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BELO HORIZONTE
2020
RAFAEL DUTRA ASSIS
BELO HORIZONTE
2020
AGRADECIMENTOS
A Deus;
À minha família;
A FACE/UFMG, que me permitiu realizar essa monografia por meio da bolsa de
estudos;
Ao tutor do Sistema de Bolsas;
Ao professor Elizeu Sousa, pela disponibilidade;
E em especial, ao meu orientador. Sem seu apoio e comentários essa
monografia não teria sido possível.
Desnecessário dizer que qualquer erro deste trabalho é de inteira
responsabilidade minha.
LISTA DE SIGLAS
Introdução ....................................................................................................... 6
1. Saquaremas e luzias: duas visões de Brasil, dois paradigmas de política
externa .......................................................................................................... 21
1.1 Introdução ......................................................................................................... 21
1.2 Da Independência ao Golpe: conservadores, liberais e a projeção externa
brasileira ................................................................................................................. 21
1.2.1 Primeiro Reinado: 1822-1831 ........................................................................................ 22
1.2.2 Avanço liberal: 1831-1837.............................................................................................. 24
1.2.3 Hegemonia saquarema: do regresso à "maldita guerra” ............................................... 26
1.2.4 Fortalecimento, consolidação e domínio do movimento liberal: da década de setenta ao
Golpe ....................................................................................................................................... 35
1.3 Os paradigmas saquaremas e luzias................................................................. 40
1.4 Conclusão ......................................................................................................... 43
2. Motivos da hegemonia .............................................................................. 46
2.1 Introdução ......................................................................................................... 46
2.2 A herança lusitana de Pedro II .......................................................................... 46
2.3 Os saquaremas e o Conselho de Estado .......................................................... 49
2.4 O contraste entre o pensamento luzia e saquarema no plano diplomático-
institucional ............................................................................................................. 52
2.5 Conclusão ......................................................................................................... 56
3. O exercício institucional da hegemonia ..................................................... 58
3.1 Introdução ......................................................................................................... 58
3.2 Do sistema institucional ..................................................................................... 58
3.3 Das políticas de Estado ..................................................................................... 62
3.4 Das lideranças institucionais ............................................................................. 66
3.5 Conclusão ......................................................................................................... 80
Conclusão ..................................................................................................... 83
Referências bibliográficas ............................................................................. 94
Introdução
O período do reinado de Dom Pedro II (1840-1889) é reconhecido como
determinante para o fortalecimento do Estado brasileiro e pela construção de
traços marcantes da nação. No que diz respeito aos estudos sobre as relações
internacionais do Brasil, a historiografia diplomática, dentro das obras mais
conhecidas, tende a dois caminhos: ser um relatório sem análise crítica; ou ser
anacrônica ao impor os problemas do presente no passado – como na busca por
autonomia e desenvolvimento. Meu propósito ao longo desse trabalho é de seguir
outra interpretação, contextual, que restitui os problemas de seu tempo ao
próprio tempo; além de demonstrar que a memória histórica construída sobre a
atuação internacional do país no comando de Pedro II sofre grande influência de
uma narrativa, do establishment, formada ao longo das décadas e que
desconsidera importantes fatores ao tratar do Império.
Para tanto, organizamos nosso objeto de estudo em três problemáticas:
identificar as principais vertentes e propostas para as relações exteriores do
Império; explicar os motivos para a prevalência de um dos grupos (ver-se-á
adiante, os saquaremas); expor como estes concretizaram o domínio no âmbito
institucional. Nessa Introdução, além de expor as principais linhas da
interpretação, disserto sobre a constituição do grupo responsável por sua
disseminação e implicações de narrativas como essas; além de propor uma
visão distinta sobre a Política Externa (doravante PE) do período, baseada em
recentes trabalhos.
I
Interessados em estudar Política Externa Brasileira (doravante PEB),
principalmente aspirantes ao Itamaraty, os candidatos ao Concurso de Admissão
à Carreira Diplomática (CACD), deparam-se com livros seminais sobre a História
da Política Externa Brasileira (doravante HPEB). Na primeira metade dos
novecentos, a principal referência historiográfica era a coletânea de três volumes
de Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, publicada entre 1927-1933,
que apesar do nome, inicia-se no estudo da formação do reino de Portugal, a fim
de expor o desenvolvimento da política exterior da metrópole em relação a sua
principal posse colonial, e a subsequente herança diplomática ao incipiente
Estado do Brasil. Calógeras realiza, ao longo dos três livros, minuciosa
exposição de fatos que marcaram a diplomacia brasileira, até a queda do ditador
argentino Rosas, em 1852.
Nos anos subsequentes à publicação dessa coletânea, os estudos de
historiadores e diplomatas passaram a aprofundarem-se em temas específicos,
e por isso os textos eram também destinados a um público mais restrito. Uma
mudança ocorre a partir da segunda metade da década de quarenta, quando da
criação de um instituto que tinha, originalmente, a dupla finalidade de tratar da
formação e aperfeiçoamento dos funcionários do Ministério das Relações
Exteriores (MRE) e de constituir um núcleo de estudos sobre diplomacia e
relações internacionais (Cheibub, 1985). Devido ao centenário do patrono da
diplomacia brasileira, denominou-se Instituto Rio Branco (IRBr), no ano de 1945.
Da organização de cursos de formação e aperfeiçoamento de diplomatas, o
instituto convidou eminentes intelectuais para ministrar aulas. E das notas destes
encontros, aponta Almeida (1997), foram organizados três trabalhos: de Hélio
Vianna, Carlos Delgado de Carvalho e de José Honório Rodrigues.
Dois deles foram denominados História Diplomática do Brasil e divulgados
na década de cinquenta. O de Hélio Vianna, impresso em 1958, possui ênfase
no processo de delimitação das fronteiras e no Império, e abarca as relações
internacionais do Brasil desde o descobrimento até o momento anterior a sua
publicação. Trata-se de uma análise a partir da atuação das chancelarias, de
uma descrição da política externa oficial, em constantes buscas para justificar a
raison d´état. Por sua vez, Delgado de Carvalho apresentou sua obra em 1959,
a qual destaca-se pela exposição objetiva e factual, com um maior destaque a
história contemporânea, finalizando seu livro na OPA (Operação Pan-
Americana). Nota-se, dessa forma, que os dois escritos acabam, em certa
medida, por se complementarem, uma vez que Vianna possui ênfase no tempo
das Monarquias, enquanto Carvalho dedica mais da metade de seu livro ao
Brasil República. Ambos podem ser entendidos como exposições gerais,
esforços de síntese, com poucas dedicações a análises críticas.
Por mais de três décadas, as duas obras figuraram como principais
referências ao estudo da HPEB. Delgado de Carvalho tornou-se a bíblia dos
CACDistas. Enquanto isso, no âmbito acadêmico, a História Diplomática sofreu
grandes críticas, principalmente por adotar a versão oficial das autoridades
governamentais e ser uma exposição apenas a partir do ponto de vista dos
Estados nacionais. Nesses trinta anos, os estudos sobre PEB focaram,
principalmente, na exposição da trajetória histórica brasileira da busca por
“autonomia” e “desenvolvimento” (Almeida, op. cit.).
Uma grande transformação, notadamente nos aspectos metodológicos,
ocorre a partir da publicação, em 1992, de História da Política Exterior do Brasil,
de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno. A análise não é feita mais a partir da
deveras criticada “história diplomática”, porquanto o objeto de estudo se expande
para as “relações internacionais” do país, o que compreende pesquisas não
somente sobre as relações inter-estatais, mas sobre forças sociais e o processo
econômico. Nesse sentido, como lembra Paulo Roberto de Almeida (op. cit.,
p.76), fica explícito na obra o ideal desenvolvimentista, a busca incessante por
tal objetivo e o papel que o Estado desempenhava no processo; por meio de
visão estruturalista, em unidade de análise na qual a PEB atua como instrumento
para o progresso (ou regresso) econômico, como meio para inserção autônoma
da nação no Sistema Internacional. Dessa forma, a história diplomática é, após
a publicação da obra, praticamente entendida como obsoleta: História da Política
Exterior se distancia dos livros anteriores, principalmente no que diz respeito a
dissertações essencialmente factuais, e a exposições apenas da posição do
Estado, sem análises críticas.
Apesar disso, três anos depois, em 1995, ocorre a publicação de texto
baseado nas aulas de José Honório Rodrigues no IRBr entre 1946-1956.
Publicado postumamente, Uma História Diplomática do Brasil: 1531-1945 é
organizado por Ricardo Seitenfus. Segundo este, os escritos de Rodrigues eram
detalhados até a gestão do Barão do Rio Branco (1902-1912), o que estimulou
o historiador a complementar a análise até o fim da neutralidade brasileira na
Segunda Grande Guerra. O livro possui exposições sobre aspectos econômicos
e sociais, mas foca nas relações políticas do Estado brasileiro com outras
nações, no mesmo estilo das histórias diplomáticas do final dos anos cinquenta.
Mesmo surgindo anos depois de seus pares, a obra constitui importante
contribuição no que concerne a busca da expressão brasileira no cenário
internacional.
Após as publicações desses escritos, a obra de Cervo e Bueno (1992)
claramente consolidou-se como o principal texto sobre as relações exteriores do
país – o livro definitivo para os CACDistas. Sobre manuais introdutórios,
importantes contribuições ocorreram nesse meio tempo, como as obras de
Letícia Pinheiro (2004); Paulo Visentini (2013); a coleção Sessenta anos de PEB
(1930-1990), organizada por Seitenfus, Albuquerque e Castro (1991); Altemani
(2005); e o livro História das Relações Internacionais do Brasil, de Carlos Vidigal
e Francisco Doratioto (2015), autor este que recorrentemente marca sua
presença na banca do CACD. Nenhum desses, entretanto, substitui Cervo e
Bueno (op. cit.), devido ao nível de detalhamento e qualidade da pesquisa
histórica desenvolvida pelos dois autores, que se valem de importantes fontes
primárias para expor os respectivos argumentos.
No entanto, uma possível crítica da obra é a tentativa de se estudar a
HPEB sempre em busca do desenvolvimento econômico, de maneira a
posteriori, quase como que deixando de lado as principais preocupações e
demandas de cada contexto histórico: exemplo é a tentativa de Cervo (1992) de
tentar justificar a falha do projeto industrialista da geração de 1840, fracasso que,
segundo tenta afirmar o autor, poderia ter garantido que o país se libertasse da
subserviência à potências estrangeiras.
Recentemente, um novo manual, segundo Almeida (2017), é o novo livro
definitivo da história da diplomacia brasileira, e “já nasce um clássico”. A
diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016, do embaixador Rubens Ricupero
(2017), conforme o nome já diz, se diferencia dos outros livros aqui citados por
apesar de ser um novo manual, atualizado e completo, ter um objetivo distinto:
demonstrar, historicamente, “a diplomacia e a política exterior como elementos
fundamentais da construção do Brasil, ao mesmo título que a política interna e a
econômica” (Ricupero, op. cit., p.33). Ricupero possui contribuição ímpar,
principalmente quando considerada como concepção de um servidor do MRE,
que busca, ao longo da obra, destacar o papel dos indivíduos (principalmente
diplomatas) na trajetória da PEB; e reafirmar o papel da tradição na diplomacia,
na apresentação de valores que foram incorporados na atuação diplomática
brasileira, e que regem, continuamente, a projeção internacional da nação.
Um exemplo dessa diferença analítica é o processo de independência do
Brasil. O diplomata Ricupero (op. cit.) justifica a elaboração de tratados desiguais
com a Inglaterra e a incessante busca do futuro país pelo reconhecimento
internacional a partir da atuação de Dom Pedro I. Este, segundo o autor, possuía
um projeto de poder que buscava garantir meios para que o Imperador do Brasil
possuísse, também, a coroa portuguesa, o que passava por uma aliança com os
britânicos. Por sua vez, o acadêmico Cervo (op. cit.) explica o processo de
independência e as desvantagens da “pressa” brasileira a partir de quatro
determinantes: a conjuntura internacional à época; o contexto do continente
americano; a herança brasileira quanto ao poder do território; e a inserção
internacional do Brasil.
Por meio desse breve panorama sobre os principais livros de HPEB, é
importante destacar que, apesar de notáveis distinções entre as obras,
principalmente após as publicações de Vianna (op. cit.) e de Carvalho (op. cit.),
nos anos sessenta o esforço de identificação e sistematização do estudo sobre
PEB intensificou-se (Lessa, 2006). Conforme expõe Casarões (2019), os
estudos iniciais sobre PEB formaram-se a partir de incentivos externos, com os
jornais e institutos tendo relação umbilical com o MRE. Ademais, os primeiros
analistas de relações internacionais do Brasil eram funcionários do Itamaraty e
historiadores (Lessa, 2005); e a criação dos primeiros departamentos e
programas de estudo de relações internacionais no país se deu a partir de uma
“sinergia do desenvolvimento institucional” entre o MRE e universidades como a
UnB (Universidade de Brasília), a qual criou seu programa de graduação apenas
três anos após a transferência da sede do Ministério para Brasília. Seguindo a
exposição de Pinheiro e Vedoveli (2012), tal processo possibilitou que houvesse,
desde o início da formação do campo de estudos, a não discriminação entre
textos escritos por diplomatas e por acadêmicos, no que as autoras descreveram
como processo de construção da imagem dos “diplomatas enquanto
intelectuais”. Nesse processo, vale ainda destacar o papel que o IRBr
desempenha desde sua criação, ao fomentar não somente a intersecção entre
diplomatas e acadêmicos (Fonseca Jr., 2012), mas também no esforço de
homogeneização do pensamento e da forma de atuar de seus funcionários, a fim
de criar coesão e sentimento de pertencimento a um corpo social próprio da
instituição (Cheibub, 1989; Moura, 2007).
Nesses termos, evidencia-se que construiu-se um grupo de interpretação
sobre a PEB, com sua formação devido, principalmente, a esforços do MRE; e
constituído de diplomatas e acadêmicos, pioneiros ao se dedicarem ao estudo
das relações internacionais do Brasil. Os textos desses indivíduos consolidaram
uma interpretação específica sobre PEB, dentre os quais os principais pontos
são destacados a seguir.
O primeiro aspecto é o papel central conferido ao Barão do Rio Branco,
José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), que segundo Ricupero é o
“fundador da política externa do moderno Brasil” (2017, p.37). Zairo Cheibub
(1985), inclusive, reconhece o período do Barão à frente do Ministério (1902-
1912) como um verdadeiro marco, denominando-o “período carismático”. Dentre
as inúmeras realizações, o Barão, lembram esses pesquisadores, foi o
responsável pela resolução das fronteiras do país – sem conflito bélico, apenas
utilizando de seu vasto conhecimento e habilidades –, o que forneceu imenso
prestígio a ele, e indiretamente ao Ministério. No âmbito interno, Paranhos
realizou importantes reformas no Itamaraty, principalmente a expansão do
quadro diplomático, que antes disso era extremamente limitado.
