Você está na página 1de 208

1

osebodigital.blogspot.com
José Antonio Severo

A INVASÃO

L & PM Editores

3
4
A Santos-Dumond; sem ele este livro não seria possível.

Todos os personagens deste livro são fictícios; qualquer semelhan-


ça com o que vier a acontecer, será mera coincidência.

5
6
CAPÍTULO I

“Varig anuncia a chegada do vôo 749, procedente de Copenha-


gue... Frankfurt... e Lisboa...”

Ouvi o anúncio com o descompromisso de quem escuta os avisos


nos aeroportos. O “Embarque Nacional”, do Galeão novo, já estava cheio
e eu empurrava, preguiçosamente, com o pé, minha mala, cada vez que
a fila andava uns passos, em direção ao Check-in da Transbrasil. Ainda
faltava quase uma hora para o avião sair e o balcão já estava cheio de
passageiros, cada um esperando a sua vez de apresentar a passagem, ver
a moça teclar o computador e, só então, aceitar a bagagem.
Até àquele momento, a viagem parecia não trazer nada de novo.
Eu estava mais preocupado em entrar logo para a sala de espera, e sen-
tar meu corpanzil cansado pela ressaca, do que pensar nos destinos do
mundo. E como me chateava aquela espera. Só porque o jornal que me
empregava, o Correio do Povo, de Porto Alegre, tinha um convênio de
permutas com a Transbrasil, eu era obrigado àquela escala no Rio; um
pernoite invariavelmente desastroso, pois ninguém resiste a uma noite
nos inferninhos e bordéis da frenética Zona Sul da Velhacap, ainda mais
um homem da minha idade, que deveria, àquela hora, estar tomando
um chimarrão matutino, em vez de se arrastar por ali, numa fila de avião.
Minha única preocupação era me livrar daquilo o mais depressa possível.
Esperar a noite chegar com a calma que desce sobre o Planalto Central e
dormir, para acordar no dia seguinte, com aquela disposição única do dia
que se segue a uma ressaca homérica: não há nada melhor do que o dia
seguinte à ressaca, para um vivente sentir-se renascer forte e saudável.
Acho que eu já dormia, pois não havia razão para ficar tão assusta-
7
do quando ele chegou perto de mim, perguntando se eu também estava
indo para Brasília. Só aos poucos fui reconhecendo quem era o jovem de
terno cinza-chumbo, bem amarrotado, que me pareceu surpreendente e
esquisito para um diplomata. Aos poucos, fui sabendo o que acontecia.
Agora, passados cinco anos daquele dia e daquela noite, eu só me
arrependo de não ter tido tempo para curar a ressaca. Mas, também, não
posso me queixar: após 40 anos como jornalista obscuro e funcionário da
Agência Nacional, consegui um Prêmio Esso de Jornalismo e pude chegar
à aposentadoria com a glória de ter dado o maior furo de reportagem da
Imprensa Brasileira, pondo o mundo em alerta para assistir à mudança
de quarto de um país sul-americano, a primeira nação deste Continente,
desde os Incas, a brilhar como estrela de primeira-grandeza no pequeno
clube das grandes potências.
Em junho de 1985, eu era, na Imprensa, um dos últimos remanes-
centes dos velhos tempos. O que não dava nenhuma vantagem. Pelo con-
trário: os jovens jornalistas que tomaram conta das redações depois da
Revolução de 1964 detestavam os velhos. Eles diziam que nós havíamos
aderido ao Governo e com isto destruído a imparcialidade da informa-
ção. E outras coisas desse tipo. Nós, os velhos, também não lhes dávamos
tréguas. Sempre que podíamos, soprávamos nos ouvidos dos militares
que eles, os jovens, eram todos comunistas. Assim, o clima não era muito
favorável a um quase ex, como eu, quando entrei para o Correio do Povo,
para ficar à espera dos 60 anos chegarem e com eles ir curtir a velhice
em Pirituba, em São Paulo, onde moravam a minha filha Elisa, meus três
netos e meu genro, técnico em computadores do Banco do Estado, o Ba-
nespa.
Estou explicando tudo isso para justificar minha demora em per-
ceber que estava diante de um furo inédito em toda minha carreira. Tal-
vez por isto, pela falta de reflexo diante da notícia, eu tenha ficado tan-
to tempo evitando levar adiante a conversa com o diplomata do terno
cinza-chumbo. Não demorei a reconhecê-lo. Apenas queria evitá-lo para
deixar em paz minha cabeça branca, de modo que ela não explodisse. O
uísque nacional a havia deixado em petição de miséria. As palavras pare-
ciam entrar pelo ouvido como um torpedo, mergulhando cabeça adentro,
indo explodir lá no fundo, provocando um terremoto na massa-cinzenta
já frouxa de tanto excesso pela vida afora.
O rapaz do terno cinza-chumbo eu conhecera há três anos, em Lis-
8
boa, numa viagem quê de mordomia. Ou seja: o jornal só havia entrado
com o meu corpo. Eu viajava por conta do Itamaraty, para cobrir uma visi-
ta do Ministro do Exterior, que andou pela Europa e África desenvolvendo
a política brasileira. Eram os áureos tempos do “pragmatismo responsá-
vel”, como era chamada a política externa brasileira; de fato uma coisa
tão indefinida como esse nome. Mas, pelo menos, tínhamos uma linha.
Foi nessa escala em Lisboa que conheci Luís Paulo D’scragnole. Ele
deveria ter outros sobrenomes no meio, mas só guardei esse, com jeito
de sobremesa francesa, embora, na verdade, ele pertença a uma família
que já conta quatro gerações a serviço da nossa Política Exterior. Não sei
por que, ele achou que eu fosse um cara importante. Talvez pela minha
idade ou por eu ter aproveitado umas informações suas para citá-lo no
jornal, numa matéria laudatória, que leu mais tarde, reproduzida na Si-
nopse de recortes da imprensa brasileira, que a Chancelaria da Embaixa-
da recebe com três meses de atraso.
A verdade é que Luís Paulo, ali no aeroporto, insistia em conver-
sar comigo, falando de modo enigmático, como se eu estivesse a par dos
assuntos de que ele tratava com desenvoltura. E foi aí que a ressaca me
ajudou. Incapacitado de discernir, eu aquiescia com a cabeça, como se
estivesse entendendo. A única coisa que tinha conseguido dizer era que
continuava na cobertura do Itamaraty, e talvez por isso ele achasse que
eu sabia de tudo; ou, quem sabe, ele me falou de propósito. Nunca pude
saber por que Luís Paulo me contou tudo.
Bem, eu já estou derivando. Voltemos ao Galeão.
Naquele dia, eu regressava de Porto Alegre, aonde fora a chamado
do jornal. Fazia 10 anos que não ia ao Rio Grande do Sul.
Até poderia dizer que não era mais gaúcho, pois, embora tivesse
nascido em Santana do Livramento, partira para o Rio de Janeiro com 16
anos, e já no ano seguinte tinha ingressado na Redação de A Noite,como
noticiarista, nome a que se dava para repórter, naquele tempo. Aos 18
anos, de posse da minha carteira de reservista de terceira categoria, habi-
litei-me para uma vaga na Agência Nacional, o que era uma praxe, naque-
les tempos. Só depois de 1964 que os jornalistas do serviço público foram
obrigados a assumir ideologicamente as idéias do Governo. Bem, pelo
menos da boca para fora, pois, no íntimo, eu sempre fui getulista, como
continuo sendo até agora.

9
Foi por tudo isso que, quando a minha cabeça mole começou a
ver tudo o que aquele jovem diplomata estava me falando, deu um es-
talo que quase a arrebenta. Não sei como, mas veio o antigo arrepio, a
sensação da notícia voltou a mexer comigo pela primeira vez, nos últimos
20 anos. Entretanto, posso dizer que valeu. Principalmente, quando me
apercebi que já estava fora do Governo e aquilo tudo iria parar nas letras
pretas do velho Correio, que, mais uma vez, sacudiria o Brasil.
Ao desembarcar em Brasília, nem passei na Redação. De casa, com
o banho tomado, liguei para o Magalhães e falei enigmático:
— Avise Porto Alegre que hoje terei uma bomba. Que me espe-
rem...
— Diga o que é, pelo menos um flash?
— Não posso. Só diga que até à noite terei uma bomba! Telefono-te
mais tarde — e desliguei.
Para que se entenda melhor o que apurei naquele dia, véspera de
São João, e que deu a manchete do Correio no dia seguinte, vou começar
desde o início. Assim, o leitor entenderá como foi que as coisas se pas-
saram. Porque são fatos hoje largamente conhecidos, vou omitir certos
detalhes, pois estas linhas são absolutamente despretensiosas, quanto
menos um documento.

