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CANDIDATURAS INDEPENDENTES: A PRÓXIMA “NOVA REALIDADE”

NA POLÍTICA BRASILEIRA?
ANDRÉ PIRES GONTIJO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema “candidaturas independentes” foi objeto de um interessante debate nas


eleições de 2018. Alguns tribunais eleitorais apreciaram a questão, além do fato de o
Supremo Tribunal Federal (STF) ter o tema em sede de Repercussão Geral.

Creio que o tema apresenta-se como de grande relevância para a sociedade civil,
sobretudo no contexto de um Estado Democrático de Direito, representado na formação da
República Federativa do Brasil.

Na minha opinião, não se trata apenas de um candidato se apresentar à sociedade


sem a companhia de um partido. Trata-se, a meu ver, de uma possível - e relevante -
modificação na forma de encarar a democracia e o sistema eleitoral no país.

Por essa razão, a reflexão do problema desta pesquisa consiste em saber o


seguinte: a Constituição de 1988 autoriza a formulação de candidaturas independentes
para o processo eleitoral brasileiro?

A hipótese de pesquisa vai um pouco além da interpretação literal da Constituição


da República Federativa do Brasil (doravante CRFB/1988, texto constitucional ou
Constituição). O artigo 1º, parágrafo único do texto constitucional expressa que “todo poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição”.

A controvérsia é relevante, visto que o texto constitucional estabelece o exercício


do poder pelos representantes, mediante o sufrágio, ou diretamente, pelo próprio povo.

Com o texto, um leque interpretativo é aberto. Pelo menos três interpretações são
possíveis. A primeira é a de que o sistema constitucional brasileiro privilegiou os partidos
políticos, de tal maneira que a manifestação direta pelo povo apenas seria cabível em
hipóteses específicas do texto constitucional.

A segunda interpretação é pela possibilidade das candidaturas independentes, de


acordo com o próprio texto constitucional. Trata-se de uma via estreita, porém, viável, que
será explorada no decorrer do texto.
A terceira interpretação, aos poucos, é desenhada por alguns Ministros do STF.
Não apenas por ser importante na perspectiva constitucional, e sim também por ter relevância
nos aspectos políticos, econômicos, sociais, jurídicos e culturais - que ultrapassam os
interesses subjetivos da causa -, o tema das candidaturas independentes é objeto de
Repercussão Geral no âmbito do STF.

Como o STF não firmou seu posicionamento, a questão ganha “maior liberdade”
para os intérpretes constitucionais da sociedade civil. E, em havendo interpretações jurídicas
diferentes, a contribuição crítica da academia passa a ser crucial.

2 CANDIDATURAS INDEPENDENTES SOB O OLHAR DO TEXTO


CONSTITUCIONAL

A CRFB/1988 estabelece, como princípios fundamentais, a soberania, a


cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,
bem como o pluralismo político.

Destes, pelo menos quatro deles se conectam ao tema. Com a exceção dos valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa, a soberania é tida como o exercício das capacidades e
competências soberanas de determinado Estado e, em regra, é manifestada com a participação
de agentes políticos eleitos diretamente (Executivo, Legislativo) ou indiretamente (Poder
Judiciário).

A cidadania e a dignidade da pessoa humana estão entrelaçadas na perspectiva


individual do exercício dos direitos fundamentais. Estes princípios têm como escopo
legitimar a capacidade da pessoa de votar e de ser votada.

O pluralismo político é um princípio fundamental interessante. Utilizado para


justificar a proliferação de partidos políticos no Brasil, é um forte “candidato” a fundamentar
as candidaturas independentes.

Por conseguinte, o já mencionado parágrafo único do artigo 1º do texto


constitucional envolve o intérprete em uma redação interessante. Da mesma forma que
protagoniza a democracia semidireta ou por representação, ela abre aos mais esperançosos a
possibilidade de o povo exercer diretamente o poder.
O cerne da contribuição desta pesquisa está aqui, com suas respectivas
ramificações. Será que esta parte do parágrafo único do artigo 1º da Constituição, por si só,
seria suficiente a legitimar as candidaturas independentes?