Não obstante, o Barão soube interpretar perfeitamente o cenário
internacional de sua época, e com realismo e pragmatismo deslocou o eixo da
PEB do continente europeu para o insurgente EUA. Para tanto, internamente
soube garantir apoio irrestrito para si, à medida que não participava das disputas
político-partidárias. Este comportamento, inclusive, implica que a atuação
diplomática brasileira deveria sempre servir ao Estado brasileiro, longe de
projetos de grupos específicos, ou de reivindicações populares circunstanciais
ou tempestuosas, como ocorria no restante do continente à época. Como deixa
claro Moura (2007), é imperativo e de praxe a todo funcionário e pessoa que
frequente a esfera social do MRE venerar o Barão: não por acaso o dia do
diplomata é celebrado no nascimento de Paranhos; além do Itamaraty ser
recorrentemente referido como “Casa de Rio Branco”, e este ser o patrono da
diplomacia brasileira. Em outros termos, como diz Paulo Roberto de Almeida
(1996, p.125): “o Barão é o próprio Itamaraty e a imagem do Itamaraty só se
construiu, neste século, a partir da figura e da gestão dessa personagem”.
Por meio da figura do Barão todo o conhecimento desse grupo sobre PEB
será produzido. Principalmente a partir de sua administração, quando entendem
que fundou-se a diplomacia brasileira, é perceptível, afirmam, a continuidade da
PEB – este fenômeno teria, inclusive, facilitado a inserção e maior projeção
internacional do Brasil (Saraiva e Valença, 2012). Para corroborar tal afirmação,
identificam princípios e uma maneira particular de atuar: Lessa (1998) expõe o
aparato conceitual da praxis diplomática brasileira, constituído do pacificismo
(soluções de conflitos por meio de negociações); juridicismo (adesão às normas
internacionais); realismo (leitura e ação pragmática); e do universalismo (busca
por relações vantajosas com todos os países do mundo), que segundo o autor é
o vetor da política exterior do Brasil. A atuação do Brasil no mundo se guia, ainda,
pelo respeito a autodeterminação dos povos, na defesa da não intervenção em
nações soberanas e na crença no multilateralismo (Mariano, 2015; Cervo, 1994,
1998).
Dessa forma, de acordo com Cervo (2008), há um “acumulado histórico
da diplomacia brasileira”, uma prevalência da continuidade sobre mudança;
elementos de política de Estado, e não de governos. As transformações e
evoluções ocorrem sempre a partir de um determinado espectro de
possibilidades e sempre em respeito a esses princípios, haja vista que existe,
apontam esses estudiosos, uma clara dominância do MRE na formulação e
implementação da PEB. Isto se deve, por sua vez, ao processo de insulamento
que caracterizou o órgão (Meireles, 2015), e ao papel central da tradição na
‘Casa de Rio Branco’ (Doval, 2013; Vedoveli, 2010).
Nessa linha de raciocínio, a fim de melhor compreender, historicamente,
as maneiras como essas diretrizes foram efetivamente praticadas, esse grupo
dividiu as escolhas na implementação da PEB a partir de dois grandes
paradigmas dominantes: americanismo e universalismo. Estes se distinguem,
sobretudo, pela maneira com que se valem dos dois principais objetivos da
diplomacia nacional: autonomia no cenário internacional, e desenvolvimento
para romper o relativo atraso econômico (Mariano, op. cit.).
O paradigma americanista remonta suas origens ao patrono Rio Branco
(Ricupero 2017, p.307), e em sua essência confere lugar especial aos Estados
Unidos nas relações exteriores brasileiras, a partir do entendimento de que esse
país pode facilitar a projeção tupiniquim, garantindo desenvolvimento
econômico, além de segurança e autonomia contra avanços de outras potências
sob a soberania nacional. Variações do paradigma – que em Rio Branco é tido
como “pragmático” – ocorrem no período pós Segunda Guerra Mundial,
aparecendo em governos como os de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950); em
parte de Juscelino Kubitschek (1956-1960); nos primeiros governos militares; e
no período Collor (1990-1992).
Por sua vez, o universalismo, como já mencionado anteriormente, é
considerado motor da atuação brasileira, e surge, afirmam, a partir da concepção
da “Política Externa Independente”, no início da década de sessenta (Ricupero
2017, p.424-436). Seu principal formulador seria o chanceler San Tiago Dantas,
e busca, devido ao alinhamento que existia do Brasil com os EUA à época, uma
“autonomia à distância”, e relações com todos os países (inclusive os do bloco
comunista) para alcançar o desenvolvimento econômico do país e diminuir as
desigualdades sociais existentes. Outro momento importante para esse
paradigma teria sido o governo Geisel (1974-1979), quando do “pragmatismo
responsável” o Brasil rompe novamente com uma estreita aliança com os
estadunidenses, e busca superar o atraso econômico. Na Nova República, os
dois presidentes que permaneceram no poder por oito anos, apesar de
diferenças em outros pontos, tiveram PE semelhante na busca por autonomia:
em FHC (1994-2002), “autonomia pela integração” (Vigevani et al 2003); em Lula
(2002-2010), “autonomia pela diversificação” (Vigevani et al 2007).
Paulo Roberto de Almeida (2013, p.15) sintetiza bem esses argumentos
aqui expostos:
Não parece haver dúvidas que a diplomacia brasileira dispõe, historicamente, de
ideias, ou de um pensamento, a sustentar-lhe as ações. Uma adesão
inquestionável ao direito internacional, o não recurso à força para a resolução
de disputas entre Estados, o respeito à não ingerência e à não intervenção nos
assuntos internos de outros países, a observância dos direitos humanos e de
um conjunto de valores próprios ao nosso patrimônio civilizatório, são todos
elementos constitutivos da ação diplomática brasileira […]
II
Por meio do que foi exposto, evidencia-se uma linha de pensamento específica
sobre a HPEB, que pouco espaço confere ao Segundo Reinado, pelo contrário:
a partir do golpe que originou a Proclamação da República e por meio do Barão
do Rio Branco que constroem a ideia de continuidade e de tradições da
diplomacia nacional. Busca-se, a seguir, retratar movimentos de contestação a
esta narrativa, e as consequências (teóricas e práticas) dessa interpretação.
A busca por conhecimento em qualquer objeto de estudo inicia-se,
contemporaneamente, por manuais introdutórios. A fim de situar e facilitar a
compreensão de novos interessados, tais escritos possuem objetivos de serem
didáticos e reunirem todo o amplo conhecimento construído em determinado
tópico ao longo de anos de pesquisas. A simplificação, que faz com que se perca
trajetórias e constituições históricas muito mais complexas e não lineares,
usualmente implica na construção de noções sobre a área de estudo que nem
sempre concernem à realidade: destino manifestos sobre a evolução de
determinada disciplina, tentativa de construções de paradigmas e reuniões de
pensadores com concepções teóricas distintas sob um mesmo grupo1.
No subcampo da Análise de Política Externa (Foreign Policy Analysis),
mais precisamente no estudo da PEB, é consolidada e disseminada, por
eminentes acadêmicos e diplomatas, a narrativa de evolução e de princípios da
diplomacia brasileira acima exposta. Estre (2019) explicita esse discurso, que
ocorre, afirma, a partir dessa estreita relação entre diplomatas e acadêmicos,
com objetivos políticos, dada a posição institucional que os funcionários do MRE
ocupam. Por sua vez, a contribuição de Vedoveli (2010) identifica a maneira
como a ideia de “tradição” é recorrentemente (re)significada para preencher a
“memória institucional” da ‘Casa de Rio Branco’, e manter a aparência de
continuidade histórica na atuação e no pensamento diplomático, em um
processo que ocorre de maneira consciente, para cumprir objetivos políticos. Já
Faria (2008) identifica alterações no processo decisório de PE, em possível
fenômeno de ‘desinsulamento’ do Itamaraty. Os trabalhos de Belém Lopes
(2014, 2010, 2011), por sua vez, questionam a centralidade do MRE na
formulação e implementação da PE, ao apontar a necessidade de consideração
de outros grupos nesse processo, identificando pontos de pressão sobre o
“estamento burocrático”; além de problematizarem a participação de setores
sociais, ao afirmarem que a PEB possui, historicamente, uma difícil relação com
a democracia, sendo muito mais próxima de um domínio por parcelas específicas
da sociedade, em um tipo de “republicanismo aristocrático”.
Assim sendo, a perpetuação dessa narrativa acaba por desconectar a
diplomacia não somente do jogo político interno, mas principalmente da própria
população, a quem devia servir e obedecer. Não bastasse isso, no plano teórico
esse discurso perpetua interpretações que implicam no irreconhecimento do
lugar social dos respectivos agentes que o disseminam, além de implicarem em
possíveis anacronismos, como a subordinação de qualquer decisão ou
acontecimento político após o Golpe da República (1889) a possíveis
aproximações com os Estados Unidos e a suposta formação do paradigma
1
Em trabalho prévio, argumento que isto ocorre, por exemplo, com a própria disciplina de Relações
Internacionais (Assis, 2019).
americanista, sem levar em conta os respectivos contextos e preocupações das
personagens históricos na respectiva época (Vedoveli, op. cit.).
Nesse espectro, cabe perguntar: qual o lugar conferido ao Segundo
Reinado (1840-1889) nessa narrativa? Afinal de contas, é recorrentemente
reconhecido que, pelo menos internamente, foi nesse período que o Brasil
consolidou sua independência e unidade territorial, por meio do fortalecimento
da autoridade central e fim de revoltas provinciais, com consequente
estabilização política.
Para Cervo (1992), a partir do fortalecimento do Estado nacional, houve
condições efetivas para a autonomia da nação e fortalecimento da vontade
nacional, e que por meio da estabilidade institucional, formou-se uma PE
consistente e marcada pela continuidade, uma vez que também era unanimidade
entre os partidos. Devido a autonomia do Estado frente à sociedade, não havia
pressões sociais, o que facilitava as condições de implementação. Além disso,
havia um equilíbrio de forças na formulação da PE, que sofria avaliações por
órgãos como o Conselho de Estado, o Parlamento e o Trono. Ocorre, ainda,
principalmente após o Visconde do Uruguai tornar-se chanceler em 1849, a
formação da doutrina brasileira de limites, que se baseava no princípio do uti
possidetis (posse do território a partir da nacionalidade da população que nele
se encontrava), que foi bem sucedida na defesa das fronteiras. Cervo destaca,
também, que a vontade de potência do Brasil gradualmente esmoreceu-se,
transmutando-se para uma hegemonia regional no Prata, valendo-se de
recursos que deveriam ter sido utilizados para o desenvolvimento da nação, que
culminaria, segundo ele, em consequente rompimento da “dependência
estrutural”.
Enquanto isso, Ricupero (2017) fornece destaque para a guerra do
Paraguai, que segundo o autor marcou o apogeu do Império – com sua “política
dos patacões”, atuando como potência no continente – e também a decadência,
uma vez que dela decorre as principais consequências da queda da Monarquia,
como a questão militar. O embaixador também fornece destaque para a atuação
do Visconde do Uruguai na consolidação política do regime, no fim do tráfico de
escravos e na consolidação das políticas de intervenções. Outro nome
importante é o do Visconde do Rio Branco, pai do Barão, que teve papel decisivo
para garantir que Uruguai e Argentina se aliassem ao Brasil contra o Paraguai,
ao invés de se oporem ao reino de Pedro II.
Vale destacar, outrossim, a coleção Pensamento Diplomático Brasileiro
(Pimentel, 2013), publicada pela FUNAG (Fundação Alexandre de Gusmão),
órgão do Itamaraty, que reuniu novamente diplomatas e acadêmicos com o
objetivo de expor as contribuições de eminentes indivíduos para a constituição
do “estilo diplomático característico da diplomacia brasileira” (Pimentel op. cit.,
p.9). No primeiro volume, que abarca o período 1750-1889 (de Alexandre de
Gusmão ao Visconde do Cabo Frio), os organizadores descrevem o período
como responsável pelas “concepções fundadoras da diplomacia brasileira”
(Pimentel op. cit., p.35). Este entendimento soa de início estranho, ou
relativamente contraditório, haja vista que esses autores sempre remetem ao
período da Primeira República e da atuação do Barão como o responsável pela
fundação da diplomacia brasileira. Torna-se relevante, portanto, esclarecer o que
significa “concepções fundadoras”.
As análises aqui mencionadas, principalmente a do diplomata Ricupero e
a coleção da FUNAG, focam nas contribuições dos indivíduos e em suas
respectivas ideias, e menos nas estruturas e dinâmicas do processo institucional
e social. Consideram relevante, então, a burocracia e evoluções institucionais
apenas a partir do período Juca Paranhos (1902-1912), quando o Itamaraty
passa por reformas internas, expande o número de funcionários e garante,
assim, prestígio e relativa centralidade na implementação e formulação da PEB.
Desconsideram, dessa forma, toda a dinâmica política do Segundo Reinado, que
possuía um claro processo decisório – que chega a ser mencionado por Cervo,
mas com pouca ênfase. Ou seja, essa narrativa procura se esquivar das
instituições e do jogo político-social do reinado de Pedro II, valendo-se apenas
das atuações de indivíduos para explicar a evolução da PEB nesse período. Por
outro lado, após o Itamaraty adquirir grande autonomia decisória (o que não
ocorria na Secretaria dos Negócios Estrangeiros no período imperial), passam a
enfatizar a neutralidade e formação de uma praxis diplomática brasileira.
Tal processo se explica principalmente devido a grande politização
ocorrida no Segundo Reinado, no qual o plano externo era sempre reflexo das
disputas políticas internas, e o chanceler, membro de algum dos partidos Liberal
ou Conservador, era um agente político. Além disso, como já mencionado, havia
uma complementaridade entre as instituições no que diz respeito a atuação
externa do Estado brasileiro, com relatórios da Secretaria dos Negócios
Estrangeiros ao Parlamento, e pareceres do Conselho de Estado sobre diretrizes
para a atuação externa da nação, além do papel da própria Coroa. Por sua vez,
após o Barão, a imagem do diplomata passa a estar estreitamente relacionada
com neutralidade na política interna, até alcançar, atualmente, a de um
burocrata, em uma atuação (presume-se) absolutamente técnica, garantida pelo
alto nível de dificuldade da única forma de inserção no Itamaraty, o CACD.
Ademais, como já mencionado, após o Barão essa narrativa predominante
consegue transmitir o entendimento de controle do MRE sobre a projeção
externa do país, sem interferências de outras instituições, ou mesmo da própria
população brasileira, que, em maioria, nem mesmo sabe o que um “diplomata”
faz, ou mesmo para que serve o “Itamaraty”.
Com efeito, “concepções fundadoras” remete ao esforço narrativo desse
grupo de ‘encaixar’ o Segundo Reinado na suposta “continuidade” da PEB. Para
tanto, é necessário que esse grupo desconsidere a dinâmica político-institucional
da época, e foque no pensamento de indivíduos específicos. Ideias estas, que
como demonstrou Vedoveli (2010), são continuamente ressignificadas, em um
esforço para descontextualizá-las, para que possam se tornar universais e
contínuas na HPEB, servindo a interesses políticos justamente das pessoas que
as resgatam; pois assim, conectando-se com a “tradição da Casa de Rio
Branco”, os respectivos (novos) projetos adquirem legitimidade, embasamento
histórico.
