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Maria Florencia Guarche Ribeiro - Doutorada em Ciência Política PPGCP/UFRGS

Gabriela Luiz Scapini - Doutoranda em Sociologia PPGS/UFRGS


GT: 11. GÉNERO, FEMINISMOS Y SUS APORTES A LAS CIENCIAS SOCIALES

A Jineologî como uma contribuição à epistemologia feminista: um debate


desde a perspectiva das mulheres curdas

Este trabalho propõe-se a analisar os discursos e práticas promovidas pelo


Movimento de Mulheres Curdas em direção a reconstrução das ciências sociais a
partir da promoção da “Ciência das Mulheres”, a Jineologî, enquanto uma
epistemologia anticolonial e antissistêmica. A fim de examinar essa proposta, faz-se
uso de uma abordagem qualitativa de natureza exploratória e descritiva. A seleção e
o tratamento dos dados orientam-se a partir das diretrizes da epistemologia
feminista, desde a teoria do ponto de vista. O artigo é dividido em duas sessões: a
primeira, trata sobre a epistemologia feminista enquanto crítica à ciência positivista,
centrando-se na ruptura trazida pelo feminismo negro e; a segunda, analisa os
principais elementos constituintes da Jineologî, considerando as aproximações e
distanciamentos dessa com a epistemologia feminista apresentada. Os resultados
deste estudo indicam que os estereótipos impostos pela ciência positivista afetam as
representações históricas e culturais das mulheres, o que contribui para a
manutenção das estruturas de poder. Em contraposição, a criação de novas
epistemologias, enquanto projetos críticos de reinterpretação coletiva do
conhecimento, apresentam-se como alternativa para a construção de sua
autoimagem, o que incide no processo de transformação social. Assim, a Jineologî,
além de uma proposta de reconstrução das ciências sociais, apresenta-se como
perspectiva orientadora para a construção de uma sociedade despatriarcalizada e
comunal, como a que vem sendo construída em Rojava, ao Norte da Síria.

Palavras-chave: Epistemologia feminista; Jineologî; Movimento de Mulheres do


Curdistão; Rojava.

INTRODUÇÃO
Este trabalho é uma extensão da dissertação de mestrado intitulada “A
trajetória do movimento de mulheres no noroeste do Curdistão: a institucionalização
do confederalismo democrático e da jineologî (1978-2018)”, que analisa o processo
de organização das mulheres curdas a partir de suas articulações nas estruturas
orgânicas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão e as transformações que
contribuem para o desenvolvimento da chamada revolução em Rojava (norte da
Síria) autodeclarada, de fato, em 2012.
As reflexões a respeito da Jineologî enquanto epistemologia crítica e suas
articulações com outros movimentos de mulheres do sul global, especialmente
aquelas da América-latina, serão desenvolvidas na investigação a ser desenvolvida
por uma das autoras deste trabalho. Dessa forma, tendo em vista que a pesquisa
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está em sua fase embrionária e que, embora seja um tema já trabalhado


