, não
obedeceram a um cronograma factível com a realidade
econômica. O resultado, porém, foi o fracasso dessas políticas e
suas propostas de integração.

Mas algo de positivo ficou desta experiência de


integração. O mais importante é considerar a experiência
alcançada nesse período. Como veremos a seguir, muita
coisa iria mudar em termos de propostas e objetivos. Porém,
ultrapassada a fase de entusiasmo do modelo de substituição
de importações e, posteriormente o seu esgotamento, os
processos de integração econômica na América Latina
assumiram um caráter de cautela e revisão.

5.2. Etapa Revisionista


Alguns fatos internacionais importantes antecedem essa
etapa e marcam uma nova realidade para os países latino-
americanos em termos de integração econômica. A
instabilidade econômica internacional, ocasionada pelo
rompimento do Consenso de Bretton Woods em 1971 e,
posteriormente, pela eclosão da primeira crise do petróleo em
1973, levou os países da região a reverem suas estratégias de
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvimento e, com isso, as propostas de integração


econômica.

No início dos anos 1970, “o modelo de industrialização,


característico dos anos precedentes, perdia dinamismo e, em
parte como uma reação as insuficiências do marco
conceitual dominante até então, vários governos ensaiaram
modelos alternativos, alguns de corte bastante doutrinário,
sobretudo monetarista ou neoliberal” (ROSENTHAL, 1990, p. 78).
A crise da estratégia cepalina de desenvolvimento, baseada
no modelo de substituição de importações, foi concomitante
ao início da crise do regime fordista de produção nos países
desenvolvidos capitalistas. O marco conceitual, as políticas
keynesianas de corte intervencionista com ampla
participação estatal na economia, começaram a ser
questionadas; instaurou-se uma verdadeira ofensiva
conservadora, basicamente montada sob os auspícios da
teoria monetarista de cunho liberal.

Como o antigo marco conceitual, deixou de nortear,


quase todas as propostas de desenvolvimento econômico na
América Latina, não seria diferente que os objetivos
integracionistas se vissem também afetados. Alguns resultados
da economia latino-americana, já no início da década de
1970, exibiam os reflexos da crise econômica mundial que
emergia.

Algumas estatísticas dessa época demonstram a


involução de algumas economias latino-americanas. Com
exceção da economia brasileira, após a Segunda Guerra
Mundial, Argentina, Chile e Uruguai apresentavam a maior
renda per capita da região, cerca de 1/3 do PIB, com apenas
17% da população. A partir da década de 1970, os mesmos
52
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

três países geravam menos de 1/4 do PIB regional. No período


entre 1945 e 1975, o PIB somado desses três países cresceu
apenas 3,5% ao ano, enquanto o PIB do resto da região
cresceu a 6,2% ao ano. Desta forma, enquanto a Argentina
mantinha sua posição de mais elevada renda per capita na
América Latina, o Chile desceu da terceira à sétima
colocação e o Uruguai da segunda à quinta colocação.

Esses e alguns outros resultados econômicos negativos


foram responsáveis pela rapidez com que as idéias neoliberais
difundiram-se nessas regiões. A culpa pelo desaquecimento
do crescimento regional no pós-guerra foi alçada sobre a
crescente e exagerada intervenção do Estado na região, que
substituiu o mercado como principal mecanismo de alocação
de recursos. Essa explicação implausível era colocada pelos
neoliberais, que tinham como alvo de críticas o keynesianismo,
pautados no monetarismo de Hayek e Friedman, no novo-
classicismo de Lucas e Sargent, os quais argumentavam
contra a iniquidade do sistema anterior de pensamento
econômico e influência política, o keynesianismo.

Praticamente não há dúvidas de que o modelo de


desenvolvimento econômico latino-americano não
prosseguiria sem mudanças radicais do ponto de vista
conceitual. Com isso as estratégias de integração econômica
também seriam mudadas, tanto no sentido de rever os erros
cometidos no passado, tentando, agora, alcançar objetivos
mais realistas, como também estabelecer uma nova função
para se levar adiante uma proposta de integração regional. A
partir de então, inicia-se a etapa pragmática.
53
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

5.3. Etapa Pragmática


Considerando a tentativa fracassada de integração
econômica precedente (ALALC), a qual nem sequer chegou
a alcançar uma zona de livre comércio, o que se postulou
para uma nova proposta integracionista foi o abandono de
metas pré-fixadas e objetivos ambiciosos:

“Se pôs ênfase na ‘integração informal’ e na


‘integração por projetos’ em vez dos compromissos
formais e totalizadores; praticamente se
abandonaram os projetos de concessão de
atividades e a regulação da inversão estrangeira
direta e começaram a experimentar mecanismos
de comércio compensatório de troca e outras
modalidades de cunho mais bilateral do que
multilateral” (ROSENTHAL, 1990, p. 78).

Portanto, no início da década de 1980, foi assinado na


região um novo Tratado de Montevidéu. Este deu origem a
uma nova organização regional, a ALADI (Associação Latino-
Americana de Integração). Essa proposta de integração
caracterizava-se por ser menos ambiciosa em termos de
objetivos e metas a serem alcançadas, ao contrário da
experiência precedente.

O ponto em comum entre a nova organização e a


anterior foi a manutenção, do estabelecimento de um
mercado comum latino-americano. Desta vez deu-se mais
ênfase a criação de acordos bilaterais e sub-regionais para
estimular as relações comerciais e possibilitar, com isso, o
tratamento diferenciado entre os países signatários. A idéia de
acordos multilaterais é esquecida, dando lugar a
negociações bilaterais, menos conflituosas no momento de se
negociar Listas de Concessão e Listas Comuns entre países
com nível de desenvolvimento diferentes.
54
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Outra característica importante desta nova proposta é


que ela não estipulou prazos fixos. Ao contrário, o
cumprimento das metas instrumentais não seguiu um
cronograma rígido, podendo mudar de acordo com as
conveniências de cada país em termos de política
econômica. Portanto, a natureza dos objetivos da ALADI,
“contrasta com o caráter determinista da anterior”, da ALALC
(ROSENTHAL, 1990, pp. 78-79).

No âmbito da ALADI foram estabelecidos cinco


princípios básicos importantes e que resume bem as suas
propostas: pluralismo; flexibilidade; convergência; tratamento
diferenciado; e, multiplicidade. O pluralismo e a flexibilidade já
foram colocados logo acima.

Quanto ao tratamento diferenciado o importante foi o


estabelecimento de três grupos de países membros,
diferenciados de acordo com o nível de desenvolvimento, são
eles: a) Bolívia, Equador e Paraguai; b) Argentina, Brasil e
México; e c) Colômbia, Chile, Peru, Uruguai e Venezuela.
Finalmente, o princípio da multiplicidade permitiu a
possibilidade de distintas formas de união econômica sub-
regional entre os países signatários, em harmonia com os
objetivos da integração latino-americana, no âmbito das
negociações da ALADI.

De qualquer maneira, a tentativa integracionista


anterior a ALADI permitiu uma transferência de experiência. A
nova reorientação dos processos integradores na América
Latina foi produto, justamente, “da experiência acumulada
nos vinte anos anteriores, de predomínio de esquemas rígidos
e compromissos inevitáveis” (ROSENTHAL, 1990, pp. 78-79). Os
países-membros da ALADI passaram a dispor de uma gama
55
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

muito maior de instrumentos de política econômica. Existem


atualmente acordos de alcance regional e de alcance
parcial, por exemplo, acordos comerciais, de
complementação econômica, de abertura de mercado,
acordos agropecuários e outros com preferência tarifária
regional. 18

Apesar das mudanças instituídas no âmbito da ALADI, o


comércio intra-regional latino-americano não evoluiu de
maneira significativa na década de 80. Com relação às
importações totais da região, o comércio decresceu de 13,8%,
em 1980 para 13,1%, em 1988; com relação às exportações
intra-regionais totais, o mesmo foi verificado, o comércio
passou de 15,5% para 11,2%, respectivamente. Com as
exportações extra-regionais, a história não foi diferente; elas
caíram em média 3,2% no início da década mencionada
(ROSENTHAL, 1990, pp. 79-80; MONTOYA e GUILHOTO, 1987).

A desaceleração do comércio intra-regional durante


boa parte da década de 1980 deveu-se às instabilidades
econômicas causadas pela crise da dívida externa. A
necessidade de se obter divisas para assegurar os
pagamentos dos serviços da dívida (juros e amortizações),
arrefeceu as relações intra-regionais, a partir de meados de
1983, e desaqueceu o comércio intra-regional.

De qualquer forma, isso não quer dizer que houve um


processo de desintegração econômica na região.19 Pelo

18 Esses acordos estão consoantes ao princípio da multiplicidade. Nos acordos de alcance regional participam
todos os países-membros e nos de alcance parcial, participam apenas alguns países-membros. Um exemplo de
acordo parcial é o MERCOSUL.
19 Os anos 1980 marcaram, nos países de menor desenvolvimento, uma insatisfação com tal processo. Os

resultados com a ALALC não foram tão positivos para esses países. Rosenthal afirma, que “os benefícios
recebidos da integração no passado se converteu em um fator retardatário do processo negociador, exacerbado
pelos custos da integração derivadas do desvio de comércio”. Entre outros fatores, o autor aponta dois
importantes que conspiraram para os insucessos da integração no âmbito da ALALC: “a escassa vinculação
comercial e infra-estrutura pré-existente” (ROSENTHAL, 1990, p. 86).
56
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

contrário, a integração era vista como uma estratégia


alternativa para enfrentar melhor a conjuntura internacional
adversa, já que a sua retomada no início dos anos 1980,
através da ALADI, obedecia, fundamentalmente, tanto a
fatores políticos quanto econômicos, que se expressavam no
âmbito regional e mundial.20

Sob a influência desses fatores, e demonstrando haver


realmente uma tendência ao fortalecimento da idéia da
integração, um fato importante ocorreu nessa etapa. Por
decisão política dos governos do Brasil e da Argentina, em
1986 foi assinado, no âmbito das iniciativas bilaterais ou de
integração sub-regional, a Ata para Integração Argentina-
Brasil. Essa iniciativa tinha como objetivo principal, iniciar um
processo de integração econômica entre as duas maiores
economias sul-americanas. De fato, tal iniciativa suscitou um
programa amplo de integração bilateral que superou as
divergências históricas entre os dois países. Por outro lado,
pode-se fortalecer, em termos, o poder de barganha dos dois
países nas relações internacionais em torno do problema da
dívida externa.

Após um interregno de quase doze anos (1979-1990)


sem crescimento econômico, onde a maior parte das
economias latino-americanas sofreu com o esgotamento do
modelo de desenvolvimento, pautado na substituição de
importações e amparado substancialmente em

20 “A questão da dívida externa [...] converteu-se num ponto central de articulação diplomática no
subcontinente”. Theotônio dos Santos aponta que essa articulação em torno do problema da dívida externa dos
países do terceiro mundo, foi uma iniciativa do presidente de Cuba, Fidel Castro. Após seis congressos sobre
esse tema, Fidel “conseguiu criar uma forte consciência sobre a dimensão da dívida, a impossibilidade do seu
pagamento e perspectiva de utilizá-la como um fator de unidade latino-americana, de colaboração Sul-Sul e de
pressão sobre as potências econômicas” (SANTOS, 1995, p. 126). Outros fatores são também importantes no
contexto dos interesses integracionistas nesse período, tais como: a) a reabilitação de normas de convivência
democrática em vários países da América Latina, b) os efeitos e conseqüências do segundo choque do petróleo
(1979) no balanço de pagamentos dos países da região; e, c) a nova tendência da economia internacional que
apresentou a integração econômica como uma condição necessária para o desenvolvimento de novas
tecnologias, captação de investimentos externos e proteção seletiva dos mercados internos.
57
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

financiamentos externos, os anos 1990 iniciam-se sob um novo


contexto internacional. O atual período emerge sobre três
novas características, que definem bem esse novo contexto:
a) a globalização dos fenômenos econômicos –
ideologicamente colocada como um fato novo e irreversível
(HIRST e THOMPSON, 1998); b) uma resposta latino-americana
a essa globalização, com uma gradual tendência em direção
a uma maior convergência entre os países da região em
matéria de política econômica, inclinada principalmente para
uma liberalização comercial e a adoção de metas comuns de
desenvolvimento; e, c) a convergência, pelo menos
aparentemente, para regimes políticos plurais, participativos e
democráticos (ROSENTHAL, 1990, p. 81).

Antes, a integração regional tinha um papel


preponderante nas estratégias de desenvolvimento
econômico na América Latina. Atualmente, impõem-se aos
países da região novas estratégias de desenvolvimento
econômico, sintonizadas com a nova realidade da economia
mundial. Neste contexto, “é razoável supor que a integração
seja funcional a estas novas estratégias nacionais de
desenvolvimento” (ROSENTHAL, 1990, p. 82). A discussão
persiste na reestruturação das economias nacionais,
transformando-as produtivamente, prometendo-se maior
equidade social em cada país. Em termos de integração, o
objetivo deveria ser

“[...] compatível com o esforço de melhorar a


competitividade internacional; ou seja, a
integração deve contribuir para o cumprimento dos
objetivos específicos de fortalecer a inserção
internacional, favorecer a articulação produtiva e
induzir a interação criativa entre os agentes
públicos e privados”(ROSENTHAL, 1990, p. 82).
58
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

No entanto, a história da década de 1990 parece não


ter seguido o rumo traçado por Rosenthal. Muito pelo
contrário, apesar da importância que o MERCOSUL foi
assumindo, gradativamente, principalmente para os países do
Cone Sul signatários do Tratado de Asuncion, o processo de
abertura econômica e desregulamentação financeira que a
maioria dos países latino-americanos e, em especial, sul-
americanos adotou, enfraqueceu absolutamente qualquer
iniciativa mais profunda de integração. Como, ficou patente
com a crise cambial brasileira (1999) e a profunda crise
argentina (2001), temos muito que trabalhar para poder
integrar mais as economias desses países dentro de uma
perspectiva de desenvolvimento econômico e social.

6. Notas Conclusivas

Nessas notas é importante ressaltar alguns pontos que


não se pode deixar de considerar diante do que foi colocado
ao longo desse trabalho. Em primeiro lugar, o processo de
integração econômica não se desenvolve somente por
deliberação política ou interesse meramente econômico.
Trata-se de um movimento mais abrangente que envolve
também aspectos importantes que muitas vezes fogem das
perspectivas econômicas. A diversidade entre os povos, a
diferença lingüística e a falta de conhecimentos mútuos, são
barreiras somente superadas pelo tempo e o interesse das
sociedades em se voltarem para suas fronteiras num caminho
de adensamento das relações culturais, políticas e sociais. Isso
requer um tempo relativamente longo e necessidades
prementes.

Em segundo lugar, do ponto de vista econômico, os


países latino-americanos nunca contaram com um eixo que
59
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pudesse congregar as vontades nacionais com o objetivo da


integração. O exemplo da União Européia, apesar dos
percalços ao longo de todo o processo, é difícil de ser repetir
pela complexidade dos fatores que envolveram os interesses
mútuos. Como vimos, a questão energética foi um dos fatores
centrais para assinatura do Tratado de Paris que criou a
Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Outro elemento
não desprezível foi a ameaça, que se consolidaria mais tarde,
do surgimento do dólar americano como padrão de
pagamento internacional. Como aponta Barry Eichengreen,
Charles de Gaulle, presidente francês no pós II Guerra
Mundial, observava na ascensão da hegemonia do dólar um
grave risco a segurança econômica, bem como à autonomia
da Europa. Portanto, a questão monetária em torno de uma
idéia de criação de uma moeda comum no antigo
continente, também funcionou como um elemento
catalisador da integração. Entretanto, nada pode ter sido tão
mais influente que a Política Agrícola Comum (PAC) como
formação de um eixo de aproximação dos interesses
econômicos e políticos da União Européia. Esse fator tinha sua
relevância na garantia de critérios mínimos de segurança
alimentar para a Europa setentrional e, também, como
inibidor de grandes problemas sociais que poderiam ser
causados se a agricultura da região não fosse protegida e
subsidiada para enfrentar a concorrência internacional e
garantir presas ao solo as famílias produtoras.

Como pudemos constatar a América Latina e,


especialmente, a América do Sul, não gozaram de situações
tão favoráveis que pudessem tornar a integração econômica
regional uma realidade mais avançada. Muito pelo contrário,
com economias com um histórico de rivalidades econômicas
60
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

em razão de serem produtoras e exportadoras de bens


primários, no longo período colonial e neocolonial, e com
graus tão diversos de industrialização, o percurso da região
seguiu uma trajetória muito distante e diversa de outros
exemplos mais conspícuos de integração. Entretanto, mais
recentemente, pelo menos há quinze anos vem se
desenhando um cenário futuro muito alvissareiro na
perspectiva da região encontrar um eixo para a integração,
uma força centrípeta que acenda ainda mais as vontades
políticas. A América do Sul é uma região rica e diversificada
em fontes energéticas. Esse aspecto merece todo o cuidado
de análise, porque já vimos como os governos voltaram a se
preocupar com suas fontes estratégicas e a movimentação
de vários deles em criar uma rede de proteção em torno
dessas fontes demonstrou que esse pode ser um elemento vital
para uma integração política e econômica. A questão
energética, portanto, pode significar uma janela de
oportunidade para a defesa dos interesses regionais, num
ambiente de mudanças rápidas e acirramento das rivalidades
em torno das fontes de energia mundiais.

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63
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Um estudo sobre a Divisão Internacional do


Trabalho

Apoena C. Cosenza1

RESUMO
A existência ou não da divisão internacional do trabalho (DIT)
baseada na exploração econômica da periferia do sistema pelo
centro é um fator relevante a se considerar para a elaboração de
políticas econômicas de um país. Levando em conta a exploração
como fruto de (α) trocas desiguais; (β) extração de riquezas através
do envio de remessas por Firmas Multinacionais e por amortização e
pagamento de dívidas; e (τ) espoliação extraeconômica, a DIT
parece continuar a ser uma característica relevante na economia
internacional. Pretende-se, nesse artigo, apresentar um estudo sobre
as principais características da divisão internacional do trabalho e
refletir como ela poderia estar ativamente se reproduzindo no
cenário econômico contemporâneo.

Palavras-chaves: Divisão Internacional do Trabalho, Trocas


Desiguais, Monopólio, Imperialismo, Balanço de Pagamentos.

ABSTRACT

The existence of the international division of labour (IDL) based at


exploitation of the periphery by the center of the economic system is an
important factor to consider when developing economic policies of any
peripheral country. Considering this exploitation as a result of (α) unequal
exchanges; (β) extraction of wealth through remittances of profit by
Multinational Firms and amortization and payment of debts; and (τ) extra-
economical spoliation, the IDL appears to remain a relevant feature in the
international economy. It is intended in this article to present a study on the
main characteristics of the international division of labour, and to consider
how it could be actively reproducing in contemporary economic scenario.

Keywords: International Division of Labor, Unequal Exchanges,


Monopoly, Imperialism, Balance of Payments.

1 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo.


64
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Um debate corrente e de importância para o


entendimento da história econômica é se vivemos hoje uma
nova divisão internacional do trabalho (DIT) que permite o
surgimento de países intermediários e que quebre com a
antiga lógica da relação entre centro e periferia. Esse debate
possui importância pela relevância para a formulação da
política econômica a ser adotada pelos países. Caso a DIT
não seja mais marcada por aquela relação, seria possível a
realização de políticas que alavancassem um país à uma
posição mais favorável no comércio internacional. Seria
factível, dessa forma, atingir uma melhoria gradual através da
ampliação do número de parceiros comerciais e conseguindo
garantir um balanço de pagamentos positivo.
No entanto, caso a relação entre o centro e a periferia
seja uma ferramenta de exploração, as políticas econômicas
a serem aplicadas pelos países periféricos precisariam
objetivar a redução da dependência em relação ao centro.
A possibilidade de desenvolvimento dependeria, se essa teoria
se demonstrasse verdadeira, da preocupação direta em
diminuir a influência do imperialismo.
A discussão teórico-metodológica, a análise dedutiva,
e a apreciação de alguns dados estatísticos nos leva a
acreditar que ainda há uma DIT que funciona através da
existência de alguns poucos países que recebem os bônus do
capital, enquanto a grande maioria dos países perde
anualmente bilhões de dólares no processo de troca
internacional. Houve, se analisarmos um período de tempo
suficientemente grande, mudanças conjunturais, mas
permaneceu a estrutura econômica pautada na divisão
internacional entre centro e periferia do sistema.
65
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Notas sobre a definição da divisão internacional do trabalho.

Antes de discutir se a DIT passou por uma mudança


radical ou não nos últimos tempos, é necessário definir o que
se entende por divisão internacional do trabalho. A ideia de
uma divisão internacional do trabalho que é desigual parte da
tese da existência de países que sejam desenvolvidos e
subdesenvolvidos2.
Segundo Lenin, a lei de desenvolvimento desigual leva
a divisão internacional do trabalho, mas não é a sua essência.
Essa antes pode decorrer, entre outros fatores: (a) da
destruição de poderes locais nacionais pelo colonialismo e
imposição de formas de exploração (e dominação); (b) da
associação com elites locais e imposição de formas de
exploração (e dominação); e (c) das transformação das
colônias em semicolônias e países dependentes.
A divisão dos países entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento) passou por
mudanças, mas mantém o mesmo pressuposto teórico: A
diferença de riquezas é resultante da diferença do momento
histórico em que cada país se encontra, e do sistema de
exploração e dominação estabelecido em favor dos países
desenvolvidos.
Diversos teóricos, como Samir Amin, Arghiri Emmanuel e
Christian Palloix reforçaram a leitura que existiriam estruturas
de dominação que estabelecem uma relação desigual entre
os diferentes países. Existem, para esses autores, ferramentas
que se reproduzem historicamente para exploração e
pilhagem das riquezas dos países periféricos por parte dos

2 AMIN, Samir. L’impérialisme et le Développement inégal. Paris: Les édition de minut, 1976.
66
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

países centrais. Seriam justamente essas ferramentas de


exploração que acirram a divisão do mundo entre alguns
países ricos e diversos países pobres.
Assim, conforme as palavras de Samir Amin: “As
desigualdades de produção são comuns e largamente
espalhadas e, mesmo entre os países desenvolvidos, o
progresso jamais é igual, mas sempre localizado nas indústrias
(ramos industriais) novas” 3. Em outras palavras: a
desigualdade entre os diferentes países existe e pode ser vista
facilmente em nosso mundo. Mesmo entre os países
chamados desenvolvidos evidenciam-se diferenças e são elas
que expressam a existência de relações desiguais entre as
diversas nações, o que permite o acirramento da
desigualdade mundial.
Isso é parte importante da DIT, que pode passar por
mudanças conjunturais de forma, sem mudar sua estrutura
central. Samir Amin, Arghiri Emmanuel e Christian Palloix
procuraram entender a essência por trás do funcionamento
da DIT. Diferentes autores, como Folker Fröbel, Jürgen Kreye, e
Marcio Pochmann, analisaram mais recentemente as
mudanças de forma ocorridas na divisão internacional do
trabalho.
Folker Fröbel e Jürgen Kreye apontaram que, até 1970,
houve três formas de divisão internacional do trabalho: (I) do
século XVI ao XVIII, caracterizada por haver trabalho livre,
independente ou assalariado, na Europa ocidental para a
produção de bens manufaturados e trabalho escravo e
semiescravo na extração de metais e produção agrícola nas
colônias; (II) século XVIII e XIX, caracterizada por trabalho

3 AMIN, Samir. Laccumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 25. Tradução
própria.
67
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

assalariado e industrial na Inglaterra e, posteriormente, em


alguns outros países, e trabalho escravo e semiescravo na
produção de bens primários nas colônias; e (III) primeira
metade do século XX, caracterizada por trabalho assalariado
como base da manufatura na Europa, USA e Japão, e forma
de trabalho assalariada precária, escravo e semiescravo, na
periferia para a produção e extração de bens primários.4
A partir de então, segundo tais autores, teria surgido
uma nova forma de DIT caracterizada pela tendência de: (i)
superação da divisão do mundo entre poucos países
industrializados e o restante dos países como exportadores de
produtos primários; e (ii) o aumento da subdivisão do processo
de manufatura em grande número de operações parciais que
são realizadas em industrias espalhadas pelo mundo5. Não se
deve descartar a hipóteses que essa divisão de funções
mesmo entre diversos países periféricos faria parte do
funcionamento tradicional da divisão internacional do
trabalho (por exemplo, no Brasil se plantava café, no México,
no Uruguai e na Argentina, se criava carneiros e gados, etc.).
Marcio Pochmann definiu essa nova divisão
internacional do trabalho pelas características: (a)
financeirização da economia6; (b) fortalecimento de
oligopólios mundiais, que dominam os principais mercados7;
(c) aumento da importância do comércio intrafirmas, que
superam as trocas realizadas pelas nações8; (d) a oposição
entre países centrais, onde predomina o trabalho de pesquisa,

4 FRÖBEL, Folker; HEINRICHS, Jürgen; KREYE, Otto. The New International Division of Labour. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009. pg 11
5 FRÖBEL, Folker; HEINRICHS, Jürgen; KREYE, Otto. The New International Division of Labour. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009. pg 45
6 POCHMAN, Marcio. O emprego na globalização. A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que
o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo, 2007 pg 27
7 POCHMAN, Marcio. O emprego na globalização. A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que
o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo, 2007 pg 27
8 POCHMAN, Marcio. O emprego na globalização. A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que
o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo, 2007 pg 28
68
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvimento e administração, em relação a países


periféricos que realizam a produção, em especial a primária e
a de certa manufatura9; e (e) realização de trabalho
qualificado no centro e de trabalho desqualificado na
periferia, havendo maior desemprego na periferia do que no
centro10.
Os autores citados deixam claro, no entanto, que a
mudança das características da divisão internacional do
trabalho significa uma mudança de aparência. Conforme
afirmam Fröbel e Kreye, a DIT não rompeu com o processo
histórico que caracteriza a dependência dos países periféricos
em relação aos países centrais. Pelo contrário, a aprofundou 11.
O colapso da economia de bem-estar pode ter contribuído
para esse processo.
Portanto, essa tese parte do princípio da relação
desigual entre centro e periferia: a periferia é montada pelo
centro para fazer o que ele precisa e não quer fazer em seu
próprio território. Isso explica a divisão entre países pobres e
países ricos pela exploração que os primeiros sofrem dos
segundos. A exploração realizada pode tomar diferentes
formas sem mudar ainda a essência.

O Funcionamento da DIT, uma análise dedutiva sobre o tema.

Um dos argumentos comuns dos teóricos que afirmam


o fim da DIT seria: (i) a divisão internacional do trabalho
desigual era sustentada por uma troca desigual vertical entre
potências centrais (Europa e EUA) e países periféricos; (ii)

9 POCHMAN, Marcio. O emprego na globalização. A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que
o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo, 2007 pg 34
10 POCHMAN, Marcio. O emprego na globalização. A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que
o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo, 2007 pg 35
11 FRÖBEL, Folker; HEINRICHS, Jürgen; KREYE, Otto. The New International Division of Labour. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009. pg 403
69
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

houve uma mudança no caráter das trocas, que deixaram de


ser verticais e passaram a ser horizontais, perdendo seu
caráter desigual; e (iii) mediante a possibilidade de trocas
iguais os países podem ser divididos por sua etapa do
desenvolvimento, e não mais pelo seu papel num sistema
mundial favorável ao centro.
Antes de analisar os dados que permitem sustentar ou
contrariar essa suposta mudança, é necessário retomar a
literatura clássica. Samir Amin, Arghiri Emmanuel e Christian
Palloix estudaram com profundidade a essência por trás da
DIT. Para isso, utilizaram dados estatísticos e uma discussão
teórica de alto nível. Para esses autores, os mecanismos de
exploração não podiam ser inteiramente compreendidos
apenas pela lógica indutiva através da análise estatística.
Amin deixou claro em diversas passagens de suas obras
L’accumulation à l’echelle mondiale e L’Imperialisme et le
developpement inégal, que a as ferramentas utilizadas para a
realização da pilhagem da periferia econômica por parte do
centro só podem ser apreendidas inteiramente através do
resultado das mesmas e pelo trabalho dedutivo sobre os
mecanismos econômicos.
Em outras palavras, no processo analítico utilizado para
estudar a desigualdade: (a) parte-se da realidade existente,
da desigualdade visível entre os diferentes países; (b) busca-se
na análise dedutiva da economia e dos mecanismos
econômicos a explicação possível para o processo de
exploração que aprofunda a desigualdade; (c) buscam-se os
dados econômicos que sustentem a análise e elaboração de
fórmulas deduzidas; e (d) se verifica se a realidade condiz
com a explicação deduzida.
70
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Dos autores citados, Emmanuel Arghiri e Samir Amin


representam uma linha diferente da proposta por Christian
Palloix. A divergência dos autores se dá quanto à questão:
‘qual é a principal ferramenta de exploração que permite a
pilhagem das riquezas dos países pobres por parte dos países
ricos?’. Emmanuel Arghiri e Samir Amin centraram suas análises
nas trocas desiguais, considerando como “principal
ferramenta” o uso da força e da violência pelo Estado
colonizador; enquanto Christian Palloix buscou explicar o
processo histórico em questão através dos monopólios. Para
fins analíticos, a linha das trocas desiguais será tratada como
ferramenta de exploração internacional de tipo (α) e a
explicação com foco nos monopólios como ferramenta tipo
(β). Buscar-se-á com isso reforçar que as ferramentas são
complementares no jogo da exploração internacional,
conforme Samir Amin deixou claro em diferentes passagens de
suas obras.

Ferramenta tipo (α): As trocas desiguais.

“Desafiando a lei da oferta e da procura, os insumos e


produtos comprados pelas metrópoles obtêm
remunerações insignificantes, como o petróleo, o papel,
os gêneros tropicais etc. No entanto, os seus produtos
industriais, contendo cada vez matérias ou insumos mais
pobres e menores quantidades de trabalho vivo,
expressam preços relativos sempre mais elevados.”12

O trecho acima, retirado do artigo A Acumulação de


Capital no Brasil, de Wilson Barbosa, expressa o significado do
termo subpreço. A ideia do subpreço é a base para a teoria

12 BARBOSA, Wilson. A Acumulação de Capital no Brasil. DH – FFLCH – USP, 2003. Pg 11


71
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de Emmanuel Arghiri das trocas desiguais. Arghiri estudou em


sua obra As Trocas Desiguais os mecanismos econômicos por
quais os chamados países desenvolvidos exploravam as
riquezas dos países mais pobres utilizando a ferramenta do
subpagamento nas trocas internacionais.
Emmanuel partiu da análise marxista da produção do
valor, da exploração da mais-valia, e da taxa de lucro13.
Segundo essa teoria a única força capaz de gerar valor é a
força de trabalho. Isto é, apena o trabalho realizado pelo ser
humano gera valor. Para compreender a análise de Arghiri, se
faz necessário retomar rapidamente o significado dos termos
marxistas que ele utiliza. Tal explicação pode ser encontrada
na obra de Emmanuel14, ou originalmente n’O Capital, de Karl
Marx
A produção do Valor da mercadoria no sistema
capitalista é composta, segundo a teoria marxista, de: capital
constante (maquinaria e matéria prima), capital variável
(trabalho realizado pelos operários e pago em salário) e a
mais-valia (trabalho realizado pelo operário, mas que não lhe
é pago, sendo apropriado pelo capitalista). Por outro lado, o
preço de produção é composto pelo capital constante,
capital variável e pelo lucro. A taxa de lucro média, dentro da
análise marxista, é resultado da divisão da soma da mais-valia
explorada por todos os ramos da produção industrial, dividido
pelo somatório do capital constante mais o somatório do
capital variável. Fica, portanto:

13 Para o melhor estudo de tais termos ver O Capital, de Karl Marx.


14 EMMANUEL, Arghiri. El Intercambio desigual. Ensayo sobre los antagonismos em las relaciones
económicas internacionales. Madrid: Ed Siglo ventiuno, 1973 pg 94
72
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Valor = c (capital constante) + v (capital variável) + p


(mais-valia)
g’(taxa de lucro) = ∑p/ (∑c+∑v)
g (lucro) = g’(c+v)
Preço de produção = c + v + g (lucro médio)

Aceita-se que a taxa de lucro tenda a se igualar nos


diferentes ramos de produção quando tomados em escala
global, mas a mais-valia não se iguala. O que ocorre é uma
diferença entre o valor da mercadoria de um dado ramo em
relação ao preço de produção e, com isso, um ramo tende a
crescer mais que outro, mesmo com taxas de lucro iguais.
O que Arghiri aponta é que graças a condições
diferentes na produção de diferentes países, o mesmo ocorre
nas trocas internacionais, especialmente diante da
especialização das produções nacionais. Ainda, Emmanuel
lembra que o capital constante não é inteiramente gasto em
um único ciclo de produção. Ou seja, que as máquinas não
precisam ser trocadas em curto período. Há, portanto uma
diferença entre o capital comprometido e o capital
constante, consumido no ciclo de produção. Ainda, a taxa de
lucro não é calculada pelo capital consumido naquele ciclo
de rotação, mas pelo capital total comprometido na
produção.15

15 EMMANUEL, Arghiri. El Intercambio desigual. Ensayo sobre los antagonismos em las relaciones
económicas internacionales. Madrid: Ed Siglo ventiuno, 1973 pg 98-100
73
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Reproduzindo o exemplo utilizado por A. Emanuel:


País Capital total Capital Capital Mais- Valor da Custo de Taxa de Lucro Preço
comprometido constante variável valia mercadoria produção lucro [g produçã
(K) consumido (v) (p) [V (c+v+p)] [R (c+v)] [g’ (g’K)] [L
(c) (∑p/∑K)] (R+g)]
A 240 50 60 60 170 110 1/3 80 190
B 120 50 60 60 170 110 40 150
total 360 100 120 120 340 220 120 340

Arghiri demostrou com o exemplo acima que dois


países que consomem em sua produção um capital igual,
com o mesmo gasto com a força de trabalho geram,
portanto, mercadorias de valor igual. Mas, por conta de seu
capital total comprometido e pela taxa de lucro, acabam
gerando produtos de preço final diferentes. No exemplo, a
troca que deveria ser igual torna-se desigual. Se o país A
trocasse os produtos com o país B pelo seu valor, a troca seria
de um para um, mas como a troca é feita de forma desigual,
o país B precisa trocar dezenove de seus produtos para
comprar quinze produtos de A. Perde-se assim o equivalente a
quatro produtos. De outra forma, significa a perda de
quarenta horas de trabalho no termo de troca, visto que os
valores expressos estão em termos de horas de trabalho.
O autor expande seu exemplo, considerando ainda
que, em geral, os países do centro econômico têm como
característica a melhor remuneração de seus trabalhadores. A
diferença salarial proporcional significa também uma menor
taxa de mais-valia, igualmente proporcional. Assim, um salário
cinco vezes maior, considerando tudo mais constante, gera
uma mais-valia cinco vezes menor, sob uma mesma
capacidade de produção. O cálculo é modificado para16:

16 EMMANUEL, Arghiri. El Intercambio desigual. Ensayo sobre los antagonismos em las relaciones económicas
74
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

País Capital total Capital Capital Mais- Valor da Custo de Taxa de Lucro Preço de
comprometido constante variável valia mercadoria produção lucro [g produção
(K) consumido (v) (p) [V (c+v+p)] [R (c+v)] [g’ (g’K)] [L
(c) (∑p/∑K)] (R+g)]
A 240 50 100 20 170 150 1/3 80 230
B 120 50 20 100 170 70 40 110
total 360 100 120 120 340 220 120 340

Fica evidente com o exemplo de Emmanuel que os


termos de troca são ainda mais desiguais, significando a
perda de 120 horas de trabalho por parte do país B. O autor
aponta também que devido aos salários desiguais, mesmo
que o capital comprometido seja o mesmo, a capacidade
produtiva a mesma, e a taxa de lucro a mesma, o país B
continuará perdendo horas de trabalho. Mesmo que a taxa
de lucro média no país B, onde o salário é menor, for maior do
que a taxa de lucro média do país A, onde há maiores
salários, a desigualdade continua. Para igualar os termos de
troca, sob salários médios desiguais, seria necessário,
conforme Arghiri, um cenário que componha: (i) capital
comprometido igual; e (ii) taxas de lucro absolutamente
desiguais. Reproduzindo mais um exemplo de Arghiri17:

internacionales. Madrid: Ed Siglo ventiuno, 1973 pg 102


17 EMMANUEL, Arghiri. El Intercambio desigual. Ensayo sobre los antagonismos em las relaciones
económicas internacionales. Madrid: Ed Siglo ventiuno, 1973 pg 122
75
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Capital total Capital Capital Mais- Valor da Custo de Taxa de Lucro Preço de
comprometido constante variável valia mercadoria produção lucro [g produção
País
(K) consumido (v) (p) [V (c+v+p)] [R (c+v)] [g’ (g’K)] [L
(c) (∑p/∑K)] (R+g)]

A 240 50 100 20 170 150 8,333% 20 170


B 240 50 20 100 170 70 41,666% 100 170
total 360 100 120 120 340 220 120 340

Ou seja, no exemplo hipotético, com um salário


apenas cinco vezes maior, somente diante de um capital
comprometido igual e com taxas de lucro cinco vezes maiores
no país B, os termos de troca se igualariam. No entanto, o
autor chama a atenção para o fato que a diferença salarial
pode ser ainda maior. Ademais, não necessariamente o
capital comprometido é igual. Assim, para igualar os termos
de troca, seriam necessárias taxas de lucro ainda mais
dispares.
No entanto, tal análise explica apenas as formas de
exploração econômica dentro dos termos da lógica
capitalista. A exploração internacional, e as trocas desiguais,
podem ser asseguradas por métodos que não são puramente
econômicos. Como bem salienta Samir Amin, o que explica a
possibilidade de salários desiguais e as trocas desiguais são
também as formações sociais distintas e os mecanismos de
acumulação primitiva que são reproduzidos constantemente.
Mais precisamente, Samir afirmou:

As relações entre ‘países desenvolvidos’ e países


‘subdesenvolvidos’ não pode ser compreendida
pela análise do modo de produção capitalista. Esta
questão depende do estudo das relações entre as
diferentes formações sociais; mais precisamente
entre aquelas do centro capitalista e as da periferia
do sistema. A análise dessas relações constituem a
76
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

essência do estudo da acumulação à nível


mundial; ela revela as formas contemporâneas dos
mecanismos de acumulação primitiva: a troca
desigual, isto é, a troca de produtos em valores
desiguais, mais precisamente de preços de
produção, em sentido marxista, desiguais, as
formações sociais do centro (depois da aparição
dos monopólios) e da periferia (a reserva de mão
de obra da economia pré-capitalista) que
permitem, a igual produtividade, as remunerações
diferentes do trabalho. (...) A conquista e a
imposição de condições à periferia de acordo com
as exigências do centro são resultados da
tendência inerente do capitalismo a alargar os
mercados e a exportação de capital. (...) a teoria
marxista não pode deixar de considerar esse
movimento histórico que é o motivo de sair da
análise estrita do modo de produção capitalista.18

O que Amin apresenta em sua obra é que a análise


puramente econômica e puramente nos marcos da análise
sobre o modo de produção capitalista não pode apreender a
totalidade da exploração que é realizada por parte dos países
do centro econômico sobre a periferia. Diante da
necessidade de continuar a expandir seus mercados e
continuar a exportar seu capital, os países do centro
continuam a incluir no sistema econômico países cuja forma
social era outra, não voltada para o futuro. As diferentes
formações sociais permitem salários desiguais.
O próprio processo de submissão dessas formações
sociais significa a imposição de certas condições, entre a qual
a desarticulação (parcial ou completa) das estruturas sociais
até então vigentes naquele país, criando uma reserva de mão
de obra. A desarticulação das sociedades serve, assim, ao
interesse do centro da reprodução do sistema de salários
menores na busca do aumento da exploração e da troca
desigual.

18 AMIN, Samir. L’accumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 157-158; tradução
minha.
77
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Á exemplo das ferramentas de exploração Wilson


Barbosa detecta:

As políticas sistemáticas de imiseração do operário,


elaboradas e defendidas na ordem social e política
pelos representantes patronais, faz-se acompanhar
de medidas internacionais de espoliação,
baseadas na: (1) troca desigual; (2) desequilíbrio
dos fluxos de capital; e (3) terrorismo guerreiro e
policial das metrópoles. Os inexplicados
acontecimentos das “torres gêmeas” e outros
episódios em torno do 11 de setembro, tem servido
de pretexto para grosseiras agressões imperialistas,
particularmente na esfera comercial, onde os
interesses das metrópoles não podem ser
contestados. Desafiando a lei da oferta e da
procura, os insumos e produtos comprados pelas
metrópoles obtém remunerações insignificantes,
como o petróleo, o papel, os gêneros tropicais etc.
No entanto, os seus produtos industriais, contendo
cada vez matérias ou insumos mais pobres e
menores quantidades de trabalho vivo, expressam
preços relativos sempre mais elevados. A política
oligopolista tem assim uma necessidade premente
de violar o fundamento da lei da oferta e da
procura.19

Chama a atenção o item (3) levantado por Barbosa:


“terrorismo guerreiro e policial das metrópoles”. As ferramentas
de submissão das nações não são necessariamente
econômicas. A guerra, a ameaça política ou policialesca são
ferramentas comuns para garantir os interesses comerciais das
metrópoles. Tal uso da guerra e das ameaças se faz
abertamente ou de forma disfarçada. O resultado, no
entanto, é, em geral, a desarticulação das sociedades,
criando as condições para a espoliação aberta. Uma vez
espoliado ou desorganizado economicamente o país
periférico, as condições para a realização da política de
baixos salários e, assim, de trocas desiguais se faz. Pior, nada

19 BARBOSA, Wilson. A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL. DH – FFLCH – USP, 2003. Pg 11


78
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

garante que mesmo sob uma base salarial igual, as trocas


serão feitas de forma igualitária.

Ferramenta tipo (β): O monopólio.

O papel do monopólio na economia mundial foi


apontado por Lenin de forma muito clara em sua obra O
Imperialismo, fase superior do Capitalismo. A definição do que
é e qual o papel dos monopólios, tal qual do Imperialismo, foi
resumidamente definida por Lenin:

sem esquecer o caráter condicional e relativo de


todas as definições em geral, que nunca podem
abranger, em todos os seus aspectos, as múltiplas
relações de um fenômeno no seu completo
desenvolvimento, convém dar uma definição do
imperialismo que inclua os cinco traços
fundamentais seguintes: 1) a concentração da
produção e do capital levada a um grau tão
elevado de desenvolvimento que criou os
monopólios, os quais desempenham um papel
decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital
bancário com o capital industrial e a criação,
baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia
financeira; 3) a exportação de capitais,
diferentemente da exportação de mercadorias,
adquire uma importância particularmente grande;
4) a formação de associações internacionais
monopolistas de capitalistas, que partilham o
mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do
mundo entre as potências capitalistas mais
importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase
de desenvolvimento em que ganhou corpo a
dominação dos monopólios e do capital financeiro,
adquiriu marcada importância a exportação de
capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts
internacionais e terminou a partilha de toda a terra
entre os países capitalistas mais importantes.20

O monopólio é caracterizado assim por: (a)


concentração da produção, e (b) fusão do capital bancário
com o capital industrial. A organização das empresas por

20 LENIN, V. O Imperialismo, fase superior do Capitalismo. In


http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap7.htm , ultima visualização 26/04/2012.
79
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

parte do capital financeiro contraria o princípio da


concorrência e estabelece princípios planejados para a
produção de acordo com os interesses do capital financeiro.
A concentração da produção garante o maior poder das
empresas em questão, que passam a controlar os mercados
(tanto do produto final quanto o mercado da matéria prima).
A ação do monopólio permite: (i) a exportação de
capitais em grande volume; e (ii) formação de associações
capitalistas que dominam parcelas do mundo. A exportação
de capitais pode se dar através de empréstimos às nações,
empréstimos privados ou constituição de filiais das empresas
monopolistas. Essa ação do monopólio faz parte daquilo que
Lenin chamou de Imperialismo.
Christian Palloix abordou o monopólio, mais
especificadamente as firmas multinacionais (FMNs), do ponto
de vista da circulação das mercadorias, sem esquecer o
papel do mercado financeiro. Buscou explicar como, através
da ação dos monopólios, a burguesia internacional se
enriquecia ainda mais:

A firma multinacional desenvolve-se no plano da


articulação da circulação internacional das
mercadorias com os processos de produção
imediatos, processos implantados pelo capital
financeiro internacional. A este título, a irrupção das
firmas multinacionais está, na origem, estreitamente
ligada ao papel desempenhado pelo capital
financeiro21

Para Palloix, o imperialismo tem como traço a ação


das firmas multinacionais, que são resultado do papel do
capital financeiro. Portanto, a análise da acumulação de
riquezas não pode ser realizada apenas pelas relações de

21Christian Palloix. As firmas multinacionais e o processo de internacionalização. Lisboa: Editorial estampa,


1974. Pg 110
80
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

troca M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria). Acusou,


dessa forma, Arghiri Emmanuel de ter restringido sua análise a
uma etapa reduzida de todo o processo de troca22.
A acumulação, para Palloix, se dá como resultado do
processo completo de valorização do capital, descrito
inicialmente por Marx no O Capital: D – Mt - ... P... – M’(a – D) –
M (mt P ... ... P’ .... M’ – D’ 23. Os termos significam: D24
(dinheiro/ capital-dinheiro), M (mercadoria), Mt (mercadoria
trabalho), P (capital produtivo). O circuito descrito portanto é:
capital dinheiro se torna força de trabalho, que através do
processo de produção (uso do capital fixo e do capital
variável) gera uma dada mercadoria agregada de valor
produzido pela força de trabalho que é trocada por mais
dinheiro, que por sua vez é trocado por mais força de
trabalho, reiniciando o processo.
A análise deve completar o ciclo, isso é, ir de D até D’,
visto que: “ao nível do ciclo do capital-dinheiro (D-M...P...M’-
D’), ciclo de valorização do capital, pode-se ter diretamente
uma ideia de valorização internacional do capital-dinheiro
sob a forma do investimento internacional”25. Ou seja, o foco
da análise deve ser, para Palloix, na exportação de capitais e
nas remessas de lucros, e não nas trocas desiguais.
Mas, diante da análise das remessas de lucros, a
exploração continua:

na verdade, a internacionalização do lucro


capitalista é tão evidente que não há qualquer
vantagem em nos demorarmos muito nesse assunto:
é sabido que o lucro das filiais das firmas U.S. no

22 Idem. Pg 235
23 Idem. Pg 211
24 O termo D aparece aqui em substituição ao termo A, obedecendo a tradução tradicional da análise marxista,
onde D é o capital dinheiro, em substituição do termo A (argent, que significa dinheiro em francês)
25 Christian Palloix. As firmas multinacionais e o processo de internacionalização. Lisboa: Editorial estampa,
1974. Pg 211-212
81
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

exterior é superior que ao lucro destas firmas quando


operam no interior dos E.U.A)26.

Ou seja, ao instalar firmas em países da periferia


econômica, as multinacionais adquirem melhor taxa de mais-
valia. Exploram de forma mais eficaz a população da periferia
do que a população de seus países de origem.
O Dicionário das teorias e mecanismos econômicos, de
Alain Gélédan e Janine Brémond, chama a atenção para os
seguintes efeitos das firmas multinacionais (para além do envio
das remessas de lucro):
– Na quase totalidade dos casos, a casa-mãe,
situada no país de origem, reserva para si senão a
totalidade pelo menos uma parte essencial das
atividades de concepção (...) – As F.M.N. também
podem contribuir para assegurar aos respectivos
países de origem aprovisionamento em matérias
primas, energia e outros intermediários de que
carecem para produzir. – Por último, ao nível
político, a experiência mostrou que é possível utilizar
politicamente as F.M.N de um país para exercer
pressão sobre outros países (...)27
.

Ou seja, as firmas multinacionais (e, portanto os


monopólios) podem servir à dominação extra econômica,
que aumenta a disparidade econômica existente.
Ou, nas palavras claras de Wilson Barbosa:

As remessas de lucros e dividendos constituem-se


poderosa fonte de enriquecimento das empresas
das metrópoles. Sob a rubrica da “exportação de
capitais”, os países metropolitanos colocam nas
colônias e semicolônias enormes montantes de
capital, que de outro modo seriam nas metrópoles
remunerados a taxas mais baixas de juros. Através
da compra de empresas e controle dos mercados
locais, as empresas estrangeiras, pomposamente
autodenominadas “multinacionais” ou
“transnacionais”, realizam manobras financeiras

26 Idem. Pg 235
27 GÉLÉDAN, Alain; BRÉMOND, Janine. Dicionário das teorias e mecanismos econômicos. Lisboa: Livros
Horizonte,1988 pg 154.
82
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pelas quais multiplicam o valor de seu capital local


nominal e arruínam ali a produção econômica.28

A divisão do mundo entre centro e periferia como


resultado das duas ferramentas.

Samir Amin, em sua obra L’Acumulation A L’echelle


Mondial utiliza o fenômeno dos monopólios combinado às
trocas desiguais como forma de explicar a exploração das
riquezas de países da periferia econômica por parte dos
países centrais do sistema29. O autor em questão deixou bem
claro a necessidade de levar em conta as remessas de lucro
para visualizar os efeitos da divisão internacional do trabalho
como desigual30. Igualmente, Wilson Barbosa explicou o
processo de acumulação de capital no Brasil levando em
conta tanto as trocas desiguais como os monopólios31.
Dedutivamente é possível afirmar que absolutamente
nada impede que as trocas desiguais e a ação dos
monopólios (especialmente se incluirmos nessas os
empréstimos de capital realizados para os países periféricos,
que se afundam em endividamentos crescentes) se
combinem como ferramenta de exploração internacional , na
constituição do imperialismo. Levando em conta a discussão
até aqui apresentada, pode-se afirmar que a divisão
internacional do trabalho, e a consequente divisão do mundo
entre centro e periferia, em essência, é resultado combinado
de uma função: (α) trocas desiguais; (β) monopólios; e (τ)
relações de dominação extra econômicas.

28 BARBOSA, Wilson. A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL. DH – FFLCH – USP, 2003. Pg 28


29 AMIN, Samir. Laccumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 375
30 AMIN, Samir. Laccumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 535
31 BARBOSA, Wilson. A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL. DH – FFLCH – USP, 2003
83
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

As (α) trocas desiguais podem surgir tanto como


fenômeno puramente econômico (da forma explicada por
Arghiri) como por fenômenos não econômicos. Os (β)
monopólios podem realizar a exploração econômica ou se
utilizar de ferramentas extra econômicas no processo de
espoliação. A fórmula abstrata que se atinge para calcular o
processo de exploração internacional (γ), que configura a
essência da divisão internacional do trabalho, ficaria: γ=f(α; β;
τ).
O problema consiste em: (i) a exploração
extraeconômica não pode ser contabilizada facilmente; (ii) as
trocas desiguais podem ser apreendidas através da dedução
lógica, mas para serem encontradas quantitativamente se faz
necessária uma extensão de dados sobre o capital investido
em cada ramo, a massa salarial, produtividade média, etc.; e
(iii) soma-se às remessas de lucro legalmente enviadas pelo
monopólio as quantias enviadas ilegalmente.
Como calcular, portanto, a exploração exercida pelos
países centrais sobre os países periféricos? Para Samir Amin, a
desigualdade se expressa na realidade concreta dos
diferentes países. Isso é: independentemente do PIB per capita
possuído pelos diferentes países, as condições de vida das
populações e a capacidade de troca dos países são
desiguais32 Um indicativo da exploração é o desequilíbrio
endêmico das balanças de pagamento. As balanças de
pagamento devem ser encontradas, segundo Amin, levando
em conta: (I) importação e exportação de mercadorias; (II)
pagamento de serviços comerciais; (III) investimentos
estrangeiros; (IV) remessas de lucro; (V) gastos dos turistas no
estrangeiro; e (VI) empréstimo e pagamento de dívida

32 AMIN, Samir. Laccumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 375
84
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

externa. Excluem-se as movimentações bancárias


cotidianas33. Caso a balança de pagamentos, composta
dessa forma, for negativa em longo prazo, há um indício forte
da existência do desequilíbrio internacional que caracteriza a
divisão de países centrais e países da periferia.

Houve uma mudança radical na divisão internacional do


trabalho?

