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O acaso, John Marshall e o controle de

constitucionalidade

Adhemar Ferreira Maciel

Sumário
1. Introdução. 2. O acaso levou John Mar-
shall a ocupar a presidência da Suprema Corte
dos Estados Unidos. 3. O silêncio da Constitui-
ção da Filadélfia quanto à judicial review. Notí-
cias do Consistorio do Reino de Aragão. Edward
Coke e o Bonham’s Case. Precedentes estaduais
do controle de constitucionalidade de leis nos
Estados Unidos. O Paper n. 78 de O Federalista. 4.
O Marbury Case. Temor dos federalistas da Su-
prema Corte em relação aos partidários de
Thomas Jefferson. A construção do postulado de
Marshall. Impeachment de Samuel Chase. 5. O
reconhecimento, na época, do papel de John
Marshall para o constitucionalismo norte-ame-
ricano: John Quincy Adams, Joseph Story e
Édouard de Laboulaye. 6. Repercussão do con-
trole da constitucionalidade na Constituição
republicana brasileira de 1891. Observações
de dois constituintes: Ruy Barbosa e Amaro
Cavalcanti. 7. Conclusão.

1.Introdução
O objetivo do artigo é ressaltar a impor-
tância de John Marshall tanto na consoli-
dação da Federação americana quanto nos
fundamentos do constitucionalismo. O ar-
tigo analisa os precedentes, judiciais e dou-
trinário, do caso Marbury v. Madison.
A natureza, mãe de todos nós, tem lá seus
caprichos, suas preferências. Há pessoas
que se acham no lugar certo, na hora exata.
Jamais figurariam nas páginas da História
se não estivessem, naquele momento, naque-
Adhemar Ferreira Maciel é Ministro apo- le lugar. Os exemplos são muitos, dispen-
sentado do Superior Tribunal de Justiça. sando menção a acontecimentos concretos.
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2. O acaso levou John Marshall a bro da Suprema Corte. Foi então que Adams
ocupar a presidência da Suprema resolveu acabar logo com o assunto: nomeou
Corte dos Estados Unidos John Marshall, com 45 anos de idade, para
a presidência da Suprema Corte dos Esta-
John Marshall (1755-1835) é um desses dos Unidos. Ninguém esperava a indicação,
acasos. De pouca escolaridade em leis, pois nem o próprio Marshall, como relatou mais
havia freqüentado ensino formal (College tarde em suas notas autobiográficas.
of William & Mary) por apenas 3 meses
3. O silêncio da Constituição da
(CUSHMAN, 1993, p. 62), tornou-se figura
central na criação da grande Nação norte- Filadélfia quanto à judicial review.
americana. Pode-se afirmar que os Estados Notícias do Consistorio do Reino de
Unidos não seriam, hoje, o que são se John Aragão. Edward Coke e o Bonham’s
Marshall, após a recusa de outros convida- Case. Precedentes estaduais do controle
dos para a presidência da Suprema Corte, de constitucionalidade de leis nos
não a tivesse ocupado por quase 35 anos. À Estados Unidos. O Paper n. 78 de O
evidência, não era um desconhecido qual- Federalista
quer quando foi convidado pelo presidente
John Adams (1735-1800), federalista como Quando se fala em constitucionalismo
ele. Era secretary of State. Não fazia muito, norte-americano, pensa-se, com toda justi-
participara de uma missão diplomática na ça, em John Marshall. O caso Marbury v.
França ao lado de figuras bem mais expres- Madison, julgado em 1803, correu e corre
sivas do que ele, como Charles Pinckney mundo. É um marco do constitucionalismo
(1757-1824) e Elbridge Gerry (1744-1813). universal, pois fixou as bases da judicial
Fora advogado bem sucedido na Virgínia e, review, ou seja, de o Judiciário poder rever
como deputado, ratificara (1788), por seu as leis ou os atos da administração pública.
