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I Encontro dos Programas de Pós-graduação em Comunicação de Minas Gerais

ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO COMO METODOLOGIA


PARA A INVESTIGAÇÃO DOS PROCESSOS
COMUNICATIVOS1
Roberto Almeida2

Resumo: Nesse trabalho apresentamos uma reflexão sobre a Análise da


Conversação e sobre as potencialidades dos recursos metodológicos por ela
oferecidos para a investigação dos fenômenos comunicativos em sua relação com
processos e práticas sociais mais ampliados. Na primeira metade do trabalho
apresentaremos um breve panorama dos estudos desenvolvidos nos marcos da
análise da conversação. Na seqüência, discutiremos a relevância do trabalho de
autores como H. Sacks e E. Schegloff para a compreensão da dinâmica em que
fenômenos comunicativos específicos se constituem como práticas que reproduzem,
tensionam e/ou atualizam valores, normas e representações correntes na sociedade.
Práticas conversacionais não roteirizadas, como debates, entrevistas (de rádio e
TV) e diálogos em programas de auditório se constituem como terreno
privilegiados para a aplicação da referida metodologia nos estudos sobre a mídia.

Palavras-Chave: Análise da Conversação. Harvey Sacks. Entrevistas.

Introdução

Neste trabalho apresentamos uma reflexão sobre a análise da conversação, corrente de


estudos surgida nos anos 60, preocupada em investigar a constituição conjunta das práticas
conversacionais pelos sujeitos interlocutores. Desenvolvida sob inspiração etnometodológica,
a análise da conversação ficou conhecida depois da publicação em livro dos cursos oferecidos
pro Harvey Sacks na Universidade da Califórnia, entre os anos de 1967 e 1972.
Na primeira parte desse trabalho, trataremos da etnometodologia e dos principais
postulados desse campo de estudos que exerceu forte influência sobre a análise
conversacional. Na seqüência, discutiremos dois temas tratados por Sacks nas aulas por ele
ministradas. O primeiro deles diz respeito à ‘‘organização interacional das conversações’’3 e

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Sociedade”, do I Ecomig, PUC-Minas, Belo
Horizonte, julho de 2008.
2
Mestrando do PPGCom/UFMG. E-mail: almeida1984@gmail.com
3
Para Schegloff (1999), os estudos sobre a ‘‘organização interacional das conversações’’ incluem investigações
sobre a mudança de assuntos nas conversações, produção de reparos e correções nos diálogos, construções de
seqüências complexas, bem como estudos sobre o tema da abertura e fechamento de conversas, revezamentos de
turnos na fala, funcionamento dos pares adjacentes, entre outros.

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o segundo se refere aos ‘‘dispositivos de categorização’’ implicados nas interações verbais.


Esses dois domínios foram extensivamente trabalhados por Sacks nos anos 60 e 70.
Especialmente a partir da década de 90, alguns autores têm retomado as discussões em torno
dos ‘‘dispositivos de categorização’’, tratando-os como ferramentas que possibilitam a
compreensão do nexo estabelecido entre práticas conversacionais situadas e o horizonte
cultural mais ampliado.
Na primeira metade desse trabalho, tencionamos apresentar um breve panorama sobre a
etnometodologia e sobre os estudos que a análise conversacional desenvolveu em torno do
tema da organização interacional das conversações. Na seqüência trataremos do conceito de
‘‘dispositivos de categorização’’ com o intuito de discutir sua potencialidade para nos ajudar
a pensar problemas que interessam mais de perto ao campo da comunicação.