Ainda assim, a despeito de todo esse esforço, um olhar mais detalhado
para a ação externa brasileira no reinado de D. Pedro II, mesmo pela leitura de
Cervo e Bueno (op. cit.), já permite perceber contradições desse discurso: sobre
adesão às normas internacionais, o Império no período não aceitou nenhum tipo
de arbitramento; quanto a pacifismo, respeito a autodeterminação, soberania, e
aos direitos humanos: a “maldita guerra” (Doratioto, op. cit.), somente para citar
a maior da América do Sul, ocorreu nesse período. Além disso, como já
esclarecido, não havia predomínio da Secretaria dos Negócios Estrangeiros na
PEB. Tentam, ainda assim, sustentar que tais fatos são pequenas exceções,
dentro do suposto contínuo histórico da diplomacia nacional.
Evidencia-se, portanto, vários problemas nessa narrativa dominante, que
tenta “criar” a PEB mais de cento e cinquenta anos após os esforços de
Alexandre de Gusmão – o primeiro escolhido na coleção Pensamento
Diplomático Brasileiro da FUNAG – para a assinatura do Tratado de Madri
(1750), o qual o próprio Ricupero (op. cit.) reconhece, no nome de seu livro, como
essencial para a formação do Brasil. Em meio a essas contradições, a política
externa do Segundo Reinado, devido a essa narrativa, fruto de esforço político,
está “sob a sombra do Barão”.
Perante tamanho problema, urge-se perguntar: como ocorreu o processo
de concepção da Política Externa Brasileira no Segundo Reinado? Quais os
principais agentes, atores e instituições envolvidas na sua formulação e
aplicação?
Nossa hipótese é de que a evolução histórica da PEB foi um processo
muito mais complexo do que a narrativa do Barão como patrono e fundador de
supostos princípios da diplomacia da nação permite-nos enxergar; que há uma
PEB brasileira já articulada antes de Paranhos Júnior, que buscarei analisar e
detalhar. Em tempo, esse entendimento específico sobre PEB acima exposto
inicia-se a partir do Barão porque há, com ele, uma relativa concentração do
processo decisório no MRE, aliada a uma despolitização relativa da PEB e da
figura do diplomata, ao contrário do que ocorria no Império. Sendo assim, por
possuir uma lógica de mundo distinta do período da Primeira República, com
elevada politização nos assuntos externos e o MNE sendo coadjuvante na
formulação diplomática, o Segundo Reinado é um período que não favorecia os
interesses políticos dos agentes que buscam sempre manter a “tradição”, a
“continuidade” e os “princípios” da PEB, e o predomínio do Itamaraty em sua
formulação e implementação. Dessa forma, em parte por falta de incentivos dos
responsáveis por manter a narrativa exposta acima, o período é pouco estudado.
O Império foi momento de constituição da nação brasileira no plano
interno e externo. Nesse sentido, a PE desses anos refletiu esse momento de
formação e fortalecimento do Estado, com a diplomacia exercendo papel
fundamental, segundo características e princípios específicos da sociedade à
época, mas também com um grande legado para a nação e para sua diplomacia
– legado este que foi, inclusive, aproveitado pelo Barão. Isto não quer dizer,
entretanto, que a diplomacia brasileira fundou-se apenas com Juca Paranhos, já
em princípios do século XX.
As preocupações do Segundo Reinado já são sobre soberania e inserção
autônoma, e apenas devido ao contexto e ao estágio de desenvolvimento do
Estado brasileiro à época, as principais ações externas eram diferentes dos anos
de Paranhos Júnior. Ou seja, os policy makers do período entendiam como
importante uma melhor relação com os países do continente, mas no contexto
da época era imprescindível uma resolução dos impasses fronteiriços, o que
implicava em maior tensão política. E foi justamente o sucesso da atuação
externa do Segundo Reinado que permitiu, futuramente, uma política pacífica
por parte do Barão, que terminou o processo de delimitação das fronteiras,
iniciado por Alexandre de Gusmão e alavancado pelo Visconde do Uruguai e
chanceleres subsequentes do Império.
III
Nos últimos anos, simultaneamente ao diagnóstico da existência e dos
problemas dessa narrativa, uma nova leva de pesquisas atua no sentido de
propor uma distinta interpretação sobre a PE do Império. Feldman afirma que:
Embora seja correto o relevo geralmente atribuído ao passado da política
externa brasileira, verifica-se a tendência de identificar o período republicano, e
particularmente a gestão do Barão do Rio Branco, como aquele em que foram
construídos os modernos padrões de relacionamento exterior do Brasil [...]. O
próprio repertório de casos elencados neste artigo reitera, na parte que lhe cabe,
a importância do período em questão. Contudo, não se poderia deixar de sugerir,
conclusivamente, o recuo daquele marco de identificação. Com efeito, o período
republicano em tela foi desde logo momento de retomada, na política interna e
na política externa, de tradições imperiais. Sendo evidentes as novidades
aportadas pela República em uma e em outra área, não foram menos
perceptíveis elementos de continuidade e aprofundamento, na diplomacia do
novo regime, do que se viu ser a – sob certos aspectos, seminal – reflexão de
política externa no Segundo Reinado. (Feldman, 2009, p.576)
2
Para compreensão detalhada da dinâmica política da PE do Segundo Reinado ver Sousa (2017), que
muito influenciou essa monografia.
Deve-se esclarecer, todavia, que nossa divergência desse grupo é no que
concerne conclusões de pesquisa, pela qual a narrativa acima exposta confere
espaço privilegiado ao Barão e a diplomacia da Primeira República justamente
porque isto confere caráter neutralista, apolítico para a PEB, garante legitimidade
aos projetos que esse grupo possui para a PE, e perpetua o domínio do MRE na
formulação e implementação da PEB. Ignorando, assim, a contribuição de tudo
o que ocorreu antes da Primeira República para o processo de formação e
construção da política externa e do serviço exterior brasileiro, fazendo com que
as contribuições do Segundo Reinado sejam transmutadas para momento
imediatamente posterior.
1. Saquaremas e luzias: duas visões de Brasil,
dois paradigmas política externa
1.1 Introdução
O objetivo desse capítulo é expor o desenvolvimento e formação das principais
características do pensamento internacional3 conservador e liberal do Império
brasileiro, sendo a terminologia “saquaremas” referente aos primeiros, e “luzia”
aos segundos4. Por meio da análise das disputas partidárias, discorro sobre os
principais acontecimentos da HPEB do período, buscando expor a contribuição
de cada fase do tempo das monarquias para a formação desses paradigmas.
Estes foram advindos dos respectivos projetos para o país dos dois principais
grupos políticos do Segundo Reinado, evidenciando que não houve separação,
no Império, entre política doméstica e relações exteriores. Argumento que houve
uma prevalência do paradigma conservador na formulação e implementação da
PE do Império.
Para além dessa introdução e de uma conclusão, esse capítulo será
dividido em duas seções. Referenciadas principalmente pelos trabalhos de
Sousa (2013, 2016, 2017), Lynch (2014, 2011) e Rosi (2014, 2016), a primeira
busca narrar a trajetória histórica dessas duas vertentes de pensamento
internacional brasileiro, enquanto a segunda sumariza as principais
características desses dois paradigmas. Por fim, vale relembrar que o papel de
cada uma das instituições e dos principais estadistas será analisado em
pormenores nos próximos capítulos.
1.2 Da Independência ao Golpe: conservadores, liberais e a projeção
externa brasileira
Como dito acima, essa seção disserta sobre a trajetória de cada uma das
vertentes de pensamento internacionais do Segundo Reinado. Para tanto,
iniciar-se-á pelos primórdios dessas duas visões políticas, que remontam ao pós
1822. As subseções seguem marcos temporais de acordos com momentos
determinantes para a formação dessas correntes de pensamento e seus projetos
para o âmbito externo, buscando identificar quais as contribuições de cada uma
dessas fases para a construção dessas duas interpretações de Brasil. A trajetória
aqui exposta é referenciada bibliograficamente, principalmente, pela tese de
Sousa (2017). Como o próprio afirma:
Se o Primeiro Reinado fora marcado pela ascendência do pensamento
conversador, a Regência o fora pelo liberal. O longo Segundo Reinado, por outro
lado, assistiria a um longo predomínio da política conservadora, assim como ao
crescimento, nos lustros finais do reinado de D. Pedro II, da adesão progressiva
3
Para uma discussão sobre os motivos de se utilizar a expressão “pensamento internacional brasileiro” em
detrimento de “pensamento diplomático brasileiro”, ver Sousa (2019). Genericamente, este está restrito a
diplomatas, enquanto aquele permite que se considere a contribuição de variados agrupamentos sociais na
formação de teorizações sobre a projeção externa brasileira.
4
“Saquarema” faz menção a região em que os principais líderes desse grupo se reuniam, em propriedade
do Visconde de Itaboraí. “Luzia” remete a cidade de Minas Gerais, local de uma das maiores derrotas da
revolta liberal de 1842. A terminologia, da maneira como aqui utilizada, foi proposta por Lynch (2011).
ao pensamento liberal, o qual se materializaria de forma cabal na escolha
institucional da Primeira República. (Sousa, op. cit., p.208)
5
Exemplo excepcional, entretanto, foi o da indicação do Barão do Rio Branco, em 1876. Ver Sousa (op.
cit., p.203).
representantes e de negociações diplomáticas para o reconhecimento da
independência, primeira preocupação brasileira no plano externo.
Nesses termos, o acordo com outras nações ocorreu por meio do que
chamou-se de “tratados desiguais”, pois iam contra interesses (comerciais)
nacionais. Tudo foi feito no sentido da prioridade da época, de manter a
inviolabilidade territorial. O objetivo era tentar conciliar a ambição expansionista
brasileira no Prata com os anseios do Imperador pelo Trono português. Esta
ambiguidade que implicou na necessidade de concessões como os tratados,
uma vez que havia várias ameaças à unidade territorial por parte das outras
nações.
Em relação ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e sua
organização, havia, por parte de José Bonifácio, esforços maiores para a ideia
da criação de um corpo diplomático. Nesse sentido, o patriarca da independência
desmembrou o MNE do Ministério da Guerra, mas a expansão esbarrava no
obstáculo da restrição orçamentária. Ainda no tempo de Pedro I, ocorreu reforma
administrativa na administração do Marquês de Aracati (1827-1829),
responsável por fornecer um primeiro esboço organizacional do MNE, mas com
uma divisão de trabalho ainda rudimentar e ilógica (Castro, 2009). A Secretaria
de Estado, por exemplo, distribuiu seus trabalhos por países e regiões do globo,
o que provar-se-ia pouco eficaz.
Perante a ambiguidade de interesses do Imperador, as decisões
desvinculadas do interesse nacional geraram crescente insatisfação e revoltas
que culminam na abdicação em 1831 – efeito das preocupações do que
acontecia no trono português, e da já inconciliável divisão entre partido português
e brasileiro. Justifica-se, por isso, a afirmação de Ricupero (2017) de que D.
Pedro I faz a independência, mas tem de sair do Brasil para ela se consolidar.
O Parlamento foi o maior símbolo da revolta dos setores nacionais. Nos
anos finais da década de vinte, crescem as reivindicações por uma maior
aproximação (principalmente comercial) com os países vizinhos, além das cada
vez mais severas críticas ao sistema de tratados, ao excesso de poder Monarca
e da falta de participação do Legislativo nas decisões externas. Paulatinamente
consolidou-se a percepção de que o Parlamento deveria ter papel maior na PE,
principalmente na esfera econômica, o que teria implicação central na Regência.
Evidencia-se, portanto, que a PE era importante parte do jogo político do
Primeiro Reinado, haja vista que os tratados desiguais e crescente interesse do
Imperador com a sucessão portuguesa foram determinantes para a crescente
insatisfação e tensão social característica dos últimos anos da governança do
filho de D. João VI. Não havia, no período analisado, os partidos que viriam a
dominar a vida política do Segundo Reinado6, mas era perceptível uma divisão
entre dois grupos, principalmente acerca das atribuições e poderes do Imperador
conferidos pela Constituição e com o que foi feito com esses instrumentos. A
6
Vale destacar que durante todo o tempo da Monarquia a vida política não foi rígida, e a polarização não
impossibilitava a mudança eventual de partidos e formações de alianças.
polarização ocorria da seguinte forma: um grupo favorável ao Monarca,
concentrado no Conselho de Estado e no Senado (ambos órgãos vitalícios e
indicados pelo Imperador); e os opositores, presentes em maioria na Câmara e
no Partido Brasileiro, que atacavam a concentração de poder no Trono.
Destaca-se, no Primeiro Reinado, uma visão específica de Brasil, legado
dos anos de Corte portuguesa, crente em um futuro status de potência para o
país, devido a existência de um grande território. Era uma autoimagem de
grandeza desse Império, que foi transmutada e compartilhada pela elite política
tupiniquim. Esse projeto de país, no âmbito nacional, teve como seu principal
expoente José Bonifácio de Andrada e Silva. Com efeito, é possível dizer que as
ideias predominantes do período são estreitamentes relacionadas com os ideais
que futuramente seriam os dos saquaremas, representados politicamente no
partido conservador.
1.2.2 Avanço liberal7: 1831-1837
As tomadas de decisões de caráter liberal logo que o grupo de oposição a Pedro
I assume o poder definem o principal ponto do debate político do Império:
centralização versus federação, com o Ato Adicional de 1834 sendo o principal
marco institucional dessa disputa8. Esta medida fornecia, relativamente, grande
autonomia para as províncias, e suspendia o Poder Moderador e Conselho de
Estado, que eram símbolos da preponderância monárquica do Primeiro Reinado.
Na verdade, ao longo de todo o período é característico o embate entre
as várias propostas reformistas e grupos que passaram a ser chamados de
“regressistas”. Este constituiu-se gradativamente nesses anos, e possuía
setores que antes defendiam a centralização do Primeiro Reinado, e membros
moderados da antiga oposição a D. Pedro I, que se uniram em torno da crença
de que a excessiva descentralização geraria grandes malefícios para o país. Os
regressistas, portanto, foram a oposição aos “progressistas”, que defendiam a
intensificação de medidas reformistas. Entre os principais expoentes de cada um
dos grupos pode-se destacar Bernardo Pereira Vasconcelos, do lado
regressista, e Diogo Antônio Feijó, dos progressistas.
Durante os primeiros anos da Regência, como acima mencionado,
ocorrem substantivas mudanças e predomínio de crenças progressistas. Após a
promulgação do Ato Adicional em 1834, Feijó tornou-se regente. Este entendia
que as reformas de tom liberalizante forneceriam maior representatividade ao
sistema político vigente. Como aponta Sousa (op. cit.), Feijó agiu de acordo com
um ideal político, no qual a organização política brasileira deveria se inspirar na
República Federativa dos EUA. Após as reformas liberalizantes, Feijó afirmou
que:
À vista disto quem se atreverá a dizer que o Brasil é governado
monarquicamente? Compare-se o nosso governo com o dos Estados Unidos e
7
Nomenclatura proposta por Sousa (op. cit.).