Importante começar "pelo começo", no caso, uma interpretação literal e, ao


mesmo tempo, sistemática da Constituição. O parágrafo único do artigo 1º do texto
constitucional estabelece a possibilidade do exercício da democracia direta no Brasil. Dispõe
o seu artigo 14, caput, § 3º, V:

“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e


pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos
da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

--

§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

V - a filiação partidária”.

Ou seja, em adição ao texto do parágrafo único do artigo 1º, o artigo 14


estabeleceu uma parte para o exercício direto da democracia - pelo plebiscito, referendo ou
iniciativa popular, enquanto que o § 3º estabeleceu condições de elegibilidade, indicando uma
possível representação pela via da filiação partidária.
Cabe ressaltar que o legislador ordinário regulamentou a filiação partidária
mediante a edição da Lei 9.096/1995, que disciplina as questões relacionadas aos partidos
políticos.

Então, sem a filiação partidária, o candidato não seria elegível, isto é, pela
interpretação literal/sistemática do texto constitucional, as candidaturas independentes seriam
incabíveis.

Inclusive, é o que se verifica da redação do parágrafo 14 do artigo 11 da Lei


9.504/1997 (legislação que regula as eleições), acrescido pelo artigo 1º da Lei 13.488/2017:
“É vedado o registro de candidatura avulsa, ainda que o requerente tenha filiação partidária.”

Parece este ser o marco normativo atual. No âmbito da sua jurisprudência, desde
2010 o TSE já não autorizava as candidaturas independentes1. Nas eleições de 2018, o
Tribunal definiu que:

“O Congresso Nacional, por meio da Lei nº 13.488/2017, reafirmou o


princípio de vinculação das candidaturas aos partidos políticos, ao
acrescentar o § 14 ao art. 11 da Lei n° 9.504/1997, asseverando que 'é
vedado o registro de candidatura avulsa, ainda que o requerente tenha
filiação partidária'”.

Além disso, a própria “movimentação institucional” confere legitimidade a este


marco normativo. No âmbito do Senado Federal, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
6, de 2015, busca dar alento às candidaturas independentes.

Na PEC 6/2015, proposta pelo Senador Reguffe, fica vedada a exigência de


filiação partidária como condição de elegibilidade ou requisito de qualquer espécie para o
pleno exercício dos direitos políticos. A justificativa do Senador é que a população não se
considera representada por partidos políticos.

Na Câmara dos Deputados, diversas propostas também tramitam no sentido de


conferir protagonismo às candidaturas independentes. A PEC 71/2007 propõe alterações em
inúmeros institutos constitucional-eleitorais2, como o voto facultativo, a alteração da data da

1
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. RESPE nº 224358. Acórdão de 29/09/2010. Eleições 2010. Agravo
regimental em recurso especial. Registro de candidatura individual. Senador da República. Partido político
que não lançou candidaturas em determinado Estado da Federação. Inaplicabilidade da ressalva contida no art.
22 da Resolução n. 23.221/2010 do Tribunal Superior Eleitoral. Inexistência de candidatura avulsa.
Precedentes. Agravo regimental ao qual se nega provimento.
2
A PEC 71/2007 “Dá nova redação aos artigos 14, 17, 28, 37, 45, 46, 49, 56 e 82 da Constituição Federal,
institui o voto facultativo, altera a data da posse do Governador de Estado e do Presidente da República,
posse dos Governadores de Estado e do Presidente da República, a vedação da reeleição e a
instituição das candidaturas independentes, dentre outros aspectos.