anteriormente, este trabalho tem caráter ensaístico.
A chamada questão curda[1], que tem suas origens no começo do século XX,
evidencia o peso psicossocial do trauma intergeracional causado pelo acúmulo de
violências estatais perpetuadas há, pelo menos, um século. A divisão do território do
Curdistão em quatro partes, localizadas entre a Turquia, a Síria, o Irã e o Iraque, e
as políticas assimilacionistas de negação cultural desenvolvidas em cada um desses
territórios, tornam a questão curda um conflito ainda longe de ser resolvido.
Muitas são as formas pelas quais as mulheres curdas resistem. Em diferentes
espaços e tempos essas mulheres tecem estratégias de resistência que evidenciam
o uso criativo do lugar social em que se encontram (Collins 2019; hooks 2015;
2019). A seu modo, elas ocupam e redefinem importantes espaços da sociedade,
promovendo sua transformação. Sua luta está nas trincheiras, como guerrilheiras;
nas montanhas de Qandil, construindo novas formas de viver em harmonia com a
natureza e, também, no trabalho reprodutivo, enquanto mães que lutam frente a
assimilação cultural, ensinando aos seus filhos e filhas as tradições e os idiomas
curdos, até bem pouco tempo, proibidos e criminalizados na Turquia[2].
A Jineologî é, sobretudo, resultado do acúmulo de saberes advindos dessas
resistências. Originada da palavra curda Jin que significa tanto mulher quanto vida, a
Jineologî se apresenta como sendo uma ciência social que objetiva transformar a
autodeterminação das mulheres, o Estado, os sistemas de poder e a mentalidade
patriarcal-capitalista com base na experiência do movimento de mulheres curdas
(MMC). Assim, “a Jineologî é uma objeção radical às estruturas mentais atuais”
(Comitê de Jineologî 2017:12) Portanto, ante o exposto, a proposta deste artigo é
refletir, de forma sintética, a respeito dos pressupostos principais que orientam a
ciência das mulheres, a Jineologî, enquanto uma alternativa epistêmica anticolonial
desenvolvida pelo Movimento de Mulheres do Curdistão. O argumento principal
deste trabalho é compreender as proximidades entre as críticas e propostas
apresentadas por feministas negras em diálogo com a Jineologî, em especial no que
diz respeito à construção de uma epistemologia perspectivista, feminista e
interseccional que possibilita analisar a constituição do conhecimento a partir das
margens (Collins 2016; 2019; hooks 2015; 2019). Vale lembrar que, segundo as
narrativas propostas pelo Movimento de Mulheres do Curdistão, a Jineologî não se
restringe às organizações de mulheres localizadas no Oriente Médio, mas sua
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proposta é de estabelecer pontes e diálogo com mulheres e organizações de


diferentes partes do mundo valendo-se das reflexões, experiências e acúmulos
construídas em diferentes contextos. Assim, seu objetivo principal é a construção de
discursos emancipadores/libertadores que, por meio de práticas cotidianas,
dialoguem com diferentes experiências.
A análise empreendida neste trabalho é conduzida a partir do marco teórico-
metodológico proposto pela teoria do ponto de vista (standpoint) (Harding 1992,
2012; Collins 2016; 2019). Assim, dá-se prioridade à compreensão das narrativas e
autodefinições construídas pelo Movimento de Mulheres do Curdistão, a partir do
lugar que elas ocupam dentro do Movimento de Libertação Nacional.

CRÍTICAS FEMINISTAS À CIÊNCIA: o giro epistêmico proposto pelo


pensamento feminista negro
O campo dos estudos feministas têm conquistado cada vez mais espaço e
visibilidade dentro da academia, evidenciando o caráter político da produção do
conhecimento. Esse campo ainda é recente se comparado com a mobilizações
sociais e políticas das mulheres em prol feminismo. Os esforços em sistematizar
esse conhecimento, através da criação de um corpus teórico-metodológico crítico,
impõem-se a partir da construção novas epistemologias que ganham destaque na
década de 1970. Dessa forma, a partir desses debates, a epistemologia feminista
passa a ser reconhecida enquanto crítica à ciência hegemônica, buscando
“modificar os processos de investigação no sentido feminista” (McCanney 1993: 10).
Entre as principais críticas está a que pretende romper com as pretensas
neutralidade axiológica e a generalização universalizante, proclamadas como
fundamentais à racionalidade científica moderna. Na leitura feminista, o ideal
universal apoia-se no suposto da existência de um “cidadão” agenerificado que, na
verdade, abriga um sujeito hegemônico (homem adulto, branco, ocidental,
proprietário, heterossexual). Esse androcentrismo presente na racionalidade
científica moderna, naturaliza o sexismo e a construção de papéis de gênero
universalizantes, bem como promove uma racionalidade dicotômica do mundo.
Contudo, não basta apenas denunciar o androcentrismo, o sexismo e a
ocultação das mulheres na ciência. Não é suficiente apenas romper com o “sujeito
hegemônico” e incluir mulheres, pois se incorre no erro de generalizar seu
significado a partir das experiências dos sujeitos que ocupam posições de poder
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privilegiadas[3]. É nesse sentido que o ativismo intelectual de teóricas feministas