Estado, a Constituição federal recém - ela- A Constituição da Filadélfia não se preo-
borada. Destacara-se, por outro lado, na ba- cupou em estabelecer diretriz insofismável
talha sangrenta de Valley Forge contra as for- quanto ao órgão ou poder competente para
ças inglesas. Mas nada disso bastaria não dirimir confronto entre uma lei ordinária e
fosse o acaso. Senão, vejamos: a própria Constituição. Não poderia ser o
John Jay (1745-1829), o primeiro presi- Congresso o intérprete final?1 Por que o Ju-
dente da Suprema Corte, que havia deixado diciário? Só porque era o “menos perigoso”
o cargo para ser governador de Nova York, dos três poderes? Laurence Tribe observa
fora novamente convidado para ocupar sua que Marshall pôs fim à “indeterminação
antiga cadeira na Suprema Corte, que ficara constitucional”, estabelecendo o postulado
vaga com a saída, por motivo de doença, do de que tocava aos juízes interpretar e apli-
chief Oliver Ellsworth (1745-1807). Jay sim- car a Constituição (TRIBE, 1988, p. 25). Daí
plesmente recusou. William Cushing (1732- falar-se em “assunção” (assumption) e não
1810), que já era juiz-membro (associate), tam- em mera “dedução” (deduction) ou “escólio”
bém havia recusado o convite do presidente (TRIBE, 1988, p. 26).
John Adams (CUSHMAN, 1993, p. 63). À evidência, o controle da constitucio-
Thomas Jefferson (1743-1826), futuro presi- nalidade das leis e dos atos da administra-
dente da República, estava de olho na vaga ção não é invenção norte-americana. Tem-
de Ellsworth, pois queria em seu lugar o se notícia de que no Reino de Aragão (Espa-
amigo Spencer Roane (1762-1822). O presi- nha), no século 13, já existia um arremedo
dente Adams, por outro lado, estava sofren- de jurisdição constitucional: uma corte, de-
do pressão para pôr no cargo William Pa- nominada Consistorio, presidida por um jus-
terson (1745-1806), que também já era mem- ticia mayor (veja a coincidência do título),

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encarregava-se de controlar as leis do rei- todas as constituições americanas,
no (Cf. FAIRÉN GUILLÉN, 1969, p. 134; convém uma breve análise de seus
MACIEL, 2000, p. 258). A Inglaterra, que fundamentos.
mantinha relações comerciais intensas com Não há posição que se apóie em
o Reino de Aragão, deve ter levado para lá princípios mais claros que a de decla-
essas idéias. Tanto é verdade que sir Edward rar nulo o ato de uma autoridade de-
Coke (1552-1634), quando chief justice da legada, que não esteja afinada com as
Court of Common Pleas da Inglaterra, ao jul- determinações de quem delegou essa
gar o caso de um médico (Thomas Bonham) autoridade. Conseqüentemente, não
preso por ordem da entidade classista (Royal será válido qualquer ato legislativo
College of Physicians), teve o estatuto da cor- contrário à Constituição. Negar tal
poração como nulo por contrário à lei (com- evidência corresponde a afirmar que
mon law)2. Acima do rei e do Parlamento, in- o representante é superior ao repre-
sistia Coke, estava a lei, cabendo ao juiz de- sentado, que o escravo é mais gradua-
clarar a nulidade de qualquer provimento que do que o senhor, que os delegados do
se lhe mostrasse contraveniente. Os livros de povo estão acima do próprio povo, que
Coke (Institutes), que teriam sido trazidos por aqueles que agem em razão de dele-
alguns peregrinos do Mayflower (1620) para gações de poderes estão impossibili-
o Novo Mundo, faziam parte da aprendiza- tados de fazer não apenas o que tais
gem de todo bom advogado. Assim, a teoria poderes não autorizam, mas sobretu-
da judicial review estava, digamos, “no san- do o que eles proíbem” (HAMILTON;
gue” do norte-americano que lidava com as MADISON; JAY, 1984, p. 577).