10
CAPÍTULO II

— Senhor Embaixador, receba os cumprimentos de Sua Excelência


o Presidente Agostinho Neto e os meus próprios — disse, em português
castiço.
— Muito obrigado. Peço que envie ao doutor Agostinho os meus
votos pessoais de pronto restabelecimento.
— Com muito prazer. Saiba que nosso Presidente deposita em Vos-
sa Excelência sua melhor amizade e conta com sua valiosa cooperação
para nos ajudar a reerguer nosso país.
— Pode estar certo, Senhor Embaixador, que o Brasil fará tudo que
estiver a seu alcance para ajudar Angola no seu formidável esforço de
desenvolvimento.
— Concordo. No entanto, nosso Presidente tem a convicção que
sua interferência pessoal será, mais uma vez, decisiva para a manutenção
da independência de nosso País. Entretanto, não pretendo mantê-lo a mi-
nha disposição, enquanto outros convidados aguardam para cumprimen-
tá-lo. Poderíamos ter uma palavra mais tarde?
— Com certeza.
Atrás, sorridente, chegava o Embaixador da Iugoslávia, com seus
brações abertos; estalou dois beijos, um em cada face, cumprimentando
num português atravessado, mas correto.
— Meus parabéns, Embaixador; extensivos são ao povo do Brasil
— e assim por diante.
A partir daquele momento, o Embaixador não prestou mais aten-
ção no que aconteceria a sua volta, esperando, unicamente, que acabas-
sem de chegar os convidados que ainda faltavam, para poder tirar a limpo
11
o significado daquele insólito diálogo com o Embaixador angolano.
A festa de 7 de Setembro nas embaixadas brasileiras são famosas,
mesmo em Paris. O velho Itamaraty, herdeiro direto da diplomacia portu-
guesa do Renascentismo, mostra, nesse dia, o que a diferencia dos outros
países do Novo Mundo, incluindo, aí, os Estados Unidos. Lembro sempre
do que diziam os diplomatas latino-americanos, em Brasília, sobre o que
achavam de seus colegas locais: “Eles pensam que são melhores que o
Brasil”. De fato, é difícil suportar a arrogância de um desses ex-alunos do
Instituto Rio Branco.
Aquela era, talvez, a mais retumbante de todas as festas de Sete
de Setembro que o Ministério do Exterior organizara, nesse ano. Embora
o processo político de Moçambique não chamasse tanto a atenção do
mundo como o de Angola, era no pitoresco bairro diplomático de Mapu-
to que os especialistas de todo o mundo procuravam averiguar o rumo
dos ventos que sopravam no Cone-Sul da África, agora dependentes dos
acontecimentos e dos humores saídos das chancelarias das duas antigas
colônias portuguesas. E nesse mundo, ali era dos lugares em que o Em-
baixador brasileiro fulgurava com igual brilho ao dos pleniponteciários
russos, americanos, chineses e, nunca esquecer nessa parte do mundo,
britânicos e franceses.
Embora no Rio de Janeiro, Brasília e outras capitais, esse Sete de
Setembro fosse apenas um feriadão a mais para aumentar os índices de
consumo de álcool escocês, cachaça e gasolina, em Maputo parecia que
o Brasil tinha acabado de conquistar o direito de comemorar a sua data
nacional. Em todos os meios que nossa diplomacia tinha conseguido in-
filtrar algum tipo de influência, havia festa. Grupos de sambistas, futebol,
artes dramáticas e tudo o que o Brasil dispõe de melhor para mexer com
as massas era oferecido ao capricho e em dose de fartura. A língua portu-
guesa era o lugar-comum.
Assim, no estádio de Maputo, o Esporte Clube Bahia, em boa hora
Campeão Nacional, exibiu-se contra um combinado local. Nas universida-
des, ciclos de arte, exposições científicas, tecnológicas e farta distribuição
de bolsas-de-estudos animavam simpósios e espetáculos com artistas e
personalidades famosas. Não faltou nem mesmo uma edição especial de
Manchete, colorida, cheia de reportagens e artigos falando da influência
do negro na formação da etnia e da cultura brasileiras, trazendo na capa
uma foto a cores do Presidente Samora Machel, posando na praça dos
12
Três Poderes, em Brasília, com uma entrevista exclusiva falando da contri-
buição do Brasil para o reerguimento de Moçambique dos destroços do
massacre colonial promovido pelo regime salazarista.
A tônica da ofensiva brasileira nessa parte da África não se prendia
a interesses políticos momentâneos ou permanentes, evidenciados pela
diplomacia das grandes potências. O brasileiro falava em nome de valores
mais profundos, de uma solidariedade comunitária que ultrapassava os
limites da política ou de interesses econômicos de curto ou longo prazos:
essa sinceridade fora capaz de suplantar as divergências ideológicas que
separavam os dois Governos no plano interno. Ou seja: O Brasil apoiava
seus irmãos de sangue e língua da África, mesmo sendo eles comunis-
tas. Esse apoio à História, inicialmente recebido com desconfiança pelo
Governo recém-emancipado, vencera a barreira da suspeita, e os diplo-
matas, técnicos e políticos brasileiros eram recebidos em Maputo com a
tranqüilidade com que dois membros de uma mesma família se encon-
tram depois de participarem de comícios de partidos opostos.
Uma contribuição decisiva para isto acontecer foi que o Embaixa-
dor Eduardo Carlos de Souza Aguiar, ali, agora, aos 40 anos, saboreava o
sucesso, pois sabia que não apenas ele e seu grupo de diplomatas, que,
desde 1972, trabalhavam o problema africano da descolonização portu-
guesa, tinham vencido; mas, principalmente, a vitória fora do Itamaraty,
que trabalhara como uma instituição permanente do País, independente
da própria má-vontade de Governos, nos primeiros tempos dessa ofen-
siva, ainda na época da paranóia antitudo do General Emílio Garrastazu
Medici.
Ele acompanhou esse processo desde o início. Quando Souza
Aguiar terminou o Instituto Rio Branco, recebeu a missão em Lourenço
Marques quase como um castigo. E, de fato, até se encontrar, em Wa-
shington, com Ítalo Zappa, achava a missão africana um simples inciden-
te em sua carreira, que pensava levar adiante nos solenes palacetes das
grandes Embaixadas, na América ou na Europa. Curiosamente, entretan-
to, foi quando serviu na OEA que ele teve sua atenção chamada para a
África Portuguesa (como então se chamava) e veio a se tornar, contra to-
das as suas expectativas, um dos maiores especialistas em África e dos
mais influentes diplomatas da região. É verdade que Zappa ainda era o
maestro, principalmente depois que voltou para Brasília e assumiu o Mi-
nistério do Exterior após a primeira grande crise do Gabinete do General
13
Figueiredo; com isto, Souza Aguiar passou a ser, também, um dos homens
mais ouvidos no Itamaraty. Já tivera quatro audiências privadas com o
Presidente para explicar sua opinião sobre a política africana do Brasil.
— Embaixador, acabaram de telefonar, dizendo que a comitiva pre-
sidencial já se encaminha para cá — falou Ana Maria, a primeira secretá-
ria.
— Luís Paulo, avise aos outros — comandou o Embaixador para o
jovem diplomata, que era seu secretário particular.
A notícia de que o Presidente estava chegando causou o natural al-
voroço. Souza Aguiar sabia quanto os diplomatas apreciam essas oportu-
nidades, que têm uma única utilidade: enviar relatórios aos seus chance-
leres, comentando uma frase, raramente espirituosa, do Presidente. Ele
lembra o que lhe dizia, quando ainda estava em Brasília, o Embaixador
mexicano, León Roberto Garcia, um diplomata que fora jornalista: “me re-
sulta fácil esto de ser diplomático. Es lo mismo que ser reportero. Uno ve y
escribe lo que ha visto”. E é assim que dezenas de embaixadores obscuros
conseguem uma atenção de seus chefes, comunicando, no seu relatório,
o que lhes disse o Presidente.
O barulho das sirenas anunciou a chegada do homem. Ao contrário
de outras nações africanas, nas ex-colônias portuguesas, os trajes típicos
não fazem parte da vida oficial, como nos países de colonização britâni-
ca e francesa. A festa de gala da Embaixada era um desses ambientes,
onde os convidados de outras nações do Continente vestiam-se com suas
roupas de dignitários tribais. As autoridades locais e angolanas trajavam
terno e gravata, ao lado dos negros extracontinentais presentes ao acon-
tecimento, vestidos, também, à maneira Ocidental.
— Senhor Presidente.
— Meus cumprimentos, Embaixador. É uma alegria para mim cum-
primentá-lo e ao povo do Brasil por uma data que apresenta raízes tão
próximas de nosso passado recente — disse o Presidente, sorrindo enig-
maticamente, sem propiciar o entendimento do real significado dessa
frase-feita. O que desconcertou Souza Aguiar, que ainda estava eriçado
com a conversa do Embaixador de Angola; suspeitava de tudo, pois, na
verdade, era preciso reconhecer, estava completamente desinformado
sobre o que poderia estar acontecendo no seu nariz e ele não percebia.
— Obrigado, Presidente. Eu também entendo que o processo de
14
independência do Brasil foi um passo decisivo na nossa História e que nos
levou a interesses permanentes a cujos desenvolvimentos acrescentam-
se, hoje, novas solidariedades, destacando-se, entre elas, os inevitáveis
caminhos comuns entre nossos países. E nesse ponto, o hiato temporal
que beneficia o Brasil deve ser entendido por Vossa Excelência como um
acervo que meu país coloca à disposição dessa verdadeira comunidade
de língua portuguesa, para promover o desenvolvimento e aproximar-nos
a todos no que temos de comum em nosso destino como Nações.
O Presidente ficou perplexo com essa declaração. Em volta, o si-
lêncio que possibilitou a todos de ouvirem o discurso de Souza Aguiar.
Mas, também, deu uma solenidade inesperada àquele momento, que a
maioria, habituada ao dia-a-dia de Maputo, ainda não tinha assimilado.
Ouviram-se palmas: era o Embaixador de Angola. O Presidente, vestido
num elegante terno cinza, abriu-se num sorriso e abraçou o Embaixador
do Brasil. Afinal, eles eram amigos desde aquela embaraçosa manhã em
que se encontraram, o Presidente ainda um subversivo, um guerrilheiro,
comunista, e Souza Aguiar, o representante de um Governo tido como
fascista e que se constituía num dos principais apoios a sustentar seus ini-
migos, o cambaleante império colonial português. Entretanto, apesar de
todo esse antagonismo, a simpatia os uniu e terminaram por se entender.
Isto, certamente, tinha influído muito na decisão de enviar Souza Aguiar
para Maputo. Uma medida, sem dúvidas, acertada, conforme comprova-
va esta festa.
— Que bela festa, Embaixador. Deixe-me cumprimentá-los; depois
falamos — disse o Presidente.
— À vontade — respondeu o Embaixador — indicando-lhe que en-
trasse.
Um a um, os presentes receberam um aperto de mão e uma frase
do Mandatário. Seguiam-se os ministros e outros altos-dirigentes do País.
Em segundos, o grande salão nobre da Embaixada fervilhava.
— Luís Paulo — disse o Embaixador a seu secretário, enquanto as
atenções eram todas voltadas para o Presidente — veja se está tudo em
ordem na sala de espera e isole-a, pois vou ter uma reunião privada ali,
mais tarde. Feito isto, fale com o Embaixador de Angola, discretamente,
e diga-lhe que estarei à sua disposição tão logo a comitiva presidencial se
retire.

15
Luís Paulo entrou pela porta de serviço que dava para a cozinha,
esquivando-se dos garçons, que vinham em sentido contrário, carregando
pratos de frios, espetinhos e outros petiscos, ou, então, bandejas com uís-
que, refrigerantes e sucos, para servir aos convidados. À esquerda, abriu
uma porta e, por outro corredor, agora deserto, passou para as salas dos
burocratas, todas dormindo, com suas máquinas de escrever encapadas e
papéis alinhados, mostrando que, naquele dia, não houvera expediente.
Por fim, acendeu as luzes da sala de espera da Chancelaria, um quarto
de 10 por 15 metros, com sofás modernosos, vindos do Brasil. Verificou
se estava tudo em ordem, voltou num dos escritórios, apanhou papel
em branco e colocou-o sobre a mesa do centro, para a eventualidade de
alguém precisar tomar notas. Depois, foi até à outra porta, que estava
trancada, impedindo o acesso do salão nobre para a ala funcional da Em-
baixada. Girando a chave, e com uma pequena mexida, verificou que já
estava aberta, podendo servir para alguém entrar por ali. Deixou as luzes
acesas e saiu por onde tinha entrado, retornando ao salão pela porta dos
garçons, não sem antes esbarrar num deles, que carregava uma travessa
fumegante: seria servido agora um prato quente, e depois o Presidente
iria embora. Ele entrou com a intenção de avisar ao Embaixador que es-
tava tudo pronto e ficar à espreita de um segundo a sós com o angolano,
para transmitir-lhe o recado. Intrigado, também, é verdade.
— Tudo certo, Embaixador.
— Obrigado. Ah! outra coisa. Avise ao coronel Mossman que as
fitas do encontro não devem ser ouvidas por ninguém. Ele mesmo deve
desarmar o gravador e levá-las, amanhã cedo, no meu gabinete. Já falou
com o Martinho? — perguntou, chamando, pela primeira vez, o Embaixa-
dor de Angola pelo nome próprio, como costumava tratá-lo nos inúmeros
encontros informais.
— Ainda não. Aguardo uma brecha para dar-lhe o recado.
E olhou na direção de Martinho Luque, cercado por diplomatas e
ministros do Governo local. Ele era, sem dúvida, umas das grandes estre-
las daquele terreiro. Formado em Direito em Coimbra, pós-graduara-se
em Política, na Universidade de São Paulo; fizera doutorado em Filosofia,
na Universidade de Paris (Sorbonne); e, mais tarde, quando já era mem-
bro do Movimento, estudara Direito Internacional na Patrice Lumumba,
em Moscou. Na hierarquia informal da diplomacia de seu país, era uma
figura hours concours que podia ter sido o Chanceler se não fossem suas
16
objeções à presença cubana no território.
Embora desde o início advertisse o Presidente Agostinho Neto dos
perigos da presença de tropas estrangeiras, mesmo amigas, em território
angolano, Luque rendeu-se à urgência de uma ação efetiva para deter
o avanço das forças sul-africanas e mercenárias, que se aliavam a Jonas
Savimbi e Holden Roberto, ameaçando pulverizar o precário Governo de
Agostinho Neto, nos primeiros dias da independência. Assim, saudou a
chegada dos primeiros regimentos enviados por Fidel Castro para ajudar
os guerrilheiros do MPLA a enfrentarem os tanques e a aviação inimi-
gos. Com o tempo, porém, convenceu-se que essa ocupação degeneraria,
pondo em risco, dessa vez por efeito contrário, a sobrevivência do Go-
verno do MPLA. No entanto, nunca contestou a autoridade de Agostinho
Neto e continuava sendo um homem chegado e detentor de toda a con-
fiança pessoal do Presidente.
Essa discordância, contudo, era suficientemente discreta para que
alguém desconfiasse ser esse o verdadeiro motivo de Martinho ter um
posto no Exterior, em vez de participar do centro de decisão do Governo
de seu país.
O próprio Souza Aguiar não escondia a impressão que tivera quan-
do o conhecera, antes ainda da libertação, quando foi o mensageiro
avançado da missão brasileira chefiada por Ítalo Zappa, pouco antes da
queda de Marcelo Caetano, em Portugal, para iniciar os contatos entre
o Brasil e os movimentos que lutavam pela independência das colônias
portuguesas na África. Ele chegara até ao acampamento guerrilheiro e
ficara esperando por dois dias até ser recebido pela cúpula do MPLA. Não
pôde deixar de notar o chefe do grupo que lhe aguardou até à vinda dos
chefes, um guerreiro cor-de-bronze, alto e elegante, que não se separava
da submetralhadora Thompson, norte-americana, certamente capturada
aos portugueses em alguma refrega. Martinho não falava a não ser o es-
sencial, o que o levou a julgá-lo um simples combatente, sem avaliar sua
inteligência e a influência que exercia no seio do Movimento. Mais tarde,
quando se desenrolavam as conversações, surpreendeu-se com a preci-
são de suas análises e conhecimento do Brasil — mesmo sabendo que
vivera em São Paulo por dois anos — e pela força de seus argumentos.
O reencontro em Maputo foi estimulante. Os encontros entre os
dois passaram a ser freqüentes e o assunto preferido era a Geopolítica,
um tema que entusiasmava a ambos os diplomatas. E nesse particular os
17
dois concordavam que o fatalismo geográfico aproximaria Brasil e Angola
ou os tornaria adversários, quando a África chegasse ao nível de organi-
zação que possibilitasse às suas nações mais ricas buscarem um lugar no
mundo. O Atlântico seria uma ponte ou uma trincheira. Caberia a eles,
diplomatas, cristalizarem posições, agora, para criar o futuro.
Por isso mesmo, o tom misterioso e inusitamente formal da pro-
posta para uma conversa, na entrada da festa, surpreendera Souza Aguiar.
A ponto de ele desejar que o Presidente fosse embora. E quando Samora
Machel saiu, logo ele foi procurar o secretário particular para saber como
tinha sido o ajuste.
— Tudo bem, Embaixador. Martinho disse que pode ir ficando até o
momento em que o encontro não desperte suspeitas.
Isto é: esperaria que a maioria dos embaixadores se retirassem,
restando no salão somente a indefectível classe dos regabofes, deixando-
os em paz, para esgueirarem-se pelos corredores e iniciarem a conversa
na sala de espera, improvisada, dado à surpresa do convite, em sala de
reuniões.
Souza Aguiar entrou primeiro e falou, em voz alta, para os micro-
fones escondidos: “Souza Aguiar, Embaixador, falando”. E sentou-se num
dos sofás funcionais, com encostos de madeira aparente. Uns dois minu-
tos depois, abriu-se a porta da frente e Luís Paulo entrou com o Embaixa-
dor angolano.
— Alô, Aguiar!
— Ótimo. E você!
— Bem... — disse passando os olhos pelas paredes forradas com
papel — gravando?
— O que você acha?
— É isso.
— E então?
— Confesso que estas fitas me assustam. Mas entendo tua posição
— retrucou Martinho.
— Entendi pelo teu tom, que você quis me deixar à vontade. Prefiro
assim. Mas não tema.
— Pois bem. O que você prefere: que eu diga logo ou explique por
que nós dois e não outros?
18
— Pensando bem, por que nós dois?
— Primeiro: por que você? Correto?
— Correto — respondeu Souza Aguiar, acentuando a marcação da-
quela conversa, pois pela gravidade do companheiro ele devia, por dever
profissional, não deixar margem a interpretações duvidosas sobre qual-
quer parte desse encontro.
— Você poderá dizer que não confiamos o suficiente no seu Embai-
xador em Luanda, porque não perdemos ainda nossas manias de conspi-
radores. Pode ser esta a verdade final, mas a realidade é que não confia-
mos nele o suficiente para iniciarmos uma sondagem como esta que fui
encarregado de fazer-lhe. Correto?
— Correto.
— Embora nada tenhamos contra sua conduta, ele nos parece mais
interessado em fazer negócios do que em política. Isto não é indesejá-
vel, mas nos intriga, principalmente porque nosso Governo não dispõe de
meios confiáveis para checá-lo.
— Ora, Martinho, seu Governo sabe que Vieira é um diplomata
profissional. Sabe tudo sobre ele: esteve 15 anos fora do Itamaraty, as-
sessorando os Ministérios da Fazenda, Indústria e Comércio e Agricultu-
ra, e foi, por quatro anos, secretário de um Governo estadual. Voltou ao
Itamaraty sem restrições, tanto que foi promovido a um dos postos mais
importantes de nossa diplomacia. Mas, está bem, vá em frente!
— Por isso, achamos que você seria, digamos... mais sensível. Bem,
agora posso explicar por que eu, e não Liscínio Silva, quem está em Bra-
sília.
— Entendido, Martinho, continue — a conversa era marcada para
que as fitas, quando ouvidas, traduzissem com precisão o clima e o ritmo
dos diálogos.
— Liscínio é um diplomata competente, mas ainda imaturo para
um negócio desse porte. É evidentemente um dos funcionários mais pro-
missores de nosso Governo, mas ainda não está preparado para um tra-
balho como esse. Sua missão no Brasil visa principalmente formar bases
para nossa política exterior, pois, como você sabe, estamos ainda na fase
de acumulação de informações para o desenvolvimento do trabalho di-
plomático permanente. Correto?