Compreendida a discussão teórica sobre a divisão


internacional do trabalho e a existência de um centro
econômico e uma periferia, é possível agora discutir de uma
forma um pouco mais embasada se houve uma mudança
profunda na divisão internacional do trabalho que (a) tenha
eliminado a divisão entre centro e periferia, e (b) gerado um
sistema de trocas horizontais. A afirmação (a) está
subordinada à afirmação (b).
Essa tese ignora completamente o papel dos
monopólios e suas firmas multinacionais. Se a exploração
exercida pelos países ricos (E) é encontrada pela formula: (γ) =
f ((α) trocas desiguais; (β) ação dos monopólios; (τ) ação extra
econômica), a tese de fim da DIT leva em conta apenas as
ferramentas de troca desigual. Presumindo que, pelas trocas
serem feitas por dois países da periferia elas são
necessariamente feitas horizontalmente.
No entanto, a lógica dedutiva aponta para a
possibilidade de, considerando o papel do monopólio, as
trocas continuarem a ser desiguais. Ainda, é possível que
quem saia ganhando não seja nenhum dos dois países
envolvidos na troca desigual, mas sim um terceiro país, que é

33 AMIN, Samir. Laccumulation à l’échelle mundiale. Paris: éditions anthropos, 1971. Pg 535-538
85
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

sede do monopólio que promoveu, de longe, a “troca


horizontal” (exemplo: Mercosul).
Dentro do seguinte cenário hipotético, é possível a
permanência da divisão internacional do trabalho desigual:
País (2) vende vinte e uma unidades do produto (f) ao
país (1). O País (1) vende treze unidades do produto (z) para o
país (2). Dentro dos termos propostos por Arghiri, se
consideramos a diferença salarial, sem diferença de capital
comprometido no processo de produção, o país (2) perde,
hipoteticamente oitenta horas de trabalho, por unidade de
mercadoria. No entanto, se tanto o produto (f) quanto o
produto (z) forem produzidos por multinacionais que possui
sede em um país (3), as oitenta horas não necessariamente
irão para o país (1).34

País Capital total Capital Capital Mais- Valor da Custo de Taxa de lucro Lucro Preço de
comprometido constante variável valia mercadoria produção [g’ [g produção
(K) consumido (v) (p) [V (c+v+p)] [R (c+v)] (∑p/∑K)] (g’K)] [L
(c) (R+g)]
1 240 50 100 20 170 150 25% 60 210
2 240 50 20 100 170 70 60 130
total 480 100 120 120 340 220 120 340

Como afirmado, se tanto o produto (z) como o


produto (f) forem produzidos tendo como capital o
proveniente do monopólio através de suas firmas
internacionais de um país (3), quem ganhará com a troca
desigual não será necessariamente o país (1). Se for
considerado um repasse do lucro de sessenta por cento, tanto
o país (1) quanto o país (2) enviarão o equivalente de trinta e
seis horas de trabalho, o que garante para o país (3) o total de
setenta e duas horas de trabalho. Assim, tal nação terá, sem

34 Exemplo original de: EMMANUEL, Arghiri. El Intercambio desigual. Ensayo sobre los antagonismos em las
relaciones económicas internacionales. Madrid: Ed Siglo ventiuno, 1973 pg 102
86
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

nada ter produzido, adquirido mais do que os dois países


envolvidos no processo de troca. Nesse cenário, o país (2)
empobrecerá, o país (1) ganhará um pequeno montante de
riquezas e o país (3) ganhará a maior parcela do espólio. Se a
troca entre os países (1) e (2) forem horizontais, ambos os
países empobrecerão ao passo que o país (3) enriquecerá.
Verifica-se abaixo uma tabela com um exemplo:

País Produtos Preço Valor Lucro Repasse Valor Balanço


vendidos total da total dos de lucro adquirido da
venda produtos na troca aquisição
vendidos de Valor

1 13 2730 2210 780 468 para 1360 892


país (3)
(60% do
lucro)
2 21 2730 3570 1260 756 para -1360 -2116
país (3)
(60% do
lucro)
3 0 0 0 0 Recebe 0 1224
1224
TOTAL 34 5460 5780 2040 - 0 0
*Tabela de elaboração própria.

Não há motivos para acreditar que o centro


econômico tenha problema em ver um país periférico
enriquecer à custa de outro, se o centro estiver enriquecendo
mais do que ambos. Aliás, hipoteticamente falando, o centro
poderia assegurar as trocas desiguais entre os países da
periferia subdividindo-a pelas etnias que compõe as nações,
pela função estratégica militar de cada país, ou qualquer
outro critério de fundo estratégico ou ideológico.
Ainda, os intelectuais do país (1), ao ver seu país
enriquecendo em relação ao restante das nações, poderiam
até mesmo acreditar na possibilidade de um dia chegar a ser
uma potencia central. Nesse caso, seria tentadora a ideia de
abandonar a tese da divisão internacional do trabalho
87
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desigual e aderir à tese da divisão do mundo entre países em


diferentes etapas de desenvolvimento.
Mas se esse for o caso da situação atual, como
verificar estatisticamente? Samir Amin apontou o caminho: a
balança de pagamentos negativa no longo prazo é um
indício da divisão internacional do trabalho desigual. O
seguinte parágrafo da obra de Wilson Barbosa discorre sobre
a transferência de riquezas:

De acordo com dados do Departamento de Comércio


dos EUA, as empresas norte-americanas na América
Latina enviaram, entre 1990 e 2000, mais de um trilhão de
dólares para aquela metrópole. Os ganhos das empresas
subsidiárias de outras norte-americanas decorre do
controle de toda a sorte de mercadorias, desde salsichas,
fogões e minérios, até equipamentos eletrônicos. Estes
cálculos obviamente excluem as transferências ilegais
procedidas pelas empresas externas que se calcula
sejam de igual montante. Nos períodos de baixa de
ganho do capital na metrópole, suas empresas no
exterior devem ampliar as remessas feitas. Semelhantes
“colheitas” de capital vão garantir o patrimônio líquido
das empresas na metrópole. Só em 2002, o Brasil
contribuiu com 24,2 bilhões de dólares sob a forma de
dividendos, para o reforço de caixa de sua metrópole
favorita.35

Wilson Barbosa detectou que a América Latina enviou,


entre 1990 e 2000, mais de um trilhão de dólares para os EUA.
Nesse período o Brasil se portou como um membro efetivo da
periferia. No entanto, será que ocorreu, de 2000 até 2010, a
inversão da situação?
Para verificar se ocorreu, é necessário analisar a
balança de pagamentos do Brasil. Tal pode ser adquirida
através dos dados disponibilizados pelo Banco Central do
Brasil, referente à balança de pagamentos.

35 BARBOSA, Wilson. A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL. DH – FFLCH – USP, 2003. Pg 28-29


88
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Fonte: Banco Central do Brasil. Gráfico de elaboração própria.

O gráfico acima é a representação do movimento


realizado pela balança de pagamentos do Brasil durante os
anos de 1994 e 2012. No eixo x, está o ano referente. No eixo y,
o valor em bilhões de dólares perdido pelo país nas transações
internacionais. O que se observa é que tirando o período entre
2003 a 2006, a balança de pagamentos do Brasil foi negativa.
Isso é, perdeu-se durante todo o período mais do que se
ganhou. O valor total perdido pelo país foi de
aproximadamente quatrocentos bilhões de dólares, em
apenas 18 anos. O cálculo ignora completamente, entretanto,
o valor perdido pelas trocas desiguais.
O cenário adquirido por esse dado estatístico em
isolado é um indício forte de que não houve uma mudança
profunda nas relações internacionais a ponto de garantir
trocas horizontais no mundo. É bem mais provável que o
enriquecimento proporcional do Brasil em relação à outros
países da periferia se dê por: (a) menor exploração sofrida
89
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pelo Brasil quando comparado à outros países da periferia; e


(b) uma possível vantagem em trocas pontuais realizadas pelo
Brasil que permitem, através de mecanismos econômicos, que
ele fique com uma parcela das riquezas de outros países que
são retiradas à subpreço.

Referências Bibliográficas

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08/01/2013
90
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Os escritos de Marx sobre a Irlanda nos anos


1860 e sua relevância para a compreensão do
subdesenvolvimento1

Patrick Galba de Paula 2

RESUMO

Este trabalho busca analisar o tratamento dado por Karl Marx


ao processo de expansão das relações de produção
capitalistas na Irlanda do século XIX com o objetivo de
verificar a possibilidade de que este tratamento consista numa
abordagem do que seria chamado posteriormente de
subdesenvolvimento. Após a análise dos escritos de Marx e da
literatura sobre o assunto, busca-se sistematizar quais seriam,
para Marx, as características gerais de um
subdesenvolvimento especificamente capitalista.

Palavras-chave: Desenvolvimento e subdesenvolvimento;


Marx; Irlanda;

ABSTRACT

This paper analyzes the treatment given by Karl Marx to the


expansion of capitalist relations of production in nineteenth-
century Ireland in order to check the possibility that these
writings consists on a approach to what would be later called
underdevelopment. After analyzing the writings of Marx and
literature on the subject, we try to systematize what would be,
for Marx, the general aspects of a specifically capitalist
underdevelopment.

Keywords: Development and underdevelopment; Marx;


Ireland.

1 Artigo apresentado em 10/08/2014. Aprovado em 10/10/2014.


2 Mestre em Políticas Públicas, Estratégias e desenvolvimento, pelo Instituto de Economia da UFRJ. E-mail:
patrickgalba@gmail.com.
91
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Introdução

É muito comum a atribuição a Marx de uma visão do


processo de desenvolvimento capitalista na qual a expansão
das relações de produção capitalistas pelo mundo levariam
ao “surgimento de capitalismos autônomos”, com
características semelhantes às do desenvolvimento industrial
inglês (KIERNAN, 1974). Assim o avanço do capital
corresponderia, em última instância, a um certo nivelamento
dos patamares de desenvolvimento pelo mundo (AVINERI,
1968; WARREN, 1973; BREWER, 1990). Em trabalho recente este
tipo de interpretação foi chamada de difusionista por ter a
característica fundamental de atribuir ao autor a previsão de
uma tendência de difusão do capitalismo pelo mundo, ou das
relações de produção capitalistas, como sendo algo
equivalente a uma difusão do “desenvolvimento” (DE PAULA,
2014, p. 15).

Um dos trechos da obra de Marx mais usados como


suposta comprovação desta interpretação encontra-se no
prefácio à primeira edição de O Capital. Neste trecho, Marx
alerta o leitor alemão para que se preparasse para ver em seu
país as mazelas que o capitalismo havia produzido na
Inglaterra:
O que eu, nesta obra, me proponho a pesquisar é
o modo de produção capitalista e suas relações
correspondentes de produção e de circulação.
Até agora, a sua localização clássica é a
Inglaterra. Por isso ela serve de ilustração principal
à minha explanação teórica. Caso o leitor alemão
encolha, farisaicamente, os ombros ante a
situação dos trabalhadores ingleses na indústria e
na agricultura ou, então, caso otimisticamente se
assossegar achando que na Alemanha as coisas
92
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

estão longe de estar tão ruins, só posso gritar-lhe:


De te fabula narratur3! (MARX, 1983, I-1, p. 12).

O trecho acima foi amplamente interpretado pela


maior parte do marxismo do século XX como uma
comprovação de que para Marx o futuro dos países “menos
desenvolvidos” era seguir os passos dos países industriais. Trata-
se uma interpretação profundamente equivocada.
Recentemente tem-se demonstrado que este tipo de visão
estaria muito mais próxima daquela produzida pela chamada
Economia do Desenvolvimento do que de Marx (BONENTE,
2011), e que Marx tinha uma noção muito distinta de
desenvolvimento que esta interpretação não foi capaz de
captar (DE PAULA, 2014).

A teoria marxiana do capital e seu método são alguns


dos aspectos mais negligenciados por esta interpretação
difusionista de Marx (DE PAULA, 2014, pp. 98-99). Em linhas
gerais, poder-se-ia afirmar que uma abordagem marxiana do
desenvolvimento coerente com o método ontológico
adotado pelo autor para sua crítica da economia política
deve necessariamente se fundamentar na teoria do valor e
nas demais categorias constantes em O Capital. Tal
abordagem, em se considerando a ocorrência da formação
de um mercado mundial dominado pela grande indústria
capitalista4, teria como objetivo explicar como a operação da

3 Quid rides? De te fabula narratur! O trecho pode ser traduzido como “De que ri? De ti fala a fábula”, segundo
nota da edição alemã de O Capital foi retirado por Marx das sátiras de Horácio (Livro I, sátira 1.12).
4 Marx, em sua época, considerava que o mercado mundial ainda era dominado pelo chamado capital

comercial, principalmente devido ao que chamava de faux frais da circulação, os custos de transporte e
armazenamento das mercadorias etc, ou, em outras palavras, pelo nível de desenvolvimento técnico. A
formação de um mercado mundial controlado pela indústria corresponderia a um momento no qual ocorreria a
formação de uma taxa média de lucros entre os setores produtivos do ponto de vista internacional, e a partir daí
as movimentações de capitais passariam a ser explicadas pelas oscilações das taxas de lucros. A previsão da
formação de tal mercado mundial decorreria da tendência auto-expansiva do capital e, assim como a tendências
à concentração e à centralização do capital, seria uma de suas leis internas fundamentais (MARX, 1983, III-1, p.
200 e p. 250).
93
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

lei do valor sobre a economia mundial resulta na sua situação


concreta, ou seja, o objetivo seria obter uma concretização
internacional da teoria marxiana do valor (DE PAULA, 2014, pp.
125-140).

Um aspecto da obra de Marx que mostra que sua


abordagem do processo de expansão capitalista difere em
seus fundamentos daquela esposada pela interpretação
difusionista é o aparecimento em suas análises de situações
de “subdesenvolvimento”, num sentido especificamente
capitalista do termo.

No que diz respeito às análises concretas é provável que


o primeiro momento em que Marx tenha se deparado com
uma situação deste tipo, que A.G. Frank (1966) chamaria de
“desenvolvimento do subdesenvolvimento”, tenha sido nos
escritos sobre a Irlanda durante a década de 1860.

A expansão capitalista na Irlanda

Para Marx, a principal característica da penetração do


capital britânico na Irlanda, através da dominação colonial5,
era a destruição da indústria e a conversão do país em
fornecedor de matérias primas para a indústria na Inglaterra.
No discurso proferido por ele em dezembro de 1867 na
associação de trabalhadores em Londres, Marx, além de

5 A dominação britânica na Irlanda perdurou por vários séculos e sob diversas formas. Embora tenham ocorrido
invasões anglo-normandas na ilha desde o século XI, o marco inicial da dominação costuma ser datado em
1607, devido ao episódio conhecido como flight of the earls, quando os últimos nobres de origem gaélica que
até então não haviam se submetido à coroa britânica se retiraram para o continente, ao que se seguiu a
consolidação da dominação britânica. O período capitalista desta dominação corresponde, principalmente, à
época da “União”, entre 1801 e 1922. Após um conturbado período iniciado em 1922 (Irish Free State,
submetido à coroa britânica), que começa a ser superado com a constituição de 1937, com o Irish act de 1948,
e, finalmente, com a proclamação da república da Irlanda em 1949, cinco sextos da ilha se tornaram
formalmente independentes.
94
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

narrar as atrocidades da dominação britânica na Irlanda,


afirmaria:
Sob Guilherme III, chegou ao poder uma classe
que tinha como único objetivo o lucro, e a indústria
irlandesa foi suprimida com o objetivo de forçar a
Irlanda a vender suas matérias-primas para a
Inglaterra a qualquer preço.
[...] A União deu o tiro de misericórdia nas
possibilidades de renascimento da indústria
irlandesa. Em certa ocasião Meagher 6 disse: todos
os ramos da indústria irlandesa foram destruídos,
tudo o que restou foi a construção de caixões.
[...] Mais de 1.100.000 pessoas foram substituídas
por 9.600.000 ovinos. Isto é algo inédito na Europa.
Os russos despejaram os poloneses por russos, não
com gado. (MARX e ENGELS, 1972, pp. 140-142 –
trad. nossa).

Também no documento de preparação (outlines) deste


discurso, Marx seria claro ao afirmar que “toda vez que a
Irlanda estava prestes a desenvolver sua indústria, ela foi
esmagada e reconvertida em uma terra meramente agrícola”
(MARX e ENGELS, 1972, p. 133). O período capitalista da
dominação britânica era considerado por Marx o período
mais “destrutivo” para a economia irlandesa:
Aqui está o que confunde o inglês: eles vêem o
presente regime como algo leve em comparação
com a antiga opressão da Irlanda pela Inglaterra.
Assim, Por que então essa forma de oposição
irreconciliável e agora? O que eu quero mostrar e
que mesmo aqueles ingleses que apóiam os
irlandeses não vêem, é que a [opressão] desde
1846, embora menos bárbara na forma, tem tido
um efeito extremamente destrutivo, não deixando
alternativa senão a emancipação da Irlanda ou
uma luta de vida ou morte. (MARX e ENGELS, 1972,
p. 126 – trad. nossa). 7

6 Thomas Francis Meagher (1823-1867), participante do movimento de libertação irlandês e um dos fundadores
da Confederação Irlandesa de 1847. Preso pelas tropas coloniais em 1848, foge para os EUA em 1852 e ainda
lidera a brigada de voluntários irlandeses que luta ao lado do norte na guerra civil americana entre 1861-65
(MARX e ENGELS, 1972, p. 501).
7 Kevin Anderson, analisando este trecho em conexão com a correspondência de Marx do período, afirma o

seguinte: “Thus, the more capitalist form of English domination since the 1846 Great Famine, although less
overtly violent, had been more destructive than all previous forms of English rule over the past seven hundred
years” (ANDERSON, 2010, p. 131).
95
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Marx havia chegado, em 1867, a esboçar um programa


que viabilizasse um processo de desenvolvimento próprio para
a Irlanda. É o que podemos ver na carta de Marx a Engels de
30 de novembro de 1867:
Os irlandeses precisam de:
1) Autonomia e independência da Inglaterra.
2) Uma revolução agrária. Mesmo com as melhores
intenções do mundo a Inglaterra jamais realizaria
isto, mas pode-se conseguir da Inglaterra os meios
legais para que os irlandeses possam realizá-la por
si mesmos.
3) As tarifas protecionistas contra a Inglaterra. Entre
1783 e 1801 todos os ramos da indústria irlandesa
floresceram. A União, ao abolir as tarifas
protecionistas estabelecidas pelo Parlamento
irlandês, destruiu toda a vida industrial na Irlanda.
O pouco de indústria de linho não é
compensação. A União de 1801 teve exatamente
o mesmo efeito sobre a indústria irlandesa como as
medidas relativas à supressão da indústria irlandesa
de lã, etc, tomadas pelo parlamento sob a
dominação inglesa de Anne, George II e outros.
Uma vez que os irlandeses sejam independentes, a
necessidade vai transformá-los em protecionistas,
como aconteceu no Canadá, Austrália, etc.
(MARX e ENGELS, 1972, p. 148 – trad. nossa).

Esta passagem deixa claro que Marx observava um forte


papel negativo desempenhado pela dominação britânica na
Irlanda, com destaque para o processo de desindustrialização
que teria sido posto em marcha nos marcos desta
dominação. Marx via a dominação britânica como um
entrave ao seu desenvolvimento. Este entrave tinha a ver,
basicamente, com dois aspectos, que tornavam políticas
liberalizantes extremamente nocivas para a sociedade
irlandesa, e faziam com que sua independência fosse um
meio necessário para viabilizar um processo de
desenvolvimento próprio.
96
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A questão agrária no subdesenvolvimento irlandês

O primeiro aspecto era a questão da produção


agrícola, e da necessária “revolução agrária” irlandesa. A
dominação britânica ao longo de séculos teve por objetivo
“plantar” uma aristocracia territorial, com características
feudais ou semi-feudais, nos territórios irlandeses. O objetivo
era constituir uma classe social de proprietários aristocratas
leais à dominação, evitando assim maiores ameaças ao
controle inglês e convertendo o país em um campo de
fornecimento de trabalho barato, matérias-primas e comida
para a grande “fábrica da Inglaterra” (MARX e ENGELS, 1972,
pp. 126-139). Para possibilitar isto, os sucessivos “parlamentos”
coloniais (ou semi-coloniais, conforme o período) votavam
todo tipo de lei para impedir que as terras continuassem em
mãos nativas, desde restrições ao direito de herança, até
impostos diferenciados e instituição de um código penal que
punia com a perda das terras quem cometesse “traições à
coroa britânica”, entre as quais constaria a profissão da
religião católica8, praticada pela ampla maioria da
população nativa irlandesa (MARX e ENGELS, 1972, p. 130).

Em meados do século XIX parte desta aristocracia,


detentora das grandes propriedades9, começa a adotar a

8 Marx (1972, pp. 130-131) narra como os católicos (na verdade, os nativos irlandeses) no período anterior a
1776 foram massacrados, sendo proibidos até mesmo de votar para o “parlamento”, participar do exército, ter
propriedades etc. Até mesmo a produção de fertilizantes era toda exportada, gerando um progressivo
empobrecimento do solo, o que Marx chamaria de “Metabolical Rift”, e estaria na origem da potato blight e da
grande fome irlandesa de 1846 (MARX e ENGELS, 1972, p. 141). Esta abordagem da questão irlandesa
forneceria as bases de toda uma “ecologia” marxista nos últimos anos, principalmente em estudos como os de
Foster (2000).
9 Em nota a 2ª edição de O Capital, Marx cita números que dão conta de que em 1870 94,6% do solo irlandês

constituía arrendamentos com até 100 acres. É importante notar que, apesar de autores como Larrain (1999)
interpretarem a “revolução agrária” defendida por Marx para a Irlanda como o estabelecimento de relações
capitalistas no campo, o texto da seção 5, item f do cap. XXIII do vol. I de O Capital (MARX, 1983, I-1, pp. 248-
97
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

introdução de maquinaria e de relações capitalistas de


produção (contratação de assalariados, economia de
trabalho, etc.), respondendo à demanda inglesa por produtos
agrícolas. A concorrência desta produção moderna
combinada com aos altos impostos cobrados dos pequenos
arrendatários leva a ruína grande parte do campesinato
irlandês e os obriga “mourejar para seu proprietário por um
salário geralmente inferior ao do diarista comum” (MARX, 1983,
I-2, p. 256), numa combinação de formas de exploração que
reduz o rendimento dos arrendatários, portanto, abaixo dos
níveis de subsistência10, extraindo-lhes uma parcela maior que
o trabalho excedente. A parcela das terras tomadas aos
arrendatários insolventes é transformada de lavoura em
pastagens para gado e/ou incorporada num processo de
concentração das terras. A redução da produção agrícola é
drástica (MARX e ENGELS, 1972, pp. 134-135), e também o
conseqüente decréscimo da população, seja pela fome, seja
pela migração para outros países11 após sua expulsão do

259) é claro em apontar o estabelecimento das relações capitalistas no campo como a principal causa do
aprofundamento do “subdesenvolvimento” irlandês. Neste sentido também vai o entendimento de outros autores
que estudaram estes textos, como Mathur e Dix (2009, p. 106) e Anderson (2010, p. 131). Além disso, é
interessante notar que já em 1850 Marx havia redigido um programa para o campo na Alemanha no qual
defende descreve a revolução agrária como um processo no qual “a propriedade feudal confiscada fique
propriedade do Estado e seja transformada em colônias operárias, que o proletariado rural associado explore
com todas as vantagens da grande exploração agrícola” (MARX e ENGELS, 1850, p. 90). Ainda que se entenda
que a “revolução agrária” irlandesa da década de 1860 não poderia seguir o mesmo caminho da alemã de 1850
pela diferença nos níveis de desenvolvimento, parece justo supor que no mínimo ela signifique algo diferente de
uma grande propriedade capitalista, uma vez que de pouco adiantaria substituir uma classe de proprietários
exportadores por outros indivíduos com os mesmos interesses.
10 “Não estamos falando agora de condições em que a renda fundiária, a maneira de expressar na propriedade

fundiária o modo de produção capitalista, existe formalmente sem a existência do modo capitalista de produção
em si, ou seja, sem que o arrendatário seja um capitalista industrial, nem o seu modo de cultivar seja capitalista.
Tal é o caso, por exemplo, na Irlanda. O arrendatário é, geralmente, um pequeno agricultor. O que ele paga ao
proprietário na forma de renda freqüentemente absorve não apenas uma parte do seu lucro, isto é, o seu
próprio mais-trabalho (a que tem direito como possuidor de seus próprios instrumentos de trabalho), mas
também uma parte de seu salário normal, que de outra forma receberia pela mesma quantidade de trabalho”.
(MARX, 1983, III-2, p. 131).
11 A população irlandesa tem uma redução de mais de 8 milhões para cerca de 5 milhões de pessoas entre

1840 e o final da década de 1860 (MARX, 1983, I-2, p. 248). Entre os que sobreviveram, Marx enumera um
crescimento assombroso de do número de doentes (MARX e ENGELS, 1972, pp. 136-137). Curiosamente a
população atual da ilha, considerando a soma da República da Irlanda e da região dos “seis condados”, no
norte da Irlanda, ainda controlada pela Inglaterra, mantém-se em torno aos 5 milhões de habitantes, após ter
chegado a ter apenas 3 milhões entre as décadas de 1930 e 1960. Nada comparável aos 20 milhões de
98
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

campo, de modo que a Irlanda se convertera na época de O


Capital, “apenas num distrito agrícola, separada por um largo
fosso de água da Inglaterra, à qual fornece cereais, lã, gado
e recrutas industriais e militares”. (MARX, 1983, I-2, p. 252).

Por outro lado, apesar de todos estes elementos, a


renda da terra, e os lucros por arrendamento cresciam e “com
a fusão dos arrendamentos e a transformação de terra
cultivada em pastagem para gado, uma maior parte do
produto global se converteu em mais-produto” (MARX, 1983, I-
2, p. 252). Surge um grupo de magnatas fundiários irlandeses
que enriquece através da exportação para a Inglaterra,
enquanto aumentam a fome, a miséria e as doenças (MARX,
1983, I-2, p. 258). Esta classe proprietária, que é quem explora
os camponeses arrendatários, adota as teses malthusianas
sobre a população, atribuindo a causa da fome ao excesso
de pessoas, e passa a incentivar a emigração da população
agrária, dos antigos camponeses arrendatários expulsos de
suas terras, para outros países (a própria Inglaterra e,
principalmente, os EUA) (MARX, 1983, I-2, p. 258). Como seus
produtos se destinavam ao consumo britânico e a
industrialização irlandesa estava bloqueada, não havia
sentido em manter este excesso de “superpopulação” na
Irlanda.

Mesmo com todo o decréscimo populacional, a


superpopulação relativa no campo (desempregados)
“manteve-se em níveis idênticos aos de antes de 1846”, os
salários encontravam-se “em um nível igualmente baixo” e o

membros das “tribos perdidas” da diáspora irlandesa, poeticamente calculados por um dos personagens de J.
Joyce em seu Ulysses.
99
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

trabalho se “tornou mais extenuante” (MARX, 1983, I-2, pp. 254-


255). Além disso, numa passagem que aborda a questão dos
níveis dos salários pagos ao proletariado irlandês, Marx ressalta
a dinâmica de empobrecimento absoluto12 que poderia ser
verificada:
O nível salarial, sempre muito baixo, elevou-se no
campo, durante os últimos 20 anos, mesmo assim
em 50 a 60 % [...]. Por trás dessa elevação
aparente esconde-se, porém, uma queda real no
salário, pois ela nem sequer equivale ao aumento
dos preços, entrementes ocorrido, dos meios
necessários à subsistência. [...]. O preço dos meios
necessários à subsistência aumentou, portanto,
quase duas vezes e o do vestuário é exatamente o
dobro do de 20 anos atrás (MARX, 1983, I-2, p. 255).

O segundo aspecto do “subdesenvolvimento” irlandês


analisado por Marx na década de 1860 era a evolução da
indústria. Durante a dominação britânica, os sucessivos
“parlamentos” aprovaram diversas leis que taxavam
excessivamente qualquer atividade manufatureira ou
industrial13, além de proibir a exportação deste tipo de artigo
(MARX e ENGELS, 1972, p. 129). As conseqüências deste
aspecto da dominação foram nefastas. Marx demonstra
números impressionantes da destruição da indústria irlandesa
de produtos de lã, e da indústria têxtil em geral (MARX e
ENGELS, 1972, pp. 131-132). Mesmo que a Irlanda se tornasse
independente, e revogasse estas leis “anti-industriais”, sua
indústria não teria condições de concorrer com os produtos

12 Vale ressaltar que o tratamento dado por Marx em relação à questão salarial em sua teoria não aponta
necessariamente para um empobrecimento absoluto da classe trabalhadora na medida em que avança o modo
capitalista da produção, mas um empobrecimento relativo (ver a evolução do pensamento de Marx sobre o
assunto bem como as polêmicas em torno a isso em Mandel, 1968, pp. 143-157). O mecanismo da mais-valia
relativa, característico principalmente dos países capitalistas industriais, dá conta de um processo no qual o
trabalhador ganha menos em termos de valor, ainda que com isso compre mais valores-de-uso. Tanto esta
passagem, como a vista acima sobre a extração de uma parcela maior que a produção excedente do camponês
arrendatário pelo proprietário de terras, revelam um processo de acumulação orientado para a maior exploração
do trabalho e não para o aumento de produtividade. É interessante notar a semelhança com o que Marini (1973)
chamaria de superexploração, referindo-se à América Latina.
13 Marx também narra um período da dominação britânica no qual houve uma tentativa de construir “cidades

inglesas” na Irlanda, projeto que teria fracassado porque estas cidades sempre acabavam “se tornando
irlandesas” (MARX e ENGELS, 1972, p. 141).
100
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

ingleses, dado o elevado nível de produtividade do trabalho


na Inglaterra se comparado com o da Irlanda. É por isso que
qualquer possibilidade de desenvolvimento também
precisaria passar por tarifas protecionistas “proibitivas” em
defesa da indústria nascente irlandesa.

Isto fica claro ao observarmos a diferença de


tratamento para a questão do protecionismo, recomendado
por Marx como uma necessidade para a Irlanda, e duramente
combatido no mesmo período como um entrave ao
desenvolvimento da Inglaterra. É o que vemos nas diversas
passagens de O Capital sobre a derrubada das Corn Laws14, e
demais normas protecionistas na Inglaterra. Em todas estas
passagens Marx defende que a abolição das tarifas
protecionistas na Inglaterra levou ao aumento dos
investimentos e da produtividade do trabalho na produção
agrícola, também impulsionando o desenvolvimento forças
produtivas do trabalho no campo.

Subdesenvolvimento e protecionismo no debate


sobre as Corn Laws

No caso da Inglaterra, a existência das tarifas


protecionistas levava ao aumento dos preços dos produtos
agrícolas, aumentando por sua vez os custos das matérias-
primas da indústria (gastos com capital constante), bem como

14Corn Laws foi o nome pelo qual ficaram conhecidas a legislações que estabeleciam tarifas protecionistas para
a agricultura inglesa de grãos em geral entre 1815 e 1846. Durante os anos que precederam sua derrubada a
política inglesa foi dominada por uma intensa disputa. De um lado os capitalistas industriais “livre-cambistas”
defendiam sua derrubada, que objetivavam utilizar como um mecanismo para viabilizar a troca entre seus
produtos industrializados e produtos agrícolas no exterior, e também como arma de negociação para a
derrubada de barreiras alfandegárias aos seus produtos industriais. Do outro os proprietários rurais defensores
da manutenção das tarifas protecionistas afirmavam que sua derrubada levaria a economia rural inglesa à
bancarrota. Marx analisou esta questão em diversas passagens de O Capital, e utilizou como ilustração de seus
argumentos em diversas outras (MARX, 1983, I-1, pp. 17, 223, 224, 230; I-2, pp. 67, 69-70, 232-236).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

dos alimentos que compõem o consumo dos operários (gastos


com capital variável). Sua derrubada permitiria à indústria
inglesa reduzir os custos de suas matérias-primas, além de
permitir uma redução real de salários dos operários sem que
isto levasse a uma redução do equivalente em termos de
alimentos (mercadorias de consumo de massas) destes
salários, o que equivale, em certo sentido, a uma forma de
manifestação do mecanismo da mais-valia relativa. Por outro
lado, devido à existência de um capitalismo avançado, a
concorrência com os produtos agrários importados levaria a
uma maior concentração de capitais (aumento da
composição orgânica) na produção agrária inglesa,
aumentando a produtividade do trabalho e o excedente ali
produzido.

No caso da Irlanda, a inexistência de tarifas impediria


qualquer possibilidade de constituição de uma indústria, uma
vez que os capitais existentes se concentrariam no campo,
produzindo para exportar para a Inglaterra. A utilização destes
capitais para a industrialização seria extremamente
dificultada devido à impossibilidade de que uma indústria
nascente pudesse concorrer com os produtos industriais
ingleses, dada a maior produtividade do trabalho decorrente
da maior concentração de capitais na forma de maquinário,
acesso a matérias-primas, etc, ou seja, mais capital e maior
composição orgânica do capital.

Outro ponto interessante desta comparação é o conflito


social expresso no debate sobre a política econômica no caso
da Irlanda e no caso da Inglaterra. Este aspecto é observado
por Marx e tem uma grande importância em sua análise. Marx
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

afirma que no caso da Inglaterra, embora os proprietários


rurais fossem muito mais representados na house of commons,
a capacidade dos capitalistas industriais de pautar a
sociedade com sua campanha “anti-corn laws”, buscando
até mesmo mobilizar neste sentido contingentes da classe
operária15, termina sendo decisiva. Aqui o conflito entre a
moderna acumulação industrial e o capitalismo atrasado do
campo, de baixa composição orgânica e com baixa
produtividade do trabalho se expressa no luta entre industriais
e proprietários rurais nas ruas, e no parlamento entre whigs
(liberais) e tories (conservadores) e termina com a vitória dos
primeiros sobre os últimos. Esta vitória expressa na revogação
das Corn laws e das tarifas alfandegárias para o algodão e
outras matérias-primas foi de tal importância que fez “raiar o
império milenar” do capitalismo inglês (MARX, 1983, I-1, p. 224).

Outros conflitos semelhantes foram identificados por


Marx em outros países onde a produção capitalista
avançava. No caso da França a disputa entre capital
industrial e proprietários de terra “se escondia atrás da
oposição entre minifúndios e latifúndios” (MARX, 1983, I-1, p.
17). A incapacidade dos capitalistas industriais franceses para
ganhar o apoio da classe dos pequenos proprietários rurais,

15 Marx narra a tentativa da chamada anti-corn-law-league, associação dos industriais livre-cambistas, de


ganhar o apoio dos operários em defesa de sua demanda, chegando a promover protestos com filões de pão,
os pequenos representando a alimentação dos operários com as Corn Laws, e os grandes representando o
salto em sua dieta caso fossem derrubadas. Aponta, no entanto, que “a realidade comprovou a mentira dessas
promessas. O capital industrial da Inglaterra, que se fortaleceu por meio da revogação das leis do trigo, reforçou
seus ataques aos interesses vitais da classe trabalhadora” (MARX, 1983, I-1, p. 223). O único benefício para os
operários viria com a aprovação de lei que limitava a jornada em 10 horas diárias também aprovada nos anos
de 1846-47 apesar da resistência dos capitalistas livre-cambistas, sob grande pressão do movimento cartista, e
com o apoio dos proprietários rurais tories “sedentos de vingança” (MARX, 1983, I-1, p. 224). Aqui fica clara
uma “importância própria” (o que nos termos do marxismo contemporâneo seria chamado de “autonomia
relativa”) do Estado e da política na análise de Marx. A aprovação da jornada de 10 horas, mais precisamente a
“vingança dos tories” não aparece como uma “necessidade do processo de acumulação” nem como mera
“expressão dos interesses de classe”, mas expressão do desenvolvimento da luta política que tem sua gênese
nas disputas em torno ao processo de acumulação, mas que pode em certos momentos adquirir uma dinâmica
própria.
103
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pequeno-burgueses, surgida com as reformas agrárias


ocorridas após 1789 é base da célebre análise que faz Marx
do bonapartismo francês, em especial do governo de Luís
Bonaparte após o golpe de 1852 (1852-1870). O golpe e a
restauração que coroou Bonaparte como Napoleão III era,
para Marx, a expressão política da imposição das
necessidades da acumulação de capital à própria burguesia
e ao proletariado por uma république cosaque16,
aparentemente autônoma frente às classes, mas que em
última instância representa a numerosa classe dos pequenos
proprietários rurais (MARX, 2006, pp. 127-144).

No caso dos EUA a expressão máxima deste conflito se


dá na guerra civil (1861-1865), onde os Estados industriais do
norte (União) se opõem aos Estados escravocratas e
exportadores de matérias-primas do sul (Confederados), que
tentam separar-se da união antecipando a possibilidade da
abolição da escravidão. Marx vê a guerra civil americana
como uma tentativa dos Estados do sul de subordinar o país a
si e a sua lógica de acumulação, algo próxima da lógica
“subdesenvolvida” do capitalismo irlandês, baseada não no
aumento da produtividade do trabalho, mas no aumento da
exploração. É o que vemos na passagem abaixo, retirada de
um artigo de Marx para o jornal austríaco Die Presse de 7
novembro de 1861:
Assim, na verdade, teria lugar não uma dissolução
da União, mas uma reorganização da mesma,
uma reorganização com base na escravidão, sob
o controle reconhecido da oligarquia escravista.
[...] O sistema escravista infectaria toda a União.
Nos estados do norte, onde a escravidão dos
negros é inviável na prática, a classe trabalhadora
branca seria gradualmente rebaixada ao mesmo

16República cossaca, ao mesmo tempo burguesa e autoritária, que se afasta progressivamente dos ideais
democráticos da revolução francesa.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

nível de miséria. Isso estaria de acordo com o


alardeado princípio de que apenas algumas raças
são capazes serem livres, e que, como no sul do
trabalho real é do negro, assim, no Norte, é a sorte
do imigrante alemão, do irlandês, ou de seus
descendentes diretos. (MARX, 2005, vol. 19, pp 50-
51 – trad. nossa).

Aqui é necessário um parêntese. Embora não visse os


proprietários rurais escravistas do sul dos EUA exatamente
como “capitalistas” Marx deixa claro em O Capital que
apesar da inexistência de relações capitalistas de produção
(trabalho assalariado), a subordinação da sua produção à
exportação e ao mercado mundial capitalista, e logo à
produção de valores-de-troca em substituição à anterior
produção voltada aos valores-de-uso, impunha a eles, em
diversos aspectos, as mesmas “leis”, como a necessidade do
aumento da mais-valia (sobretrabalho)17. No que se refere às
formações pré-capitalistas em geral Marx é claro ao afirmar
que “em todas o objetivo econômico é a produção de
valores-de-uso” (MARX, 1986, p. 77):
O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer
que parte da sociedade possua o monopólio dos
meios de produção, o trabalhador, livre ou não,
tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário
à sua auto-conservação um tempo de trabalho
excedente destinado excedente destinado a
produzir os meios de subsistência para o
proprietário dos meios de produção, seja esse
proprietário aristocrata ateniense, teocrata
etrusco, cidadão romano, barão romano,

17Nos Grundrisse, nas “Formações econômicas pré-capitalistas”, Marx é ainda mais claro ao afirmar que neste
sentido, o da subordinação à lógica do capital e da regulação pela lei do valor, estes proprietários escravocratas
exportadores vinculados ao mercado mundial poderiam ser considerados capitalistas, ainda que não o
pudessem do ponto de vista das relações de produção estabelecidas:
A produção de capitalistas e trabalhadores assalariados é, portanto, um produto fundamental
do processo pelo qual o capital se transforma em valores. [...] O conceito de capital implica que
as condições objetivas do trabalho – que são o próprio produto do capital – adquirem uma
personalidade contra o trabalho, ou, o que vem a ser o mesmo, o que passem a constituir
propriedade alheia, não do trabalhador. [...] Isto é [a afirmativa de que haveria capitalistas entre
romanos e gregos], apenas, outro modo de dizer que em Roma e na Grécia o trabalho era livre,
afirmação que estes cavalheiros dificilmente fariam. Se falarmos, agora, dos proprietários das
plantations da América como capitalistas, e que sejam capitalistas, isto se baseará no fato
deles existirem como anomalias em um mercado mundial baseado no trabalho livre. (MARX,
1986, p. 110).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

escravocrata americano, boiardo da valáquia, o


moderno senhor de terras ou o capitalista. É claro,
entretanto, que se numa formação sócio-
econômica predomina não o valor de troca, mas
o valor de uso do produto, o mais-trabalho é
limitado por um círculo mais estreito ou mais amplo
de necessidades, ao passo que não se origina
nenhuma necessidade ilimitada por mais-trabalho
do próprio caráter da produção (MARX, 1983, I-1,
p. 190).

Mas nos casos em que a formação social que apresenta


relações sociais de produção pré-capitalistas (escravidão,
corvéia) é arrastada ao mercado mundial dominado pela
produção capitalista, no caso em a “mais-valia”, o
sobretrabalho ou mais-trabalho em termos mais rigorosos,
deixa de restringir-se a “produção de meios de subsistência
para o proprietário dos meios de produção” e passa a tratar
da produção de mais-valia, exatamente no sentido em que
passa a ser subordinada às leis do capital em geral, então:
Tão logo, porém, os povos, cuja produção se move
ainda nas formas inferiores do trabalho escravo,
corvéia, etc., são arrastados a um mercado
mundial, dominado pelo modo de produção
capitalista, o qual desenvolve a venda de seus
produtos no exterior como interesse
preponderante, os horrores bárbaros da
escravatura, da servidão, etc. são coroados com o
horror civilizado do sobretrabalho. Por isso, o
trabalho dos negros nos Estados sulistas da União
Americana preservou um caráter moderadamente
patriarcal, enquanto a produção destinava-se
sobretudo ao auto-consumo direto. Na medida,
porém, em que a exportação de algodão tornou-
se interesse vital daqueles Estados, o sobretrabalho
dos negros, aqui e ali o consumo de suas vidas em
7 anos de trabalho, tornou-se fator de um sistema
calculado e calculista. Já não se tratava de obter
deles certa quantidade de produtos úteis. Tratava-
se, agora, da produção da própria mais-valia. Algo
semelhante sucedeu com a corvéia nos
principados do Danúbio.
A comparação da avidez por mais-trabalho nos
principados do Danúbio com a mesma avidez nas
fábricas inglesas oferece interesse especial, porque
o mais-trabalho na corvéia possui forma
independente, palpável (MARX, 1983, I-1, p. 191).
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É neste sentido que Marx envolve a si e, através da 1ª


internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores)
parte do proletariado europeu, em uma intensa campanha
pela vitória do norte na guerra civil americana. Por um lado,
Marx defende que a internacional combata entre os operários
as tentativas do governo inglês de intervir no conflito em apoio
aos Estados do sul18. Para Marx assim como a exportação
havia criado uma formação social “anômala” no sul dos EUA,
ao mesmo tempo escravista (do ponto de vista das relações
sociais, de trabalho), capitalista (do ponto de vista da
subordinação ao valor-de-troca, e, logo, da regulação da
produção pela lei do valor) e dependente das exportações
para a indústria inglesa, também a indústria inglesa tinha um
certo grau de dependência das matérias-primas produzidas
por mãos escravas nos EUA, motivo pelo qual desejava intervir
no conflito19.

Por outro lado Marx vê na abolição da escravatura no


sul não apenas uma medida valiosa em termos humanos, mas
também o caminho pelo qual os proprietários escravocratas
seriam destituídos de suas posições de poder, de modo a
viabilizar uma resultante da política econômica que superasse
a lógica “subdesenvolvida” da acumulação existente no Sul20.

18 Sobre isto, ver Anderson (2010, pp. 90-92), e Marx (2005, vol 19, pp. 18-20).
19 Ver Anderson (2010, pp. 134-137). Aqui é interessante notar que esta relação na qual um país se integra ao
mercado mundial na condição de fornecedor de matérias primas e alimentos para uma potência industrial
também tem conseqüências para o país industrial, em geral positivas, mas em alguns casos indesejáveis.
20 Marx chega a enviar uma correspondência para o presidente americano Abraham Lincoln, onde em nome da

Internacional Marx pressiona pela abolição da escravatura e manifesta apoio ao presidente neste sentido. A
mensagem da AIT foi respondida por Lincoln através do embaixador na Inglaterra Charles Francis Adams, na
qual Lincoln agradece o apoio “de tantos amigos da humanidade e do progresso ao redor do mundo”. (MARX,
2005, vol. 20, pp. 18-20 e 1972, pp. 239-240).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

No caso da Irlanda, no entanto, tudo indica que a


impossibilidade de que o conflito entre capitalistas industriais e
proprietários rurais se desenvolvesse no mesmo sentido que
havia ocorrido na Inglaterra, na França ou nos EUA residia no
fato de que a indústria (seja “doméstica” ou capitalista) havia
sido completamente arrasada pelos anos de dominação, e
encontrava-se impedida de se desenvolver adicionalmente
pela concorrência da indústria inglesa. A conseqüência social
deste fato era que, ainda que conquistasse sua
independência, seguiria inexistente na Irlanda uma classe de
capitalistas industriais em condição de impor aos proprietários
de terras uma política econômica que viabilizasse o
desenvolvimento de um processo de acumulação próprio,
que precisaria da proteção de “tarifas proibitivas contra a
Inglaterra”. Esta política jamais seria aceita pelos grandes
proprietários rurais exportadores irlandeses que a partir da
aprovação das Corn Laws, justamente em busca de maiores
lucros, aprofundaram tanto as relações capitalistas quanto os
investimentos na produção agrária. Marx parece ver,
entretanto, no proletariado rural e nos camponeses pobres o
sujeito social e no próprio movimento nacionalista irlandês, o
Fenian movement21, o possível sujeito político desta
transformação. Por tudo isto não parece coerente atribuir a
revolução agrária que Marx defendia em 1867 ao mero
estabelecimento de relações capitalistas no campo.

21 O movimento nacionalista irlandês, cujos ativistas também eram conhecidos na época de Marx como
Fenians, recebeu amplo apoio político e também financeiro da AIT, em muitos casos por propostas de Marx. Um
caso emblemático é a campanha em torno à libertação de Jeremiah O’Donovam Rossa (1831-1915). Este líder
do movimento Fenian foi preso e condenado à prisão perpétua em 1865, após sua participação em uma
tentativa de insurreição contra a dominação britânica. Em 1869, mesmo na prisão foi eleito com uma massiva
votação para a house of commons do parlamento britânico, expressando o rechaço popular à dominação. Neste
período, Marx e Engels alimentam esperanças que o mesmo movimento que levou a eleição de Rossa, poderia
ter condições de avançar no sentido da independência nacional irlandesa. Em 30 de novembro de 1869, por
iniciativa de Marx, o conselho geral da AIT vota pela primeira vez uma resolução em defesa da independência
da Irlanda e pela anistia aos presos políticos do movimento Fenian. A ampla campanha que se seguiu resultou
na libertação de Rossa pelos ingleses em 1870 e no seu exílio nos EUA, onde seguiu atuando pela causa da
independência da Irlanda. Ver Marx e Engels (1972, p. 505) e Anderson (2010, pp. 135-138).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Fica também evidente a atribuição de uma grande


importância à questão político-institucional na análise de Marx
como terreno onde se expressa a contradição entre as
distintas formas de acumulação “desenvolvida” e
“subdesenvolvida”. Não parece absurdo supor que a
“revolução agrária” a que Marx se refere como uma
necessidade para o desenvolvimento da Irlanda tenha a ver
também, senão principalmente, com a expropriação destes
grandes proprietários exportadores como forma de solapar as
bases de seu poder e influência sobre as instituições 22 e que
tem como resultante política uma legislação que impele a
economia do país no sentido do “subdesenvolvimento”23.
Sobre o papel deste setor Marx assinalava:
Além disso, o proprietário, que não faz
absolutamente nada para a melhoria da terra,
também expropria seu pequeno capital, que o
arrendatário, em grande parte mediante seu
próprio trabalho, incorpora na terra. Isto é
precisamente o que um usurário faria em

22 Parece também ir neste sentido a seguinte passagem da carta enviada por Marx a Kugelmann de 29 de
novembro de 1869: “The primary condition of emancipation here—the overthrow of the English landed
oligarchy—remains unattainable, since its positions cannot be stormed here as long as it holds its strongly
entrenched outposts in Ireland. But over there, once affairs have been laid in the hands of the Irish people
themselves, [...] it will be infinitely easier there than here to abolish the landed aristocracy (to a large extent the
same persons as the English landlords) since in Ireland it is not merely an economic question, but also a national
one, as the landlords there are not, as they are in England, traditional dignitaries and representatives, but the
mortally-hated oppressors of the nationality”. (MARX, 2005, vol. 43, pp. 390–391). O que fica claro também
neste trecho é a perspectiva internacionalista de Marx, que via na independência da Irlanda um passo decisivo
para as possibilidades da vitória de uma revolução socialista na Inglaterra. No entanto, reduzir a isto a
importância da análise da Irlanda feita por Marx, como faz Larrain (1999), só poderia ocorrer caso ignorássemos
completamente todos os trechos de O Capital e dos demais trabalhos de Marx do período que tratam da
evolução da economia irlandesa, ou se as considerássemos meramente instrumentais a suas posições
políticas, o que equivaleria a negar à obra econômica de Marx qualquer caráter científico.
23 Nos casos analisados por Marx é interessante notar a progressiva força política dos proprietários rurais como

expressão dos graus de subordinação da economia à exportação de matérias-primas para a indústria


estrangeira. Enquanto na Inglaterra, primeira potência industrial, os proprietários são derrotados de forma
relativamente simples, na França a solução já demanda uma série de golpes e uma forma diferenciada,
bonapartista, de compromisso e de governo e nos EUA uma sangrenta guerra civil. Entre estas formas poderia
também ser incluída uma outra, a chamada “via prussiana” de Lênin (1980, p. 30) e a “revolução passiva” do
rissorgimento italiano na análise de Gramsci (2004, p. 393), ambas caracterizando um tipo conservador de
tratamento da “questão agrária” no qual a própria classe de proprietários rurais evolui no sentido de se tornar
uma classe de capitalistas industriais, sem ter nunca chegado a voltar-se para o abastecimento de matérias-
primas para a indústria estrangeira. Parecem ser relevantes em todos os casos as relações estabelecidas com
as potências industriais mais antigas, os níveis de concorrência no mercando mundial capitalista na época do
processo de industrialização e a evolução da luta de classes e da ação independente da classe operária, que
cada vez menos parece suscetível a um papel secundário como o desempenhado junto à burguesia francesa na
revolução de 1789.
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circunstâncias semelhantes, apenas com a


diferença de que o usurário que, pelo menos risco
seu próprio capital na operação. Este saque
contínuo é o centro da disputa sobre a legislação
agrária irlandesa, que, essencialmente se resume
em obrigar o proprietário, quando rescinde o
contrato de arrendamento, a indenizar o
arrendatário suas melhorias na terra, ou para o seu
capital incorporado na terra. A isto, Palmerston24
costumava responder cinicamente: “A Câmara
dos Comuns é uma casa de proprietários de
terras”. (MARX, 1983, III-2, p. 131).

Por fim a expressão sintética, termômetro e resultado do


processo de subordinação da economia irlandesa era a
evolução do rendimento nacional. Marx calcula que entre
1853 e 1864 o acréscimo anual médio dos rendimentos na
Irlanda (algo próximo da variação do produto interno), foi de
0,93 %, enquanto na Grã-bretanha este número chegava a
4,58 % (MARX, 1983, I-2, p. 255).

O redescobrimento dos escritos irlandeses de Marx e


sua importância no debate sobre desenvolvimento e
dependência

O primeiro autor a chamar a atenção para os escritos


de Marx sobre a Irlanda no que diz respeito a relevância no
debate sobre desenvolvimento foi o japonês Kenzo Mohri
(1979). Nesta seção será feita uma rápida contextualização a
respeito, para a partir daí apontar virtudes e também alguns
limites do resgate dos textos de Marx discutidos aqui.

Após a Segunda Guerra Mundial mais de 50 países


obtiveram sua independência das antigas metrópoles
européias. Junto com a América Latina vão dar origem a um

24Henry John Temple, conhecido como Lord Palmerston, foi primeiro-ministro do Reino Unido por dois
mandatos no período entre 1855 e 1865.
110
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

“terceiro mundo” formalmente independente, mas


“subdesenvolvido”.

Buscando oferecer um “caminho para o progresso”


destes países, as principais teorias da Economia do
desenvolvimento, como o artigo de A. Lewis (1969) e Rostow
(1974), caracterizam-se por compartilhar uma identificação
praticamente imediata entre as noções de “desenvolvimento”
e “desenvolvimento capitalista”, como expansão das relações
de produção capitalistas (BONENTE, 2011).

Um questionamento destas teorias seria realizado por


Paul A. Baran (1977)25 e aprofundado por A. G. Frank (1966) e
pela Teoria da Dependência. Aqui o subdesenvolvimento
aparece como uma conseqüência da própria expansão das
relações capitalistas nos países “pobres” (satélites / periferia),
ocorrida em função do abastecimento de matérias primas
para a indústria dos países desenvolvidos (metrópoles /
centro). Esta posição ficaria conhecida como neomarxista.

Em resposta aos trabalhos de Baran, Frank e dos


dependentistas surge toda uma produção bibliográfica que
busca discutir e estabelecer qual seria a noção de
desenvolvimento presente na obra de Karl Marx. O objetivo
desta produção é estabelecer se as formulações de Marx
“autorizariam” ou não este neomarxismo.

Dentro desta produção, a interpretação mais difundida


da noção de desenvolvimento presente na obra de Marx é a

25 Os trabalhos de Lewis, Rostow e Baran são respectivamente de 1954, 1960 e 1957.


111
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que chamamos de “difusionista”, ou seja, uma visão que


iguala o desenvolvimento à expansão capitalista.