leis. O próprio John Marshall, quando era con- Entre a Independência (1776) e a promul-
vencional da assembléia da Virgínia no mo- gação da Constituição (1787), vale dizer,
mento da ratificação da Constituição federal, antes de Marbury (1803), registra-se uma vin-
enfatizara que toda lei que fosse contrária à tena de julgados judiciais declarando nu-
Constituição deveria ser declarada “nula e las leis contrárias às constituições dos Esta-
írrita” (Cf. SCHWARTZ, 1993, p. 12 et seq.). dos da então Confederação dos Estados
Mas essa era apenas uma premissa, que seria Unidos da América. Foi o que se deu com
lógica e magistralmente desenvolvida por Ware v. Hylton (Virgínia), no qual John Mar-
ocasião do julgamento do writ of mandamus shall, como advogado, defendera tese contrá-
impetrado por William Marbury e outros. ria ao controle de leis pelo judiciário. “Ironia
Por outro lado, convém lembrar que do destino”, como frisou Albert J. Beveridge
Hamilton (1755-1804), no Paper n. 78 de O (1862-1927) em The Life of John Marshall.
Federalista, já havia fornecido boa parte do ma- Desse modo, quando do julgamento do
terial para o voto de Mashall em Marbury: histórico Marbury, John Marshall já tinha
“Relativamente à competência das na cabeça a teoria e os precedentes. Faltava
cortes para declarar nulos determina- armar o silogismo. A grande dificuldade de
dos atos do Legislativo, porque con- Marshall estava exatamente em “resolver o
trário à constituição, tem havido certa caso concreto sem incorrer em impeachment”,
surpresa, partindo do falso pressu- pois o presidente da República (Jefferson),
posto de que de tal prática implica em seu inimigo rancoroso3, tinha consigo um
uma superioridade do Judiciário so- Congresso com maioria antifederalista. É aí,
bre o Legislativo. Argumenta-se que a então, que assoma toda a sagacidade de John
autoridade que pode declarar nulos Marshall.
os atos de outra deve necessariamen- Marshall, que era versado nos clássicos
te ser superior a esta outra. Uma vez greco-latinos, primava pela lógica. Foi esta-
que tal doutrina é muito observada em belecendo dois postulados – a Constituição

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é a lei fundamental do país e a Constitui- cana, os juízes da Suprema Corte, de linha
ção, como lei, tem de ser interpretada e apli- federalista, corriam o risco de impeachment7.
cada – que ele chegou sorrateiramente à con- A impetração de Marbury se fez com base
clusão de que aos juízes tocava o controle na seção 13 da Lei Orgânica da Magistratu-
dos atos do Congresso. ra, o Judiciary Act de 24 de setembro de 1789.
Examinemos, agora, o Marbury Case. A redação do dispositivo legal não era das
mais claras: dava competência, entre outras,
4. O Marbury Case. Temor
à Suprema Corte para julgar “writs of man-
dos federalistas da Suprema damus, in cases warranted by the principle and
Corte em relação aos partidários usages of law…” (COMMAGER, 1958, p. 153
de Thomas Jefferson. A et seq.). Muito embora não se pudesse extra-
construção do postulado de ir do dispositivo em questão, de modo in-
Marshall. Impeachment de questionável, a competência originária da
Samuel Chase Corte para julgamento do writ aforado por
Marbury e outros, Marshall, de modo sub-
No finalzinho do governo do federalis- reptício e altamente engenhoso, disse que a
ta4 John Adams (1791-1801), o Congresso seção 13 da Lei Orgânica atribuía inconstitu-
promulgou a Lei Orgânica do Distrito Fede- cionalmente competência à Suprema Corte
ral (District of Columbia Organic Act), atribu- para julgar o writ. A competência, todavia,
indo ao presidente da República (Adams) o estava reservada à Constituição, e não à lei
provimento, com a aprovação do Senado, infraconstitucional. Lendo-se hoje a decisão,
de 42 cargos de justice of the peace5. Alguns depreende-se com clareza que ficou dito que
nomeados receberam imediatamente seus acima do Congresso (que havia editado a Lei
títulos de nomeação. Dezesseis outros, po- Orgânica) estava a Constituição e, mais, que
rém, ficaram para trás, uma vez que o secre- cabia ao Judiciário fazer o confronto entre a
tary of State (John Marshall) não teve tempo lei ordinária, ainda que elaborada pelo Con-
– ainda que tenha varado boa parte da noite gresso, com a Constituição. Em decorrência,
– de colocar o Great Seal of the United States a ação judicial de Marbury e outros não tinha
(equivalente à nossa “Armas da Repúbli- como tramitar na Suprema Corte.