19
— Correto.
— Além disso, não posso deixar de colocar para você que as sus-
peitas de Brasília sobre a atividade do nosso Embaixador nos constrange
a mandá-lo procurar seu Governo para um colóquio tão delicado. Afi-
nal, a participação dele em debates públicos e contatos com estudantes
e intelectuais são normais, como também é normal que ele decline sua
condição de militante comunista. Liscínio sempre foi comunista. O pai já
era comunista e ele viveu quase toda a vida em Moscou e foi lá que se
formou em Relações Internacionais. Portanto, nada mais natural do que,
ao regressar a seu país, ele entrasse para a diplomacia e também, como
um dos homens mais preparados dos nossos quadros, fosse enviado a um
posto importante para nós, como Brasília.
— Entendido.
— Por isso estamos aqui. A elasticidade de nossas relações pesso-
ais, minha posição como companheiro do nosso Presidente e teu passado
como atuante político na promoção da aproximação entre os Governos
angolano e brasileiro nos indicaram ser este o melhor caminho.
— OK.
— Então pergunto: posso ir adiante? Não há qualquer impedimen-
to de tua parte?
— Perfeito. Desde que você anote que o Embaixador do Brasil em
Maputo não aceitará a participação em qualquer assunto da economia
interna de Angola e se dispõe a enviar um resumo ou a totalidade desta
conversa ao seu ministro, com as recomendações das reservas a que me
comprometi desde que entramos nesta sala.
— Vamos ao ponto, então, Aguiar. Nosso Governo acredita que o
Brasil poderá nos ajudar a evitar que as tropas cubanas em Angola influ-
am na sucessão presidencial, comprometendo a independência política
do país. O que você me diz disso?
— Inesperado. Ou, nem tanto. Mas vá adiante, antes que eu seja
obrigado a suspender este outro encontro.
— Entendo. Nós esperamos que você, como plenipotenciário bra-
sileiro neste país, receba esta sondagem e, sem esperarmos qualquer en-
volvimento pessoal, mas apenas seguros de sua discrição e habilidade,
leve ao seu Governo os termos de minha proposta.

20
— Nestes termos, concordo.
— Então um parênteses: vocês do Itamaraty são foda, como vocês
dizem lá no Brasil.
Souza Aguiar riu, mas não pôde disfarçar o nervosismo.
Afinal, embora fosse um homem tecnicamente preparado para en-
frentar esse tipo de situação, era a primeira vez que entrava no fogo real,
para usar a linguagem que aprendera quando estudara para ser oficial
da reserva no NPOR. Ele percebeu que estava participando da primeira
experiência da diplomacia brasileira, neste século, como protagonista de
um fato decisivo para o País e, mesmo, para o mundo.
— -Ora, Martinho, não estrague o momento histórico — respon-
deu, divertido, o que provocou uma gargalhada do outro. Isto contribuiu
para desanuviar a tensão, tanto que o Embaixador angolano voltou ao
assunto bem mais descontraído, em tom que Souza Aguiar aceitou, pois
as coisas estavam começando a ficar difíceis de levar adiante, caso eles
mantivessem a linguagem formal da diplomacia, tão cheia de desvios.
— Aguiar, nós queremos que vocês ponham os cubanos para fora
de Angola. Este é o caso. Como será, eu também não sei. Mas gostaria
que você examinasse essa possibilidade junto comigo.
— Você está louco, Martinho? Você está me propondo que o Brasil
dê um golpe-de-estado em Angola?
— Não. Ao contrário. Propomos que o Brasil forme ao lado do Go-
verno constituído, para impedir que uma facção minoritária domine o
país com o apoio militar das tropas cubanas. É essa a versão simples das
coisas. E eu imagino que você sente isto como uma bomba estourando
aqui nesta saleta. Mas precisamos falar sobre isto.
— Claro, Martinho. Sou um diplomata e além disso você sabe mui-
to bem que não só o futuro de Angola, mas a presença dos cubanos em
seu território, é uma preocupação e um problema para nós. Só não vejo
como fazer isso e o que se espera do Brasil para alcançar esse objetivo.
Você me entendeu?
— Então, entenda o que eu digo: estou aqui falando em nome do
Governo de meu país, compreendido por suas lideranças políticas e mili-
tares, seu Presidente, o Dr. Agostinho Neto, e nosso povo. Portanto, não
imagine que você está na frente de um desses diplomatas conspiradores

21
que vão ao estrangeiro buscar apoio para seus golpezinhos baratos.
— Certo, certo. Então prossiga. O que vocês querem?
— Pois bem: nós sabemos que, somente porque a autoridade moral
do Presidente Agostinho Neto está sendo respeitada por uma facção do
MPLA, não houve um golpe em Luanda. Se não, eles já nos teriam expul-
sos do país e submetido nosso Exército, para instalar em Angola um regi-
me francamente pró-Moscou. Você sabe como os russos estão putos-da-
cara conosco, porque a gente não se alinha. Eles não podem fazer nada,
porque o Presidente se mantém inflexível. O velho já passou vários pitos
no Embaixador soviético e, no mês passado, respondeu asperamente até
para o Primeiro-Ministro, lá na casa deles, em Moscou. Mas, a saúde do
Presidente é precária, e o próprio Dr. Agostinho está convencido de que
as tropas cubanas serão utilizadas para uma operação tipo Tchecoslová-
quia, tão logo ele bata as botas. Entendeu? É isto que a gente quer evitar.
— E qual o papel do Brasil, num jogo pesado desses?
— O Brasil?! — disse, energicamente, Martinho — O Brasil? O Bra-
sil pode desembarcar seus fuzileiros, seus pára-quedistas e suas tropas de
elite em Angola, dar uma surra nos cubanos e depois ir embora, deixan-
do-nos em paz. Isto é o que nós esperamos, romanticamente, do Brasil. E
vocês brasileiros são tão loucos que seriam capazes de fazer isto por nós.
E o que nós pensamos, pois se não for assim, estamos fodidos. Fodidos,
entendeu?
— Calma, calma Martinho. Espere um pouco. Vamos começar do
começo para ver se eu entendi direitinho — propôs Souza Aguiar.
Na manhã seguinte, Souza Aguiar chamou o secretário particular e
o Adido Militar, Coronel Afrânio Lima Mossman Júnior, mandou trancar a
porta do gabinete e rodou a fita que requisitara ainda àquela noite, tão
logo o Embaixador angolano havia deixado a Embaixada.
Os dois ouviram em silêncio quase hora e meia de conversa. No
fim, Souza Aguiar dirigiu-se ao coronel:
— E então, Coronel, que me diz desta?
— Vai dar cu, como se diz na Cavalaria — respondeu, coçando a
cabeça, claramente embaraçado com o que acabara de escutar.
— Esses angolanos estão loucos! — atalhou Luiz Paulo.
— Pois eu acho que o Coronel está mais próximo da verdade do
22
que você, Luís Paulo. Agora vamos estudar como passar esta batata quen-
te para Brasília, pois se qualquer serviço secreto estrangeiro tomar co-
nhecimento do menor trecho do que se falou aqui, ontem, nossa Pátria
estará em apuros: derrotada e desmoralizada. Entendido?
Os dois fizeram que sim com a cabeça, embora ficasse evidente
que não tinham absorvido ainda o alcance do alerta do Embaixador. Ele,
então, começou a explicar.
— Você, Luís Paulo, e o Coronel, como chefe de nossa Segurança,
irão fazer uma transcrição de toda esta gravação. Até lá, ninguém dá um
pio sobre esse assunto. Depois, eu. Somente eu, heim? direi como levare-
mos o assunto a Brasília. Entendido? Entendido, Luís Paulo?
— Sim, senhor.
— Coronel?
— Ciente, senhor Embaixador.
— Pois então, mãos à obra.