Já a PEC 350/2017, além de alterar os artigos 14 e 77, cria o artigo 17-A para
permitir a apresentação de candidaturas a cargo eletivo independentemente de filiação
partidária, desde que haja o apoiamento mínimo de eleitores na circunscrição, e para
possibilitar a associação de candidatos independentes em listas cívicas, nas eleições
proporcionais.

Por outro lado, se ampliarmos o leque interpretativo, a filiação partidária é um


parâmetro constitucional, porém, delineado pela lei ordinária, em virtude da expressão “na
forma da lei’’. Isto é, com a devida ressalva doutrinária3, o Congresso Nacional - por lei
ordinária - pode autorizar as candidaturas independentes.

Como dito acima, extrai-se da leitura do artigo 14 do texto constitucional as duas


modalidades de exercício do poder pelo povo. A primeira - diretamente - encontra-se no
caput e incisos: plebiscito (inciso I), referendo (inciso II) e iniciativa popular de leis (inciso
III).

A segunda - pelos representantes - é indicativa pelo procedimento eleitoral.


Dentre as diversas regras estabelecidas pelo texto constitucional (por exemplo, a proibição de
alistamento de estrangeiros, no § 2º do art. 14), está a necessidade de filiação a partidos
políticos. Esta regra foi estabelecida pelo Constituinte Originário e, na quadra atual, é difícil
passar por um processo de mutação constitucional.

institui o sistema distrital misto nas eleições proporcionais, dispõe sobre a remuneração de Deputados
Federais e Senadores, a contratação de parentes de autoridades da administração pública, institui a candidatura
avulsa, veda a reeleição do Presidente da República, Governador de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos,
estabelece regras sobre renúncia de mandato e reeleição de Senadores, Deputados Federais, Estaduais e
Distritais e Vereadores, reduz o número de Senadores e estabelece regras para o reajuste do subsídio de
Deputados Federais e Senadores”.
3
Para Néviton Guedes, “a Constituição também exige como condição de elegibilidade a filiação partidária. Com
isso, pode-se dizer que, diversamente do que ocorre em diversas Democracias contemporâneas,o partido
político no Brasil, nas disputas eleitorais, detém o monopólio das candidaturas (CF, art. 14, § 3º, V, c/c art.
17). Não há, pois, em nosso País, a possibilidade de candidaturas avulsas ou independentes da filiação
partidária. É essa realidade normativa, de fundo constitucional, que permitiu ao TSE, em decisão confirmada
pelo Supremo Tribunal Federal,'concluir que os mandatos eventualmente alcançados pelos candidatos são, na
verdade, patrimônio político do partido ao qual estejam filiados à época da eleição, de tal sorte que o
candidato eleito que, sem justa causa, desfiliar-se do seu, partido, manifestando com isso infidelidade
partidária, pode sofrer a sanção da perda do mandato político.” (GUEDES, Néviton. Dos Direitos Políticos.
In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz
(Coord. Científica); LEONCY, Léo Ferreira (Coord. Executiva). Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed.
São Paulo: Saraiva | Coimbra: Almedina, Série IDP, 2018, p. 719-720).
A expressão “na forma da lei” no caput do § 3º do artigo 14 indica que a
legislação apenas irá “detalhar” como será o processo de filiação partidária, pelo fato de o
dispositivo ser uma norma constitucional de eficácia contida. Contudo, o ingresso nas
agremiações políticas, pelo texto atual da CRFB/1988, constitui requisito obrigatório e
instituído pelo Poder Constituinte Originário, tendo o alcance “pleno”, podendo ser
contido/regulado pelo legislador ordinário.

Se, porventura, o Constituinte Derivado retirar este requisito, não haverá prejuízo
para a Cláusula Pétrea contida no art. 60, § 4º, II, CRFB/1988, pois o voto direto, secreto,
universal e periódico não está atrelado ou vinculado aos partidos políticos.

De outro lado, neste ponto, há uma “luz” no fim do túnel. Com a interpretação
sistemática dos dispositivos acima, é interessante notar a possibilidade de candidatura
independente decorrente do texto constitucional atual.