8
Convém lembrar, contudo, que houveram outras reformas liberalizantes, como reforma do Judiciário, das
leis comerciais e a criação da Guarda Nacional.
conhecer-se-á que no essencial são ambos os Estados governados pelo mesmo
sistema, e que a maior diferença está no nome e em certas exterioridades de
nenhuma importância para a causa pública [...] Se entre os brasileiros há alguns
que sinceramente preferem, no estado atual, a república, não se incomodem,
pois estamos com ela […]; de monarquia, só temos o nome. (apud Sousa, op.
cit., p.70)
9
Ricupero (op. cit.) identifica o período regencial como momento em que a autonomia nacional surgiu, por
meio de medidas como a resistência a novos tratados com potências. O diplomata afirma, ainda, que houve
uma “nacionalização da formulação diplomática”, com uma leitura do interesse nacional; e uma “latino-
americanização da vida política interna”.
Outrossim, o governo dos progressistas, em meio ao estado de anarquia
causado pelas revoltas que estouraram após a descentralização, não tinham
recursos e não se preocupavam em manter a unidade territorial. Feijó acreditava
que o importante era a federação (a independência das províncias), e que
apenas as reformas liberais poderiam convencer as províncias a readerirem ao
Estado brasileiro – o poder do Estado central, nesse pensamento, adviria da
união das federações.
Doravante, em meio a anarquia instaurada pela descentralização, a
oposição se fortalece e desenha-se, principalmente no final do período, o que
seria a síntese do sistema partidário do Segundo Reinado, liberais
(progressistas) e conservadores. Os regressistas, crescentemente preocupados
com a ordem e integridade territorial, ganham proeminência política. Bernardo
Vasconcelos, que viria a ser um dos principais fundadores do partido
Conservador, formaliza esse pensamento e o predomínio de uma nova política
a partir de 1837, em período conhecido como “Regresso Conservador”:
Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos,
mas não nas leis, o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto
da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito
comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora
risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-
la, quero salvá-la; e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono
a causa que defendo, no dia dos seus perigos, de sua fraqueza; deixo-a no dia
em que tão seguro é o seu triunfo que até o sucesso a compromete. Quem sabe
se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver
defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de
dar outra vez a minha voz ao apoio e a defesa da liberdade? Os perigos da
sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há
de o político, cego e imutável, servir no seu país? (apud Sousa, 2015, p.191)
10
Como já exposto acima, os luzias se relacionavam ao governo liberal da regência, enquanto os
saquaremas ao pensamento lusitano do Primeiro Reinado.
Devido a essas restrições (falta de consenso e de poderio econômico e
militar para intervenções), buscou-se, também, a formação de parcerias para
tentar agir no Prata. Essas alianças possuíam caráter essencialmente
pragmático no caso dos saquaremas – vide a tentativa de parceria com Rosas
antes de suas ações expansionistas –, e eram sempre direcionadas para países
do continente americano no caso dos luzias. Como nenhuma das tentativas
foram frutíferas, na década de quarenta o Brasil manteve apenas vigilância sobre
o Prata, e ao ser traído por Rosas, utilizou de todos os meios diplomáticos
possíveis para diminuir a influência do ditador. Essa prioridade inicial dos
saquaremas ao fortalecimento doméstico e a ausência de consenso sobre
questões externas refletiu, também, na instabilidade do comando dos negócios
estrangeiros. Da Maioridade até fins de 1849, o MNE teve doze trocas de
ministros, o que dificultava a existência de uma PE estável.
Nesse contexto, os conservadores assumem o comando do Gabinete em
1848, e no ano posterior Paulino José Soares de Souza (Visconde do Uruguai)
assume a pasta dos Negócios Estrangeiros. Junto com ele, seu cunhado
Joaquim José Rodrigues Torres (Visconde de Itaboraí) – Ministro da Fazenda e
a partir de 1852 presidente do Conselho de Ministros – e Eusébio de Queirós
(Ministro da Justiça) compunham o que ficou conhecido como “trindade
saquarema”, que permaneceu no poder até 1853, no que foi o segundo Gabinete
mais longevo do Império. Neste período, finalizou-se, mais precisamente em
1850, a obra de centralização saquarema no plano interno, ocorrendo a reforma
da Guarda Nacional, por exemplo. Consolidada a ordem doméstica, e com poder
suficiente acumulado, os saquaremas puderam concretizar suas convicções na
arena externa. De acordo com Cervo (1992, p.134), de 1851-1876 há uma
“hegemonia periférica brasileira”.
Paulino Souza foi responsável, nesses quatro anos, por realizar o que
seria a definição das diretrizes de atuação externa brasileira ao longo do
Segundo Reinado, e os princípios do paradigma saquarema. Ele elaborou e
executou a política das intervenções, culminação de processo de maturação de
um pensamento político que guiasse a projeção externa da nação ao longo dos
anos precedentes. Ocorreu o rompimento da tradição neutralista da Regência e
dos liberais, implementando-se o que ficou conhecido como “doutrina brasileira
de limites”.
O futuro Visconde do Uruguai teve de lidar com as crescentes tensões
tanto no Prata quanto contra potências como a Grã-Bretanha. Neste caso, atuou
o Gabinete da trindade para aprovar a lei Eusébio de Queirós, que proibia o
tráfico de escravos. A relativamente rápida e eficaz resolução do litígio contra os
britânicos permitiu que o Ministro dos Estrangeiros voltasse suas atenções para
Rosas. Tem início a política dos patacões, e em 1850, o Brasil rompe relações
com a Argentina, preparando-se para a provável guerra.
Em 1851, com o início da intervenção, há um ponto de inflexão na PEB.
Inaugura-se o segundo momento da hegemonia saquarema: exercia-se, agora,
o poder que havia sido acumulado desde o Regresso. Após a derrota de Rosas,
o Visconde do Uruguai consegue que o Marquês do Paraná (Honório Hermeto
Carneiro Leão), expoente saquarema, seja o negociador brasileiro dos acordos
pós guerra. Ele foi acompanhado de José Maria da Silva Paranhos, futuro
herdeiro político de Paulino e que receberia o título de Visconde do Rio Branco.
Os dois foram bem sucedidos nas negociações, e estabeleceram o sistema de
tratados e aliança brasileira com o Uruguai, consolidando este país como esfera
de influência Imperial.
Desde os primeiros momentos da intervenção conservadora no Prata, é
perceptível a oposição liberal, afirmando que seria uma operação de altos custos
econômicos, poucos ganhos e que terminaria apenas em atrair a inimizade dos
países fronteiriços ao Brasil. Na busca de um maior apoio e consenso político, o
Visconde do Uruguai realizou vários discursos no Parlamento para tentar obter
apoio às políticas do Gabinete, expondo o que para ele era evidente: a intenção
argentina de recriação do Vice-Reino da Prata, que era uma ameaça aos
interesses nacionais brasileiros. Criticando a oposição, o ministro afirmou que:
E tratando das relações com o Rio da Prata diz [a oposição] vagamente: “O que
nos convém é viver em paz com os Estados do Sul”, e censura ao mesmo tempo
a marcha do ministério, e exclama: “Manda-se vir recrutas do Norte para irem
morrer e engordar com seus cadáveres as campinas do Rio Grande do Sul;
exaurem-se os nosso recursos em armamentos!”. Ora, quem ouvir e ler estas
palavras, e não estiver bem ao fato do estado dos negócios, e da maneira por
que a ela chegara, dirá: É assim. Por que em vez de esforçar-se o governo para
viver em harmonia com os Estados do Sul, e para compor as nossas
diferenças, recruta, e faz armamentos? Não será isto, senhores, encaminhar o
espírito público para uma senda errada em que não convém ao país que ele
entre? Não será isto criar graves embaraços, não só à administração atual, mas
a qualquer outra que lhe suceda, que não poderá mudar o passado, e o estado
das coisas? (Anais do Senado, 24/05/1851)
11
Vale destacar que o aumento da rivalidade e da retórica foi paulatino em ambos os países.
12
Prevaleceria, no pensamento conservador ao longo de todo o século, a desconfiança quanto a anseios
expansionistas argentinos. Isto era mais um fruto da herança intelectual lusitana, decorrente da Guerra da
Cisplatina, principalmente.
era o significado de expansionismo no paradigma internacional saquarema,
diametralmente distinto do que ocorria nos outros países, e também oposto ao
entendimento de neutralismo e estabelecimento de relações pacíficas à qualquer
custo por parte dos luzias.
Para além disso, vale destacar nos saquaremas a defesa dos interesses
brasileiros em meio a um contexto internacional expansionista, como no caso da
abertura de navegação no Rio Amazonas. O Conselho de Estado (com maioria
formada a partir de votos dos saquaremas) resistiu à pressões de nações
estrangeiras – notadamente dos EUA – para a regularização do comércio no rio,
e paulatinamente argumentava em favor da abertura do Rio da Prata, uma vez
que isto era do interesse brasileiro, enquanto aquilo era uma possível ameaça a
soberania nacional – a maioria não se importava com a contradição dessa
posição. Essa atitude é outro exemplo dos receios que expoentes do Partido
Conservador possuíam de acordos comerciais (vide o trauma dos tratados
desiguais do Primeiro Reinado) e da permissão de acesso a região do território
nacional pouco povoado por parte de potências estrangeiras, que poderiam
aproveitar da situação e concretizar anseios de expansões imperialistas, que
aconteciam, vale lembrar, ao redor do globo. Tais receios a possíveis ameaças
da integridade territorial eram tão elevados que mesmo os conservadores
moderados, como o Visconde de Uruguai, que defendiam em 1854 negociações
individuais com cada nação interessada, foram ‘derrotados’ por defensores de
posição relativamente mais extremista: a negação de qualquer tipo de
negociação, entendimento este que perdurou até governo luzia, em 1867, abrir
o Amazonas sem restrições. Dessa forma, em meio a assimetria de força
material intrínseca às relações do Brasil com as grandes potências, optou-se, no
momento de hegemonia política saquarema, mesmo com posições divergentes,
pela negação de qualquer tipo de acordos.
Em 1853, sai do poder a trindade saquarema, e o Imperador, após esse
período de acentuado domínio conservador, busca um gabinete que trate de uma
conciliação partidária, numa espécie de união nacional. Nesse sentido, com o
saquarema Marquês do Paraná, tem início a fase conhecida como “Conciliação
Partidária”. O Gabinete foi composto por integrantes moderados de ambos os
lados, mas as posições se mantinham conservadoras. Na prática, as reformas
adotadas tiveram como consequência um grande baque sobre os
conservadores, surgindo aqui os primeiros sinais do que viria a ser, na década
de setenta, a decadência saquarema. As mudanças nas regras eleitorais, por
exemplo, impossibilitavam que magistrados – parte do núcleo dos
conservadores – continuassem exercendo cargos políticos. Estes atuavam,
justamente, na formulação de ideias para o partido.
A Conciliação culmina em um gradual renascimento dos luzias, e com o
primeiro gabinete liberal em quatorze anos, formado em 1862. Em que pese o
significado político de um retorno à Presidência do Conselho de Ministros depois
de tão elevado tempo, a maior significância encontra-se, na verdade, na
reintrodução das crenças liberais em debates políticos, com a volta da discussão
sobre a centralização institucional do regime. A obra de José Murilo de Carvalho
(2018) corrobora essa afirmação, ao argumentar que a década de sessenta foi
provavelmente o momento mais fértil de todo o Segundo Reinado em termos de
pensamento e de discussões políticas. Pelos conservadores, Ensaio sobre o
direito administrativo (1862), do Visconde do Uruguai, sustentava que “o rei reina
e governa”. Do lado luzia, Da natureza e limites do Poder Moderador (idem), de
Zacarias de Góis e Vasconcelos, dizia que “o rei reina, mas não governa”.
O novo Gabinete, junto com a necessidade de reforma institucional (pode-
se dizer que uma proposta de “republicanização constitucional” do país),
promoveu mudança de orientação na PE, no que foi a retomada do pensamento
regencial da fase liberal. No campo das ideias, Tavares Bastos foi o principal
expoente: era crente no papel civilizador do comércio internacional, e defendia
uma aproximação com os EUA em termos econômicos, mas também políticos –
a PE era vista como um mecanismo de aproximação da excelência do modelo
civilizatório estadunidense. Foi a partir dessas influências que ocorreu uma
abertura comercial permissiva a perdas de soberania ou de parcelas do território.
Um exemplo foi a acima citada abertura irrestrita a circulação de estrangeiros no
Rio Amazonas em 1867. As decisões políticas eram condicionadas pela busca
da concretização da visão de mundo ideal luzia, e por isso os liberais preferiam
correr o risco de se expor ao imperialismo expansionista do século XIX, para
assim tentar alcançar a aproximação política e econômica com os países do
continente. Ou seja: assim como Diogo Feijó na regência, os luzias não se
preocupavam com a integridade territorial.
Nota-se, portanto, que na década de sessenta há uma polarização no
campo das ideias e debates entre dois projetos de país, com os saquaremas,
após décadas de incontestável hegemonia política, sofrerem com a Conciliação,
que fez renascer a força partidária dos luzias. Entretanto, como já dito, nessa
década o ressurgimento liberal ocorre muito mais no plano teórico do que na
prática; uma vez que, em meio aos crescentes desafios no Prata, já em 1864 os
conservadores voltam a ter importante papel na atuação política. No começo
deste ano, em meio a crescente tensão social que envolvia o Uruguai, os liberais
continuaram a defender a neutralidade no Prata, uma vez que, segundo
afirmavam, qualquer tipo de intervenção não teria sucesso duradouro.
Em seguida, os blancos, partido uruguaio contrário aos interesses
brasileiros no Uruguai, cresce em termos políticos, e o Gabinete luzia envia uma
missão, com Tavares Bastos e Antônio Saraiva, cujo objetivo inicial era “o
cumprimento das exigências brasileiras sem a necessidade do envolvimento
militar” (Sousa, op. cit., p.140), mas que acabou com um ultimato de Saraiva aos
uruguaios, e no inevitável intervencionismo brasileiro. Ainda, Saraiva renunciou
à missão, “deixando acéfala nossa diplomacia platina no ‘momento de todos o
mais crítico e difícil, nos meses de setembro, outubro e novembro, isto é, entre
o começo das represálias e a guerra com o Paraguai’” (Ricupero, op. cit., p.204).
Após este redundante fracasso, o Gabinete luzia não tem escolha senão enviar
estadista que já possuía experiência nos assuntos do Prata, haja vista que
participara das negociações após a derrota de Rosas: o Visconde do Rio Branco.
É necessário salientar que, já na década de sessenta, Paranhos era o principal
expoente saquarema, e foi o responsável por fazer com que o Uruguai passasse
de inimigo a aliado do Império contra o Paraguai, aplicando a mesma fórmula
conservadora que havia funcionado mais de um decênio antes. Em discurso no
Senado Federal, posterior ao fim das negociações, Rio Branco afirmou que:
O governo imperial continuou de acordo com as idéias que eu lhe havia
manifestado; as instruções que o nobre ex-ministro dos Negócios Estrangeiros
entregou-me, na véspera de minha partida à noite, eram um transunto do
memorandum que apresentei-lhe com o plano de negociação que me parecia
mais conveniente. (Anais do Senado, 05/06/1865)
Paranhos, junto com Duque de Caxias, que teve grande papel na derrota
militar do ditador paraguaio, ocupando a capital Assunção, foram os saquaremas
os protagonistas da vitória brasileira na Guerra do Paraguai, que culminou na
escolha do Imperador em dissolver, por convicção pessoal própria, o Gabinete
luzia e convocar o conservador Visconde de Itaboraí para governar em 1868.