Etnometodologia e análise da conversação

A análise da conversação surgiu como uma das expressões empíricas da


etnometodologia. Criada na década de 60, a etnometodologia tornou-se mais conhecida a
partir da publicação de Studies in ethomethodology (1967) de Harold Garfinkel. Esse corrente
de estudos, segundo esse autor,
aborda as atividades práticas, as circunstâncias práticas e as situações de raciocínio
sociológico prático, como temas de estudo empírico. Concedendo às atividades
corriqueiras da vida cotidiana a mesma atenção que habitualmente se empresta aos
acontecimentos extraordinários, tentamos compreendê-los como fenômenos de
direito pleno (GARFINKEL,1967, p. 1)

Com a publicação dos Studies, Garfinkel estabelece um novo domínio para a


investigação sociológica: a análise das propriedades da ação e do raciocino prático
implicados nas situações ordinárias da vida cotidiana. A etnomoetodologia se assume, assim,
como uma corrente de estudos voltada para a apreensão da forma com que os agentes
‘‘criam, reúnem, produzem e reproduzem as estruturas práticas para as quais se orientam’’
(HERITAGE, 1999, p. 333). Ela busca compreender os procedimentos que os agentes adotam
para dar sentido à sua conduta e para ordenar suas ações cotidianas: se ocupa pois, em
investigar como, em suas atividades práticas, os indivíduos constroem um mundo e se
orientam nele.

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No tratamento dessas questões, a etnometodologia se diferencia da tradição sociológica


na medida em que recusa uma explicação a priori das práticas sociais. Preocupada em
apreender as formas por meio das quais os agentes reconhecem e produzem as ações e as
estruturas sociais, a etnometodologia recusa aquelas explicações da ação baseadas apenas em
aspectos motivacionais exteriores à ação. Na perspectiva dos etnometodólogos, as descrições
sociológicas tendem a desconsiderar a relevância da experiência prática e da racionalidade
dos atores sociais no exercício das atividades cotidianas. Como indica Coulon, a
etnometodologia percebe que, de forma geral,
os sociólogos supõem a priori que um sistema estável de normas e significações
partilhadas pelos atores governa todo o sistema social. Os conceitos da sociologia,
assim como as normas, as regras, as estruturas, provêm do fato que a construção do
dispositivo sociológico pressupõe a existência de um mundo significante exterior e
independente das interações sociais. Para a sociologia essas hipóteses se tornam de
fato, recursos implícitos (COULON, 1995, 31).

Rejeitando essa abordagem, a etnometodologia abandona a idéia de que as ações


podem ser explicadas simplesmente por um conjunto de determinações estruturais superiores,
que advindos de umas instância exterior à elas, determinaria essas ações por completo. Ao
invés de tratar essas motivações ou esses modelos estruturantes como dados, a etnomedologia
se ocupa da tarefa de tentar compreendê-los enquanto processos, ou seja, como resultado das
realizações contínuas dos atores engajados em diferentes práticas sociais. Trata-se portanto,
de um busca no sentido de apreender a realidade social como um construto constantemente
mantido e elaborado pelos atores sociais em suas práticas rotineiras. Antes de tratar regras e
recursos como motivação ou explicação última das ações, a etnomedologia preocupa-se em
compreender os procedimentos por meio dos quais, no desenrolar de suas atividades práticas,
os atores atualizam essas regras e esses recursos, ordenando formas específicas de agir e
interpretar o mundo, de inventar, manter e reproduzir uma ordem particular.
A etonometodologia aponta que a organização das condutas nas práticas interacionais é
algo continuamente construído no curso da ação. Trata-se, pois, de um processo no qual a
intervenção dos participantes é constituída na própria interação, em decorrência do contato
com o outro e com as contingências situacionais. Em razão disso, a idéia de contexto ou
situação recebe importância fundamental nos estudos de inspiração etnometodológica. Para a
etnometodologia, o sentido das expressões empregadas nas interações comunicativas, não é
completamente estabelecido a priori. Antes disso, é fundamentalmente determinado pelo