Este tipo de interpretação teve grande ressonância ao


longo da segunda metade do século XX, uma ressonância de
tal ordem que mesmo críticos deste tipo de visão e, em alguns
casos, mesmo autores com simpatias por visões relacionadas
à teoria da dependência ou as teorias da troca desigual,
cederiam a ela em suas obras, aceitando, ainda que com
diferentes graus de contradições, a interpretação que
identificava estas teses difusionistas na obra de Marx. Os
exemplos disso vêm desde o próprio Baran26, até Dos Santos27,
passando por Sutcliffe28, Amin29, Brown30, Williams31,

26 “Quaisquer que tenham sido sua velocidade e os seus ziguezagueantes caminhos, a direção geral do
movimento histórico parece ter sido a mesma, tanto nos escalões atrasados como nos vanguardeiros” (BARAN,
1977, p. 210). É muito importante ressaltar, entretanto, que embora nesta citação da sua Economia Política do
Desenvolvimento, publicada inicialmente em 1957, Baran aderisse de forma clara à interpretação que
chamamos de difusionista da obra de Marx, e embora esta passagem tenha sido exaustivamente utilizada para
ressaltar a opinião de Baran sobre o tema, em obra posterior, mais precisamente no clássico Capitalismo
monopolista, escrito em parceria com Paul Sweezy (publicado em 1966), pode-se ver a seguinte passagem:
Em retrospecto, não podemos deixar de lamentar que Marx não tenha ressaltado, de forma
enfática, desde o início, que o capitalismo desenvolvido da Grã-Bretanha (e de um punhado de
outros países da Europa e América do Norte) tinha, como contrapartida, a exploração e
conseqüente subdesenvolvimento de grande parte do resto do mundo. Ele tinha plena
consciência dessa relação [...]. Além disso, o tratamento dado por Marx à acumulação primitiva
ressaltou o papel crucial desempenhado pelo saque às colônias no aparecimento do
capitalismo avançado na Europa. Podemos ver agora, porém, que a omissão de Marx, não
ampliando seu modelo teórico para incluir tanto os segmentos desenvolvidos do mundo
capitalista como os subdesenvolvidos – uma omissão que ele poderia ter reparado, se tivesse
tido tempo bastante para concluir seu trabalho – teve o efeito infeliz de focalizar a atenção,
demasiado exclusivamente, sobre os países capitalistas desenvolvidos. Somente nos últimos
anos a importância decisiva da inter-relação dialética do desenvolvimento e
subdesenvolvimento começou a ser plenamente apreciada” (BARAN e SWEEZY, 1978, p. 16).
27 “Para Marx a modernidade se identificava com a revolução democrático-burguesa. Tratava-se de uma visão

classista e histórica de um modelo cujas pretensões universais derivavam de sua origem de classe, isto é, a
ideologia burguesa. [...]. Mas para Marx, essa formação social representava apenas um estágio do
desenvolvimento global da humanidade. Ao confrontar-se com a especificidade da formação social russa, Marx
teve simpatias pela tese populista de que a Rússia teria um caminho próprio – via comunidades rurais – o Mir
russo – Contudo, nem ele nem Engels puderam elaborar em detalhe esta idéia geral” (DOS SANTOS, 2000, pp.
18-19).
28 “[…] it is quite clear that for most of the time Marx believed that capitalism would industrialize the world”

(SUTCLIFFE, 1972, p. 181).


29 “[…] these distinctive problems of transition to peripheral capitalism largely escaped Marx's notice, and this

accounts for his mistaken notion about the future development of the ‘colonial problem’. [...] colonial rule would
lead the East in the direction of full capitalist development” (AMIN, 1974, pp. 147-148).
30 “[…] it is clear that he supposed that: [...] The general direction of the historical movement seems to be the

same for the backward as for the forward contingents” (BROWN, 1974, p. 70).
31 “Within the classic Marxist tradition, capitalism was necessary to establish the material, social and cultural

conditions required for the establishment of socialism” (WILLIAMS, 1978, p. 930).


112
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Wallerstein32, Mclellan33, e Fiori34. O sucesso da atribuição


desta tese a Marx levou a que ela se tornasse expressão de
um marxismo supostamente “ortodoxo”. De todo modo, é
possível que os críticos “não-ortodoxos” tenham contribuído
de forma importante para este resultado35.

Já com o trabalho de Mohri surge o que poderia ser


considerada uma segunda interpretação sobre
desenvolvimento na obra de Marx, Esta interpretação vê uma
ruptura de Marx com as posições difusionistas em algum
momento entre 1853 e 1877 (no caso de Mohri, a década de
1860), posição também defendida, ainda que de maneiras
diversas, por autores como Scaron (1980), Shanin (1984), Wada
(1984), Dussel (1990), Kohan (1998), Anderson (2010) e Di
Meglio e Messina (2012).

Mohri (1979) afirma que há uma mudança no


pensamento de Marx sobre o tema do desenvolvimento a
partir dos anos 1860 e que ao tratar da dominação britânica
na Irlanda Marx passa a dar mais atenção à questão da
emancipação dos povos subjugados e, assim, à questão das

32 “‘Marx and underdevelopment’ is a curious theme in many ways, since Marx did not really know the concept of
underdevelopment. It is a concept alien to his work as he usually expounded it. It is a concept which in many
ways challenges Marx's ideas every bit as much as it challenges traditional bourgeois liberalism. For we must
never forget that liberalism and Marxism are joint heirs to Enlightenment thought and its deep faith in inevitable
progress” (WALLERSTEIN, 1985, pp. 379).
33 They share [as teorias do subdesenvolvimento – PGP] the rejection of the classical marxist approach [...]. His

[Marx – PGP] comments on the progressive nature of Britain’s role in India are in the same vein: Only on his
remarks on Ireland’s having been stunted in it’s development by the English does he come close to the idea that
colonial capitalism might result different from those obtained in western Europe” (MCLELLAN, 1998, pp. 275-
277).
34 “[...] mas, a não ser estas referências raras e localizadas, tem razão Paul Baran quando afirma que a linha

central do argumento de Marx aponta para o reconhecimento de que ‘a direção geral do movimento histórico
parece ter sido a mesma tanto para os estratos inferiores quanto para os contingentes mais avançados’” (FIORI,
2000, pp. 15-19).
35 Sobre isto R. Chilcolte afirmaria que um dos principais problemas dos marxistas de sua época que estudavam

o desenvolvimento seria sua “indisposição de buscar suas descobertas no pensamento de Marx, ou talvez sua
desatenção com os escritos do século XIX” (CHILCOTE, 1983, p. 105).
113
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

condições objetivas para o desenvolvimento do capitalismo


nos países colonizados.

Diante destas análises de Marx sobre a questão


irlandesa, ao contrário do afirmado pela interpretação
“difusionista”, para Mohri a posição teórica para a qual Marx
estava se dirigindo em seus últimos anos poderia ser
caracterizada da seguinte forma:
A integração forçada da velha sociedade no
sistema capitalista e no mercado mundial pela
pressão externa do comércio britânico (ou seja, do
comércio com uma economia industrial) e a
transformação resultante desta sociedade
determinaria um curso de desenvolvimento de sua
economia e de uma estrutura de suas forças
produtivas completamente dependentes ‘segundo
a sua maior ou menor suscetibilidade para
exportação’36 (MOHRI, 1979, p. 40 – trad. nossa).

Ou seja, a análise de Marx aqui apontava o despertar


de uma abordagem do subdesenvolvimento: o capital
britânico, ao invés de desenvolver o capitalismo na Irlanda,
estava “subdesenvolvendo” suas forças produtivas no sentido
de uma economia agrária e impedindo o desenvolvimento de
uma indústria. Ao invés de uma dupla missão destrutiva e
regeneradora (como apontadas por Marx nos artigos de 1853
sobre a Índia) o papel do capital britânico seria o de uma
“dupla missão de destruição, o que significa tanto a
destruição da velha sociedade quanto a destruição de
algumas das condições essenciais para a regeneração de
uma nova sociedade” (MOHRI, 1979, p. 41).

O elemento mais relevante para Mohri parece ser a


mudança na visão que tinha Marx sobre o papel da expansão
capitalista no mundo “não-desenvolvido”: ao invés de

36 A referência de Mohri nesta frase é a uma carta de Marx a N. Danielson de 1879 (MARX, 1879).
114
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

industrialização, subdesenvolvimento e subordinação das


economias aos processos de acumulação externos, dos países
industriais. Mohri atribui a esta mudança de opinião, por um
lado, ao aumento do envolvimento de Marx com a questão
irlandesa, mas também a um progressivo aprofundamento dos
estudos de Marx sobre outras sociedades, como a russa
(MOHRI, 1979, p. 34).

O aspecto fundamental da repreensão de Mohri aos


críticos marxistas da Economia do desenvolvimento era
justamente que ao ignorar os avanços feitos por Marx neste
terreno, estes terminavam por perder um ponto de apoio
fundamental para sua própria posição. Nas palavras de Mohri:
A minha preocupação foi a de chamar a atenção
para várias sugestões contidas nestas críticas de
Marx que parecem ser teoricamente valiosas e,
desta forma, ajudar a reconstituir uma perspectiva
crítica que possa efetivamente resolver as questões
que enfrentamos atualmente. O que se tornou
claro, como um resultado do que eu poderia
chamar de intercomunicação de perspectivas, é
que (1) os críticos de Marx estão basicamente
certos em sua percepção do papel histórico da
expansão do capital britânico, e (2) as conclusões
a que eles chegaram são de fato virtualmente
idênticas àquelas para as quais o próprio Marx
continuou a caminhar ao longo de sua incansável
jornada de investigação teórica, na segunda
metade de sua vida. (Mohri, 1979, p. 41 – trad.
nossa).

O resgate feito por Mohri destes escritos de Marx sobre a


Irlanda teve um efeito devastador sobre a interpretação
difusionista, especialmente se considerado em conjunto com
os trabalhos do mesmo período que advogaram esta tese da
mudança radical de Marx. O ponto específico que os textos
sobre a Irlanda são especialmente relevantes é o seguinte:
Para a interpretação majoritária da obra de Marx, o
significado atribuído à tendência de avanço (auto-expansão)
115
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

do capital por todo o globo, a artilharia pesada que


“derrubaria as muralhas da China”, era o progresso, o
desenvolvimento de capitalismos industriais. As análises de
Marx sobre a Irlanda provam de forma categórica que não
era assim que pensava o autor.

Isto fica ainda mais claro quando comparamos dois


trechos do livro I de O Capital. Enquanto em relação à
Alemanha, como visto anteriormente, Marx via como
tendência o surgimento de uma grande indústria capitalista,
no caso da Irlanda, à medida que avançavam as relações de
produção capitalistas, a tendência observada por Marx na
mesma obra não era a de se tornar um país capitalista
industrial como a Inglaterra, mas de se tornar “pastagem de
ovelhas e gado para a Inglaterra” (MARX, 1983, I-2, p. 259).

Autores mais recentes que seguiram advogando


interpretações da obra de Marx que igualam as noções de
desenvolvimento e expansão capitalista tiveram abrir mão
parcialmente deste tipo de visão, no mínimo registrando a
existência de “contradições” e de uma “tensão permanente”
entre distintas visões do tema na obra de Marx (LARRAIN, 1999,
pp. 230-234), ou então buscaram adaptar sua interpretação a
estes escritos, tentando restringir sua importância à questão do
colonialismo37 para que fosse possível manter as igualdades
entre expansão capitalista, desenvolvimento e “progresso” por
um lado, e subdesenvolvimento, “atraso” e “pré-capitalismo”
por outro (VUJACIC, 1988 e BREWER, 1990).

37 Esta variação da interpretação difusionista pode ser vista em maior detalhe em De Paula (2014, pp. 35-48).
116
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O trabalho de Mohri, portanto, teve o mérito


fundamental de ressaltar estas análises concretas que Marx
produziu a partir dos anos 1860, que já eram produto de uma
reflexão mais profunda sobre o sistema capitalista e sobre as
leis gerais de movimento do capital, uma vez que foram
produzidas após Marx ter formulado seu método da crítica da
economia política, e dado grandes passos no sentido da
execução desta crítica, como os Grundrisse de 1857, os
estudos de 1861-63 e o primeiro livro de O Capital de 1867 etc.

Entretanto, Mohri compartilha com os demais autores


que viram uma mudança radical na visão de Marx sobre o
tema uma limitação fundamental. Esta interpretação em geral
comunga de um mesmo pressuposto da interpretação
difusionista: a recusa, ainda que não declarada, de uma
teoria crítica do desenvolvimento capitalista que decorra da
crítica da economia política, das teorias do valor, da
acumulação e das leis de movimento do capital conforme
descobertas por Marx em O Capital.

Conclusões

Em suas análises concretas do subdesenvolvimento


irlandês dos anos 1860 Marx identificou uma série de
características que não parecem se restringir apenas aquele
caso. Entre elas poderíamos citar: a) expansão principalmente
quantitativa das forças produtivas (MARX, 1983, III-2, pp. 162-
163); b) incipiente divisão interna do trabalho ocasionada
pela retração da indústria (Idem; MARX e ENGELS, 1972, p. 48);
c) tendência da acumulação centrada na maior exploração
do trabalho (mais-valia absoluta) e menos nos aumentos de
117
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

produtividade (mais-valia relativa) (MARX, 1983, III-2, p. 131) e


d) taxas comparativamente menores de crescimento em
relação aos países industriais (MARX, 1983, I-2, p. 255).

Toda esta análise de Marx permite compreender o


subdesenvolvimento como uma expressão contraditória do
processo de formação da economia mundial como
totalidade do capital. Suas características relacionam-se
principalmente com aspectos fundamentais desta expansão
capitalista e menos com aspectos específicos do caso
irlandês, ainda que estes tenham, obviamente, muita
relevância no caso analisado.

Utilizando como referência esta análise irlandesa de


Marx, poder-se-ia identificar o subdesenvolvimento (neste
caso um “subdesenvolvimento especificamente capitalista”)
como um avanço regional das relações de produção
capitalistas que, expressando o processo contraditório de
formação do mercado mundial, não leva ao surgimento de
um “capitalismo industrial” próprio, mas a um crescimento
prioritariamente quantitativo das forças produtivas em função
das necessidades da indústria estrangeira (DE PAULA, 2014,
cap. 3).

De qualquer forma, é necessário ter claro que por mais


gerais que sejam os aspectos apontados por Marx em suas
análises concretas, a simples enumeração deles não poderá
jamais substituir uma teoria ontológica e dialética sobre a
sociedade capitalista. As semelhanças podem não passar de
semelhanças. É tarefa da ciência, além de descobrir as leis
internas que governam os fenômenos, buscar elucidar os elos
118
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

intermediários e as relações causais entre os fenômenos e suas


leis internas e as possíveis contradições entre estas instâncias,
justamente para possibilitar a compreensão de sua
especificidade e estabelecer os limites das abstrações. Neste
ponto, o da ausência de qualquer tentativa de construção de
uma teoria do desenvolvimento calcada na teoria do valor de
Marx, revela-se uma importante limitação da maior parte dos
estudos até agora realizados sobre o tema.

Se, ainda assim, quisermos traçar algum tipo de


comparação, dentro de uma análise marxiana, do
subdesenvolvimento irlandês com outros casos
contemporâneos de subdesenvolvimento, como o brasileiro,
saltará aos olhos uma diferença fundamental do ponto de
vista da evolução da economia mundial capitalista: enquanto
o mercado mundial no qual se inseria a Irlanda de 1860 ainda
era dominado pelo capital comercial e o grau de expansão
das relações capitalistas pelo mundo ainda permitia alguma
esperança de desenvolvimento capitalista “autônomo”,
sabemos que os avanços da técnica e da produção
capitalista já levaram a termo a “partilha do mundo entre as
grandes potências” pelo menos desde os inícios do século XX.

Desde então o controle dos países industriais sobre os


processos de acumulação no mundo subdesenvolvido
assumiu formas muito mais sofisticadas (exportação de
capitais, “financeirização”, endividamento externo,
propriedade intelectual etc), de modo que seria razoável
supor que mesmo as medidas propostas por Marx aos
irlandeses fossem ainda insuficientes em situações como a
brasileira.
119
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Se levarmos tudo isto em consideração saltará aos olhos


a fragilidade das esperanças (neo) desenvolvimentistas
segundo as quais com financiamento barato, “inovação”,
alguma regulação de capitais e medidas sociais
compensatórias (supostamente redistributivas), mas
mantendo-se todos os aspectos fundamentais da inserção
internacional e da estrutura de classes interna, seria possível o
surgimento de capitalismo industrial brasileiro e a tão
esperada concretização do eterno sonho “emergente”. Se
isto, para uma perspectiva marxiana, pareceria impossível na
Irlanda de 150 anos atrás, poderia ter-se tornado possível
agora?

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Arranjos Produtivos Locais: uma nova


espacialidade nas políticas públicas1

Kilma Gonçalves Cezar2


Elimar Pinheiro do Nascimento3

RESUMO

O objetivo deste artigo é responder à seguinte questão: Os arranjos


produtivos locais (APLs) podem ser considerados uma forma de
espacialidade nas políticas públicas? Para tanto, abordou, de maneira
sucinta, o panorama teórico-acadêmico que sustenta os Arranjos
Produtivos Locais, apresentou a sua geografia e trouxe para o contexto a
terceira geração de políticas e o alinhamento entre o Governo Federal e
os entes federativos. Com o desenvolvimento do trabalho foi possível
reconhecer uma possível identidade entre as características dos APLs e as
concepções teóricas e governamentais acerca da dimensão espacial, e
perceber uma imbricação entre a concepção dos Arranjos Produtivos
Locais, a terceira geração de políticas de desenvolvimento e o federalismo
brasileiro, Esta articulação, possivelmente, se reflete numa condicionante
favorável para se conceber os arranjos produtivos locais como uma nova
espacialidade das políticas públicas no Brasil.

Palavras-chave: arranjos produtivos locais, dimensão espacial do


planejamento, desenvolvimento e políticas públicas.

ABSTRACT

The purpose of this article is to answer the following question: Can local
clusters be considered a form of spatiality in public policies? Therefore, the
theoretical-academic view that underpin the Local Productive
Arrangements is succinctly addressed, the geography of APLs are
presented, and the third generation of policies and the alignment between
the federal and federal entities are brought into this context. With the
development of this work, it was possible to recognize an identity between
the APLs characteristics and the theoretical and governmental conceptions
about the spatial dimension, and realize an overlap between the
conception of Local Productive Arrangements (APLs), the third generation
of development policies, and the Brazilian federalism, which possibly reflects
a favorable condition for conceiving APLs as a new spatiality of public
policies.

Keywords: Local Productive Arrangements, State, policies, development

1 Artigo apresentado em 15 de maio de 2014 e aprovado em 13 de agosto de 2014.


2 Economista, Doutora em Desenvolvimento Sustentável pelo CDS/UnB, kilmagc@yahoo.com.br.
3 Sociólogo, Doutor em Sociologia pela Universidade pela Université Paris Descartes, Professor Associado do

Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB), CDS/UnB,


elimarcds@gmail.com.
124
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Introdução

Alguns estudos desenvolvidos pelo IBGE, CEPAL e IICA,


citados a seguir, ressaltam que a retomada da dimensão
espacial no contexto das políticas públicas se mostrou de
forma mais nítida a partir da segunda metade da década de
1990.
O estudo realizado pelo IBGE4 indica que em todas as
macrorregiões do país coexistem sub-regiões dinâmicas,
competitivas, com rendimentos elevados e médios, e sub-
regiões com características de estagnação econômica e
condições de vida precária, conforme as figuras 1 e 2. A
diferença encontra-se no fato de que estas últimas são mais
presentes nas regiões Norte e Nordeste. Essa realidade
brasileira tem demandado do governo federal, desde o final
da década de 1990 e com mais evidência a partir da
retomada do crescimento econômico, em 2004, um
tratamento das diferentes desigualdades regionais por meio
de políticas públicas em múltiplas escalas (IBGE, 20075).

4Estudo intitulado Regiões de Influência das Cidades, 2007.


5 Este estudo dá continuidade ao estudo Divisão do Brasil em regiões funcionais urbanas, realizado, em 1966.
Visando atualização dos dados e comparações intertemporais, novos levantamentos foram efetuados, em 1978
e 1993. Destes, resultaram os estudos Regiões de influência das cidades.
125
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Figura 1 – Região de Influência


Fonte: NOVA REDE URBANA BRASILEIRA - IBGE 2007
<ftp://geoftp.ibge.gov.br/Regic/regic.zip>

Figura 2 – Mapa dos Centros de Gestão do Território


Fonte: NOVA REDE URBANA BRASILEIRO - IBGE 2007
<ftp://geoftp.ibge.gov.br/Regic/regic.zip>
126
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Para a CEPAL (2010) houve uma transição para as


políticas públicas associadas à dimensão espacial a partir da
segunda metade dos anos 1990. No início desta década os
planos nacionais do governo federal defendiam atividades
nas macrorregiões do país. A partir de então houve a
implantação de políticas que buscavam o desenvolvimento
local, conferindo a espacialidade nas políticas e a troca de
esforços públicos e privados.
O Plano Brasil em Ação (PPA 1996-1999) considerou a
logística de fluxo de bens e serviços, a conexão dos mercados
nacional e global, e propôs a articulação entre a iniciativa
pública e a privada a partir da concessão de infraestrutura
para um conjunto de empreendimentos distribuídos em
regiões definidas como pólos de desenvolvimento do país. No
Plano Avança Brasil (2000-2003), a ideia dos Eixos de
Integração e Desenvolvimento (Arco Norte; Madeira; Oeste;
Araguaia-Tocantins; Transnordestino; São Francisco; Rótula;
Sudoeste e Sul – vide figura 3) foi fortalecida. Para trabalhar as
desigualdades socioeconômicas nas diferentes
espacialidades o governo criou o Programa Comunidade
Solidária que visava à criação de oportunidades para
segmentos socialmente vulneráveis, conforme quadro a seguir
(CEPAL, 2010).
127
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Figura 3 - Mapa dos Eixos de Integração e Desenvolvimento


Fonte: Embrapa (2003)
<http://www.zeeppa.cnpm.embrapa.br/ppa/mapa/meixo.html>

Para o IICA (2007) o processo de espacialização das


ações públicas teve início no governo de Fernando Henrique
Cardoso (1994 a 2002). Desde então, o governo tem
considerado a importância da dimensão local e das relações
entre os atores locais, como Governos estaduais e municipais,
empresas, sindicatos, trabalhadores, associações de classe,
universidade, etc no processo produtivo.
Nesse sentido, para alguns ministérios do governo federal
(MI, MS, MDA e MDS), durante o período de 2003 a 2010, o
retorno da dimensão espacial nas políticas públicas federais
influenciou políticas de desenvolvimento de diferentes
maneiras, tais como: i) atuando como instrumento facilitador
128
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

do tratamento das desigualdades e das potencialidades


locais, incidindo na dinamização das regiões e melhor
distribuição das atividades produtivas (Ministério da
Integração Nacional - MI, 2007); ii) como meio de articulação
entre a esfera nacional, estadual e municipal por intermédio
dos Conselhos de Saúde, Conselho Nacional de Secretários de
Saúde e das Secretarias Municipais de Saúde6,
respectivamente (Ministério da Saúde - MS, 2011); iii)
acelerando processos locais e sub-regionais voltados para a
ampliação das oportunidades de geração de renda, de
forma descentralizada e sustentável (Ministério do
Desenvolvimento Agrário – MDA, 2008 e do Desenvolvimento
Social – MDS, 2010).
Assim, presume-se, que a dimensão espacial retornou ao
campo das políticas públicas porque a aderência destas às
diferentes espacialidades do país permite ao governo uma
mobilidade de ação econômica, política, social, ambiental e
cultural no atendimento de carências e/ou potencialidades
específicas de cada localidade. E com isso, as diferentes
espacialidades se traduzem em mola propulsora do
desenvolvimento.
Nesse sentido Araújo (2010) ressalta que é necessária
uma nova organização territorial do País capaz de promover o
desenvolvimento sustentável das regiões, enquanto Diniz
(2008) relata que as diversidades produtivas, sociais,
econômicas, naturais, culturais e espaciais do Brasil antes
apresentadas como desequilíbrios, disparidades e assimetrias
precisam ser vistas com potencialidades de desenvolvimento.
Buarque (1995), por sua vez, considera que para melhor

6 Ver nota sobre a publicação do Decreto Presidencial assinado em Junho/2011


(http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTI
CIA=12867).
129
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

garantir direitos e oferecer oportunidades à população o


governo federal precisa entender as dinâmicas sociais,
econômicas, culturais e ambientais das diferentes localidades
do país. Finalmente, o IPEA (2008), destaca que as políticas
sociais são eminentemente locais, e essa espacialização
garante o amplo acesso da população às transferências
constitucionais e aos benefícios governamentais.
Essa aderência das políticas públicas às diferentes
espacialidades, aparentemente, dialoga com o que Diniz e
Crocco (2007) chamam de terceira geração de políticas de
desenvolvimento. Os autores ressaltam que há uma divisão
temporal no que diz respeito à estrutura das políticas de
desenvolvimento no País. Até meados da década de 1970
elas eram top-down, caracterizadas como políticas
keynesianas, ou seja, o Estado intervinha sobre a dinâmica
econômica. Desde aquela época até final da década de
1990, o desenho das políticas de desenvolvimento centrou-se
na estrutura botton-up sem a intervenção do Estado na
economia, ou seja, de caráter descentralizado, e focado na
produtividade endógena das economias locais e regionais.
No final da década de 1990 iniciou-se uma terceira geração
de políticas de desenvolvimento, marcada pelo aspecto
exógeno e endógeno, concomitante, de cada política (DINIZ
& CROCCO, 2007a).
Assim, essa terceira geração leva em consideração
características de políticas exógenas e endógenas. As
características exógenas permitem maior autonomia do
mercado e se traduziriam em ações governamentais, tais
como: estimular a oferta; reduzir encargos para empresas;
flexibilizar o mercado de trabalho; induzir o desenvolvimento
de um campo econômico específico para atender ao
130
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

mercado. As características endógenas permitem maior


comando do Estado e se traduzem em ações
governamentais, tais como: focar a localização espacial dos
sistemas regionais de produção; valorizar a capacidade local
e os aspectos institucionais como cultura, o conhecimento, as
vantagens competitivas; valorizar os mecanismos facilitadores
para o combate à desigualdade, como a formação de rede;
fomentar a interação entre os diferentes atores sociais e a
capacitação de pessoas; criar meios favoráveis à produção
de inovações e fortalecer a demanda (DINIZ & CROCCO,
2007a).

Seguindo esse fio lógico, pressupõe-se que os espaços


geográficos são passíveis de políticas locais e/ou setoriais e/ou
nacionais, podendo aproveitar tanto dos recursos endógenos
quanto dos exógenos. Esta nova sistemática de políticas pode
ser observada, de forma mais nítida, a partir de 2004 mediante
o progressivo envolvimento do governo com o
desenvolvimento regional e local, considerando a abordagem
espacial. A intervenção do governo federal sobre espaços
sub-regionais passou a ser um dos instrumentos de ação do
governo federal para interiorizar o processo de crescimento
da economia (IPEA, 2010). Para tanto, foram utilizadas
diferentes espacialidades, tais como as meso e microrregiões
do Ministério da Integração Nacional (Política Nacional de
Desenvolvimento Regional – MI e - PPA 2004-2007); os territórios
rurais sustentáveis e os da cidadania do Ministério do
Desenvolvimento Agrário - Programa de Desenvolvimento
Sustentável dos Territórios Rurais (PPA-2004-2007) e Política dos
Territórios da Cidadania (2008); os territórios de segurança
alimentar – Consórcios de segurança alimentar e
131
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvimento local - Consads7 do Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate a Fome (PPA-2004-2007);
os comitês de gestão das bacias hidrográficas do Ministério do
Meio Ambiente - Programa Integração de Bacias
Hidrográficas - PPA 2004-20078.
Trata-se de espacialidades privilegiadas de integração
de atores locais, de articulação de políticas públicas federais
e do estímulo do potencial endógeno e das especificidades
sociais, econômicas, culturais e ambientais (IICA, 2007; CEPAL,
2010). Sob essa dinâmica de novas espacialidades para as
políticas públicas, emergem como forma de organização
espacial local os Arranjos Produtivos Locais (APLs).
Os APLs se traduzem em uma forma de aglomeração
industrial territorial capaz de produzir vantagens competitivas
duradouras para as firmas nela localizada, quando
comparadas às empresas dispersas no território (CASSIOLATO
& LASTRES, 2003); como um espaço social, econômico e
historicamente construído a partir de uma aglomeração de
empresas (similares ou inter-relacionadas ou
interdependentes) que interagem numa escala espacial local
definida (COSTA, 2010), ou como mecanismo de impulsão do
desenvolvimento socioeconômico de um determinado local
(BUARQUE, 1995). Enfim, como forma de organização da
produção no espaço, auxiliando empresas a superarem
barreiras ao seu crescimento (DINIZ & SANTOS & CROCCO,
2004).

7 CONSAD - arranjo territorial institucionalmente formalizado envolvendo um número definido de Municípios que
se agrupam para desenvolver ações, diagnósticos e projetos de segurança alimentar e nutricional e
desenvolvimento local, gerando trabalho e renda. Também chamado de territórios de segurança alimentar. Ver
http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/desenvolvimentoterritorial/consad. Acesso em dezembro/2011.
8 O espaço nacional foi dividido num primeiro nível de macrodivisão hidrográfica, nas chamadas Regiões

Hidrográficas Brasileiras (2003). Essas regiões têm sua divisão justificada pelas diferenças existentes no país,
tanto no que se refere aos ecossistemas como também diferenças de caráter econômico, social e cultural. Ver:
CNRH-MMA, resolução n. 32, de 15 de outubro de 2003.
132
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Para os últimos autores o desenvolvimento de políticas de


apoio aos arranjos produtivos locais atua, diretamente, sobre
duas vertentes: a revalorização do local frente ao processo
competitivo contemporâneo e a descentralização da
responsabilidade do Estado com o desenvolvimento regional,
gerando uma nova articulação entre o Estado e os entes
federados (DINIZ & SANTOS & CROCCO, 2004).

Diante do exposto o presente artigo se propõe a


examinar a pressuposição de que os arranjos produtivos locais
podem ser apresentados como uma nova espacialidade nas
políticas públicas.
Além dessa introdução e da conclusão este artigo está
estruturado em quatro partes que abordam os seguintes
tópicos: a primeira abordará, de forma sucinta, o panorama
teórico-acadêmico que sustenta os Arranjos Produtivos Locais;
na segunda parte, será contemplada a geografia dos APLs;
na seguinte será abordada a terceira geração de políticas
que permite às políticas de desenvolvimento uma atuação
em diferentes espaços produtivos; e, na quarta parte, será
contemplado o novo alinhamento entre o federal e os entes
federativos, pois a cooperação entre os entes federados é de
grande importância para a efetividade das políticas públicas
com o foco no espacial.
Espera-se com o desenvolvimento deste estudo poder
contribuir para responder à questão: Os arranjos produtivos
locais podem ser considerados uma forma de espacialidade
nas políticas públicas?
133
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

PANORAMA TEÓRICO-ACADÊMICO

O termo Arranjo Produtivo Local (APL) apresenta muitas


denominações e ênfases diferentes, como fenômeno de
empreendimentos de uma determinada região; como sistema
produtivo local ou como cluster. De qualquer forma, pode ser
considerado um tipo de organização regional/industrial
(Lastres, Cassiolato, Lemos, Maldonado, Vargas 1998) ou, um
mecanismo fundamental para o desenvolvimento regional
(Diniz, 2007b). Definidos como aglomerações de empresas de
um setor em um mesmo território, apresentam vínculos de
articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si
e com outros agentes locais, tais como governo, entidades de
classe, instituições de crédito, de ensino e pesquisa
(CASSIOLATO, 1999).
Os APLs foram considerados como prioridade do governo
federal, nos Planos Plurianuais 2000-20039 e 2004-200710; no
Plano Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação 2007-201011
- do MCTI e na Política de Desenvolvimento Produtivo 2008-
2013 do MDIC, entre outros. Em 2003 com a definição da
Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior - PITCE,
no âmbito do MIDC o governo federal fortaleceu as ações de
apoio ao setor produtivo. Em 2004 os APLs foram

9 Ver as diretrizes para a elaboração da lei orçamentária de 2000


(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9811.htm), acessado em dezembro/2011.
10 Ver o relatório de avaliação do Plano Plurianual 2004-2007

http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/plano_plurianual/avaliacao_PPA/relatorio_2008/
08_PPA_Aval_cad01.pdf, acessado em dezembro/2011.
11 Ver a versão completa do plano no endereço: http://www.mct.gov.br/upd_blob/0021/21439.pdf acessado em

dezembro/2011.
134
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

institucionalizados, por meio de Portaria Interministerial12


(MDIC&MCTI, 2004; COSTA, 2010).
Concomitante à difusão da abordagem dos APLs no
âmbito do governo federal houve na academia vários estudos
realizados considerando os sistemas locais de produção,
também chamados de “clusters” de aglomerações produtivas
e suas relações com o desenvolvimento do país (CASSIOLATO
& LASTRES, 2003; COSTA, 2010; DINIZ & CROCCO, 2006; GOÉS &
GUERRA, 2007; SUZIGAN, 2006). Estes estudos ressaltam a
relação entre as aglomerações produtivas, a dimensão
espacial e a geração de vantagens competitivas para as
empresas inseridas neste arranjo. Além disso, há uma
concordância entre os autores acima citados, que essa forma
de organização industrial ganhou visibilidade a partir do êxito
alcançado com os distritos industriais italianos (início dos anos
1970) e com o Vale do Silício, no início da microinformática
(segunda metade da década de 1970), nos Estados Unidos, os
quais foram capazes de prover aos produtores vantagens
competitivas, que não estariam disponíveis se eles estivessem
atuando isoladamente.
Para se entender o porquê de se trazer o tema arranjo
produtivo local para o contexto que envolve atividades
produtivas, dimensão espacial e desenvolvimento é
necessário conhecer, mesmo que de forma sucinta, o
panorama teórico que encorpa o referido tema. Com isso,
presume-se facilitar a compreensão dos elementos analíticos
relevantes para o uso do APL na formulação de políticas de
desenvolvimento.

12 Ver Termo de Referência para Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais
(MDIC/MCTI (histórico), 2004, e Relatório Final sobre o mapeamento e políticas de APLs – BNDES (2008)
http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivos/dwnl_1292257884.pdf, acessado em novembro/2011.
135
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Primeiramente, há consenso entre os autores


(CASSIOLATO & LASTRES, 2003; COSTA, 2010; DINIZ & CROCCO,
2006; GOÉS & GUERRA, 2007; SUZIGAN, 2006) que o tema APL
está inserido no referencial evolucionista, cuja abordagem
está pautada no enfoque neo-schumpeteriano, e que o
vínculo das atividades produtivas e o espaço geográfico
pode se apresentar como potencial de desenvolvimento
local. No enforque neo-schumpeteriano ou teoria
evolucionista13, pode-se dizer que o caráter local da inovação
e a interação e cooperação entre os atores sociais
intensificam o processo de geração e de disseminação de
inovações (SCHUMPETER, 1984) e a inovação tecnológica é
tratada como mola central para o desenvolvimento
(CASSIOLATO & LASTRES, 2003; COSTA, 2010).
Para Schumpeter (1989) a inovação é um processo
criativo e adaptativo ao mesmo tempo em que destrutivo,
pois a imbricação entre o desenvolvimento econômico e a
inovação abre passagem para um novo ciclo e promove,
assim, o processo de destruição-criadora14. Assim, a inovação
é considerada o cerne do processo de desenvolvimento
econômico, pois produz ganhos derivados de maior
produtividade.
Um novo processo de inovação gera um novo processo
de investimento com novas demandas para outros setores,
aumenta o volume de emprego, a massa de salários, a
demanda de bens de consumo, a demanda por crédito e o
nível de renda da economia, ocasionando uma espiral do

13 Essa teoria endogeniza o processo de inovação. A dinâmica econômica é baseada na inovação de produtos,
processos e nas formas de organização da produção. As firmas assumem centralidade no mercado competitivo
e suas ações inovativas ganham destaque.
14 Processo de mutação industrial que revoluciona incessantemente a estrutura econômica a partir de si

mesma, destruindo ininterruptamente o antigo e criando elementos novos (SCHUMPETER, 1952:65).


136
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvimento econômico15. E esse desenvolvimento passa


a ser alcançado mediante o lançamento constante de
inovações no mercado em função da capacitação
tecnológica e de investimento em pesquisa e
desenvolvimento gerando maior vantagem competitiva, e,
ainda, maior força de mercado e estrutura financeira das
empresas e organizações (SCHUMPETER, 1982).
Sob o fundamento neo-schumpeteriano, verifica-se que
as estratégias corporativas, as políticas públicas, o ambiente
em que a aglomeração de firmas está inserida, a
institucionalidade local e a dinâmica econômica
desempenham papel importante no processo de inovação,
principalmente, na formação da rede de relacionamentos
como fonte de geração e disseminação do conhecimento
(COSTA, 2010). O APL dá destaque às estruturas institucionais,
políticas, culturais e econômicas, e busca associar o
desenvolvimento de inovações às redes formadas pelos
diferentes atores envolvidos no processo para a geração da
inovação (CASSIOLATO & LASTRES, 2003).
Quanto ao vínculo das atividades produtivas com o
espacial, recorre-se a outro referencial teórico que auxilia a
sua compreensão de temas como a relação entre a
dimensão espacial e a indústria cujas fontes seriam Marshall16
(1996), Krugman (1995) e Porter (1998), entre outros. Estes
autores ressaltam a importância das economias externas
criadas pela aglomeração de produtores, como fontes
geradoras de vantagem competitiva e, consequentemente,
de desenvolvimento local. Entretanto, autores como
15A idéia da espiral traduz um fluxo cíclico e evolutivo de atividades.
16 Alfred Marshall (1890) destacou as externalidades positivas geradas pelas aglomerações de empresas, a
partir de estudos sobre a organização industrial envolvendo os distritos industriais da Inglaterra, no século XIX.
Ver capítulo “The Concentration of Specialized Industries in Particular Localities” em ”Principles of Economics”
(1890).
137
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Cassiolato & Lastres (2003) e Diniz & Crocco (2004)


reconhecem que as economias externas não são a única
forma de geração de vantagens competitivas nas
aglomerações de firmas.
Marshall (1996) ao estudar os distritos industriais da
Inglaterra, no século XIX, os quais se traduzem em um sistema
sócio-territorial onde interagem determinantes
socioeconômicos que influenciam o desenvolvimento de uma
comunidade, chamou a atenção para o retorno crescente de
escala. Segundo o autor, as firmas aglomeradas são capazes
de se apropriar de economias externas geradas pela sua
concentração, incrementando a capacidade competitiva
local. As economias externas são derivadas do
transbordamento (spill-overs) de tecnologias e conhecimento,
da força de trabalho qualificada e da formação de redes nos
mercados locais (MARSHALL, 1996).
Para explicar como as firmas se apropriam de ganhos
decorrentes da aglomeração de produtores, Krugman (1995)
mudou o foco de análise das variáveis que condicionam o
mercado internacional do país para as regiões. Segundo o
autor, a concentração geográfica de atividades produtivas é
capaz de proporcionar às firmas, retornos crescentes de
escala. Com isso, a apropriação das externalidades se dá nos
níveis regional e local, e não no nacional, daí a importância
da dimensão espacial (KRUGMAN, 1995).
Krugman propôs um novo modelo de concentração
geográfica baseado nas três fontes de economias externas
Marshallianas. O modelo proposto está baseado em forças
centrípetas que favorecem concentração geográfica das
firmas como fatores imóveis, aluguel de terras e
congestionamento, e em forças centrífugas, responsáveis
138
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pelos desestímulos à concentração de firmas, como custo de


transporte e os retornos crescentes (KRUGMAN, 1995).
Como contribuição à análise das aglomerações Porter
(1998) apresentou a vantagem competitiva das nações e
chamou a atenção para a competitividade das
aglomerações de pequenas firmas reunidas geograficamente
ou dos clusters. Porter (1998), a partir do seu esquema analítico
“diamante competitivo” deslocou as investigações das
vantagens competitivas das nações para as vantagens
competitivas das aglomerações produtivas locais. O autor
enfatizou a importância dos vínculos e fluxos de
conhecimentos gerados nas relações entre os atores locais
(PORTER, 1998).
A competitividade das firmas nos clusters está associada
à sua vantagem competitiva, que numa economia
globalizada tem como base os fatores de produção, entre
eles o conhecimento, a demanda por bens e serviços, a
presença de fornecedores e de indústrias e serviços correlatos
ao produto principal e a motivação pela competitividade
entre as firmas aglomeradas. Daí o autor evidencia a
competição e a cooperação entre as firmas, sinaliza a
importância dos processos de aprendizado, capacitação e
qualificação de pessoas, assim como, da inovação e da
interação entre os diferentes atores sociais locais. Os diferentes
atores locais estabelecem uma rede de relações envolvendo
clientes, produtores, firmas, instituições públicas, de ensino, de
pesquisa e governo local, regional e federal (PORTER, 1994).
Essas três abordagens fornecem elementos que
enfatizam a importância das economias externas criadas pela
aglomeração de atividades produtivas, como fontes
geradoras de vantagem competitiva e, consequentemente,
139
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de desenvolvimento local. Nos estudos acadêmicos (COSTA,


2010; CASSIOLATO & LASTRES, 2003; LASTRES & ARROIO &
LEMOS, 2003; DINIZ, 2004; GOÉS & GUERRA, 2007), também é
possível verificar que o fenômeno da aglomeração produtiva,
ou seja, dos arranjos produtivos locais se apresenta como
mecanismo para impulsionar o desenvolvimento
socioeconômico.
O termo Arranjo Produtivo Local surgiu no final da
década de 1990 como um elemento de coesão e com o
intuito de se constituir como importante instrumento
estratégico de desenvolvimento regional. Este termo se
apresenta como resultado da conformação sócio-econômica
e geográfica voltada para o aumento da capacidade
competitiva das empresas por meio da “eficiência coletiva” e,
consequentemente, do setor, da cadeia produtiva e da
região (COSTA, 2010).
Nas pesquisas de Cassiolato & Lastres (2003) há o
reconhecimento de que a sinergia e a aprendizagem
coletiva; a cooperação e a dinâmica inovativa, geradas pela
participação em arranjos produtivos locais, constituem-se em
importante fonte de vantagens competitivas e assumem
importância fundamental para o enfrentamento dos desafios
do desenvolvimento na era da informação
(CASSIOLATO&LASTRES, 2003).
Seguindo esse entendimento, Lastres & Arroio & Lemos
(2003) asseguram que devido às transformações políticas e
econômicas que o mundo passou nas últimas décadas do
século XX, novas oportunidades e desafios surgiram para a
busca do desenvolvimento. Nesse sentido destaca-se a
difusão de um novo padrão de acumulação e reestruturação
produtiva, o que possivelmente se alcança com o apoio e
140
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

incentivo à formação e fortalecimento dos arranjos produtivos


locais.
Dentro do arranjo produtivo, a divisão do trabalho entre
as empresas permite que o processo produtivo ganhe
flexibilidade e eficiência. A concentração de produtores
especializados estimula o desdobramento da cadeia
produtiva devido ao surgimento de fornecedores de matérias-
primas, máquinas e equipamentos, peças de reposição e
assistência técnica, e ainda, devido ao surgimento de agentes
comerciais que levam os produtos para mercados distantes
(LASTRES & ARROIO & LEMOS, 2003).
A economia contemporânea é globalizada na
produção, nas finanças e no comércio tendo como
característica uma competitividade intensiva em
conhecimento. O que sinaliza a necessidade de criação de
um ambiente local que atue como facilitador e estimulador
de interdependências, e como ligação entre um sistema de
produção e uma cultura tecnológica particular, para que o
conhecimento que circula nessa economia se difunda e se
codifique entre as empresas. Dessa forma, os arranjos
produtivos locais têm auxiliado, particularmente, as pequenas
e médias empresas a superarem barreiras ao seu crescimento.
Isto se daria pela articulação entre economias externas,
resultado imediato da aglomeração espacial, e pela ação
conjunta dentro dos arranjos produtivos, resultado do
desenvolvimento de redes de cooperação, levando a ganhos
de eficiência coletiva (DINIZ, 2001).
Diante do exposto, verifica-se que o panorama teórico-
acadêmico ora apresentado converge no seguinte
entendimento: os APLs geram externalidades positivas; os
processos de cooperação e de competição são relevantes
141
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

para o desenvolvimento; as características locais são fatores


que contribuem na competitividade das empresas; a rede de
relacionamentos é um fator que soma na competitividade das
empresas, assim como, os investimentos externos.
Por último, entende-se, também, que os APLs são
catalisadores de políticas em um espaço geográfico. As
concepções sobre estes arranjos destacam a dimensão local
e as políticas públicas de apoio que perpassam a dimensão
nacional e a local. As políticas públicas mapeiam no espaço
geográfico a existência de concentrações especializadas
com potencial produtivo para estimular a produção e com
isso buscar o desenvolvimento (ARAÚJO, 2010)17. Daí o porquê
de os APLs incorporarem, simultaneamente, as questões
relativas às atividades produtivas, à dimensão espacial e ao
desenvolvimento.

A GEOGRAFIA DOS APLS E UMA VISÃO PRÁTICA

Para conhecer a geografia dos APLs no Brasil, foi


realizado em 200518, no âmbito do Ministério do
Desenvolvimento Indústria e Comércio – MDIC, levantamento
para identifica-los no País, contemplando os setores primário,
secundário e terciário da economia. Esse levantamento tratou
de informações obtidas junto a diversas instituições, tais como:
Banco do Brasil, BNDES, Banco da Amazônia, MCT, Caixa
Econômica Federal, Finep, IPEA, SEBRAE e MDIC. Em 2006, o
IPEA realizou novo levantamento contemplando os arranjos

17 Participação da professora Tânia Bacelar Araújo na banca de qualificação do doutorado em Outubro/2010.


18 Conforme dados do site do MDIC e BNDES, trata-se do último levantamento feito sobre a geografia dos APLs
no Brasil. Esse levantamento foi financiado pelo BNDES, realizado pela REDESIST e alimenta o Sistema de
Informações de APLs do Ministério.
http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3101#SISAPL e
http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/pesquisa/Consoli
dacao_APLs.pdf.
142
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

produtivos locais industriais,19 utilizando dados da Relação


Anual de Informações Sociais (Rais) e da Classificação
Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Esses dois
levantamentos constituem a base da geografia dos arranjos
produtivos no País.
Com base no levantamento realizado pelo MDIC foi
possível apresentar o número de APLs por macrorregião,
segundo os setores produtivos primário, secundário e terciário.
Assim, foram identificados 958 arranjos no Brasil, sendo 567
(59%) do setor primário, 47 arranjos (5%) no setor terciário e,
344 APL (36%) no setor secundário. Dos 344 arranjos do setor
secundário, 178 (19%) se enquadram como arranjos de baixo
conteúdo tecnológico, 109 (11%) como médio/baixo e 57 (6%)
de médio/alto e alta intensidade tecnológica. Esses resultados
mostram sua concentração no setor primário e de baixo
conteúdo tecnológico.
Conforme as tabelas 1 e 2 verifica-se que as regiões Sul e
Sudeste possuem 83 e 200 APLs, respectivamente, sendo que
55 (66%) e 127 (64%) são do setor secundário. A região Centro-
Oeste é a que possui o menor número, 52, o que equivale a
5% do total nacional, e a maioria desses APLs, num total de 27
(52%), encontra-se no setor secundário. A região Nordeste é a
que apresenta o maior número de APLs, 428, o que equivale a
45% do total nacional, sendo que 310 (72%) estão no setor
primário. A região Norte possui 196 arranjos produtivos e
responde por 20% do total nacional, e desses 161 (82%) são do
setor primário.

19Relatório intitulado Identificação, Mapeamento e Caracterização Estrutural de Arranjos Produtivos Locais no


Brasil.
143
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Tabela 1 - Quantidade de APL por Macrorregião


Macrorregiões APLs
Região Centro-Oeste 51
Região Nordeste 428
Região Norte 196
Região Sudeste 200
Região Sul 83
Total Brasil 958

Fonte: MDIC apud IICA, 2009

Tabela 2 - Distribuição de APL por Macrorregião e Setor Produtivo


Macrorregiões/
Centro-
Setores Produtivos - Nordeste Norte Sudeste Sul
Oeste
APLs
Primário 14 310 161 63 19
Secundário 27 102 33 127 55
Baixa tecnologia 14 56 20 59 29
Média-Baixa
10 35 09 42 13
tecnologia
Média-Alta
-- 06 01 12 10
tecnologia
Alta tecnologia 03 05 03 14 03
Terciário 10 16 02 10 09
Total 51 428 196 200 83

Fonte: MDIC apud IICA, 2009

As regiões Norte e Nordeste possuem juntas 470 APLs dos


567 arranjos do setor primário do País, o que representa 72%. O
que ratifica a dinâmica econômica ali prevalecente, com
baixa industrialização e dependência do setor primário.
Diante desses levantamentos e com o objetivo de
consolidar o conhecimento a respeito da estruturação, da
dinâmica e das iniciativas de apoio e fomento existentes aos
144
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

APLs, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e


Social - BNDES encomendou o estudo “Mapeamento e análise
das políticas para arranjos produtivos locais no Brasil. Em 2010,
após conclusão da pesquisa, Helena M. M. Lastres, Cristiane
Garcez, Eduardo Kaplan, Walsey Magalhães e Cristina Lemos
analisaram e divulgaram um balanço dos resultados20.
Segundo esses autores, a pesquisa permitiu refletir sobre
as vantagens e os desafios do uso da abordagem de arranjos
produtivos locais na promoção do desenvolvimento produtivo,
regional e territorial. Foram avaliadas as diferentes formas
como o conceito de APLs tem sido entendido e utilizado pelas
diferentes agências de promoção do desenvolvimento.
Foram, igualmente, elaboradas e analisadas as balanças
comerciais dos estados brasileiros, fornecendo os fluxos
comerciais locais, nacionais e com o exterior, relacionando
estes fluxos com os APLs identificados. Como conclusão, a
pesquisa identificou nos APLs a função de instrumento para
orientação de políticas capazes de mobilizar o
desenvolvimento produtivo, inovativo e territorial, e de
contribuir para mitigar desequilíbrios (LATRES, GARCEZ,
KAPLAN, MAGALHÃES, LEMOS, 2010). Os arranjos quando
localizados em pequenas e médias cidades se consolidam
como mecanismo de desenvolvimento local e, muitas vezes,
potencializam o desenvolvimento regional (COSTA, 2010).
Segundo Costa (2010 os APLS podem interferir na
dinâmica econômica e social local e regional, contribuindo
para o desenvolvimento nacional. Quando um APL é a base
de uma economia local essa economia é capaz de mudar a
dinâmica econômica e social municipal e impactar a

20 Ver
http://www.foromundialadel.org/experiencias/doc/Lastres%20politicas%20para%20APLs%20no%20Br.pdf
145
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

dinâmica econômica regional e até a nacional. O autor cita


como exemplo dois APLs da indústria moveleira, o APL
Moveleiro de São Bento do Sul, no estado de Santa Catarina e
o APL Moveleiro de Ubá, no estado de Minas Gerais.
O aglomerado moveleiro de São Bento... estima-se
que existam no aglomerado em torno de 355
empresas sendo que destas 199 estão em São
Bento do Sul, 118 em rio Negrinho e 18 em Campo
Alegre. Estas empresas geram aproximadamente
12.000 empregos diretos, sendo mais de 8.000 em
são Bento do Sul, e são responsáveis por 37% das
exportações brasileiras de móveis, o que faz do
aglomerado o maior exportador neste segmento...
O aglomerado Moveleiro de Ubá... a economia do
município cresceu graças à indústria moveleira, que
é um setor intensivo em mão-de-obra... Atualmente
o aglomerado possui mais de 400 empresas
localizadas na microrregião, o que corresponde a
mais de 50% dos estabelecimentos industriais locais,
respondendo por cerca de 70% da arrecadação
tributária local. Além disso, o setor é responsável por
73,4% dos empregos industriais e 37% do total de
empregos no município de Ubá. Apesar do alto
grau de informalidade do setor, ele é responsável
por quase 70% da arrecadação municipal e por
aproximadamente 45% da arrecadação de ICMS
do município. O pólo moveleiro de Ubá é o sétimo
em importância nacional, e o mais importante do
estado de Minas Gerais. (COSTA, 2010, p. 208,209).

Diante do exposto, verifica-se que os APLs geram


externalidades positivas, tais como: aumento da
produtividade e da renda da população, interiorização do
desenvolvimento e crescimento das exportações. Isso que
corrobora o entendimento de SUZIGAN (2006) quando ressalta
que os APLs potencializam o desenvolvimento local, pois
impactam diretamente a geração de empregos, o
crescimento econômico, o bem-estar social e as exportações.

A TERCEIRA GERAÇÃO DE POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO

Em 2004, a perspectiva de crescimento econômico do


Brasil foi retomada. O produto interno bruto (PIB) real entre
146
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

2003 e 2007 cresceu à taxa média de 4,6% ao ano e alcançou


em 2008, 5,2% e em 2010, 7,5% ao ano21. A taxa de inflação
referente ao ano 2003 diminuiu de 14,30% para 3% em 2007 e
chegou a 4,9% em 2010. Segundo pesquisas do IPEA (2010),
em 2003 havia 50 milhões de miseráveis no Brasil, e em 2010
houve uma redução de 40% desse quantitativo, ou seja, cerca
de 20 milhões de cidadãos brasileiros saíram da miséria (IBGE,
201022; IPEA, 2010).
A nova dinâmica da economia permitiu ao governo a
condução de novas políticas públicas. A busca do
desenvolvimento migrou do foco em espaços geográficos
específicos, como ocorreu nos PPAs 1996-1999 e 2000-2003,
para um novo olhar sobre a multiespacialidade do território
nacional (IPEA, 2010).
em um cenário mundial no qual a formação de
blocos de poder, sobretudo econômicos, tem se
intensificado, a redefinição do papel das políticas
de desenvolvimento regional, passa a constituir um
desafio... em um mundo globalizado, que integra
países e elege territórios mais competitivos,
reproduz-se um padrão de desenvolvimento que
tende a intensificar a seletividade espacial. (DINIZ,
2007b:5).