ca”) em todos os documentos ou mesmo de A vitória (na aparência) do Governo
entregar os títulos de nomeação já prontos. (Jefferson) estava assegurada. Aparente-
No dia seguinte, muda o governo, que pas- mente estaria afastada a quase certa tentati-
sa a ser (pela primeira vez) republicano6. va de impeachment dos juízes federalistas da
Jefferson assumiu a presidência da Repú- Suprema Corte. Todavia, antes de chegar ao
blica, nomeando Madison secretary of State. resultado (inconstitucionalidade da seção
John Marshall, por sua vez, por designação 13), Marshall, manhosamente, antecipou
do governo anterior (Adams), passou a ocu- obiter dictum o mérito da questão, afirmando
par a presidência da Suprema Corte. Alguns que William Marbury e seus companheiros
justices of the peace nomeados e não titulados tinham, sim, direito de receber os títulos de
(entre eles William Marbury, um próspero nomeação. A nomeação dos justices of the
comerciante de Georgetown) ajuizaram, por peace havia sido válida, já que precedida do
meio do advogado Charles Lee (1758-1815), assentimento do Senado.
um writ of mandamus na Suprema Corte no Robert McCloskey (apud CHEME-
mês de dezembro de 1801 com o escopo de RINSKY, 1997, p. 38, tradução nossa), ao
forçar o novo secretary of State (Madison) a lhes referir-se a esse histórico marco, disse que
entregar os títulos de nomeação. Com o go- “(a) decisão foi uma obra-prima de ar-
verno republicano e as duas Casas do Con- timanha, um exemplo brilhante da ca-
gresso, ambas dispondo de maioria republi- pacidade de Marshall de contornar o

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perigo ao mesmo tempo em que pare- eles (os juízes) podiam torcer e modelar do
cia atraí-lo, de avançar numa direção, jeito que lhes aprouvesse”11. Os juízes eram
enquanto seus oponentes estavam “parciais, vingativos e cruéis... os quais
atentos em outra”8. obedeciam ao Presidente ao invés da lei”12.
Cerca de um ano depois do julgamento Jefferson não deixava de ter razão. Muitos dos
de Marbury, os republicanos de Jefferson juízes federais, que eram vitalícios e escolhi-
apresentaram na Câmara dos Deputados dos pelo presidente da República, utilizavam-
(House of Representatives) “artigos de impea- se do cargo para sectarismo político13.
chment” contra Samuel Chase (1741-1811), A tirada de Marshall, ainda que possa
federalista militante, membro da Suprema ser condenável sob o ponto de vista da “éti-
Corte. Fatal seria a condenação de Chase no ca de princípios” (para lembrar Max Weber,
Senado, não fora acontecimentos políticos 1864-1920), uma vez que ele, como juiz, es-
de última hora envolvendo republicanos de tava apreciando ato praticado por ele mes-
Jefferson, e se achar na presidência do Se- mo como administrador, por outro lado, sob
nado o vice-presidente da República Aaron a óptica hermenêutica, o dispositivo legal
Burr (1756-1836), que deu toda oportunida- (seção 13 da Lei Orgânica de 1789) levaria,
de para a defesa de Chase. A absolvição no com maior facilidade, a outra interpretação.
Senado se deu por apenas um voto9. De qualquer sorte, o lance de John Marshall
O famoso julgamento Marbury correu em foi de gênio. É evidente que a “falta de éti-
1803, como já se frisou. Com ele, abriu-se, ca” se deu no passado. Hoje isso não seria
na prática, a possibilidade de o judiciário mais viável. Foi o que ocorreu em Griggs v.
rever atos do executivo e do legislativo fede- Duke Power Co., 401 U.S. 424 (1971), ocasião
rais. Alguns doutrinadores entendem que a em que Brennan (1906-1997) deu-se por im-
questão era tão pacífica e consensual entre pedido por haver, anos antes, sido advoga-
os Constituintes que se deixou de colocar a do da ré (SCOTT, 1985, p. 159).
competência expressamente na Constitui-
ção. Jefferson, de maneira mordaz, como era 5. O reconhecimento, na época, do
seu feitio, apelidou a indicação dos justices papel de John Marshall para o
of the peace, feita na calada da noite, de mid-
constitucionalismo norte-americano:
night appointment (PADOVER, 1970, p. 127).