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contexto no qual é empregado, assumindo portanto, natureza indicial. A indicialidade das


palavras e dos gestos indica que, para além de um significado ‘‘trans-situacional’’, eles têm
ainda um significado particular em situações interacionais específicas. Os signos incorporam
em si uma certa ‘‘incompletude’’, uma indeterminação que exige que as práticas sociais
sejam sempre analisadas em sua vinculação com um contexto específico. Nesse sentido, para
os etnometodólogos, o significado das ações não é separável do contexto no qual elas se
desenrolam.
Se a situação influencia o a constituição do sentido daquilo que ocorre numa
conversação, a própria interação verbal confere sentido à situação. De tal sorte, os atores
sociais não apenas se submetem às exigências de um contexto, mas também participam do
processo em que ele adquire forma. Na perspectiva etnometodológica, o contexto é uma
produção ativa dos agentes em interação. Nesse sentido, a intervenção dos participantes nas
práticas interacionais e o contexto no qual essas práticas se desenrolam determinam-se
reciprocamente. Essa propriedade das atividades interacionais recebe o nome de
reflexividade, termo cunhado pela filosofia analítica para designar ‘‘o processo de auto-
instituição das práticas sociais’’ (WIDMER, 2000, p. 211). Numa démarche reflexiva, as
atividades práticas e o contexto afetam-se mutuamente e constituem-se num mesmo processo.
A análise da conversação incorpora em seus procedimentos de investigação esses
postulados etnometodológicos. Como sugere Michel Lynch (2000), a análise da conversação,
já a partir dos primeiros estudos realizados por Harvey Sacks nos anos 60, se preocupava em
apreender, a partir da análise de interações conversacionais específicas, o processo de
produção conjunta e passo a passa da ordem interacional. Segundo Lynch, as primeiras
análises das práticas conversacionais contribuíram de maneira decisiva para balizar
empiricamente e conferir ‘‘substância’’ aos temas ethonomedológicos que Garfinkel vinha
tentando desenvolver desde a publicação de Studies in ethomethodology (LYNCH, 2000, p.
261).
A análise da conversação dirige suas investigações empíricas para as ações sociais
cotidianas nas quais os sujeitos se engajam em processos de troca conversacional. O objetivo
central dessa corrente de estudos é desvendar as competências sociais subjacentes à interação,
ou seja, ‘‘os procedimentos e as expectativas pelos quais a interação é produzida e
compreendida’’ (HERITAGE, 1999, p. 371). Trata-se, pois, de um esforço no sentido de

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apreender as formas de coordenação das atividades conversacionais desenvolvidas entre os


agentes sociais. Dessa forma, os pesquisadores da área buscam explicitar os procedimentos
implicados na construção reciprocamente referenciada de discursos, analisando a produção e
a reprodução das práticas interacionais.
Quando de seu surgimento, a análise da conversação se desenvolveu em duas
dimensões principais. Na primeira delas, em decorrência da preocupação com a explicação
descritiva das conversações, foram publicados trabalhos sobre formulações lexicais
particulares e expressões de referência. Concomitantemente ao desenvolvimento da pesquisa
analítica da conversação, surgiram estudos voltados para a compreensão da organização
interacional da conversação: essa segunda linha de investigação, segundo Heritage, foi a que
adquiriu mais projeção no domínio dos estudos em análise da conversação. Tais pesquisas,
dentre outras coisas, buscavam compreender os procedimentos recorrentemente adotados
pelos agentes para gerir de forma conjunta as aberturas e as conclusões das conversações,
bem como o movimento de mudança de temas ou retomada dos assuntos e de revezamento de
turnos numa interlocução específica. (HERITAGE, 1999; TRAVERSO, 1999; BANGE,
1992). Na seção seguinte, discutiremos brevemente alguns desses estudos.

A organização interacional das conversações

Os estudos sobre a organização interacional da conversação, de forma geral, estavam


preocupados em compreender a organização situacional da ação e os procedimentos
utilizados pelos participantes para produzir uma intercompreensão recíproca no curso das
interlocuções. Nesse terreno, temas como a abertura e o fechamento das conversações,
revezamento de turnos e o funcionamento dos pares adjacentes, foram bastante explorados
pelos analistas da conversação4.