Esta medida teve como consequência, segundo Carvalho (2008), um retorno
saquarema ao núcleo de poder político, justamente quando os liberais
dominavam o Parlamento13.
Ainda, sobre a atuação luzia nesses seis anos no poder, cabe pontuar que
havia a tendência de uma maior aproximação com a Argentina, uma tentativa de
cooperação que foi alavancada devido aos governos de ambos os lados serem
liberais. O maior resultado dessas iniciativas foi o Tratado da Tríplice Aliança,
assinado pelos luzias em 1865 e que projetava um estreitamento de relação
entre os países mesmo após o fim da guerra. Com esta ação, os luzias
buscavam superar rivalidades históricas que entendiam como ultrapassadas; e
para tanto poderiam, inclusive, abrir mão da hegemonia e do poder regional,
admitindo a possibilidade de que a Argentina anexasse parte do território
paraguaio.
O Conselho, na pessoa de eminentes conservadores, condena
veementemente o Tratado, e o identifica como passível de transgressão da
soberania brasileira e dos interesses nacionais. O parecer da Seção dos
Estrangeiros, de caráter conservador e apresentado em reunião do Conselho
Pleno, afirmava que:
Triunfou a política argentina da política brasileira! A Confederação [Argentina],
qualquer que fosse o seu Governo, nunca desistiu da idéia de incorporar a si o
Paraguai ou por federação ou aliança, ou por outro qualquer modo. O
pensamento tradicional, constante, previdente, valioso do Brasil foi sempre de
evitar isso, de manter não só a independência do Paraguai, mas o território deste
necessário para separar nossa fronteira ocidental do imediato contato argentino;
foi sempre de evitar a preponderância que a Confederação exerceria,
dominando as relações dessa parte da América do Sul, ameaçando de absorção
o Paraguai, e as fronteiras de Coimbra e Miranda. A ocasião era a mais solene
13
A indignação do partido liberal pela escolha do Imperador de convocar Gabinetes conservadores em
1848 e 1868, quando havia uma maioria liberal no Parlamento, será analisada em suas especifidades no
capítulo dois.
para obtermos essa segurança, nunca para renunciá-la; pois bem; ela foi
renunciada. (Atas do Conselho de Estado Pleno, 1867-68, grifo e itálico meu)
14
Por mais que o diagnóstico fosse o mesmo, é bastante razoável imaginar que a maneira pela qual luzias
radicais e moderados implementariam essas diretrizes fossem diferentes. Por exemplo, com a vitória dos
republicanos após o Golpe de 1889, o idealismo exaltado tomou conta dos estadistas, em nível
relativamente muito maior do que ocorria com os luzias moderados que governavam na Monarquia.
América e queremos ser americanos”. Dentro do movimento liberal, com
conclusões distintas desta, destacam-se: Tavares Bastos, que apesar do
diagnóstico semelhante, sugeriu, em meio a esse debate entre
moderados/radicais, ter como modelo os EUA, mas manter as instituições
monárquicas; e Joaquim Nabuco, que apontava para os novos tempos e a
necessidade de renovação do regime, mas por meio do argumento de que a
essência americana era o federalismo, e não o republicanismo (Sousa, op. cit.,
p.170).
Para além do movimento liberal, a própria ala (moderada) saquarema
reconhecia necessidades de atualização do regime15. A estratégia do Gabinete
mais longevo do Império, conduzido pelo Visconde do Rio Branco (1871-1875),
era justamente de desidratar posições revolucionárias – não todas, claro, mas
parte significativa. Exemplo foi a solidariedade regional na Bacia do Prata após
a morte do ditador paraguaio, mas de maneira que mantinha a “ordem platina”.
Políticas como estas, todavia, acentuaram a divisão entre os setores moderados
(funcionários públicos) e extremistas (fazendeiros de exportação) do partido
conservador e também contribuíram para seu gradual enfraquecimento,
principalmente após a Lei do Ventre Livre de 1871.
Ilustração desta existência de diferentes correntes dentro do Partido foi o
processo de elaboração da Lei Áurea: o Barão de Cotegipe foi demitido por não
querer fazer a abolição, e a Regente Isabel o substituiu por outro conservador,
mas que era favorável a extinção da escravatura, João Alfredo. Como aponta
Torres (2017), o abolicionismo dividia tanto os saquaremas quanto luzias – haja
vista que também existia setores escravagistas neste –, o que faz com que o
autor considere a escravidão uma “terceira pauta”, separada das outras
questões que polarizavam a política entre conservadores e liberais.
Aliás, argumentavelmente, a “questão servil”, como era chamada na
época, foi, em parte devido a esses rachas gerados nos partidos, a maior causa
da crise não somente no partido conservador, mas do sistema político
monárquico em geral. Em primeiro lugar, a abolição fazia parte da agenda luzia,
e sua não convocação para aprovarem o Ventre Livre em 1871 e a abolição em
1888 demonstra que a Monarquia havia perdido sua capacidade de arbitragem
entre os grupos políticos (Carvalho, op. cit.). Além disso, havia a péssima
imagem que a escravidão fornecia ao Brasil, com escravos, por exemplo, lutando
na Guerra do Paraguai. Isto, afirmavam os liberais moderados, fazia com que o
Brasil destoasse do restante do continente16. Fato era que o Brasil, devido a
escravidão, era motivo de escárnio América do Sul, e importantes esforços
15
É possível encontrar uma ilustração disso em artigo de Christian Lynch (2014, p.299). Ao dissertar sobre
a reticência presente no pensamento saquarema quanto a possíveis modificações institucionais a fim de
realizar mera importação de mecanismos e arranjos de outros países, o autor afirma que “isso não quer
dizer que os saquaremas fossem avessos às mudanças. Muito pelo contrário, muitas vezes influenciados
pela ‘filosofia política’ do Visconde de Uruguai, eles eram os primeiros a reconhecer a sua necessidade,
ainda quando dela desgostassem, por verem, na alternativa da inércia, um potencial de males ainda
superiores.”
16
Nesse cenário, medidas descentralizadoras (federalismo) e a abolição cumpririam o objetivo de aproximar
o Brasil do restante do continente, entendiam.
reformistas, como a política migratória – constante nas intenções, e efetiva
somente na última década do regime –, também esbarrava na escravidão. À
crescente pressão popular pela abolição, somou-se apoios de movimentos
internacionais, destacando-se o papel desempenhado por Joaquim Nabuco,
realizando parcerias com associações contra a escravidão, exemplo este dos
‘novos tempos’, da influência do cosmopolitismo crescente naqueles anos.
Ainda, a própria instituição do Trono favoreceu a abolição: o Imperador que
impulsionou a Lei do Ventre Livre; e os conservadores moderados, como o
Visconde de Rio Branco, concordavam.17
Em meio a todas essas transformações sócio-políticas, mesmo o
Conselho de Estado, órgão de participação vitalícia, passou por mudanças. Este
órgão adquiriu viés crescentemente liberal, o que tem como consequência novas
interpretações sobre a projeção externa brasileira, que foi gradualmente
renovada pela ascensão e gradual domínio político luzia. Nas duas últimas
décadas de Pedro II, houve, concretamente: uma aproximação com os Estados
Unidos, de grande importância comercial, com crescentes exportações
brasileiras para o país e aumento de investimento estadunidense em território
nacional. Destaca-se também o arbitramento do presidente americano no litígio
entre Paraguai e Argentina, que favoreceu interesses brasileiros; e a viagem de
D. Pedro II para o país, em 1876, causando boa impressão na sociedade local.
É notável, ademais, a percepção liberal do avanço civilizatório das antes
belicosas e anárquicas repúblicas sul-americanas, com destaque para a
Argentina, país pelo qual houve esforços no sentido de estreitamento de
relações, em posição diametralmente distinta dos saquaremas: agora, a
Argentina era vangloriada e bem recebida, e inexistia preocupações sobre
anseios expansionistas. A narrativa luzia visava tornar esse país exemplo de
nação platina (local em que os saquaremas intervieram militarmente para impor
ordem) e sul-americana (região que os conservadores descreviam sempre como
instáveis e inferiores a Monarquia brasileira) a ser seguida. Ainda, o país
participou de iniciativas que vieram a ser as primeiras conferências multilaterais
americanas; além da mudança de entendimento quanto a possibilidade de
negociação de tratados, arbitramentos e demais tipos de acordos, já nos anos
finais da Monarquia.
Evidencia-se, à vista disso, que houve, aos poucos, uma substancial
mudança na atuação política do Império quando comparado ao que se praticava
até o fim de desenrolares da Guerra do Paraguai, ou em relação ao paradigma
saquarema. Essa mudança é símbolo da consolidação de um novo predomínio,
agora dos luzias, tanto externa quanto domesticamente: após 1876 a política de
limites esmoreceu, e questões limítrofes pendentes foram deixadas para a
República; e cresceram as propostas de descentralização e maior liberdade para
as províncias. E isso ocorreu mesmo com os próprios saquaremas já tendo
percebido a necessidade de mudanças e já estarem fazendo, à maneira
17
Para detalhes sobre a escravidão e sua influência na política do Império, ver Carvalho (op. cit.), parte II,
capítulo dois.
conservadora, reformas – não foram, por exemplo, contrários à participação do
Brasil nas reuniões americanas que se delinearam na época.
Ou seja, mudanças na PE (adaptação aos novos tempos), aproximação
dos EUA e mais atenção a possíveis parcerias no continente já eram, mesmo
entre conservadores, uma tendência. Por conseguinte, ocorriam mesmo antes
do Golpe de 15 de Novembro:
Ao nosso ver, inexistem evidências indicativas que o processo de
americanização pelo qual passavam as relações internacionais do país
demandasse a instalação da República. A contar pela configuração institucional
imperial, era de se esperar que o processo ora em curso tivesse prosseguimento
dentro do espírito vigilante que pautara a política exterior do país, uma
contraposição aos excessos diplomáticos da aurora republicana. (Sousa, op. cit.,
p.184)
18
A despeito dessas escolhas de Pedro II em momentos de ameaça externa, é imperativo relembrar que o
Imperador, mesmo sempre vítima de queixas liberais, não apenas sempre favoreceu os saquaremas.
Exemplo foi a escolha do Gabinete da Conciliação partidária, realizado logo após o fim do Gabinete da
tridade saquarema, e que teve como consequência o ressurgimento do partido liberal e medidas como a
reforma eleitoral, que foram o início da implosão do partido conservador, por meio da retirada dos
magistrados da política, e da ascensão e domínio dos luzias nas últimas décadas monárquicas.
19
Como aponta Carvalho (op. cit.), por mais que fosse o foco das atenções, o Conselho Pleno se reunia
muito pouco, em média de cinco vezes por ano. Grande parte dos pareceres que influenciavam as decisões
do Imperador eram formulados nas respectivas seções.
20
As quatro seções eram: Justiça e Estrangeiros; Império; Fazenda; Marinha e Guerra.
era símbolo da centralização e concentração de poder no Monarca. Ao longo do
Segundo Reinado, com o Poder Moderador reestabelecido, o Conselho de
Estado consolidar-se-ia como novo locus de formulação de diretrizes e de um
pensamento internacional brasileiro: devido a Pedro II cumprir à risca o que era
apenas uma recomendação da Constituição, esse órgão era sempre convocado
para debater sobre as questões governamentais relevantes, exercendo extrema
influência nas decisões tomadas, com vários pareceres que se tornariam política
de Estado. Sob essa perspectiva que Joaquim Nabuco (1949) se refere ao
Conselho como “cérebro da monarquia”, e José Honório Rodrigues (1973) o
classificava como um “quinto poder”. Sendo assim, o poder de formulação de
políticas e diretrizes para a PE que o Parlamento tinha na Regência (como
ressaltado na subseção 1.2.2) é transmutado para o Conselho.
Dom Pedro II, além de decidir majoritariamente por consultas ao
Conselho, para após os respectivos pareceres exercer o poder Moderador,
buscava garantir a estabilidade política ao alternar entre os dois grupos no poder
e possuir conselheiros de ambos os partidos – mesmo que o Liberal fosse contra
a existência não somente do Conselho, mas também do Poder Moderador. Estes
partidos políticos tinham suas visões e projetos de Brasil bem definidos, e
constantemente traçavam estratégias para alcançar o poder e concretizar esses
planos. Seus eminentes líderes políticos se concentravam no Conselho de
Estado, onde buscavam influenciar o máximo possível as ideias do Imperador,
que escolheria a direção que o país tomaria, e com isso quem comandaria o
Gabinete.
Ou seja, por possuir tamanha importância, o Conselho era o fórum no qual
os expoentes partidários presentes mais tinham chance de influenciar a política,
as convicções e escolhas do Imperador. Desse modo, era comum disputas,
divergências, e debates entre os principais líderes saquaremas e luzias.
Contudo, houve ao longo do Segundo Reinado uma predominância saquarema
na Seção de Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado, conforme cálculos
de Sousa (op. cit., p.213):
Do levantamento estatístico realizado neste trabalho, não nos parece haver
dúvida quanto à considerável preponderância dos próceres saquaremas sobre
a Seção. Entre 1842 – data da primeira consulta – e 1850, período de
acumulação de poder do Estado brasileiro, 93% de todas as relatorias e 83% da
emissão global de pareceres estiveram a cargo de conhecidos nomes do Partido
Conservador. Este percentual continuaria expressivo no período seguinte,
aquele em que o Estado imperial exerceria ativamente o seu poder no Prata.
Entre 1851 e 1876, 62% de todas as relatorias e 65% da participação geral
estiveram em mãos de próceres conservadores, valor consideravelmente
superior ao que se veria entre 1877 e 1889, momento em que o espectro político
do Império é deslocado pela ascendência liberal.
21
Como mostrarei no capítulo três, as diretrizes saquaremas de PE foram bem aceitas, inclusive, pela
sociedade brasileira.
22
Também chamado de “Terceiro Conselho de Estado”. O primeiro foi estabelecido em novembro de 1822
dos Procuradores Gerais das Províncias; e o segundo em 1823, primariamente para escrever a
Constituição, sendo extinto onze anos depois.
Dessa maneira, evidencia-se que a prevalência de determinado grupo
político na composição do Conselho Estado coincidia com a época em que esse
mesmo grupo era dominante no campo das ideias e que conseguia concretizar
seu projeto de Brasil, doméstica e externamente. É possível perceber que a
hegemonia saquarema, até a década de setenta, coincidiu com a consolidação
do poder monárquico, com o momento de fortalecimento do Estado e garantia
da unidade brasileira, aspectos que também eram caros ao Imperador. Este,
após a conclusão desses objetivos, percebeu que o país se encontrava em uma
nova fase em seu processo de evolução institucional, e conferiu maior
proeminência política aos liberais, permitindo uma maior tendência a reformas e
evoluções do regime.