negras norte-americanas como bell hooks (2015) e Patricia Hill Collins (2016; 2019)
tensionam as bases teórico-conceituais do feminismo hegemônico que, ao centrar-
se nas experiências e reivindicações das mulheres brancas, reproduz estereótipos
dominantes e universalizantes. Para as autoras, o uso indiscriminado da categoria
“mulher” invisibiliza hierarquias sociais intragrupo, o que contribui para a
manutenção de estruturas de poder na sociedade.
A a teoria do ponto de vista faz parte das abordagens perspectivistas da
epistemologia feminista e tiveram grande difusão nas décadas de 1960 e 1970
(Harding 2012). Tais perspectivas são entendidas como um conhecimento situado
que, reconhece e valoriza as experiências das mulheres na produção de saberes.
Voltando-se para a realidade socio-política afroamericana, Patricia Hill Collins
propõe o reconhecimento da potência criativa informada a partir do lugar social
multifacetado que a marginalidade oferece às mulheres negras. Ao dar importância
ao reconhecimento do lugar social ocupado por cada grupo social e, e do olhar
diferenciado obtido em virtude do espaço ocupado nas diferentes relações de poder
articuladas na sociedade, Collins (2019) destaca o privilégio epistêmico que grupos
subalternizados possuem em relação aos grupos hegemônicos.
O privilégio epistêmico que advém das margens também é central no ativismo
intelectual bell hooks (2015) quem se propõem moldar a teoria feminista a partir da
potência criativa presente nas margens. Para a autora,
É essencial para a continuação da luta feminista que as mulheres negras
reconheçam o ponto de vista especial que a nossa marginalidade nos dá e
façam uso dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e
sexista dominante e vislumbrar e criar uma contra-hegemonia. Estou
sugerindo que que temos um papel central a desempenhar na construção da
teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa. A
formação de uma teoria e uma práxis feministas libertadoras é de
responsabilidade coletiva, uma responsabilidade que deve ser compartilhada.
(hooks 2015: 208).

Assim como bell hooks e Patricia Hill Collins, que destacam a importância de
uma práxis crítica centrada na experiência das mulheres, propomos pensar a
Jineologî, enquanto proposta de ruptura epistêmica, em diálogo com as construções
teórico-metodológicas das autoras negras. Reconhecemos que se tratam de
contextos políticos e sociais radicalmente diferentes e que as autoras negras
centram seus esforços em comprovar a matriz de dominação (Collins 2019) racista
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que informa as hierarquias sociais no contexto norteamericano, algo que não ocorre
no Curdistão. Ainda que as políticas repressivas no Curdistão tenham como
parâmetro os marcadores sociais de caráter étnico, é importante estarmos atentas
as especificidades de cada contexto. Ainda assim, acreditamos que a valorização
das experiências apresentadas pela teoria do ponto de vista e o reconhecimento da
potência criativa das margens presentes nessas abordagens favorecem a
compreensão das narrativas e resistências advindas desde o Curdistão. Dessa
forma, para que compreender o lugar ocupado pelas mulheres dentro do Movimento
de Libertação Nacional torna-se relevante considerar sua trajetória de organização.

A ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES DO CURDISTÃO: do PKK à Jineologî


O processo de mobilização e organização política em prol do Movimento de
Libertação Nacional curdo na Turquia remonta à década de 1960, mas é na década
de 1990 que ocorre a grande virada ideológica que leva à formação da Jineologî,
nos primeiros anos da década de 2000. Essa virada ocorre no núcleo do Partido dos
Trabalhadores do Curdistão (PKK), organização política fundada em 27 de
novembro de 1978 como resultado do fervilhante contexto político da esquerda turca
daquela década (Özcan 2006; Gunes 2012; White 2015).
O PKK surge como resposta ao contexto de violência sistêmica, resultado das
políticas assimilacionistas realizadas pelo Estado da Turquia desde sua fundação.
Orientado ideologicamente ao marxismo-leninismo, emerge como um partido de
aspiração independentista voltado para a organização das bases camponesas. Entre
seus 22 fundadores, destacam-se Abdullah Öcalan e Sakine Cansiz como
importantes figuras de articulação dos militantes e fundamentais para compreender
a construção do protagonismo do movimento de mulheres no interior do partido.
Ademais, apenas duas mulheres estiveram presente neste momento fundacional: a
já referenciada Sakine Cansiz e Kesire Yildirim (à época esposa de Abdullah
Öcalan). Em seu diário Cansiz (2017) relata as dificuldades enfrentadas pelas
mulheres no partido, como, por exemplo, o sexismo de seus companheiros. O
patriarcalismo da sociedade curda recebe forte influência das estruturas clânicas da
região, sendo apontado como um dos principais agravantes que ampliam a situação
marginal das mulheres nessa sociedade.
Em relação à formação do PPK, Martin van Bruinessen (1992) destaca dois
elementos relevantes: (a) a origem social de seus militantes, advindos,
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majoritariamente, de classes populares e (b) a insegurança social gerada pelos