23
24
CAPÍTULO III

— Embaixador, o senhor sabe por que mandei chamá-lo? — per-


guntou o Chanceler, num tom que Souza Aguiar logo percebeu que não
era exatamente alegria o sentimento do Ministro naquele reencontro.
— Posso imaginar, Ministro — respondeu, tratando-o pelo título da
hierarquia, pois, embora o Chanceler pudesse ser chamado de Ministro
por ocupar a Pasta do Exterior, Souza Aguiar chamava-o de Ministro de
Primeira-Classe, o posto mais alto da carreira diplomática no Brasil.
— Posso saber que história é essa de os angolanos virem nos pedir
tropas? Foi você ou foram eles que enlouqueceram?
O Chanceler gritava. Parecia fora de si. Tão logo ouvira as fitas que
a missão D’Escragnole Mossman levara de Maputo a Brasília, não conse-
guira voltar à calma, pois sabia perfeitamente o problema que o caso cau-
saria e identificado perfeitamente quem era o autor da confusão: Souza
Aguiar. Pois, se em vez de mandar aquele coronel maluco, tivesse enviado
tudo por um funcionário diplomático, a coisa poderia ser contornada. O
militar, certamente, falaria do assunto com seus superiores do Exército,
e a matéria corria o risco de ficar fora do controle estrito do Itamaraty, o
que ele não desejava.
O Embaixador entendeu tudo o que se passava na cabeça do Mi-
nistro. E só então compreendeu seu erro de misturar o Coronel Mossman
num assunto que deveria ser tratado exclusivamente por diplomatas pro-
fissionais.
Mas não se deu por achado:
— Ministro, que mais poderia eu fazer? Ou o senhor não sabe que
eles, os militares, sabem tudo o que acontece em nossas Embaixadas, de

25
uns anos para cá? Pior seria se eu o mantivesse fora do negócio, pois ele
terminaria sabendo.
— Ora, Embaixador, não me venha com essa conversa mole.
— Está bem, Ministro, foi uma cagada. Mas está feita. Agora é ir
em frente. Não foi para reclamar disso que o senhor me chamou? — per-
guntou, atingindo o Chanceler de surpresa, deixando-o atônito com a ir-
reverência.
— Como?
— Imagine que o real motivo da viagem seja a gente queimar umas
doses daquele Old Fisherman que o senhor nunca descuida — retrucou
rindo, conseguindo, finalmente, desarmar o seu Chanceler.
— Está bem, Souza Aguiar. — Então me explique: que história é
essa que você me arrumou? — disse encaminhando-se para a escrivani-
nha, tirando da gaveta um litro de gim.
— O senhor não pode deixar de admitir que os angolanos são ima-
ginosos.
— Por esse ângulo você tem razão. Se o Brasil pudesse mesmo de-
sembarcar lá, seria algo totalmente inesperado neste mundo maluco.
— E não há dúvida que foi nisso que eles pensaram. Precisamos
conversar, Ministro, pois eu próprio estou incrivelmente inseguro quando
me vejo na posição em que me encontro.
— Pois então vamos começar pelo começo e tirar tudo isto a lim-
po, pois amanhã o Presidente quer tomar o café da manhã com você e
comigo.
— Como está o Presidente, Ministro?
— Você precisava estar aqui para ver a cena. Deu a sorte de o Luís
Paulo chegar a Brasília no dia em que eu tinha o despacho de rotina, no
Planalto. Então, não houve como evitar.
— Como? Ele ficou sabendo das coisas no despacho? perguntou,
divertido, Souza Aguiar.
— Pois sim. O Luís Paulo veio diretamente do aeroporto para meu
gabinete. Nem bem chegou, pôs as fitas a rodar. Tive de ouvi-las duas
vezes. Isto é: quando terminei, faltava pouco mais de uma hora para o
despacho. Era, inclusive, um tempo mínimo para refletir. Não tive tempo
para nada, a não ser telefonar para a Casa Civil e avisar que tinha um as-
26
sunto fora da agenda-para discutir com o Presidente. Pedi-lhes o favor de
avisarem o homem.
— Incrível, Ministro!
— Eles ainda perguntaram se eu queria incluí-lo na agenda; eu dis-
se que não, que só informassem ao Presidente que eu tinha um problema
de última hora. Você precisava ver a cara do homem quando coloquei
essa confusão toda que você nos armou na cara dele...
— Ele não sabia de nada? Nem mesmo um memorando prevenin-
do?
— Nada. Nossa agenda só tratava de assuntos administrativos.
Quando eu disse que tinha novidades sobre a África, ele pensou que se
tratasse de algum pedido de verbas para alguma Embaixada ou a nome-
ação de funcionários locais. Foi então que eu lhe pedi um tempinho para
ouvir uma fita. A princípio, ele me olhou intrigado, talvez imaginando que
eu estivesse louco. Mas quando ouviu sua voz, ficou quieto; você sabia
que ele acha você o diplomata mais inteligente que nós temos no serviço
ativo?
— Veja só.
— Escutou sem um comentário, até ao final. Seu único movimento
foi avisar, pelo interfone, que não o interrompessem enquanto eu não sa-
ísse da sala. No final, perguntou-me o que era aquilo. Eu respondi: o que
o senhor ouviu. Ele mandou te chamar. Agora, você terá de explicar-lhe a
confusão em que nos meteu.
— Só isso?
— Claro que não. Ele recomendou segredo para evitar que vazasse
qualquer coisa para os americanos. E adivinhe por que ele logo falou isso?
— Para poder atacar de surpresa?
— Exatamente. Tenho a impressão que foi essa a primeira idéia que
lhe veio à cabeça quando considerou o assunto. E então, que me diz?
— Parece que estamos mesmo na confusão...
— É o que estou achando. Portanto, vamos começar a falar sério
antes que seja tarde.
— Por quê? O senhor é contra?
— Sou.

27
— Por quê?
— Não vou dizer. Mas você deve imaginar as razões!
— O senhor acha que a operação é inviável?
— Por vários aspectos.
— Quais?
— Todos.
— Como, todos?
— Isto será uma loucura. Entendeu? E estas são as suas ordens,
diga ao homem que tudo não passa de sandice dos crioulos. Entendido?
— disse com veemência.
— Ministro, o senhor esquece do que ouviu na fita? Lembre-se que
eu prometi a meu amigo tentar um jeito de o assunto não ser rechaçado
no primeiro impacto. Lembra-se?
— Pois eu estou dizendo que não. E pronto!
— Pois bem. Está certo. Entretanto, vamos especular? Certo?
— Não!
— Por que não?
— Porque é loucura.
— Está bem. Mas eu precisarei levar uma resposta. E isso será ofi-
cial.
Ora, Souza Aguiar, não me venha com esta agora...
— Está bem, Ministro. Quando veremos o homem?
— Amanhã. Mas antes, vamos repassar as coisas.
— De acordo.
— Veja, então, se não estou certo. O Brasil não possui condições
militares, econômicas e políticas para esse desenvolvimento que os an-
golanos estão propondo. Certo? Ou você acha possível administrar uma
invasão brasileira a um território situado a 3.000 milhas de nossa costa?
— Não sei, o senhor acha?
— Claro. Veja: primeiro, é inviável o Brasil armar esse Exército e
transportá-lo até o campo de batalha. Você sabe quanto tempo foi preci-
so para armarmos uma divisão para combater na Itália? Dois anos, e isto
com tudo feito às claras, com apoio total dos Estados Unidos e, por fim,
28
fomos lutar numa guerra que já estava ganha. Quer mais?
— Sim.
O comando, a logística, tudo, tudo era americano.
— Bem, o Brasil progrediu muito de lá para cá... deixou sair.
— Outro ponto. Aqui de dentro. Veja: nosso serviço diplomático
não tem condições de armar esse desenvolvimento todo. Você já se deu
conta que temos de preparar um esquema completo para sustentar essa
operação?
— Bem, eu não discordo, mas acho que se poderia fazer a coisa.
Está bem, Ministro, para início de conversa vamos dizer que sim. Que
mais?
— O custo. Essa operação não sai por menos de cinco bilhões de
dólares, fora o material.
— Bem, a gente teria de negociar essa parte. Só isto?
— Não. Tudo isto. É in-vi-á-vel.
— E, então?
— Você deverá dizer isto ao Presidente.
— Concordo, Ministro, mas posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Não seria melhor a gente ouvir o que os militares têm a dizer, an-
tes de tomarmos uma decisão de torpedearmos algum desenvolvimento
possível?
— Como?
— Eu acho difícil, também, que o Brasil possa fazer esse desembar-
que sozinho. Mas acho que não deveríamos abandonar essa brecha de
imediato, pois, se os angolanos estão dispostos a negociar apoio externo
para evitar a tomada do poder pelos radicais, o Brasil não poderá ficar de
fora.
— Quanto a isto, concordo, mas há uma grande distância entre um
apoio diplomático e uma intervenção armada.
— Ministro: qualquer coisa que aconteça em Angola será de armas
na mão. Esse detalhe não pode ficar de fora. Sejamos realistas!
— Como? Você vem me dizer que não estou sendo realista?

29
— Isto mesmo. Tímido, seria melhor.
— Ora! vá plantar batatas!
— Ministro...
— Está bem. Concordo em fazermos, os dois, um exercício sobre
essa hipótese. Mas somente um exercício. Não pense que vai me conven-
cer a apoiar essas suas idéias absurdas.
— Está bem, um exercício — concordou Souza Aguiar.
Aquilo durou mais de duas horas. Souza Aguiar estava cansado,
mas teve cabeça para levar a conversa adiante, discutindo e argumen-
tando, reciclando suas informações sobre o clima interno do Brasil para
compor um quadro ideal, sobre o qual eles deveriam trabalhar para con-
seguirem atingir o objetivo.
Só teve um pequeno intervalo, quando o Ministro se levantou da
mesa e pediu licença, levando a mão à braguilha, dando a entender que
iria ao banheiro. Nesse instante, Souza Aguiar tomou a decisão: “será ago-
ra”, pensou, deixando-se estar em silêncio enquanto o Chanceler entrava
por uma porta lateral que deveria dar no seu Water Closed privado.
Nem terminava de fechar-se a porta, o Embaixador alijerou-se para
o telefone interno que estava junto com outros três aparelhos, colocado
numa mesinha auxiliar, com rodinhas nos pés e discou 343.
— Pronto!
— A Lia está?
— Um momento...
Enquanto esperava, torcia para o Ministro não voltar, surpreenden-
do-o naquela situação. Era um risco que ele corria por saber que o ho-
mem o reteria a tarde toda e ele não podia arriscar-se a desencontrar-se
de Lia.
— Alô?
— Lia? E o Souza Aguiar, tudo bem?
— Uiai! você por aqui? Que surpresa, eu pensava que você estava
em Lourenço Marques...
— Lia... — disse ele, atalhando — desculpe-me, mas não posso me
demorar. Estou louco para ver você. Podemos nos ver à noite?
— Claro, meu amor.
30
— Então ligo, à noite, para sua casa. Vamos sair, OK?
— Claro...
— Então desligo, tchau — desligando com toda a pressa, temendo
ser surpreendido.
Respirou fundo e se recompôs. O Ministro demorou. Enquanto es-
perava, maldizia-se por sua estabanação: poderia ter falado melhor com a
Lia, dizer-lhe que tivera saudades e que estava morrendo de tesão por ela.
— Muito bem, Embaixador, onde é que nós estávamos? — pergun-
tou o Chanceler, adentrando no gabinete.
— Falávamos da necessidade de um acordo secreto entre nosso
Governo e Angola para respaldar nossa intervenção.
— Perfeito.
— Os angolanos já têm inclusive uma minuta do adendo ao Tratado
de Amizade, que poderia perfeitamente suprir essa lacuna legal.
— Você tem essa minuta?
— Uma xerox. Está aqui — disse, abrindo a valise, entregando ao
Chanceler uma pasta lacrada.
— E a proposta formal?
— Já rascunhei os dados que me foram apresentados. Aí, o senhor
encontrará uma relação de vantagens que eles oferecem ao Brasil tão
logo os cubanos sejam expulsos do país.
— Bem... Parece que já pensaram em tudo. O que mais você traz
aí?
— Bem, os angolanos nos oferecem uma série de vantagens eco-
nômicas e políticas, como paga pelos rapazes que por acaso tombarem lá
na África, defendendo o Governo deles disse Souza Aguiar, preparando-se
para relatar uma espécie de negócio que iniciará com o Embaixador lá em
Maputo.
— Muito bem, Souza, então vamos ao que interessa, pois o Pre-
sidente terá de saber disso, evidentemente — acrescentou o Chanceler.
— Há o petróleo.
— Bom — comentou o Chanceler.
— Pedras...
— Hummm...
31
— Minério.
— Bem...
— Armas.
— Como?
— Armas, já disse.
— Sim, sim. E o que mais?
— Assessores.
— Militares?
— Militares.
— Ahã!