A partir de 2006, segundo alguns economistas como


Bresser Pereira (2010) e Malan (2011)23, o governo Lula
começou a mudar a estratégia de desenvolvimento em
direção ao novo desenvolvimentismo. Este tem como base o
papel estratégico do Estado, ancorado em uma
macroeconomia estruturalista do desenvolvimento e tendo
como critério o interesse nacional e a implantação de
políticas públicas locais (BRESSER PEREIRA, 2011; MALAN,

21 Ver http://www.bcb.gov.br/?INDECO. Acesso em 01/08/2011.


22 Ver no IBGE http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/contasnacionais/2007/defaulttab.shtm
23 Ver entrevista com o economista Bresser Pereira no jornal Folha de São Paulo, em 26/09/2011 e de Pedro S.

Malan no jornal Estado de São Paulo, em 14/08/2011, no Espaço Aberto.


147
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

2011)24. Essas políticas não dependem unicamente das


políticas monetária e fiscal do governo, mas de fatores como
infraestrutura física, humana e institucional, assim como,
inovação e produtividade (MALAN, 201125).
Na macroeconomia estruturalista o desenvolvimento
econômico é um processo de mudança estrutural, ou seja, de
inovação nos setores já explorados e de transferência de mão
de obra para setores com salários médios mais elevados. Seus
principais obstáculos ao crescimento e ao pleno emprego
estão do lado da demanda. No novo desenvolvimentismo o
modelo de substituição de importações é superado pelo
modelo exportador, no qual a Nação é o principal
responsável pela definição de uma estratégia nacional. As
reformas devem fortalecer o Estado e os mercados, e estes
devem ser bem regulados. A distribuição de renda assume
papel de relevância, a política industrial deve ser limitada e
estratégica, e o crescimento deve ter como base a poupança
interna (BESSER PEREIRA & GALA, 2010).
Nessa nova dinâmica econômica, cabe ao Estado como
indutor do desenvolvimento regional e social e condutor do
crescimento econômico, formular políticas focando a
dimensão espacial para poder atuar em novos espaços
produtivos. O novo desenvolvimento é concebido não só a
partir das macro-escalas geográficas, mas a partir das micro-
escalas, migrando-se de uma visão de desenvolvimento
focada nas macrorregiões do País para um olhar sobre a
esfera local (ARAÚJO, 2009).

24 Ver entrevista com o economista Bresser Pereira no jornal Folha de São Paulo, em 26/09/2011 e de Pedro S.
Malan no jornal Estado de São Paulo, em 14/08/2011, no Espaço Aberto.
25 Ver entrevista com o economista Pedro S. Malan no jornal Estado de São Paulo, em 14/08/2011, no Espaço

Aberto.
148
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Em relação às políticas de desenvolvimento, há


atualmente uma transição no que diz respeito à estrutura
dessas políticas no País. Até meados dos anos 1970 as políticas
apresentavam uma estrutura top-down, caracterizadas como
políticas keynesianas, pois o foco estava na
demanda/consumo e na correção das disparidades inter-
regionais, sendo essas regiões tratadas como um grande
bloco homogêneo. Após esse período, e até o final da
década de 1990, as políticas passaram a ter uma estrutura
botton-up, de caráter descentralizado e focado na
produtividade endógena das economias regionais e locais.
Atualmente, as políticas de desenvolvimento absorveram as
duas estruturas top-down e botton-up (DINIZ & CROCCO,
2006). Segundo estes autores, no início da década de 1950,
logo após a Segunda Guerra Mundial, a macroeconomia era
influenciada pelas ideias de Keynes que defendia a
necessidade de intervenção do Estado na economia
considerando que, para obtenção do pleno emprego era
necessário uma intervenção externa. Prevaleceu, assim, a
teoria do desenvolvimento econômico que defendia o
Produto Interno Bruto - PIB como determinante do crescimento
econômico de um país, o que reforçou a sinonímia, ou seja, o
mesmo sentido de significado entre desenvolvimento,
desenvolvimento econômico e crescimento econômico
(FURTADO, 1983; BRESSER PEREIRA, 2003).
Essa concepção macroeconômica presente na
abordagem keynesiana influenciou várias interpretações da
teoria do desenvolvimento econômico e das políticas de
desenvolvimento, o que propiciou o surgimento de outras
teorias de desenvolvimento, citadas a seguir, sendo que estas
novas teorias defenderam mecanismos que determinavam a
149
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

concentração de investimentos em determinadas regiões, em


detrimento a outras. As políticas originárias destas teorias
foram chamadas de primeira geração de políticas de
desenvolvimento e centravam-se na redistribuição do
crescimento e na importância de fatores exógenos
(HELMSING, 1999). A Teoria de Decolagem de Walt W. Rostow
(1959) defendia que o desenvolvimento ocorria mediante a
superação de uma série de fases na economia, sendo que o
incremento na indústria e consequente impulsão no comércio
internacional de produtos primários eram a base do
desenvolvimento (ROSTOW, 1974). A Teoria Centro-Periferia e o
Estruturalismo da CEPAL (PREBISCH, 1957) negou o pressuposto
do livre comércio e entendeu o desenvolvimento como um
sistema com posições definidas: dominantes e dominados
(FURTADO, 1983). A Teoria de Dependência de Gunnar Myrdal
(1960) girava em torno da participação do capital estrangeiro
nas economias periféricas, caso houvesse entrada de capital
a economia dinamizaria, e isso causava um obstáculo ao
capitalismo local. Uma vez dinamizada, as atividades
produtivas tenderiam a se reforçar circularmente por meio de
economias de escala e das externalidades (tratava-se da
causação cumulativa) (MACHADO, 1999). A Teoria dos Polos
de Crescimento de Perroux (1967) e Boudeville (1968) consistia
na ideia de instalar em região atrasada uma indústria matriz
cujos efeitos a “montante e a jusante” permitem uma
ampliação da cadeia produtiva (PERROUX, 1967).
Essas teorias, que brotaram ao longo das décadas de
1950 e 1960, partilhavam o entendimento de que para o
alcance do desenvolvimento era necessária a intervenção do
Estado, e influenciaram as políticas econômicas de
desenvolvimento da época, apresentando os seguintes
150
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

instrumentos de políticas: pólos de crescimento, priorização do


setor industrial, mecanismos de compensação para as regiões
atrasadas, investimento no setor público, seleção das
atividades produtivas em determinadas regiões, e
mecanismos regulatórios para restringir a concentração de
atividades produtivas em uma única região (DINIZ & CROCCO,
2006).
Durante a década de 1970, com a economia mundial
sofrendo a crise do petróleo aliada às pressões inflacionárias e
desemprego, houve uma inquietude geral e emergiram
questionamentos acerca da eficácia das teorias econômicas
e dos instrumentos de políticas keynesianos. Nesse contexto,
houve uma inflexão teórica e surgiu como política econômica
um conjunto de medidas da escola conhecida como Supply-
Side Economics, cujos defensores eram os economistas
conservadores Arthur Laffer, Robert Mundell e Norman Ture.
Essas políticas visavam à redução do papel do Estado na
economia, deixando-o apenas cumprindo funções básicas
determinadas pelo Estado Mínimo, ou seja, melhoria das
condições da oferta e não mais da demanda, corte de
programas governamentais, privatizações, redução do déficit
fiscal (PRESSER, 1981).
os primeiros indícios de que a economia mundial
estava passando por uma inflexão cíclica
ocorreram ainda no final da década de 1960,
quando a produtividade da indústria já não crescia
mais nos mesmos níveis, sendo observado ao
mesmo tempo uma saturação dos mercados
consumidores seguida de uma queda dos
investimentos produtivos ao lado do mal-estar
social. (COSTA, 2010:54)

Houve com isso, o ressurgimento de concepções que


entendiam que os mecanismos de mercado eram capazes de
garantir o crescimento em longo prazo e de forma sustentada,
como sustenta a Escola Neoclássica (DINIZ, 2006).
151
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

a difusão do ideário neoliberal foi aos poucos


colocando para fora da arena as políticas
estruturantes pensadas em macro-escalas. A partir
deste período a localização produtiva passou a ser
cada vez mais ditada pela ótica da acumulação
privada [...] o motor de crescimento deixa de ser a
integração ao sistema econômico nacional e passa
a ser a integração direta, sem mediação ao fluxo
internacional de acumulação do capital, o que
contribuiu para a ampliação da heterogeneidade
estrutural intersetorial, intrassetorial (entre empresas
exportadoras) e intrafirma (entre produtos de linha
de produção atualizados e tradicionais). (COSTA,
2010:161).

Esse contexto foi incrementado, no decorrer da década


de 1980 e início da década de 1990, pelo movimento de
abertura comercial e financeira, a reestruturação da
economia e da sociedade, a revolução tecnológica e a
internacionalização da produção (CHESNAY, 1996). Estas
mudanças tiveram repercussão na dimensão espacial
determinando a perda de dinamismo de regiões afetadas
pela desindustrialização, pela falta de reestruturação
produtiva, e o surgimento de novas regiões de crescimento
acelerado como os distritos industriais da Itália, o Vale do
Silício e a Rodovia 128, importantes aglomerações de
empresas localizadas nos EUA. Trata-se de um novo
paradigma produtivo surgindo no bojo de uma nova onda de
crescimento, com o poder de competitividade derivando do
domínio de tecnologias emergentes (COSTA, 2010).
Esses acontecimentos influenciam a teoria e as políticas
de desenvolvimento, demandando a incorporação de
aspectos institucionais como conhecimento, cultura, capital
social e outros para o entendimento da dinâmica geográfica
e valorização das características locais. E um enfoque na
inovação, considerando as economias do conhecimento e a
competitividade, ou seja, variáveis do desenvolvimento
endógeno (DINIZ & ROCCO, 2006). Este conjunto de políticas
152
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

foi definido por Helmsing (1999) como a segunda geração de


políticas de desenvolvimento centrada nos fatores endógenos
locais, e que visavam promover as capacitações da região de
forma a prepará-la para lidar com a competitividade
internacional (HELMSING, 1999; JIMÉNEZ, 2002).
O foco das políticas estando nos fatores endógenos, a
questão endógeno-exógena adquire maior significado se
abordada nos termos da diferenciação entre crescimento
econômico e desenvolvimento. O crescimento econômico
depende principalmente da capacidade da região para
atrair recursos (públicos e privados) e dos impactos das
políticas macroeconômicas e setoriais sobre a região. O
desenvolvimento pressupõe que a região possua uma
capacidade de organização social que se reflete na
autonomia decisória; capacidade de captação e reinversão
do excedente econômico; inclusão social; consciência e
ação ambientalista; sincronia intersetorial e territorial do
crescimento; e percepção coletiva de pertencer à região.
Para o Boisier (1997), a organização social é componente
endógeno por excelência, capaz de transformar impulsos
(externos) ou processos (gerados internamente) de
crescimento em desenvolvimento.
No final de 1990 emergiu uma terceira geração de
políticas de desenvolvimento (DINIZ & CROCCO, 2006). Com a
globalização surge uma nova perspectiva espacial que gera
um efeito contraditório na organização do espaço mundial,
pois, por um lado, a globalização demanda a unificação e a
padronização dos mercados e produtos e, por outro, permite
a diversificação das economias e dos mercados locais,
promovendo a articulação entre o local e o global.
Considerando essa nova sistemática global, as políticas de
153
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvimento deixam de ser exclusivamente nacionais ou


locais, e passam a ser multiespaciais (ARAÚJO, 2010).
Helmsing (1999) ressalta que nas políticas de terceira
geração a coordenação horizontal entre os atores deve ser
complementada pela coordenação vertical entre os níveis. As
políticas da terceira geração devem, também, levar em
consideração o posicionamento econômico dos sistemas
regionais de produção nos contextos setoriais e locais, o que
implica em superar a divisão das políticas de desenvolvimento
em exógenas e endógenas.
As políticas de terceira geração se baseiam no
reconhecimento de que uma nova orientação não
necessariamente requer mais recursos, mas sim o
aumento da “racionalidade sistêmica” no uso dos
recursos e dos programas existentes. A terceira
geração, de certa forma, supera a oposição entre
políticas de desenvolvimento exógeno e
endógeno. (HELMSING, 1999, 44).

Para Helmsing (1999: 44) a terceira geração de políticas


apresenta as seguintes características:
- reconhecimento de que com a globalização não
somente as empresas, mas os territórios também
competem entre si, por isso não se deve olhar
apenas para dentro;
- sistemas produtivos territoriais se posicionam nos
contextos nacionais e internacionais;
- políticas não podem "ser tão locais ou regionais" a
ponto de excluir ou ignorar políticas e
intervenções nacionais setoriais;
- não se pode deixar de reconhecer o papel de
investimentos e empresas externas, especialmente
as grandes, devido ao crescente fluxo de capitais
privados; e,
154
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

- reconhecimento de que cooperação não é


essencial somente entre as firmas, mas também
entre as instituições, ou seja, a coordenação
horizontal entre os atores locais deve ser
complementada pela coordenação vertical entre
os diferentes níveis.
Essa engrenagem gera um movimento de
descentralização político-administrativa, que reforça as
estruturas de poder local e permite uma mobilização de
grupos e instituições nacionais e subnacionais. (AFFONSO,
1995).
Ao se considerar a escala local como estratégia de
desenvolvimento, as vantagens comparativas locais passam a
ocupar centralidade nas discussões sobre as ações do
governo, pois se constituem na capacidade dos atores,
políticos e econômicos, e da sociedade local de se
estruturarem e se mobilizarem, usando como base a sua
diversidade e sua matriz cultural uma vez que, cada lugar é
portador de dinâmicas próprias. Essas dinâmicas, por sua vez,
interagem com o movimento da globalização, uma vez que
resultam de processo histórico diferenciado e de uma
construção social específica (ARAÚJO, 2000).
Nesse sentido, verifica-se que a terceira geração de
políticas leva em conta dois fatores: o processo de integração
nacional, que estimula a concorrência inter-regional, e o
processo de integração global, que estimula a
competitividade internacional. Além desses fatores está
presente na terceira geração a percepção de que para
ocorrer o desenvolvimento, um espaço geográfico depende
da sua capacidade de utilizar os recursos locais de forma
adequada e de captar e internalizar recursos externos.
155
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O NOVO ALINHAMENTO ENTRE O FEDERAL E OS ENTES


FEDERATIVOS: A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E A
DESCONCENTRAÇÃO DE INVESTIMENTOS

No Brasil, com a República, a Federação nasceu como


uma forma de organização capaz de permitir aos entes
federados gozar de maior autonomia. O federalismo consiste
na coexistência de diversas instâncias de poder
territorializado, as quais procuram conciliar autonomia e
interdependência, e levam à criação de instituições para
estabelecer relações intergovernamentais e para conciliar
conflitos entre os interesses locais, regionais e nacionais. O
federalismo republicano definiu as esferas federal, estadual e
municipal e a atual Constituição Federal de 1988 incorporou o
município como ente federativo (OLIVEIRA & SANTANA, 2010).
A Carta Magna Brasileira designou competências
exclusivas à União, estados e municípios, mas instituiu,
igualmente, um conjunto de competências comuns ou
concorrentes e compartilhadas. A relação entre os entes
federados ocorrem de maneira a caracterizar um federalismo
cooperativo no Estado brasileiro (CEPAL, 2010).
Art. 23. Parágrafo único.
Leis complementares fixarão normas para a
cooperação entre a União e os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio
do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional [...] Art. 241. A União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei
os consórcios públicos e os convênios de
cooperação entre os entes federados, autorizando
a gestão associada de serviços públicos, bem
como a transferência total ou parcial de encargos,
serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade
dos serviços transferidos. (CFB, 1988).

Ao compor o atual pacto federativo sob a forma de


federalismo triádico (União, Unidades Federativas e
156
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Municípios) a Constituição Federal garantiu autonomia


administrativa aos governos subnacionais; transferiu as
atribuições da União para os demais entes federativos Estados,
Distrito Federal e Municípios; instituiu um novo regime de
atribuições tributárias, no qual os estados e municípios
receberam poderes de tributar; assegurou uma parcela maior
das receitas tributárias federais aos estados e municípios. Por
outro lado, não estabeleceu mecanismos para coordenar as
relações intergovernamentais e incorporou as exigências em
torno de uma formulação de políticas mais descentralizada,
democrática e de interesse público. Emergiu, assim, uma
tensão entre a centralização e a descentralização relativas à
organização administrativa, à competência tributária, à
responsabilidade por determinadas políticas publicas e ao
poder de editar leis (AFFONSO, 1995).
O fortalecimento dos municípios, que ganharam status
constitucional, gerou a municipalização de várias políticas
públicas, retirando dos governos estaduais a execução de
alguns serviços como a coordenação de políticas,
financiamento suplementar ou ação conjunta junto ao poder
local, formando assim um federalismo compartimentado
(ABRÚCIO, 2006). Neste sentido, o papel dos estados tornou-se
mais indefinido, como também o seu modo de articulação
com os outros níveis de governo em diversas políticas. A
articulação entre gestão e política, geralmente complicada
na história do Brasil, é menos clara no plano estadual
(ABRÚCIO & GAETANI, 2005).
Além desse contexto do atual pacto federativo, ainda há
a enorme assimetria que caracteriza o Brasil, diante da qual
cabe ao governo federal a função, por meio de políticas
públicas e de ações integradas com os entes federativos,
157
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

buscar corrigir. Para isso, é necessário que o governo federal


aperfeiçoe os investimentos no território nacional, aumente a
eficiência da gestão governamental e auxilie os governos
subnacionais em termos financeiros e administrativos,
considerando e respeitando a sua autonomia (AFFONSO,
1995).
Na perspectiva federativa é possível verificar a presença
de duas tendências: a consolidação da ação cooperativa da
União na federação brasileira, consagrada nos fundos de
participação e nas atribuições das instituições federais
responsáveis pelo desenvolvimento regional; e, os processos
de descentralização política e financeira. A Assembléia
Nacional Constituinte reconheceu, por um lado, os enormes
desequilíbrios econômicos e sociais entre estados e municípios,
o que exigia um papel mais ativo da União, fortalecendo a
centralização. Assim como, promovia a descentralização,
permitindo a criação de sistemas estaduais de incentivos
fiscais e outras legislações pertinentes (ISMAEL, 2010)
Em meio a este cenário, as ações do governo parecem,
hoje, se concentrar sobre dois pilares que, possivelmente,
funcionam como facilitadores do processo de interação dos
entes federados: a descentralização administrativa das ações
governamentais e a desconcentração dos investimentos nas
políticas públicas.

Descentralização Administrativa
O processo de descentralização é traduzido por Abrúcio
(2006) como sendo um processo de conquista ou de
transferência de poder.
definimos a descentralização como um processo
nitidamente político, circunscrito a um Estado
nacional, que resulta da conquista ou transferência
158
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

efetiva de poder decisório a governos


subnacionais, os quais adquirem autonomia para
escolher seus governantes e legisladores, para
comandar diretamente sua administração, para
elaborar uma legislação referente às competências
que lhes cabem e, por fim, para cuidar de sua
estrutura tributária e financeira. (ABRÚCIO: 2006,
p.3).

No âmbito administrativo26 o processo de


descentralização trata da delegação de funções de órgãos
centrais para agências mais autônomas, o que na verdade é
um processo de horizontalização das estruturas
organizacionais públicas, com a redistribuição das
responsabilidades. A descentralização é igualmente utilizada
para denominar a transferência de atribuições do Estado às
esferas subnacionais, cabendo à instância federal o papel de
coordenação (ABRÚCIO, 2006).
Os estudos do IICA (2007) convidam a deslocar o
processo de descentralização administrativa para o contexto
da territorialização da governança, a qual consiste em definir
espaços geográficos como lócus de projetos sociais, políticos
e econômicos inovadores, como forma de implantar a
descentralização das atividades governamentais. E esses
espaços públicos seriam orientados à construção de um tipo
de concertação/harmonização dos atores do Estado e da
sociedade civil.
A prática institucional das políticas, segundo CEPAL (2010)
está relacionada às competências dos entes federados e às
atribuições dos diferentes níveis territoriais. A Constituição
Federal de 1988 é única no mundo a estabelecer uma
federação trina formada por União, Estados e Municípios,
entes federados reciprocamente autônomos, sem hierarquia.

26 Não se pretende abordar a discussão do processo de descentralização no sentido essencialmente político,


pois abarca debates intelectuais acerca do tema desde o século XIX, com o pensador Pierre-Joseph Proudhon
até a descentralização oriunda do neoliberalismo.
159
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Esta “autonomia” dos entes federados se traduz na


capacidade de auto-organização, auto-governo e auto-
administração. A repartição de competências entre os entes
federados consiste na divisão vertical e espacial de poderes.
Para Vianna (1996) no contexto das políticas públicas
haveria dois tipos de descentralização, a caótica e a
planejada. Na descentralização planejada as funções dos três
níveis de governo (federal, estadual e municipal) sofreriam
mudanças qualitativas e haveria um deslocamento gradativo
de recursos de um nível para o outro, criando uma relação de
complementaridade entre os níveis, apoiando-se numa ideia
de sistema (VIANNA, 1996).
A descentralização de funções governamentais ocorre
por conta da peculiaridade de cada política pública. Nesse
sentido acredita-se que, no âmbito da descentralização
administrativa, ao retomar a espacialização das políticas
públicas, o governo federal está procurando desenvolver as
capacidades administrativas e financeiras dos entes
subnacionais para melhorar o desempenho da gestão
pública. Isso permite que as metas estabelecidas nas políticas
federais possam ser replicadas nos Estados e municípios,
respeitando as características locais.
os possíveis ganhos de eficiência resultantes da
desconcentração das atribuições não são
alcançados caso faltem recursos suficientes às
administrações locais..., o repasse das funções
antes centralizadas só alcança plenamente seus
objetivos quando acoplado à existência ou à
montagem gradativa de boas estruturas gerenciais
nos níveis inferiores. Obviamente que a grande
concentração de tarefas nas mãos do Governo
Central é prejudicial à eficiência... e ao alcance
dos melhores resultados. (ABRÚCIO, 2006, p:13).

A cooperação entre os entes federados tem uma


importância fundamental no Brasil devido à estrutura de
competências comuns, concorrentes e complementares entre
160
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

entes federados. Esta importância se destaca especialmente


para as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas,
bacias hidrográficas, microrregiões geográficas, entre outras,
onde os problemas sociais, econômicos, regionais e urbanos
dependem fundamentalmente de uma gestão compartilhada
dos entes federados (CEPAL, 2010).
A experiência brasileira tem sido rica na criação e
operacionalização de diversos lócus sociais, políticos e
econômicos inovadores atrelados a distintas políticas e
programas. Estes lócus assumem diferentes formatos, entre
eles: conselhos (municipais, regionais, estaduais, nacionais);
comissões; grupos de discussão ou grupos executivos;
câmaras (setoriais, técnicas, etc.). Um elemento importante
desses locus é a sua capacidade de congregar atores
diretamente envolvidos em um determinado tema,
articulando representantes de organizações governamentais
e da sociedade civil. Alguns exemplos seriam: o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); os
Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural e/ou
Sustentável (CMDR); o Conselho Estadual (CEDRS) e os
Conselhos Regionais de Desenvolvimento; os fóruns das
mesorregiões do Ministério da Integração Nacional - MI; os
territórios dos Consads do Ministério do Desenvolvimento Social
- MDS; os conselhos das cidades do Ministério das Cidades -
MC; e os pactos de concertação do Ministério do
Planejamento Orçamento e Gestão - MPOG (FLEXOR & LEITE,
2006; CEPAL, 2010).

Desconcentração de Investimentos
Uma das tendências para a definição do federalismo
cooperativo na Constituição de 1988 está associada ao
161
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

processo de desconcentração de investimentos, que trata da


redefinição da partição das unidades subnacionais nos
recursos nacionais. Como pano de fundo tem-se o processo
histórico de concentração espacial da economia brasileira,
que se traduz em desequilíbrios sociais e econômicos entre as
diferentes espacialidades nacionais (ISMAEL, 2010).
A descentralização foi um tema central da agenda da
democratização e foi defendida tanto em nome da
ampliação da democracia quanto do aumento da eficiência
do governo e da eficácia de suas políticas. Acreditava-se que
o fortalecimento dos espaços subnacionais, em especial dos
municípios, permitiria aos cidadãos influenciar as decisões dos
governos locais (CEPAL, 2010).
A Assembléia Nacional Constituinte estabeleceu os
contornos do federalismo cooperativo, com o foco nos
desequilíbrios socioeconômicos entre as regiões, definindo
mecanismos cooperativos que respaldariam a atuação da
União na federação assimétrica. Um desses mecanismos
consta do artigo 159 da Constituição Federal de 1988, que é a
criação dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos
Municípios (FPM), e dos Fundos de Desenvolvimento do setor
produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (ISMAEL,
2010).
As recentes políticas públicas trazem em si estratégias de
desenvolvimento envolvendo distintos atores e focando
diversos fatores como infraestrutura física, humana e
institucional, assim como, inovação e produtividade. Nesse
sentido e considerando que a receita pública a qual
contempla quase 40% do PIB ainda se concentra nas ações
de cunho federal, cabe a este governo se preocupar com
espaços subnacionais dinamizando os investimentos, para que
162
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

surjam oportunidades reais de desenvolvimento (ARAÚJO,


2007). Ao mesmo tempo, o esforço de desconcentração de
investimentos das políticas atende aos novos desafios da
sociedade e da economia nacional, tais como soluções para
a pobreza e para a falta de oportunidades. (ECHEVERRI, 2007;
IICA, 2007).
Essa preocupação é visível desde a segunda metade dos
anos 1990 com as propostas dos eixos de desenvolvimento
pensadas no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002), e com as políticas com recortes geográficos
específicos, considerando a pobreza e a estagnação das
regiões vulneráveis elaboradas no governo Lula (2003-2010).
Este foi o grande desafio, em particular nos últimos oito anos:
espacializar políticas para se reduzir a pobreza e avançar na
construção nacional, em um contexto mundial que contesta a
importância dos Estados Nacionais (ARAÚJO, 2007, 2010).
Entretanto, ao se preocupar com espaços subnacionais,
com a dinâmica dos investimentos, e ao mesmo tempo,
manter a integração nacional, o governo federal incorre em
duas grandes dificuldades: a estrutura das receitas,
fortemente concentrada na esfera federal e os níveis desiguais
de capacidade financeira e administrativa entre estados e
municípios (IICA, 2007).
Fica clara a complexidade que abrange a questão. As
diversidades socioeconômicas, administrativas e culturais que
especificam os entes federativos não permitem acomodar as
necessidades financeiras baseada em decisões centralizadas
e unilaterais do governo federal.
Quando as desigualdades regionais são grandes, o
equilíbrio entre a repartição de competências e a
autonomia federativa depende de um eficiente
sistema de transferências compensatórias, capaz
de equilibrar o interesse dos estados mais
163
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

desenvolvidos, que preferem mais autonomia para


tributar, e os dos estados mais atrasados, que
necessitam completar suas fracas possibilidades de
arrecadação com transferências promovidas pelo
poder central. (REZENDE, 2001: 186).

Nesse sentido, verifica-se que para o processo de


desconcentração de investimentos, a capacidade de gestão
dos entes federativos e as heterogeneidades espaciais devem
ser consideradas. Desta forma, supõe-se que tanto a
descentralização administrativa quanto a desconcentração
de investimentos se revelam como facilitadores do processo
de interação articulada dos entes federados, assim como
atendem aos novos desafios da sociedade e da economia
nacional.

Conclusão

O objetivo principal do presente trabalho foi responder à


questão: Os arranjos produtivos locais podem ser considerados
uma forma de espacialidade nas políticas públicas?
É possível concluir que há vários indícios de que os APLs
fortalecem e desenvolvem o sistema sócio-produtivo da
região na qual estão inseridos, impactando diretamente a
dinâmica da economia local e potencializando o
desenvolvimento regional. Assim como, integram diferentes
espaços, atores sociais, agentes, mercados e políticas e
mobilizam o desenvolvimento produtivo local valorizando a
cooperação, os saberes locais e a capacidade inovativa
local.
Concluiu-se ainda que, os APLs aparentam deter forte
capacidade de geração de externalidades positivas;
desempenham papel fundamental no incremento da
competitividade dos produtores locais; aproveitam o processo
164
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de cooperação e de competição; criam, provêm e desfrutam


da rede de relacionamentos envolvendo diferentes atores
locais; melhoram as condições locais para o crescimento de
empresas. Além disso, os APLs se mostram como elemento de
coesão espacial e contribuem para a geração de emprego e
renda e para a redução de desigualdades sociais.
Tomando em consideração a definição do MI das
mesorregiões como “territórios que envolvem uma ou mais
regiões que compartilham características comuns em cultura,
questões socioeconômicas, políticas e ambientais” e a do
MDA dos territórios rurais como “espaço geograficamente
definido, caracterizado por critérios multidimensionais tais
como ambiente, economia, sociedade, cultura, política e
instituições. Possui população formada por grupos sociais
relativamente distintos que se interrelacionam interna e
externamente por meio de processos caracterizados por um
ou mais elementos que indicam identidade, coesão e sentido
de pertencimento”, é possível dizer que há um indicativo de
que as características dos APLs apresentam uma identidade
com as concepções da dimensão espacial, acima citadas.
Essa identidade consolida-os como elo entre as políticas e o
desenvolvimento local.
As concepções teóricas focam a coerência interna, o
“caráter” próprio, a especificidade, os fluxos de ideias,
informações, conhecimento, pessoas, etc. do espaço
geográfico característico dos APLs. Estes propiciam o
compartilhamento dos canais de interlocução local, estadual
e federal, a partir das redes de relacionamentos que
envolvem diferentes atores, reconhecem e valorizam as
potencialidades locais e incrementam a competitividade dos
produtores locais.
165
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Já as concepções do governo focam as características


comuns, a coesão social e o sentido de pertencimento, o que
também é característico dos APLs quando propiciam a
integração de diferentes espaços, atores sociais, mercados e
políticas e mobilizam o desenvolvimento produtivo, inovativo e
local. Estas constatações reforçam o entendimento de que os
APLs incorporam, simultaneamente, as questões relativas às
atividades produtivas, à dimensão espacial e ao
desenvolvimento.
Além de se reconhecer uma possível identidade entre os
APLs e as concepções teóricas e governamentais, foi possível
perceber uma imbricação entre a concepção dos Arranjos
Produtivos Locais, a terceira geração de políticas de
desenvolvimento e o federalismo brasileiro. O que
possivelmente, se reflete numa condicionante favorável para
se conceber os APLs como uma nova espacialidade das
políticas públicas. Estes incorporam os aspectos institucionais
como conhecimento, cultura, capital social, assim como, o
entendimento da dinâmica geográfica e a valorização das
características locais, e dão ênfase à inovação, considerando
as economias do conhecimento e a competitividade. Ao
mesmo tempo, sofrem influência do Estado como: redução de
encargos para empresas; flexibilização do mercado de
trabalho; indução de oferta e do desenvolvimento de um
campo econômico específico para atender ao mercado. Ou
seja, os APLs incorporam variáveis do desenvolvimento
endógeno e exógeno.
A terceira geração de política, do ponto de vista teórico,
resgata os determinantes clássicos, exógenos, presentes em
políticas de desenvolvimento como o tratamento diferenciado
para empresas diferenciadas, a centralização de recursos e
166
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

espaços geográficos específicos, retorno dos efeitos de


polarização e concentração espacial de atividades
produtivas. Assim como, resgata os determinantes endógenos,
tais como: autonomia decisória; capacidade de captação e
reinversão do excedente econômico; inclusão social;
consciência e ação ambientalista; sincronia intersetorial e
territorial do crescimento; e percepção coletiva de pertencer
à região.
Desta forma, pode-se dizer que tanto os APLs quanto a
terceira geração de políticas superam a oposição entre
políticas de desenvolvimento exógeno e endógeno. Ou seja,
tanto um quanto outro levam em consideração
características inerentes ao desenvolvimento endógeno, assim
como, ao exógeno.
Diante do exposto, é possível concluir que, sim, os APLs se
revelam uma nova espacialidade nas políticas públicas com
condições favoráveis de ser condutora do desenvolvimento
social e econômico.

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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A Reprodução do Capital Monopolista1

Paulo Sérgio Souza Ferreira2

Resumo
A teoria marxista do imperialismo é fundamental para a análise da história econômica
mundial, desde a década de 1870. Ela pode ser compreendida, por um lado, como a
teoria das relações internacionais no âmbito do marxismo, por outro lado, como
esforço sistemático de análise do processo de internacionalização da economia
capitalista (a mundialização do capital). Isso pode ser evidenciado pelos seguintes
aspectos: (1) pela análise das relações existentes entre a política e a economia, a
partir da centralidade conferida aos Estados nacionais no estudo da dinâmica da
acumulação capitalista em escala mundial; (2) as teorias do imperialismo têm como
pressuposto o reconhecimento de que há uma hierarquia entre os países no sistema
internacional da divisão do trabalho, com base em relações de cooperação e
conflito; (3) pela importância atribuída ao capital financeiro na expansão e
aprofundamento das relações de produção capitalistas em todo o mundo, através da
exportação de capitais.

Palavras-chaves: Capital financeiro; Capital monopolista; Estado nacional; Exportação


de Capitais; Imperialismo.

Abstract
The Marxist theory of imperialism is crucial for the analysis of world economic history
since the 1870s. It can be understood, on the one hand, as the theory of international
relations in the context of Marxism, on the other hand, as a systematic effort to analyze
the internationalization process of the capitalist economy (globalization of capital). This
can be evidenced by the following aspects: (1) the analysis of the relationship between
politics and economics, from the centrality given to the nation - states in the study of
the dynamics of capitalist accumulation on a world scale, (2) theories of imperialism
have as presupposing of the recognition that there is a hierarchy among the countries
in the international division of labor, based on cooperation and conflict, and (3) the
importance attributed to financial capital in the expansion and deepening of capitalist
relations of production throughout the world through the export of capital.

Keywords: Financial capital; Monopoly capital; National State; Export of Capital;


Imperialism.

1 Artigo recebido em 06 de agosto de 2014 e aprovado em 10 de outubro de 2014.


2 Mestre e doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. E-mail: paullmarx@yahoo.com.
174
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

1 OS PRIMÓRDIOS: A TEORIA DA CONCENTRAÇÃO DE KARL MARX

O estudo do novo imperialismo (1870-1914) desenvolvido pelos


autores socialistas foi uma das grandes contribuições do pensamento
marxista na compreensão do recrudescimento do colonialismo e da
Primeira Guerra Mundial. Buscava-se compreender as relações
existentes entre esses dois fenômenos históricos com as profundas
alterações na estrutura e no funcionamento do modo de produção
capitalista. Os principais traços característicos dessas transformações
foram o surgimento e desenvolvimento das sociedades anônimas, e o
domínio do capital financeiro sobre o processo de acumulação de
capitais.
O ponto de partida da análise desenvolvida pelos teóricos
marxistas sobre o capital monopolista foi à teoria da acumulação
capitalista elaborada por Karl Marx, em O Capital. Esses autores
buscavam atualizar o pensamento marxista e submeter à prova a
validade das leis desenvolvidas em O Capital sobre o funcionamento
do modo de produção capitalista, através do exame dos fatos
concretos da economia mundial. Seguindo os princípios metodológicos
legados por Marx, os pensadores socialistas deram importantes
contribuições para a compreensão da dinâmica do capital
monopolista. O surgimento dos monopólios capitalistas no último quartel
do século XIX e início do século XX são a prova empírica da teoria da
acumulação de Karl Marx.
A noção de excedente econômico na tradição marxista é
fundamental para o esclarecimento da dinâmica da acumulação
capitalista. O excedente econômico corresponde, no contexto das
sociedades divididas em classes, a parte da produção social não
consumida diretamente pelos produtores diretos e apropriada pelas
classes dominantes. Historicamente, existem diferentes formas do
excedente (tributo, renda feudal, mais-valia).
175
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Nas análises efetuadas por Karl Marx, a organização social da


produção é quem dita o ritmo do desenvolvimento socioeconômico, a
partir das diferentes formas de utilização do excedente. Contrariamente
ao que se pensa nas formulações superficiais do marxismo, não é o
excedente econômico que explica o desenvolvimento das instituições
sociais. Pelo contrário, são as instituições sociais que decidem qual
parcela da produção social se constituirá em excedente econômico.
Na sociedade capitalista, a forma do excedente compreende a mais-
valia (a parcela da produção social que corresponde ao trabalho não
pago).
Por conseguinte, devido ao caráter anárquico da produção
capitalista, o emprego do excedente no capitalismo tem como base as
decisões individuais e motivadas por interesses pessoais dos proprietários
dos meios de produção (os capitalistas). O alargamento da escala da
produção social e o desenvolvimento dos métodos de produção
exprimem a dinâmica particular do excedente econômico no modo de
produção capitalista.
A renovação contínua do processo de produção material no
capitalismo exige que parte da mais-valia produzida pelos
trabalhadores assalariados em um período produtivo seja consumida
produtivamente pelos capitalistas, ou seja, aplicada na produção num
período subsequente. Esse capital adicional (mais-valia) é acrescido ao
capital original do período produtivo anterior. A consequência de todo
esse processo é que a produção material recomeça sempre em um
nível superior ao verificado em ciclo produtivo precedente à medida
que prossegue o processo de reprodução material da sociedade. Com
o desenvolvimento da economia capitalista acelera-se a acumulação
de capitais e esta, por sua vez, estimula o desenvolvimento do
capitalismo.
176
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O resultado dos estímulos provenientes desses dois fatores é o


aumento da composição orgânica do capital3 existente nas empresas.
O aumento da composição orgânica do capital no âmbito de cada
empresa individual é a consequência inevitável do desenvolvimento da
produtividade social do trabalho, que se expressa pelo aumento em
termos relativos da participação do capital constante em relação à
parte variável do capital no valor do produto. A própria dinâmica do
processo de produção capitalista contribui para o desenvolvimento
acelerado das forças produtivas, em que a concorrência entre os
capitalistas individuais os impele a reduzir constantemente os seus custos
de produção. A luta das empresas capitalistas entre si por parcelas mais
elevadas de mais-valia se impõe como uma lei coercitiva externa da
concorrência aos capitalistas individuais.
Com o desenvolvimento da produtividade social do trabalho,
uma empresa pode produzir em um mesmo intervalo de tempo e com o
mesmo dispêndio de energia uma maior quantidade de valores de uso,
o que acarreta uma diminuição do preço individual de sua mercadoria.
Enquanto a inovação técnica é o monopólio de uma empresa
particular qualquer ela pode auferir lucros suplementares enquanto as
empresas concorrentes utilizam os métodos de produção antigos, pois o
preço de mercado é avaliado de acordo com as condições sociais
médias de produção. Ou seja, a mercadoria é avaliada com base no
tempo de trabalho socialmente necessário que as empresas gastam
para produzir a mercadoria com a tecnologia mais antiga. Nesse
sentido, a empresa que utiliza a tecnologia mais moderna continua
recebendo pelo preço de mercado com a venda de suas mercadorias,
o que lhe confere um lucro extra4 em relação às empresas
concorrentes. Somente com a disseminação do progresso técnico por
todo o ramo de produção é que o lucro suplementar desaparece

3 A composição orgânica do capital diz respeito à proporção em que se reparte em capital constante e capital variável o valor do
produto.
4 Essa circunstância não constitui uma violação da lei do intercâmbio de mercadorias.
177
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

completamente, pois o valor da mercadoria passa a ser avaliado e


praticado de acordo com as novas condições sociais de produção da
mercadoria em particular. Nesse caso, a empresa que praticou
introduziu pioneiramente a inovação técnica passa a obter apenas o
lucro médio5 assim como as demais empresas. Nesse sentido, todas as
empresas são impelidas pela lógica capitalista a desenvolver
constantemente os seus métodos de produção, caso contrário, estão
condenadas à falência.
Por outro lado, o desenvolvimento da força produtiva social do
trabalho é o método de ampliação6 da mais-valia característico do
capitalismo altamente desenvolvido. A produção de mais-valia relativa
é obtida mediante o acréscimo da parte da jornada de trabalho que
produz o produto excedente (mais-valia) à custa da redução da parte
da jornada de trabalho em que o trabalhador reproduz o valor de sua
força de trabalho. Nesse método, o tempo total da jornada de trabalho
mantém-se inalterado. Isso é obtido, por um lado, mediante
aperfeiçoamentos técnicos que atinjam os ramos de produção que
produzem os meios de subsistência necessários aos trabalhadores para
sua sobrevivência, os quais entram no cálculo do valor da força de
trabalho. Por outro lado, indiretamente, através do barateamento das
mercadorias produzidas pelos ramos que fornecem os meios de
produção utilizados na produção dos meios de subsistência.
Vê-se que a produção de mais-valia relativa e a pressão exercida
pela concorrência sob a ação dos capitalistas individuais, que não são
nada mais do que faces distintas de um mesmo processo exercem um
estímulo considerável para que a produtividade social do trabalho se
desenvolva em ritmo febril sob o capitalismo. Isso se reflete em um

5 O lucro médio é calculado, de acordo com a taxa geral média de lucro. Seu exame minucioso ultrapassa os limites desse artigo.
Ele pode ou não coincidir com a mais-valia efetivamente criada na esfera particular de negócios do capitalista individual. Isso
dependerá da composição orgânica de cada capital individual, ou seja, se ela é igual, maior ou inferior a composição média.
6 O outro método estudado por Karl Marx em O Capital é a produção da mais-valia absoluta. Nesse método, amplia-se o tempo

total da jornada de trabalho prolongando assim a parte da jornada destinada ao trabalho não pago mantendo-se inalterada a
parte da jornada de trabalho em que o trabalhador trabalha para si mesmo, ou seja, em que reproduz o valor de sua própria força
de trabalho.
178
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

aumento da composição orgânica do capital no âmbito de cada


empresa individual, dos ramos de produção em particular e da indústria
como um todo.
O resultado de todo esse processo é um incremento significativo
na dimensão das empresas, onde uma parte cada vez maior da mais-
valia é capitalizada acompanhando o aumento do capital. Essa
circunstância pode ser comprovada pela grande massa de capital fixo
empregada nas empresas (instalações, edifícios, máquinas, etc.). Ou
seja, o trabalho vivo tem que colocar continuamente em movimento no
processo produtivo uma massa de valor em meios de produção cada
vez maior.
O aumento da dimensão das empresas e a mudança na relação
entre os seus componentes constante e variável à medida que se
desenvolve a produção capitalista têm como consequências, o
aumento do capital mínimo exigido e da escala de operações das
empresas industriais. Isso só pode ser compreendido como um
desdobramento das leis de movimento e de reprodução do capital,
que tem como base os processos de concentração e de centralização
de capitais. Karl Marx descreve em O Capital, livro primeiro, a
concentração do capital nos seguintes termos:

Todo capital individual é uma concentração maior ou menor


de meios de produção com comando correspondente sobre
um exército maior ou menor de trabalhadores. Toda
acumulação torna-se meio de nova acumulação. Ela amplia,
com a massa multiplicada da riqueza, que funciona como
capital, sua concentração nas mãos de capitalistas individuais
e, portanto, a base da produção em larga escala e dos
métodos de produção especificamente capitalistas. O
crescimento do capital social realiza-se no crescimento de
muitos capitais individuais. Pressupondo-se as demais
circunstâncias constantes, os capitais individuais crescem e,
com eles, a concentração dos meios de produção, na
proporção em que constituem partes alíquotas do capital
global da sociedade. Ao mesmo tempo, parcelas se destacam
dos capitais originais e passam a funcionar como novos
capitais autônomos. Nisso desempenha um grande papel,
entre outros fatores, a partilha da fortuna das famílias
capitalistas. Com a acumulação do capital, cresce portanto,
179
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

em maior ou menor proporção, o número dos capitalistas. Dois


pontos caracterizam essa espécie de concentração, que
repousa diretamente na acumulação, ou melhor, é idêntica a
ela. Primeiro: a crescente concentração dos meios de
produção social nas mãos de capitalistas individuais é,
permanecendo constantes as demais circunstâncias, limitada
pelo grau de crescimento da riqueza social. Segundo: a parte
do capital social, localizada em cada esfera específica da
produção, está repartida entre muitos capitalistas, que se
confrontam como produtores de mercadorias independentes e
reciprocamente concorrentes. A acumulação e a
concentração que a acompanha não apenas estão dispersas
em muitos pontos, mas o crescimento dos capitais em
funcionamento é entrecruzado pela constituição de novos
capitais e pela fragmentação de capitais antigos. Assim, se a
acumulação se apresenta, por um lado, como concentração
crescente dos meios de produção e do comando sobre o
trabalho, por outro lado ela aparece como repulsão recíproca
entre muitos capitais individuais (MARX, 1985, v.2, p.196).

E mais adiante Marx refere-se à centralização do capital da


seguinte maneira:

Essa dispersão do capital global da sociedade em muitos


capitais individuais ou a repulsão recíproca entre suas frações é
oposta por sua atração. Esta já não é concentração simples,
idêntica à acumulação, de meios de produção e de comando
sobre o trabalho. É concentração de capitais já constituídos,
supressão de sua autonomia individual, expropriação de
capitalista por capitalista, transformação de muitos capitais
menores em poucos capitais maiores. Esse processo se
distingue do primeiro porque pressupõe apenas divisão
alterada dos capitais existentes e em funcionamento, seu
campo de ação não estando, portanto, limitado pelo
crescimento absoluto da riqueza social ou pelos limites
absolutos da acumulação. O capital se expande aqui numa
mão, até atingir grandes massas, porque acolá ele é perdido
por muitas mãos. É a centralização propriamente dita,
distinguindo-se da acumulação e da concentração (MARX,
1985, v.2, p.196).

Observa-se que o desenvolvimento do capitalismo centrado em


seus dois processos fundamentais (a concentração e a centralização
de capitais), tem como resultado lógico o aparecimento das empresas
gigantes. Esses dois processos estão no âmago de toda a evolução do
sistema capitalista.
O desenvolvimento da produção capitalista, mediante a
atuação de sua lei geral, permite a acumulação de riquezas nas mãos
180
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

da classe capitalista e a acumulação de miséria no outro pólo da


sociedade. Do ponto de vista do capital, esse fato se reflete na
formação de grandes empresas, que são o símbolo do poder
capitalista. Por meio de seus dois processos fundamentais, o capitalismo
caminha em direção ao monopólio. A concentração de capitais
permite a ampliação da dimensão das empresas por meio da
concentração de seus componentes individuais, os meios de produção
e a força de trabalho, em cada empresa considerada isoladamente,
enquanto que a centralização atua como um imã fundindo os
diferentes capitais antes dispersos num só capital. Nesse sentido, quanto
mais desenvolvido o sistema capitalista maior o grau que a
monopolização alcança nas indústrias capitalistas.
Apesar de ter sido elaborada no período anterior a fase
imperialista do capital fica claro pela análise desenvolvida por Karl Marx
em O Capital, que os monopólios são o resultado lógico e inevitável do
desenvolvimento do modo de produção capitalista. No plano
puramente abstrato de sua teoria, já encontramos elementos preciosos
para a análise da dinâmica do capitalismo em sua etapa monopolista.
Por último, cabe observar as contribuições de Karl Marx sobre o
papel desempenhado pelo crédito na formação e organização das
sociedades anônimas. Vários autores7 ressaltaram a importância da
expansão creditícia no desenvolvimento do capitalismo monopolista.
Nesse sentido, torna-se importante destacar em que medida esse autor
influenciou os estudos posteriores sobre o papel do crédito na fase
imperialista do capital.
Karl Marx fez algumas observações gerais acerca do papel do
crédito no modo de produção capitalista. Segundo ele, o crédito serve
para mediar o movimento de equalização da taxa geral de lucro, pois
permite a transferência mais rápida dos capitais individuais entre os
distintos ramos de produção. Ele permite a diminuição dos custos de

7 Entre eles, podemos destacar Vladimir Ilitch Lenine, Rudolf Hilferding, Nikolai Ivanovitch Bukharin, entre outros.
181
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

circulação de três modos: 1) retira grande parte do dinheiro da


circulação; 2) aumenta a velocidade de circulação do meio
circulante8, isto é, permanecendo constante o volume e a quantidade
de mercadorias transacionadas uma massa menor de dinheiro realiza a
mesma magnitude de transações; 3) substitui o dinheiro metálico por
papel. O crédito torna mais rápido o processo de reprodução material
ao acelerar as distintas fases de metamorfose das mercadorias e
também a metamorfose do capital social. Por outro lado, diminui a
quantidade do meio circulante e a quantidade de dinheiro que tem
que existir sempre em forma monetária, ou seja, ele contrai a
quantidade necessária dos fundos de reserva.
Entretanto, de suas observações gerais sobre o crédito, as que nos
interessam particularmente são as seguintes: o crédito facilita a
formação das sociedades anônimas e permite a expansão da escala
de produção das empresas a níveis tais que o capital isolado não tem
condições de assegurar por si só; o crédito possibilita ao capital o
controle quase que absoluto do capital de terceiros e sobre a força de
trabalho assalariada que ultrapassam largamente a sua capacidade
individual. Ou seja, o crédito se apresenta como uma grande alavanca
da centralização de capitais.
O crédito rompe os limites da produção capitalista impostos pela
magnitude da acumulação dos capitais individuais promovendo o
desenvolvimento acelerado das forças produtivas em nível mundial. Tal
desenvolvimento estaria obstaculizado sem o seu auxílio, pois a
acumulação dos capitais individuais não seria suficiente para que fosse
possível a realização de investimentos de capital que exigem enormes
somas de dinheiro. Por exemplo, a construção de canais e diques, a
construção de estradas de ferro, de infraestrutura, etc. Por outro lado,
ele acelera os impactos das crises capitalistas e torna a sua

8 Nessa função, o dinheiro age como um intermediário no processo de circulação social das mercadorias. A fórmula M-D-M
exprime a essência do processo.
182
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

periodicidade mais curta. Vejamos as observações a respeito feitas por


Karl Marx em O Capital, livro terceiro:

Se o sistema de crédito aparece como a alavanca principal da


superprodução e da superespeculação no comércio é só
porque o processo de reprodução, que é elástico por sua
natureza, é forçado aqui até seus limites extremos, e é forçado
precisamente porque grande parte do capital social é
aplicada por não-proprietários do mesmo, que procedem, por
isso, de maneira bem diversa do proprietário que avalia
receosamente os limites de seu capital privado, à medida que
ele mesmo funciona. Com isso ressalta apenas que a
valorização do capital, fundada no caráter antitético da
produção capitalista, permite o desenvolvimento real, livre,
somente até certo ponto, portanto constitui na realidade um
entrave e limite imanentes à produção, que são rompidos pelo
sistema de crédito de maneira incessante. O sistema de crédito
acelera, portanto, o desenvolvimento material das forças
produtivas e a formação do mercado mundial, os quais,
enquanto bases materiais da nova forma de produção, devem
ser desenvolvidos até certo nível como tarefa histórica do
modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, o crédito
acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises e,
com isso, os elementos da dissolução do antigo modo de
produção (MARX, 1986, v.4, p.335).

Outro aspecto importantíssimo da teoria elaborada por Karl Marx


sobre o crédito capitalista e que influenciou consideravelmente os
autores marxistas posteriores, particularmente, Vladimir Ilitch Lenine e
Rudolf Hilferding foi a sua ideia a respeito do significado das mudanças
introduzidas pelas sociedades anônimas na economia capitalista.
Segundo ele, com o surgimento dos cartéis e dos trustes impôs-se certo
grau de socialização da propriedade em oposição à propriedade
privada capitalista por meio da venda de ações ao público. Essas
mudanças passaram a ser consideradas como formas de transição
embrionárias para o socialismo. Vejamos, a seguir:

O capital, que em si repousa sobre um modo social de


produção e pressupõe uma concentração social de meios de
produção e forças de trabalho, recebe aqui diretamente a
forma de capital social (capital de indivíduos diretamente
associados) em antítese ao capital privado, e suas empresas se
apresentam como empresas sociais em antítese às empresas
privadas. É a abolição do capital como propriedade, dentro
183
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

dos limites do próprio modo de produção capitalista (MARX,


1986, v.4, 332).

Em suma, a investigação desenvolvida por Karl Marx sobre o


sistema creditício já demonstra que este se tornaria um elemento crucial
da concorrência capitalista. A maior ou menor facilidade na obtenção
do crédito seria responsável pelo êxito ou fracasso de cada empresa
em particular no processo competitivo. Por sua vez, a reunião do capital
monetário disperso na sociedade pelo desenvolvimento do sistema
creditício demonstrou que este seria responsável pelo surgimento e
desenvolvimento das sociedades anônimas.
Do exposto acima, fica claro as valiosas contribuições de Karl
Marx para o estudo do capitalismo monopolista. Inclusive, podemos
afirmar que a sua teoria constitui-se numa espécie de germe da teoria
do imperialismo. É sabido que Marx nunca fez nenhuma referência ao
imperialismo e que sua análise foi desenvolvida na época do
capitalismo competitivo. Entretanto, a sua teoria da acumulação e o
seu estudo sobre o crédito são a base indispensável para o estudo do
imperialismo.