A hipótese é a seguinte: apenas o cidadão filiado em partido político – e rejeitado


por este para participar no pleito eleitoral – e que poderia requerer a candidatura avulsa à
filiação ao partido político.

Embora o texto constitucional confira extrema liberdade aos partidos políticos, o


certo é que os limites definidos pela Constituição também são aplicados às organizações
partidárias.

Logo, se o cidadão filiado a partido político cumpriu todos os requisitos definidos


pela Constituição, pela legislação eleitoral e pelo partido político, e este coibiu sua
participação no pleito eleitoral, então, o filiado “enjeitado” poderá pleitear sua candidatura
avulsa – perante a Justiça Eleitoral – tendo em vista que cumpriu os requisitos constitucionais
e legais, sobretudo o fato de ter a filiação partidária!

Ultrapassado o exame do texto constitucional, é importante verificar outras


hipóteses de candidatura independente, que se apresentam nos tratados em matéria de direitos
humanos que a República Federativa brasileira é parte.
3 CANDIDATURAS INDEPENDENTES SOB A ÓTICA DOS
TRATADOS EM DIREITOS HUMANOS

Uma proposta interessante foi suscitada perante o Tribunal Regional Eleitoral do


Distrito Federal (TRE-DF)4. Um cidadão propôs ação com o objetivo de registrar sua
candidatura independente com fundamento nos tratados internacionais em matéria de direitos
humanos.

A primeira tese suscitada foi a de que a Convenção Americana de Direitos


Humanos (doravante CADH) produziria uma eficácia paralisante sobre as Leis 9.096/1995 e
9.504/1997, nos moldes do que já apreciado pelo e. STF no RE 466.343/SP e que, como já
mencionado, é objeto de Repercussão Geral.

Sobre o tema, dispõe o artigo 23 da CADH:

“Artigo 23. Direitos políticos

1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e


oportunidades:

a. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por


meio de representantes livremente eleitos;

b. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas


por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre
expressão da vontade dos eleitores; e

c. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções


públicas de seu país.

2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que


se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade,
nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou
mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”.

4
BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO DISTRITO FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL EM
PETIÇÃO n 060061340, ACÓRDÃO n 7828 de 12/09/2018, Relator(a) MARIA IVATÔNIA BARBOSA
DOS SANTOS, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 12/09/2018.
Os fundamentos da tese exposta são os seguintes:

1. A CADH autoriza a participação direta dos cidadãos nos assuntos públicos


(CADH, artigo 23, item 1, “a”);
2. Esta participação consiste no ato de votar e de ser votado. No ponto, a CADH
não menciona a necessidade ou a intermediação de partidos políticos (CADH,
artigo 23, item 1, “b”);
3. O item 2 do artigo 23 da CADH permite a restrição deste direito humano.
Porém, cuida-se de rol taxativo, no qual não se encontra a criação ou a
intermediação das eleições por partido político (CADH, artigo 23, item 2).

Como se vê, cuidam-se de fundamentos relevantes para a discussão, sobretudo


relacionados ao controle de convencionalidade. Aqui se encontra outro debate interessante,
em especial sobre como determinado conjunto de normas no direito nacional é compatível ou
não com a CADH - e qual o nível de hierarquia que a CADH se alinha à ordem jurídica
interna de determinado país.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) estimula - em diversos


julgados - o caráter supranacional (ou supraconstitucional) da CADH em relação aos Estados
nacionais. Em diversos votos separados, a Corte IDH defende a relevância e a
supraconstitucionalidade do texto convencional. Países como Costa Rica e Colômbia
consideram as normas convencionais equiparadas ou superiores aos respectivos textos
constitucionais5.

