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15/07/2020  23:59

A Cultura Torrent
POR NINJA

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Foto: Canva Pro

Por Andressa Soilo*

 
O torrent não é algo do passado. Também não equivale a uma
tecnologia substituída pela popularidade do streaming. O
protocolo P2P, do qual o torrent faz parte, existe e persiste,
não apenas enquanto meio de acessar algum bem
2
digitalmente, mas também enquanto cultura colaborativa e
de acesso.
Comumente pensado como referência de práticas piratas, o
torrent possibilita o compartilhamento não somente de
conteúdo que viola leis de direitos autorais, mas também
conteúdo categorizado como legal. Atenho-me, neste texto, a
refletir brevemente sobre os usos, os significados, os laços, as
éticas, as percepções que o protocolo torrent mobiliza entre
aqueles que fazem seu uso junto à pirataria.

Busco apresentar ponderações que transcendam noções


circunscritas ao campo do imoral, incorreto, desonesto e
ilegal. Que superem o campo de um uso meramente
motivado ao campo econômico (às vantagens econômicas da
pirataria), assim como visões mais atreladas às lógicas do
direito (restritivas ao acesso).

Em contraste às limitações dessas visões, existem milhares de


vozes que se reconhecem mais humanizadas, incluídas,
contempladas e até mesmo justiçadas no uso da pirataria
através do torrent.

Não raro o protocolo, combinado à pirataria, é compreendido


por seus usuários como sinônimo de acesso, como expressão
da democratização do consumo, como uma via de protesto às
noções e imposições do mercado. Ou seja, o torrent mobiliza
mais do que comandos de leis, provoca modos de pensar e de
reorganizar e ressignificar o mundo em que se vive.

Sobretudo, é sobre compartilhamento. É sobre uma cultura


de compartilhamento. Compartilhar informações é um ato
intrínseco à internet. Faz parte de sua estrutura, de como foi
pensada, de como funciona, de sua ética. O torrent traz em
sua operacionalidade uma lógica (e não somente uma
técnica) similar à das redes que lhe possibilitam, que
possibilitam a todos nós estarmos conectados.
2
No livro Counterculture to Cyberspace (2006), o autor, Fred
Turner, argumenta que o surgimento da internet se deu a
partir de duas ideologias distintas e em voga nos anos 1960: a
ideologia militar que emerge da Guerra Fria e a
contracultura hippie atravessada por ideais e noções de
liberdade e compartilhamento.

Diferente do que se pode pensar, a tecnologia dos anos 1960 e


1970 não era dominada por hierarquias rígidas, pois era
pensada e criada a partir da ideia de interação entre
humanos e máquinas como um sistema em redes. Assim, o
mundo das redes em conexão e a teoria dos sistemas
ofereceram uma alternativa para a prática das ideias da
contracultura: a cibernética apresentava um modo de
vivenciar o mundo fora das hierarquias verticais, e em
um looping de circuitos de energia e de informação.

Desde o princípio da internet, a fusão entre redes, éticas de


liberdade e filosofias que se opunham à burocracia e à
política tradicional alicerçaram o funcionamento e o modo
como essas redes interagem entre si. Ou seja, a tecnologia é
permeada e moldada pelo social, pelas ideias de quem as cria,
de quem as pensa, e também de quem as consome —
constantemente, mudanças advêm das criatividades que
acompanham os usos da técnica.

O torrent reproduz essa dinâmica sociotécnica operando


através de uma configuração relacional entre arquivos,
peers, seeders e trackers. Também reproduz filosofias e
lógicas de pensar o acesso a partir de experiências subjetivas,
como mostro brevemente a seguir.

Vivenciando o torrent

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Mesmo após duas décadas, o torrent persiste enquanto opção
de acesso a conteúdo. Ainda que passe a dividir significativo
espaço com as plataformas de streaming entre aqueles que
buscam diferentes e melhores modos de experienciar
conteúdo, a importância e as motivações sociais que levam
usuários a fazerem seu uso não podem ser ignoradas (ou
menosprezadas). As justificativas estão envoltas em
percepções de mundo que dão valor ao que, e como, o torrent
oferece acesso. Destaco algumas dessas razões.