embates contra as elites tribais curdas que cooperavam com o Estado turco no
controle e marginalização dessas comunidades. Esses elementos, segundo o autor,
facilitaram o trabalho de base do partido nas comunidades rurais. Assim, o PKK
define-se como uma organização revolucionária que está ao lado do povo e trabalha
para ele (Ribeiro 2019: 44). Segundo Öcalan,
O PKK pode ser descrito como um movimento político prático. Ele define seus
objetivos analisando as características do capitalismo (moldadas no século
XX) assim como a atual situação do Curdistão e, em seguida, age de acordo
com os parâmetros (...). O PKK é a mistura de uma estrutura socialista
incompleta e uma incompleta identidade clássica do Oriente Médio (Öcalan
2011)

O golpe militar turco em 1980 fomenta a escalada de violência. A perseguição


aos militantes faz com que Cansiz seja presa no ano seguinte. A formação das
Forças para a Libertação do Curdistão (HRK) em 1984 dá início a guerra de
guerrilhas contra o governo. É o início de uma nova fase do conflito. Nesse contexto,
Cansiz lidera uma importante mobilização de resistência dentro da prisão de
Diyarbakır, encorajando outras mulheres, dentro e fora do cárcere. Essa conjuntura
favorece o aumento do apoio das bases populares ao partido levando a maior
presença de mulheres na guerrilha.
Com a incorporação de mais mulheres nas linhas de frente da guerrilha, os
tensionamentos gerados pelo patriarcalismo de seus companheiros se acentuam.
Com isso, há uma intensificação dos debates a respeito do lugar social ocupado por
elas no movimento. Sara Akan, militante do partido, descreve essas dificuldades,
As guerrilheiras participaram da luta nas montanhas do Curdistão sob as
condições mais difíceis. Sua luta foi, ao mesmo tempo, contra o seu
condicionado papel de ser subserviente e contra as atitudes dominadoras
condicionadas dos homens contra eles mesmos, bem como contra o domínio
colonial. As mulheres na guerrilha mudaram suas vidas, agora a luta é por
mudar a vida do próprio Curdistão (Akan 1992:9)

É em busca de uma mudança de vida em 1987 é fundada a União das


Mulheres Patrióticas pelo Curdistão (YJWK), organização internacional fundada em
Hamburgo que objetivava mobilizar mulheres na diáspora. A mobilização em prol do
Curdistão independente significou extrapolar os espaços da sociabilidade feminina
(domésticos), tensionando debates a respeito da posição social ocupada pelas
mulheres curdas. Para Massoud Sharifi Dryaz,
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Women's involvement was encouraged by the Kurdish movement on one


side as a symbol of liberation and revolution and on the other side,as
symbols of Kurdish culture [...] This is the beginning of an exit from the
traditional social position of women as a wife, mother, sister and daughter of
men. The military is no longer defined as a male sector and women are no
longer solely linked to peace. Women claim their place simultaneously on the
battlefield and in politics. In this context, the awakening of female
consciousness in Kurdistan does not begin with the educated middle
class, at least not for those women involved in the Kurdish movement (Dryaz
2011: 2)