2.4 O contraste entre o pensamento luzia e saquarema no plano
diplomático-institucional
Para além das “vantagens” saquaremas nessas duas instituições, havia uma
incongruência entre objetivos luzias para a PE e o pensamento imperial. Como
exposto na seção 1.4, os liberais entendiam que a liberdade era um direito
intransponível, e que para a garantia de relações pacíficas e prósperas com os
países vizinhos continentais era possível, inclusive, abrir mão de parte do
território, ou permitir presença estrangeira em região pouco povoada, como foi,
por exemplo no caso da abertura do Rio Amazonas. Já o Imperador diferia dos
luzias e concordava com os argumentos do Visconde do Rio Branco:
Li o artigo do Solitário [Tavares Bastos], e concordo inteiramente com que ele
diz sobre a necessidade de olhar seriamente das províncias (sic). Ministros de
ambas as opiniões e pessoas das províncias do Norte sabem de minhas
(opiniões) a tal respeito. Quanto ao Amazonas sempre tive receio dos Estados
Unidos cujas relações suplantariam as de outras potências, e ainda que muito
agrade a doutrina evangélica de Russel entendo que a integridade do Império é
a principal segurança de nossa prosperidade e que portanto cumpre zelá-la
mesmo para bem das províncias. Contudo a abertura do Amazonas a todas as
nações sob certas regras há muito tempo que ocupa minha atenção tendo eu
sempre chamado a atenção dos ministros para o Pará cujas imensas riquezas é
dever aproveitar [...] (Diários de Pedro II, 31/03/1862)
Veio o Paranhos. [...] Falamos da abertura do Amazonas que não pode ser
adiada por muito tempo, convindo tratar de colonizar convenientemente as
margens do rio como há tantos anos recomendo eu. A respeito do comércio de
cabotagem feito por estrangeiros diverge Paranhos inteiramente das ideias do
Solitário [Tavares Bastos] por sólidas razões com que eu concordo. Ele pensa
que os artigos do Solitário são pagos ao Mercantil por interesses dos Estados
Unidos. (Diários de Pedro II, 02/04/1862)
23
Os discursos de Paranhos sobre a PEB, realizados no Parlamento, foram publicados pela FUNAG em
obra organizada por Alvaro da Costa Franco (op. cit.).
da trindade saquarema, foram relatores da matéria, e defenderam a
reorganização da MNE, então comandado pelo conservador Paranhos. Os
luzias, entretanto, principalmente o Visconde de Jequitinhonha, foram contra o
parecer, sob o argumento de que a reforma seria pouco útil, uma vez que o MNE
possuía, afirmava ele, apenas funções políticas, e por isto não deveria ter seção
de Comércio e Negócios Consulares, como a reforma previa. Isto, aponta
Romero (op. cit.), deixa claro o desconhecimento que os luzias possuíam de
diplomacia, haja vista que as chancelarias das maiores potências, por exemplo,
já possuíam seções de comércio á época. Além disso, Jequitinhonha também
expôs sua desinformação quanto aos Relatórios do MNE que eram
apresentados para a Assembleia Geral desde a década de trinta, os quais
sempre apontavam a necessidade da reforma da Secretaria de Estado.
Ou seja, o desconhecimento dos luzias da organização diplomática e a
estreita visão do Internacional por lentes econômicas exemplifica, novamente,
que os saquaremas tinham visão de Brasil que coincidia com a de Pedro II, e
que a PEB do Segundo Reinado foi predominantemente conservadora, uma vez
que os liberais apenas a enxergavam como simples instrumento para cumprir o
‘destino manifesto’ do Brasil ‘republicano’ e americano – não tinham a percepção
do jogo político e só pensavam a partir de interesses puramente econômicos
(vide reclamarem dos custos de tropas permanecerem no Paraguai após a
Guerra da Tríplice Aliança). Já para os saquaremas o serviço diplomático era
parte integrante da nação, e para exercer sua imprescindível função de
resguardar os interesses do grande Império brasileiro, necessitava de crescente
eficiência e organização.
A predominância saquarema está presente também, percebe-se, na
própria história do MNE: grande maioria das reformas administrativas
importantes para a crescente organização e eficácia dos Negócios Estrangeiros
ocorreram por apoio saquarema e com ministros conservadores no comando,
vide as reformas do Visconde do Uruguai e o Regulamento Paranhos de 1859,
que determinou a estrutura organizacional do MNE que permaneceria até o fim
da monarquia24. Tanto Uruguai quanto Rio Branco foram ministros do MNE mais
de uma vez – Paranhos em cinco oportunidades. Os luzias estavam no comando
do Ministério apenas no Regulamento Consular de 1847 e na Reforma João
Silveira de Souza (1868)– ainda assim, Souza ficou no cargo por apenas três
meses, por exemplo. Além da acima retratada falta de conhecimento da atividade
diplomática e da pouca participação na organização do MNE, os luzias
demonstraram não possuir experiência e habilidade em negociações
diplomáticas, exemplificada pela incapacidade na condução do Prata em 1864
de acordo com as diretrizes impostas pelo Gabinete liberal, sendo obrigados a
24
Após o Regulamento Paranhos, houve apenas a Reforma Silveira de Souza (1868), que diminuiu as
despesas do MNE; e o Regulamento Consular Manoel Francisco Correia, que era membro do Partido
Conservador e atualizou aspectos do Código Consular (Castro, op. cit.). Ademais, como dito na introdução
desse capítulo, a hegemonia saquarema no plano institucional será detalhada no capítulo três.
recorrerem ao saquarema Paranhos para resolver as tensões com o Uruguai,
como exposto na subseção 1.2.3.
2.5 Conclusão
Dom Pedro II compartilhava aspectos da visão de Brasil dos conservadores, uma
vez que ambos se consideravam herdeiros da tradição lusitana: o Imperador por
motivos óbvios, por ser herdeiro da Coroa e filho de Pedro I; e os saquaremas
por uma identificação ideológica com o projeto nacional de José Bonifácio. Além
disso, o Imperador teve seu poder constitucional, que lhe permitiu estabilizar o
país, como fruto das ações políticas saquaremas. Esses fatores fizeram com que
o Monarca recorresse aos conservadores nos momentos em que o Brasil mais
sofreu de ameaças externas, a fim de garantir a defesa da unidade territorial,
mesmo ocasionando, com isso, revolta dos luzias.
O predomínio saquarema no Conselho de Estado teve como
consequência a hegemonia conservadora no plano do pensamento internacional
brasileiro, formulando diretrizes e políticas que se tornariam política de Estado a
partir da ótica conservadora. Devido a importância institucional do Conselho, o
momento de domínio no plano das ideias, na Seção dos Negócios Estrangeiros,
era diretamente relacionado com a concretização dos respectivos projetos
partidários para o Brasil no cenário internacional.
Os saquaremas, ao longo do Império, buscaram fortalecer o MNE e
tinham uma maior compreensão da atividade diplomática. Luzias, por sua vez,
não possuíam entendimento comparável e viam a diplomacia apenas como meio
para alcançar benefícios econômicos, pois este era o aspecto primordial pelo
qual buscavam realizar as interpretações que possuíam da esfera internacional.
É necessário, porém, analisar implicações desses fatores e do processo
descrito no capítulo. Havia coincidência de visão do Imperador e dos
conservadores e isso impactou no locus que formulava as ideias e diretrizes
internacionais do Brasil? Sim. Mas a hegemonia saquarema não foi devido a
tendências centralizadoras do filho de Pedro I, em tentativa de compor órgão
auxiliar de seu poder constitucional apenas com políticos que compartilhavam
alguns aspectos de sua visão de mundo.
As medidas descentralizadoras dos luzias foram exatamente as causas
das ameaças territoriais internas que espreitavam o país na década de quarenta.
Ainda, os liberais acreditavam que não era necessário preocupar-se com as
ações de Rosas, muito menos defendiam um conflito bélico. Ademais, os liberais
não apenas eram contra a existência do Conselho de Estado e do Poder
Moderador, mas no mesmo ano da formação do Conselho de Estado do
Segundo Reinado líderes do partido liberal realizaram revoltas em São Paulo e
Minas Gerais que lhe garantiriam o apelido de “luzias”. Outrossim , a concepção
que expoentes liberais possuíam de diplomacia era completamente estreita,
além do relativo desconhecimento dos anseios do MNE por maior organização
administrativa. Esta instituição cresceu em eficiência majoritariamente pelo apoio
saquarema: alguns liberais defendiam a redução do corpo diplomático, que
acusavam de ser ineficientes e excessivamente despendiosos.
Ou seja, os saquaremas demonstraram-se, pelos acontecimentos
concretos do período, mais adequados ao contexto de instabilidade que o país
vivia no Segundo Reinado, haja vista que preocupavam-se com unidade
territorial e mostraram, ao longo dos anos, maior competência no gerenciamento
das atividades diplomáticas.
Pelo exposto na seção 2.2, se há algo que a composição do Conselho de
Estado ao longo do Segundo Reinado deixa claro é a leitura e sintonia do
Imperador com os respectivos momentos políticos em que vivia o país e as
necessidades da nação em cada época: quando as ideias saquaremas eram
dominantes e o país enfrentava risco de desintegração territorial, o Conselho foi
predominantemente saquarema; quando as propostas luzias ganharam espaço
e a Monarquia dava sinais de que necessitava de reformas, o Conselho era
majoritariamente luzia.
Os problemas e fatores que ocasionaram a queda da Monarquia não
foram, portanto, relacionados aos aspectos apontados nesse capítulo: a
monarquia não deixou de existir devido a uma possível predileção de Pedro II
pelos saquaremas. Como exposto no capítulo anterior, as reformas que
ocorreram no país não necessitavam de uma mudança para a República, que
ocorreu devido a perda da base de apoio político do Trono, para atender a
interesses de uma oligarquia patrimonialista e com influências da ideologia
positivista.
Esse capítulo buscou identificar e explicar os principais fatores que
levaram a hegemonia do paradigma saquarema na PE do Segundo Reinado. Em
seguida, buscar-se-á expor como essa hegemonia se concretizava na prática,
na dinâmica institucional, analisando o papel de cada uma das instituições e dos
eminentes políticos que as comandaram.
3. O exercício institucional da hegemonia
3.1 Introdução
Nos capítulos precedentes, foi identificado o predomínio do paradigma
saquarema na PEB e explicado os motivos dessa prevalência. O objetivo geral
desse capítulo é expor como funcionava, institucionalmente, essa hegemonia
conservadora: o papel dos principais órgãos e dos líderes políticos que
participavam da PE. A proposta é entender quem estava no comando dessas
instituições, expondo como os indivíduos possuíam uma herança intelectual e
transpuseram isso para a dinâmica institucional.
Para sistematizar essas informações utilizarei, grosso modo, dos três
níveis de análises propostos por Kenneth Waltz em sua clássica tese de
doutorado Men, the State and War (1959). De acordo com o precursor do
Realismo Estrutural, todas as teorias que visavam explicar a guerra, objeto de
estudo primordial da disciplina de Relações Internacionais, o faziam por meio de
três categorias explicativas. A primeira seria sobre o indivíduo, buscando em
suas convicções, personalidades, objetivos políticos e de poder os motivos para
a ocorrência de lutas. Na segunda imagem trata-se das políticas de Estado, e
das escolhas políticas, sociais e econômicas que levam ao estopim de um
conflito. Já o terceiro nível se refere ao Sistema Internacional, no qual o estado
de anarquia internacional faziam com que os Estados-nação estivessem
vulneráveis a possíveis desequilíbrios na balança de poder, que poderiam
culminar em combates bélicos.
Seguindo essa linha de pensamento, inverti a pirâmide de Waltz, e além
dessa introdução e de uma conclusão, dividi os capítulos em três objetivos
específicos: a primeira seção, pela ótica sistêmica, buscará expor as
transformações ocorridas no arranjo institucional da PEB ao longo do Império; a
segunda expõe a continuidade nas políticas de projeção externa do Estado
comandado por Pedro II; e a terceira tratará dos indivíduos que contribuíram para
o domínio e perpetuação do paradigma saquarema.
3.2 Do sistema institucional
Nessa seção, discorro sobre as funções e transformações dos papéis ocorridos
nos seis atores analisados ao longo do período. O Trono, Conselho de Estado e
MNE serão analisados por aspectos distintos, pontos complementares aos que
foram mencionados no capítulo dois.
Em relação a Pedro II, é notável o contraste entre sua maneira de
governança e o de Pedro I. Este, como sabe-se, possuía estilo de governo mais
centralizador, dissolveu o Parlamento, tomava decisões de maneira autônoma,
e poderia contrariar o que era entendido como interesse nacional pelo Legislativo
ou pelo Conselho de Estado. Seu herdeiro, por sua vez, possuía um elevado
senso de respeito aos trâmites institucionais: tomava decisões a partir de
ponderações do Conselho de Estado e demais agentes políticos; a imprensa foi
absolutamente livre25 ao longo de todo o Segundo Reinado; e buscava respeitar
a res publica, por exemplo ao recusar ajuda financeira quando de seu exílio
decorrente do Golpe de 1889, afirmando que não havia aprovação do
Parlamento para essa remessa de dinheiro. Especificamente no que diz respeito
a PE, Pedro I, como detalhado na subseção 1.2.1, preocupou-se com assuntos
do trono português e tomou medidas que posteriormente prejudicariam o país,
como na assinatura dos tratados desiguais. Já Pedro II defendeu sempre o que
acreditava como interesse do Estado brasileiro:
[...] é fundamental atribuir-lhe papel ativo na formulação diplomática. Exercia
ativamente a “suprema inspeção” sobre assuntos externos, convocando e
pessoalmente tomando notas da opinião de ministros e conselheiros de estado
da seção de assuntos estrangeiros. Abundam notas e uma vastíssima
bibliografia epistolar trocada entre Sua Majestade e os agentes diplomáticos,
desde assuntos triviais, como data e hora da partida de navios ao estrangeiro,
até os mais sérios, como opiniões e aconselhamentos sobre matérias sensíveis.
(Sousa, 2017, p.212)
25 Como aponta Xavier (2013), em instruções para a princesa Isabel antes de viajar para a Europa, Pedro
II defendeu a liberdade de imprensa: Entendo que se deve permitir toda a liberdade nestas manifestações
da imprensa e de qualquer outro meio de exprimir opiniões, quando não se dêem perturbações da
tranqüilidade pública, pois as doutrinas expendidas nessas manifestações pacíficas, ou se combatem por
seu excesso ou por meios semelhantes, menos no excesso. Os ataques ao Imperador, quando ele tem
consciência de haver procurado proceder bem, não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo
ou desabafo partidário”.
Marquês do Paraná e Visconde de Maranguape - relatariam 202 consultas de
um total de 391, cifra que corresponde a 52% do total. Somados às participações
de Eusébio de Queirós, Viscondes de Jaguari e Niterói, e, aos Marqueses de
São Vicente e Monte Alegre, juntos, os conhecidos próceres conservadores
representaram 67% da participação total. (Sousa, op. cit., p.213-4)
26
Para detalhes sobre a história administrativa do MNE, ver Castro (2009) e Romero (2019).
Neste ponto, vale citar o argumento de Mattos (1987). Segundo o autor,
as casas parlamentares, ao fazer com que os acontecimentos adquirissem
caráter político e informando a opinião pública, representariam as paixões
partidárias, relacionadas com interesses de curto prazo e das regiões
específicas as quais os respectivos deputados e senadores representassem. Por
sua vez, o Conselho de Estado e o Imperador significavam o mínimo de política
e a racionalização dos interesses nacionais, da formulação de diretrizes públicas
segundo a raison d’etat. Ou seja, havia uma distinção de papéis entre as
instituições que participavam da PEB, com os interesses de Estado, a longo
prazo, guiando a formulação de diretrizes pelo Conselho, enquanto o Poder
Legislativo representava os interesses imediatos de determinados setores da
sociedade.