Somente em 1857, com o estrepitoso caso
John Quincy Adams, Joseph Story e
Dred Scott v. Sandford, é que a Suprema Cor- Édouard de Laboulaye
te voltou a declarar a inconstitucionalidade A importância de Marshall para a con-
de outra lei federal. Em dois outros casos, solidação política dos Estados Unidos foi
Martin v. Hunter´s Lessee,14 U.S. (1 Wheat) 304 incomensurável, como reconheceram os
10
e Cohens v. Virginia, 19 U.S. (6 Wheat) 264, seus próprios contemporâneos. John Quincy
respectivamente de 1816 e 1821, a Corte se Adams (1767-1848), quando ficou sabendo
deu por competente para rever casos julga- do falecimento de John Marshall, externou
dos por tribunais estaduais (CHEME- seu sentimento:
RINSKY, 1997, p. 44). “(...) pela ascendência de seu gênio,
Com Marbury, ficou firmada, para sem- pela amenidade de seu comportamen-
pre, a atribuição de o Poder Judiciário con- to, e pelo imperturbável comando de
frontar atos dos dois outros poderes em face seu temperamento, (Marshall) deu
da Constituição. permanente e sistemático caráter às
Jefferson nunca concordou com o poder decisões da Corte e firmou grandes
dos juízes, sobretudo de juízes federalistas... questões constitucionais favoravel-
Alegava que a “Constituição (...) era um mero mente à continuidade da União”
objeto de cera nas mãos do judiciário, que (SCHWARTZ, 1993, p. 33).

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Em janeiro de 1833, dois anos antes da conselheiro Ruy Barbosa (1849-1923), maior
morte de Marshall, Joseph Story (1970, p. iv), artífice de nosso primeiro Estatuto político
em sua monumental obra Commentaries on the republicano, em artigo publicado em O Paiz,
Constitution of the United States, ressaltou em de 25.2.1892, ensinava:
sua dedicatória ao colega Marshall: “A justiça tem de conhecer-lhes da
“A posteridade indubitavelmen- existência, para conhecer da existên-
te confirmará por sua deliberada re- cia da lei. Mas não exerce, a tal respei-
compensa aquilo que hoje já se acha to, a menor funcção discrecionaria. A
reconhecido, como um ato de irrecu- Constituição traçou nos arts. 36 e 40
sável justiça. Vossas exposições de as regras de elaboração legislativa
direito constitucional gozam de uma imposta aos tres factores, de cuja coo-
rara e extraordinária autoridade. Elas peração depende a formação legitima
constituem um monumento de fama das leis. Si algumas dessas regras for
muito acima dos memoriais da glória materialmente conculcada, ou pos-
política ou militar. Elas são destina- tergada, e dessa infracção flagrante se
das a iluminar, instruir e convencer conservar a prova authentica nos pro-
futuras gerações”14. prios actos do Congresso ou do gover-
Em 1866, Édouard de Laboulaye no, destinados a attestar a deliberação,
(1977, p. 27), ao reconhecer a importância a sancção, a promulgação, lei não ha;
de Marshall, assim se expressou: porque a sua elaboração não se consu-
“Quis a Providência, porém, que mou. Os tribunaes, portanto, não po-
bem cedo a presidência da Corte Su- dem applical-a. Em uma palavra, toda
prema tocasse a um homem a quem, contravenção material de formas cons-
não temo dizê-lo, a América deve a sua titucionaes, authenticamente provada,
unidade, tanto ou mais que a Wa- no processo de elaboração legislativa,
shington. Este homem foi John Mar- vicia e nullifica o acto do legislador. Não
shall, que permaneceu durante trinta assim a simples violação de formas re-
e cinco anos em sua cadeira”. gimentaes” (BARBALHO, 1902, p. 243).