4
Como já apontamos anteriormente, para além desses temas, o estudo da organização interacional da
conversação (organization of talk in interaction, nos termos de Schegloff) tratou também de questões relativas a
mudanças de assuntos nas conversações, produção de reparos e correções nos diálogos, construções de
seqüências complexas, entre outros (Schegloff, 1999). Nesse trabalho optamos por nos deter nas investigações
relativas à abertura e ao fechamento das conversações, aos revezamentos de turno e aos pares adjacentes, por
considerar que esses foram temas que receberam grande destaque, especialmente no obra dos fundadores da
análise da conversação, Sacks e Schegloff.

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Os estudos sobre os procedimentos de abertura e fechamento da conversação estavam


preocupados em apreender os métodos ritualizados e socialmente reconhecíveis que os
agentes utilizam para iniciar ou finalizar uma conversa. De acordo com Traverso (1999), na
maioria das situações cotidianas a abertura das conversações é realizada por saudações e
cumprimentos. A função principal desse primeiro contato é estabelecer para os interactantes
uma primeira definição da situação. O fechamento das conversas, por sua vez, ocorre
geralmente de forma menos direta e abrupta que as aberturas. Antes que os participantes de
fato interrompam a interação, diferentes pre-closings (dizer ‘‘já é tarde’’, por exemplo)
indicam para os interlocutores que a conversação está próxima do fim. As saudações e os
pre-closings permitem a constituição de uma intercompreensão mútua a partir da qual um
conjunto de expectativas recíprocas é trazido à tona. A intervenção prática de um dos
parceiros da conversão (levantar-se da mesa, por exemplo) faz emergir um mundo comum
que coloca no horizonte o fim iminente da conversação. Essa ação cria um conjunto de
expectativas que os demais participantes devem honrar de alguma forma (encerrando de fato
a conversa ou agindo de modo a indicar que ela deve prosseguir).
Outro tema tratado em profundidade pelos analistas da conversação foi o revezamento
de turnos nas interações. Em Conversation (1974) Sacks, Schegloff e Jefferson apresentam
estudos de referência acerca do assunto. A análise desses autores mostra que o revezamento
entre os locutores é metodicamente produzido no curso das interações. É no próprio processo
de conversação que os agentes estabelecem a coordenação necessária entre as atividades de
um e de outro, de modo que se configure uma ordem de base que garanta que um agente
falará de cada vez e que não surgirão silêncios inesperados no diálogo. Problemas como esses
(silêncios e ou ‘‘atropelos’’ na hora de tomar a palavra) ocorrem quando os participantes têm
dificuldades em constituir um perspectiva comum na interação. Eles surgem apenas quando
os agentes não compreendem da mesma forma as expectativas recíprocas que uns têm em
relação aos outros no que tange à tomada da palavra. Nesse sentido, ao analisar os
procedimentos utilizados para orientar o processo de revezamento de turnos5, a análise

5
Em Conversation (1975) os estudos de Sacks, Schegloff e Jefferson, demonstram que existe uma série de
técnicas que servem para assegurar a coordenação das ações dos participantes no que tange às alterações de
turno nas práticas conversacionais. Segundo os autores, as técnicas de atribuição da palavra mais comuns
dividem-se em dois grupos: a) aquelas nas quais a palavra é atribuída a um agente pelo locutor precedente; b)
aquelas nas quais o turno é tomado por auto-seleção (BANGE, 1992).