No próprio STF há uma divergência interessante. Conforme a Corte


Constitucional decidiu no RE 466.343/SP, na ordem jurídica brasileira a CADH guarda status
infraconstitucional. Todavia, há precedente de relatoria do Ministro Celso de Mello que, com
a aplicação do princípio pro homine, levanta a possibilidade de ter interpretado a CADH
acima do texto constitucional6.

5
Tanto Costa Rica como Colômbia adotaram a doutrina do bloco de constitucionalidade como instrumento de
harmonização entre a ordem constitucional interna e o direito internacional dos direitos humanos. Nestes
países, a Convenção Americana é interpretada de forma sistêmica com o texto constitucional.
6
No HC 96.772/SP, o Ministro Celso de Mello desenvolve o tema e propõe a adoção do marco da primazia dos
direitos humanos em harmonia com o texto constitucional, aplicando-se a norma mais favorável ao cidadão,
segundo o artigo 29 da Convenção Americana: “Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade
interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um
princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de
Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana,
em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica”. É importante destacar que o Ministro Celso de
Inclusive, em decisão monocrática de 5/10/2018, no Mandado de Injunção (MI)
6.977/DF, o Ministro Celso de Mello - ainda que não tenha conhecido do MI - fez a ressalva
de seu entendimento sobre a hierarquia constitucional dos tratados no plano internacional,
motivo pelo qual viabilizaria a tese proposta.

Seja como for, mesmo considerando a CADH como norma infraconstitucional, o


STF definiu no RE 466.343/SP que a CADH constitui norma supralegal e, por essa razão,
produz efeito paralisante sobre a legislação ordinária. Inclusive, mesmo com a existência de
texto constitucional sobre o tema (CRFB/1988, art. 5º, LXVII) editou súmula vinculante 25
sobre o conteúdo do julgado (em sentido “contrário ao da Constituição”): “É ilícita a prisão
civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”.

Interessante notar os argumentos contrários à esta proposta. Inicialmente, o RE


466.343/SP foi apreciado sob a ótica do controle difuso de constitucionalidade (e
convencionalidade). Isto é, por si só, não produziu eficácia contra todos e efeito vinculante
para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública. Mesmo com a
súmula de efeito vinculante editada, pelo conteúdo registrado, o efeito vinculante apenas se
aplica em relação às situações de depositário infiel.

Pela coerência hermenêutica, é evidente que os casos semelhantes deveriam ter a


aplicação da CADH no seu status supralegal. Ainda que tenha sido apenas um caso julgado,
institutos como a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário e o Recurso Especial
Representativo da Controvérsia foram criados para que as instâncias ordinárias alinhem-se
aos precedentes das Cortes Superiores, independentemente do efeito vinculante. Logo, é um
típico problema de hermenêutica jurídica brasileira, que certamente será apreciado pelo STF
no julgamento de mérito da Repercussão Geral no ARE 1.054.490/RJ7.

Em um segundo momento, há o problema referente à ausência de realização de


controle (difuso) de convencionalidade por parte dos juízes nacionais brasileiros. A falta de
contato do juiz nacional com a CADH faz com que seu conteúdo essencial não seja tão
prestigiado como deveria.

Mello continua com posição isolada sobre o caráter constitucional da Convenção Americana. Contudo, o
enfoque é demonstrar que o STF aplicou o artigo 29 da Convenção Americana ao caso concreto,
independentemente da natureza constitucional ou supralegal da Convenção. Houve, portanto, o entendimento
unânime sobre a primazia da aplicação “da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano”.
7
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE n. 1.054.490/RJ-QO. Rel. Min. Roberto Barroso.
TRIBUNAL PLENO, julgado em 05/10/2017, DJe de 08/03/2018.
Com o “desmantelamento” da supralegalidade, tenho que a interpretação
nacionalista prevalece em relação ao tema das candidaturas independentes. Assim, sob o
prisma literal/sistemático, a CRFB/1988 estabeleceu, no seu artigo 1º, parágrafo único, uma
restrição interpretativa com a locução “nos termos desta Constituição”. Isto é, o povo poderá
exercer o poder - diretamente ou por seus representantes - de acordo com o que estiver
expresso no texto constitucional.