2 O IMPERIALISMO COMO SUBPRODUTO DO CAPITALISMO

2.1 A ANÁLISE PRECURSORA DE JOHN ATKINSON HOBSON

O pioneirismo na análise do imperialismo moderno deve-se ao


inglês, John Atkinson Hobson, que publicou a obra Estudio Del
Imperialismo, em 1902. A grande contribuição de Hobson foi demonstrar
que o imperialismo foi fruto do desenvolvimento do capitalismo
moderno. A sua interpretação ficou conhecida como imperialismo
econômico. Essa circunstância fez com que a sua teoria ganhasse
grande receptividade entre os teóricos socialistas e pavimentou o
caminho para os estudos posteriores sobre o tema no campo marxista.
184
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Entretanto, existem grandes controvérsias entre as abordagens de John


Hobson e a dos autores marxistas.
John Hobson foi o primeiro a associar a expansão colonial de fins
do século XIX e do início do século XX, com as profundas
transformações que se processaram na economia capitalista naquele
período. Assim como os autores socialistas, Hobson concebia os fatores
econômicos como a força motriz do imperialismo moderno. Entretanto,
as semelhanças terminam nesse ponto. Os pensadores marxistas
interpretavam o imperialismo como a manifestação visível das
contradições do desenvolvimento capitalista. Por sua vez, Hobson
entendia que o imperialismo era uma espécie de enfermidade ou
desajuste provocado na economia capitalista que poderia ser
solucionado. Analisando o caso da Inglaterra, que era a principal
potência econômica da época, ele chegou à conclusão de que a
expansão colonial era um prejuízo para a nação como um todo
demonstrando assim que o imperialismo não era uma necessidade vital
para o sistema capitalista e que poderia ser evitado. Vejamos as suas
conclusões a respeito:

Todos estos datos empíricos inducen a sacar las siguientes


conclusiones relativas al aspecto económico del nuevo
imperialismo: primero, que el comercio exterior de la Gran
Bretaña representa un porcentaje pequeño y menguante em
relación con su comercio e industria interiores; segundo, que
dentro del comercio exterior de nuestro país, las transacciones
realizadas con las posesiones británicas representan um
porcentaje cada vez menor de las efectuadas con los países
extranjeros, y tercero, que dentro del comercio de Gran
Bretaña con sus posesiones, las transacciones realizadas con las
posesiones tropicales, y en especial con las nuevas posesiones
tropicales, fueron las más pequeñas, las de menor progreso y
las más fluctuantes en cantidad, y la calidad de las mercancias
que comprendían era la más baja (HOBSON, 1981, p.59).

John Hobson não projetava nem desejava o fim do modo de


produção capitalista como os pensadores socialistas. Essa diferença é
fruto da forma como Hobson interpretava o imperialismo. Para esse
autor, a causa do imperialismo é a superprodução de capital que se
185
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

verifica nos países centrais do capitalismo, os quais não encontram


aplicação em seus próprios mercados. O excesso de capital que se
forma nesses países encontra a sua aplicação nos investimentos feitos
em países estrangeiros, através da exportação de capitais. Nesse
sentido, a explicação de Hobson sobre a expansão colonial se
aproxima de análise efetuada por Vladimir Ilitch Lenine. Segundo
Lenine, com a constituição de um excedente de capitais nos países
metropolitanos há uma explosão de atividade colonial visando a sua
colocação lucrativa nos mercados externos como se observa, a partir
da década de 1870. Entretanto, as causas da exportação de capitais
são diferentes em ambos e daí reside a grande diferença em suas
interpretações.
Vladimir Ilitch Lenine demonstra que a formação de um
excedente de capitais está ligada a dinâmica da acumulação
capitalista, ao aumento da composição orgânica do capital nos países
metropolitanos e ao desenvolvimento desigual das economias
capitalistas. Essas circunstâncias tornam mais lucrativos os investimentos
de capital realizados nas colônias por conta da baixa composição
orgânica do capital existente em suas indústrias, em comparação com
os ramos de produção localizados nos países centrais do capitalismo.
Na visão de John Hobson, a formação desse excedente de capital é
ocasionada pela má distribuição de renda, ou seja, o subconsumo das
massas está na raiz de todo o problema. Por causa da concentração
de renda, o consumo das classes trabalhadoras não consegue
acompanhar o aumento da produção material e o resultado é a
formação de um excedente de capitais que não se pode investir
lucrativamente no próprio país. Segundo John Hobson essa é a raiz
econômica do imperialismo. Vejamos:

Este fenómeno económico constituye la clave del imperialismo.


Si el público consumidor de nuestro país elevara su nivel de
consumo cada vez que se registra un aumento de la
producción, de modo que se mantuviera el equilíbrio entre
186
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

aquél y ésta, no habría un exceso de mercancías ni de capital


pidiendo a gritos que se eche mano del imperialismo para
encontrar mercados. Naturalmente, existiría el comercio
exterior, pero no presentaría mayores dificultades el cambiar el
pequeño excedente de producción que tendrían nuestros
fabricantes por los alimentos y materias primas que
necesitáramos todos los años, y todo el ahorro que hubiera em
nuestro país podría invertirse en la industria nacional, si así lo
decidiéramos (HOBSON, 1981, p.94).

Esse subconsumo é provocado por uma espécie de desajuste


presente nas economias capitalistas, o que torna o capital ocioso nas
metrópoles. Para John Hobson, isso pode ser corrigido mediante
reformas estruturais na economia capitalista. Entretanto, em Lenine esse
subconsumo não pode ser corrigido, ou seja, não se trata de uma
enfermidade que pode ser remediada, mas ao contrário, constitui-se
em condição e uma das premissas inevitáveis do modo de produção
capitalista.
A análise de Hobson não se limita a conceber o imperialismo
como oriundo apenas de fatores econômicos. Além disso, ele enumera
outros elementos responsáveis pela política imperialista como o
patriotismo, a busca de aventuras, o espírito militar, a ambição política
e a filantropia. Todos esses elementos apesar de secundários na
explicação desse autor estão de certa forma interligados e são
manipulados pelos imperialistas habilmente para a consecução das
campanhas militares no exterior. Ou seja, por meio da manipulação
desses elementos atingem-se os objetivos econômicos perseguidos.
Apesar de o imperialismo ser um “mau negócio” do ponto de
vista da sociedade como um todo, Hobson destaca que existem certos
grupos de interesses que se beneficiam diretamente com a expansão
colonial. Eles são os responsáveis pela execução da política imperialista
e exercem grande influência na vida política do país. Entre eles
podemos destacar: as forças armadas, as empresas navais, os
exportadores, os fabricantes de canhões, fuzis, munições, aviões,
alimentos para as forças armadas, os grupos financeiros, entre outros.
187
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Os grupos imperialistas utilizam o Estado como instrumento de seus


próprios interesses. O grande aumento dos gastos públicos na fase
imperialista é uma das principais fontes de ganhos dos grupos
financeiros e industriais. Em detrimento da coletividade, o erário público
é utilizado para financiar as campanhas militares no exterior. Por outro
lado, esses gastos servem para abrir novos campos de investimentos
para o seu capital, estabelecer contratos vantajosos com os mercados
estrangeiros, etc. Preferencialmente, por meio dos impostos indiretos,
esses grupos conseguem fazer com que os custos dessa política
recaiam sobre a classe trabalhadora. Em suma, o emprego lucrativo de
capitais no exterior requer um grande aumento dos gastos públicos
para o financiamento das atividades militares. Porém, para que esse
financiamento resulte em grandes benefícios aos grupos imperialistas os
custos dessa política não podem recair sobre os ombros das classes
sociais diretamente interessadas em sua execução. Isso só é possível
mediante a adoção de um sistema de tributação indireta em que os
impostos recaiam, sobretudo, sobre os produtos de consumo popular
que não são passíveis de substituição por bens substitutos.
Além disso, a dívida pública é outra fonte de financiamento
importantíssima dos gastos militares. A criação da dívida pública atende
aos seguintes objetivos: (i) atender as necessidades emergenciais de
gastos não previstos no orçamento público e que não podem ser
cobertos pelos impostos indiretos; (ii) a sua criação é uma forma de
escapar dos impostos sobre a renda e a propriedade que seriam
necessários caso ela não existisse; (iii) é uma das formas lucrativas de
investir o capital acumulado, que em caso contrário continuaria ocioso;
(iv) o seu aumento constitui o objetivo perseguido pelos credores que
tem interesse na renovação contínua dessas dívidas; (v) ela permite que
os países credores se intrometam nos assuntos internos dos países
devedores fazendo valer a força de seus interesses comerciais e
188
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

financeiros, e (vi) pode facilitar o apoio político dos países devedores


em conjunturas críticas, etc.
Vê-se que o imperialismo e a sua política de anexações apesar
de ser oriunda de deformações na economia capitalista resultam
claramente lucrativos para certos grupos de interesses, que dominam a
vida política nos países metropolitanos em detrimento dos interesses do
conjunto da população. Esses grupos minoritários e abastados exercem
o controle do aparelho de Estado e são inimigos declarados da
democracia.
Entretanto, mesmo reconhecendo as poderosas forças em jogo
que se beneficiam com o imperialismo, John Hobson acredita que é
possível adotar medidas para combatê-lo ou mesmo saná-lo. Em sua
análise, por meio da adoção de reformas sociais o imperialismo poderia
ser eliminado. No plano político, isso significa desenvolver a democracia
por meio da instituição de um governo livre e que respeite os ideais
democráticos. No plano econômico, por meio da melhoria na
distribuição de renda, que elevaria o nível de consumo das massas no
qual não se formaria mais o capital ocioso. Dessa forma, ele poderia ser
aplicado lucrativamente no mercado interno cessando os estímulos que
impelem os países centrais do capitalismo na busca de novas colônias.
Ou seja, trata-se de ampliar a demanda agregada da economia
nacional. Nas palavras de Hobson:

No está escrito en el orden natural de las cosas que tengamos


que gastar nuestros recursos naturales en empresas militaristas,
en guerras, en maniobras diplomáticas arriesgadas y poco
escrupulosas com objeto de encontrar mercados para nuestras
mercancias y para nuestros excedentes de capital. Una
sociedad inteligente y progresista que se basara en una
igualdad fundamental de oportunidades econômicas y
educativas, elevaria su nível de consumo para que
correspondiera con todo incremento de su capacidad de
producción, y podría encontrar pleno empleo para una
cantidad ilimitada de capital y mano de obra dentro de las
fronteras de su propio país. Cuando la distribución de la renta
es de tal tipo que permite a todas las clases sociales de la
nación convertir sus auténticas necesidades em demanda
efectiva de bienes, no puede darse superproducción, ni
189
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

subempleo de capital o mano de obra, ni hay necesidad


alguna de combatir por mercados extranjeros (HOBSON, 1981,
p.98).

John Atkinson Hobson teve grandes méritos ao perceber


pioneiramente as inter-relações existentes entre o desenvolvimento do
capitalismo e o recrudescimento do colonialismo, a partir da década
de 1870. Sua análise ganhou adeptos nos meios marxistas,
principalmente, Lenine que reconheceu a influência de Hobson em sua
obra. Entretanto, por adotar o ponto de vista reformista não pôde
conceber o caráter específico do capitalismo em sua fase imperialista
considerando o parasitismo econômico apenas como um mero sintoma
das enfermidades existentes na economia capitalista. Pensava que era
possível corrigi-las mediante reformas sociais, ainda que mostrasse de
forma clara as dificuldades para a sua consecução, tendo em vista a
grande força política dos grupos financeiros e industriais que se
beneficiam com o imperialismo. A análise de John Hobson peca
exatamente por não compreender que o imperialismo estava, a partir
da década de 1870, profundamente integrado na estrutura do
capitalismo mundial. Ou seja, não se trata apenas de uma enfermidade
da economia capitalista que poder ser removida por meio de reformas
estruturais, mas resulta da própria lógica da acumulação de capitais.
Não se trata de uma conjuntura política em particular propiciada pelo
poder de grupos financeiros que dominam a vida política dos países
centrais do capitalismo, mas de elemento vital e indissociável do
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Dentro dessa
perspectiva, é que devem ser compreendidas as teses marxistas do
imperialismo.

2.2 AS TESES MARXISTAS DO IMPERIALISMO

Os autores socialistas partem da herança teórica deixada por Karl


Marx para o estudo do imperialismo moderno. A análise desenvolvida
190
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

em O Capital sobre o processo de acumulação capitalista constitui-se


no ponto de partida dessas análises, conforme visto na primeira seção.
Todos eles procuram dar continuidade ao trabalho desenvolvido nessa
obra tendo em vista à existência de um problema teórico, que não
pôde ser analisado por Marx. A teoria da concentração e da
centralização de capitais foi elaborada numa época em que os
monopólios quase não existiam, ou seja, no período anterior a década
de 1870. Partindo dessa circunstância, o advento da fase imperialista do
capital trouxe novos e importantes problemas que exigiam uma
atualização do pensamento marxista para dar conta de uma realidade
totalmente diferente e em constante mutação. Porém, as análises
desenvolvidas pelos teóricos marxistas apesar de partirem de uma base
teórica comum apresentam grandes divergências entre si. Isso decorre
da forma como cada um interpreta o pensamento de Karl Marx. Em
que pese o fato de pertencerem ao campo socialista, às diferenças nas
interpretações dos autores marxistas devem ser levadas em
consideração.

2.2.1 Rudolf Hilferding

Na análise desenvolvida por Rudolf Hilferding em O Capital


Financeiro, o progresso da acumulação capitalista, que tem como base
os processos de concentração e de centralização dos capitais, tem
como resultado de seu desenvolvimento o aparecimento dos cartéis e
dos trustes. O processo de monopolização da indústria capitalista não
pode ser compreendido sem a análise do capital financeiro. Hilferding
entende por capital financeiro9 a forma assumida pelo grande capital,
que surgiu no final do século XIX e início do século XX marcada por
crescente interdependência entre o capital bancário e o capital

9 Mais precisamente, o conceito de capital financeiro em Rudolf Hilferding diz respeito ao capital bancário que é empregado na
indústria capitalista. Esse capital monetário ocioso se encontra à disposição dos capitalistas industriais somente através da
mediação dos bancos. Por outro lado, esse capital em mãos dos bancos é empregado crescentemente na esfera industrial. A
interpenetração resultante entre o capital bancário e o capital industrial dá origem ao capital financeiro.
191
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

industrial, com o consequente domínio dos bancos. O capital financeiro


concentrado corresponde a um estágio de desenvolvimento do
capitalismo, em que o processo de centralização de capitais atinge o
ápice de seu desenvolvimento. Ou seja, o capital financeiro colocou
todas as demais formas de capital sob o seu domínio (o capital
financeiro como a forma superior do capital). Somente a força
concentrada do capital financeiro pôde levar o processo de
concentração e de centralização de capitais na indústria capitalista ao
seu grau mais elevado, com a formação dos trustes e dos cartéis. Nesse
aspecto, a expansão creditícia tem papel fundamental no processo de
monopolização dos diferentes setores da economia.
Sua análise começa por investigar como o capital monetário
ocioso é liberado periodicamente na circulação do capital industrial.
Esse capital monetário passa a se constituir na base para o
desenvolvimento do sistema creditício. Enquanto, esse capital ocioso
não atinge grandes proporções em que as instituições bancárias que o
controlam não passam de meros intermediários do processo de
produção capitalista transferindo o capital ocioso em algumas indústrias
para as indústrias que reclamam o seu consumo produtivo. No início,
essa operação é meramente auxiliar e constitui-se na principal
atividade realizada pelos bancos. Entretanto, à medida que se ampliam
as operações realizadas pelos bancos e cresce o capital monetário
ocioso à sua disposição, o capital bancário passa a se constituir na
principal alavanca do processo de acumulação de capitais e os
bancos por meio de suas operações bancárias passam a influir
decisivamente no curso da indústria.
Segundo Hilferding, com o desenvolvimento das sociedades
anônimas, em que há a separação entre a propriedade do capital e a
sua gestão administrativa, os antigos capitães da indústria passam
agora a simples capitalistas monetários. Essa circunstância permite a
formação do lucro de fundador, pois há a transformação do capital
192
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que rende lucros em capital que recebe apenas juros. A descoberta


dessa categoria econômica é uma de suas grandes contribuições. Esse
lucro se origina da formação das sociedades anônimas em que o
dinheiro auferido com a venda das ações ultrapassa largamente o
capital efetivamente aplicado na indústria. Isso resulta da diferença
entre a quantia que produz o lucro médio e a quantia que produz o juro
médio10. O lucro de fundador constitui um forte estímulo para a
centralização de capitais, para novos investimentos, etc. por meio da
criação das sociedades por ações.
O domínio dos bancos sobre a indústria capitalista é o resultado
inevitável desse processo. O êxito ou fracasso das empresas no processo
competitivo depende do grau em que a concentração capitalista
atingiu o setor bancário. Quanto maior a concentração bancária e
consequentemente maior o capital monetário disponível maiores são as
possibilidades de êxito dos monopólios na concorrência desenvolvida
entre eles. Isso se reflete em uma maior interdependência de interesses
entre os bancos e a indústria e numa mudança qualitativa na
concorrência desenvolvida entre as empresas. Agora não se trata mais
da concorrência entre pequenos capitais individuais, mas da
concorrência entre capitais financeiros de grandes proporções por
taxas de lucro mais elevadas.
No plano político, esse processo se caracteriza pelos crescentes
antagonismos de interesses entre os países centrais do capitalismo pela
posse de colônias. Na fase imperialista do capital, há uma mudança
significativa no papel da política comercial, ou seja: não se trata mais
de assegurar mercados às indústrias nascentes, como nos períodos
iniciais do desenvolvimento capitalista, mas de conquistar os mercados

10 Em O Capital Financeiro, Rudolf Hilferding utiliza o exemplo de uma empresa industrial com um capital de 1 milhão de marcos
e que produz um lucro médio de 15%, ou seja, de 150 mil marcos em valores absolutos. Ele supõe que desses 150 mil marcos,
20 mil são gastos com despesas de administração, participação nos lucros, etc., o que é bastante comum nas sociedades
acionárias. Os 130 mil marcos restantes são capitalizados à taxa de juros de 7% (taxa de juros vigente de 5% mais um prêmio de
risco de 2%). A capitalização resultante dá um valor de 1.875.142 (1 milhão, 875 mil e 142 marcos), que o autor aproxima para
1.900.000 (1 milhão e 900 mil marcos). Ou seja, a diferença resultante (1.900.000 – 1.000.000 = 900 mil marcos) é o que autor
chama de lucro de fundador.
193
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

estrangeiros para as indústrias exportadoras mediante subsídios. Busca-


se de todas as formas levantarem barreiras aos produtos estrangeiros
nos mercados nacionais, por outro lado, invadir os territórios estrangeiros
com as mercadorias produzidas pelo setor exportador em cada país
imperialista. O sucesso dessa medida depende da prática de altos
preços no mercado interno, do qual se obtêm lucros extras, e a
consequente prática de um preço mais baixo no mercado mundial. A
possibilidade de praticar um preço mais baixo no mercado
internacional vai influir decisivamente na luta competitiva desenvolvida
entre os trustes. Porém, a prática de preços monopolistas nos mercados
internos tende a reduzir as vendas nesses mercados. Isso só pode ser
compensado por meio da ampliação do espaço econômico nacional,
o qual se torna uma condição vital para o êxito na luta desencadeada
entre os monopólios no mercado mundial compensando os efeitos
negativos do protecionismo estatal. A maior ampliação possível do
espaço econômico nacional mediante a anexação territorial das
colônias passa a ser o objetivo central da política econômica no
período imperialista sendo perseguida a todo custo pelos Estados –
nações. Nesse sentido, o imperialismo é a expressão política dos
interesses criados pelo capital financeiro internacional. Hilferding
sintetiza da seguinte forma a política econômica do capital financeiro:

Portanto, a política do capital financeiro persegue três


objetivos: primeiro, a criação do maior território econômico
possível. Segundo, este é fechado pelas muralhas do
protecionismo contra a concorrência estrangeira. Terceiro,
converte-se assim o território econômico em área de
exploração para as associações monopolistas nacionais. Esses
objetivos, porém, necessariamente entram no mais agudo
confronto com a política que o capital industrial aplicou na
Inglaterra com clássica perfeição durante sua exclusiva
hegemonia (no duplo sentido de que lhe subordinava o capital
comercial e bancário e de que, ao mesmo tempo, tinha o
domínio absoluto no mercado mundial). E isso tanto mais
quando a aplicação da política do capital financeiro em
outros países também ameaçava cada vez mais os interesses
do capital inglês. O país do livre – comércio era naturalmente o
alvo de ataque da concorrência estrangeira. A rigor, o
dumping teve também suas vantagens para a indústria inglesa.
194
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A indústria manufatureira obteve matéria-prima barata


mediante a concorrência a preços ínfimos. Por outro lado,
contudo, isso prejudicava exatamente as indústrias de matéria-
prima. Mas então, com o progresso da cartelização, com a
concentração de escalas de produção cada vez mais amplas
e com a formação do sistema de prêmios de exportação, tinha
também de soar a hora para aquelas indústrias inglesas que
até então tinham ganho com o dumping. Acresce ainda.
Como fator importantíssimo, que a tarifa alfandegária abre
também a esperança de uma era de rápida monopolização,
com suas perspectivas de lucros extras e lucros de fundador,
que se constituem numa grande sedução para o capital inglês
(HILFERDING, 1985, p. 306).

O estudo desenvolvido por Rudolf Hilferding influenciou


consideravelmente o pensamento dos teóricos marxistas, sobretudo, o
seu estudo sobre a gênese do capital financeiro e sobre suas formas de
valorização. O conceito de capital financeiro elaborado por Hilferding
foi adotado sem reservas pelos autores marxistas clássicos. Nesse
sentido, sua tese é a mais brilhante e original análise sobre o
imperialismo no campo socialista e teve grande influência na mais
popular de todas as obras sobre o imperialismo, o imperialismo: fase
superior do capital, escrita por Vladimir Ilitch Lenine.

2.2.2 Vladimir Ilitch Lenine e Rosa Luxemburg

Na interpretação leninista, o recrudescimento do colonialismo, a


partir da década de 1870, só foi possível graças à formação de um
excedente de capitais nos países centrais do capitalismo, que
reclamava imperiosamente a sua colocação lucrativa em outros países.
Segundo esse autor, o desenvolvimento acelerado do capitalismo nos
países imperialistas arrasta objetivamente as colônias para o ciclo
reprodutivo do capital em nível mundial acelerando
extraordinariamente o desenvolvimento socioeconômico dessas
regiões. Quanto mais se desenvolve o sistema imperialista maior é o
desenvolvimento do capitalismo mundial. Ainda que a exportação de
capitais possa estancar por algum tempo o desenvolvimento
195
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

econômico dos países exportadores de capitais, isso é compensado


pelo desenvolvimento e aprofundamento maiores do capitalismo em
todo o mundo. Ou seja, o imperialismo contribuiu para a
internacionalização mais rápida da economia capitalista e
consequentemente para o aprofundamento de todas as suas
contradições.
Ele ressalta a particularidade do desenvolvimento capitalista no
período imperialista destacando que a sua definição tem que conter os
seguintes traços fundamentais, entre eles: 1) a concentração da
produção e do capital levada ao seu máximo desenvolvimento, que do
seu seio surgem e se desenvolvem os monopólios, que constituem a
base econômica essencial do capitalismo nesse período; 2) a fusão do
capital bancário com o capital industrial formando o capital financeiro
e o consequente domínio da burguesia financeira; 3) o predomínio da
exportação de capitais relativamente à exportação de mercadorias; 4)
a formação dos cartéis internacionais, que partilham o mundo entre si;
5) a divisão territorial do planeta entre os Estados capitalistas mais
desenvolvidos. Em sua interpretação, o imperialismo é elemento vital e
estrutural estando indissoluvelmente ligado ao desenvolvimento do
modo de produção capitalista, a partir da década de 1870.
Nesse sentido, ele demonstra que o imperialismo compreende
uma alteração qualitativa no processo de produção de mais-valia em
escala mundial constituindo-se numa etapa econômica essencialmente
diferente, como sugere o título de seu livro, O imperialismo: fase superior
do capitalismo. Nesse aspecto, reside a originalidade de sua obra, ou
seja, sua concepção do imperialismo como etapa econômica e não
como política (como em Rudolf Hilferding, Nikolai Bukharin, Rosa
Luxemburg, etc.).
A análise desenvolvida por Rosa Luxemburg diverge da
investigação proposta por Lenine. Ela realiza sua investigação sobre o
imperialismo sob um aspecto totalmente distinto do analisado por
196
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Lenine. O foco de sua investigação recai sobre as dificuldades que


surgem na esfera da circulação de mercadorias. Ou seja, no problema
de realização da mais-valia. Para ela, essa é a questão central no
estudo do problema da acumulação capitalista e que requer uma
atenção especial. Segundo essa autora, a mais-valia não pode ser
realizada no âmbito da sociedade capitalista. Ela descarta a
possibilidade de sua realização por parte dos trabalhadores
assalariados ou pela classe capitalista. Nesse sentido, a sua realização
tem que ser efetuada por um grupo de compradores que se situam fora
dessa sociedade. Não se trata da existência de um grupo de
consumidores fora da sociedade capitalista, mas de um grupo de
compradores que constituem a demanda externa. O intercâmbio
realizado com as regiões pré-capitalistas é a chave para a solução
desse problema. Vejamos:

Até agora só consideramos a reprodução ampliada de um


único ponto de vista, ou seja, a partir desta pergunta: como se
realiza a mais-valia? Foi essa a dificuldade com a qual
unicamente se ocuparam os céticos até o momento. A
realização da mais-valia é, de fato, a questão vital da
acumulação capitalista. Prescindindo-se do fundo de consumo
dos capitalistas, por uma questão de simplicidade, a realização
da mais-valia exige como primeira condição um círculo de
compradores fora da sociedade capitalista. Referimo-nos a
compradores, não a consumidores. A realização da mais-valia
não nos indica nada, previamente, sobre a forma material
dessa mais-valia. O aspecto decisivo é que a mais-valia não
pode ser realizada nem por operários, nem por capitalistas,
mas por camadas sociais ou sociedades que por si não
produzam pelo modo capitalista. É, pois, possível, imaginar dois
casos distintos. A produção capitalista fornece meios de
consumo acima das próprias necessidades (ou seja, as dos
operários e as dos capitalistas), cujos compradores pertencem
às camadas ou países não - capitalistas (LUXEMBURG, 1984, p.
19).

Sua análise distingue três fases nesse processo, quais sejam: a luta
contra a economia natural; a introdução da economia monetária; a
luta contra a economia camponesa. À medida que se desenvolve a
produção capitalista se expande as relações de produção capitalistas
197
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

sobre as regiões pré-capitalistas ainda remanescentes no globo


terrestre. Com o desenvolvimento do capitalismo se desenvolvem
amplamente as suas contradições. O imperialismo constitui a luta entre
os países de produção capitalista desenvolvida pelas condições
restantes de acumulação ainda presentes no mundo não capitalista.
Porém, à medida que a expansão colonial possibilita a realização da
mais-valia nas sociedades pré-capitalistas ela destrói, ao mesmo tempo,
os sistemas sociais que são a condição essencial para o prosseguimento
da acumulação capitalista nos países centrais do capitalismo. Isso se dá
por meio da exportação de seu modo de produção específico a essas
regiões. Nesse sentido, Rosa Luxemburg aponta um limite teórico para a
continuidade do capitalismo. Com a expansão global do modo de
produção capitalista por todo o planeta a acumulação capitalista
estaria inviabilizada, pois um mundo puramente capitalista não
encontraria a demanda externa necessária para o consumo da mais-
valia. Essa contradição é inevitável sob o capitalismo e a fase
imperialista do capital representa o desfecho de todas as condições
que asseguram a reprodução do capital. A sua investigação exclui
qualquer possibilidade de desenvolvimento endógeno na economia
capitalista.
A investigação desenvolvida por Lenine sobre o imperialismo não
o concebe como solução para as dificuldades criadas no âmbito da
circulação de mercadorias. Segundo ele, os motivos da expansão
colonial são determinados por três fatores: (1) diferenças nos níveis de
desenvolvimento econômico entre os países, que se reflete em distintas
composições orgânicas do capital social total 11 (possibilidade de se
auferir taxas de lucros mais elevadas nos investimentos realizados no
exterior); (2) o controle sobre os mercados e sobre as fontes existentes e
potenciais de matérias-primas constitui-se em questão vital para o êxito
dos monopólios no processo competitivo, e (3) além disso, a

11Esse fator já foi discutido quando realizou-se a análise das diferenças entre Vladimir Ilitch Lenine e John Atkinson Hobson
sobre as causas da exportação de capitais.
198
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

superestrutura extra-econômica, ou seja, a política e a ideologia do


imperialismo reforçam a tendência para as campanhas militares no
exterior.
Observam-se assim as diferenças fundamentais entre as análises
de Vladimir Ilitch Lenine e a de Rosa Luxemburg. Em sua concepção do
imperialismo, Lenine não diagnosticou que o modo de produção
capitalista entraria em colapso, a partir do momento em que o mundo
fosse inteiramente capitalista por meio da expansão imperialista. Pelo
contrário, ele concebia a possibilidade de um desenvolvimento
endógeno do capitalismo. Segundo Lenine, não se trata de luta entre os
Estados imperialistas pelas condições restantes da acumulação
capitalista ainda vigente nas sociedades pré-capitalistas. Em verdade,
trata-se do desenvolvimento da especulação no âmbito mundial por
meio da exploração de uma grande maioria de Estados devedores por
parte de uma minoria de Estados usurários ou Estados credores. Com o
desenvolvimento da exportação de capitais criaram-se as condições
indispensáveis para o desenvolvimento do parasitismo econômico. Ou
seja, o rentismo é a essência do desenvolvimento do capitalismo em sua
fase monopolista. Segundo Vladimir Ilitch Lenine:

É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do


capital da sua aplicação à produção, separar o capital-
dinheiro do industrial ou produtivo, separar o rentier, que vive
apenas dos rendimentos provenientes do capital - dinheiro, do
empresário e de todas as pessoas que participam diretamente
na gestão do capital. O imperialismo, ou domínio do capital
financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa
separação adquire proporções imensas. O predomínio do
capital financeiro sobre todas as demais formas do capital
implica o predomínio do rentier e da oligarquia financeira, a
situação destacada de uns quantos estados de poder
financeiro em relação a todos os restantes (LENINE, 2005, p. 59).

Para Vladimir Ilitch Lenine as contradições geradas pelo


desenvolvimento capitalista se reproduzem agora no plano do
mercado mundial capitalista por meio da acirrada disputa entre os
trustes e os cartéis internacionais pela posse de colônias. No plano
199
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

político, isso repercute no acirramento dos conflitos dos Estados


imperialistas entre si e em processos de exploração e dominação
sistemáticos dos países periféricos, através da criação de uma rede
complexa de interdependências (relações comerciais, tecnológicas,
financeiras, diplomáticas, etc.) pelo capital financeiro internacional.

2.2.3 Nikolai Ivanovitch Bukharin

Nikolai Ivanovitch Bukharin ao analisar as condições de


reprodução do capital em sua fase imperialista distingue dois processos
distintos, mas que são complementares entre si, quais sejam: (1) a
internacionalização da vida econômica; (2) o processo de
nacionalização do capital.
Karl Marx expressou a contradição principal do desenvolvimento
capitalista nos seguintes termos: a que opõe o caráter cada vez mais
socializado da produção com o caráter privado de apropriação da
riqueza material. Nikolai Bukharin aplicou essa análise ao estudo das
tendências de desenvolvimento da economia mundial. Segundo este
autor, o processo de mundialização do capital implica na expansão e
aprofundamento dos laços econômicos internacionais, no qual a
produção material reveste um caráter social em escala mundial. Ou
seja, o desenvolvimento das forças produtivas ultrapassa os limites das
fronteiras nacionais por meio do intercâmbio desenvolvido entre os
países. Dessa forma, Bukharin define a economia mundial como um
sistema articulado de relações de produção e de trocas
correspondentes, que se expande de forma extensiva ou intensiva. No
entanto, em cada economia nacional, temos a apropriação privada
do excedente econômico por parte dos grupos financeiros nacionais.
Esses grupos atuam como concorrentes no processo de partilha da
mais-valia produzida mundialmente. Nesse sentido, o desenvolvimento
da economia mundial não implica na convergência de interesses entre
200
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

eles. As condições do processo de acumulação do capital em nível


nacional (o processo de nacionalização do capital) impele cada grupo
financeiro nacional a adotar uma política agressiva em relação ao resto
do mundo, a qual acentua a rivalidade entre as burguesias imperialistas.
A intensificação da concorrência entre os grupos financeiros
nacionais no âmbito do mercado mundial capitalista é acompanhada
pela diminuição da concorrência no mercado interno. O processo de
concentração na indústria capitalista é acompanhado pela
concentração bancária no âmbito interno das economias nacionais.
Por meio do desenvolvimento desse processo ocorre em cada país uma
centralização crescente do capital nacional, por meio da eliminação
dos concorrentes mais frágeis, que se reflete na formação de um
grande truste financeiro nacional em cada país. Através da nova
política aduaneira, busca-se fortalecer a posição dos monopólios nos
mercados internacionais. Esse processo se reflete em crescente
oposição dos grupos financeiros nacionais na luta pela sobrevivência no
processo competitivo, em nível mundial, reduzindo assim a concorrência
no plano interno da economia nacional, a níveis insignificantes. Vejamos
a dinâmica desse processo:

A concentração e a centralização de capitais levaram assim à


organização dos trustes. A luta, por meio da concorrência, vai
tornar-se ainda mais áspera. Ela vai transformar-se de
concorrência entre inúmeras empresas individuais, em
concorrência encarniçada entre certas associações
capitalistas de envergadura, empenhadas numa política
complexa e, em grande parte, calculada. Mal a concorrência
cessa num ramo inteiro da produção, explode, mais violenta
ainda, a guerra entre os sindicatos industriais dos demais ramos,
visando à partilha da mais-valia: as organizações produtoras de
produtos manufaturados insurgem-se contra os sindicatos
detentores da produção de matérias-primas, e inversamente. O
processo de centralização avança passo a passo. As
organizações combinadas e os consórcios bancários agrupam
toda a produção nacional, que toma a forma de uma central
de uniões de industriais e transforma-se desse modo em truste
capitalista nacional. A concorrência atinge o máximo de seu
desenvolvimento: a concorrência dos trustes capitalistas
nacionais no mercado mundial. Nos limites das economias
nacionais, a concorrência reduz-se ao mínimo, para avultar,
201
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

fora desses limites, em proporções fantásticas, desconhecidas


em épocas históricas anteriores. Sem dúvida, a concorrência
entre as economias nacionais, isto é, entre suas classes
dominantes, já existia antes. Tinha, entretanto, caráter
inteiramente diverso, visto que era bem diferente a estrutura
interna das economias nacionais (BUKHARIN, 1984, p. 112).

Nas fases anteriores do desenvolvimento capitalista, a


concorrência se realizava, sobretudo, no plano interno das economias
nacionais e a concorrência no mercado mundial capitalista era
limitadíssima. Na época imperialista, a concorrência muda
qualitativamente. A concorrência passa a se desenvolver quase que
exclusivamente no mercado externo sendo reduzida ao mínimo nos
mercados internos das economias nacionais.
Bukharin considera a política de anexações territoriais como a
sequencia lógica e histórica do processo de centralização de capitais.
Por outro lado, esse processo é acompanhado por uma redefinição no
papel do Estado-nação. A partir do desenvolvimento do capital
monopolista, o Estado nacional adquire uma importância e uma
dimensão nunca antes vistas em épocas históricas anteriores como
instrumento dos capitais financeiros nacionais na luta travada entre eles
no mercado mundial capitalista.
Contrariamente, na análise efetuada por Lenine o acirramento da
concorrência entre os trustes no mercado mundial não exclui a
concorrência no mercado interno. Os monopólios não eliminam
completamente a concorrência, o que gera contradições e conflitos de
interesses particularmente agudos no âmbito das economias nacionais
por meio das relações entre a indústria cartelizada e a não cartelizada.
Nesse sentido, não se trata mais da concorrência entre empresas de
peso relativamente igual, mas do estrangulamento e domínio das
empresas menores pelas empresas gigantes.

3 A TEORIZAÇÃO DE JOSEPH SCHUMPETER: O IMPERIALISMO NÃO-


ECONÔMICO
202
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Joseph Alois Schumpeter produziu um modelo teórico de


interpretação do imperialismo que diverge fundamentalmente dos
teóricos do imperialismo econômico. Sua análise não concebe os
fatores econômicos como a força motriz do imperialismo moderno. Ele é
o principal representante da escola do imperialismo não-econômico12.
Esse autor pretende demonstrar que o sistema capitalista é um modo de
produção pacifista e que os métodos imperialistas são uma espécie de
corpo estranho dentro da estrutura do modo de produção capitalista e
que sobreviveu em diferentes períodos da história.
Em Imperialismo e Classes Sociais, o autor defende a ideia de que
o imperialismo estaria presente em diferentes formações econômico-
sociais. A sua força motriz não estaria nos mecanismos econômicos, mas
na predisposição por parte de um Estado beligerante de expandir-se
ilimitadamente, através da utilização de seu aparato militar, sem que
haja objetivos pré-definidos. Vejamos:

A expansão pela expansão requer sempre, entre outras coisas,


objetivos concretos para chegar à fase da ação e conseguir
manter-se, mas seu verdadeiro sentido não está nisso. De certo
modo, ela constitui o seu próprio objetivo, e a verdade é que
não tem nenhum outro objetivo adequado além da expansão
em si mesma. Vamos, portanto, chamá-la de “sem objetivo”,
na falta de melhor expressão. Segue-se que, pela mesma
razão, tal como a expansão não pode ser explicada pelo
interesse concreto, assim também ela não é jamais satisfeita
pelo atendimento de um interesse concreto, como seria o caso
se tal atendimento constituísse o seu motivo, e a luta por ele
representasse apenas um mal necessário – um contra-
argumento, de fato. Daí, a tendência dessa expansão de
transcender todos os limites tangíveis, ultrapassando-os
completamente até exaurir-se. É essa, portanto, a nossa
definição: imperialismo é a disposição sem objetivo, da parte
de um Estado, de expandir-se ilimitadamente pela força13
(SCHUMPETER, 1961, p. 26).

A sua formulação reduz o conceito de imperialismo ao aspecto


político. Ou seja, o imperialismo seria qualquer tipo de expansão

12 Nesse artigo, nos limitaremos a análise da obra de Joseph Alois Schumpeter porque seu estudo é uma crítica dirigida
diretamente a interpretação do imperialismo de Rudolf Hilferding.
13 Os grifos são nossos.
203
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

territorial pela força por parte de um Estado beligerante. Sua análise


não ressalta a natureza do Estado que estaria disposto em tal expansão,
pois ela descarta a existência de fatores objetivos para motivar a
política imperialista.
O autor busca demonstrar que o imperialismo estaria presente em
distintos modos de produção ao fazer a análise de diferentes casos
concretos na história da humanidade ao longo de seu ensaio analítico.
Ele analisa inúmeros exemplos na Antiguidade, destacando que aí se
encontram os melhores exemplos de manifestação do imperialismo. Por
outro lado, discute os exemplos da moderna monarquia absolutista,
posteriormente, demonstrando que os resquícios da estrutura de classes
do Estado Absolutista no capitalismo explicam a sobrevivência das
tendências imperialistas na moderna sociedade burguesa.
Uma das questões centrais de seu texto é explicar o aparente
paradoxo entre a persistência do imperialismo em diferentes momentos
da história e a ausência de objetivos pré-definidos, que tornem
compreensíveis os conflitos militares ao longo da história. Como explicar
o amor pela conquista e o fato de inúmeras guerras na história terem
sido travadas sem um objetivo claro e definido? Segundo o autor, isso
poderia ser explicado por uma espécie de atavismo social presente em
distintos modos de produção. Neles, a estrutura social, os hábitos
individuais psicológicos e de reação emocional das classes guerreiras,
que tem na guerra o seu principal meio de sobrevivência
permaneceriam intactos ao longo do tempo. Inclusive, após a
dissolução de seu modo de produção específico. Essa circunstância
permitiria a sua sobrevivência em formações econômico-sociais
posteriores. Por outro lado, essa continuidade do imperialismo seria
estimulada por mais dois fatores, quais sejam: 1) pelos interesses internos
das classes dominantes; 2) pelos interesses dos que têm a ganhar
individualmente com a guerra, seja economicamente ou politicamente.
204
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A consequência dessa análise é que o imperialismo não é visto


como fruto do desenvolvimento do sistema capitalista. Ele acredita que
o capitalismo é um sistema dominado pela livre competição e que a
classe burguesa seria composta de homens pacíficos preocupados
apenas com a racionalidade mercadológica de seus negócios, e que
buscam a máxima eficiência na alocação dos recursos escassos da
economia. O imperialismo não se constituiria em um estímulo oriundo de
fatores econômicos, pois se trataria de um negócio com baixa
lucratividade. O autor demonstra que com a eclosão da guerra, o
volume de capital e de trabalho pode cair a tal ponto que os
capitalistas e os trabalhadores passam a receber uma maior
remuneração, em virtude de sua escassez resultando em sua maior
participação no produto social. Contudo, essas vantagens são
eliminadas à medida que as exigências da guerra e as perdas sofridas
ultrapassam largamente qualquer benefício obtido com o conflito. Por
outro lado, a indústria armamentista e os grandes proprietários de terras
podem constituir um ponto de apoio importante das tendências
imperialistas. Schumpeter acredita que os interesses criados por esses
grupos sociais não sejam suficientes para que a sociedade capitalista
apoie as campanhas militares no exterior. Em suma, os lucros obtidos
com a guerra não se constituiriam um estímulo suficiente para que a
burguesia apoiasse os métodos imperialistas.
Nesse sentido, o capitalismo pela sua própria natureza é um
sistema econômico pacifista. Todas as mudanças introduzidas pelo
modo de produção capitalista na vida quotidiana permitiram a
redução gradual das tendências imperialistas presentes na sociedade
burguesa. Com o desenvolvimento do comércio entre os países e dos
mercados internacionais, ou seja, com a universalização das relações
de produção capitalistas, os empresários foram elevados a uma
posição de prestígio no plano socioeconômico. Seu ponto de vista
pacifista orientado para a organização racional do processo produtivo
205
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

em larga escala nas indústrias capitalistas influenciou cada vez mais o


cenário social.
Essa racionalização da vida provocada pelo desenvolvimento do
capitalismo modelou toda a sociedade e contribuiu de forma decisiva
para que as energias humanas fossem desviadas cada vez mais para o
enfrentamento da concorrência intercapitalista, que é uma condição
de sobrevivência dentro de tal sistema. No caso dos trabalhadores, suas
energias foram desviadas para o aprendizado e a qualificação na
disputa por uma vaga no mercado de trabalho. Em relação aos
empresários, sua atenção desviou-se cada vez mais para o
conhecimento, direção e supervisão da indústria capitalista visando o
enfrentamento da concorrência. Ou seja, cada vez menos as energias
foram desviadas para a guerra e parte da energia excedente foi
dedicada majoritariamente às ciências, artes, lazer, etc. Nesse sentido,
Schumpeter entende que a eliminação das tendências imperialistas
existentes na sociedade burguesa têm como pressuposto a expansão
das relações de produção capitalistas em todo o mundo. Quanto mais
capitalista for o mundo menor a possibilidade de guerras. Segundo o
autor:

Um mundo puramente capitalista não pode, portanto, oferecer


solo fértil aos impulsos imperialistas. Isso não quer dizer que ele
não possa manter, ainda, um interesse pela expansão
imperialista. Examinaremos imediatamente esse aspecto. O
problema é que os povos passam a demonstrar antes uma
tendência essencialmente antibélica. Daí devemos esperar
que surjam tendências antiimperialistas sempre que o
capitalismo domine uma economia e, através desta, o espírito
das nações modernas – e de modo mais intenso, naturalmente,
onde o próprio capitalista for mais forte, onde mais longe tiver
ido o seu avanço, encontrado a menor resistência e
principalmente onde seus tipos e daí a democracia – no
sentido “burguês” – mais se aproximam do predomínio político.
Devemos esperar, ainda, que os tipos criados pelo capitalismo
sejam na verdade os portadores dessas tendências
(SCHUMPETER, 1961, p. 91).

A confluência de alguns elementos permite demonstrar o caráter


pacífico do modo de produção capitalista, quais sejam: 1) a oposição
206
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

à guerra, aos armamentos e aos exércitos profissionais criada nos países


capitalistas desenvolvidos; 2) O surgimento de partidos políticos
pacifistas nesses países; 3) o caráter pacífico do proletariado industrial;
4) o desenvolvimento nos países capitalistas avançados de métodos
anti - guerras, como por exemplo, a diplomacia; 5) a menor incidência
de tendências imperialistas na maior economia do mundo, que é a
norte-americana, relativamente às demais economias desenvolvidas.
No caso dos trustes e dos cartéis, que são considerados como um
dos traços marcantes da fase imperialista do capital, Joseph
Schumpeter diferentemente dos autores marxistas não acredita que o
monopólio derive da própria concorrência capitalista. Segundo ele, a
monopolização da indústria capitalista não seria resultado dos
mecanismos econômicos, mas pelo contrário, seria estimulada por
fatores extra-econômicos, tais como: tarifas protecionistas, subsídios,
etc. Esses elementos não fazem parte da estrutura capitalista. O jogo
livre das forças de mercado, sem nenhum tipo de intervenção de
qualquer espécie, significaria menores estímulos para as tendências
imperialistas remanescentes na sociedade capitalista.
A persistência das tendências imperialistas na sociedade
capitalista advém do fato de que as classes aristocráticas, que são as
classes sobreviventes da moderna monarquia absolutista controlam o
aparelho de Estado, constituindo-se numa espécie de sobrevivência ou
reminiscência de formações econômicas pré-capitalistas. O
protecionismo e os monopólios resultam dos interesses financeiros da
aristocracia. Eles são entendidos como corpos estranhos dentro da
estrutura do capitalismo. Ou seja, a teoria da concentração de Marx
não tem validade prática. Schumpeter conclui:

O monopólio exportador não cresce segundo as leis inerentes


ao desenvolvimento capitalista. O caráter do capitalismo leva
à produção em grande escala, mas com poucas exceções a
produção em grande não leva à forma de ilimitada
concentração que deixa apenas uma ou umas poucas firmas
em cada indústria. Pelo contrário, qualquer fábrica encontra
207
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

limite ao seu crescimento numa determinada situação e o


crescimento de combinações que teriam sentido num sistema
de comércio livre encontra limites de eficiência orgânica. Além
desses limites não há tendência para combinação inerente ao
sistema de competição. Em particular, o crescimento dos
trustes e cartéis – fenômeno bastante diferente da tendência à
produção em grande escala, com a qual frequentemente é
confundido – jamais poderá ser explicado pelo automatismo
do sistema de concorrência. Isso se segue do fato mesmo de
que os trustes e cartéis só podem atingir a seu objetivo principal
– a política monopolista – se respaldados por tarifas
protecionistas, sem as quais perderiam seu sentido essencial. As
tarifas protecionistas, porém, não derivam automaticamente
de um regime de concorrência. São frutos de uma ação
política – um tipo de ação que de forma alguma reflete os
interesses objetivos de todos os que nela se envolvem e que,
pelo contrário, torna-se impossível tão logo a maioria daqueles
cujo consentimento é necessário compreendem quais os seus
verdadeiros interesses. Até certo ponto isso é evidente, e até
outro ponto poderemos mostrar que os interesses da minoria,
apropriadamente expressos no apoio a uma tarifa
protecionista, não são provocados pelo capitalismo como tal.
Segue-se daí que é uma falácia básica considerar o
imperialismo como uma fase necessária do capitalismo, ou
mesmo falar da transformação do capitalismo em imperialismo
(SCHUMPETER, 1961, p. 114).

Em relação à análise proposta por John Atkinson Hobson a


interpretação schumpteriana também apresenta grandes diferenças.
Joseph Schumpeter entende que o imperialismo não é um desajuste
provocado na economia capitalista nem uma enfermidade passível de
correções por meio de intervenções no sistema econômico.
Diferentemente de Hobson ele acredita que o imperialismo não resulta
de distorções provocadas no sistema econômico, mas trata-se de um
atavismo social, ou seja, é uma herança de formações econômicas pré-
capitalistas. Ele aponta como solução para as guerras, a expansão e o
aprofundamento das relações de produção capitalistas em todo o
planeta, como foi visto anteriormente. Em contrapartida, na
investigação desenvolvida por Hobson o imperialismo é fruto de
desajustes provocados na economia capitalista, mas que podem ser
corrigidos mediante a adoção de reformas sociais. Em suma, a
diferença em suas análises decorre da importância relativa que os dois
autores atribuem aos fatores políticos e econômicos.
208
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Schumpeter desconsidera completamente os fatores econômicos


na explicação do imperialismo moderno, inclusive, argumentando sobre
a impossibilidade do militarismo e das guerras serem determinados pela
evolução do capitalismo. Ele é provocado artificialmente pela
existência de classes sociais não capitalistas que controlam o aparelho
de Estado. Em sua opinião as classes sociais típicas da sociedade
capitalista, os trabalhadores assalariados e os empresários capitalistas,
não têm interesse na expansão colonial e são ontologicamente
pacifistas. Por outro lado, em Hobson o imperialismo é provocado pelo
surgimento de grupos financeiros e industriais que controlam a vida
política do país, mas essas classes pertencem à estrutura social da
sociedade burguesa exercendo o poder político de forma despótica
contrariando os interesses do conjunto da população nos países
metropolitanos. Ou seja, não são classes oriundas de modos de
produção pré-capitalistas.
No entanto, os dois autores apresentam um ponto de
convergência em suas concepções. Eles desejam a continuidade do
modo de produção capitalista e acreditam que este sistema
socioeconômico pode se desenvolver em condições normais sem gerar
graves conflitos.

CONCLUSÕES

As teorias do imperialismo compreendem um esforço sistemático


de análise do processo da globalização do capital, tanto do ponto de
vista produtivo quanto do ponto de vista financeiro. Elas são uma
continuação direta das leis de movimento e de reprodução do capital
desenvolvidas por Karl Marx em O Capital. O seu campo de
investigação é o mercado mundial capitalista, em que os monopólios
são os agentes de propagação das relações de produção capitalistas
em todo o mundo, sob a hegemonia do capital financeiro. Sua base de
209
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

apoio são os Estados nacionais, os quais constituem a estrutura mais


abrangente de comando da economia capitalista. Por meio dela, é
possível analisar o ciclo do capital industrial, através da atuação dos
cartéis e trustes nos diversos segmentos do mercado mundial. Dessa
forma, é possível compreender a natureza das crises econômicas
recorrentes do capitalismo e suas repercussões nos diferentes países e
regiões do planeta. Além disso, investigar a forma como cada país se
insere no sistema internacional da divisão do trabalho e os impactos
disso na estrutura econômica, política e social de cada país
considerado individualmente (tanto nos países imperialistas quanto nos
países periféricos).
Do exposto acima, observa-se que a teoria marxista do
imperialismo oferece múltiplas possibilidades e campos de investigação.
Entre os quais, podemos destacar: (a) a análise do imperialismo como
saída para as crises capitalistas; (b) a centralidade conferida aos
Estados – nações no processo de acumulação capitalista; (c) o estudo
das relações desenvolvidas entre os países, a partir da lei do
desenvolvimento desigual e combinado, e etc.
Em suma, as teses marxistas do imperialismo conseguem captar a
complexidade das relações econômicas e políticas internacionais por
meio da unidade dialética imprescindível entre a lógica política e
territorial dos Estados e o processo de acumulação de capitais. Em
qualquer época histórica, na qual os monopólios e o capital financeiro
constituam os elementos centrais da dinâmica capitalista, o estudo do
imperialismo é de fundamental importância para o esclarecimento das
leis que regem o funcionamento do modo de produção capitalista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nacional – Casa da Moeda, 1995. v. 28.
210
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Abril Cultural, 1984. Coleção Os Economistas.

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______. O Capital: crítica da economia política. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural,
1985. v. 2, tomo 2, livro primeiro. Coleção Os Economistas.

______. O Capital: crítica da economia política. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural,
1985. v. 3, livro segundo. Coleção Os Economistas.

______. O Capital: crítica da economia política. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural,
1986. v. 4, tomo 1, livro terceiro. Coleção Os Economistas.

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SCHUMPETER, Joseph Alois.A. Imperialismo e classes sociais. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1961. Biblioteca de Ciências Sociais.
211
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Breve histórico das tabelas de insumo-produto no


Brasil1
Rodrigo Emmanuel Santana Borges2
Tiago Camarinha Lopes3

RESUMO

O presente artigo busca levantar as origens da construção sistemática de


matrizes de insumo-produto no Brasil, retomando antecedentes que culminam
no início da produção pelo IBGE a partir 1975 da série para o país. É
argumentado que a elaboração das matrizes brasileiras não surge
repentinamente em um ponto do tempo, mas sim que decorre de um
processo histórico longo de acumulação e organização dos dados
econômicos brasileiros que começou durante os momentos que antecedem a
implementação do Plano de Metas na década de 1950, quando as técnicas
de análise de conjuntura econômica, de projeção e de reconhecimento de
pontos de estrangulamento entraram no país.

Palavras-chave: insumo-produto, contas nacionais, história econômica


brasileira

ABSTRACT

The paper aims at revealing the origins of the systematic construction of the
input-output tables for the Brazilian economy by recovering the historical
development that culminated in the IBGE tables from 1975 onwards. It is argued
that the Brazilian matrices do not appear suddenly at some point in time, but
that they are born gradually in a long historical process of data accumulation
and organization which started during the preparatory moments for the Plano
de Metas in the 1950s, when the techniques for economic analysis and for
identifying bottlenecks in the industry entered in the country.