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conversacional nos permite compreender a forma com que uma perspectiva compartilhada
pode ser construída a partir da ação conjunta realizada pelos participantes.
Os pares adjacentes, por sua vez, são intervenções encadeadas, tais quais perguntas e
respostas, troca de saudações ou despedidas; atos que, no processo mesmo em que se
estabelecem, contribuem para construir uma ordenação dos turnos de fala ou para sugerir o
início ou o fim de uma conversação. Segundo Dominique Traverso, os pares adjacentes são
‘‘as unidade interacionais mínimas’’ da conversação (TRAVERSO, 1999, p. 33). Dizem
respeito a dois enunciados contíguos produzidos por locutores diferentes, de modo que um
deles seja reconhecido como a primeira parte do par (first pair part) e o outro como a
segunda parte (second pair part). A pronunciação dessa primeira parte por um ator
constrange seu interlocutor a oferecer um tipo de resposta previsível: uma vez que o primeiro
elemento de um par adjacente foi manifesto, o segundo é esperável (quando alguém diz ‘‘Olá
João!’’, espera-se que João também diga ‘‘Olá’’). Enquanto elementos centrais no sistema de
tomada de palavra, os pares adjacentes ajudam a estabelecer a organização da conversação,
introduzindo na prática interacional uma relação de implicabilidade seqüencial e instituindo a
pertinência de seqüências possíveis na conversação (BANGE, 1992; TRAVERSO, 1999;
HERITAGE, 1999).
Dessa forma, os pares adjacentes funcionam como mecanismos de base a partir do qual
a compreensão intersubjetiva é construída e mantida durante a interação. Como sugere
Heritage, a segunda parte de um par adjacente
manifesta uma compreensão pública da declaração anterior à qual se dirigem, e
essas compreensão é disponível para a confirmação, o comentário, a correção, etc.
da primeira vez pelo produtor da primeira parte do par. Desse modo o
posicionamento adjacente proporciona um recurso para a contínua atualização das
compreensões intersubjetivas (HERITAGE, 1999, p. 373).

A produção da segunda parte de um par adjacente é indicativa do tipo de interpretação


realizada pelo agente respondente. A coordenação dos posicionamentos adjacentes permite
aos participantes reconhecer fracassos interacionais, bem como reorientar, quando necessário,
o curso da conversação, de modo a garantir que uma base de intercompreensão necessária se
estabeleça.
É o terreno dessa intercompreensão partilhada que os pesquisadores buscam
compreender quando se ocupam em investigar temas relativos à organização interacional das
conversações. Ao analisar processos como o revezamento de turnos, o fechamento e a

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abertura de conversações e os pares adjacentes, a análise conversacional pronuncia uma


palavra sobre a forma com que se constitui a ordem co-elaborada pelos sujeitos envolvidos na
interação. A partir de uma análise minuciosa das conversações, os analistas explicam os
procedimentos recorrentes utilizados pelos participantes para estabelecer uma base de
entendimento mútuo que torna possível a troca comunicativa e afasta o risco de mal
entendidos.

Conversação e cultura: os dispositivos de categorização

A discussões até aqui apresentadas testemunham a preocupação da análise da


conversação em compreender a organização seqüencial das práticas conversacionais e os
procedimentos práticos que os interlocutores empregam para encerrar uma conversação,
tomar a palavra, mudar de assunto, etc. É a própria organização interativa das conversações
que esses estudos buscam compreender. No entanto, segundo Housley e Fitzgerald (2002), ao
concentrar os esforços de análise em questões relativas à organização seqüencial das
conversações, alguns analistas acabam deixando de lado a investigação de aspectos
importantes dessas interações, como questões relativas à reprodução e à atualização da
cultura e das estruturas sociais no curso das conversações. Segundo eles, não raro, as
investigações sobre a estrutura das interações face-a-face, acabam deixando de lado o estudo
mais sistemático do diálogo estabelecido entre as práticas conversacionais situadas e o
horizonte cultural no qual elas se desenvolvem.
No entanto, a análise da conversação oferece recursos metodológicos interessantes para
pensarmos a relação colocada entre as interações particulares e o pólo do instituído (ou a
cultura). Conceitos forjados pelo próprio Sacks na década de 60 nos permitem iluminar essa
questão: a idéia de dispositivo de categorização apresentada pelo autor no primeiro volume
de Lectures in Conversations (1966), parece trazer contribuições relevantes para a
compreensão do nexo estabelecido entre práticas interacionais singulares e o horizonte
cultural no qual elas se desenrolam.