Além do mais, ao apreciar a questão, a Corte IDH admitiu que o sistema político
do Estado Nacional pode conviver com ambos os modelos. A Corte IDH não considera que
“o sistema de registro de candidaturas a cargo de partidos políticos constitua uma restrição
ilegítima para regular o direito a ser eleito previsto no artigo 23.1.b da Convenção Americana
e, portanto, não fora constatada uma violação ao artigo 23 de referido tratado”8.

Tanto a redação do artigo 23 da CADH como a interpretação realizada pela Corte


IDH conferem margem nacional de apreciação para o Estado definir o seu sistema
político-eleitoral. E, conforme se vê, o Constituinte de 1988 definiu a forma de participação
do povo, diretamente e por seus representantes eleitos, esta última via filiação partidária. Não
haveria, assim, que se falar em descumprimento da CADH.

De outro lado, a segunda tese proposta perante o TRE-DF diz respeito à


revogação do texto constitucional de 1988 pelo artigo 29 da Convenção de Nova Iorque.
Confira-se a redação do dispositivo:

“Artigo 29

Participação na vida política e pública

Os Estados Partes garantirão às pessoas com deficiência direitos


políticos e oportunidade de exercê-los em condições de igualdade
com as demais pessoas, e deverão:

a) Assegurar que as pessoas com deficiência possam participar


efetiva e plenamente na vida política e pública, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de

8
Corte IDH. Caso Castañeda Gutman vs. Estados Unidos Mexicanos. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 6/8/2008, Série C, 184, § 204.
representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a
oportunidade de votarem e serem votadas, mediante, entre outros:

i) Garantia de que os procedimentos, instalações e materiais e


equipamentos para votação serão apropriados, acessíveis e de fácil
compreensão e uso;

ii) Proteção do direito das pessoas com deficiência ao voto secreto em


eleições e plebiscitos, sem intimidação, e a candidatar-se nas eleições,
efetivamente ocupar cargos eletivos e desempenhar quaisquer funções
públicas em todos os níveis de governo, usando novas tecnologias
assistivas, quando apropriado;

iii) Garantia da livre expressão de vontade das pessoas com


deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que necessário e a seu
pedido, permissão para que elas sejam auxiliadas na votação por uma
pessoa de sua escolha”.

Perante o TRE-DF, o cidadão defendeu que houve a revogação tácita do artigo


14, § 3º, V da CRFB/1988.

Tenho a existência de argumentos que fazem esta tese ser aceita e, ao mesmo
tempo, ser rejeitada.

Em relação à rejeição, a tese proposta não prospera por duas razões. A primeira
é que a ordem jurídica brasileira não adota a teoria da revogação de normas constitucionais
originárias. Isto é, não existem normas constitucionais originárias inconstitucionais, como
proposto por Otto Bachoff.

Este é o posicionamento do STF:

“EMENTA:

- Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1º e 2º do artigo 45


da Constituição Federal.
- A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais
originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de
umas em face de outras é incompossível com o sistema de
Constituição rígida.

- Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribunal Federal,


precipuamente, a guarda da Constituição" (artigo 102, "caput"), o que
implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se
desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a
ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim
de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito
suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma
Constituição.

- Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para
sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas
constitucionais inferiores em face de normas constitucionais
superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao
Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição
elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando
normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte
originário com relação as outras que não sejam consideradas como
cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas.

Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido”9.

Em havendo disposições conflitantes, cabe ao intérprete realizar a harmonização


dos dispositivos, a partir do princípio da Unidade da Constituição.

A segunda diz respeito ao objeto da Convenção de Nova Iorque: restringe-se,


exclusivamente, às pessoas com deficiência.