Keywords: input-output, national accounts, Brazilian economic history

11 Texto apresentado em 10 de maio de 2014. Aprovado em 06 de setembro de 2014.


22 Doutorando em Economia pela Universidad Complutense de Madrid (UCM) .Email: rodrigoesborges@gmail.com
33 Mestre e Doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor da Universidade Federal de

Goiás, GO (UFG)
212
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

1 Introdução

A economia do insumo-produto é vista como um importante


ramo de análise das ciências econômicas, tanto do ponto de vista do
desenvolvimento teórico como da perspectiva prática do
planejamento. Embora seus temas principais se concentrem em
aspectos técnicos sobre como construir e utilizar as tabelas de
interrelação da produção para elaboração de políticas econômicas,
em alguns anos serão comemorados 100 anos da modalidade de
análise econômica, fazendo com que surjam os primeiros esforços de
organizar a história da confecção das matrizes. Este trabalho tem o
objetivo de fazer uma introdução a esse tipo de estudo focando no
histórico de elaboração das tabelas para a economia do Brasil.
A construção das matrizes insumo-produto da economia brasileira
é atualmente contada com base nos procedimentos oficiais de
organização das tabelas. Como Carvalheiro (1998) descreve, as
primeiras construções das matrizes foram elaboradas pelo IBGE desde
1970, sendo que nos anos 1990 elas passaram a seguir os critérios
recomendados pelo SNA-93.
Sem desconsiderar os arquivos que designam oficialmente os
dados da contabilidade brasileira como tabelas de insumo-produto, é
importante ressaltar que antes da consolidação da montagem das
primeiras matrizes pelo IBGE houve um período que foi progressivamente
possibilitando a construção de uma matriz relativamente completa e
detalhada. Estes momentos que antecederam as matrizes oficiais
correspondem ao estágio em que os dados da economia nacional são
crescentemente acumulados e organizados, abrindo a possibilidade de
um mapeamento acurado das interrelações entre os diferentes setores.
Tecnicamente, como bem lembra Rossetti (1976), existem alguns
requisitos para a programação econômica coerente e real, sendo que
o primeiro deles é disponibilidade de dados estatísticos. Assim, da
mesma maneira, para a elaboração de um quadro adequado de
213
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

entradas e saídas é necessário que uma certa quantidade de


informações empíricas sobre a estrutura econômica existam. Por essa
razão, o histórico de elaboração das matrizes insumo-produto tem
necessariamente uma pré-história em que se coletam e organizam uma
enorme quantidade de dados estatísticos sobre a economia em
questão.
O advento da computação ao longo do século XX causou uma
mudança qualitativa no processo de construção das matrizes devido
ao enorme avanço de processamento de dados quantitativos. Para
distinguir estas duas fases da história das matrizes, é preciso separar a
noção de “construção de tabelas insumo-produto” do conceito de
“construção sistemática de tabelas insumo-produto”. A primeira não
tem uma metodologia clara nem um padrão a ser seguido, sendo
historicamente o período inicial de estimação das tabelas,
razoavelmente incompletas e sem estar dentro de uma série histórica.
Exemplos desse tipo são as tabelas originais de Leontief para os Estados
Unidos e o quadro de setores e pontos de estrangulamento no caso do
mapeamento da economia brasileira nos anos 1940 e 1950. Já a
construção sistemática das tabelas permite a atualização constante e
crescente incorporação de detalhes dos dados nas tabelas, além de
seguir um padrão claro e de criar assim uma série temporal de tabelas.
Em termos práticos, é possível considerar que a sistematização de
elaboração de tabelas começou em 1968 quando o modelo de contas
nacionais da ONU unificou oficialmente a estimação dos dados
agregados por instituições (originada com forte influência de Keynes)
com a determinação setorial, ou desagregada, das interrelaçoes
econômicas na esfera da produção.
A passagem de uma fase para outra é, portanto, uma
transformação qualitativa que se assenta no aumento quantitativo de
dados estatísticos disponíveis. Cada país atravessou esse momento de
maneira particular. Contudo, todos têm em comum o fato de que, em
214
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

algum ponto de sua história, acumularam e organizaram informações


referentes à economia nacional em uma escala que nunca havia sido
feita. Nos EUA e na Europa o contexto do fim do laissez-faire, do uso da
programação durante a guerra, da ascensão do keynesianismo e da
existência da experiência de economias centralmente planificadas
formaram o quadro preparatório para a elaboração sistemática das
tabelas de insumo-produto.
No Brasil, os instantes criadores das condições para a estimação
de uma tabela input-output também podem ser postos no âmbito das
transformações que se operaram com o fim do liberalismo clássico. Em
particular, durante os anos 1940 e 1950 foram feitos estudos
abrangentes sobre a economia nacional que vão permitir o primeiro
mapeamento amplo da estrutura produtiva do Brasil. Como se sabe,
com base nestes estudos será formulado o Plano de Metas do governo
Juscelino Kubitschek, a primeira experiência brasileira de programação
econômica geral que marca o início de uma nova fase da história de
política econômica do país.
O argumento central do artigo é que o histórico das matrizes de
insumo-produto no Brasil não começa com o IBGE nos anos 1970, mas
tem raízes profundas que remontam aos estudos iniciais de conjuntura
das décadas de 1940 e 1950 realizados em conjunto com técnicos e
economistas norte-americanos. O cerne da idéia é a de que a
apresentação da história das tabelas brasileiras não pode se restringir a
um catálogo de datas que periodizam as publicações oficiais, mas
deve invocar o contexto em que tais resultados aparecem e de onde
tais estudos surgiram. Afinal, a construção das tabelas de insumo-
produto é um esforço coletivo que pode ser traçado, se não além, pelo
menos até os fisiocratas como bem lembra Leontief ao declarar que os
estudos estatísticos apresentados em seu artigo pioneiro da economia
do insumo-produto “podem ser mais bem definidos como uma tentativa
de construir, com base no material estatístico disponível, um Tableau
215
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Economique dos Estados Unidos para o ano de 1919” (Leontief (1936), p.


105).4

2 Origem e consolidação internacional das Matrizes de Insumo-Produto

O histórico da análise de insumo-produto é notadamente


atribuído ao desenvolvimento empírico-teórico desenvolvido e aplicado
por Wassily Leontief, economista russo posteriormente radicado nos
Estados Unidos. A história de construção das matrizes confunde-se em
sua origem com a trajetória intelectual de Leontief e ajuda a
compreender de que forma seu nome se popularizou mundialmente,
conforme sua metodologia de organização dos dados sobre os fluxos
entre os setores se espalhou pelo mundo.
O primeiro artigo de Leontief em que desenvolve sua teoria com
estimações empíricas para os Estados Unidos, intitulado “Quantitative
Input and Output Relations in the Economic Systems of the United States”
foi publicado em 1936, mesmo ano da Teoria Geral de John Maynard
Keynes. Marco do início histórico da disciplina de análise de insumo-
produto, este trabalho baseava-se em dados de 1919, ano do último
censo disponível quando do começo do projeto em 1932 que culminou
no escrito em questão.
Assumidamente, o economista se apoiou em Quesnay e na
representação formal de Walras5. A gestação de sua análise começa,
entretanto, reconhecidamente nos anos 1920 de acordo com Kurz e
Salvadori (2000). Sua vida e estudo na União Soviética e, posteriormente,

4 No original: “The statistical study presented in the following pages may be best defined as an attempt to construct, on the basis
of available statistical materials, a Tableau Economique of the United States for the year 1919” (Leontief (1936), p.105). Todas as
citações em português são traduções nossas.
5 Para uma interessante análise de como apenas formalmente a teoria desenvolvida por Leontief era similar à de Walras e ao

esquema neoclássico, tendo conteúdo muito mais próximo aos clássicos, ver Kurz e Salvadori (2000).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

em Berlim, orientado por Bortkiewicz e Werner Sombart, marcaram o


início de sua vida intelectual.6
Já em 1925, pouco antes de deixar a URSS, e logo após se formar
economista pela Universidade de Leningrado, escreveu um artigo crítico
sobre o Tableau Economique publicado pelo funcionário da Oficina
Central de Estatística, Popov em 1923/24.7 Em 1928, publicava parte de
sua tese escrita em Berlim num trabalho com o título A Economia como
processo circular.8 Assim, seu interesse e estudo sobre a economia
comprendida através de um esquema fisiocrático são anteriores à sua
chegada aos EUA, e relacionam-se aos seus primeiros passos como
economista ainda sob o Estado soviético9.
As outras motivações iminentes no desenvolvimento de seu
ferramental foram, como para Keynes, a Crise de 1929 e as
transformações decorrentes da Primeira Guerra Mundial. Estabelecido
desde 1932 em Harvard, chegou ao país quando se debelava a
Grande Depressão. Porém, é do convite e trabalho com o “Bureau of
Labour Statistics” (BLS), a pedido do governo norte-americano, que seu
trabalho se torna mais diretamente associado à incorporação do setor
público e à política econômica segundo Kohli (2001). Em abril de 1941,
aquele departamento iniciou um estudo sobre efeitos da
desmobilização da guerra (em que os EUA em seguida entrariam
oficialmente). As perguntas voltavam-se aos efeitos sobre emprego e

6 Ladislaus von Bortkiewicz trabalhou com estatística, economia matemática e foi um crítico-interlocutor de Marx. Sua proposta
de solução para o famoso problema da transformação dos valores em preços de produção teve enorme repercussão e inaugurou
o debate sobre o problema da transformação tradicional. Sobre isso ver Camarinha Lopes (2012). Werner Sombart foi um dos
principais representantes da escola historicista na Alemanha da virada para o século XX que teve influência sobre a formação do
ramo de histórica econômica fora da tradição marxista.
7 Ver Leontief e Spulber ([1923/24] 1964).
8 Ver Leontief (1928).
9 Sua última entrevista com sua esposa Estelle antes de morrer confirma a influência da economia política clássica sobre seu

pensamento. Ao ser perguntado qual autor lembrava mais de seu período de intensa leitura na Universidade de São Petesburgo,
respondeu: “Eu não poderia dizer. Minha memória é muito ruim. Mas, é claro, Karl Marx. Penso que ele é possivelmente o melhor
economista clássico. Ele realmente entendia como o sistema capitalista funciona (...). Alguém que vem totalmente de fora do
planeta aprenderia algo sobre a presente economia capitalista de mercado de Marx por que ele é tão amplo. O Capital é muito
melhor que livros-texto típicos. É realmente rico.” (DeBresson, 1997, apud Leontief, et al. (2004)). O ensino de economia política
na União Soviética da época de Leontief ainda não era completamente desenvolvido, mas a direção para um programa de teoria
econômica marxista já estava sendo posto em marcha. A primeira edição do Manual de Economia Política oficial da URSS foi
publicada em 1954 em Moscou por um grupo de economistas sob direção do Partido Comunista. Ver Academia de Ciências da
URSS ([1954] 1961).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

nível de renda da queda de venda na indústria armamentícia, e


miravam o governo como categoria analítica separada.
Ao mesmo tempo, das comparações iniciais de suas categorias
com a renda nacional, por impulso do BLS procurou-se fazer a
conciliação das tabelas de Leontief com as Contas de Renda Nacional
(Kohli (2001), p. 11), trazendo modificações entre as quais a separação
de transações de capital (depreciação, investimento e variação de
estoques), antes incluídas junto às demais transações intersetoriais. O
trabalho foi ampliado e atualizado para tabelas do ano de 1947 com a
participação patrocinadora desde 1948 da Força Aérea (Programa
SCOOP) e Pentágono, impulsionados após a eclosão da Guerra da
Coréia em 1950.
Por fim, a partir desse trabalho, em seu livro de 1951, o autor
aprofunda um modelo aberto, com os componentes da demanda final
tratados como exógenos, em contraposição ao “modelo fechado”
inicialmente desenvolvido nos anos 1930. A precisão e desagregação
foram ampliadas, bem como a representação do comércio exterior
incluída como componente da demanda final.10 Desde 1953, quando
Eisenhower assume a presidência dos Estados Unidos pelo partido
republicano, até aproximadamente sua saída do poder, em 1961, foi
cortado o suporte aos trabalhos de insumo-produto do BLS. Por quê?
Segundo Polenske, este tipo de atividade “era considerada muito
proximamente relacionada ao planejamento nos países comunistas”
(Polenske (1999)), tradução nossa).
Assim, constata-se um salto de 1947 até as próximas tabelas,
recomeçados os trabalhos no instituto somente no começo dos anos
1960 pelo BEA (Bureau of Economic Analysis of the US Department of
Commerce). Estas matrizes se referiam aos dados dos anos de 1958 e

10 Foram separadas importações competitivas de não competitivas, e aquelas subtraídas da demanda final. A partir desta
separação teórica e de medição, Leontief estudou posteriormente nos anos 1950 a composição fatorial do comércio exterior
estadounidense, concluindo no famoso paradoxo com seu nome. O paradoxo de Leontief é a constatação de que economias
intensivas em capital exportam mercadorias intensas em mão de obra e importam mercadorias intensas em capital. O estudo
original que testava o teorema Heckscher-Ohlin é Leontief (1953).
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

1963. Durante esse período, houve apenas recomendações de um


estudo feito pelo NBER (National Bureau on Economic Research) a
pedido do Escritório do Orçamento do país sobre as contas nacionais,
sobre a utilidade dos trabalhos sobre insumo-produto para melhorar a
qualidade das estimativas das contas nacionais.
Esse trabalho empírico e de confrontação de várias estimativas
díspares de órgãos governamentais antes dissociadas cumpria, de fato,
um papel de verificação de consistência, além de apontar para vários
elementos para os quais havia falta de informação.11 A partir de 1967, o
governo dos Estados Unidos passou a construir quinquenalmente
matrizes de insumo-produto, integradas a seu sistema de contas
nacionais já desde as estimativas de 1947, e sempre tomando como
base fundamental os censos econômicos elaborados no país.
A partir do mesmo período de finais dos anos 1930, um esforço de
melhorar e detalhar estimativas de Contabilidade Nacional ocorrera
sob a liderança de Keynes. Com sugestões e incentivos a James Meade
e Richard Stone, quando todos trabalharam para o Governo Britânico
no Conselho de Guerra, o trio conseguiu montar a primeira versão de
um Sistema de Contas Nacionais moderno que teria repercussão direta
na formação do sistema de Contabilidade Social contemporâneo. Sua
simplicidade por maior agregação baseada em setores institucionais e
capacidade de obtenção mais facilmente de dados atualizados foram
pontos fortes desta abordagem.
Em 1945, após o término da guerra, Stone foi convidado pelo
Diretor de Inteligência da Liga das Nações para fazer um relatório sobre
problemas de definição e medida da renda nacional, para o comitê de
experts em Estatística da Instituição. Seu relatório foi eventualmente
publicado pelas Nações Unidas em Genebra em 1947 sob o título

11 Como a falta de índices de preço do produtor detalhados, que permitiam comparação temporal, além de posteriormente
cálculos de produtividade detalhada.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Mensuração da Renda Nacional e a Construção de Contas Sociais,


com meu memorando como apêndice.12
De acordo com Stahmer (2004), o posterior trabalho de Richard
Stone junto a OCDE e a ONU culminou em 1952 no primeiro Manual de
Sistema de Contas Nacionais da ONU. Tão cedo como em 1954,
registrou-se o conhecimento e envolvimento de Stone com análise de
insumo-produto. O mesmo participou da segunda conferência
internacional da nova disciplina, promovida por Leontief, e apresentou
o artigo Input-Output and the Social Accounts, em que acenava a
possibilidade e acerto de conciliar as duas abordagens. Ademais,
defendeu uma ampliação da teoria sobre matrizes de contabilidade
social.
O incremento de estatísticos treinados por organismos
internacionais, o avanço das metodologias de estimação das Contas
Nacionais e da análise de insumo-produto geraram um debate que foi
alimentado pela revista Scientific American segundo Polenske (2004).
Eram publicados materiais com dados atualizados para os EUA assim
como artigos de Leontief e seus novos seguidores. Esse acúmulo de
informações e aprofundamento do debate possibilitou, na revisão de
1968 do Sistema de Contas Nacionais da ONU, a compatibilização das
abordagens das contas nacionais e das matrizes. Assim, as tabelas de
insumo-produto foram incluídas ao sistema de contas nacionais como
recomendação a todos os países membro no final dos anos 1960.
A prática metodológica unia mais do que duas modalidades de
organização de dados empíricos. As tabelas de insumo-produto de
Leontief e o sistema de contas nascido da contribuição de Keynes
tinham uma contrapartida no âmbito da teoria econômica. De acordo
com a perspectiva de Nunes (1998), as abordagens distintas na
aparência, quais sejam, o modelo de equilíbrio de um sistema de
reprodução, e o esquema keynesiano sem equilíbrio pré-determinado,

12 Ver Stone (1984).


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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

eram em nível abstrato a mesma coisa, já que o sistema de Leontief se


auto-proclamava aplicação empírica de equilíbrio geral, algo
fortemente ligado ao sistema neoclássico (NUNES, 1998). Mas, como
apontado anteriormente, a ênfase pragmática e a abordagem
empírica sobre preços afastava o esquema de Leontief da corrente
teórica de equilíbrio automático. Seu uso, claramente, apoiava a mão
visível do Estado em esforços de planejamento econômico e não tinha
o objetivo prático de criar modelos teóricos que convergem para um
estado qualquer. Esta é a razão pela qual é importante vincular Leontief
com a tradição da Economia Política que existia antes do predomínio
da teoria marginalista do valor.

3 O primeiro mapeamento da economia brasileira

Delineado o processo de gestação e evolução da abordagem


de insumo-produto e sua inserção no coetâneo Sistema de Contas
Nacionais da ONU, a próxima tarefa é traçar a origem do acúmulo
estatístico que culminou, primeiro isoladamente e, depois,
sistematicamente, na elaboração de matrizes de insumo-produto para
a economia brasileira.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão
responsável pela publicação das matrizes brasileiras hoje, foi criado a
partir da extinção do antigo Departamento Nacional de Estatística,
originariamente Diretoria Geral de Estatística criado em 1871 (IBGE,
2012). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística foi fruto da junção
do então recém-criado INE (Instituto Nacional de Estatística), em 1934,
com o Conselho Brasileiro de Geografia, instituído em 1935.
Anteriormente à criação do instituto, mesmo constando em lei a
obrigação de elaborarem-se censos decenais, não se fez para 1910
nem 1930. As primeiras estimativas econômicas além da agropecuária
localizam-se em levantamentos da produção industrial em 1907, e,
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

isoladamente em 1920, quando ocorreu o primeiro censo econômico


do Brasil.
A partir de 1940 há um avanço significativo na elaboração e
acúmulo de estatísticas econômicas, com censos decenais
(posteriormente quinquenais) e com a ampliação inicial de 8-12 setores
industriais para 20 setores. Esses censos são base fundamental para
primeiras estimativas da estrutura produtiva nacional e foram
potencializados a partir das missões americanas ao Brasil no contexto
da industrialização que se impunha como lógica derivada da formação
do império estadunidense.
Como argumentado, a construção das tabelas de insumo-
produto é o resultado de um processo histórico de assimilação e
organização dos dados econômicos revelados pelo mercado. Ainda
que o procedimento de elaboração de quadros que evidenciam a
interação entre os diferentes setores já tivesse sido apresentado por
Leontief, a sistematização dessa elaboração e seu uso prático para o
planejamento econômico só ocorreu posteriormente. No caso do Brasil,
o momento fundante que irá permitir essa acumulação de dados
necessários para a confecção das contas nacionais e, posteriormente,
das matrizes de uso e produção são os anos que antecedem o Plano
de Metas.
Como parte das mudanças que se operam durante os anos 1930
no sistema capitalista, a economia brasileira irá se locomover de sua
posição de exportadora de produtos primários para uma situação de
industrialização, mesmo que este aspecto colonial não desapareça por
completo nesse processo de modernização. Característico da
formação de uma economia brasileira com forças produtivas
especificamente capitalistas, ou seja, com a grande indústria, é o fato
de que o Estado nacional é um ator ativo do processo de consolidação
do trabalho comandado pelo maquinário. É neste período que se inicia
a formação daquilo que se chama ideologia desenvolvimentista, em
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que ações políticas específicas são tomadas para que o Brasil atinja
crescimento e desenvolvimento por via principalmente da
industrialização.13 Com isso, fica claro que a realização dessa meta, no
contexto econômico global de fim de liberalismo clássico, só podia
ocorrer com o planejamento econômico.
Mas como efetuar o planejamento em um ambiente em que não
existem dados acurados sobre a economia? Esse é o primeiro problema
que foi enfrentado com uma série de missões conjuntas com os norte-
americanos visando esboçar um quadro razoável sobre a situação
brasileira. Especificamente, a partir de 1939 houve um levantamento de
informações e elaboração de relatórios que nunca havia sido feito e
que permitiu a primeira estimação do estado geral de desenvolvimento
da economia nacional. Esse processo culminou no conjunto de dados
utilizados para a formulação do Plano de Metas pelo Grupo Misto
CEPAL-BNDE, que consistia basicamente no apontamento daqueles
setores-chave que deveriam receber incentivos pontuais para que o
sistema total pudesse se expandir sem interrupções.
Como se pode facilmente depreender, a técnica de extração,
acumulação e organização dos dados econômicos nacionais não era
conhecida no Brasil, visto que a política econômica se restringia até o
fim da Primeira República em 1930 às disputas em torno do câmbio e
política tributária com foco restrito. No entanto, devido às
transformações profundas da crise de 1929, os países centrais começam
a desenvolver procedimentos que levaram à coordenação da
economia nacional enquanto unidade. Em termos teóricos, esse ímpeto
pela necessidade de controlar e contornar os problemas dos anos 1930
gerou a abordagem macroeconômica de Keynes, que se popularizou
rapidamente no ocidente e que fundamentou a organização das
contas nacionais, como descrevem Nunes (1998) e Marinho Mathias
(2011).

13 Sobre o ideário desenvolvimentista, ver Bielschowsky (1988) e (2000).


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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A metodologia de Leontief, como apresentada historicamente na


primeira sessão deste artigo, apesar de ter sido desenvolvida
concomitantemente ao arcabouço keynesiano, foi incorporada mais
tarde à sistemática compilação dos dados econômicos nacionais. A
explicação para este atraso parece ser questões tanto de ordem
técnica e teórica quanto de difusão prática entre agentes do governo.
A união das contas nacionais no formato sugerido por Keynes com as
matrizes de Leontief, que ocorre em 1968 com o estabelecimento do
padrão das Contas Nacionais determinado pela ONU indica que, nos
primeiros momentos, o uso das contas era vantajosa sobre a construção
das tabelas. Isso foi expresso, por exemplo por Nicholas Kaldor ao
afirmar que “(…) é muito melhor ter informações atuais, ainda que
apenas aproximativas, do que informações exatas e finais em um ponto
do tempo quando estas informações são apenas úteis do ponto de
vista da história” (Kaldor (1941).
Ou seja, dado o problema concreto de determinação de
políticas econômicas que dessem conta dos problemas originados do
fim da era liberal clássica e possibilitassem a direção do futuro, era
melhor ter informações atualizadas, ainda que imprecisas ou muito
agregadas, como são as contas nacionais, do que ter um quadro
detalhado e exato das condições econômicas que refletem um
momento passado, como é o caso das tabelas de Leontief.
Para entender de que maneira o Brasil passa, também, a produzir,
estimar e arquivar seus dados econômicos nesse novo quadro teórico e
se dirige à construção das tabelas de modo sistemático, é necessário
ter em mente o período tais técnicas foram trazidas ao país. De acordo
com a historiografia do planejamento econômico no país, trata-se dos
anos antecedentes ao Programa de Metas, que vão de 1939 a 1953.
Conforme os Estados Unidos passavam a ocupar a centralidade
dinâmica do sistema capitalista no lugar da Grã-Bretanha, o continente
americano como um todo passou a estar sob influência geopolítica
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

direta da nova potência. Um dos eventos iniciais que explicita esse


movimento foi o convite feito pelo governo norte americano ao
presidente Vargas para que uma comitiva fosse aos Estados Unidos
discutir temas como defesa nacional, relações comerciais, dívidas e
investimentos no Brasil. Essa missão foi realizada sob a direção de
Oswaldo Aranha e ficou por isso conhecida como Missão Aranha.
Concretamente, ficou decidido que o Eximbank daria um empréstimo
ao Brasil, como apresenta Abreu (1999). A importância desta missão
não foi tanto a transmissão e ensino das técnicas de extração e
acumulação dos dados empíricos sobre a economia, mas a
aproximação política do Brasil com os Estados Unidos, cientes da
necessidade de afastar o país da influência alemã.
O segundo instante desse período que resultará no primeiro
mapeamento da economia brasileira é a vinda de um grupo de
engenheiros e técnicos sob a direção de Edwadr S. Taub em 1942. Essa
missão era na verdade o serviço contratado pelo governo brasileiro
para que se fizesse um plano de investimentos no país pelos próximos
dez anos, como destaca Daland (1969). É interessante notar que este
grupo não aparece na maior parte das análises históricas do período,
ainda que Daland (1969) considere que este é o momento de início do
planejamento econômico no Brasil.
Um outro episódio determinante desse processo de
sistematização dos dados econômicos que permitiriam inferir a situação
geral da estrutura produtiva do país foi a Missão Cooke de 1942-194314.
Dessa vez, a nova vinda de técnicos norte-americanos ao Brasil irá gerar
um relatório sobre os setores existentes e dará sugestões de
investimentos, ainda que não sejam apontados custos acurados. A
cooperação com técnicos brasileiros é muito mais evidente nesta
missão do que na anterior, visto que os trabalhos foram feitos em

14 Por uma coincidência interessante, Corwin Edwards, responsável econômico da missão Cooke, também trabalhou como
consultor do NBER (National Bureau on Economic Research), pelo qual Leontief esteve em 1931. Seria interessante trabalho
historiográfico adicional para verificar se isso se traduziu em algum tipo de influência sobre o primeiro da elaboração do autor
russo.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

conjunto com vários pesquisadores que na sequência fariam parte da


fundação da Fundação Getúlio Vargas (FGV)15. Oliveira (2011)
argumenta que a Missão Cooke também estava baseada na política
de consolidação do bloco americano sob comando dos Estados Unidos
e que ela trabalhou em parceria com a Coordenação da Mobilização
Econômica, órgão criado em 1942 e que agia como um
“superministério” que objetivava colocar a economia brasileira em
acordo com o esforço da Segunda Guerra, segundo Ianni (1977 e 1986).
Sobre a contribuição da Missão Cooke para a vinda das técnicas
de captura dos dados estatísticos sobre a economia, Velloso (2010)
defende ainda que ela teve influência destacada na análise da
situação estrutural da produção do Brasil. Um dos principais defensores
do planejamento econômico no Brasil e pioneiro das idéias
desenvolvimentistas, o industrial Roberto Simonsen, utilizou o relatório da
Missão Cooke como base empírica de seu argumento de que o Brasil
tinha potencial de se tornar uma nação industrializada e desenvolvida.
Por outro lado, Oliveira (2010) enfatiza o caráter geopolítico da missão,
argumentando que as informações e dados já haviam sido coletados
como consequência da formação do Estado Novo com Vargas.
Uma outra missão que participa da transmissão das técnicas de
planejamento dos Estados Unidos para o Brasil e que desencadeia
finalmente o processo que internaliza as ferramentas no país foi a Missão
Abbink de 1948. É a partir dos trabalhos deste grupo de norte
americanos e brasileiros que seriam criados a Comissão Mista Brasil-EUA
para o Desenvolvimento Econômico (CMBEU) e posteriormente o BNDE
em 1952. Na sequência, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico fez um acordo com a ONU, criada havia poucos anos, para
que a CEPAL, órgão específico desta organização internacional para
assuntos econômicos da América Latina e Caribe, trabalhasse em
conjunto com seus economistas. Daí surge o Grupo Misto CEPAL-BNDE

15 De acordo com Olveira(2011) um dos fatores que conduziu à fundação da FGV em fins de 1944 foram as próprias missões.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que confeciona o trabalho base para a formulação do Plano de Metas


do governo Juscelino Kubitschek.
Mesmo que este trabalho sobre os setores da economia brasileira
não seja considerado a elaboração de uma matriz insumo-produto, é
possível vislumbrar que se aproxima das mesmas informações que
seriam fornecidas por meio da construção das tabelas, nominalmente,
as condições de conexão entre os setores e a identificação dos pontos
cruciais dos quais dependem a maior parte das unidades produtivas.
Para dar suporte a nossa hipótese, então, é preciso verificar em que
medida as contas nacionais brasileiras remontam a esse procedimento
de levantamento de dados realizado nos momentos anteriores ao Plano
de Metas. Como as matrizes contemporâneas do IBGE foram formadas
em conjunto com a consolidação dos padrões internacionais das
contas no Brasil, se houver uma ligação entre as contas e as missões
estrangeiras dos anos 1940, será possível mostrar que a origem das
tabelas insumo-produto do Brasil se dá pela imposição ao projeto de
industrialização conduzida pelo Estado capitalista.

4 A estimação sistemática de tabelas insumo-produto no


Brasil

A elaboração das Contas Nacionais ficou a cargo por longo


tempo de instituição juridicamente ambígua criada em 1944, a
Fundação Getúlio Vargas segundo Fernandes (2010). Trabalhando em
conjunto com missões americanas, com forte suporte público financeiro,
material e pessoal, e com a função de prover pessoal qualificado para
a administração pública, rapidamente permitiu a seus participantes
ampliar conhecimento econômico e estatístico. Em 1949, a FGV
preparou um primeiro trabalho empírico sobre contas nacionais no país,
e, a partir de então, passou a publicar periodicamente estimativas para
anos seguintes (Nunes (1998), p. 155).
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Somente a partir de 1956 sua metodologia foi estendida


(tomando como base a SNA de 1953), de forma a permitir, de fato a
construção consistente da identidade contábil básica entre produto,
renda e despesa. As estatísticas primárias básicas eram, desde o início,
providas pelo IBGE. Ainda na revisão de 1972 e 1973, que cobriram com
atraso toda a década de 1960 e princípios dos anos 70, manteve-se a
opção pela pelo SNA 1953.
A metodologia empregada baseava-se em cálculos extensos
para os anos censitários, e posterior estimação por extrapolação
através de índices de volumes de produção e comércio. Não parecia
haver acúmulo suficiente de conhecimentos e dados em períodos mais
regulares para proceder à estimação coerente e sistemática ainda das
matrizes insumo-produto no seio desta instituição. A publicação
constante de estimativas de Contas Nacionais básicas era garantida
pela FGV, não obstante, ampliando a divulgação do tema e dados e
contribuindo a aprofundar o estudo sob o prisma do SCN.
Assim, ao longo desse período, além das primeiras estimações de
pontos de estrangulamento e das relações dos setores econômicos
brasileiros, Carvalheiro (1998) destaca que em 1967 o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, fundação criada em 1964 como
Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada (De Almeida (2004)),
publicou o que ficou para a história como a primeira matriz de insumo
produto do Brasil, relativa ao ano de 1959 (van Rijckeghem et al. (1967))
. Foi feita diretamente uma matriz de setor por setor, assumindo ainda
outra simplificação teórica de que as importações seriam todas
competitivas. Por outro lado, destaca Kureski (2007) que “uma outra
iniciativa, realizada conjuntamente pelo Banco Central do Brasil e pelo
Conselho Interministerial de Preços, elaborou uma matriz para o ano de
1971 utilizando dados fiscais” (Leão et al. (1973)).
O estudo de Leão (1973), porém, trabalhou com dados base para
projeção de natureza limitada. Isso influenciou a abrangência e
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

confiabilidade de tal estudo, servindo como aproximação ou mera


estimativa indicativa na visão de Kureski et al. (2007). É em 1973 que o
IBGE iniciaria projeto de construção de matrizes de insumo-produto,
pelo então criado Departamento de Estatísticas Derivadas, precedente
do Departamento de Contas Nacionais. Em 1979, finalmente, foi
publicada a primeira matriz, referida a 1970, e em 1984 foi finalizada a
Matriz de 1975.
A partir de 1986, dada a necessidade de associar os até então
independentes e distintos sistemas de estimação da produção nacional,
o IBGE absorveu a equipe da FGV responsável pelas Contas Nacionais,
e, num longo processo de transição e atualização metodológica,
publicou a partir de 1997 a série desde 1985 no novo sistema de contas
nacionais do IBGE, incorporando boa parte das recomendações do
SNA 1968 e parte daqueles constantes na revisão do sistema de 1993.
Desde então, as tabelas são construídas de maneira sistemática, com o
que o planejador e economista podem obter um quadro macro
razoavelmente preciso da situação produtiva do Brasil.

5 Considerações Finais

O artigo buscou descrever as origens da atividade de construção


das matrizes input-output colocando o caso brasileiro no contexto
mundial em que o procedimento original de Leontief se populariza entre
os diversos países. Apesar de ser um estudo inicial no tema, é possível
resumir a idéia central em poucas palavras, de modo que os passos
seguintes desta linha de pesquisa possam ser dados na direção correta.
Considerando as questões levantadas e, tendo em mente que o
processo de elaboração das matrizes de insumo-produto demanda
técnicas de coleta e organização de dados econômicos com um certo
grau de qualidade e quantidade, o artigo buscou mostrar que a
publicação das matrizes completas do IBGE a partir dos anos 1970 tem
na verdade um fundo histórico amplo. Por isso, não se pode pensar que
o escritório nacional de estatística passou a montar as tabelas de um
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momento para outro sem que houvesse um período relativamente


longo de captação de experiência e de informação sobre a economia
brasileira.
Foi indicado que as raízes profundas das atuais matrizes podem
ser traçadas até os estudos inicias sobre a conjuntura e a estrutura
produtiva brasileira dos anos 1940 e 1950, que foram feitos sob forte
influência estrangeira, principalmente dos Estados Unidos. É importante
ressaltar que essa indicação possui no momento bases comprobatórias
relativamente frágeis, mas que podem ser desenvolvidas e solidificadas
em estudos históricos posteriores. O presente artigo terá completado seu
intuito se puder ser um ponto de partida para tais pesquisas que vão
ajudar a revelar não só como as tabelas de insumo-produto nasceram
no Brasil, mas também a descrever e analisar a forma como o
planejamento econômico nacional se apresentou no país durante o
século XX.
230
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Entre o Marxista e o Liberal: estudo comparado das


obras de Caio Prado Junior e Fernando Henrique
Cardoso1
Rodrigo Badaró de Carvalho2

Resumo

O presente trabalho se propõe a realizar um estudo comparado entre as obras


de Caio Prado Júnior e Fernando Henrique Cardoso. Compreendendo esses
dois autores como pertencentes de diferentes tradições do pensamento
político e social brasileiro, compreender elementos comuns nas obras desses
autores pode indicar importantes aspectos que sedimentam essa tradição de
pensamento brasileiro, seja em sua vertente Liberal, representada aqui por
Fernando Henrique Cardoso, ou na Marxista, representada por Caio Prado
Júnior.
Palavras chave: História; Desenvolvimento; Dependência; Imperialismo.

Abstract
The present study intends to do a comparative study among Caio Prado Junior
and Fernando Henrique Cardoso works. Comprehending both writers as parts
of different political and social Brazilian tradition of thought, understanding
commonalities aspects on the work of this writers can show important aspects
that consolidate this Brazilian thought tradition, either in its present Liberal,
represented here by Fernando Henrique Cardoso, or in the Marxist, represented
by Caio Prado Junior.
Keywords: History; Development; Dependency; Imperialism.

1Artigo recebido em 23/07/2014. Aprovado em 19/09/2014.


2Bacharel em Ciências do Estado pela UFMG, Mestrando em Direito pela UFMG. Pesquisa o pensamento político brasileiro e
seus impactos no Direito e no Estado. Email: rodrigobadaro@yahoo.com.br.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

INTRODUÇÃO

O pensamento político e social brasileiro consiste em


rico objeto de pesquisa, abrigador de autores com biografias
e proposições das mais diversas. Estudá-lo é, certamente, um
passo fundamental e indispensável para a compreensão do
Brasil em suas mais diversas perspectivas. Infelizmente, no
entanto, a atenção a esses pensadores tem sido cada vez
menor, perdendo-se de vista algumas das ideias que
sustentam as concepções básicas que carregamos em nossa
sociedade.

Compreendendo essa importância, e sem, por outro


lado, desconsiderar alguns aspectos críticos que são
necessários nessas leituras, realiza-se nesse artigo uma leitura
comparada de dois importantes autores da tradição brasileira,
são eles Caio Prado Júnior e Fernando Henrique Cardoso.
Trata-se, como o título já sugere, de autores ligados a
tradições de pensamento radicalmente diferentes, o que faz
desse trabalho uma proposta complicada de se desenvolver
e, talvez por isso, algo pouco explorado por outros
pesquisadores.

Estudar dois autores de bases teóricas tão distintas nos


auxilia a ver, por um lado, as diferentes propostas que se
desenvolveram de explicação sobre o Brasil. Por outro – o que
aqui nos interessa especialmente – perceber os elementos
com os quais diferentes teóricos compactuam em suas obras.
Determinados caminhos e diagnósticos apresentados pela
tradição do pensamento brasileiro guardam certa
proximidade e nesse sentido perceber algumas
concordâncias entre esses autores nos parece ser um
235
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

indicativo importante de uma base comum sedimentado por


essa tradição brasileira.

Para tanto, dividiu-se esse trabalho em três grandes


partes. Num primeiro momento, busca-se esclarecer de forma
mais geral quais são os pontos principais da biografia e da
bibliografia dos autores. Explora-se suas principais teses,
buscando perceber o momento em que elas foram
construídas e o diálogo com qual tradição permitiu que elas
se desenvolvessem. Divide-se esta primeira parte em duas sub-
seções, destinadas cada uma a um dos autores, de tal
maneira que o objetivo não é, ainda, compreender os
elementos comuns entre ambos, mas as principais teses que
lhes garantiram projeção no âmbito acadêmico.

No segundo momento, busca-se de fato encontrar elementos


comuns das obras dos dois autores. O objetivo é fazer uma
análise mais geral das obras, sem direcionar ou analisar
especificamente uma ou outra obra. Trata-se de identficar
aspectos mais gerais das proposições dos autores, sobretudo
no que diz respeito à forma como se conectam a uma
tradição do pensamento político e social brasileiro e como
desenvolvem suas críticas à proposta nacional-
desenvolvimentista, acabando por envolver nessa crítica a
perspectiva assumida pela CEPAL (Comissão Econômica para
a América Latina) e também uma crítica à Era Vargas.

Por fim, na terceira e última parte, realiza-se brevemente um


trabalho de diferenciação dos autores. Trata-se de uma
tentativa de deixar claro ao leitor que, muito embora esse
trabalho se proponha a tentar encontrar elementos comuns
entre os autores, tais elementos não são suficientes para os
236
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

colocar em uma mesma categoria de pensamento.


Pertencem a diferentes tradições e a proposta de
aproximação de alguns elementos das obras de ambos não
pode significar, definitivamente, o ocultamento de todas as
suas diferenças.

A forma como se organizou este trabalho pretende


meramente facilitar a organização das ideias. Não é possível,
no entanto, ser plenamente fiél a essa proposta, havendo
inevitavelmente determinadas partes que se encontram “fora
de lugar”, o que, esperamos, não tire por completo o sentido
da forma como aqui as ideias estão dispostas.

OS AUTORES EM SEU TEMPO

Propor-se a estudar a obra de Caio Prado Jr. consiste,


por si só, em tarefa nada simples. Trata-se de autor cuja obra é
bastante profunda e de relevância incontestável ainda nos
dias de hoje ao menos para os estudos de Ciências Sociais,
História e Economia. Agrava ainda a dificuldade em estudá-lo
o fato de não ser um autor “de uma obra só”, como é o caso
de alguns dos pensadores brasileiros que, se não escreveram
de fato apenas uma obra, há incontestável destaque para
um trabalho em específico. Esse não é o caso de Caio Prado
Jr. Autor de diversas obras, é possível apontar ao menos três
consistentes trabalhos de grande destaque — Formação do
Brasil Contemporâneo – Colônia (PRADO Jr., 1942); História
Econômica do Brasil (PRADO Jr., 1945); A Revolução Brasileira
(PRADO Jr., 1966) — além de outros que também merecem
destaque, como seu primeiro trabalho, Evolução Política do
Brasil (PRADO Jr., 1933), sua tese de cátedra, Diretrizes para
uma Política Econômica Brasileira (PRADO JR., 1954) ou o
237
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

trabalho sobre a questão agrária no Brasil publicada já nos


anos 70, A Questão Agrária no Brasil (PRADO JR., 1979).

O estudo da obra de Fernando Henrique Cardoso também


não deixa nada a dever em matéria de complexidade
quando comparado a Caio Prado Jr. Igualmente autor de
uma vasta bibliografia, é impossível compreendê-lo sem ter
em conta obras como Empresário Industrial e
Desenvolvimento Econômico no Brasil (CARDOSO, 1972)
Autoritarismo e Democratização (CARDOSO, 1975);
Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (CARDOSO,
1962), As Ideias e seu Lugar (CARDOSO, 1995) muito embora
não haja dúvidas de que Dependência e Desenvolvimento na
América Latina – Ensaio de Interpretação Sociológica
(CARDOSO, 2011), escrito juntamente com Enzo Faletto, seja a
obra de maior impacto do autor, responsável em grande
medida por sua projeção nacional e internacional. Aumenta a
complexidade desse estudo considerar, ainda, que o autor —
após seu período á frente da Presidência da República (1995-
2002) — segue ainda produzindo e publicando, com destaque
para as recentes obras Relembrando o que escrevi
(CARDOSO, 2010) e Autores que inventaram o Brasil
(CARDOSO, 2013).

Diante, portanto, da complexidade que é representada


pelas obras desses autores, aponta-se, desde já, a
contribuição limitada desse trabalho, merecendo o tema em
questão uma análise mais profunda e extensa. De toda forma,
busca-se aqui dar uma contribuição e levantar algumas
questões preliminares sobre as quais pouquíssimos trabalhos
acadêmicos vêm se debruçando atualmente. Auxilia neste
trabalho o fato de se tratar de dois autores já considerados
238
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

como clássicos do pensamento brasileiro e, por isso, já há


disponível vasta bibliografia sobre as obras desses autores, o
que contribui sobremaneira para a compreensão das suas
principais teses.

Veremos adiante, em seções destinadas


especificamente para cada um dos autores, os pontos
principais de suas contribuições teóricas.

O Marxista Caio Prado Jr

Caio Prado Jr realiza, sobretudo em Formação do Brasil


Contemporâneo, aquilo que Fernand Braudel apontou como
“história de longa duração”. Cumpriu, digamos, a
recomendação de “não pensar apenas no tempo breve, não
acreditar que só os sectores que fazem ruído são os mais
autênticos; também há os silenciosos” (BRAUDEL, 1982, p. 37).
Trata-se de obra que se debruça sobre largo espaço
temporal, analisando toda a história do “Brasil colônia”. A
proposta era ainda mais ousada, almejando analisar toda a
história (formação) do Brasil Contemporâneo, o que, no
entanto, não se cumpriu por completo.

Os primeiros trabalhos de Caio Prado Jr. são ainda da


década de 1930 e 1940, o que coloca esse autor em um
momento bastante próprio da história do pensamento
brasileiro. Situa-se, portanto, junto a Sérgio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre como os principais teóricos na
busca por compreender a realidade brasileira daquele
período. É de fundamental importância enfatizar seu papel de
iniciador de uma tradição, dentro do contexto histórico em
que se encontra. É o que também apresenta Valéria Lima
quando aponta para o fato de ter Caio Prado Jr “começado
239
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

suas investigações nos anos 30 e 40, momento bastante mais


complicado que aquele em que escreveu a tradição
sociológica uspiana, consolidando uma tradição marxista
brasileira” (LIMA, 2008, p. 117).

Antes, portanto, da formação da tradição sociológica


uspiana, Caio Prado Jr. já está realizando sua narrativa do
Brasil tendo em Marx e no seu materialismo histórico elemento
central para a investigação. Francisco Iglesias trava firme
debate com Edgar Carone na tentativa de eleger Caio Prado
Jr. como o primeiro marxista brasileiro, ou como “o primeiro a
fazer uso do materialismo histórico para fazer uma leitura do
Brasil” (IGLESIAS, 1982, p.31). A discussão sobre ter sido, ou não,
o primeiro, é aqui menos relevante em nossa análise,
importando mais perceber a base teórica da construção
desse autor e a maneira própria como o faz. Conforme nos
aponta Bernardo Ricupero, o uso do materialismo histórico e o
seu método de investigação o caracterizam como “um caso
bem sucedido de nacionalização do marxismo” (RICUPERO,
2000, p.117). Essa ‘nacionalização do marxismo’, pra seguir
usando a terminologia de Ricupero, consistirá no primeiro
passo importante para os estudos de Marx no Brasil, que será
sistematizado na Faculdade de Filosofia da USP entre os anos
de 1958 e 1964, tendo em José Artur Giannoti seu principal
organizador e no próprio Fernando Henrique Cardoso um dos
principais nomes.

Fiel aos princípios Marxistas, a história em Caio Prado Jr.


tem um valor especial, constituindo-se em elemento
fundamental para se pensar a realidade brasileira do seu
tempo. A diferenciação entre “Colônia de Povoamento” e
“Colônia de Exploração”, reproduzida ainda hoje nos ensinos
240
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de História, tem em Caio Prado Jr. um dos principais


responsáveis por essa categorização. Especificamente sobre o
Brasil, o autor tentará compreender o lugar do Brasil Colônia
no processo histórico, percebendo-o como “uma feitoria da
Europa” (PRADO Jr., 1961, p. 127).

A concepção do lugar do Brasil na história passa por


perceber que aquilo que existia aqui era parte de algo maior,
parte e, ao mesmo tempo, consequência do processo de
expansão ultrramarina, da evolução mercantil européia. Essa
concepção de base seria fundamental para se desenhar toda
a realidade (sobretudo econômica) brasileira, que tem em
sua base a “a grande unidade produtora, seja agrícola,
mineradora ou extrativa” (PRADO JÚNIOR, 1961, p.118).

A conclusão fundamental lançada por Caio Prado Jr.


consistiu em perceber que a experiência brasileira não
coincidiria com a de outros países, não estaríamos repetindo
de forma atrasada a história dos países ‘modernos’ ou
desenvolvidos. Na esteira dessa argumentação, descarta a
tese corrente à época de tentar verificar a ocorrência do
Feudalismo no Brasil. Afirma que “a economia agrária
brasileira não se constituiu na base da produção individual ou
familiar, e da ocupação parcelária da terra, como na Europa,
e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para
o mercado” (PRADO Jr., 1979, p.170) e assim, portanto, o
sistema capitalista já era a realidade brasileira na colônia, não
havendo de se falar em “etapa feudal ou semi-feudal, e
ascensão para o capitalismo” (PRADO Jr., 1979, p. 69).

Como consequência teríamos uma economia presa à


questão agrária, refém dos produtos que o mercado europeu
241
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

necessita. Não se produziria com o intuito de atender ao


mercado interno, mas sim para buscar suprir demandas que
não eram nossas. Por isso, inclusive, teríamos uma economia
que variou profundamente de acordo com o momento
histórico, caracterizando os vários ciclos, do açucar, da
borracha, do ouro, e posteriormente o ciclo do Café — esse
trazendo em si a ruptura que traria ao Brasil o seu primeiro
avanço industrial mais profundo. Essa estrutura daria o sentido
da colonização, questão fundamental para Caio Prado Jr e
que dá título ao primeiro capítulo de Formação do Brasil
Contemporâneo (PRADO Jr., 1961, pp. 11-26).

A independência do Brasil, e mesmo as revoltas


anteriores à independência, merecem especial atenção de
Caio Prado Jr, o que também já diz algo sobre o perfil desse
autor. Seu perfil “revolucionário” — marcante não só na forma
como escreve mas também em sua militância junto ao PCB,
apesar de todas as divergências com relação ao “partidão”
— o faz olhar com maior atenção para os movimentos da
história brasileira. Em Evolução Política do Brasil, nas palavras
de Francisco Iglesias, “guardou um capítulo para falar da
‘Revolução’, em que trabalha as revoltas populares da
regência, como os cabanos, balaios e a agitação praieira’
(IGLESIAS, 1982, p.22). Esse esforço de resgate dessas lutas é
exaltado também por (LEÃO & SILVA, 2011, p. 99), apontando
ser também um aspecto inédito da historiografia até aquele
momento.

Apesar de apontar para aspectos incomuns da


independência brasileira, Caio Prado Jr. não vê na
independência um processo real de autonomia econômica
da nação brasileira. Ao contrário, ao final do período colonial
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

o autor percebe uma precaridade da realidade brasileira,


permanecendo dependendente e condicionado pela
conjuntura internacional que lhe forçava a traçar objetivos
estranhos à nação. O ponto principal nessa leitura crítica do
autor diz respeito à permanência na situação de feitoria da
Europa, chegando a dizer que

Nao há na realidade modificaçoes substanciais do


sistema colonial nos tres primeiros séculos de nossa
história. Mais não se fez neste período de tempo
que prolonga-lo e o repetir em novas áreas ainda
não colonizadas. Em certos aspectos, ele
naturalmente se complica, surgindo elementos
novos, ou pelo menos tendencias que alteram a
simplicidade inicial do quadro que traçainos de
uma colônia produtora de alguns generos
destinados ao comércio da metropole. (PRADO
JÚNIOR, 1961, P.119)

Diante desse diagnóstico traçado em uma perspectiva


histórica, Caio Prado Jr. desenvolve a ideia de que é
necessário romper com a estrutura de dominação imposta
historicamente, num primeiro momento pela metrópole,
posteriormente pelos países “desenvolvidos”, representados
sobretudo pela Inglaterra e, depois, pelos Estados Unidos da
América. O caminho proposto pelo autor passa pela via
revolucionária, conforme se verá à frente. Não deixa de levar
em conta dentro do PCB e em sua militância a necessidade
de considerar a realidade brasileira para se pensar as
possibilidades dessa revolução. É nesse ponto que reside,
inclusive, a sua divergência interna com o PCB. Defensor que
era da tese de ausência do feudalismo no Brasil, não
concordava com a pauta do partido de eliminar “restos
feudais”, entendido por ele como uma mera importação das
pautas russas pelo partido brasileiro. Adotava a via “não-
243
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

clássica” e preferia, nesse sentido, apontar para outro


caminho:

O que existe e tem servido de exemplificação e


comprovação do ‘feudalismo’ brasileiro, são
remanescentes de relações escravistas , o que é
bem diferente, tanto no que respeita à natureza
institucional dessas relações, como, e mais ainda,
no que se refere às conseqüências de ordem
econômica, social e política daí decorrentes.
(PRADO JR., 1987, p.104).

Nesse sentido, a revolução de Caio Prado Jr. passa


necessariamente pela questão do trabalho, que lhe preocupa
fundamentalmente, especialmente no que diz respeito ao
trabalhador rural. Chega a propor que

Será preciso dar estabilidade aos trabalhadores


assegurando sua permanência e direito efetivo
legalmente consagrado ao uso da terra não
assistindo ao proprietário a fáculdade de modificar
o sistema a seu arbítrio e excluir a utilização da terra
pelo trabalhador; ou substituí-la sem o assentimento
dele e devida compensação monetária. Poder-se-
á mesmo eventualmente ir adiante, estabelecendo
uma copropriedade com uso alternativo da terra, o
que asseguraria rotativamente, de forma definitiva,
duas atividades econômicas que se
complementam e são ambas de interesse geral”
(PRADO Jr.,1979, P.109).

Avança ainda no desenvolvimento de sua proposta


compreendendo aspectos bastante próprios da realidade do
trabalhador rural.

É preciso nunca esquecer que não há para o


trabalhador empregado na generalidade das
propriedades brasileiras, os contatos humanos e o
convívio social ordinários que são dados ao
trabalhador urbano; e que entre ele e a sociedade
propriamente se interpõem as grandes distâncias
que separam os aglomerados de trabalhadores das
fazendas, dos centros povoados onde se localizam
as instituições sociais regulares e os órgãos públicos.
Essa circunstância, aliada à autoridade exercida
pelo proprietário em seus domínios, cria para o
trabalhador empregado uma situação toda
especial de dependência e constrangimento que
244
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

não existe para o trabalhador urbano. Antes de


mais, uma legislação que vise a amparar aquele
trabalhador e seus direitos, deve, a fim de se tornar
operante; compensar uma tal inferioridade relativa
que não tem paralelo no caso do trabalhador
urbano; e é específica do empregado rural. Toda a
existência deste último, ou a maior ou principal
parte dela, decorre no interior de uma propriedade
particular; sujeita por isso mesmo ao direito do
proprietário. (...) De empregador ele se faz
insensivelmente, ou tende a se fazer senhor de seus
empregados. (PRADO Jr., 1979, p.96-7)

Em síntese, o curso da história e a questão do trabalho


são os dois elementos centrais para se compreender esse
autor. Juarez Guimarães nos diz que “Caio Prado Jr lê a
história do Brasil a partir da passagem da condição colonial
ao Estado nacional, relacionando-a ao mundo do trabalho,
do trabalho escravo à formação dos direitos do trabalho e de
uma cultura classista e socialista” (GUIMARÃES, 2009, p. 79).

À primeira vista, muitos dos pontos desenvolvidos por


Caio Prado Jr. e acima mencionados podem parecer uma
espécie de “lugar comum”, entendimento já pacificado no
âmbito científico e até no senso comum. Cumpre ressaltar, no
entanto, que esse processo deve ser entendido de forma
oposta. Se esses entendimentos estão, de fato, já
consolidados, é justamente por que Caio Prado Jr. os
desenvolveu, residindo aí todo o seu mérito.

O Liberal Fernando Henrique Cardoso.

Fernando Henrique realizou, como dito anteriormente,


trabalho de grande relevância, tal qual Caio Prado Jr. Se Caio
Prado Jr desenvolveu uma forma própria de ver o Brasil, sendo
um daqueles que se convencionou chamar “Intérpretes do
Brasil” ou, como preferiu o próprio Fernando Henrique, “Autor
que inventou o Brasil”, Fernando Henrique não se encaixa
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

entre esses autores. Essa constatação, no entanto, não


significa uma crítica ou um ponto negativo da obra desse
autor, mas tão somente uma escolha própria sua, fruto, talvez,
de seu rigor metódico. Nesse sentido, a obra de Fernando
Henrique é mais específica e densa, buscando compreender
uma realidade específica e propondo alternativas a ela. Isso,
no entanto, não o impede de dialogar com alguns desses
intérpretes, com destaque para a importância da leitura de
Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, para a construção
da obra de Fernando Henrique.