O motivo econômico. Antes da (discutível) acessibilidade


oferecida pelas plataformas de streaming, o torrent oferecia
eficientes possibilidades de alcançar um mercado cultural
seletivo em termos de acesso. Bens considerados caros e de
aquisição inviável por meio de vias legais para muitos grupos
sociais passaram a ser aproximados e consumidos por estes.
Um novo cenário de possibilidades e de inclusão é
instaurado.

Nos últimos dez anos, a popularidade das plataformas de


streaming reconfigurou a influência do torrent junto ao
2
acesso. Novos meios legais disputavam espaço com preços
considerados interessantes se comparados ao custo de uma
TV a cabo. A popularidade do streaming, no entanto, fez com
que o mercado o multiplicasse, tornando, mais uma vez, o
acesso uma oferta exigente e custosa — afinal, a cumulação
do valor das assinaturas de serviços para assistir o que se
deseja não é compatível com acessibilidade.

Assim, uma das razões para o uso do torrent reside, ainda, na


disparidade das condições de oferta do mercado e na
realidade de quem não pode arcar com as exigências da
dimensão legalizada. Muitas vezes, há quem assine um
serviço legal, mas se utilize do torrent para acessar conteúdo
que não lhe é disponibilizado. Há aqui um gerenciamento
entre legal e ilegal. Uma gestão do (in)acessível em que o
balanço se dá a partir de negociações de escolhas entre os
melhores serviços a serem investidos, e o conteúdo a ser
alcançado ilegalmente. Uma composição que enreda
legal/ilegal para o alcance de uma harmonia.

Neste cenário também protagoniza os sensos de justiça de


quem quer consumir. A reflexão sobre o que é justo e injusto
na dimensão da distribuição e do acesso permeia as
motivações de quem recorre ao torrent. A condicionalidade
da cultura e da informação ao econômico faz com que muitos
questionem o espaço da justiça neste arranjo, tornando o
torrent receptivo (e mais justo).

Em uma conjuntura de sentidos de justiça semelhante, há


também aqueles que, mesmo podendo arcar com o acesso,
não o fazem nos moldes do mercado e do direito. Várias
questões pessoais podem nortear tal opção, saliento a que
mais se sobressaiu em minhas pesquisas: a questão
ideológica.

Nestes casos, os formatos de distribuição de conteúdo,


baseados em leis e punições, assim como em preços
2
considerados inacessíveis, produzem emoções de oposição ao
modelo do mercado. Grandes corporações são interpretadas
como exploradoras, a liberdade de acessar a cultura e a
informação é vista como cerceada por configurações liberais
percebidas como injustas. Nesses casos, o torrent é utilizado
como rejeição da cultura de mercado, às assimetrias das
relações de poder entre mercado e consumidor. O torrent se
torna um mecanismo de objeção, oposição, resistência.

O protocolo também mobiliza aqueles que percebem o


conteúdo que querem acessar indisponível. Quando um bem
passa de sua vida comercial, o torrent passa a dar uma
sobrevida à cultura. É um modo de lembrar, de reintegrar, de
existir. A recuperação da memória cultural é uma das
prerrogativas de uma dinâmica distinta do mercado
tradicional: a cultura não se dissipa em razão de lógicas
comerciais e legais, ela é trazida à tona quando há vontade de
compartilhá-la e vontade de acessá-la. Assim, motivações de
restauração de um bem também atravessam o uso dos
torrents.

O torrent também possibilita o acesso a bens difíceis de


serem encontrados. Seja em razão de estarem banidos ou
indisponíveis em determinadas regiões, ou mesmo raridades
apreciadas por colecionadores. Um dos exemplos mais
expressivos reside na disparidade de datas de estréias de
conteúdo em diferentes localidades. Essa discrepância gera
indignação e, mais uma vez, os sensos de injustiça são
ativados para refletir os arranjos do mercado. O medo do
spoiler, o sentimento de “ser deixado para trás”, de ser
invisibilizado enquanto consumidor motiva um
restabelecimento de uma justiça (simbolicamente violada)
por meio do uso dos torrents.