Pedro II, para aprovar uma legislação ou medida em específico, não raro
trocava o Gabinete ou dissolvia o Parlamento, ou mesmo convocava políticos de
sua confiança, como em 1871 com José Maria da Silva Paranhos, quando
incumbiu-lhe da aprovação do que tornar-se-ia a Lei do Ventre Livre e partiu em
sua primeira viagem para o exterior. Em vista disso, é possível entender o
argumento de que ao longo do Segundo Reinado os partidos políticos foram
gradativamente enfraquecendo e perdendo força, uma vez que as escolhas de
27
Em 1860, foi criado o sétimo ministério, a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas.
quem exerceria o poder Executivo cabia apenas ao Monarca. Houve importantes
momentos de crise política a partir da escolha pessoal do Imperador, como nas
já analisadas reclamações luzias de 1848 e 1868.
28
Nesse sentido, o jornal “O Jequitinhonha”, relacionado com liberais históricos da revolta de 1842 como
Teófilo Ottoni e Joaquim Felício dos Santos, é exemplo da reação liberal contra a Guerra da Tríplice Aliança.
Para detalhes, ver Reis (2014).
Suponha o nobre senador, falo sempre em hipótese, suponha que o governador
de Buenos Aires se apoderava do Estado Oriental; suponha que se apoderava
do Paraguai; a Confederação Argentina, apesar do estado de debilidade em que
a julga o nobre senador, pode pôr em pé um exército de 20 a 30.000 homens.
[...] Apoderando-se também do Paraguai, poderia tirar dele uns 20.000 bons
soldados, robustos, obedientes e sóbrios. Isto em países acostumados à guerra,
que não têm os hábitos industriais e pacíficos que nós temos. Absorvidas as
repúblicas do Uruguai e do Paraguai, que cobrem as nossas fronteiras na
Confederação Argentina, ficariam abertas as nossas províncias de Mato Grosso,
São Paulo e Rio Grande do Sul. Ficaríamos assim muito seguros? E quem nos
diz que não se nos viria então exigir a execução do tratado de 1777 29? [...] Ora,
aquele tratado nulo e caduco nos arrancaria uma extensa e importantíssima
parte da província do Rio Grande do Sul, que sempre possuímos, e da qual
atualmente estamos da posse. Por ele perderíamos uma parte importante da
província de Mato Grosso, que compreende a sua capital, ficando a província e
a navegação de seus rios completamente aberta. Deixaríamos nós, deixar-se
iam as populações dessas províncias, aventadas assim as questões de limites,
separar para irem pertencer a uma nação com origem, língua e hábitos
inteiramente diversos? Semelhantes questões de limites que ainda não estão
resolvidas não tornariam inevitável uma guerra, com um vizinho que absorvendo
nacionalidades que temos reconhecido teria aumentado extraordinariamente o
seu poder, e adquirido proporções gigantescas? [...] Se ela [a Ingleterra] quiser
aconselhar o governador de Buenos Aires, se conseguir levá-lo a adotar um
procedimento mais razoável, muito o estimaremos; não havemos de ser nós que
havemos de embaraçar uma solução pacífica e completa dos negócios do Rio
da Prata; mas não há de ser um governo hamado pérfido e inimigo asqueroso
da América, que tem visto repelidas todas as suas tentativas para uma solução
pacífica, que há de ir pedir a um terceiro que o leve à presença do governador
de Buenos Aires para tentar novos arranjos. Já declaramos alguma vez que
recusávamos os meios pacíficos? Não; mas com segurança. (Apoiados.) Todo
o passado nos está gritando aos ouvidos: "Acautelai-vos, procurai garantias,
procurai seguranças para o futuro." (Anais do Senado, 24/05/1851)
29
O Tratado de Santo Ildefonso fora decorrente das derrotas do Império Português em conflitos
capitaneados pelo Marquês de Pombal, e diminuia o espaço territorial brasileiro.
“triunfos da paz”, mas que as intervenções “são necessidades a que nem sempre
os governos se podem recusar”. Ainda assim, após a vitória em 1852, recordou
Paranhos, o Brasil retirou-se de território estrangeiro: “não quisemos tomar a
menor parte na organização interna da Confederação Argentina e do mesmo
modo procedemos para com o Estado Oriental do Uruguai”. Mesmo anos depois
da morte de Solano López, em 1886, o então Ministro dos Estrangeiros, Barão
de Cotegipe, um dos líderes saquaremas, defendia que não se insistisse na
cobrança de dívidas paraguaias, “ante a absoluta falta de recursos, ante a
necessidade de manter boas relações com aquele Estado e ante a disposição
de não recorrer a qualquer tipo de ação coercitiva.” (Cervo, 1992, p.142).
Não obstante, os saquaremas também construíram consenso teórico e
prático sobre o uti possidetis nas negociações limítrofes com seus vizinhos. Em
1851, durante o Gabinete da trindade saquarema, Duarte da Ponte Ribeiro
concretizava o primeiro tratado deste tipo com o Peru. O alcance da aprovação
na utilização desse princípio e sua consolidação como política de Estado, que
inclusive será reutilizada pelo Barão do Rio Branco no século seguinte, é mais
um exemplo que corrobora a “satisfação territorial” dos conservadores e do
Império, que apenas queriam sustentar as terras historicamente ocupadas pelo
Brasil – manter-se-ia, via de regra, a posse do território com as nações que já
historicamente habitavam a respectiva região disputada. O trabalho de Ponte
Ribeiro era tão importante que o próprio Paulino redigiu as orientações, perfeito
exemplo do que consolidar-se-ia como a doutrina de limites brasileira:
Em uma palavra, empregue V. S. todos os meios ao seu alcance para pô-las do
nosso lado e contra Rosas. [...] Deseja [o Governo Imperial] promover relações
comerciais com os Estados conterrâneos, facilitar o desenvolvimento recíproco,
para eles e para o Brasil, da sua população, comércio e riqueza e, por isso, em
lugar de trancar os rios que podem ser um poderoso instrumento para o aumento
da população e riqueza – como faz Rosas no rio da Prata –, não duvida,
mediante convenções adequadas e talvez os regulamentos fiscais e de polícia,
conceder aos outros Estados americanos a faculdade de descer seus rios até o
oceano para fins de comércio. [...] conclua um tratado de limites com Bolívia [...]
incluindo nele o reconhecimento do princípio uti possidetis [...] Quanto aos limites
com o Peru, V. S. se limitará a conservar o reconhecimento do uti possidetis
reconhecido no tratado não ratificado de 1841 [...] O que nestas instruções fica
dito, quanto a tratados de comércio pela fronteira, navegação, direitos e
extradição, com as repúblicas de Bolívia e Peru, milita para com as outras. (apud
CHDD, 2004)
Por meio da defesa contínua desses pontos, após 1876 aspectos que os
conservadores entendiam como imprescindíveis ao país concretizaram-se por
meio da ação deles, tornando-se tradição político-diplomática. O paradigma
saquarema de política externa tornou-se bem quisto:
Nas décadas de 1850 e 1860, o projeto saquarema de construção estatal e de
política externa seria amplamente aceito pela sociedade política imperial.
Vitoriosa em todas as pelejas pelo Prata, essa forma de ver o mundo seria a que
mais influenciaria os agentes estatais de seu tempo, mediante a cristalização de
ideias-base em forma de tradição político-diplomática. (Sousa, 2013, p.60)
30
Esta lei será pormenorizada a seguir.
31
Que mudou para o nome de “Diretor-Geral” com a Reforma Rio Branco de 1859 e contemporaneamente
é o “Secretário-Geral”.
brasileiras. Devido as suas respectivas trajetórias políticas e relações pessoais
entre si, as pessoas analisadas possuíam uma herança intelectual e
estabeleceram uma tradição diplomática brasileira, da qual muito aproveitou-se,
posteriormente, o Barão do Rio Branco.
Em primeiro lugar, apresentar-se-á breve panorama sobre o
conservadorismo brasileiro. Na obra Os construtores do Império – ideais e lutas
do Partido Conservador Brasileiro (2017), João Camilo de Oliveira Torres define
o conservadorismo:
é uma posição política que reconhece que a existência das comunidades está
sujeita a determinadas condições e que as mudanças sociais, para serem justas
e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro.
Podemos dizer que o traço mais característico da psicologia conservadora
consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações
e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica - mais: o conservador
acha impraticáveis e condenadas ao suicídio todas as reformas fundadas
unicamente na vontade humana, sem respeito às condições preexistentes.
Podemos reformar - por meio de um processo de cautelosa adaptação do
existente às novas condições - nunca o estabelecimento de algo radicalmente
novo. (Torres, op. cit., p.23)
32
Publicado pelo CHDD em 2009.
Nabuco de Araújo33. Essas tradições de pensamento serão detalhadas na
Conclusão, e neste momento é necessário apenas esclarecer que, apesar da
existência de um projeto luzia para a PE por parte desses e de outros políticos,
deve-se reconhecer que esses liberais foram relativamente menos significantes
para a PE do período do que os saquaremas acima citados, haja vista a maneira
com que manuais introdutórios de PE, por exemplo, citam Uruguai e Rio Branco
como os maiores responsáveis pela atuação externa imperial. Por motivos já
abordados, os luzias não tiveram uma continuidade no poder, e portanto um
legado menos concreto no que diz respeito ao Segundo Reinado e as relações
internacionais brasileiras.
3.5 Conclusão
Em relação ao sistema institucional, Pedro I foi um monarca centralizador, que
pouco espaço fornecia para debates sobre objetivos e ações concretas de sua
diplomacia, tornando impossível, após alguns anos, conciliar seus interesses
particulares e as demandas do país. Já sob o comando de Pedro II, o Trono
caracterizou-se pelo respeito a coisa pública e às regras e recomendações
constitucionais, conduzindo o Estado brasileiro de acordo com os anseios e
necessidades da época. O Imperador atuou como principal condutor da projeção
internacional brasileira, supervisionando sempre os trabalhos dos ministros e em
constante contato com funcionários e enviados extraordinários ao exterior. A
Coroa esteve, também, em estreita relação com as demais instituições para
decidir sobre as políticas adotadas, e buscava garantir a continuidade das
tradições estabelecidas com o passar do tempo.
Por seu turno, o Conselho de Estado era pouco atuante no Primeiro
Reinado, mas em sua terceira formação influenciou diretamente na formulação
de diretrizes diplomáticas, sendo o local no qual se concentrava os grandes
estadistas brasileiros, e até meados da década de setenta era de prevalência
conservadora. O MNE manteve seu papel relativamente constante ao longo do
Império, ao servir como simples instrumento de implementação das políticas
discutidas no Conselho e determinadas pelo Imperador, mas foi crescentemente
adquirindo um corpo burocrático e caráter profissional, especializado – devido,
principalmente, aos incentivos dos saquaremas, que forneceram gradativamente
maior eficiência ao serviço externo. É importante destacar, ainda, que o corpo
diplomático, ao longo de todo o século, por mais que houvesse cargos com
objetivos de estabelecer certa continuidade dos trabalhos, esteve sujeito aos
“ventos políticos”, a mudanças de Gabinete, uma vez que era comandado por
políticos, que uma vez no comando buscariam cumprir os projetos de seu
respectivo partido para a PE.
Não obstante, o Parlamento nacional, na ausência de papel na década de
vinte, dedicou-se à denúncia dos tratados desiguais, para na Regência tornar-se
o principal fórum de debates e de propostas para as relações internacionais
brasileiras. Após a Maioridade, deixa de ser protagonista na formulação de PE
33
Para detalhes, ver Rosi (2016).
para voltar a atuar como fiscalizador das ações governamentais, além de servir
como casa da disputa política entre as duas ideologias predominantes naqueles
anos. O cargo de Presidente do Conselho de Ministros, responsável por montar
e reger os Gabinetes do Império, foi criado já quase na década de cinquenta, e
aplicava as diretrizes impostas pelo Imperador, que haviam sido discutidas e
elaboradas principalmente pelo Conselho de Estado. Normalmente havia pouca
margem de manobra aos políticos nesse cargo, mas os principais estadistas que
conquistaram a confiança e admiração de Pedro II, como o “senhor Paulino” 34 e
Paranhos, conduziam seus trabalhos segundo a grande autoridade e
reconhecimento que possuíam, com maior liberdade para atuação.
As disputas que culminavam em alternância de Gabinetes ocorria por
meio dos partidos conservadores e liberais, cujos projetos de Brasil e constante
busca para fazer com que o Imperador concretizasse suas respectivas visões
permeiam todas as análises desse trabalho. Quando do governo de Pedro I,
houve a divisão entre grupos que realizaram a defesa incondicional do Monarca
e de políticos concentrados na Câmara, que realizaram ataques aos tratados
desiguais, por exemplo. Na Regência evidenciar-se-iam diferentes concepções
e projetos para o Brasil, com uma divergência (na época entre “progressistas” e
“regressistas”) que consolidou-se em princípios do Segundo Reinado e
formalizou-se em dois paradigmas de PE, com uma hegemonia saquarema no
Império.
Seguindo esse raciocínio, houve continuidade dos princípios elaborados
pelos saquaremas nas políticas imperiais, como: a não assinatura de novos
tratados comerciais; a desconfiança, em meio ao contexto do Imperialismo, de
todas as nações, buscando conter principalmente anseios expansionistas
argentinos; a defesa da intransigência territorial brasileira, que devia ser
defendida principalmente por mecanismos diplomáticos, mas por guerras se
necessário; e as negociações fronteiriças a partir do princípio do uti possidetis.
Tais políticas se concretizaram pelas defesas delas no Conselho, e devido a alta
eficiência perpetuaram-se pelas gerações subsequentes de estadistas imperiais,
tornando-se política de Estado, tradições político-diplomáticas.
Nesse sentido, determinados agentes políticos foram essenciais para
consolidar e manter a projeção externa brasileira pela ótica saquarema.
Bernardo Vasconcelos foi o principal responsável por estabelecer o
conservadorismo brasileiro, além de criticar decisões de PE autoritárias ou não
realizadas de acordo com interesse nacional. Paulino Souza criou as diretrizes
do paradigma saquarema, responsáveis por atender as demandas brasileiras da
época e resolver grande parte dos desafios que o Brasil enfrentava no âmbito
internacional. José Paranhos consolidou a doutrina do Visconde do Uruguai de
maneira que, ao (por exemplo) garantir a independência paraguaia e uma ordem
favorável ao Império, tornaram-se políticas públicas incontornáveis. Já o
diplomata Visconde de Cabo Frio, no papel de funcionário devoto, com setenta
anos de serviços prestados ao MNE, foi responsável por manter essas tradições
34
Segundo José Murilo de Carvalho (2002), maneira pela qual Pedro II se referia ao Visconde do Uruguai.
que ele próprio havia presenciado serem construídas, mantendo uma
organização e continuidade dos Negócios Estrangeiros pelo menos até o
momento em que o Barão do Rio Branco, filho do Visconde do Rio Branco,
assumiu a pasta.