Para compreender a importância de sua obra, é


fundamental buscar responder algumas questões básicas
sobre o pesquisador, o local de onde fala e em contraposição
a quem. Fernando Henrique é sociólogo formado na
Universidade de São Paulo (USP), tendo sido “formado” por
Florestan Fernandes, fez parte, dessa forma, do princípio da
formação da Escola sociológica da USP. A sua relação com o
mestre não se deu, no entanto, de forma tão tranquila.
Fernando Henrique Cardoso participou ativamente, sobretudo
nos primeiros anos, do Seminário de Marx (1958-1964), que
contava com a participação de nomes importantes da
Universidade de São Paulo. Esse Seminário, aliás, iria
representar uma certa ruptura com a tradição marxista
anterior, da qual fazia parte Caio Prado Jr. Nas palavras de
Roberto Schwarz

o contexto imediato do seminário não era a


esquerda nem a nação, mas a Faculdade de
Filosofia. Em seus departamentos mais vivos,
ajudada pelo impulso inicial dos professores
estrangeiros, esta fugia das rotinas atrasadas e
buscava um nível que fosse para valer, isto é,
referido ao padrão contemporâneo de pesquisa e
debate (...) Pois bem, a ligação deliberada da
246
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

leitura de O Capital ao motor da pesquisa


universitária iria modificar o quadro e deixar a
cultura marxista anterior em situação difícil... Seja
como for, a idéia de uma esquerda marxista sem
chavões, à altura da pesquisa universitária
contemporânea, aberta para a realidade, sem
cadáveres no armário e sem autoritarismos a
ocultar, era nova." (SCHWARZ, 1998: 99-114)

É curioso notar que esse seminário não tinha em


Florestan Fernandes um de seus membros. O fato de Florestan
não gostar do Seminário de Marx, como conta o próprio FHC,
gerou uma crise interna na relação dos dois, fazendo com quê
uma análise do pensamento de Fernando Henrique Cardoso
não passe tanto pela construção teórica de Florestan
(CARDOSO, 2006, p.77).

Fernando Henrique foi professor cetedrático de Ciência


Política e hoje é professor emérito da mesma Universidade.
Desenvolveu uma construção de pensamento própria, saindo
da CEPAL e do Seminário de Marx e tendo no CEBRAP o
grande espaço para produção e disseminação do seu
pensamento. Assim, pois, Fernando Henrique “fala” de São
Paulo, e acompanha em alguma medida a tradição dos
pensadores formados por lá na proposição da dualidade
entre São Paulo e o resto do Brasil, diferenciando, aos moldes
weberianos, os modernos e os não-modernos (CARDOSO,
1972, p.32). Essa forma de construção do pensamento guarda
proximidade com outros pensadores que compõem essa
tradição de pensamento sobre o Brasil, o que se verá com
maior cuidado posteriormente.

Se Fernando Henrique fala de São Paulo, não restam


dúvidas de que sua proposta busca superar a tradição
desenvolvida pelo ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros,
criado em 1955, com sede no Rio de Janeiro. Os teóricos do
247
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

ISEB — entre os quais se destacam, dentre outros, Hélio


Jaguaribe, Vieria Pinto, Guerreiro Ramos e Nelson Werneck
Sodré — caracterizaram-se pelo desenvolvimento de uma
tentativa de rompimento com a dependência econômica
brasileira através da proposta do nacional-
desenvolvimentismo. Apesar de algumas divergências internas
no ISEB1, tal instituto ficou marcado por uma densa produção
de conhecimento em defesa de uma independência
nacional que, ao final, nos levaria a situação de
desenvolvimento sem, contudo, trazer conosco as marcas do
imperialismo que julgavam ser características dos países
desenvolvidos. Refém do governo federal, o ISEB teve vida
curta, tendo seu grande momento durante os anos do
governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), em que o
planejamento econômico e o discurso desenvolvimentista
foram marcantes na área econômica.

Em 1977, Caio Navarro de Toledo defenderia sua tese


de doutorado na Universidade de São Paulo apresentando
“ISEB: Fábrica de Ideologias” (TOLEDO, 1997). A proposta,
como o título sugere, era demonstrar como o ISEB criou uma
ideologia em torno de sua própria ideologia — algo não
científico, portanto — colocando o nacional-
desenvolvimentismo como espécie de único caminho possível
a ser seguido, julgando outras propostas como negadoras da
nacionalidade brasileira. Se a crítica de Caio Navarro em
alguma medida tem lá sua razão, por outro lado ela é
também ideológica, como de resto todas as proposições

1 Vieira Pinto e Hélio Jaguaribe discordavam sobre o caminho para transformar a realidade brasilera: o primerio
via a necessidade de “desalienar as massas”, fazendo-a perceber o valor do seu trabalho; o segundo acreditava
ser necessário que a burguesia industrial se encarregasse de realizar uma educação para o desenvolvimento,
debate bem descrito por Caio Navarro de Toledo (1997, pp. 40-50).
248
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

acadêmicas, apesar de sua cientificidade. É na esteira dessa


crítica ao ISEB e à proposta nacional-desenvolvimentista que
Fernando Henrique chega, portanto, a sua obra de maior
destaque, Dependência e Desenvolvimento na América
Latina (CARDOSO & FALETTO, 2011).

O livro consiste em ampla abordagem acerca de


aspectos sociais, políticos e econômicos de diversos países da
América Latina. Nos interessa neste trabalho em especial a
leitura que é feita do Brasil para se chegar á proposição da
tese fundamental que dá nome à obra. Nesse sentido,
conforme dito anteriormente, é necessário compreender a
falência do modelo de “substituição de importações”,
característico do período do nacional-desenvolvimentismo,
nas palavras do próprio Fernando Henrique,

Essa industrialização (por substituição de


importações) representou mais uma política de
acordos, entre os mais diversos setores, desde o
agrário até ao popular-urbano, do que imposição
dos interesses e da vontade de domínio de uma
‘burguesia conquistadora’ (CARDOSO & FALETTO,
2011, p.123)

Com esse diagnóstico apontado no desenvolvimento


da obra Fernando Henrique responde à própria questão que
havia se colocado:

Não terão sido os fatores inscritos na estrutura social


brasileira, o jogo das forças políticas e sociais que
atuaram na década “desenvolvimentista”, os
responsáveis tanto do resultado favorável como da
perda do impulso posterior do processo brasileiro de
desenvolvimento? (CARDOSO & FALETTO. 2011, P.
22-3)

Trata-se, portanto, de verificar a falência do modelo de


desenvolvimento predominante nos anos 50 como a
comprovação de que no Brasil não havia uma estrutura social
249
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

própria capaz de dar continuidade a um projeto


desenvolvimentista, mas tão somente um pacto, ou “política
de acordos”, que havia sido feito e que se rompeu com a
chegada de João Goulart à Presidência da República.

Em Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico


no Brasil, obra que antecede e serve de base para
Dependência e Desenvolvimento na América Latina,
Fernando Henrique realiza um trabalho de campo com
industriais de Belo Horizonte, São Paulo, Blumenal, Recife e
Salvador em que busca traçar um perfil desse empresariado.
O perfil, naturalmente, era diverso. Á maneira Weberiana,
Fernando Henrique utiliza conceitos típico-ideais acerca do
empresariado, tendo nas economias “mais modernas” uma
espécie de modelo do empresário indsutrial que serve para
realizar a diferenciação do empresariado brasileiro entre os
“Capitães da Indústria” e os “Homens de Empresa”. Enquanto
os primeiros adotam métodos ‘irracionais’ de gestão e
buscam retornos imediatos, os segundos se aproximam dos
modernos, racionais, pensando a longo ou médio prazo
(CARDOSO, 1972, p.133-169).

A diferenciação dos perfis dessa burguesia nacional não


impede Fernando Henrique de realizar um traço
predominante do perfil da burguesia industrial brasileira e de
suas limitações enquanto grupo econômico. O grande
problema que será indicado pelo autor reside justamente no
fato dos homens de empresa serem parte minoritária no
empresariado brasileiro. Dirá que esses homens de empresa
representam uma novidade, uma liderança industrial que é
“exercida por pessoas cujo grau de consciência dos
problemas empresariais está longe de refletir uma visão
250
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

tradicional da economia e da prática industrial”. Lembra, no


entanto, que “os capitães da indústria e os dirigentes que se
orientam por valores tradicionais e se acomodam às
condições rotineiras da produção industrial constituem a
maior parte dos responsáveis pela indústria brasileira tomada
em conjunto” (CARDOSO, 1972, p. 149).

Se a “debilidade” — para insistir na terminologia do


próprio autor — da burguesia nacional era, digamos, a razão
principal para a perda de fôlego do desenvolvimento, a
debilidade do proletariado também contribui nesse processo.
E, nesse cenário, a única possibilidade política seria mesmo o
populismo,

No Brasil o populismo aparece como o elo através


do qual se vinculam as massas urbanas mobilizadas
pela industrialização — ou expulsas de setor agrário
como consequência de suas transformações ou de
sua deterioração — ao novo esquema de poder; e
converter-se-á na política de massas, que tratará
de impulsionar a manutenção de um esquema de
participação política relativamente limitado e
baseado principalmente em uma débil estrutura
sindical que não afetou as massas rurais nem o
conjunto do setor popular urbano. (CARDOSO &
FALETTO, 2011, p.135)

Todo esse trabalho de “interpretação sociológica”


consiste em trabalho que lhe parece fundamental para
analisar as possibilidades do desenvolvimento na América
Latina e, em especial, no Brasil. A saída emerge nesse cenário
menos como uma escolha política-ideológica do autor do
que como uma espécie de conclusão isenta de um denso
trabalho científico. Em suas palavras,

Nessas circunstâncias – de crise política do sistema


quando não se pode impor uma política
econômica de investimentos públicos e privados
para manter o desenvolvimento -, as alternativas
que se apresentariam, excluindo-se a abertura do
251
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

mercado interno para fora, isto é, para os capitais


estrangeiros, seriam todas inconsistentes, como o
são na realidade, salvo se se admite a hipótese de
uma mudança polítca radical para o socialismo. O
exame de algumas delas, quando feito dentro do
marco da estrutura política vigente, põe de
manifesto sua falta de viabilidade. (CARDOSO &
FALETTO, 2011, p.156)

Para um povo visto como “débil”, incapaz de se


mobilizar, a possibilidade de “mudança política radical para o
socialismo” emerge aqui como mero exercício retórico. As
demais “alternativas” que se apresentaram são pelo autor
desconstruídas para que a alternativa que propõe seja, assim,
fortalecida. Trata-se, portanto, de ver na abertura econômica
o único caminho para o desenvolvimento, relativizando o
problema da dependência. A proposta do desenvolvimento
associado aparece como uma resposta alternativa à
pergunta que havia terminado a obra Empresário Industrial e
Desenvolvimento Econômico no Brasil, “subcapitalismo ou
socialismo?” (CARDOSO, 1972, p. 198).

Fortalece a proposta do desenvolvimento associado ao


capital estrangeiro o fato de Fernando Henrique perceber
uma questão fundamental, que já era apontada por Caio
Prado Jr: a comunhão de interesses entre a burguesia
nacional e a burguesia internacional. Essa percepção será
fundamental para Fernando Henrique apontar que o
nacionalismo, característico do pensamento produzido no
ISEB, não correspondia a um sentimento existente na
burguesia nacional. E que “não há possibilidade do
desaparecimento da burguesia nacional. Ela se incorpora à
nova lógica. Ela só não assume papel protagonista, tal qual se
propunha no ideal nacional-populista.” (GOTO, p. 66)

Entende assim que


252
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Na medida em que o próprio cescimento industrial


tem-se verificado em moldes que forçam as
alianças de grupos industriais brasileiros com grupos
internacionais, cada vez mais as diferenças
ideológicas entre grupos de indústrias tenderão a
desaparecer em nome da condição comum de
capitalistas. (CARDOSO, 1972, p.183)

Fernando Henrique se destacou também por


desenvolver trabalho crítico sobre o regime militar no Brasil.
Sobretudo em Autoritarismo e Democratização, denunciou a
forma como se dava o jogo político dentro da estrutura não
democrática. Cunhou a expressão “anéis burocráticos”, em
seus termos explicado:

a presença das forças econômicas privadas


beneficiárias diretas do regime (...) fez-se sentir
através de sua incorporação a mecanismos
políticos ainda pouco estudados, que tenho
chamado de “anéis burocráticos”. O próprio
adjetivo usado para qualificar esses anéis mostra os
limites que o setor privado encontra para articular-
se politicamente para influir nas decisões do Estado.
(CARDOSO, 1975, p. 206)

O termo anéis burocráticos é desenvolvido em uma


perspectiva crítica, portanto, para demonstrar a forma como
o regime militar teria aberto espaço em seu seio para que os
interesses privados atuassem no aparelho burocrático do
Estado. Com o fechamento do Parlamento e a concentração
do jogo político no executivo, os partidos políticos perderam
espaço e os “anéis” assumiram instrumentalmente esse papel
político. Na visão de Fernando Henrique trataria-se, pois, de
cooptação — não representação — da sociedade civil no
Estado, assegurando a debilidade dessa sociedade como
força política autônoma (CARDOSO, 1975, 208-209).

A crítica ao regime militar diz bastante sobre o


pensamento do autor. Não a crítica entendida assim
abstratamente, mas a forma específica como é desenvolvida.
253
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Há, naturalmente, uma crítica consensual sobre a ausência de


um processo democrático e a violação das liberdades, mas
na esfera econômica as críticas são moderadas. Trata-se, na
verdade, de um reconhecimento por parte do autor de que a
política econômica adotada pelo regime militar é em grande
medida aquela que lhe parece a mais correta. Nesse sentido,
a crítica pesada à burocracia estatal levava à crença de que
a ditadura “nunca operou segundo o interesse da classe
capitalista, mas de uma anacrônica burocracia estatal”
(AVELAR, 2003, p. 72).

Idelber Avelar nos aponta para o fato, portanto, de que


a crítica direcionada ao que Fernando Henrique caracterizou
de “anéis burocráticos” ocultou os interesses capitalistas e as
possibilidades de exploração da mão-de-obra que o regime
militar propiciava. Idelber tenta demonstrar que liberalismo e
autoritarismo não são categorias radicalmente opostas, já que
no aspecto econômico o regime militar seguiu em grande
medida a cartilha liberal. Desenvolve sua crítica chegando a
dizer que Fernando Henrique Cardoso

explica as ditaduras brasileiras e hispano-


americanas como produtos de núcleos
burocráticos estatais, não redutíveis ao interesse de
classe capitalista e misteriosamente contraditórios
com ele. Posto que uma burocracia, ao contrário
de uma classe dominante, pode ser eliminada sem
que se toque no modelo econômico, a teoria de
Cardoso — de que as ditaduras eram o resultado
de uma burocratização aberrante — preparou o
caminho para uma ‘transição à democracia’
hegemonizada por forças neoliberais e
conservadoras. (AVELAR, 2003, P. 24)

Diante da forma como se constrói esse pensamento,


parece claro que a raíz do pensamento de Fernando
Henrique é bastante diferente daquela na qual se encontra
254
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Caio Prado Jr. Se é certo que Fernando Henrique, por sua


formação, teve profundo contato com as obras de Marx e,
em alguma medida, incorpora o método do pensador
alemão, certamente a sua proposição teórica para os rumos
da economia brasileira o deixam longe de ser caracterizado,
tal qual Caio Prado Jr, como seguidor das propostas de Karl
Marx. Esse, aliás, nos parece ser um grande equívoco no qual
Diogo Del Fiori incorre, ao afirmar, falando de Caio Prado Jr e
Fernando Henrique Cardoso, que “o que aproxima ambos
os autores é o fato de serem adeptos do Marxismo (...)”
(FIORI, 2011, p.16)

Nesse aspecto, nos serve a fala do próprio Fernando


Henrique ao afirmar que “implícita ou explicitamente, a fonte
metodológica é a dialética marxista. Entretanto, existem tão
variadas maneiras de conceber a utilização da dialética
marxista” (CARDOSO, 1995, p.91). Compartilhamos, dessa
maneira, com a análise de Marcelo Dulci de que “o método
tem uma função na sua obra (...) de abordagem crítica e
dialética, mas não estrutura seu conteúdo normativo” (DULCI,
2010, p. 71-2) e, em última análise, com o enquadramento que
faz do teórico como pertencendo, ou fundando, uma
tradição de pensamento liberal “periférica”. Essa designação
nos parece interessante quando reconhece a existência de
traços liberais no pensamento desse autor sem cair no extremo
de categorizá-lo como um liberal conservador, no molde
estadunidense. Trata-se de uma vertente liberal que se
desenvolve na crítica à estrutura do Estado e ao seu
protagonismo na esfera econômica sem, contudo, que isso
signifique um discurso contrário ao Estado. A proposta é, pois,
de uma defesa da democracia liberal — o que inclusive fez
255
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de Fernando Henrique Cardoso um dos importantes autores


contrários ao regime militar — tendo resultados sociais como
consequência de reformas liberais do Estado. Esse social-
liberalismo nos parece bem categorizdo por Marcelo Dulci
(DULCI, 2010, p. 235) como um ‘liberalismo periférico’.

Os problemas nos diagnósticos de Fernando Henrique e


Caio Prado poderiam ser apontados e problematizados. Não
são poucas as constatações e conclusões desenvolvidas ao
longo dessas obras que carregam grandes contradições.
Fernando Henrique, em especial, mereceria um trabalho
específico de debate com suas concepções liberais e as
bases históricas e sociológicas que lhe dão sustentação. Na
sequência no entanto, nos restringiremos na proposta de
elaborar uma perspectiva comparada entre os autores que,
agora devidamente apresentados, está claro, desenvolveram
seus trabalhos em direções radicalmente opostas.

APROXIMAÇÕES ENTRE OS TEÓRICOS

Como se viu acima, Fernando Henrique e Caio Prado Jr.


foram responsáveis pela inauguração, cada um a seu modo,
de formas próprias de se pensar o Brasil. Em contextos
diferentes e ligados a tradições de pensamento opostas, suas
obras, à primeira vista, apresentam pouco, ou nada, em
comum. Em uma análise mais cuidadosa, no entanto, da
forma como construíram suas teses é possível encontrar
determinados pontos em comum entre esses autores, o que
pode servir a pesquisadores do tema na percepção de
questões específicas da realidade brasileira que foram
compartilhadas por diferentes tradições pensamentos. Na
256
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

sequência, pois, tenta-se destacar alguns desses elementos


comuns encontrados na análise das obras desses autores.

Um primeiro aspecto que fora mencionado


anteriormente e merece ser reforçado, conforme trabalhado
por Diogo Fiori, diz respeito à forma como os dois autores viam
a relação entre a burguesia nacional e a burguesia
internacional. Segundo Caio Prado Jr., a presença da
burguesia internacional não era vista como uma forma de
imperialismo. Essa era uma concepção trabalhada no debate
intelectual mas que não correspondia ao pensamento da
burguesia nacional que, quando muito, possuía tensões
pontuais com o capital estrangeiro, mas não via nessa relação
um problema em sua essência (FIORI, p. 13). Nesse aspecto, é
notório, Fernando Henrique desenvolve sua proposta do
desenvolvimento associado ao capital estrangeiro em estreita
conexão com essa concepção de Caio Prado Jr., tendo
como pressuposto a possibilidade da coexistência do capital
estrangeiro com a burguesia nacional.

Outra questão que merece ser apontada em uma


tentativa de aproximação entre os autores diz respeito à
forma como se conectam, e ao mesmo tempo formam, uma
tradição de pensamento sobre o Brasil. Dentro dessa tradição,
há duas questões que são fundamentais e que permeiam a
construção de diversos autores: de um lado, a leitura da
herança ibérica como marca fundamental para se
compreender o Brasil; e, de outro, a dualidade advinda da
sociologia weberiana que busca trabalhar com categorias de
“atrasados” e “modernos”. A conjugação desses dois fatores
está com grande força, por exemplo, nas obras de Sérgio
Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, sobreutdo em Raízes
257
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

do Brasil e Os Donos do Poder em que desenvolvem toda uma


construção acerca do Brasil através da compreensão da
história portuguesa. Nesse sentido, seríamos “cordiais”
(HOLANDA, 1995) e “patrimonialistas” (FAORO, 1975) por que
fomos colonizados pelos portugueses, essas características
seriam uma espécie de resultado direto do processo histórico.

Há uma espécie de determinismo histórico nessas leituras


clássicas do Brasil que, em alguma medida, são incorporadas
pelos autores que aqui se analisa. Mesmo Francisco Iglesias,
que não deixa escondida sua admiração pelos escritos de
Caio Prado Jr., chega a dizer a respeito de sua tese que
guarda alguma simplicidade ao concluir pela justificação
histórica da realidade brasileira (IGLESIAS, 1982, p. 30). A
mesma perspectiva histórica é fundamental em Fernando
Henrique para desenvolver todo seu trabalho e diagnosticar
que a dependência, resultado da experiência histórica, não é
impecilho para o almejado desenvolvimento. Como nos
ensina Bernardo Ricupero, havia entre os autores, sobretudo os
contemporâneos de Caio Prado Jr., uma tentativa de
compreender o Brasil sob a ótica da sua formação histórica, e
é a essa tradição que Caio Prado Jr. e mesmo Fernando
Henrique se juntam.

Não por acaso (...) boa parte dessa literatura


ostenta a palavra “formação” no título. Para ficar
apenas em poucos exemplos significativos:
Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio
Prado Jr., Formação econômica do Brasil (1959), de
Celso Furtado, e Formação da literatura brasileira
(1959), de Antonio Candido. Além desses livros,
Casa grande e senzala (1932), de Gilberto Freyre,
ostenta na sua primeira edição o subtítulo
“Formação da família patriarcal brasileira” e Os
donos do poder (1959), de Raymundo Faoro, traz a
explicação “Formação do patronato brasileiro”. Por
fim, a escolha do nome Raízes do Brasil indica que a
mesma ordem de problemas inspirava Sérgio
258
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Buarque de Holanda quando escreveu seu livro, em


1933. (RICUPERO, 2005, p. 372)

A dualidade “atrasados” e “modernos” é alterada pelos


autores que preferem trabalhar com outras categorias
conceituais, notadamente a dualidade “desenvolvido e
subdesenvolvido”, agora não mais entendida como
categorias separadas mas, ao contrário, em estreita conexão
entre si. Não se livra, no entanto, de uma espécie de
idealização do “outro”, seja ele entendido como “moderno”
ou “desenvolvido”.

A forma como Caio Prado Jr. e Fernando Henrique vêm


a conformação da sociedade brasileira guarda também não
só alguma relação entre si mas também um certo grau de
continuidade com a tradição do pensamento político-social
brasileiro. Se durante longo tempo o pensamento brasileiro
tratou de perceber na sociedade brasileira aspectos de uma
estrutura “pré-moderna”, ou tradicional, Caio Prado Jr. e
Fernando Henrique concordarão em diagnosticar a ausência
de uma classe trabalhadora ‘pronta’ para a revolução, ou,
em outras palavras, concordam os autores que havia uma
certa ‘debilidade’ da sociedade brasileira, tanto por parte do
operariado quanto da burguesia nacional, no pré-64. Em
Fernando Henrique o diagnóstico causa menos surpresa, já em
Caio Prado Jr. causa alguma estranheza, já que, como vimos,
se trata de historiador que viveu “os anos 20” e debruçou-se
sobre manifestações sociais no Brasil colônia e na
independência.

Surpreendentemente, ou não, as leituras desses autores


ajudaram em alguma medida na conformação do discurso
justificador do golpe militar. Em última análise, é essa
259
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

debilidade social, a existência de uma sociedade ainda “não


pronta”, para a democracia ou para a revolução socialista,
que sugere a necessidade de alguém que intervenha por ela.
Esse é, aliás, o problema que emerge quando se insiste em
uma análise do período pré-64 como sendo a “era do
populismo”, conforme ensina Angela de Castro Gomes,

São populistas os políticos que enganam o povo


com promessas nunca cumpridas ou, pior ainda, os
que articulam retórica fácil com falta de caráter
em nome de interesses pessoais. É o populismo,
afinal, que demonstra como “o povo não sabe
votar” ou, em versão mais otimista, “ainda não
aprendeu a votar”. Daí decorrem uma série de
desdobramentos lamentáveis que, no limite e
paradoxalmente, podem justificar a supressão do
voto em nome da “boa política”. (FERREIRA (Org.),
2013, P.21)

Essa aproximação entre os autores os leva a um


diagnóstico crítico comum: ambos realizam severas críticas à
proposta nacional-desenvolvimentista, descrentes que são da
capacidade brasileira de romper com uma estrutura de
dependência histórica. Trata-se de uma espécie de ciclo
fechado na dependência. Encontra-se em uma situação de
dependência em razão do processo histórico, o mesmo que é
responsável pela debilidade social e, portanto, pela
incapacidade de se romper com essa estrutura de
dependência, seja em uma perspectiva revolucionária,
através do proletariado, seja pela existência de uma
burguesia nacional capaz de guiar o país rumo ao
desenvolvimento capitalista. A importância que a narrativa
histórica assume pros autores chega, portanto, a uma espécie
de “beco sem saída”, no qual, se se aceita o diagnóstico, o
desenvolvimento “com dependência” surge mesmo como
uma espécie de única alternativa da qual não há como
escapar.
260
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Nesse sentido, não causa surpresa outro ponto de


convergência entre os autores, qual seja, a leitura crítica que
fazem da “Era Vargas”. Nem Fernando Henrique, nem Caio
Prado Jr. enxergam nesse período um momento fundamental
do ponto de vista do avanço industrial, não percebendo
nesse momento uma ruptura fundamental em nossa história,
tal qual enxergava Celso Furtado. A crítica à ausência dos
direitos trabalhistas no campo, no caso de Caio Prado Jr., e a
crítica ao Estado centralista, em oposição à experiência liberal
Argentina no mesmo período (CARDOSO & FALETTO, 2011, pp.
84-90), merecem mais atenção dos autores do quê a tentativa
de ver à partir desse período alguma ruptura.

Ainda na mesma direção das convergências já


apontadas entre os autores encontra-se também a forma
como vêm a produção da CEPAL – Comissão Econômica
para a América Latina. A comissão se especializou em
desenvolver conhecimento sobre a região, partindo de uma
noção que estava presente na obra de Caio Prado Jr. na
compreensão do lugar dos países “subdesenvolvidos”, ou
dependentes, na história. A CEPAL partia da percepção de
que a realidade latinoamericana não consistia em uma
posição retardatária com relação aos países “desenvolvidos”,
mas sim de uma posição específica no curso da história, que
mereceria a construção e debate de teorias e caminhos
próprios. O caminho sugerido pela Comissão, no entanto,
sobretudo nos anos 50, não era compartilhado por Caio Prado
Jr e Fernando Henrique. Como afirma Ricardo Bielshovsky, a
proposta encampada pela CEPAL naquele período tratava
de buscar uma transição de uma economia primária-
exportadora para o modelo urbano-industrial, considerando
261
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que nessa transição a burguesia nacional assumiria papel


fundamental e contribuiria para a ruptura com a condição de
dependência (BIELSCHOVSKY, 2000, p. 20). Em última análise, a
CEPAL traçou as diretrizes básicas do pensamento nacional-
desenvolvimentista e, portanto, não surpreende o fato de ter
se tornado também alvo de críticas dos autores.

Um último ponto que nos parece elucidativo de como


as aproximações entre os dois autores não constitui esforço
desprovido de sentido é a forma como o próprio Fernando
Henrique menciona Caio Prado Júnior. Primeiro, em
Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico, Fernando
Henrique Cardoso o agradece pela arguição, nos lembrando
que Caio Prado esteve na banca quando FHC ainda
defendia a tese (CARDOSO, 1972, p.11). Mais recentemente,
em seu “Pensadores que inventaram o Brasil” (CARDOSO,
2013, pp. 143-149), o autor faz uma análise da contribuição do
pensamento de Caio Prado Júnior. Longe de dedicar o
espaço que possui Antônio Cândido e Florestan Fernandes,
autores dos quais foi aluno na Universidade de São Paulo,
Celso Furtado, interlocutor constante nos debates sobre o
desenvolvimentismo2, ou Raymundo Faoro, autor fundamental
do qual parte para a construção de suas teses fundamentais,
é possível detectar ao menos uma passagem em que se vê a
forma como o próprio Fernando Henrique percebe em Caio
Prado Jr. alguma proximidade:

A revolução brasileira, completa, também


despretenciosamente, como quem não quer nada,
a Formação do Brasil Contemporâneo, dando-nos
num flash, quase flashback, a imagem dinâmica de

2Sobre o tema, sugere-se a leitura de CORREA, Carolina Pimentel. As teorias do desenvolvimento de Celso
Furtado e Fernando Henrique Cardoso frente ao ideário Cepalino. Porto Alegre, 2013.
262
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

como o passado colonial se refez no presente,


amarrando-nos a uma situação de dependência
econômica e a instituições político-sociais que, não
sendo as mesmas da Colônia, não são também as
de um país capitalista avançado, apesar – e por
causa – da industrialização vinculada ao exterior e
da forma como o capitalismo se refez no campo.
Mais ainda: a mesma imagem de um Estado
burocrático que nasceu das cinzas do Estado
absolutista português, reaparece agora como
Estado burocrático-capitalista, enroscando as
instituições econômicas e sufocando as instituições
políticas, como outrora. (CARDOSO, 2013, P. 145)

Com essa passagem do próprio Fernando Henrique


narrando a importância dos escritos de Caio Prado nos
parece ficar claro que há diversos pontos de conexão entre os
autores. Esses pontos, entretanto, não podem ser vistos como
suficientes para anular suas diferenças. Nos serve para
perceber que há determinados pontos comuns na tradição
de pensamento brasileira, pontos esses que presentes em
diferentes correntes do pensamento acabam por se tornar
espécie de “verdade” no meio científico. E, como toda
verdade que se impõe nesse campo, o trabalho de crítica a
ela deve ser feito. Com o intuito de completar esse trabalho e
evitar que essa aproximação esboçada seja vista como
absoluta, na próxima seção se realizará uma breve análise das
diferenças fundamentais entre os autores, apontando
sobretudo a diferença de caminhos vistos como necessários
de serem seguidos.

DILEMAS COMUNS, ALTERNATIVAS DIFERENTES

O estudo comparado entre autores envolve uma


complexidade de elementos que não se pode cair em
reducionismos. Neste caso específico, alguma diferença
temporal e uma profunda diferença de concepções políticas
263
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

ideológicas separam Fernando Henrique Cardoso e Caio


Prado Jr, de tal forma que as linhas a seguir se propõem a
demonstrar sinteticamente e com o devido cuidado as
diferenças que separam os autores. Uma questão biográfica,
relacionada ao envolvimento político-partidário dos autores
nos serve, metaforicamente, aqui. Se, por um lado, é possível
traçar como elemento comum entre os autores o fato de
ambos terem conjugado produção acadêmica/bibliográfica
com militância política — fato nem tão comum assim na
história política brasileira —, por outro, não há de se esquecer
o fato de que um militou e exerceu cargo político, embora
com suas ressalvas, no Partido Comunista Brasileiro (PCB),
enquanto o outro foi o fundador principal e presidente da
república pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
A simples nomenclatura dos partidos já indica certo
distanciamento entre ambos e analisando-se as trajetórias
políticas fica ainda mais evidente que fizeram — no caso de
Fernando Henrique ainda faz — parte de lados opostos do
espectro político.

As respostas que os autores buscam para problemas


que são, em alguns aspectos, percebidos de forma bastante
parecida serão responsáveis pelo diferente enquadramento
dentro da tradição de pensamento político e social brasileiro.
Como destaca Valéria Lima,

o fio condutor de toda a obra de Caio Prado, até


a publicação de “A Revolução Brasileira”, é a
tentativa de compreender, para superar, os
elementos do passado colonial que persistem
incrustados na sociedade brasileira,
obstaculizando a concretização do almejado
projeto de formação da nação. (LIMA, 2008, P.123)
264
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O principal elemento desse passado que está


“incrustado” na realidade brasileira seria justamente o
imperialismo exercido pelos países “centrais”, seria ele o
responsável pelo entrave no desenvolvimento brasileiro e dos
demais países subdesenvolvidos. Para um teórico
preocupado, como aponta Bernardo Ricupero, em se chegar
ao socialismo, essa não é uma perspectiva que deveria
causar surpresas (RICUPERO, p. 74, 1998). Assim, sua proposta
de uma teoria própria para o Brasil é com o objetivo de fazer
romper com a dependência, elemento que lhe parece o mais
perverso herdado do passado colonial. (IGLESIAS, 1982, p.37)

Nesse sentido não há dúvida de que o posicionamento


de Fernando Henrique Cardoso é divergente. Há certamente
uma diferença de concepção quando o assunto é
“dependência”. Se para Caio Prado esse é o grande mal a ser
combatido, para Fernando Henrique a dependência se torna
um elemento menos problemático à medida em que, mesmo
nessa condição, é possível alcançar certo grau de
desenvolvimento. A divergência aqui é, portanto, na essência
do debate. Aliás, ela resulta também de diferentes formas de
lidar com a realidade adotadas pelos autores. Se Caio Prado
Jr. é um idealista, Fernando Henrique assume uma perspectiva
extremamente “pragmática”, algo que carrega consigo
ainda nos dias de hoje, como dito pelo próprio autor, “nunca
fui um idealista, no sentido de utópico. Sou um realista, sei até
onde é possível ir. Há um momento em que a realidade se
impõe. Sou um pragmático, no sentido americano” (Revista
Piauí, 2007).

Além do mais, a proposta central de Fernando Henrique


consiste na visão que Caio Prado já tinha da realidade
265
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

brasileira. Para o autor, desde sempre houve “um certo grau


de associação de todos os governos nacionais ao
imperialismo”, e apontava para os seguintes pontos:

1) Ausência de nexo com o território nacional; 2)


Incerteza estrutural em função das exigências
financeiras que o recurso externo continuamente
impõe para remeter seus lucros; 3) Exploração de
recursos naturais e estratégicos; 4) Identidade entre
os investimentos de risco e os empréstimos e
financiamentos, uma vez que a remuneração dos
primeiros, bem como sua alta mobilidade espacial,
conduz a sérios déficits no balanço de pagamentos
que exigem a contrapartida líquida dos segundos;
5) A dominância dos setores mais dinâmicos pelo
capital internacional não possibilita a interação
com o capital nacional, dada a superioridade
técnica e administrativa das multinacionais. (SAES &
CAMPOS, 2006, P. 182-3)

Essa visão reflete, em parte, também a crítica de Caio


Prado Jr à Era Vargas, não percebendo naquele período
determinada ruptura que outros autores perceberam. Na
visão do autor “jamais houve uma ‘estratégia independente’,
visto que desde o período colonial o Brasil sempre esteve
submetido ao ‘sentido externo’, em que nos anos 30 até a
ditadura militar apenas se redefiniu uma situação de
dependência em relação ao capital estrangeiro que já vinha
de longo prazo, que se expressava em sua totalidade pelo
Estado brasileiro submetido aos ditames do imperialismo”
(SAES & CAMPOS, 2006, P. 182).

Em seu “post scriptum em 1976” à obra História


Econômica do Brasil, Caio Prado Jr. faz uma análise do
chamado ‘Milagre Econômico’ brasileiro, não alterando em
nada nessa análise a forma como lê a situação econômica
do país. Demonstra que o regime militar tão somente manteve
a economia brasileira dentro do tradicional modelo colonial,
não realizando alterações em seus velhos padrões.
266
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Exatamente por isso, indica que o ‘milagre’ brasileiro não


passou de breve surto de atividades estimulado por uma
conjuntura internacional momentânea (PRADO JÚNIOR., 1981,
p.270).

Assim, portanto, se os pontos em comuns são diversos


entre os dois teóricos, definitivamente há uma grande
separação ideológica entre ambos. Fernando Henrique, como
bem escreveu João Moreira Salles, afastou-se da posição
revolucionária, abrindo caminho com “Dependência e
Desenvolvimento” “para uma reforma do sistema, dentro do
sistema” (Revista Piauí, 2007). Caio Prado Jr. seguiu outro rumo,
acreditando na via revolucionária (apesar de algumas
ponderações), entendendo a revolução como “processo
histórico assinalado por reformas e modificações
econômicas, sociais e políticas sucessivas, que,
concentradas em período histórico relativamente curto,
vão dar em transformações estruturais da sociedade, e
em especial das relações econômicas e do equilíbrio
recíproco das diferentes classes e categorias sociais.”
(PRADO JÚNIOR, 1987, p. 21).

À luz dos anos, e passada a experiência de FHC à frente


da presidência da república, o que o processo histórico
demonstrou certamente é que Caio Prado Jr. guardava em
seu idealismo maior lucidez que o pragmatismo do ex-
presidente. É essa a conclusão de João Antônio de Paula,
afirmando que uma análise do desenvolvimento econômico
desde 1954 tem “dado razão a Caio Prado Júnior em muitas
de suas teses” e que a “substituição de importação, a
melhoria dos padrões tecnológicos efetivamente alcançados
267
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pela economia brasileira, de fato, não alteraram a sua


situação estrutural (PAULA, 2006, p. 3).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise cuidadosa das obras de Caio Prado Jr e


Fernando Henrique Cardoso nos permite perceber, num
primeiro momento, a importância desses autores para a
tradição do pensamento político e social brasileiro. Colocadas
de lado as críticas cabíveis às construções de ambos, não
restam dúvidas de que são autores com profundo impacto
nos estudos de importantes áreas do conhecimento como
História, Ciências Sociais e Economia.

Com a ajuda de importantes teóricos, num primeiro


momento, foi possível perceber o local de onde falam Caio
Prado Jr e Fernando Henrique Cardoso. Bernardo Ricupero
(2000) e Franciso Iglesias (1982), assim como outros autores, nos
ajudaram a perceber a base marxista que caracteriza a obra
de Caio Prado Jr. Por outro lado, Idelber Avelar (2003), Roberto
Goto (1998) e Marcelo Dulci (2010) nos auxiliaram na
compreensão da proximidade entre o teórico Fernando
Henrique com os ideais liberais, ainda que esse liberalismo seja
entendido como um liberalismo “periférico”, um caráter
particular assumido por essa corrente no Brasil.

Em um esforço comparativo, e em debate com Diogo


Del Fiori (2011), foi possível identificar uma série de aspectos
comuns entre as obras dos dois autores. A forma como
avaliavam a realidade brasileira — a forte presença dos
processos históricos na conformação de uma realidade de
subdesenvolvimento e dependência — bem como a
perspectiva pouco otimista como enxergavam a possibilidade
268
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de ruptura desse cenário através da proposta do nacional-


desenvolvimentismo predominante nos anos 50 indica bases
comuns de onde partiram esses autores. E, nesse sentido, não
é forçado traçar as semelhanças entre ambos.

Por outro lado, no entanto, como se tentou apresentar


ao final, a proximidade dos autores não implica em consensos
com relação aos rumos do país. Ao contrário, se compartilham
de certos diagnósticos, realizam uma espécie de leitura
semelhante do Brasil, os caminhos traçados como possíveis
guardam grande divergência. É nesse ponto, aliás, que as
diferentes tradições de pensamento se manifestam. Sendo
Caio Prado Jr. adepto da via revolucionária, compreendende
a dependência como um resultado do imperialismo, sendo,
portanto, o grande mal a ser vencido pelo Brasil. Já Fernando
Henrique Cardoso percebe outra relação possível, menos
preocupado com a questão da dependência, aponta para
as possibilidades do desenvolvimento mesmo em uma
situação de dependência.

Marxista ou Liberal, o fato é que cada um dos autores


levanta questões que são fundamentais para a compreensão
do Brasil e se encontram ainda extremamente atuais.
Fernando Henrique permanece vivo, produzindo e é ainda
grande nome no PSDB, um dos maiores partidos do Brasil que
carrega a proposta teórica do autor como bandeira. Caio
Prado Jr., por sua vez, se faz atual à medida em que se
percebe justamente a insuficiência da proposta de
desenvolvimento em curso no país. Se Fernnando Henrique
entra na história e se mantém presente por ter colocado em
prática sua proposta teórica, Caio Prado merece ser revisitado
a todo momento justamente pra nos lembrar que há outros
269
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

caminhos alternativos a serem experimentados, e que grande


parte das suas propostas, com destaque para a Reforma
Agrária, ainda está longe de ser realizada efetivamente.

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272
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Entre raios e trovoadas: o debate sobre o projeto da


criação da Eletrobrás no interior do governo Juscelino
Kubitschek (1956-61)1

Marcelo Squinca da Silva2

Resumo

O presente texto reflete acerca do debate sobre o projeto da criação da


Eletrobrás no interior do Governo Juscelino Kubitschek (1956-61).
Subsidiariamente, reflete-se também sobre o debate acerca da legalidade ou
não do Código de Águas, (legislação que regulava a exploração dos recursos
hídricos no Brasil). Em tais debates fica evidente a posição de diversos
membros do governo Kubitschek contra a implantação efetiva da Eletrobrás e
como aqueles trabalharam contra a instalação da estatal. Discorre-se, ainda
sobre as denúncias que diversas personalidades nacionalistas fizeram à sobre
as consequências nefastas que essa decisão de travar a Eletrobrás acarretaria
para o país.

Palavras Chave: Eletrobrás, Governo Juscelino Kubitschek, Código de Águas

Abstract

This paper reflects on the debate on the creation of Eletrobras project within
government Juscelino Kubitschek (1956-61). In the alternative, it also reflects on
the debate about the legality or otherwise of the Water Code, (laws that
regulate the operation of water resources in Brazil). In such discussions it is clear
the position of many members of the government Kubitschek against the
effective implementation of Eletrobras and how those worked against the
installation of state. If talks-even on complaints made to various nationalist
personalities on the adverse consequences that the decision to halt the
Eletrobras would mean for the country.

Keywords: Eletrobras, Government Juscelino Kubitschek, Water Code.

1Texto enviado em 10/10/2014 e aprovado em 10/12/2014.


2Pós-Doutor pelo Departamento de História da Universidade de São Paulo (2013). É autor do livro Energia Elétrica: estatização e
desenvolvimento, 1956-1967, publicado pela editora Alameda/ FAPESP. Professor convidado da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo e da Faculdade Sumaré. Atualmente desenvolve pesquisas acerca da História do setor de energia elétrica no
Brasil. Integra o Grupo de Estudos do Progresso da Tecnologia e Ciência (GEPTEC-FFLCH/USP) e Centro de Estudos de
História da América Latina (CEHAL-PUC/SP).
273
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.
274
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Introdução

O presente texto reflete acerca do debate sobre o


projeto da criação da Eletrobrás no interior do Governo
Juscelino Kubitschek (1956-61). Subsidiariamente, reflete-se
também sobre o debate acerca da legalidade ou não do
Código de Águas, (legislação que regulava a exploração dos
recursos hídricos no Brasil). Em tais debates fica evidente a
posição de diversos membros do governo Kubitschek contra a
implantação efetiva da Eletrobrás e como aqueles
trabalharam contra a instalação da estatal. Discorre-se, ainda
sobre as denúncias que diversas personalidades nacionalistas
fizeram sobre as consequências nefastas que a decisão de
travar a instalação da Eletrobrás acarretaria para o país.

No governo Juscelino Kubitschek (1956-61) os principais


temas expressos no debate público encontrado pelas fontes –
elencadas abaixo – da presente pesquisa foram: o bloqueio
ao Plano Nacional de Eletrificação e do projeto da Eletrobrás
pelo Congresso – na carta testamento deixada pelo
presidente Vargas este afirmou que a "Eletrobrás foi
obstaculizada até o desespero". De fato, a Eletrobrás seria
obstaculizada "até o desespero" por mais sete anos; a disputa
pelos recursos do Fundo Federal de Eletrificação (FFE) – onde
se destaca a defesa dos representantes da linha privatista no
acúmulo de recursos do FFE e a sua liberação para uso das
concessionárias estrangeiras de energia elétrica – Light and
Power e Amforp; a crítica empedernida efetuada pelos
privatistas ao Código de Águas e a ausência de um projeto
do governo Juscelino Kubitschek para o setor de energia
elétrica, e dessa forma pode-se concluir que tal governo deu
continuidade ao programa varguista.
275
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O debate sobre o projeto de Estatização do setor de energia


elétrica

No governo Juscelino Kubitschek (1956-61) identifica-se


alguns temas relevantes sobre aos quais busca-se aqui
adentrar de forma introdutória: a continuidade do projeto
governamental – o Plano Nacional de Eletrificação e do
projeto da Eletrobrás - gestado no último período getulista,
mas sua rejeição por integrantes do próprio governo e a
continuidade de seu bloqueio no Congresso Nancional pela
bancada privatista; a discussão sobre a destinação e uso dos
recursos do Fundo Federal de Eletrificação (FFE), a crítica dos
privatistas no interior da socieade civil e no interior do próprio
poder executivo ao Código de Águas que regulava o setor de
energia elétrica (tarifas, margem de lucros, etc..)
De posse dos documentos3, procura-se, aqui, resgatar
de cada um os módulos nodais ou conceituais que,
reintegrados em seus nexos constitutivos, explicam-nos sua
especificidade histórica, conforme o tripé Lukacsiano.
Visando a tal reconstituição, passa-se a extrair dos
discursos categorias conceituais que nos possibilitassem
circunscrever o objeto em seus nexos constitutivos, na lógica
da ontologia marxiana, conforme resgatada por Lukács, ou
seja, pelo tripé: da análise imanente, da reconfiguração dos
nexos que comprovem a determinação social do

3 Extraídos das: Revista Conjuntura Econômica, Revista Brasiliense,Revista Anhembi, Revista Engenharia e
Revista do Clube de Engenharia. Além das fontes primárias acima arroladas, extraímos também informações
relevantes das obras de autores que, já na época, ou trouxeram a público suas reflexões teóricas sobre a
questão ou tiveram a preocupação de publicar suas memórias, ou ainda que, no início da década de 90 e,
portanto, já em idade avançada, prestaram depoimentos ao Centro de Memória da Eletricidade, em parceria
com a Fundação Getúlio Vargas.
276
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

pensamento e da ideologia4 que nos revela a função social


que cumpriu o pensamento explicitado naquele debate, isto
é, a que interesses de classe atendia.
Desta forma, na medida em que a documentação,
inicialmente fragmentada foi sendo reordenada conforme
seus vetores constitutivos, o acontecimento histórico5 mostrou-
se na medida dos aspectos circunscritos à escolha deste
autor.
Como elucidou Milney Chasin: “A categoria deve ser,
portanto, algo além que a mera apreensão caótica,
desordenada, do todo. Apreender categorialmente,
representar idealmente um complexo real, é exprimir a rede
de relações e nexos que o articulam na efetividade. Não é
atribuir articulação, mas reconhecê-la na forma do ser, em
sua riqueza e diversidade, e permanecer sempre referido a
ela. ”(CHASIN, 1999: 7)

No caso, apreender o embate sobre o modelo de


eletrificação a ser adotado pelo governo no país como
expressão das determinações sociais que o engendram e de
cuja formação privatistas e nacionalistas6 participam

4 Entende-se por ideologia, aproximando-se das proposições de István Mészáros, “uma forma específica de
consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal é insuperável nas sociedades de classe.
Sua persistência obstinada se deve ao fato de ela se constituir objetivamente (e reconstituir-se constantemente)
como consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a articulação de conjuntos de
valores e estratégias rivais que visam ao controle do metabolismo social sob todos os seus principais aspectos”.
Sobre o tema, ver: István MÉSZÁROS, O poder da ideologia, pp. 13-27.
5 Dado que num texto para um artigo não haveria condições para resgatar todos os aspectos que as questões

aqui aventadas contêm, concentrar-se-á este estudo no embate havido entre os que foram então denominados
privatistas e nacionalistas, sobretudo nas manifestações de desamor ante o projeto de criação da Eletrobrás e o
Plano Nacional de Eletrificação, dentro e fora do governo Juscelino Kubitschek.
6 Os privatistas assim eram designados por entenderem que o setor elétrico deveria continuar sob o controle

das concessionárias privadas estrangeiras, pelo que eram denominados por seus adversários de entreguistas.
Outro aspecto sobre o qual manifestavam divergências era quanto ao grau de centralização e intervenção do
governo federal nos Estados e, neste sentido, embatiam-se sobre o modelo de intervenção do Estado na
ampliação da capacidade do setor de energia elétrica no Brasil. Os nacionalistas ou tupiniquins defendiam uma
forte participação do Estado nos setores de infra-estrutura – como energia elétrica – e no setor produtivo. Além
disso, identificavam os grupos estrangeiros e seus aliados no Brasil como os grandes inimigos da
industrialização. Os privatistas, por sua vez, alegavam que somente a participação do capital estrangeiro
poderia impulsionar o processo industrial, e com isso, superar o estágio de subdesenvolvimento em que o país
se encontrava.
277
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

enquanto sujeitos.

Buscar-se-á, portanto, trazer à tona a determinação


ontológica dos entes históricos, uma vez que, tomando-se o
objeto como portador “de uma configuração de natureza
ontológica, o propósito essencial desta teoria é identificar o
caráter da política [sobre a Eletrobrás], esclarecer sua origem
e configurar sua peculiaridade na constelação dos
predicados do ser social. “(CHASIN, 1995: 367-8)
Nas balizas deste artigo, não se ambiciona avaliar ou
apresentar a natureza do governo de Juscelino Kubitschek.
Remete-se o leitor a destacados trabalhos já existentes sobre o
tema. (MARINI, 2002; SOUZA, 2004; BENEVIDES, 1979;
MARANHÃO, 1994; GOMES, 1991). Todavia, há certo número
de observações que se torna imperioso fazer-se, para elucidar
a matéria em pauta. O governo Juscelino Kubitschek significou
mutações muito significativas para a economia brasileira. Sob
o comando Kubitschekiano:

“operou-se uma ruptura quase total com a


orientação da política econômica anterior, e
isto em dois níveis: na redefinição do novo
setor industrial a ser privilegiado pelo Estado e
no estabelecimento das novas estratégias
para o financiamento da industrialização
brasileira.” (MENDONÇA, 1986: 45)

Por outras palavras, como demonstrou Francisco de


Oliveira, sob o governo Juscelino Kubitschek abre-se caminho
para um novo padrão de acumulação: “O padrão de
acumulação de capital imposto no novo ciclo centrava-se,
agora, numa expansão sem precedentes do chamado
278
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Departamento III da economia [Bens de consumo duráveis]”.7


(OLIVEIRA, 1980: 84) Destarte, como já foi dito, a
“impetuosidade com que se instalou o setor de bens de
consumo duráveis incentivou, igualmente, a ampliação dos
investimentos estatais em infra-estrutura […]”. (MENDONÇA,
1986, p. 50.)
Como o governo Juscelino Kubitschek buscou resolver
as carências no campo infraestrutural, mais especificamente,
no setor de energia elétrica?
Advoga-se aqui, a partir das fontes analisadas, que a
ação do governo Juscellino Kubitschek em relação ao setor
elétrico o foi paradoxal. Paradoxismo este, que sintetiza vários
elementos constitutivos do que se chama de Capital Atrófico.8
Por um lado tomou iniciativas onde o Estado ocupou o centro
da cena para colocar em ação a meta mais importante – no
âmbito infra-estrutural – de seu audacioso plano de 50 anos
de desenvolvimento em 5 anos de governo: meta energia 9,
pautado no Projeto de criação da Eletrobrás formulado por
Getúlio. No entanto, por outro lado, membros do próprio
governo trabalharam para barrar o andamento do Plano
Nacional de Eletrificação e da Eletrobrás herdado do goveno
de Geúlio Vargas.

7 O padrão de acumulação dos chamados “50 anos em 5” apresentava um problema capital: uma grave
desproporcionalidade entre o Departamento I (Bens de Produção) e o Departamento III. O primeiro constituído
ainda de forma parcial e o segundo cujas proporções superavam a envergadura de produção interior do
primeiro. A solução encontrada para a desproporcionalidade entre os Departamentos I e III foi a busca de
capital estrangeiro, por meio de investimentos diretos, viabilizados pelo arcabouço jurídico consubstanciado na
Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC). No plano interno, o governo JK recorreu
ao financiamento inflacionário para suprir as necessidades de infraestrutura, como por exemplo, energia.
(OLIVEIRA, 1980: 85-6)
8Capital atrófico é a designação específica dada por J. Chasin ao capital que aqui se configurou, caracterizado

por sua debilidade e timidez objetivas, próprias a um capital induzido externamente, incapaz de perspectivar sua
autonomia, incompleto e incompletável, assentado na super-exploração da força de trabalho, impossibilitando a
incorporação das classes subalternas e a criação de um mercado consumidor de massas. A este tipo de capital
corresponde uma burguesia débil e tímida, autocrática e subordinada ao imperialismo, enquanto internamente
oprime econômica e politicamente a classe trabalhadora. Sobre o tema, ver: J. CHASIN, A miséria brasileira,
passim e O integralismo de Plínio Salgado.
9 A meta energia representava 43,4% dos investimentos totais. A meta energia elétrica representava parte mais

significativa dos recursos destinados a meta energia. (CARONE, 1985: 83)


279
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

O que se observa das falas destes críticos, integrantes


do governo (vários destes membros do primeiro escalão do
governo), é que o impasse vivido pelo Estado no período JK
pode ser resumido em que: não são contra a estatização, mas
sim contra a centralização pelo receio de que a estatização
não permitiria o uso de recursos públicos pela iniciativa
privada, a quem defendiam para impulsionar a expansão do
setor.
Exemplo das críticas, predominantemente negativas, ao
projeto da Eletrobrás se deu entre 9 e 13 de Abril de 1956.
Naquela oportunidade ocorreu em São Paulo, mais
especificamente no Instituto de Engenharia, a Semana de
Debates sobre Energia Elétrica. A análise do conteúdo dos
Anais desta Semana denota uma superioridade numérica
flagrante entre os participantes dos debates defendendo
teses privatistas para solucionar os problemas do setor elétrico
e que, nesta condição manifestaram, por assim dizer, seu
desamor em relação à proposta governamental de criação
da Eletrobrás que era a mesma do período Getulista. Ou seja,
tal evento havia sido organizado para ser um verdadeiro
manifesto contra a proposta da Eletrobrás e os ouvintes
evidentemente aplaudiam efusivamente as propostas
privatistas.
No dia 13 de Abril o economista Roberto Campos,
mediador dos debates e também membro do alto escalão do
BNDE se pronunciou criticamente acerca do projeto da
Eletrobrás ao passar a palavra a um dos comentaristas da
conferência10:
“Esperava termos um ensaio de dialética, e
estamos tendo um monólogo cartesiano.