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De acordo com Sacks, categorias6 são caracterizações atribuídas aos participantes de


uma interação. Como postula o autor, essas categorias funcionam como respostas à perguntas
do tipo ‘‘quem é você?’’ ou ‘‘o que você faz?’’. Elas permitem, por exemplo, classificar os
interactantes como homens ou mulheres, judeus ou protestantes, hippies, góticos ou punks.
Trata-se, pois, de um dispositivo que classifica os interactantes e os posiciona em relação a
critérios específicos (como gênero, idade ou ocupação, por exemplo). Na acepção de Sacks, o
termo categoria diz respeito, pois, às identificações ou papéis (roles) que os sujeitos assumem
em relação aos outros numa interação.
Um mesmo indivíduo pode ser concomitantemente categorizado de deferentes
maneiras: ele pode ser ao mesmo tempo ‘‘mulher’’, ‘‘mãe’’, ‘‘médica’’, ‘‘gay’’ e ‘‘baiana’’.
A lista de categorias diferentes associáveis a um mesmo agente pode se estender quase
indefinidamente. No entanto, numa interação específica, algumas categorias são mais
relevantes do que outras. É na própria ação estabelecida em conjunto – na interação – que a
relevância ou não dos papéis disponíveis se determina. Numa reunião de pais e mestres, por
exemplo, é o papel de ‘‘mãe’’ e não o papel de ‘‘médica’’ que importa para todos os fins
práticos. As demais identificações passíveis de serem atribuídas ao agente continuam
existindo, mas são, nesse caso, irrelevantes ou pelo menos, secundárias. Nesse sentido, as
categorias dizem respeitos aos papéis ou às identificações situacionalmente relevantes que
identificam os sujeitos numa interação. Mas como o pesquisador consegue identificar quais
categorias, dentre as várias atribuíveis aos interactantes, são relevantes ou não numa
interação?
Segundo Schegloff (1999), numa conversação, o que determina a relevância ou não de
uma categoria, é o próprio desenvolvimento da prática interacional. Como aponta o autor, a
‘‘caracterização dos participantes é derivada daquilo que ocorre e que é demonstravelmente
relevante para os próprios participantes’’ (Schegloff, 1999, p. 113). Nesse sentido, indica o
autor, no curso da interação, os agentes estabelecem os termos em torno do qual interagem,
tornando demonstrável para seus interlocutores qual categoria é relevante ou não na
interação.

6
O termo ‘‘categoria’’ talvez seja por demais genérico. Optamos por utilizá-lo nesse trabalho para nos
mantermos fiéis à nomenclatura apresentada por Sacks (1966) e Schegloff (1999).

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Contudo, segundo Ogien e Quéré (2005), esse critério de ‘‘demonstrabilidade’’ ajuda