9
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 815/DF. Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, j.
28/3/1996, DJ 10/5/1996.
Na sua petição, em nenhum momento o cidadão se qualificou como pessoa com
deficiência. Portanto, ainda que se admitisse a harmonização entre os dispositivos, esta
harmonização não lhe seria aplicável.

Além do mais, a Convenção de Nova Iorque detém status constitucional. Porém,


o seu ingresso na ordem constitucional brasileira é pela via do bloco de constitucionalidade,
mediante a inserção pelo Poder Constituinte Derivado Decorrente dos tratados em que a
República Federativa do Brasil é parte.

Logo, a restrição constitucional “nos termos desta Constituição”, contida no


parágrafo único do art. 1º da CRFB/1988 também se aplica aos dispositivos da Convenção de
Nova Iorque.

O ponto que permitiria o acolhimento desta tese é se o cidadão que a propôs fosse
considerado pessoa com deficiência. Neste aspecto, a Convenção de Nova Iorque, além de
deter status constitucional, é norma posterior à exigência de filiação partidária. Assim, pela
via interpretativa, o artigo 14, parágrafo 3º, inciso V do texto constitucional sofreria uma
revogação parcial e específica para as pessoas com deficiência, o que permitiria a candidatura
independente por esta parcela de cidadãos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Empolgante, o tema “candidaturas independentes” será a nova plataforma de


debates e discussões dos próximos pleitos eleitorais.

Há uma tendência interessante de o STF reconhecer a possibilidade de


candidaturas independentes com fundamento na CADH. Mediante o uso do controle difuso
de convencionalidade, o STF deve alinhar o sistema eleitoral brasileiro ao “padrão
democrático” existente em outras democracias. Nada mais justo e coerente com a “coerência
hermenêutica” do próprio texto constitucional, haja vista que o artigo 5o, LXVII “sofre” com
o efeito paralisante criado pelo próprio STF.

Segundo o Projeto ACE - vinculado ao PNUD -, o Brasil está no grupo de 22


países em todo o mundo (9%) que não permite candidaturas independentes para qualquer
cargo eletivo. Enquanto que 97 países (43%) permitem candidaturas independentes para
eleições presidenciais e legislativas.
Como visto, a interpretação literal e sistemática do texto constitucional, em um
primeiro momento, não autoriza o pleito independente. Apenas com uma interpretação
sistemática e evolutiva, as candidaturas independentes serão factíveis. Não que sejam
esperadas cem milhões de candidaturas independentes para a Presidência da República, no
entanto, seria um passo relevante para redefinir o modelo democrático experimentado nos
dias atuais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de Emenda à Constituição 71, de 2007.


Dá nova redação aos artigos 14, 17, 28, 37, 45, 46, 49, 56 e 82 da Constituição Federal,
institui o voto facultativo, altera a data da posse do Governador de Estado e do Presidente da
República, institui o sistema distrital misto nas eleições proporcionais, dispõe sobre a
remuneração de Deputados Federais e Senadores, a contratação de parentes de autoridades da
administração pública, institui a candidatura avulsa, veda a reeleição do Presidente da
República, Governador de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos, estabelece regras sobre
renúncia de mandato e reeleição de Senadores, Deputados Federais, Estaduais e Distritais e
Vereadores, reduz o número de Senadores e estabelece regras para o reajuste do subsídio de
Deputados Federais e Senadores. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=353315.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de Emenda à Constituição 350, de 2017.
Altera os art. 14 e 77, e cria o art. 17-A, todos da Constituição Federal, para permitir a
apresentação de candidaturas a cargo eletivo independentemente de filiação partidária, desde
que haja o apoiamento mínimo de eleitores na circunscrição, e para possibilitar a associação
de candidatos independentes em listas cívicas, nas eleições proporcionais. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2145346.
BRASIL. Lei 9.096/1995. Dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 17 e 14, § 3º,
inciso V, da Constituição Federal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9096.htm.
BRASIL. Lei 9.504/1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em:
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