32
CAPÍTULO IV

Pé ante pé, Souza Aguiar deixou a cama, passando para o vestíbulo


e dali para o banheiro, evitando acordar Lia. Eram 6 horas da manhã. Den-
tro de 45 minutos, o Chanceler passaria para apanhá-lo a fim de tomarem
o breakfast com o Presidente.
Depois da ducha, já vestindo seu terno azul-marinho e gravata gre-
ná, tomou o elevador para o salão de refeições do hotel, onde faria um
rápido desjejum, pois não tencionava chegar na Granja do Torto com gos-
to de cabo de guarda-chuva na boca e aquela sensação de tontura que
o jejum provoca. Suco de laranja, para lavar o estômago, torradas com
manteiga e um café preto. Com isto, ficava lugar para saborear as iguarias
presidenciais, pois como o Chefe de Estado costumava passar uma hora
a saltar obstáculos na sua pista privada de hipismo, certamente viria com
uma fome de arromba para o encontro com os diplomatas.
Quando chegou ao saguão — ou lobby — do hotel, logo reconhe-
ceu o sobrinho de sua cunhada, Paulo Henrique, aflito, olhando para to-
dos os lados. Era um jovem diplomata, recém-formado (no ano passado),
no Rio Branco, que tinha recebido como primeira missão servir como
Oficial de Gabinete do Ministro. Criado de Luxo, como eles diziam. Mas,
não havia dúvida, seria uma experiência inesquecível para ele, quando a
vida o levasse para postos difíceis, o que lhe facilitaria a visualização dos
processos de decisão no Palácio dos Arcos, evitando que seja tomado por
frustrações ou alimentasse pressas impossíveis.
— Ah! o Ministro já deve estar chegando. Vim na frente pois ele
não pretende descer. Vamos... — comandou.
— Vamos lá, rapaz — concordou Souza Aguiar — como estão as
coisas por aqui?
33
— Sei lá. Acho que estão bem. E você, o que diz? perguntou.
— Também, tudo bem. Você levanta sempre cedo, assim? — gra-
cejou o Embaixador.
— Vá à merda. O Ministro acordou-me de madrugada só para cha-
má-lo. O que vocês estão fazendo de tão importante?
— Pergunte ao Ministro — respondeu o Embaixador, encaminhan-
do-se para a porta do hotel.
Nisso avistou a limousine preta que chegava. Mercedes Benz 1977,
o último carro estrangeiro a servir ao Ministério, em todo o País. Até o
Presidente já usava carros nacionais, menos o Itamaraty, que mantinha
aquela relíquia ainda em atividade, pois o esnobismo obrigava-o àquela
diferenciação.
A porta abriu-se e Souza Aguiar sumiu dentro do carro. Atrás, uma
C-14 da Segurança, agora seguida pelo Opala preto do Gabinete que leva-
va o Paulo Henrique. A caravana, a 120 Km por hora, ganhou a Esplanada
dos Ministérios, para seguir em direção à residência presidencial.
— Como passou a noite? — foi a primeira pergunta do Chanceler.
— Ótimo — balbuciou seco, procurando encerrar por ali o assunto.
— Imagine. Eu também estaria ótimo — retorquiu o Chanceler,
dando a entender que o SNI já o havia colocado a par de todos os seus
passos desde que deixara o gabinete, sem omitir que Lia fora dormir com
ele no Hotel Nacional. Procurou desculpar-se.
— Não pude evitar.
— Que triste — brincou o Chanceler.
— É proibido?
— Não, mas perigoso, no seu caso. Não vá me dizer que você abriu
o bico?
— Claro que não, Ministro. O motivo de minha presença em Brasí-
lia não foi sequer sondado. Vim e pronto. Ou o senhor não sabe que ela
também é uma profissional?
— OK. Mas, cuidado de agora em diante. Entendido?
— Entendido.
— E o que mais me diz?
— Sobre o quê? Sobre o Planalto Central?
34
— Por exemplo?
— Distante o suficiente para fazer a vida aqui uma loucura.
— E o que mais?
— Isolado o bastante para ser vulnerável a um contra-ataque de
pára-quedistas.
— Ora, não diga bobagens. Limite-se a falar sobre o que você tem
certeza.
— De que eu tenho certeza?
— Do que eu penso.
— E se o homem pedir minha opinião?
— Neste caso, a decisão é sua.
— E a que me aconselha?
— Fale.
— Mesmo que não seja o que o senhor pensa?
— Isso mesmo. Acho melhor assim.
O resto da viagem transcorreu em silêncio. Ambos pareciam ab-
sortos em seus pensamentos, cientes da gravidade dos momentos que
dentro em pouco estariam vivendo. Só voltaram a si quando o carro co-
meçou a se aproximar da granja. O melhor seria chamar de fortaleza. Os
primeiros sinais de que estavam perto da Granja do Torto foram vistos a
cinco quilômetros do portão de entrada: um jipe do Exército, com uma
metralhadora Ponto 50 e três soldados. Uma enorme antena deixava cla-
ro que aquele carro era equipado com rádio.
— Bem guardado o homem — comentou Souza Aguiar.
— Isto é o que você viu. Muitos desses carros que cruzamos na
estrada são viaturas do Exército, com chapas frias. Aqui começa a fase
ostensiva da segurança.
Quando se aproximaram do portão, o Ministro mostrou um peque-
no bosque:
— Ali tem ninhos de mísseis, antiaéreos e anticarros. Isto aqui é um
bunker— disse, brincando.
O carro foi vistoriado, apesar da placa preta que o identificava como
viatura do Executivo, carro de Ministro. Os outros dois automóveis, a C-14
da Segurança e o Opala de Paulo Henrique ficaram atrás. Lentamente,
35
então, a Mercedes seguiu em direção ao casarão, enquanto os outros dois
dobravam por uma estrada lateral, em direção ao Posto da Guarda, onde
deveriam esperar o fim do encontro para saírem, novamente, atrás do
carro do Ministro.
Souza Aguiar olhava curioso a todos os detalhes. Aparentemente,
nada além da vegetação, mas podia sentir no ar a tensão que emana-
va dos arbustos, onde se escondiam os equipamentos de vigilância. O
Ministro explicou que o carro era seguido por uma bateria de foguetes
terra-terra. A qualquer movimento suspeito, que indicasse a presença de
terroristas a bordo, seria fulminado por uma descarga e reduzido a cinzas.
Souza Aguiar suspirou e meneou a cabeça, dizendo para si mesmo: “será
que no meio de tanta coisa séria vale isto tudo?”
Ao descerem, foram recebidos pelo ajudante-de-ordens, Capitão
Larkung.
— Bom dia, senhores. Sigam-me, por favor.
— Como está o Presidente? — indagou o Chanceler.
— Está na pista de hipismo. Pediu-me que o avisasse, tão logo os
senhores chegassem. Sigam-me, por favor — disse o oficial.
Umas 10 pessoas assistiam aos saltos do enorme zaino. Ele passou,
ainda, dois obstáculos na pista oposta, diminuindo o galope, ao avistar
os dois homens de terno, que ficaram observando ao lado da grade. En-
caminhou-se, então, saltando com espantosa agilidade para um homem
de sua idade. Aliás, apesar de um tanto obeso e o perfil envelhecido, não
havia quem não se impressionasse com seu vigor, no primeiro contato
pessoal.
— Bom dia, senhores — gritou, aproximando-se, passando a rédea
do cavalo para um jovem — cuide bem do bichinho, cabo — ordenou ao
moço.
— Dei uma experimentada boa no Alegrete, esta manhã — contou
aos dois, enquanto apertava a mão de um e de outro. — Fazia uns dois
meses que ele não era montado. Precisa adelgaçar.
Os dois permaneceram em silêncio. O Presidente vestia culotes
e uma camiseta de malha com o brasão do Regimento de Cavalaria de
Guardas.
— Eu sei que falam mal disto aqui — continuou o Presidente — di-

36
zem que é mordomia. Mas não entendem como é importante para mim
e, pelo cargo que ocupo, para o País. Embora esta pista de saltos sugira
luxo, eu não posso dizer o mesmo: dirigir um Governo nos nossos dias é
uma atividade que esgota qualquer vivente. Não deixa tempo para nada.
Não é como antigamente quando o Poder era sinônimo de status e de
representação. Bem, enfim...
E foi se encaminhando para um avarandado que mandara construir
nos fundos da casa principal. Ali costumava reunir-se, pela manhã, para
discutir os assuntos mais variados. Um costume novo, que aprendera com
os americanos, fazer do café da manhã um momento de serviço. Normal-
mente, nessa hora recebia seus ex-colegas do Exército, os generais que vi-
nham a Brasília, com os quais costumava conversar nesse horário, fora do
expediente. Depois ele entrava na rotina de Chefe de Estado e os oficiais
iam para os gabinetes do Alto-Comando resolver seus problemas de suas
unidades. Assim conseguira uma maneira de consolidar sua posição mili-
tar, mantendo ativa participação na política castrense, sem necessidade
de chamar a atenção com as pompas das audiências em Palácio.
— Eu acho que chega de me queixar dos meus problemas.
Nisso, outro soldado da guarda aproximou-se com uma cuia de chi-
marrão e uma garrafa térmica. O Presidente mantinha um misto de cos-
tumes sulistas que adquirira na infância e, mais tarde, na Cavalaria, com
hábitos modernos, como esse de breakfast de trabalho.
Encheu a cuia e foi chupando, na bomba de prata e ouro, cravejada
de brilhantes. Notou a curiosidade de Souza Aguiar.
— A bomba de mate é a jóia de gaúcho — explicou. — O cam-
peiro tem vergonha de usar jóias, mas faz da bomba de chimarrão uma
demonstração de sua riqueza. Esta aqui eu ganhei da Cotrijuí, de aniver-
sário. Deve valer muito. Mas o que me faz gostar dela é o trabalho de
artesão, olhe — mostrando. Esse ouvires era um grande artista. Era ou
é... — corrigiu.
— Belíssima bomba, Presidente — concordou o Chanceler — Quan-
do estudante, os colegas gaúchos do Rio Branco costumavam tomar chi-
marrão nas noites de serão. Diziam que tirava o sono.
— Não há dúvida que o artesão é um senhor ouvires, Excelência —
atalhou Souza Aguiar.
— Pois eu tomo desde pequeno. Aprendi quando era piá em Ale-
37
grete. Mais tarde, quando era coronel, no Rio, quase enlouqueci pela fal-
ta de boas ervas. Finalmente nos aliamos, gaúchos e oficiais que haviam
passado por lá e adquirido o hábito de chimarrão. Fizemos uma petição à
Subsistência do Exército, para que mantivesse um estoque de erva-mate
de boa qualidade em seus supermercados. E ganhamos. Hoje nossos re-
embolsáveis têm erva em todo o país — contou o Presidente, ainda a pro-
pósito daquele estranho hábito de beber diariamente um negócio como
o chimarrão gaúcho.
— Nessa campanha eu formei dos dois lados — continuou — pois
fizeram-se dois abaixo-assinados. Um deles, dos oficiais gaúchos de nas-
cimento, dizia: “nós, que desde a tenra infância cultivamos esse costu-
me tradicional de nossos avós...”; e o outro falava: “nós que tendo ido às
fronteiras adquirimos o salutar hábito do chimarrão”. Eu tendo me criado
lá, comecei com o mate desde pequeno. Mas também não podia deixar
de dizer que não era um estrangeiro, que adquirira aqueles hábitos nos
quartéis, pois quando fui para lá menino, o tio que me criou era militar, e
eu vivia desde gurizinho no quartel. De certa forma, eu servia nas frontei-
ras que eles falavam. Assim, assinei os dois manifestos. Quando os chefes
viram os abaixo-assinados e constataram minha assinatura nos dois me-
moriais, interpelaram-me por escrito. Expliquei, retrucando em versos,
componho uma décima gaúcha.
— Edaí, Presidente? — perguntou o Ministro, interessado.
— Rimos muito. Meus versos eram lidos, pois foram impressos na
gráfica da Vila, tal a sensação que causaram. Deixa-me ver se lembro...
Mesmo aqui tenho nascido,
Lá nos pagos fui criado...
— Não dá, esqueci. Mas, desculpem, não foi para ouvir histórias
minhas que o nosso Embaixador viajou 15.000 quilômetros — atalhou o
Presidente.
Os dois sorriam, entre encantados e surpresos. O Chanceler acha-
va tremendamente pitoresco aquele Presidente, ao mesmo tempo um
camponês e um tecnocrata militar. Uma mistura curiosa. Surpreso, Souza
Aguiar, que só conversara com o Mandatário no seu gabinete, no Planalto,
onde era curto e grosso, embora cordial.

38
CAPÍTULO V

O breakfast transcorreu normalmente. Depois das sondagens ini-


ciais, um e outro negaciando, o Chanceler intervindo, mais para homoge-
nizar as linguagens dos dois e impedir que desinteligências de vocabulá-
rio se interpusessem entre as pessoas. A conversa foi ganhando corpo. O
Presidente perguntando e o Embaixador respondendo pragmaticamente,
como se estivesse numa prova oral no exame do Rio Branco. Só uma vez
ele opinou:
— Então o senhor diz que as grandes potências estão de mãos
amarradas? — perguntou o Presidente.
— Eu acho que sim, Presidente — respondeu Souza Aguiar.
O Presidente continuou em silêncio, dando a entender que ele de-
veria aprofundar o raciocínio.
— Há muitos fatores que impedem as grandes potências de agir.
Aliás, é só por isso que Cuba está lá e faz o que quer na África. Ou não?
— Continue.
— Em primeiro lugar, Angola fica muito longe. Se o senhor medir as
distâncias no mapa, verá que nós somos o país ocidental mais próximo.
Segundo, as duas superpotências, Rússia e Estados Unidos, chegaram a
um ponto, na chantagem mútua, que não podem se mexer sem que isto
termine numa guerra de conseqüências imprevisíveis; é a tal chantagem
atômica. A Europa, coitada, com uma esquerda forte e o ranço colonial,
não pode intervir numa questão como esta. O país mais forte, lá, se o se-
nhor medir bem as coisas, verá que é a França. Mas os franceses não têm
condições, hoje, de uma operação militar, na África, superior ao nível de
batalhão da Legião Estrangeira. Uma manobra de grande escala custaria