pouco a tornar explícito para os intectantes (e para o pesquisador) qual categoria é relevante
ou não numa interação. Para os autores, o que demonstra a relevância de uma categoria na
interação não são as explicações – explícitas ou implícitas – fornecidas pelos agentes, mas
sim a própria ação que eles executam em conjunto. ‘‘As identidades relativas [dos
interactantes] são atribuídas pelo tipo de atividade ou tipo de jogo de linguagem no qual eles
estão engajados’’ (OGIEN E QUÉRÉ, 2005, p. 19). Dessa forma, quando um homem entra
numa loja ele só se torna de fato um ‘‘cliente’’ a partir do momento que ele se dirige a
alguém e solicita alguma mercadoria. É na ação conjunta estabelecida com o outro que a
categoria cliente se estabelece como relevante naquela situação específica. Do mesmo modo,
numa entrevista de televisão, é quando um indivíduo comenta seu desempenho numa partida,
rememora os lances do jogo ou fala das expectativas de sua equipe no campeonato, que a
categoria ‘‘jogador de futebol’’ emerge como relevante.
Numa interação conversacional os sujeitos desenvolvem uma ação em conjunto e é
nessa ação que se estabelecem categorias que definem o papel da cada interlocutor. Nesse
jogo interativo está implicado um processo em que os sujeito categorizam o outro, assumem
alguns papéis e recusam outros. Mas esse não é apenas um processo que os sujeitos realizam
um em relação ao outro. Antes disso, trata-se de um processo que eles realizam também em
interação com a própria cultura: as categorias implicadas nas interações são identificações
cristalizadas socialmente, construtos culturais reconhecíveis pelos membros de uma mesma
coletividade.
Nesse sentido, aponta Sacks, uma das principais características da categorias é que elas
são fontes de inferência para os interlocutores numa interação7 (SACKS, 1966). Se categorias
são classificações situadas culturalmente, elas trazem para a interação saberes comuns e
referências partilhadas pelos interactantes, elementos que permitem aos parceiros da
interação produzir inferências acerca do outro e de formas adequadas de agir em face dele.
Segundo Sacks, ‘‘boa parte do conhecimento que os membros têm a respeito de sua
sociedade está estocado nessas categorias’’ (SACKS, 1966, p. 272). Existem formas
socialmente compartilhadas de ver a categoria ‘‘mulher’’ ou a categoria ‘‘político’’. A
cultura nos diz o que é ‘‘ser mulher’’ e o que é ‘‘ser político’’ e nos diz também o que

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Nos termos de Sacks (1966), categorias são elementos ‘‘inference rich’’.

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esperar de uma mulher e de um político. Quando uma categoria específica é atribuída a um


agente, os participantes da conversação ‘‘sentem que sabem muitas coisas sobre essa pessoa’’
(idem). Dessa forma, as classificações assumidas e/ou atribuídas pelos agentes em interação
trazem inscritas em si saberes sociais partilhados que orientam os rumos da interlocução e
servem como fonte de inferências para os interactantes.
Ao incorporar a noção de categorias, a análise da conversão ancora de forma direta as
interações particulares no domínio da cultura. O conceito forjado por Sacks permite perceber
a forma como a cultura penetra a interação, afetando a produção de sentidos e os
posicionamentos que os participantes adotam uns em relação aos outros. Ao mesmo tempo
em que estão ‘‘fixadas’’ na cultura, categorias são emergências situacionais. Elas dizem
respeito, portanto, a saberes socialmente partilhados que se atualizam constantemente no
curso das interações. Em suas atividades práticas, os sujeitos atualizam continuamente o que
é ‘‘ser político’’ e ‘‘ser mulher’’, apropriando-se de forma ativa e propositiva dos
significados mais ou menos instituídos a respeito dessas identificaçações. Nesse sentido,
ditadas pela cultura e reelaboradas situacionalmente, as categorias são elementos que criam
um nexo entre práticas interacionais singulares e o horizonte cultural mais ampliado.
Por meio da noção de categorias, a análise da conversação nos permite pensar o
processo em que a interação desenvolvida entre os interlocutores se articula com processos
culturais mais amplos. Essa ferramenta diz da forma com que, em conversações específicas,
os sujeitos orientam-se e posicionam-se mutuamente, constituindo suas intervenções
recíprocas em diálogo com o outro e com um conjunto de referências culturais que
ultrapassam as práticas situadas – mas que aos mesmo tempo são afirmadas, atualizadas e
reproduzidas por essas mesmas práticas.
Assim, ao analisar uma conversação, o pesquisador pode perguntar quais categorias são
associadas aos interlocutores na ação que eles estabelecem em conjunto e como esses sujeitos
se posicionam em face das identificações que lhe são atribuídas. Como a intervenção desses
atores dialoga com a as expectativas socialmente cristalizadas a respeitos das categorias em
causa? Em que medida, por meio dessas intervenções, os sujeitos reproduzem e/ou atualizam
valores, normas e crenças associadas a essas categorias? A análise da conversação, dessa
forma, nos permite entender como as práticas interacionais alimentam o social e são
alimentadas por ele, constituindo-se no mesmo processo em que ele se constitui.