Esse despertar da consciência feminina no Curdistão ocorre a partir da


organização coletiva das mulheres, através do estabelecimento de uma relação
dialética entre as militantes do movimento de libertação nacional e suas bases
sociais. Essa dinâmica, movimenta as mulheres em prol do reconhecimento de suas
especificidades, tanto no contexto civil quanto no militar estabelecendo uma práxis
crítica (Collins 2019:15). Esse processo aproxima as experiências comuns entre
elas, construindo uma consciência de grupo distintiva.
Tais mobilizações encorajaram cada vez mais a organização coletiva das
mulheres em espaços armados autônomos. A militarização das mulheres,
ordulaşma, corresponde a mais uma face dessa tomada de consciência. Assim, em
1995 é fundada a União das Mulheres Livres do Curdistão (YJAK) e, pouco depois,
em 1999, o Partido das Mulheres Trabalhadores do Curdistão (PJKK). Nessa
instância, é apresentado o documento que consagra a “ideologia da libertação das
mulheres”, base teórico-ideológica que orientará o partido. O documento, pouco
tempo depois, em 2002, foi substituído pelo Contrato Social das Mulheres que, entre
outras coisas, estabelece cinco princípios básicos que criam o fundamento para a
luta antipatriarcal das mulheres, são eles: welatparêzî; pensamento e vontade livres
(auto-consciência); auto-organização, determinação de luta (autodefesa); ética e
estética (Comitê de Jineologî 2017). Nesse contrato, também, fica estabelecida a
construção de uma agenda internacional que objetiva a aproximação das militantes
com movimentos de mulheres de diferentes partes do mundo. Dessa forma, são
criadas cada vez mais espaços de organização para o empoderamento das
mulheres e, consequentemente, a formação delas enquanto vanguarda do partido.
Em que pese as mulheres criem suas próprias organizações, elas não deixam
de fazer parte dos espaços mistos. Mulheres e homens cooperam mutuamente no
Movimento de Libertação Nacional e é a partir das experiências geradas nessa inter-
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relação que os debates de construção da luta antipatriarcal são informados. A ativa


e rápida organização das mulheres encontra suporte na abertura do partido às suas
demandas. Assim, gradualmente, o MMC passa a ocupar a vanguarda do partido e,
ao mesmo tempo, a fomentar a construção de espaços de articulação das mulheres
curdas na sociedade.
Esse processo está diretamente vinculado a transformação ideológica
vivenciada pelo PKK durante os anos 1990. A virada ideológica do partido diz
respeito ao abandono da luta independentista e de sua associação ao projeto
marxista-leninista de Estado. Com isso, o projeto que passa a ser construído
propõem a criação de estruturas de administração autônomas, radicalmente
democráticas e orientadas em direção ao desmantelamento do sistema patriarcal-
capitalista. Essas rupturas são percebidas através da análise das obras de Abdullah
Öcalan, líder do partido e importante teórico que sistematiza as propostas políticas e
ideológicas ocorridas durante o processo de transformação ideológica do PKK. A
partir da influência das mulheres, Öcalan cunha o termo Jineologî, ao propor o
arcabouço teórico-político do Confederalismo Democrático.
O conceito do Confederalismo Democrático é usado a partir de 2005 e remete
à “experiência histórica da sociedade [curda] e [a] sua herança coletiva” (Öcalan
2012: 23). Na sua visão, a proposta retoma os valores de liberdade e comunalismo
dessa sociedade para construir alternativas às metodologias universalistas, lineares
e deterministas do modelo de Estado-nação. O autor define o Confederalismo
Democrático como um tipo de administração política autônoma não estatal centrada
na despatriarcalização da sociedade (Öcalan 2012). O Confederalismo Democrático
é um paradigma prático formado pelo “acúmulo histórico-teórico-prático sintetizado
por Abdullah Öcalan em que se somam as expressões comunitárias do povo curdo”
(Pazmiño Vásquez 2017:122). Assim, por meio de uma extensa análise histórica,
Öcalan considera que “a história dos 5000 anos da civilização é, essencialmente, a
história da escravização da mulher. Por tanto, a libertação da mulher só será
alcançada lutando contra os pilares do sistema imperante” (Öcalan 2013:09). Dessa
forma, o pilar de sustentação desse paradigma é a libertação da sociedade através
da sua despatriarcalização. Tal ruptura será alcançada por meio da Jineologî.
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Qualificando a Jineologî enquanto contribuição epistemológica