Estes são apenas alguns exemplos que extrapolam noções


que associam o uso do protocolo somente ao estigma da
violação da lei, e à ganância. As motivações são permeadas
por visões de mundo, sensos de justiça, emoções, valorização 2
da cultura, entre outras reflexões sobre as configurações do
mercado e do consumo. Ou seja, a cultura do torrent é mais
complexa do que uma violação legal, é construída por
vivências, pela experiência de seus usuários no mundo.
Mas, sobretudo, há um “espírito” de solidariedade/senso de
comunidade nesta cultura.

Cultura do compartilhamento
Com o tempo, o compartilhamento dos arquivos via torrent
ajudou a redefinir os modos de distribuição do
entretenimento, assim como remodelou valores no campo do
acesso, destacando a solidariedade como ética nas trocas, e
reflexões contra a lógica dos direitos autorais.

Por vezes, quem faz uso do torrent acaba por compor uma
rede permeada de dádivas, reciprocidades e obrigações. A
colaboração não constitui apenas uma diretriz moral
descompromissada, é um código de conduta que deve ser
observado. Não basta somente receber arquivos, é
importante que o usuário também os distribua a outros
dispositivos em uma espécie de malha cooperativa.

A manutenção do sistema que mobiliza o torrent é baseada


na lógica da reciprocidade. O sistema só sobreviverá, ou só
operará de modo adequado e satisfatório se aqueles que
recebem arquivos também os disponibilizarem
proporcionalmente. Poucos compartilhadores, menos
chances de fazer o download que se busca. Quanto mais
pessoas possuem o arquivo, mais rápida será sua
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transmissão.

O equilíbrio entre dar e receber determina o êxito do acesso.


Em termos de compartilhamento, algumas regras nos usos
dos torrents reforçam o perfil colaborativo, ao mesmo passo
em que produzem perspectivas, comportamentos e
expectativas de reciprocidade.

De modo geral, espera-se que o usuário contribua com o


upload de arquivos, e que apresente uma alta taxa de
compartilhamento — indicativo de que está colaborando
para o grupo, auxiliando ao menos uma pessoa a realizar o
download. A etiqueta é importante: é esperado que doe a
mesma proporção que recebeu. Quem se mostra mais
generoso, é apreciado por seus pares. Em algumas ocasiões,
quem compartilha mais é agraciado com downloads rápidos,
em outras, a expressividade do compartilhamento passa a
servir como moeda de troca para a entrada em grupos de
trackers prestigiados. A ratio do compartilhamento também é
medida para a manutenção do usuário em tal grupo.

Quem não colabora para o balanço da reciprocidade, é


chamado de leecher, sanguessuga. São usuários que
participam assimetricamente das dinâmicas de acesso, pois
atuam de modo individual, sem compromisso com a
comunidade. São percebidos como à margem do que é ser
pirata.

Ser um pirata no cenário do torrent envolve mais do que


acessar conteúdo ilegalmente. Compreende fazer parte de
uma comunidade tecida e mantida por regras de cooperação
em que a finalidade é compartilhar e servir à comunidade. É
uma lógica de acesso parcialmente avessa à racionalidade do
mercado. Enquanto que na cultura torrent a individualidade
e o valor monetário não encontram amparo, no mercado
convencional esses aspectos são valorizados.

Não se trata, assim, de questão que se esgote em dualidades


2
de certo/errado. Não se resume a “pegar e tirar”. O torrent é
sustentando por visões de mundo que dialogam
constantemente com as inconsistências do mercado.

Gostaria de agradecer a Paulo Pilotti pelos esclarecimentos.


* doutora e mestra em Antropologia Social, se dedica a
pesquisar cibercultura, pirata digital e plataformas de
streaming (Twitter: @andressanns)
Leia publicação original aqui

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