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Considerações finais

Os estudos realizados em torno da organização interacional da conversação


(revezamento de turnos, fechamento de diálogos, etc.) nos permitem compreender a
constituição reflexiva da ordem interacional. Eles fornecem explicações acerca dos
procedimentos práticos que permitem que os agentes constituam e mantenham um mundo
comum na interação. Orientados para a investigação da ação conjunta desenvolvida pelos
atores, esses estudos permitem que se compreenda o modo com que os sujeitos constituem
continuamente uma perspectiva compartilhada que ordena a ação e ao mesmo tempo é
resultante dela. No entanto, esses estudos muitas vezes acabam passando ao largo de questões
importantes, como por exemplo, aquelas referentes à relação estabelecida entre práticas
conversacionais singulares e os significados socialmente partilhados pelos membros de uma
dada coletividade.
O recurso à noção de categorias, tal qual foi aqui apresentada, permite à análise da
conversação trabalhar de forma mais direta essa relação. A idéia de categorias parece
especialmente interessante para nos ajudar a pensar o processo em que conversações
particulares se firmam como práticas de atualização e reprodução de valores, normas, crenças
e saberes instituídos. Ela nos permite pensar o processo em que os sujeitos se afetam
mutuamente na interação (posicionando o outro e respondendo aos papéis que lhe são
atribuídos) ao mesmo tempo em que afetam e são afetados pelo instituído (atualizando e
reproduzindo categorias ‘‘fixadas’’ pela cultura). Numa conversação, os sujeitos assumem
algumas categorias e recusam outras, posicionando-se em face do agenciamento realizado por
seus interlocutores (que lhes classificam e lhe atribuem papéis na interação) e pela própria
cultura (que disponibiliza um estoque de conhecimentos socialmente partilhados que cria
uma série de expectativas acerca de categorias particulares). Nesse contexto, a análise da
conversação fornece instrumentos para que pensemos o processo em que, numa interação, os
sujeitos se posicionam, agenciados pelo outro e pela cultura, afetando e sendo afetado por
eles.
Ao tratar questões como essas, a análise de conversação se revela uma ferramta
interessante para nos ajudar a pensar esta que é uma questão fundamental para o campo da

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comunicação: a relação instaurada entre as intervenções dos sujeitos em interação e o


contexto da cultura. Como apontam França e Maia,
estudar a comunicação é estudar a relação estabelecida entre os sujeitos
interlocutores; a construção conjunta do sentido no âmbito das trocas simbólicas
mediadas por diferentes dispositivos – uma prática viva, que reconfigura seus
elementos e que reconfigura o social (FRANÇA; MAIA, 2003, p. 199).

A comunicação busca compreender como a interação reposiciona os termos da relação,


ou seja, como os interlocutores e a própria cultura afetam-se mutuamente no curso das
interlocuções. A análise da conversação, por intermédio da noção de categorias, nos ajuda a
trabalhar analiticamente esse processo: ela nos fornece pistas para investigar a dupla injunção
na qual os sujeitos interagem uns com os outros e com o social, constituindo a si mesmos e
suas práticas no curso de interações conversacionais enraizadas em contextos culturais
específicos. No terreno dos estudos sobre a mídia, a análise da conversação pode, pois, ser
uma ferramenta interessante para auxiliar nas investigações sobre entrevistas televisivas ou
radiofônicas, debates ou programas nos quais se desenrolam interações conversacionais não
roteirizadas ou não-ficcionais.

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Referências
BANGE, P. (Pierre). Analyse conversationnelle et théorie de l'action. Paris: Hatier/Didier, 1992.
COULON, Alain. Etnometodologia. Petropolis, Vozes, 1995.
FRANCA, V. R. V. ; MAIA, Rousiley . A comunidade e a conformação de uma abordagem comunicacional dos
fenômenos. In: Maria Immacolata Vassalo de Lopes. (Org.). Epistemologia da comunicação. 1 ed. São Paulo:
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