No Brasil, a doutrina do judicial control No mesmo sentido se manifestou Amaro
se faz presente desde nossa Constituição Cavalcanti (1849-1922), outro constituinte de
republicana de 1891 (Secção III – Do Poder influência em 1891:
Judiciário – art. 59), muito embora o texto “Ainda que a nomeação dos mem-
constitucional não tivesse um dispositivo bros do Judiciário seja derivada dos
claro, insofismável, como o art. 97 da Cons- dois outros, e não provenha direta-
tituição vigente (1988), que diz que a “in- mente de voto soberano da Nação,
constitucionalidade de lei ou ato normativo como a daqueles (Const. Br. art. 34, n.
do Poder Público” só pode ser declarada por 26, e art. 48, ns. 11 e 12), nem por isso
maioria absoluta do tribunal pleno ou pela deixa ele de ter independência com-
maioria absoluta de seu órgão especial. pleta no exercício das atribuições e
atos da sua competência. Ao contrá-
6. Repercussão do controle da rio, quis a Constituição federal que a
constitucionalidade na Constituição sua independência fosse tão perfeita
e indiscutível que até o investiu do di-
republicana brasileira de 1891.
reito máximo de interpretar e decidir
Observações de dois constituintes: da própria validade dos atos dos de-
Ruy Barbosa e Amaro Cavalcanti mais poderes da Federação (Const. art.
A propósito de declaração de inconsti- 59, § 1o, letras a e b )” (CAVALCANTI,
tucionalidade por violação formal, o então 1983, p. 200).

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7. Conclusão cebeu o nome de Federalist Party. Entre eles se des-
tacavam Washington, Hamilton e Adams. Outros
nacionalistas, com Patrick Henry à frente, estavam
Todos que lidamos com direito, sobretu- preocupados com a força do executivo federal pro-
do com direito constitucional, sabemos que, posto, que amesquinhava a autonomia dos Esta-
no Brasil, o controle, que antes era difuso dos-Membros da futura Federação e punha em ris-
como nos Estados Unidos, foi evoluindo co as liberdades fundamentais dos cidadãos. Essa
para um modelo intermediário. Hoje, ao lado facção partidária recebeu a designação inicial de
Anti-Federalist Party (Disponível em: http://
do controle à americana, exercido por meio 74.1911enciclopedia.org/F/FE/Federalist-
de qualquer órgão judicante, também temos Party.htm. Acesso em: 28 jul. 2004. Consultar, mais,
o controle feito por meio de ação ajuizada o verbete Anti-Federalist Party in Wikipedia).
diretamente no tribunal competente. Nosso 5
Seria enganoso traduzir-se justice of the peace
modelo, é verdade, pode não estar ainda por “juiz de paz”. As funções não são totalmente
coincidentes com a dos nossos juízes de paz. Nos
pronto e acabado, pois em direito, como na Estados Unidos, a competência desse magistrate
vida, nada há de definitivo. Mas o que im- varia de Estado-membro para Estado-membro. Em
porta agora é lembrar que devemos ao filho alguns, o cargo foi extinto, com a transferência de
mais velho de uma família de quinze irmãos, suas funções para juizados municipais. Na Grã-
nascido em uma cabana de toras de madei- Bretanha, segundo o professor Martin van Creveld
(2004, p. 186), a instituição inglesa começou em
ra nos confins da Virgínia, a possibilidade 1361, com um tratado de paz. As estatísticas de
de controlar os desmandos do Poder Públi- 1995 registravam mais de 30.000 justices of the pea-
co, que crescem dia a dia. ce, o que solucionava grande parte dos pequenos
conflitos de interesse naquele país. No Brasil do
Império, sobretudo com o advento do Código de
Processo Criminal, o juiz de paz tinha uma gama
Notas maior de atribuições, como a de formação de cul-
pa, poder de prisão, julgamento etc. (Disponível
1
A grande diferença entre a Constituição ingle- em: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/mo-
sa e a Constituição norte-americana está em que a dulo02/cod_proc.html. Acesso em: 8 ago. 2006).
primeira tem como dogma a “supremacia do Par- Hoje, pela Constituição (art. 98, II), seu papel pra-
lamento”, ao passo que a Constituição, para o fe- ticamente se concentra na celebração do casamento
deralismo americano, é a “supreme law of the land” civil.