Diante dos tensionamentos trazidos pela organização das mulheres e,
segundo Dryaz (2011), a partir de sua relação com Kesire Yildirim, Abdullah Öcalan
escreve a respeito do patriarcalismo da sociedade curda por primeira vez no livro A
mulher e o problema da família no Curdistão, publicado em 1987, ainda sob forte
influência marxista-leninista. Nesse momento, para ele, a revolução socialista
conduziria a transformação do status da mulher, pois a dominação masculina estaria
vinculada às relações de classe. Este entendimento será radicalmente afetado a
partir da organização das mulheres na década de 1990. Por mais que a igualdade
entre homens e mulheres estivesse estabelecida como um princípio desde os
primeiros programas do partido e, em muitos casos já houvessem sido registradas
participações femininas na luta curda, seu protagonismo, até então, era exceção.
Anos depois, em função das grandes transformações ocorridas no interior do
partido e, a partir da formulação do Confederalismo Democrático e da Jineologî, a
percepção de Öcalan sobre a dominação masculina é alterada e, nela, as reflexões
e propostas relativas a luta antipatriarcal do movimento de mulheres passam a ser
centrais. Assim, a partir do que o PKK denomina de processo de “crítica e
autocrítica” Öcalan convoca que a militância masculina “mate o macho” (Erkeği
Öldürmek), rompendo com masculinidade dominante a partir de si mesmos.
Percebemos, nessa direção, um esforço de transformação e eliminação do
patriarcado em todos os níveis, tanto fora como dentro do partido. Isso se dá a partir
da do elo construído entre militantes e as bases sociais, atuando em todas esferas
de socialização (família, escola, trabalho, religião). Nesse sentido, segundo as
representantes do Comitê de Jineologî na Europa, esta ciência propõe reestruturar a
sociedade e ciência servindo de base para a sociedade democrática (alternativa à
sociedade capitalista) e para a libertação das mulheres e consequente
transformação dos homens. Nessa direção, a sociedade alcançaria um equilíbrio de
poder entre homens e mulheres - proposta que remete à dualidade entre ambos e
não uma situação desigual encontrada na matriz eurocentrada binária.
A respeito do feminismo, o Movimento de Mulheres do Curdistão apresenta
um posicionamento dúbio. Enquanto posiciona-se criticamente a respeito da falta de
radicalidade e hierarquização do feminismo hegemônico, também, reivindica sua
superação, por meio da jineologî. Assim, segundo elas, esta epistemologia estaria
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além do feminismo sendo capaz de superá-lo. Nesse sentido apresenta-se como


uma proposta epistemológica anticolonial, antissistêmica, coletiva e transnacional:
Quando o feminismo se incline em direção às culturas locais com
originalidade, autenticidade e uma proposta libertária, fortalecerá sua postura
antissistêmica e ajudará a entender as influências orientalistas [...] É por isso
que a Jineologî deve constituir-se em regiões geográficas diferentes, de forma
diferente, utilizado o conhecimento e as experiências das mulheres locais
(Comitê de Jineologî 2017).

Dessa forma, a ruptura proposta pela Jinologî envolve a construção de um


movimento de mulheres plural, diverso e cooperativo, que seja capaz de alterar
radicalmente a sociedade a começar pela sua autodefinição, algo muito próximo ao
que feministas negras como bell hooks e Patricia Hill Collins apresentam como
propostas em suas teorias. Assim, a Jineologî, além de uma proposta de
reconstrução das ciências sociais, apresenta-se como perspectiva orientadora para
a construção de uma sociedade despatriarcalizada e comunal, como a que vem
sendo construída em Rojava, ao Norte da Síria, cuja análise será realizada em
futuras oportunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados deste estudo indicam que os estereótipos impostos pela ciência
positivista afetam as representações históricas e culturais das mulheres, o que
contribui para a manutenção das estruturas de poder. Em contraposição, a criação
de novas epistemologias, enquanto projetos críticos de reinterpretação coletiva do
conhecimento, apresentam-se como alternativa para a construção de políticas
emancipadoras. Assim como propõem Patricia Hill Collins e bell hooks a construção
de perspectivas com base nesses saberes marginalizados possibilita a construção
de novas formas de resistências e é justamente no contexto adverso e violento
vivido pelas mulheres curdas que Jineolgî se estabelece em busca da transformação
social, dentro e fora do PKK.
Percebe-se, também, que a academia ainda desconhece a potência de
transformação promovida pela luta das mulheres curdas. Ainda que seja um campo
de estudos crescente, explorado, principalmente, por pesquisadores/as da área das
Relações Internacionais e da Sociologia, o material bibliográfico ainda centra-se no
eixo Estados Unidos e Europa, havendo pouco material disponível na América
Latina. Pensando nisso e considerando as narrativas e resistências desenvolvidas
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pelas organizações de mulheres curdas analisadas aqui, acreditamos que o uso da