39
o próprio Governo. Em resumo, Presidente, somente um país como Cuba,
que quase nada tem a perder, pode enfrentar uma situação como esta.
Talvez por isto os angolanos tenham chegado à conclusão de que o Brasil
seria um parceiro viável. Embora pela razão inversa, nós teríamos muito
a ganhar.
— Interessante. Mas continue...
O Embaixador falou inflamadamente. Ele próprio começava a acre-
ditar, ali, que a coisa era viável. O Presidente pegou aquela premissa e
continuou explorando-a, levando o Embaixador, novamente, para o ter-
reno da análise e especulação acadêmicas. O Brasil e o Mundo. Os equilí-
brios e os desequilíbrios.
A conversa voltou a nível pessoal quando o Presidente interrompeu
o Embaixador com uma pergunta que o desconcertou.
— Embaixador. Desculpe-me. O que o senhor disse me impressio-
nou muito e com base na sua explanação vou retificar muitas idéias que
tinha formado sobre a situação internacional. Mas eu preciso que o se-
nhor me responda uma pergunta, antes de a gente continuar, pois isto é
básico.
— Pois não, Presidente — disse Souza Aguiar, até constrangido com
a humildade do homem.
— Esses angolanos são sérios?
— Como?
— O Presidente pergunta se nós estamos falando de gente confiá-
vel; — interrompeu o Chanceler, mais uma vez evitando desentendimen-
tos por causa das palavras — o Presidente quer saber se nós não estamos
numa embrulhada.
— Ah, sim. Bem...eu acho que sim. Eles são sérios, Presidente. An-
gola é um país jovem, mas seus líderes são homens experimentados, que
vêm de uma guerra de libertação nas piores condições.
— O senhor deve entender, Embaixador, que nós somos um País
que está num ponto que não pode cometer o menor erro. A História está
cheia de pequenos capítulos sobre nações que afloraram e desaparece-
ram, deixando pouco mais que um nome para ser lembrado.
— Como assim, Presidente?
— Diga-me, então quem foi Pirro? Quem foram os Hicsos? O se-
40
nhor entende o que quero dizer?
— Sim, senhor.
— Pois então me diga se os angolanos estão ou não blefando co-
nosco?
O Embaixador levou um choque. Olhou para o Chanceler e ele es-
tava impassível. Mas viu no canto dos olhos que Zappa ria-se, por dentro,
com o seu embaraço. Souza Aguiar entendeu: estava levando uma prensa
do homem.
Ele teve dois segundos para pensar. “Como ganhar esta? na gros-
sura ou na palavra?” Saiu-se com a primeira idéia que a intuição jogou.
Uma coisa deve ser dita. Ele nunca disse nada tão convictamente, nunca
havia falado com tamanha paixão, só inspirado pelo sentimento. Toda a
armadura de itamaratiano estava no chão.
— Presidente, sua dúvida é justa, mas o senhor não sabe do que
está duvidando...
Arreganhou um pouco o queixo e falou, como o homem gostava,
curto e grosso:
— Presidente, esses homens que o senhor vê como uns estadistas
caipiras são hoje o que foram San Martin, Bolívar (e aí viu a mancada e
emendou)... Dom Pedro. Homens saídos de uma guerra por ideais tão va-
gos como Independência. Os povos que eles governam vêm do esmaga-
mento. Aquilo lá é uma confusão, não nego, senhor Presidente, mas eles
são o futuro. Embora sejam iguais a muitos grandes homens do passado.
O Presidente ficou com os olhos arregalados. Não sabia o que en-
tender daquele discurso. Se se irritava com o entusiasmo e admiração
daquele homem por figuras tão suspeitadas ou se assimilava o vigor cívico
daquela história e tomava uma posição que iria influir num negócio tão
sério como o Embaixador estava dizendo.
— O senhor acha esses angolanos assim tão históricos? — arriscou
o Presidente.
— Mas é evidente, se o senhor me perdoa — disse Souza Aguiar,
e se preparou para continuar o discurso. Foi então que seu olhar cruzou
com o do Chanceler e entendeu tudo. Era uma cara de satisfeito com o
que vira; ao mesmo tempo, de pânico pelo terror de ver onde aquela con-
versa iria terminar. Aí, Souza Aguiar voltou a ser diplomata treinado pelo

41
Itamaraty e se saiu como um profissional.
— As grandes decisões, Presidente, sempre são tomadas pelos es-
tadistas. Eu sou apenas um técnico em política. Como profissional, tenho
a obrigação de lhe apresentar as alternativas, mas as decisões não com-
petem à minha alçada.
— Sim, sim, é claro, respondeu o Presidente. O senhor tem toda a
razão.
— Mas, continuemos. Pegando esse seu raciocínio, vamos, então,
trabalhar em cima dele — propôs o Presidente.
Souza Aguiar olhou para o Chanceler e viu que ele estava a ponto
de explodir, segurando a gargalhada.
Logo se compôs e participou da conversa. Dali em diante, ela foi um
exercício sobre uma possibilidade. Cada um defendeu os prós, colocando
os contras. Às vezes, o Embaixador sentia-se no espaço.
É sempre difícil para um burocrata entrar em ação. E o mais curioso
é que os homens do Itamaraty são formados para serem homens de ação,
mas a inconseqüência da política externa de um pequeno país termina
por acostumá-los à vida de burocratas profissionais, com um ímpeto de
ação eternamente contido. Por isso Souza Aguiar ficou alucinado quando
viu que aquelas formulações de teor acadêmico tinham uma clara conota-
ção, ou melhor, seu conteúdo sugeria ação no que a palavra tem de mais
puro.
As especulações do Presidente iam além do que ele podia imagi-
nar, pois, no fundo, esperava que alguém desse um fim àquela história
um tanto maluca. Felizmente, no final ele ouviu uma proposta que achou
sensata.
— Embaixador — disse o Presidente — o senhor pode ter certeza
que eu estou numa situação mais difícil que a sua. O meu mandato está
no fim. Não tenho mais ilusões sobre a vida pública. Mas percebo que
este pode ser um momento importante para nosso País. Histórico, como
o senhor disse na hora em que me colocou esse nível de formulação.
Os dois se olharam nos olhos. Souza Aguiar ficou em silêncio à es-
pera do Presidente, que parecia disposto a concluir seu raciocínio.
— Meu caro Embaixador, vou lhe dizer aqui qual é a posição do Go-
verno brasileiro sobre essa consulta que o senhor nos traz — e virando-

42
se para o Chanceler, como que pedindo sua aprovação, começou a falar
pausadamente.
— O senhor dirá ao doutor Martinho que nós o consideramos um
dos homens mais sérios e respeitáveis da África. E que somente por isso
não encerramos o assunto. Mas vamos dar um passo que ele deve en-
tender como uma atitude de simpatia para com o Governo de Angola:
vou designar um general do Estado-Maior para iniciar um exercício de
manobra com efeito de apoiar militarmente Angola. O senhor entende o
que estou dizendo?
— Mais ou menos, Presidente. Essa parte do general do Estado-
Maior eu acho que entendi, mas gostaria de confirmar minha compreen-
são da sua proposta.
— Pois então? como o senhor entendeu?
— Eu entendi que nós não assumimos o menor compromisso, mas
temos um profissional do maior nível e de alta responsabilidade pensan-
do no problema. E isto é um fato concreto de apoio.
— Vejo que nos entendemos perfeitamente, Embaixador.
— Obrigado, Presidente.
— Agora eu lhe pediria licença para conversar com o nosso Chance-
ler. Minha mulher, Dulce, terá o maior prazer de lhe mostrar nossa casa.
Falamos ainda antes de nos despedirmos.
Souza Aguiar acompanhou o Presidente até ao interior da residên-
cia e lá ficou, enquanto ele voltava para conversar com Zappa.
Souza Aguiar só encontrou o Chanceler na hora de se despedir do
Presidente. O general ia para um helicóptero e os dois deveriam regressar
na velha Mercedes do Itamaraty.
— Embaixador, gostaria de lhe dizer que o senhor é um homem
admirável. Cuide dele, Zappa — recomendou.
— Sim, senhor Presidente.
Os dois caminharam em silêncio. Quando entraram no carro, o Em-
baixador respirou fundo e disse:
— Então? O que você achou?
— Não sei. Falei, e pronto.
— O homem está preocupado.

43
— Com o quê?
— Com isto tudo.
— Como assim?
— Ele percebe como é grave a situação.
— Está com medo?
— Não é isto. Como você mesmo me disse ontem, ele acha difícil,
mas também vê que não será fácil cair fora desta.
— Certo, Ministro. Nesta última meia hora eu tenho olhado para
mim umas duas ou três vezes e fico em dúvida se tudo é verdade ou se
estamos brincando.
— Olha, rapaz, eu, mais do que você pensa, fico assim como você
está se sentindo. Então, vou lhe dizer uma coisa: é um jogo alucinante.
Você deve se comportar com a bravura e a descontração de um jogador
de pelada de futebol. Jogue a sério, mas não perca a esportiva.
— Bem...
— Agora vamos conversar. O que você está pensando fazer?
— Bem... não sei — disse — acho que o melhor de tudo é... sei lá,
acho que vou para Maputo e esperar para ver o que acontece. Não?
— Ora.
O que, então?
— Você parece que não se dá conta das confusões que armou.
— Como?
— Eu devia ter impedido sua promoção a Ministro, pois já sabia o
que você, como Embaixador, iria aprontar!
— Bem, Ministro, eu faço o que posso.
— Pois então trate de fazer tudo certinho, se não eu mando matar
você.
— Matar?
— É, matar. Eu conto tudo isto para um coronel do SNI e digo que
você tem de ser eliminado. E é claro que qualquer um verá que você é um
perigo para a Pátria. Ou não?
— Depende do como o senhor vê... e riu-se, percebendo que o
Chanceler estava brincando. E se deu conta que, na verdade, a barra em
44
que estava entrando era pesadíssima. Ele pensava assim, meio tonto, ain-
da, com tudo aquilo, quando o Chanceler mudou o tom da voz e falou:
— Pois eu vou te dizer o que está acontecendo. Preste a atenção:
Os homens estão achando meio biruta essa tua história. Mas ela mexeu
na cabeça deles. Estão com vontade de deixar andar um pouco, para ver
que bicho dá.
— Então eu sou a isca.
— Exatamente.
— E o que o senhor acha?
— Se você se der mal, eles largam e você segura sozinho.
— Como? É assim?
— Nem tanto, a menos que você seja estúpido.
— Como?
— Devagar com o andor que o santo é de barro. Vá devagar que
você pode se dar bem.
— E o que o senhor acha que é se dar bem?
— Não fazer um papelão, ora...
— Está bem, está bem, Ministro. Mas o que o senhor quer que eu
faça?
— Não dê opinião a ninguém. Seja quem for que o procure, só dê
informações. Nenhuma opinião. Idéias próprias sobre isso só uma pessoa
pode ter. E você sabe qual é?
— O senhor.
— Vejo que você entende as coisas com facilidade.

45
46
CAPÍTULO VI

Até às quatro da tarde, Souza Aguiar teve um dia que, se não foi
excitante, ele achou engraçado. O Ministro mandara-o disfarçar e para
isto ele devia percorrer as repartições administrativas do Ministério, re-
solvendo problemas pendentes da sua Embaixada. No entanto, como a
maioria das pendências eram assuntos congelados, que tinham ficado
para o próximo orçamento, ele decidiu se aproveitar da situação. Não
perdeu tempo. Chegava nos setores, dizia que tinha vindo buscar tal ou
qual liberação e, quando os chefes protestavam, ele argumentava que
tinha ordens expressas do Ministro, e logo providenciava um telefonema
interno. No fim, ele levava tudo, para espanto dos burocratas.
Às quatro da tarde, foi para o hotel, seguindo a recomendação do
Chanceler, não marcando nada com ninguém. Mas quando chegou lá, ti-
nha um recado na portaria. Um telefonema e um nome, pedindo para ele
chamar a qualquer hora.
General Pedro Paulo Azevedo de Andrade.
Ligou.
— Ah! é o senhor? — disse do outro lado da linha o militar — eu
gostaria de saber se o senhor concordaria em jantar comigo, hoje?
— Com o maior prazer, General. Um único problema é que preciso
antes consultar o Ministro Zappa, pois não sei se ele marcou alguma coisa
para mim, hoje à noite. Posso confirmar mais tarde?
— Não se dê ao trabalho, Embaixador. Já combinei com o Ministro
que gostaria de falar-lhe ainda hoje, e ele me disse que o senhor teria a
noite livre. O senhor concorda?
— Se é assim...