10 Altercava-se com o discurso do também empresário Octavio Marcondes Ferraz.


280
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Espero que o Dr. [John] Cotrim injete a pimenta


da controvérsia no debate e queria perguntar-
lhe, por exemplo, se S. Sa. Participa do
desamor à “Eletrobrás”, manifestado pelo
conferencista e pelos dois outros debatedores,
e do qual confesso também
participar.”(INSTITUTO DE ENGENHARIA, 1956:
261. Grifo nosso.)

Observa-se que Roberto Campos manifestava


abertamente seu desamor em relação à Eletrobrás e viria a
manifestar novamente esta opinião anos mais tarde ao
escrever suas memórias, como observa-se abaixo.
É imperioso aventar que Campos não era um
participante comum da Semana de Debates sobre Energia
Elétrica. O economista era um dos mais destacados membros
do governo Kubitschek. Desde o início deste governo esteve
no centro das decisões relativas à economia nacional.
Integrou a equipe de técnicos que estabeleceu um programa
que deveria guiar a política econômica kubitschequiana.
Como ele mesmo lembra “Eu trabalhei com o Lucas [Lopes],
ele me pediu sugestões e dei mais de uma carta a ele.
Fizemos juntos o documento "Diretrizes do Plano de
Desenvolvimento", que foi o início do Plano de Metas.” Foi
diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDE) e em 1958 se tornou presidente do banco de fomento
estatal. Antes mesmo de sua participação no governo
Kubitschek, em carta escrita a Lucas Lopes, também
presidente do BNDE a partir de 1956 e posteriormente ministro
da fazenda, RC declarava:

“No setor de energia já a posição do Estado


deve ser mais modesta, por estar ainda viva,
ou ser facilmente ressuscitável, a iniciativa
281
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

privada. O Estado deveria, assim, investir


pioneiramente, buscar capitais privados
através do sistema de sociedades de
economia mista e, finalmente, aumentar a
lucratividade da indústria para atrair capitais
privados.” (CAMPOS, 1994: 320.)

Como se pode inferir, Campos, então diretor-


superintendente do BNDE, 1955, já advogava modesta
participação do Estado no setor elétrico. Fica claro que, para
ele, o papel do Estado neste campo deveria ser
prioritariamente de apoiar a iniciativa privada, fazendo com
que ela ampliasse seus lucros. Ou seja, para Campos não
havia necessidade de intervenção do Estado naquele setor
da infra-estrutura do país e as concessionárias estrangeiras de
energia elétrica, dotadas de lucros maiores poderiam dar
conta das necessidades cada vez maiores de energia
elétrica. No entanto, a realidade desmentia Campos, pois,
embora a distribuição já estivesse nas mãos da iniciativa
privada, os principais centros urbanos do país viviam sob a
ameaça ou mesmo sob a realidade dos racionamentos de
energia elétrica.
Em suas memórias ele segue destacando a importância
da energia no Plano de Metas e novamente manifesta seu
desamor ante a ação do Estado no setor elétrico:

“A meta de energia elétrica se desdobrou


basicamente em torno de alguns grandes
projetos, para os quais se destinavam recursos
do Fundo Federal de Eletrificação, criado por
legislação sancionada nos primeiros dias do
governo Café Filho. Na formulação dessa
legislação do setor de energia elétrica
prevaleceu a inspiração algo estatizante da
Assessoria Econômica de Vargas, chefiada por
282
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Rômulo de Almeida. Compunha-se ela


essencialmente de quatro peças: a
regulamentação do imposto único sobre
energia elétrica, previsto na Constituição de
1946; a criação do Fundo Federal de
Eletrificação e a criação da Eletrobrás.”
(CAMPOS, 1994: 331.)

As palavras de Campos em primeiro lugar demonstram


que foram privilegiadas no setor elétrico durante os anos JK, as
grandes obras como a construção de FURNAS, mas, sobretudo
as palavras do ex-ministro voltam a demonstrar sua
inquietação com os princípios que orientavam a legislação do
setor elétrico, ou seja, a inspiração estatizante.
Em outro momento de suas memórias o ex-ministro
manifesta abertamente seu desamor em relação à criação
mesma da Eletrobrás:

“Como já relatei ao discutir a história da


criação do BNDE, nem Glycon de Paiva nem
eu simpatizávamos com o Plano Nacional de
Eletrificação, que era mera listagem de obras,
sem adequado embasamento em projetos ou
avaliação de prioridades. Não víamos também
urgência na instalação da Eletrobrás, que
representaria uma nova estrutura burocrática
centralizante. No folclore jornalístico da época,
atribuía-se o adiamento da criação da
Eletrobrás a pressões das concessionárias
(AMFORP e Light), coisa absolutamente
inverídica. Conquanto essas empresas não
vissem com simpatia a concentração de
recursos na holding, sua impopularidade e
carência de apoio político agiam como
inibidores das pressões que desejassem fazer.
Somente o vezo conspiratório da época
poderia levar Getúlio Vargas, em sua
dramática carta-testamento, à gongórica
assertiva de que “a Eletrobrás fora
283
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

obstaculizada até o desespero””. (CAMPOS,


1994: 331.)

O pensamento de Campos é categórico: como diretor


do BNDE e depois seu presidente não simpatizava com o PNE
e não via urgência, e porque não dizer necessidade na
criação da Eletrobrás. Ressalta-se ainda que Campos procura
desqualificar o PNE, além de desdenhar da necessidade de
criação da Eletrobrás. Além disso, procura desqualificar
também as opiniões daqueles que entendiam que a
Eletrobrás era ameaçada pelas ações subterrâneas das
empresas estrangeiras.
Neste sentido nota-se Roberto Campos, em suas
memórias, traçar um painel acerca das posições que se
colocavam como alternativas para solução dos problemas do
setor elétrico. Para ele havia três posições: privatistas,
estadualistas e federalistas. A posição dele era muito clara
advogando pelo privatismo:

“Deve-se dizer, a bem da verdade, que as


posições eram bem matizadas. Pode-se
mesmo falar em três escolas de pensamento: a
dos privatistas, a dos estadualistas e a dos
federalistas. Para os privatistas, como Glycon
de Paiva e eu próprio, era desnecessária a
estatização dos serviços, pois isso implicaria
renunciar à colaboração de investidores
estrangeiros, num setor intensivo de capital. O
problema a nosso ver, era basicamente de
demagogia tarifária. A defasagem entre as
tarifas e inflação de custos havia
desencorajado investimentos privados no setor,
mas a solução real repousaria numa
reformulação realista do sistema tarifário. Os
estadualistas – concentrados notadamente na
CEMIG e na USELPA – favoreciam a
intervenção estatal, mas desejavam que ela se
284
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

fizesse através das empresas “estaduais” de


energia elétrica. Receavam que a criação da
Eletrobrás redundasse em centralismo
burocrático e irrealismo tarifário, além de levar
a um esfarinhamento de recursos de dezenas
de projetos, sem embasamento técnico, mas
incluídos, por influências políticas, no Plano
Nacional de Eletrificação. Ambos os grupos se
aliavam na oposição ao “federalismo
centralizador” da montagem engenhada pela
assessoria de Vargas no Catete.” (CAMPOS,
1994: 332.)

O que se observa no discurso de Campos só enfatiza seu


posicionamento demonstrado nas fontes analisadas acima, ou
seja, uma clara condenação da participação do Estado no
setor elétrico, acompanhada da defesa da continuidade do
setor sob o controle das concessionárias estrangeiras de
energia elétrica. Para ele o que bastava para solucionar os
graves problemas enfrentados pelo setor elétrico era realismo
tarifário, ou seja, liberdade de majoração das tarifas por parte
das empresas o que lhes possibilitaria aumentar seus lucros e
consequentemente, investirem na expansão do setor.
Outros destacados integrantes do governo Kubitschek se
manifestaram contra o PNE e o projeto da Eletrobrás, como foi
o caso de Lucas Lopes que ocupou vários postos de comando
no primeiro escalão – dentre eles a presidência do BNDE e o
Ministério da Fazenda.
No Ciclo de palestras da Eletrobrás, promovido pelo
Centro de Memória da Eletricidade da Eletrobrás, Lopes falou
abertamente sobre seu trabalho de obstrução do projeto que
criava a estatal do setor elétrico:
285
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

“Eu trabalhei para que o Plano de Eletrificação


não tivesse prosseguimento no Congresso.
Indiretamente, trabalhei também para que o
projeto da Eletrobrás não fosse aprovado.
Tínhamos a preocupação de que, se a
Eletrobrás fosse aprovada nos termos do
projeto, enfrentaríamos sérias dificuldades. […]
Uma crítica freqüente ao projeto era de que
ele afunilava todas as decisões em um
conselho ao lado da Presidência da
República. Ora, isso era uma completa
incongruência! Impossibilitava a seqüência de
um Plano de Eletrificação fluente. Nós
achávamos que devíamos evitar que isso
acontecesse.” (DIAS (Org.), 1995:57)

Aparentemente o que incomodava Lopes era o


caráter centralizador que tanto o PNE como o projeto da
Eletrobrás continham. Em suas memórias, publicadas pelo
Centro de Memória da Eletricidade da Eletrobrás, Lucas Lopes
volta ao tema do bloqueio da Eletrobrás no congresso e
explica da seguinte forma:

“Acho até que ajudou! Como já disse


anteriormente, o BNDE não era contra a
Eletrobrás, mas também não tinha o menor
interesse em apressar o Congresso para
aprová-la enquanto não houvesse condições
realmente adequadas. Tínhamos muito medo
de que o Fundo Federal de Eletrificação fosse
entregue a uma organização despreparada
em termos de administração e pudesse ser
pulverizado devido a pressões políticas entre
projetos para o Triângulo Mineiro, para Bahia,
Pernambuco ou Maranhão. Temíamos que
nada pudesse segurar a distribuição de
recursos pela Eletrobrás se ela não tivesse um
início com um corpo firme. Quando
concentramos nossos recursos em muito
286
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

poucos projetos, até esgotá-los, não demos


chances aos políticos de apresentar outros.
Nisso talvez tenha havido um pouco de malícia
política de nossa parte.” (CENTRO DA
MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL,
1991:188.)

As palavras de Lucas Lopes não deixam dúvida de que


importantes setores do alto escalão do governo Kubitschek
não aceitavam a idéia da criação de uma grande empresa
estatal para controlar o setor elétrico. Os motivos da oposição
à Eletrobrás pareciam um pouco diferentes entre eles, porém
concordavam em trabalhar contra a criação da empresa.
Observa-se assim como este segmento da burguesia nacional,
ou seja, o empresariado industriário, em que pesem as suas
divergências internas, se une em torno de uma meta comum:
no caso, a transferência para a iniciativa privada da
expansão do setor energético no país.

Além de Roberto Campos e Lucas Lopes pode-se


apontar outro técnico governamental, o Sr. Octavio
Marcondes Ferraz, também membro do governo Kubitschek
que se colocava claramente contra a Eletrobrás. Ferraz foi
diretor técnico da Companhia Elétrica do Vale do São
Francisco (Chesf) durante o governo Kubitschek, segundo ele
“muito provavelmente por influência do ministro Lucas Lopes,
que era quem mandava no setor de eletricidade.” (DIAS
(coord.), 1993: 144. Grifo nosso.) Em suas memórias manifestou
claramente sua posição em relação à estatização do setor
elétrico:
287
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

“Sou e sempre fui muito privatista, porque a


empresa particular tem sempre melhor
funcionamento do que a empresa pública. O
governo é mau administrador não só no Brasil,
como em toda a parte do mundo, e isso vem
sendo demonstrado na vida cotidiana.” (DIAS
(coord.), 1993: 135.)

E confirmou suas afirmações ao se referir à sua


participação na Semana de Debates sobre Energia Elétrica:

“Estava programada a realização de cinco


sessões na Semana de Debates; como eu era
sócio e havia sido membro do Conselho do
Instituto, convidaram-me para fazer uma das
conferências. Na exposição que fiz, defendi
meus pontos de vista, dizendo o que se devia
fazer em matéria de energia elétrica e
condenando a Eletrobrás, embora fosse meu
propósito não mais tocar nesse assunto. Mas a
Semana foi um grande sucesso.” (DIAS
(coord.), 1993: 173.)

Como se concluir observar as posições de Ferraz


coincidiam com as de Roberto Campos, dentre outros
opositores da Eletrobrás dentro do governo.

As manifestações de desamor em relação à Eletrobrás


não eram, portanto, uma manifestação de um burocrata
isoladamente. Era a expressão de um grupo de membros do
governo. Não se pode, aqui, afirmar ainda que era um grupo
articulado e organizado. Mas, de fato, pela documentação,
pode-se demonstrar que a posição de importantes membros
do governo, semelhantes às de Roberto Campos tenham
288
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

influenciado no desinteresse governamental em levar adiante


o projeto da Eletrobrás que tramitava no Congresso Nacional.

Curiosamente, perguntado em suas memórias sobre os


porquês que explicariam a paralisação do projeto da
Eletrobrás durante o governo Kubitschek, Ferraz afirma que
não entendia porque a estatal do setor elétrico não saiu do
papel sobre a batuta kubitschequiana. Para ele “o pessoal de
Minas é que deve saber dessas coisas. Não vejo por que
Juscelino não o fez [o projeto Eletrobrás] andar, mesmo
porque estava cercado de muita gente competente da
CEMIG. (DIAS (coord.), 1993: 172.)

De fato talvez o “pessoal de Minas” soubesse explicar,


sobretudo seu padrinho político no governo, Lucas Lopes.
Neste caso, como já foi aventado, a explicação não é tão
obscura assim. Por outras palavras, as críticas de Lucas Lopes
ao PNE e à Eletrobrás caminham muito próximas às de Roberto
Campos, ou seja, criticam o caráter centralizante dos projetos
em pauta. No entanto, nas considerações do ex-ministro da
Fazenda não se evidencia uma oposição específica à
presença do Estado no setor elétrico e sim de que forma ela se
daria, ou seja, por lhe parecer centralizante. O que se deduz é
que os contornos centralizantes não permitiriam a utilização
de recursos do Fundo Federal de Eletrificação (FFE) de forma
tão flexível por parte das concessionárias estrangeiras de
energia elétrica.
De fato os recursos do FFE significavam somas
consideráveis. Sua administração ficava a cargo do BNDE, o
que fazia do banco o verdadeiro gestor do setor de energia
elétrica enquanto a empresa estatal não fosse criada. Com
isso qualquer diretriz para o setor elétrico necessariamente
289
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

passava pela equipe que comandava o BNDE. Como já foi


aventado, essa equipe tinha como seus principais
mandatários, Lucas Lopes na presidência do banco e Roberto
Campos na sua superintendência. Lopes “não tinha o menor
interesse em apressar o Congresso para aprová-la [a
Eletrobrás].” Para Campos “era desnecessária a estatização
dos serviços.” Roberto Campos, por exemplo, acerca do
papel do BNDE lembra que no:

“tocante ao setor público, a coordenação se


fazia através do BNDE, dado que este dispunha
de três instrumentos – os recursos do programa
de reaparelhamento econômico, os avais e
garantias para a obtenção de financiamentos
externos e, finalmente, os recursos vinculados
dos diferentes fundos que eram administrados
pelo BNDE ou ali depositados. Durante um
certo prazo o BNDE chegou, na realidade, a
controlar uma massa de recursos equivalente a
5% do PIB.” (CAMPOS, 1994: 318.)

Como se pode observar a equipe que chefiava o BNDE


era detentora de recursos muito significativos e sua alocação
definitivamente determinava os caminhos de vários setores da
infra-estrutura do país, sobretudo o setor elétrico.

Em suas memórias Lucas Lopes pormenorizou como se


dava o processo de gestão dos recursos do FFE, desde sua
arrecadação até sua aplicação final:

“O mecanismo do Fundo Federal de


Eletrificação era o seguinte: o Banco do Brasil
arrecadava os impostos sobre energia elétrica
e, em vez de depositá-los na conta geral do
Tesouro, depositava-os numa conta especial
290
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

do Fundo Federal de Eletrificação. Esses


recursos depois eram transferidos para o BNDE
na proporção em que este os solicitava para
aplicação em projetos específicos. Na época
em que fui presidente do BNDE, nenhum
recurso do Fundo Federal de Eletrificação era
alocado sem prévia aprovação do projeto,
que se fazia segundo a rotina do banco: os
órgãos competentes examinavam o dossiê
completo dos projetos, com previsão de
custos, e só então o aprovavam, em alguns
casos depois de consulta ao presidente da
República.” (CENTRO DA MEMÓRIA DA
ELETRICIDADE NO BRASIL, 1991: 186.)

O dado curioso do pensamento de Lopes expresso


acima é que segundo ele na “época em que fui presidente
do BNDE, nenhum recurso do Fundo Federal de Eletrificação
era alocado sem prévia aprovação do projeto, que se fazia
segundo a rotina do banco.” Pois bem, uma das principais
críticas feitas pela equipe do BNDE ao projeto da Eletrobrás
era a de que tal projeto era centralizador e assim sendo,
comprometia-se a fluência dos projetos para o setor elétrico.
Segundo as próprias palavras de Lopes nenhum recurso do FFE
era alocado sem prévia aprovação do projeto por parte do
Banco. Tal prática não se constituía num processo
centralizador? (e não discute-se aqui, se isso era uma prática
correta ou não). A questão que se coloca é: por que a
centralização do setor elétrico por parte da equipe do BNDE
era pertinente e a mesma centralização proposta pelo projeto
da Eletrobrás não?

Dentro do mesmo tema Lucas Lopes lembra ainda do


papel executor de política para o setor elétrico exercido pelo
BNDE, bem como suas relações com outros órgãos públicos
291
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

relacionados ao setor elétrico, tanto no âmbito federal como


no âmbito estadual:

“vamos ser objetivos: o BNDE não executava a


seu bel prazer. Através da Cemig já tínhamos
estabelecido um estreito relacionamento com
o Conselho Nacional de Águas e Energia
Elétrica, e mantínhamos com ele contato
permanente. E nunca tivemos conflitos graves,
a não ser com a Comissão de Águas e Energia
Elétrica de São Paulo, do Catulo Branco. Era o
grupo mais à esquerda da política paulista de
eletricidade, que queria fazer [a usina de]
Caraguatatuba e perdia um tempo enorme
discutindo política tarifária. Os grandes
trabalhos deles eram volumes e mais volumes
sobre como fazer uma política tarifária para a
Light. Pouco me incomodava naquele
momento a tarifa da Light, eu precisava que
ela não parasse, que existisse energia! Pode
parecer estranho o meu modo de falar, mas
quero que com isso vocês sintam minha
honestidade. Eu não tinha vinculação alguma
com a Light, não estava interessado em saber
se ela tinha ou não tinha lucro, o que eu
precisava era apenas que ela não parasse de
distribuir energia aos consumidores.” (CENTRO
DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL,
1991:187-188.)

É importante fazer algumas observações sobre mais


esse momento das memórias de Lucas Lopes.

Procura Lopes demonstrar que o BNDE não agia de


forma autônoma e indiscriminada quando se tratava de
política para o setor elétrico. No entanto, considera que sua
equipe contou com “um pouco de malícia política” ao
292
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

concentrar seus recursos “em muito poucos projetos, até


esgotá-los”.

Outro ponto relevante do discurso do engenheiro


Lucas Lopes acima é mais uma vez a tentativa de
desqualificar aqueles que não comungavam das teses da
equipe do BNDE, a exemplo da equipe de Catulo Branco11,
sobretudo ao afirmar que “perdia um tempo enorme
discutindo política tarifária”.

Neste sentido o ex-ministro procura demonstrar que


mantinha uma relação de equilíbrio com os órgãos que
regulavam o setor de energia elétrica, com exceção da
Comissão de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, do
Catullo Branco.

É de suma importância enfatizar que não nos parece


que discutir política tarifária seria uma perda de tempo. Desta
discussão dependia uma série de fatores, por exemplo, se os
consumidores, com os quais ele se manifesta em suas
memórias, tão preocupado em atender, poderiam arcar com
o pagamento das tarifas de energia elétrica ou não. Ademais,
declarar que “não estava interessado em saber se ela tinha
ou não tinha lucro” não nos parece uma postura correta para
um administrador público para o qual deveria ser importante,
e muito, o controle dos lucros de uma empresa concessionária
de um serviço público monopolizado.

Destarte ficam evidentes os obstáculos que os


entusiastas do projeto de criação da Eletrobrás viriam a

11Catullo Branco era paulistano. Nasceu em 30 de maio de 1900. Formou-se como engenheiro pela Escola
Politécnica em 1924, trabalhou na Secretaria de Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo de 1929 a
1959 tendo se ausentado de 1946 a 47 quando foi eleito deputado estadual sob a legenda do Partido
Comunista do Brasil (então PCB). Militante comunista, apontou constantemente o papel do imperialismo na
manutenção do atraso social e econômico do Brasil, em particular a influência das empresas estrangeiras de
energia elétrica.
293
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

enfrentar para que a empresa se torna-se uma realidade.


Entretanto, não eram apenas os técnicos governamentais que
integravam o governo que defendiam a posição das
multinacionais. Além deles, muitos intelectuais
vinculados à área de energia que, através de institutos,
opinavam sobre as políticas públicas para o setor e também
defendiam, através de seus veículos de comunicação, o
intento da privatização e isto antes mesmo do governo JK. Era
o caso dos integrantes do Instituto de Engenharia, e neste
sentido é bem significativo o parecer que, em outubro de
1954, sua Revista Engenharia apresenta sobre o PNE e
Eletrobrás. O parecer do Instituto de Engenharia é um
verdadeiro libelo liberal e privatista. Tal fato denota o desamor
pelo projeto da Eletrobrás entre os adeptos do privatismo,
antes do início do governo Juscelino Kubitschek, mas que só
iria se intensificar com a chegada do ex-governador de Minas
Gerais ao poder máximo da república. O referido parecer
afirma ainda que o governo não atentou para as
advertências feitas por vários órgãos insistindo na proposta de
estatização do setor elétrico que segundo os pareceristas do
Instituto de Engenharia trariam muitos ônus para os
contribuintes. (REVISTA ENGENHARIA, 1954: 77)
Em suma, para sanar os graves problemas da escassez
de energia elétrica, gerada pela insuficiência de investimentos
por parte das concessionárias estrangeiras, que não se
interessavam mais em investir no setor a menos que a
remuneração do capital investido fosse bastante majorada, o
órgão representativo dos engenheiros paulistas propunha que
os recursos públicos fossem entregues à Light and Power e a
Amforp. Neste caso a iniciativa privada não faria a felicidade
294
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

de um povo e sim dos acionistas das concessionárias


estrangeiras de energia elétrica.

A postura privatista dos integrantes do governo JK foi


alvo de muitas divergências não apenas dos altos escalões do
governo, mas também entre os integrantes da própria
burguesia que comungavam outros interesses e, portanto
defendiam posições contrárias à dos acima citados. Suscitou
também controvérsias entre integrantes da sociedade civil,
que se manifestava através do Partido Comunista Brasileiro, de
técnicos intelectuais e políticos e cujas posições expressavam
em jornais da época.

Trata-se dos nacionalistas que denunciavam a ação


dos mais altos escalões do governo Kubitschek como nocivas
aos interesses nacionais. Em depoimento concedido por Jesus
Soares Pereira ao jornalista Medeiros Lima em 1975, este
engenheiro que, em 1953 foi responsável pela formulação dos
projetos para o setor elétrico, inclusive, pelo projeto da
Eletrobrás e que no governo Kubitschek foi coordenador da
assessoria técnica do Ministério da Viação e Obras Públicas,
lembra que “a Eletrobrás, durante o governo do Dr. Juscelino
Kubitschek de Oliveira, não recebeu nenhum impulso
favorável.” (LIMA, 1975: 131), pois representantes do alto
escalão do governo Kubitschek trabalhavam contra o projeto:

“Na verdade, a alta cúpula do BNDE, na


época, se esforçava para que a Eletrobrás não
vingasse. Pessoalmente tive oportunidade de
debater esta questão com alguns de seus
membros. Julgavam eles que o Banco apto
não só a gerir os recursos como a conduzir em
programa oficial de expansão dos sistemas
elétricos, quer da União quer dos estados,
295
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

através de simples financiamento e de mera


atuação de natureza bancária. Meu ponto de
vista era diferente. Não só não achava que
bastassem os recursos financeiros, como
acreditava que estes não deveriam ser de
exclusiva origem bancária. Impunha-se, antes
de tudo, uma direção orgânica capaz de
encarar as questões de todos os pontos-de-
vista. Era exatamente isto que se estava
pretendendo evitar. Uma direção orgânica,
liderada por uma empresa estatal, importava
no fim a política tradicional das concessões,
ferindo portanto interesses grandes.” (LIMA,
1975: 129.)

A apreciação de Pereira de que “a alta cúpula do


BNDE, na época, se esforçava para que a Eletrobrás não
vingasse” não é novidade, conforme já vimos anteriormente
pelos depoimentos de Roberto Campos e Lucas Lopes.

A peculiaridade do depoimento de Pereira é apontar


como causa dessa luta contra a Eletrobrás a intenção desses
representantes do governo de evitar a estatização do setor
elétrico em benefício da manutenção do sistema de
concessão do serviço de utilidade pública de energia elétrica
nas mãos das concessionárias estrangeiras.

Entre os temas aventados pelos representantes do


pensamento nacionalista é importante destacar a questão da
gestão dos recursos do FFE por parte do BNDE e sua
destinação em parte para os projetos das concessionárias
estrangeiras de energia elétrica. Sobre esse tema Jesus Soares
Pereira afirma:
296
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

“[...] Porque não marchava a lei? Porque ao


Executivo não parecia conveniente o
surgimento da Eletrobrás. […] Enquanto a
Eletrobrás não fosse criada, esses recursos [do
FFE] seriam geridos pelo BNDE. Este então,
como tive oportunidade de lembrar no
decorrer destas nossas conversas, passou a
trabalhar contra o surgimento da Eletrobrás.
Era uma deturpação de sua função.
Pessoalmente discuti muito este aspecto da
questão. O BNDE era apenas um organismo de
financiamento. A solução do problema da
energia elétrica exigia uma empresa
específica; uma só, não um holding. Um
holding para comandar uma constelação de
empresas, como é de fato hoje a Eletrobrás.
Entretanto a máquina do Estado, através
daquele órgão financeiro, se desinteressou da
marcha do projeto. Foi uma falta grave por
parte dos homens que cercavam o Dr.
Juscelino Kubitschek.” (LIMA, 1975: 159.)

A análise de Jesus Soares Pereira demonstra,


sobretudo, que havia uma deturpação na função do BNDE,
pois, no caso do setor elétrico, este órgão governamental
deixava de ser um organismo de financiamento para ser um
órgão gestor e executor de políticas no setor de energia
elétrica. Pereira afirma em sua entrevista o que outros
representantes do pensamento nacionalista já haviam
afirmado à época ou em outras entrevistas posteriormente: o
BNDE não abria mão de concentrar os recursos financeiros do
setor elétrico e apontar onde estes deveriam ser investidos.

O que muitos representantes do pensamento


nacionalista denunciavam á época e posteriormente é que
parte destes recursos acabava por ser destinada às
concessionárias estrangeiras de energia elétrica. Sobre este
297
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

tema também relembrou o jornalista e notório representante


do pensamento nacionalista, Barbosa Lima Sobrinho:

“As mensagens de Getúlio Vargas se


dedicavam a dois problemas, o da criação do
Fundo de Eletrificação e o da fundação da
Eletrobrás. É obvio que a mensagem destinada
à criação de recursos, com que financiar a
expansão das fontes de energia elétrica, não
demorou no seu trânsito pelas duas Casas do
Congresso Nacional. O que não chegou a
suceder à outra mensagem, que criava a
Eletrobrás. [...] Mas bastaria demorar a criação
dessa empresa pública, para que os recursos
do imposto fossem se acumulando,
estimulando o apetite das empresas
estrangeiras que já funcionavam no Brasil e
que representavam, nos cálculos de Jesus
Soares Pereira, cerca de 85% da produção de
energia elétrica no Brasil, como era o caso da
Light e das Empresas Elétricas Brasileiras. Num
jogo de mágica, bastaria retardar a criação
da empresa pública, para que fossem surgindo
os candidatos ao seu aproveitamento, nas
empresas privadas estrangeiras.” (QUEIROZ,
1997: 201.)

Como pode-se observar para Barbosa Lima sobrinho


havia um interesse muito claro no retardo da criação da
Eletrobrás: era garantir que os recursos do FFE se mantivesse
destinado às concessionárias estrangeiras atuando no setor de
energia elétrica. E por isso segundo ele:

“a mensagem da criação da Eletrobrás ficou


engavetada no Congresso Nacional, de 1954
298
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

a 1961, apesar de sua urgência, num momento


em que o fornecimento de energia elétrica
atravessava fases de escassez que chegavam
ao racionamento, com enormes perdas para a
economia nacional.” (QUEIROZ, 1997: 201)

Inúmeras denúncias sobre a destinação de recursos do


FFE para os projetos das concessionárias estrangeiras de
energia elétrica foram feitas na época.
Em 1959, num editorial da Revista Brasiliense, o
intelectual Elias Chaves Neto denuncia empréstimos do BNDE
à Light, bem como o uso de recursos do FFE para
financiamentos das obras de Furnas onde a empresa
canadense e a Amforp tinham participação:
“Sem mencionar os 500 milhões de cruzeiros já
adiantados à Light pelo Banco de
Desenvolvimento Econômico[…].Tudo isso sem
mesmo se levar em conta o empréstimo de 9
bilhões de cruzeiros, sendo 3 bilhões e 300
milhões fornecidos com os recursos próprios do
Banco de Desenvolvimento Econômico e o
restante por conta do Fundo Federal de
Eletrificação, feito à Central Elétrica de Furnas,
sociedade mista da qual fazem parte Light e
Bond and Share, juntamente com o governo
federal e os governos dos Estados de São Paulo
e Minas Gerais.” (CHAVES NETO, 1959: 34)

Em 1956, num artigo intitulado “O problema da energia


elétrica”, Elias Chaves Neto chama atenção para o fato de
que não havia um plano de eletrificação concreto aprovado
e que, portanto, grande parte dos recursos do FFE poderiam
ter como destino os cofres das concessionárias estrangeiras de
energia elétrica:
299
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

“Qual o destino a ser dado a esta imensa soma


de dinheiro, isto é, quais as obras que com a
mesma deverão ser executadas é a primeira
questão a ser resolvida. Portanto, a primeira
questão é a elaboração de um plano. Nem se
justifica que se criem impostos para a
execução de obras que não foram sequer
planificadas. Há aí uma inversão dos princípios
fundamentais das finanças públicas (cuja
receita é calculada em função da despesa) a
qual só se explica pelo propósito já referido de
se financiarem aquelas que estão sendo
realizadas pela Light e a Bond and Share,
dispensando-se portanto a existência de um
plano; e este é o ponto de vista do governo, o
qual vetou a emenda apresentada em
plenário, conferindo-lhe o prazo de 180 dias
para apresentação do plano. Resta saber se a
atitude do governo é acertada.” (CHAVES
NETO, 1956: 68.)

Nota-se que a preocupação de Chaves Neto, como já


foi aventado por outras fontes, era a de que não havia como
se utilizar adequadamente os recursos do FFE e sendo assim
estes poderiam realmente ser destinados às companhias
estrangeiras de eletricidade12.
No entanto, havia sim um plano: o PNE que havia sido
elaborado pela Assessoria Econômica do presidente Vargas,
comandada por Jesus Soares Pereira. A dificuldade estava no
fato do PNE ser boicotado pela equipe do BNDE empossada
pelo governo JK.
A partir das fontes exploradas por esta pesquisa
observa-se que dentre os temas que causavam polêmica
entre os envolvidos no debate sobre o setor elétrico era qual
espaço e em que condições o Estado deveria interferir no
referido setor da economia. Nesse campo encontra-se nas
12 Vide documentação constante do Acervo da Revista Brasiliense.
300
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

fontes, as críticas dos setores nacionalistas à tendência de


configuração do setor elétrico onde cada vez mais o Estado
brasileiro ocuparia o espaço da geração e transmissão e as
concessionárias o espaço de sua respectiva distribuição. Tal
configuração nos parece apontar indícios da situação
paradoxal que viveu o governo Kubitschek no que se refere
ao setor elétrico. Paralelamente ao investimento de grandes
somas num projeto importante como a construção de
FURNAS, tinha entre seus membros convictos detratores do
projeto de criação da Eletrobrás.
Para os colaboradores da Revista Brasiliense “a política
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, no setor
de eletricidade, tem sido ditada pelos interesses das empresas
estrangeiras.” (OHLWEILER, 1959:18.)
No entanto, parece que era interesse das empresas
estrangeiras de energia elétrica se afastarem do campo da
produção e transmissão de energia elétrica, mantendo-se
apenas no setor da distribuição por ser mais lucrativo. Num
artigo intitulado “Por uma política nacionalista no setor da
eletricidade”, de 1959, Otto Alcides Ohlweiler destaca esta
postura:

“É conhecida a tendência das empresas


estrangeiras de eletricidade se limitarem cada
vez mais ao serviço de distribuição de energia
elétrica nos grandes centros em que operam,
deixando ao poder público a tarefa de
produzir e transmitir. Dessa forma, as
concessionárias aumentaram enormemente a
receita de energia vendida, sem a
necessidade de promover investimentos. Os
investimentos feitos para gerar e transmitir a
energia passaram a ser custeados pelo poder
público, vale dizer pelo contribuinte brasileiro.
301
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

A campanha no sentido de que o poder


público se restrinja à produção, transmissão e
venda em grosso de energia elétrica às
concessionárias estrangeiras para que
somente estas façam a distribuição ao
consumidor, é uma campanha financiada
pelas empresas estrangeiras. (OHLWEILER,
1959:18.)

Como se percebe nacionalistas como Ohlweiler


estavam denunciando que, com esta tendência das
concessionárias estrangeiras, leia-se Light and Power e
Amforp, os altos custos da instalação de capacidade de
geração e expansão de energia elétrica recairia sobre o
poder público, enquanto as concessionárias distribuiriam a
energia com maiores lucros.
No mesmo artigo citado acima, Ohlweiler, critica
rigorosamente o papel do BNDE, pelo privilegiamento às
concessionárias estrangeiras no uso do dinheiro público:

“Ora, o BNDE é uma autarquia federal, Seu


patrimônio é, fundamentalmente, formado
com os tributos pagos pelo povo. O que se vê,
por conseguinte, é que, em última análise, é o
povo que está dando ao poder público os
meios para construir usinas e linhas de
transmissão e, depois, vender em grosso o
fluido às empresas estrangeiras. Se, por acaso,
as empresas estrangeiras , elas mesmas se
resolvem construir usinas e linhas de
transmissão, é ainda o contribuinte brasileiro
que, através dos empréstimos fornecidos pelo
BNDE, entra com os recursos. De fato, esta
orientação do órgão federal de crédito é
atentatória aos legítimos interesses nacionais e
tem de ser modificada.” (OHLWEILER, 1959:19.)
302
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

As críticas acima não se referiam apenas, como se


pode observar, à postura do governo em assumir os
investimentos mais vultosos (geração e transmissão de
energia), deixando para as concessionárias estrangeiras os
investimentos menores e com lucros maiores (distribuição).
Referiam-se também ao fato do governo, através do BNDE,
financiar projetos de ampliação de capacidade geradora da
Light and Power e da Amforp, o que até esta época, também
deveria ser efetuado por estas empresas13.
Em 1959, meses depois da publicação do artigo acima,
Elias Chaves Neto, publicou nas páginas da Revista Brasiliense
um artigo intitulado “A encampação da companhia de
energia elétrica Rio-Grandense”. Nele denuncia também a
política do BNDE de financiar obras das concessionárias
estrangeiras, como as da Amforp no Rio Grande do Sul:

“Assim é que além de já ter o Banco de


Desenvolvimento Econômico feito à Bond and
Share diversos empréstimos que se elevam a
mais de 250 milhões de cruzeiros, acha-se, em
negociações com aquela empresa para a
realização de um empréstimo de cinco bilhões
de cruzeiros, a ser concedido metade pelo
Banco de Desenvolvimento Econômico e
metade pelo Eximbank, com o aval do Banco
de Desenvolvimento, para a terminação das
obras que aquela empresa está construindo
em Peixoto, no Rio Grande, com uma potência
de 400 mil kw.” (CHAVES NETO, 1959: 34.)

As denúncias dos nacionalistas nos anos 1950 foram


confirmadas quase quatro décadas depois por Lucas Lopes,

13 Nos anos 70 estas empresas deixarão definitivamente de ter a responsabilidade de investir na geração e
transmissão de energia.
303
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

que como já vimos foi um relevante membro do governo


Kubitschek. Em suas memórias, Lopes afirma:

“Tenho a impressão de que não havia recursos


previstos no programa de governo para a
distribuição. Esses recursos viriam das empresas
existentes, enquanto nós concentraríamos os
nossos nas usinas. Nossa grande sorte foi
aquele Plano Nacional de Eletrificação ter
ficado encalhado na Câmara. Foi isso o que
nos deu tempo para concentrarmos uma boa
dose de recursos em projetos de grande
respeitabilidade.” (CENTRO DA MEMÓRIA DA
ELETRICIDADE NO BRASIL, 1991: 188.)

Observa-se no discurso do ex-ministro que o programa


de governo kubitschequiano não previa investimentos para a
área de distribuição de energia, estes viriam das
concessionárias estrangeiras. Ao Estado ficava destinado o
programa de instalação de grandes usinas com, é evidente,
recursos públicos. Além disso, admite o ex-ministro que sua
equipe teve “sorte” no fato do PNE não ter sido aprovado
pelo Congresso Nacional, pois assim puderam desviar a
aplicação dos recursos do BNDE para os projetos que
julgavam mais convenientes.
Dentre os críticos à postura governamental,
particularmente esta do BNDE de privilegiar os interesses das
concessionárias estrangeiras de energia elétrica, encontram-
se as denúncias do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em
1958, num documento deste partido observa-se esta crítica:

“O governo tem desenvolvido, apoiado no


povo, formas nacionais e progressistas de
capitalismo de Estado, a exemplo da Petrobrás
304
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

e de Volta Redonda. O Capitalismo de Estado


vem sendo um elemento progressista e
antiimperialista na política econômica do
governo, mas este ainda permite que
empresas de capitalismo de Estado realizem
uma política favorável ao imperialismo, como
no caso dos financiamentos do BNDE ou da
distribuição, pelos trustes, da energia produzida
nas centrais elétricas estatais.” (Declaração
sobre a política do PCB. Voz Operária, 22-03-
1958, Apud CARONE, 1982: 180)

Em 1959, Luis Carlos Prestes, num artigo para a Revista


Novos Rumos, critica a política do governo Kubitschek de
concessões aos interesses estrangeiros, mas destaca a vitória
das forças nacionalistas com a encampação da Companhia
de Energia Elétrica Rio Grandense (CEERG) pertencente à
Amforp:

“O governo do sr. Kubitschek continua


realizando concessões ao imperialismo norte-
americano e recusando-se a atender aos
reclamos da maioria da nação no sentido de
alterações substanciais na sua orientação
política. Entretanto, importantes conquistas
parciais têm sido assinaladas pelas forças
patrióticas. Além do êxito concreto que
constitui a defesa do petróleo brasileiro contra
as investidas dos trustes, um passo adiante
acaba de ser dado com a encampação da
CEERG, subsidiária da Bond and Share, pelo
governo do Rio Grande do Sul, ato que
representa profundo golpe no monopólio
estrangeiro de energia elétrica.” (Luis Carlos
Prestes, Os comunistas e a sucessão
presidencial. Novos Rumos, 04 a 10-09-1959,
Apud CARONE, 1982: 203.)
305
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

As denúncias de Elias Chaves Neto e do PCB referidas


acima de fato se concretizam, pois muitos empréstimos e
recursos do FFE foram destinados às concessionárias
estrangeiras de energia elétrica. O fato é que como já foi dito
os nacionalistas estavam afastados dos altos escalões,
sobretudo, no setor elétrico (MARANHÃO, s/d: 105) e pouco
puderam fazer para evitar o sucesso das teses privatistas e a
utilização dos recursos do FFE pelas concessionárias
estrangeiras de energia elétrica.

O debate sobre a liberalização do Código de Águas

Outro aspecto que interferia diretamente na


implantação do parque energético brasileiro era o problema
da utilização das águas que deveriam fornecer a energia ao
sistema elétrico e o governo de JK também apresenta projeto
neste sentido, consubstanciado no documento intitulado
Código de Águas. Nos Anais da citada Semana de Debate de
Energia Elétrica de 1956 encontra-se diversas manifestações
de uma empedernida crítica a este Código14.
O discurso de abertura da Semana foi proferido pelo
engenheiro e presidente do Instituto de Engenharia, Plínio de
Queiroz e observa-se nitidamente, em sua fala, a linha crítica
que seria adotada pelos participantes do encontro também
em relação à este Código. Em primeiro lugar responsabiliza o
poder público por estar criando leis – leia-se Código de Águas

14 O Código de Águas assinado pelo presidente Vargas em 1934 estabelecia, resumidamente: a separação da
propriedade das quedas d’água das terras onde estas se encontravam e incorporação ao patrimônio da União
Hidráulica de tais quedas d’água e outras fontes de energia de forma inalienável e imprescritível; atribuição à
União da outorga e concessão de aproveitamento (por no mínimo 30, no máximo 50 anos) da energia hidráulica
para uso privativo em serviço público, bem como a reversão das instalações ao final do prazo de concessão;
instituição do princípio do custo histórico ou serviço pelo custo para o estabelecimento de tarifas e avaliação do
capital das empresas; e nacionalização dos serviços, que passaram a ser conferidos exclusivamente a
brasileiros ou a empresas organizadas no Brasil.
306
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

– que afugentavam a iniciativa privada dos investimentos na


indústria de energia elétrica:

“Alegam os legisladores e governantes que são


forçados a suprir as falhas da iniciativa privada,
em caráter supletivo, quando, na realidade,
foram ás próprias leis e regulamentos por eles
promulgados, que afugentaram o capital
privado, e diante disso procuraram criar
empresas, onde possuam maioria de capital,
terminando por transformá-las em verdadeiras
repartições, com excesso de pessoal e sujeiras
às maléficas conseqüências das máquina
burocrática e aos percalços devidos à
intromissão política na administração dessas
empresas, dando, em resultado fracassos
inevitáveis.”(REVISTA ENGENHARIA, 1956: 454.)

Como é possível observar a tese do presidente do


Instituto de Engenharia era a de que o Código de Águas era o
responsável pelo decréscimo dos investimentos das
concessionárias estrangeiras de energia elétrica.
A II Sessão da Semana de 1956 realizada em 10 de Abril,
contou com a conferência de Profº Luiz Antonio Gama e Silva,
intitulada Causas fundamentais da crise – problema da
legislação- Estudo do Código de Águas e suas conseqüências
sobre a aplicação de capitais particulares e desestímulo à
iniciativa privada – Modificações necessárias. Homem de
longa tradição conservadora15 havia lutado na Revolução
Constitucionalista de 1932 contra o presidente Vargas,
professor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, Gama e Silva, na sua conferência na Semana de 1956

15Luís Antônio da Gama e Silva viria a ser um personagem destacado na conspiração que levou ao Golpe de
Estado de 1964 que derrubou o presidente João Goulart. No governo Costa e Silva era o ministro da Justiça
responsável pela edição do Ato Institucional nº 5.
307
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

considera que o código era ilegítimo por ter sido gestado no


período ditatorial e que, além disto, era uma peça que não
conseguia resolver o problema da crise do setor:

“[…] não temos dúvida em afirmá-lo, é ele,


indiscutivelmente, o grande responsável pela
crise de energia, que domina em todo o país. E
ao falarmos, de agora em diante, em “Código
de Águas”, queremos nos referir, não somente
ao decreto ditatorial de 1934, mas a toda
legislação complementar, que o seguiu,
modificando-o, ou não, suspendendo a
execução de algumas de suas normas, de
modo que, estando ele para completar 22
anos de existência ilegítima e atribulada, não
atingiu ele, mercê de Deus, a plenitude de seus
maus efeitos, nem realizou, como seria de
desejar, a totalidade de seus benefícios.”
(INSTITUTO DE ENGENHARIA, 1956: 86)

O então professor catedrático da Faculdade de Direito


da USP claramente atribuía ao Código de Águas as mazelas
do setor elétrico. Entendia como outros que o Código de
Águas não só continha princípios detestáveis – como a
limitação dos lucros a 10% do capital investido - era tão ruim
que sequer conseguia fazer todos os malefícios que tinha
poder para produzir. A tese da ilegalidade se devia ao fato do
Código ter sido assinado alguns dias depois da promulgação
da carta constitucional de 1934. Para Juristas como ele o
presidente Vargas não tinha mais naquela data as
prerrogativas para decretar o Código, portanto este era
ilegítimo, apesar da decisão de sua constitucionalidade,
proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 1938.
A principal medida a ser tomada para a solução da
crise do setor elétrico segundo Gama e Silva era, portanto, a
308
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

reforma do Código de Águas que deveria eliminar a


possibilidade de confisco, dar atenção à disponibilidade
financeira das empresas, proteger o investimento contra os
efeitos da desvalorização monetária, dar garantia da justa e
adequada remuneração do capital e promover um ambiente
propício para a aplicação dos capitais privados no setor
elétrico. (INSTITUTO DE ENGENHARIA, 1956: 100-1) Levanta
também a necessidade de medidas administrativas dentre
elas: a revisão tarifária de acordo com o princípio de
razoabilidade e semelhança, com a inclusão de uma cota de
reinvestimento e possibilidade de pagamento efetivo, em
dinheiro, de um justo lucro ao capital aplicado nos serviços,
bem como rápida solução dos processos administrativos na
Divisão de Águas.
Durante um semestre pesquisou-se os exemplares da
Revista Anhembi. Após minuciosa busca, encontrou-se ali um
artigo intitulado “O Problema da Energia Elétrica em São
Paulo” de Francisco Emygdio da Fonseca Telles escrito em
1956. Nele, o professor da Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo, reproduz parte de um parecer - encomendado
pela UDN paulista – preparado por ele e outros engenheiros
acerca do Plano de Eletrificação de São Paulo enviado pelo
governador a Assembléia Legislativa em 1955. No parecer, o
professor Fonseca Teles e seus companheiros bombardeiam o
Código de Águas, a exemplo de outros representantes do
Instituto de Engenharia como observa-se acima:

“Devemos assinalar desde logo nossa


discordância da afirmação, á página 2 do
“Estudo” [documento do DAEE/SP], de que foi
por não terem sido postos em prática
dispositivos do Código de Águas que se vê o
309
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Governo do Estado, presentemente, na


imperiosa necessidade de intervir, criando
empresas, montando usinas e construindo
linhas de transmissão e de distribuição. Muito
ao contrário, ao Código e sua aplicação
(limite de lucro de 10% ao ano às empresas e
custo histórico) é que devemos a relativa
estagnação das instalações existentes no
Estado, todas elas de iniciativa privada. E por
isso incluímos, entre as condições para a
solução do problema da energia elétrica, uma
remodelação profunda do Código de Águas.”
(TELLES, 1956: 292.)

As críticas à sustentação, pelo governo federal no


período Juscelino Kubitschek, das diretrizes implantadas no
período Vargas se reproduziam, assim, nos estados,
particularmente naqueles onde a indústria mostrava-se mais
desenvolvida.

Considerações Finais
Os representantes dos altos escalões do governo
Kubitschek manifestavam abertamente seu desamor em
relação à proposta de organização da Eletrobrás, porém
diante da emergência de se produzir energia elétrica para
suprir as necessidades de crescimento dentro do novo padrão
de acumulação não apresentavam alternativas concretas no
âmbito da iniciativa privada. Isto porque, de um lado as
concessionárias estrangeiras de energia elétrica não se
interessavam em fazer novos investimentos remunerados nos
parâmetros definidos pelo Código de Águas – lucratividade
de 10% do capital sobre o capital investido. De outro a
iniciativa privada nacional – verdadeira expressão do que é
capital atrófico não manifestavam a menor disposição em
fazer inversões no setor de energia elétrica.
310
Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Neste contexto, a solução encontrada para as


carências de energia elétrica foi a continuação da prática de
inversões estatais que essencialmente não se diferenciava do
que havia proposto e colocado em prática o governo Vargas.
Sob a batuta kubitschekiana os grandes exemplos foram:
Furnas e Três Marias dentre outras. Assim, o Estado se
encarregava do oneroso trabalho de geração e transmissão
de energia elétrica, enquanto a distribuição de energia
elétrica ficava a cargo das concessionárias estrangeiras de
forma cativa, ou seja, monopolizada e praticamente livre de
custos de investimentos em infra-estrutura.
Os nacionalistas, pouco ou nada puderam fazer para
barrar as manobras que beneficiaram os interesses das
concessionárias estrangeiras de energia elétrica durante o
governo Juscelino Kubitschek: o sucesso das teses privatistas e
a utilização dos recursos do FFE pelo capital privado, como já
foi aventado, pois estavam afastados dos altos escalões
governamentais, sobretudo, no setor elétrico. Assim, o centro
diretivo kubitschekiano ao partilhar as tarefas de expansão do
setor elétrico brasileiro realizando os investimentos mais
“pesados”, deixando os investimentos mais “leves” para o
capital privado estrangeiro mantinha a tendência secular de
perpetuar a subordinação.

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SOUZA, Nilson Araújo. A longa agonia da dependência. São Paulo,
Ed. Alfa-Omega, 2004.
TELLES, Francisco Emygdio da Fonseca. O problema da energia
elétrica em São Paulo. Revista Anhembi. São Paulo, vol. 22, nº 64,
290-5, 1956.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

Resenha: COGGIOLA, Osvaldo. Alemanha 1918-1924:


Hiperinflação e Revolução. São Paulo: LCTE, 2010. 109
páginas.

Neste trabalho, o historiador marxista Osvaldo


Coggiola enfatiza a importância do historiador econômico
para a interpretação de fenômenos econômicos e suas
consequências na sociedade e na política ao longo da
história. Na análise do período 1918-1924 da história
econômica alemã, Osvaldo Coggiola se utiliza de um
referencial teórico rico, como algumas das teorias socialistas,
Marxistas e Keynesianas, inserindo a importância de Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht para o partido comunista
alemão em sua criação e desenvolvimento.

Em seu livro, Alemanha 1918-1924: Hiperinflação e


Revolução, Coggiola aborda a questão alemã com minúcia
de informação e amplitude interpretativa. Mais do que
somente contar a história inflacionária do período e como esta
interferiu na condução dos movimentos políticos e
econômicos, o autor permite uma leitura do contexto dos
políticos e personagens envolvidos. Com isso, numa primeira
linha de análise, aquela que considera como o grande
responsável pela inflação alemã as enormes quantias a serem
pagas pela Alemanha aos países vencedores da Primeira
Guerra, o autor esmiúça de que maneira as tensões do pós
Guerra entre os vencedores e os derrotados, entre eles o grupo
de Estados que formavam o território alemão, influenciou na
hiperdesvalorização do marco papel até o ponto em que se
tornou insustentável a manutenção da situação econômica
como, até ali, se seguia. Com tal contextualização nas mãos, o
autor desmascara a argumentação “técnica” da crise
inflacionária alemã, que defendia ser a causa da inflação o
contraste entre câmbio e balanço de pagamentos.

É interessante notar a ressalva feita pelo autor que, até


1923, com exceção da revolução de 1917, não havia se
desenhado na Europa Continental um cenário tão propício a
superação do Capitalismo em favor do Socialismo como a
ocorrida em novembro daquele mesmo ano na Alemanha. O
método de análise e a perspectiva marxista certamente
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

tornam tal ressalva diferenciada das interpretações


“tecnicistas” de cunho elogiador do capital financeiro.

Em língua portuguesa, poucos são os textos que tratam


do assunto, e mais raros ainda os que tratam com a
propriedade necessária. Dito isso, o autor tem o mérito de
expor, de maneira didática, conceitos econômicos
devidamente contextualizados e historicizados. As fontes são
apresentadas com a devida lisura. A tarefa de expor as linhas
de interpretação do tema é realizado com louvor. O trabalho
é rico em dados, imagens e exemplos que auxiliam ao leitor a
não pecar por anacronismo.

Assim sendo, o livro constitui um apanhado de


informações que permitem ao leitor conhecer, de maneira
concisa, o que foi o fenômeno inflacionário e como ele se deu
na Alemanha especificamente. Sua leitura e a reflexão sobre o
tema são mais do que pertinentes à atualidade.

Tallyta Rosane Bezerra de Gusmão


Bacharel em Ciências Econômicas pela UFAL
Mestranda em História Econômica pela USP
.
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Revista de Economia Política e História Econômica, número 33, ,Janeiro de 2015.

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