teoria social crítica apresentada por Patricia Hill Collins, junto da sua abordagem
intersseccional da Teoria do Ponto de Vista, contribuem para a compreender as
aproximações epistêmicas propostas pela Jineologî.
A construção e o desenvolvimento de novas matrizes epistêmicas pela própria
população curda se faz mais urgente, sobretudo por dois principais aspectos: o
primeiro corresponde ao reconhecimento de uma matriz eurocentrada de produção
de conhecimento, a qual não condiz com as experiências desse povo e, com isso,
torna-se relevante teorizar a partir dos seus pontos de vista, ou seja, de suas
práticas e vivências enquanto povo. A segunda se refere a necessidade de resgatar,
ou, melhor, reativar (Stengers 2017) a história que foi apagada durante os processos
de colonização. Aqui, destacamos que, ao falar de colonização não estamos
fazendo alusão necessariamente ao mesmo processo vivenciado na América Latina,
mas fazendo uso do termo empregado pelas militantes curdas ao referir-se ao
processo de apagamento sistêmico promovido pela ocupação de seus territórios e
as políticas de assimilação cultural.
Essa reativação da história de um povo é fundamental e está presente, por
exemplo, da reivindicação do uso da mitologia como parte do método da
epistemologia da Jineologî. Baseando-se em tradições orais e usando crenças
mitológicas as mulheres curdas têm construído relaçòes próximas com as
comunidades, rompendo tradições intelectuais dicotômicas que afastam o trabalho
intelectual do ativismo. Entendemos que esse processo não significa apenas
resgatar a história, mas é um resgate que possibilita a existência de um povo, e não
apenas um povo em si, mas um povo com história e que se projeta ao futuro. Esta é
mais uma face da resistência daqueles que enfrentam o genocídio da assimilação
cultural. Assim, a jineologî também faz parte de um processo de ressignificação da
identidade curda, por meio da autodefinição. Esses movimentos/teorias propõem-se
a romper com epistemologias e saberes centrados na branquitude (note global),
construindo valores que permitam a valorização dos sujeitos marginalizados.
As identidades não são fixas, são constantemente reinventadas de acordo
com a dinamicidade do contexto histórico-social no qual se encontram. Esse
processo de autodefinição de sujeitos marginalizados torna-se fundamental para o
avanço das lutas de resistência. A construção da imagem da mulher guerrilheira, por
exemplo, como heroína de um Curdistão livre, é um elemento importante construído
11

como símbolo de resistência e afirmação de identidade frente à décadas de negação


e assimilação cultural. Nossa proposta não é de se opor a importância dessa figura,
por vezes, tão valorizada e destacada nas narrativas do Movimento de Mulheres do
Curdistão, mas de trazer à tona o contexto violento no qual essa figura foi construída
e da forma como ela é ressignificada e valorizada por meio das narrativas de
autodefesa da Jineologî.
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NOTAS DE FIM
[1] - em referência a segunda grande divisão do Curdistão ocorrida a partir do fim da
Primeira Guerra Mundial com a formação da República da Turquia (1923). Para mais
informações sugerimos: Barkey, H. J. (2000). Turkey's Kurdish question. Rowman &
Littlefield Publishers.

[2] - Existem diversos exemplos que retratam as políticas assimilacionistas e de


negação cultural promovidas pelo Estado da Turquia contra minorias étnicas em seu
país, especialmente os curdos. Até, pelo menos, 1980 os curdos eram denominados
oficialmente como "Turcos da Montanha" eis que palavras como curdo e Curdistão
eram proibidas de serem usadas. Até 1991 era crime falar em idimas curdos na
Turquia. Para mais informações recomendamos: Cemiloglu, D. (2009). Language
policy and national unity: The dilemma of the Kurdish language in Turkey. CUREJ-
College Undergraduate Research Electronic Journal, 97 e Hannum, H. (2011).
Autonomy, sovereignty, and self-determination: The accommodation of conflicting
rights. University of Pennsylvania Press.

[3] Em referência ao debate apresentado em: Phillips, A. (2001). From a politics of


ideas to a politics of presence?. Revista Estudos Feministas, 9(1), 268-290; e em
Benhabib, S., Butler, J., Cornell, D., & Fraser, N. (2019). Debates feministas: Um
intercâmbio filosófico. Editora Unesp.
13

REFERÊNCIAS
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Kurdish Woman: the struggle for national liberation and women's rights.
Interviews and articles. London: KSC-KIC Publications.

Cansiz, Sakine (2017). Toda mi vida fue una lucha. Tomo 1. Buenos Aires: América
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Comité de Jineologî (2017). Jineologî: la ciencia de las mujeres. Buenos Aires.

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