47
— Então mando apanhá-lo às oito. Qual é o seu apartamento?
— Mil quinhentos e um.
— Obrigado. Então, até mais tarde.
— Até mais tarde, General.
Nem bem desligou, pediu uma linha à telefonista e chamou para o
gabinete do Ministro.
— Aqui é Souza, queria falar com o Ministro.
— Ah! ele estava esperando o seu telefonema; um momentinho,
disse a secretária.
— Souza Aguiar?
— Sim, Ministro. Posso saber que jantar é esse que tenho com o
General Pedro Paulo?
— Claro. Vá lá.
— Só isso?
— Só isso. Mas não esqueça do nosso trato.
— OK.
— Divirta-se!
— Está bem. Vou me divertir vendo as pernas roliças da senhora
generala.
— Ha! ha! ha! Você acha, é?
— Bem Ministro, quando nos vemos?
— Ligue-me quando voltar. Vou mandar um carro apanhá-lo e lhe
convido para os licores.
— Está bem. Vou para um banho de imersão.
— Certo. Mas não beba, hein?
— Está bem, Ministro. Até mais tarde.
— Até logo.
E desligaram. Souza Aguiar mandou pedir na portaria um isopor de
gelo, pegou três garrafinhas miniatura de Chivas Regall no Frigobar, en-
cheu uma banheira de água quente e se afundou no banho. Para distrair,
apanhou uma Veja e um Coojornal que encontrara na banca de revistas
em frente ao hotel. Sua paz não durou mais de quinze minutos. O tele-
fone tocou. A princípio, ele pensou em deixar chamar à vontade. Depois,
48
lembrou-se que num hotel a telefonista sempre sabe onde o hóspede se
encontra. Aí, levantou-se e foi ver o que queriam com ele.
— Meu amor?
— Lia...
— Ufa, como você está difícil. Até pensei que você estava renego-
ciando o Tratado de Tordesilhas.
Ele riu. Por um segundo, pensou e depois, respondeu.
— Ainda bem que me livraram dessa. Já imaginaste eu no Vaticano
negociando dias e dias com velhos abades barrigudos?
Foi ela quem riu de lá.
No fim daquele namoro, ele explicou que não poderia encontrar-se
com ela àquela noite.
— O Ministro quer jantar comigo.
Ela fez muxoxos, voz chorosa. Ele concordou.
— Está bem. Quando me livrar do homem, ligo para você. Mas cer-
tamente será muito tarde.
— Eu estarei esperando. Como você gosta.
— Mesmo se for tardíssimo?
— A qualquer hora. Ele não resistiu.
— Então, está bem. Nem que seja ao amanhecer, vou encontrar
você.
— Você é um amor. E eu vivo louquinha por você.
Souza Aguiar não agüentou. Teve de tomar uma dose inteirinha. À
inglesa, para se recuperar. A Lia estonteava o Embaixador.
— Às oito em ponto, justas, bateu o telefone. Era uma voz bem
jovem ainda, com um sotaque que lembrou ao Embaixador uma cena lon-
gínqua da sua juventude: Os discursos do Marechal Lott no rádio.
Ele já estava pronto, e só não desceu imediatamente para não dar
alegria aos agentes secretos que, com certeza, estavam vigiando todos os
seus passos e gravando todas as suas conversas.
Souza Aguiar tinha voltado a ligar para o Ministro para saber mais
detalhes da reunião na casa do General. Mas o Chanceler se limitara a
recomendar-lhe prudência e clareza, um conselho tão abrangente que ele

49
decidiu fazer como lhe ocorresse na hora. Recomendou, também, que ele
fosse vestido em traje esporte, pois os militares, na intimidade, são joviais
e detestam almofadinhas.
A viagem foi em silêncio. O jovem Segundo-Tenente, certamente
um ajudante-de-ordens ou algo parecido, deu pouca trela. Parecia aflito
para despachá-lo, pois, quem sabe, o dever de escoltá-lo não tinha deixa-
do uma namorada resmungona em ponto de arrancar-lhe os olhos.
O motorista parecia mais interessante. Na volta, já sem o Tenente,
Souza Aguiar puxara conversa e, para sua surpresa, encontrara um bom
conversador. Adão de Lima, paulista de Lucélia, vinte anos de Exército,
há doze com o General. Fora seu ordenança, andara com ele por várias
cidades do País e agora estava em Brasília.
— O General ainda tem seis anos no Exército, se passar a quatro
estrelas. Quando ele sair, saio junto — explicou o Sargento. Primeiro-Sar-
gento.
— Até lá posso chegar a Segundo-Tenente.
— E se o General for para a guerra, você vai junto?
— Bem, aí já não sei. Mas acho que ele não vai deixar o cabo velho
aqui no bem-bom... — disse refletindo, dando a entender que pergunta
lhe parecera absurda.
— Diga-me uma coisa, Sargento: o senhor daria a vida pelo Gene-
ral?
— Como assim?
— Digamos, se vocês dois estivessem em combate e, numa situ-
ação de perigo, o General caísse ferido, num fogo cruzado, você iria lá
tirá-lo do meio das balas?
— Olhe, doutor, o senhor não acha que eu estaria errado se aban-
donasse um amigo numa dificuldade dessas?
— E evidente que estaria.
Ele se compôs, satisfeito, aprumou-se no volante do Gálaxie e pa-
receu estar imaginando alguma coisa. Se deram bem, porque ele se des-
pediu calorosamente do Embaixador, quando o deixou na frente do hotel.
— Quando aparecer de novo lá na Cidade Proibida, me procure,
doutor.

50
E Souza Aguiar matutou alguns segundos e depois riu, achando que
ele estava certo. A Quadra dos Generais era realmente uma Cidade Proi-
bida, by Niemayer.
O General recebeu o Embaixador de uma maneira que o agradou.
Apresentou a família, falaram um pouco da experiência militar do Diplo-
mata, como aspirante da reserva, num quartel mineiro. Jantaram uma
bela comida caseira, e, sem muita formalidade, viu-se de repente a sós
com o militar.
— Um licor ou conhaque?
— O que o senhor bebe?
— Eu mesmo não tomo nada. Só café. Mas, se o senhor quiser, eu
o acompanho numa dose.
— Conhaque — respondeu o Embaixador, achando que aquele ho-
menzarrão não era o tipo de ficar bebericando licores. E acertou. Logo
surgiu um Fundador.
O início da conversa objetiva não foi muito complicado. Durante o
jantar, já descrevera muitas de suas impressões da África, para ser gentil
com a mulher do General. Contara sua carreira, a vida permanentemente
fora do País; o General falara na dele. Comentaram um pouco a política,
a economia, cada um deu várias opiniões sobre o equilíbrio mundial, de
maneira que os dois já estavam mutuamente situados para o momento.
Eles sondaram-se e logo viram que eram desnecessários os rodeios.
O General sabia de tudo o que Souza Aguiar viera fazer em Brasília. O Em-
baixador entendia perfeitamente qual era o papel do General.
— Eu acho a situação excitante, Embaixador. Já fiz muitos exercí-
cios como esse, mas nunca com o grau de realismo que o Presidente me
colocou.
— E o que o senhor acha? — perguntou o Embaixador.
— Se as pré-condições políticas forem otimizadas, é possível se
estabelecer um handicap que asseguraria uma margem bastante ampla
para o sucesso. Quais são essas possibilidades, Embaixador?
— General, eu não sou um político, mas um técnico em política.
Vou lhe responder por aí: se nós tivermos uma posição militar firme, o
quadro político será sensivelmente melhorado.
— Mas no momento, como o senhor vê isso?
51
— Partindo do princípio de que as Forças Armadas poderiam viabi-
lizar a operação, nós poderíamos negociar.
— E esse o primeiro passo?
— Acho que sim. Com essa resposta, podemos dar mais um passo.
— E qual será esse passo?
O que for mais conveniente para o Brasil. Na minha opinião, nós
estamos diante de um aceno de uma aliança. O Governo é que dirá até
onde vamos e como nos conduziremos nesse processo.
— Entendo.
— Uma pergunta, General?
— À vontade.
— Na sua opinião, como evoluirá esse caso?
— Bem... a minha alçada é menos decisiva que a sua. Só vou agir
quando o senhor — vamos resumir assim — der o sinal. Mas vamos ver,
hipoteticamente. Digamos que as condições políticas evoluam. Nós es-
tamos no ponto em que eu realizo uma manobra teórica. Eu e um grupo
reduzido de oficiais vamos recolher informações. São todos dados dispo-
níveis. Nós só vamos organizá-los para avaliar estatisticamente a possibi-
lidade, entendeu?
— Sim, entendi: uma manobra militar feita no gabinete.
— Mais ou menos isso. É muito comum, na OTAN e em outros com-
plexos militares que envolvem muitos elementos, fazer a manobra assim.
É o começo. Os próprios oficiais que trabalharão comigo não sabem qual
a finalidade de tudo.
— Entendo. É uma fase bem elementar, mas reconheço que é signi-
ficativa — raciocinou o Embaixador.
— O senhor me perguntaria pela segunda fase. Para isso, eu pre-
ciso de outra ordem do Presidente. Nesse caso, um maior número de
pessoas estarão envolvidas e os estudos serão mais aprofundados, com
o levantamento de necessidades objetivas e a checagem dos elementos
que poderiam intervir no processo. Nessa fase, já se forma um Grupo de
Trabalho, mas ainda não é uma operação. Para o senhor ter uma idéia, a
nível burocrático, a manobra não tem um comandante, mas um diretor
da manobra. Ou seja, ainda é um trabalho (como eu diria?) acadêmico.

52
— Sim, entendo. E depois?
— A terceira fase ainda é teórica, mas já envolve um projeto de
simulação; as unidades, os comandantes das unidades já vão falar por si,
um plano é feito e executado, ainda que teoricamente.
— E depois?
— Na última fase já se entra na prática. Mexe-se no efetivo, a tro-
pa recebe o treinamento para aquele tipo de operação e, se for o caso,
pode-se fazer uma primeira manobra, com marchas, tiro real, essas coisas
todas.
— Daí para a frente?
59
— Aí, como dizia Clausewitz, entramos na fase da realização da po-
lítica por outros meios. E o senhor como bom profissional sabe muito que
a guerra é um assunto muito sério para ser tratado por generais — riu-se
o General.
O militar tomou três conhaques e já passava da meia-noite, quando
ele chamou o Sargento Adão para levar o Embaixador de volta ao hotel.
A mulher dele ainda estava em pé para as despedidas.
Na saída, pouco antes de entrar no carro, já de novo sozinhos, só
os dois, Souza Aguiar disse uma frase que, tempos depois, ele viu como
tinha sido importante aquela afirmação, que fez sem nenhuma segunda-
intenção.
— General, só um palpite: se a coisa acontecer, faça o máximo com
armamento fabricado no País.

53
54
CAPÍTULO VII

A sorte do Embaixador foi que o Ministro também acordou tarde.


Ao se despedirem na noite anterior, deixaram marcado um encontro para
depois do almoço, no Itamaraty.
Quando chegou lá, viu que o Ministro continuava a par de todos os
seus passos.
— Foi bom você ter se despedido, porque esta tarde, ainda, vamos
para o Rio — disse o Chanceler sem se importar com a resposta.
— Isto mesmo: você, eu, o Presidente, o General Pedro Paulo e os
pilotos — quer mais?
— Sim, que o senhor me explique o que está acontecendo.
— Você verá. Peça ao oficial-de-gabinete um carro, pegue suas coi-
sas no hotel e volte para cá. Saimos às quatro.
— Sim, senhor.
— Outra coisa: não fale com ninguém.
— Como assim?
— Para ser claro, mande um bilhetinho e termine a coisa por aí,
entendido?
— Se é uma ordem?
— Pois é uma ordem.
— OK.
— Então vá!
Souza Aguiar ficou impressionado. Não sabia se era dele ou de Lia
que desconfiavam, ou se tudo era parte da paranóia da Segurança; e, por
fim, se não era ele quem estava imaginando coisas. Decidiu, contudo, se-
55
guir o conselho do Chanceler e mandou um bilhetinho a Lia, dizendo que
teve de partir apressadamente e que ligaria assim que pudesse.
O Embaixador e o Chanceler foram juntos no mesmo carro. No ae-
roporto, em vez de entrarem pela ala normal, desviaram-se e seguiram
para a Base Aérea, do outro lado. Lá, o carro entrou na pista e foi direto
a um avião Boeing 737, que ainda servia à Presidência da República. Ao
descer do automóvel, avistou o Sargento Adão levando as malas do Ge-
neral. A pequena comitiva embarcou e seguiram diretamente para o Rio.
Aterrissaram na Base Aérea do Galeão e saltaram direto para um
helicóptero SH-1D. A aeronave tomou o rumo da serra. Ele pressentiu que
seguiam para Petrópolis. Mas não era bem ali que iriam; ao avistar a casa
percebeu que o encontro seria com o Velho. Aliás, agora eram duas ca-
sas, pois o outro grande conselheiro mudara-se para as montanhas e os
dois freqüentavam-se. O Chefe fora um dos pivôs da crise ministerial que
levara Zappa ao Gabinete. Ele perguntou ao Chanceler como viviam os
dois, ali.
— Antes não se freqüentavam, mas agora vivem um na casa do
outro; acho que tinham problemas familiares que terminaram superados.
— E o que fazem?
— Dizem que jogam xadrez e, durante as partidas, o Velho põe o
outro a par de tudo, livros, documentos etc. Desde que o Chefe perdeu
parte da visão, as coisas ficaram mais difíceis para ele. Mas, você vai ver;
é uma cabeça admirável.
— Eles continuam dando as cartas?
— Não é bem assim. Não interferem no dia-a-dia da Administra-
ção, como no tempo em que estavam no Governo; mas são sempre con-
sultados e raramente dizem alguma coisa que não seja sensata para o
momento.
— Serão eles que decidirão neste nosso caso?
— Como te disse, a palavra final é do Presidente, embora a opinião
deles seja decisiva. Disso não há dúvidas. Bem, apronte-se que estamos
chegando. É ali — disse mostrando as casas, a maior e outra um tanto
menor.
O Embaixador ficou impressionado sobre o grau de informação dos
dois sobre um assunto tão recente. Com certeza já tinham ouvido as fi-