(Cf. DICEY, 1952, p. 144). 6
Com a presidência de Thomas Jefferson, a fac-
2
Em seu voto, Coke ponderou: “(...) quando ção partidária passou a ser chamada de Democratic
uma Lei do Parlamento é contra o direito fundado Republican Party.
no common law ou na razão, ou repulsivo, ou im- 7
Até 1811, quando entraram para a Suprema
possível de ser realizado, o common law controla e Corte Gabriel Duval (1752-1844) e Joseph Story
julga tal Lei nula”. A tradução foi livre. No origi- (1779-1845), o colegiado era constituído de maio-
nal: “(…) when an Act of Parliament is against common ria federalista, que comungava com os ideais cen-
right or reason, or repugnant, or impossible to be perfor- tralistas de John Marshall (Cf. SCHWARTZ, 1993,
med, the common law controul it and adjudge such Act p. 58). Mas, de qualquer sorte, Marshall teve sua
void” (Disponível em: http://en.wikipedia.org/ complementação em Story, um autêntico scholor,
wild/Dr. Bonham’s Case. Acesso em: 5 ago. 2006). que o apoiou em suas idéias.
3
BEVERIDGE, Albert J., biógrafo de John 8
No original: “The decision was a masterwork of
Marshall, conta que Marshall tinha dois grandes indirection, a brilliant example of Marshall´s capacity to
inimigos: Jefferson e Spencer Roane. Jefferson, como sidestep danger while seeming to court it, to advance in
já se falou, estava planejando indicar Roane para o one direction while his opponents are looking in ano-
cargo de presidente da Suprema Corte, tão logo ther”.
ocupasse a presidência da República, quando teve, 9
Cf. Disponível em: http://
à última hora, sua intenção coarctada pelo presi- www.michaelariens.com/ConLaw/Justices/
dente Adams, que estava deixando o governo. chaseam.htm. Acesso em: 10 ago. 2006.
4
Durante a assembléia constituinte (1787), os 10
Nesse caso, grande foi a contribuição do “re-
“nacionalistas” se dividiram em dois grupos com publicano” Story, acompanhando a visão naciona-
interesses nitidamente opostos. Aqueles que queri- lista de Marshall (Cf. SCHWARTZ, 1993, p. 60).
am um executivo forte, centralizado, ficaram co- 11
No original: “(...) the constitution... is a mere
nhecidos como Federalists. Sua facção partidária re- thing of wax in the hands of the judiciary, which

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they may twist and shape into any form they plea- CUSHMAN, Clare (Ed.). The supreme court justices:
se” (SCHWARTZ, 1993, p. 53, tradução nossa). illustrated biographies, 1789-1993. Washington:
12
No original: “(...) partial, vindictive, and cru- Congressional Quarterly, 1993.
el… who obeyed the President rather than the law”
DICEY, A. V. Introduction to the study of the law of
(apud FRIEDMAN, 2005, p. 82, tradução nossa).
the constitution. 9. ed. London: MacMillan and Co.,
13
O primeiro juiz federal a sofrer impeachment
1952.
foi John Pickering, em 1804 (Cf. FRIEDMAN, 2005,
p. 83). FAIRÉN GUILLÉN, Victor. Temas del ordenamiento
14
No original: “Posterity will assuredly confirm by procesal. Madrid: Tecnos, 1969. 1 t.
its deliberate award, what the present age has approved,
as an act of undisputed justice. Your explanations of FRIEDMAN, Lawrence M. A history of american law.
constitutional law enjoy a rare and extraordinary autho- 3. ed. New York: A Touchstone Book, 2005.
rity. They constitute a monument of fame far beyond the HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY,
ordinary memorials of political and military glory. They John. O federalista. Tradução de Heitor Almeida
are destined to enlighten, instruct, and convince future Herrera. Brasília: Universidade de Brasília, 1984.
generations.” (STORY, 1970, p. iv, tradução nossa).
LABOULAYE, Édouard de. Do poder judiciário.
Tradução de L. Nequete. Ajuris, Porto Alegre, n. 4,
1977.
Referências
MACIEL, Adhemar F. Dimensões do direito público.
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