Conclusão
Essa Conclusão está dividida em três partes. Na primeira, realizo síntese dos
argumentos e conclusões de cada capítulo. Em seguida, trato das principais
contribuições da PE do Segundo Reinado para o processo de constituição
histórica da PEB. Já na terceira parte busco interpretar, a partir do legado das
relações exteriores imperiais, os acontecimentos diplomáticos da Primeira
República; além de pensar as matrizes teóricas das relações internacionais
brasileiras a partir da noção de tradições de pensamento internacional.
I
Essa monografia, diante da narrativa exposta na Introdução, a qual argumenta
que a concepção da “diplomacia moderna” brasileira ocorreu a partir da figura do
Barão do Rio Branco, o que tem como consequência a pouca atenção a PE do
Império no geral e a dinâmica institucional do período em específico, buscou
entender: como ocorreu o processo de concepção da Política Externa Brasileira
no Segundo Reinado? Quais os principais agentes, atores e instituições
envolvidas na sua formulação e aplicação? Nossa hipótese era de que a
evolução histórica da PEB foi um processo muito mais complexo do que a
narrativa do Barão como patrono e fundador de supostos princípios da
diplomacia da nação permite-nos enxergar; de que já havia uma PEB articulada
antes do Barão, que padecia de pouco detalhamento. Seguindo esse propósito,
nosso objetivo geral foi explicar o processo de construção e desenvolvimento da
PE do Segundo Reinado a partir de sua dinâmica político-institucional, para
identificar as contribuições do Segundo Reinado para o processo de constituição
histórica da PEB.
O primeiro objetivo em específico era descrever a formação e principais
características dos paradigmas saquarema e luzia de PEB. Assim, no Primeiro
Reinado formou-se o que viria a ser o projeto conservador, e na Regência os
liberais se opuseram a esta interpretação, surgindo a visão na qual os luzias se
inspirariam, e com posterior divisão entre “regressistas” e “progressistas”. Esta
polarização foi característica do Segundo Reinado, no qual os saquaremas
consolidaram a ordem interna na primeira metade do século, para em seguida
garantir os interesses brasileiros no cenário internacional. Na década de
sessenta houve um ressurgimento luzia, que culminou em domínio destes da
esfera política nas últimas décadas do regime. O paradigma saquarema
baseava-se no tripé Ordem-Centralização-Estadocentrismo, e entendia como
primordial a defesa da intangibilidade do território nacional; enquanto luzias
guiavam suas decisões a partir da Liberdade-Federação-Sociocentrismo,
sempre buscando boas relações (e vantagens econômicas) com os vizinhos e
uma descentralização do poder.
O segundo intuito em específico foi identificar os motivos do projeto
saquarema ter prevalecido. Isto ocorre primordialmente por conservadores e o
Imperador compartilharem de projeto para o Brasil que originalmente era lusitano
(defensor da integridade territorial), além da prevalência dos saquaremas no
Conselho de Estado, órgão formulador das diretrizes diplomáticas do Segundo
Reinado. Todavia, essa predominância não ocorreu por pura preferência de
Pedro II ao conservadorismo, mas porque este grupo, além de ter maior
conhecimento e ter defendido um fortalecimento do serviço diplomático
brasileiro, demonstrou-se o mais adequado no contexto de instabilidade que o
país vivia na década de quarenta, enquanto os liberais provocavam revoltas. Em
certo sentido, a hegemonia saquarema foi consequência direta das medidas que
os progressistas adotaram quando eram dominantes na Regência, haja vista que
foram decorrentes das políticas descentralizadoras que ocasionaram o contexto
de ameaça territorial, o que por sua vez fez com que o Monarca tivesse
predileção pelos saquaremas (defensores da unidade nacional) nessa época.
Por seu turno, o terceiro propósito específico tratava de expor como
funcionava, institucionalmente, esse projeto: o papel dos principais órgãos e
estadistas que participavam da PEB. A formulação da PE ficava dividida,
precipuamente, entre Imperador, Conselho e Parlamento, sendo os dois
primeiros os protagonistas do Segundo Reinado, com diretrizes de acordo com
a raison d’etat, sendo Senado e Câmara o locus das disputas políticas. Em
momentos excepcionais, o político a cargo do Gabinete possuía vasta influência,
como no caso de Uruguai e Rio Branco, mas via de regra o Presidente do
Conselho de Ministros se esforçava para implementar os desejos do Imperador.
Já o MNE nunca era protagonista, mas utilizado como instrumento, assistente
do jogo político apenas – o executor das ordens, sujeito aos “ventos políticos”.
Houve também uma estabilidade na defesa de políticas como a não negociação
de tratados e acordos comerciais com potências, e da utilização de princípios
como o uti possidetis para a negociação dos limites brasileiros. Para que
continuidades como essas fossem possíveis, foi imprescindível a participação e
envolvimento de eminentes indivíduos. Dentre eles, Bernardo Vasconcelos foi o
responsável por estabelecer o conservadorismo brasileiro, além de criticar
decisões no plano externo que fossem autoritárias e não realizadas de acordo
com interesses nacionais; Visconde do Uruguai criou as diretrizes do paradigma
saquarema responsáveis por atender as demandas brasileiras da época; Rio
Branco as consolidou de maneira que se tornaram política de Estado; e Cabo
Frio, como funcionário devoto, foi responsável por manter essas tradições
político-diplomáticas pelo menos até momento em que o Barão de Rio Branco
tornou-se chanceler.
II
Ao longo de toda a história nacional, a diplomacia foi instrumento essencial para
o desenvolvimento da nação. Mesmo antes de ser um país independente, foi
necessário a atuação de indivíduos como Alexandre de Gusmão para defender
as terras ocupadas por portugueses. Como aponta Goes Filho, Navegantes,
Bandeirantes e Diplomatas (2015), desde o tempo colonial, atuaram para formar
os limites do Brasil. Contudo, após 1822 o papel da atividade diplomática só fez
crescer, uma vez que era necessário garantir a integridade do território que havia
sido assegurado pelo Tratado de Madri (1750); isto em meio ao Imperialismo das
grandes potências, revoluções caudilhas, fragmentações dos países vizinhos, e
avanços expansionistas de ditadores como Rosas e López. Os conflitos militares
ocorreram, muitas vezes, como parte de estratégia do Gabinete e do Ministro
dos Estrangeiros – literalmente, a guerra era a continuação da diplomacia por
outros meios. Perante tais desafios, os principais estadistas se ocuparam das
relações internacionais do incipiente Estado, que possuía grande impacto na
política do país, capaz de ocasionar grandes crises, ou glórias para quem
garantisse a concretização dos objetivos definidos pelo Monarca, com auxílio
dos demais órgãos.
Ao longo desse trabalho, argumentei que da mesma forma que no plano
interno é consenso historiográfico que o projeto saquarema se corroborou
vitorioso no Segundo Reinado a partir de demonstrações práticas e de
acontecimentos como as revoltas regenciais, o paradigma de PE saquarema
também se mostrou mais adaptado ao contexto da realidade da época, do século
XIX marcado pelo Imperialismo, com um Brasil recém independente, fragilizado
e sem fronteiras definidas. O Segundo Reinado foi período de consolidação do
Estado brasileiro no plano interno e externo, por meio das ações do Partido
Conservador, com seus principais líderes sendo os grandes protagonistas
políticos da época35. Há de se notar, inclusive, que após o domínio da cena
política pelos luzias o sistema monárquico perdeu força, e as forças
revolucionárias gradativamente fortaleceram-se, culminando no Golpe de 1889.
O pensamento político conservador ascenderia gradativamente, a partir do
movimento regressista, ao ponto de tornar-se o paradigma dominante na
construção institucional do Segundo Reinado. Do ponto de vista da história das
ideias, a emergência, consolidação e declínio do pensamento político
conservador coincidem com o desenvolvimento do próprio Estado monárquico
(Sousa, 2017, p. 82)
35
Por outro lado, seguindo João Camilo de Oliveira Torres, vale ressaltar que os debates político-
intelectuais do Império eram de altíssimo nível, com grandes pensadores e estadistas luzias. O autor, que
escreveu na segunda metade da década de sessenta, faz um paralelo com os líderes políticos de seu
tempo, no que conclui que houve uma decadência da cultura brasileira no século XX.
conflitos, os conservadores estabeleceram ordem favorável ao país no Prata.
Perdurou, mesmo após a consolidação fronteiriça, a desconfiança e prudência
em relação a todas as nações do globo. Conforme ver-se-á abaixo, o Barão do
Rio Branco, décadas depois, irá retomar vários desses aspectos.
Ademais, a literatura normalmente aponta que foi na Primeira República,
após conflitos bélicos do Império como a Guerra do Paraguai, momento de
“exceção hobbesiana”, que crenças como o pacifismo, a não-intervenção, e a
defesa da autodeterminação dos povos se tornaram constantes na PEB. Neste
sentido, entendo que princípios da PEB acima citados remontam justamente ao
momento áureo do Segundo Reinado, das vitórias brasileiras em conflitos; uma
vez que foi a partir das atitudes dos líderes políticos da época que foi possível
estabelecer a paz para o Brasil, e com isso a defesa desses princípios. Em meio
ao Imperialismo do século XIX, entre as décadas de cinquenta e setenta, quando
o Império subjugou em distintas oportunidades todos os países da Bacia do
Prata, seria muito natural, e relativamente fácil, expandir as fronteiras
tupiniquins, anexar terras historicamente ocupadas por outros povos, outras
culturas. Os Império, contudo, não o fez. Como disse o Visconde do Uruguai em
1851:
Senhores, nós, e louvores sejam dados a todas as administrações passadas por
isso, nunca tivemos vistas ambiciosas. (Apoiados) Contentamo-nos com a
imensidade do nosso território, com os recursos e riquezas naturais que Deus
lhe deu, e que só esperam a ação da indústria para fazer a nossa felicidade. Não
temos a ambição de conquistas, e de aquisições territoriais, nem a podemos ter.
Mas se não pretendemos engrandecer-nos à custa de outras nacionalidades,
não devemos querer que à custa dessas, outras que até agora têm mostrado
para conosco vistas e disposições tão pouco pacíficas, se engrandeçam, e se
habilitem para nos incomodar seriamente para o futuro. [...] Não temos vistas
ambiciosas, o que desejamos é que os negócios do Rio da Prata se arranjem de
modo que tenhamos seguranças para o futuro. Não é possível que estejam
constantemente a repetir-se os sacrifícios que tem feito o Império com a
província do Rio Grande do Sul. Não é possível estar sempre de arma ao ombro
e preparado, convém procurar alguma solução que nos dê seguranças e
garantias para o diante, a fim de que desembaraçados possamos cuidar e aplicar
os nossos recursos aos melhoramentos internos que o país reclama. (Anais do
Senado, 24/05/1851)
36
Vale mencionar que o Visconde possuía formação em Ciências Exatas, mas desbrava-se sobre assuntos
legais, nos pareceres, com facilidade.
Depreende-se disto que a tradição da diplomacia brasileira de
conhecimento e adesão aos princípios do Direito Internacional também não
surgiu na Primeira República. Não foi uma prerrogativa estabelecida pelo Barão
do Rio Branco, haja vista que seu próprio pai já defendia isso décadas antes.
Para uma nação fraca como o Brasil, num mundo de poucos agentes
internacionais, o do século XIX, porém de vínculos sempre mais intensos entre
as nações, abrir espaço era uma dificuldade gigantesca. As vias da força e da
concorrência, que comandavam a política externa das potências dominantes
eram-lhe inacessíveis. Escolheu, pois, a do direito, com todas as limitações que
comporta, tão bem conhecidas pelos cientistas políticos. O direito contra a força,
eis a concepção das relações fraco-forte, desenvolvida pelo pensamento político
brasileiro no século XIX. (Barrio, op. cit., p.206, grifo meu)
37
Vale deixar claro, entretanto, que não busco estabelecer um marco zero, afirmar que a diplomacia
brasileira foi criada no período estudado. Não é possível afirmar que aspectos como princípios e tradições
simplesmente surgiram, do nada, em poucos anos. Pelo contrário: entendo que a constituição da diplomacia
brasileira é fruto de longo e complexo processo de evolução histórica, no qual cada época fornece uma
contribuição, que pode ser aproveitada pelos agentes políticos posteriores. Deve-se levar em conta, por
exemplo, o papel e legado teórico-prático de indivíduos como Alexandre de Gusmão e José Bonifácio, o
que devido a limitação de tempo e de espaço dessa monografia, não foi possível abarcar.
Ademais, ao contrário do absoluto consenso que atualmente reina sobre
as escolhas diplomáticas do Barão, trabalhos como o de Vedoveli (2010), Sousa
(2013) e Rosi (2016) deixam claro que Juca Paranhos e seu “americanismo
pragmático” não eram, nem mesmo na Primeira República, uma unanimidade
entre a elite diplomática brasileira. Joaquim Nabuco e Manoel de Oliveira Lima,
por exemplo, discordavam das políticas adotadas por Paranhos Júnior. O
primeiro era filho do expoente liberal Joaquim Tomás Nabuco de Araújo, e
defendeu diretrizes luzias para a PE enquanto embaixador em Washington, no
que muitos classificam como “alinhamento ideológico” com os estadunidenses.
Já Oliveira Lima defendia um outro aspecto do paradigma imperial luzia:
condenava o “imperialismo norte-americano” e defendia substancial
aproximação dos vizinhos latino-americanos.
Assim sendo, a formação do que chamam de paradigma americanista (e
de vertentes teóricas opostas a ela) ocorre por meio da ressignificação que as
personagens acima fazem do pensamento internacional do Segundo Reinado,
interpretando suas principais características e adaptando-as ao contexto em que
viviam. Os protagonistas da PE de princípios do século XX eram ex-membros da
política monárquica, expoentes e herdeiros intelectuais, cada um à sua maneira,
dos paradigmas saquaremas e luzias de PE.
Por meio dessa linha de pensamento, faz sentido, portanto, não apenas
pensar em paradigmas saquaremas e luzias, mas em duas tradições de
pensamento internacional brasileiro construídas ao longo do século XIX, que
foram ressignificadas e renovadas de acordo com preocupações e
constrangimentos de cada época posterior, de acordo com o contexto e
interpretações dos agentes políticos das necessidades do país no cenário
externo.
Ao longo do século XIX, crenças e valores foram sendo construídos pelas elites
luzia e saquarema no processo de interação política. Do diálogo, choque e
disputa entre os agentes envolvidos na discussão do Estado, muitas das ideias
base contidas nos dois paradigmas de política externa se cristalizariam no
formato de tradição político-diplomática, espécie de estrutura cognitiva que
incidiria sobre os agentes da posteridade (Sousa, 2013, p.62)
[...] embora não haja uma continuidade orgânica entre Frei Caneca e Diogo
Feijó, nota-se alguma semelhança entre o pensamento político do
pernambucano e do paulista. De forma semelhante, os luzias que surgiram na
década de 1840 mantiveram algumas destas características, que seriam
recobradas também por Tavares Bastos, Nabuco de Araújo e Joaquim Nabuco.
(Rosi, op. cit., p. 222)
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