56
tas, analisado transcrições e examinado a questão nos seus aspectos mais
complexos. E os dois batiam a bola com uma tabela perfeita. Souza Aguiar
estonteou-se várias vezes. E surpreendeu-se como eles entendiam suas
hesitações. Depois da sabatina, os outros também entraram na conversa
e aquilo parecia ter-se transformado num conselho.
— Eu acho que é viabilizável, de imediato, colocar-se lá uns 50.000
homens. A nossa FAB é uma das forças aéreas mais bem preparadas no
mundo, em matéria de transporte aéreo — disse o Chefe.
— Minha preocupação — interveio o Velho — é na parte de com-
bate. Não que a FAB não possa organizar tudo isto, mas é uma questão de
efetivos. Ela terá que, pelo menos, num prazo curtíssimo, se pensarmos
nas necessidades de adestramento, que triplicar seu poder de fogo. O que
o senhor me diz, General?
— E verdade. Como resolver isso?
— Eu tenho uma idéia. Será dura de passar, mas acho que este será
o caminho, dado a emergência.
— Qual é? perguntou o Presidente.
— Reativar a aviação da Marinha — disse, seco, o Chefe.
— Como assim? perguntou o Presidente, e emendou gracejando —
o senhor sugere que eu desencadeie uma revolução?
— Pensei nisso. A reação inicial da Aeronáutica vai ser negativa,
mas quando eles perceberem tudo o que vão ganhar e a insignificância
real que terá a aviação naval, frente ao poderio deles, terminam concor-
dando.
— O que eu pergunto — atalhou o Velho — é se será mesmo neces-
sário mexer nesse assunto agora?
— Creio que sim, por um motivo prático — opinou o Chefe — o
Brasil precisará de todos, de absolutamente todos os seus pilotos em con-
dições de usar equipamento moderno de combate. A FAB tem um bom
número de aviadores ociosos que, em curto prazo, poderiam ser recon-
vertidos para pilotar supersônicos. Mas, novos será difícil fazer. E o senhor
sabe muito bem que a Marinha, desde que perdeu a aviação embarcada,
em sessenta e quatro, nunca se descuidou de formar seu pessoal, porque
eles acham inevitável que um dia a Marinha tenha sua própria força aé-
rea.

57
— Quantos homens eles teriam?
— Eles têm, em São Pedro da Aldeia, uma base. Possuem simula-
dores de vôo e tudo. Eu diria que podem colocar uns duzentos pilotos
voando em dois meses. Em cinco e seis meses, pelo menos cinqüenta por
cento a mais.
— É, isto não pode ser desprezado, numa emergência dessas.
— O maior problema que eu vejo, na área militar — atalhou o Ve-
lho — são as forças de terra. Embaixador, quantos homens o senhor acha
que os cubanos têm lá em Angola e que poderiam combater contra nós?
— Grosso modo, senhor, eu diria que a gente poderia partir dos
seguintes números que me foram passados pelo Embaixador angolano:
lá em Maputo, 22.000 cubanos; um regimento de alemães orientais com
três mil homens; dois batalhões tchecos; e uns três mil assessores sovié-
ticos. É muita gente, não?
— É. Não será nada fácil — atalhou o General.
— O senhor acha impossível, General? — perguntou o Chefe.
— Não há dúvida. Também fiz minhas contas. Nós possuímos tro-
pas de elite que se eqüivalem em número aos efetivos inimigos: fuzilei-
ros, pára-quedistas do Exército e da Aeronáutica, unidades especiais. Eles
formariam a vanguarda. Segundo: podemos reconverter, a curto prazo,
um bom número de homens egressos dessas forças de elite, que estão
na tropa geral ou na reserva, e teremos algo, digamos, como uma elite
de segunda linha muito bem preparada. Mas daí para a frente teríamos
de contar com conscritos. O que os senhores acham de conscritos numa
situação dessas?
— Só com eles, não daria — disse o Presidente — mas é para isto
mesmo que temos as tropas de elite: elas vão na frente e os conscritos
vão atrás. Eu acredito que, bem preparados, poderão combater.
— O que o senhor acha, Embaixador, o senhor que já serviu na
tropa? — atalhou o Chefe, dando a entender que tinha lido sua ficha in-
teirinha.
— E difícil para mim opinar, senhor. A única coisa que posso asse-
gurar é que as tropas de ocupação em Angola combaterão conosco. E é
possível que encontremos, ainda, alguma oposição do próprio Exército
Angolano, pois mesmo a gente tendo o apoio da cúpula do País e das suas

58
Forças Armadas, sempre haverá dissidentes que vão formar ao lado dos
cubanos.
A conversa continuou. Todos os aspectos do problema foram pas-
sados ali. Quem seriam os aliados? Pois era claro que o País não teria con-
dições de bancar sozinho numa parada tão alta. O General repetiu a su-
gestão do Embaixador de se usar um máximo de equipamento nacional,
o que repercutiu muito bem ali dentro. O próprio Chefe achou brilhante.
— É verdade — disse — além de fazer boa propaganda das nossas
armas, isso nos dará de imediato o apoio da indústria paulista.
O acerto interno parecia ser o problema mais difícil. Não nas Forças
Armadas (pois elas fariam o que o Governo mandasse), mas na sociedade
civil. O trabalho começaria com um Presidente e terminaria no primeiro
ano do mandato do outro. E ele nem estava definitivamente escolhido,
ainda. Era certo que seria, pela última vez, um militar. Mas havia, des-
ta feita, uma significativa participação dos partidos na escolha do futuro
mandatário. O curioso é que desta vez, ao contrário de 1978, havia con-
senso entre os partidos de que o Presidente deveria ser militar. As forças
políticas estavam tão equilibradas nas suas divisões, que um governo civil
não se poderia viabilizar. O Exército, então, teria de dar o Chefe de Estado
para sustentar o equilíbrio e dar continuidade à democracia tão dificil-
mente obtida durante o Governo Figueiredo.
Quando saíram dali já havia um plano. Souza Aguiar deveria voltar
para Maputo e esperar sua transferência para as Nações Unidas. O nego-
ciador angolano deveria ter a mesma posição. Ou, então, ambos teriam
que encontrar um lugar-comum para manterem os dois negociadores,
que continuariam os contatos. Maputo foi considerado muito distante e
com poucas opções de comunicação. O segredo era a base da viabilidade
e o Governo brasileiro somente aceitaria participar dessa forma: a) — os
angolanos definiriam os limites da atuação brasileira; b) — o Brasil dirigi-
ria completamente as operações e diria quais as suas condições políticas
para oferecer a ajuda solicitada. Ou seja: o Brasil iria a Angola usar suas
forças sem cobrar nada. Mas Angola teria de, em contrapartida, fazer
tudo como o Brasil pedia, na parte militar.
Os seis meses seguintes foram de preparativos e de intensa ativi-
dade diplomática. O que mais impressionou ao Embaixador, segundo seu
depoimento da CPI do Congresso que investigava acusações de corrupção

59
na chamada Guerra de São João, foi o jeito com que o Brasil conseguiu
conduzir o processo até o final. Ele disse que não imaginava, no momen-
to, o sentido exato de uma frase dita, no final da célebre reunião de Tere-
sópolis, pelo Chefe, com inteira aprovação do Velho, o que lhe pareceu,
na hora, uma decisão tomada pelos dois antes mesmo da chegada deles
para o encontro.
— Vamos ir fazendo, mas do nosso jeito.
Nas Nações Unidas, ele e Martinho Luque canalizavam todas as ne-
gociações. É verdade que o Chanceler esteve em Angola em meio a um
giro pela África. Agostinho Neto esteve no Brasil para assistir à posse do
novo Presidente, a convite do Partido Comunista, recentemente legaliza-
do, o que apoiou com seus 30 deputados a eleição indireta.
Aliás, é bom aqui explicar por que mudou o sistema das eleições
indiretas. Foram os comunistas que colocaram a questão e ela pareceu
muito bem posta para os outros partidos da coligação. Para legitimar o
candidato, ele foi eleito no Congresso depois da posse dos novos depu-
tados e senadores. Assim, a sucessão partiu de uma campanha recente e
não, como antes, feita por um Congresso em fim de mandato.

60
CAPÍTULO VIII

Trinta de maio de 85. Escola Superior de Guerra, Forte São João.


Dois generais, um brigadeiro, um almirante.
— Senhores, uma comunicação: por decreto reservado do senhor
Presidente da República, a partir deste momento o Grupo de Trabalho
da Manobra passa a se denominar Comando Combinado — informou o
General Pedro Paulo.
— Isto significa o quê, exatamente, General? — perguntou o Briga-
deiro João Paulo Manaison.
— Significa que nós agora constituímos um Comando.
— General? — se eu dissesse que suspeito que essa manobra po-
deria chegar a um nível inesperado de realismo estaria dizendo uma in-
verdade? — arriscou o Almirante Silva Paes.
— Almirante, eu, como comandante da ESG, desenvolvi esse exer-
cício dentro de níveis de realismo inéditos para os padrões normais do
Brasil. Devolvo-lhe a pergunta, Almirante: no seu entender, a Marinha re-
alizaria sua parte?
— Uma boa pergunta, General. Devo respondê-la?
— O senhor tem uma hora para reunir os dados, pois daqui a pouco
este mesmo Comando se reúne para uma avaliação real da operação. Até
mais, senhores — disse o General, dispensando os subordinados.
Uma hora depois, eles voltaram a se reunir. Agora com quatro-
estrelas, Comandante da ESG, o General Pedro Paulo montara a opera-
ção como um exercício da Escola Superior de Guerra. Em vez de discutir
política, os estagiários e o Corpo Permanente trabalhavam na Operação
Lusitânia, como era chamada a manobra. E com um grau de realismo que
61
surpreendera os próprios membros do Corpo Permanente.
Nunca o País tinha feito algo parecido, e isto os estimulava. Por
exemplo: o serviço público e as grandes empresas estatais destacaram
seus executivos, alguns deles dos melhores que tinham, para serem trei-
nados na administração das três forças. Isto, por exemplo, na Marinha
e na Aeronáutica, liberava oficiais combatentes das tarefas burocráticas
para funções operacionais, a bordo de aviões ou de navios. E de certa
forma, houvera um acréscimo considerável na eficiência administrativa
das Forças pois, de fato, ali estavam os melhores quadros do setor civil,
da máquina estatal.
E o mais interessante: o País estava armado até os dentes. A mobi-
lização que eles iam fazer poderia ser completamente executada.
Reinstalada a reunião, primeiro falou o Vice-Almirante.
— A Marinha parte do Rio, Recife, Rio Grande, Salvador, Paranaguá,
Belém, Porto Alegre, Pelotas e Santos. São 190 vasos-de-guerra, incluindo
vinte submarinos e 150 transportes, a maior parte barcos mercantes con-
vertidos para operações militares, e 40 tanques com combustíveis, água
e outros suprimentos. Além disso, temos sob nossa responsabilidade 25
mil fuzileiros navais equipados, incluindo material motomecanizado, arti-
lharia e blindados.
Depois ele entrava no detalhamento. Toda a logística, custos, repo-
sições, aquela lista infindável de providências necessárias a uma mobiliza-
ção de tanta gente e material.
— O senhor está seguro de que a Marinha poderá fazer a sua par-
te? — perguntou o General.
— Bem... a metade do nosso material é de primeira; a outra meta-
de funciona, mas é equipamento antigo.
— Por exemplo?
— Metade dessa armada são navios e submarinos bem modernos.
Eles são a base ofensiva da Marinha. Um terço é material já um pouco
obsoleto, mas que ainda possui ampla utilidade de emprego, como é o
caso dos três porta-aviões: o mais moderno deles, o São Paulo (ex-Ark
Royal), tinha sido desativado pela Inglaterra em fins de 1978, mas com
aviões modernos, ele mantém sua capacidade de emprego. Este também
é o caso de destroiers e fragatas modernizadas nos nossos estaleiros e

62
adaptadas para o uso de armamento mais atualizado. O outro terço é
totalmente obsoleto. É o caso de dois submarinos e alguns navios de su-
perfície que vêm da Segunda Guerra. Essas belonaves somente têm em-
prego em missões de patrulha para reforçar o bloqueio. Por exemplo: o
cruzador Almirante Tamandaré já estava desativado e só não foi para o
ferro-velho porque os veteranos de Saint Louis não desistiram de reaver
seu casco. E ele foi ficando até ser reativado; um dos submarinos, o antigo
Rio Grande do Sul, agora rebatizado Guaíba, não pode passar mais de três
horas submerso. Mas para uma patrulha sempre serve. Agora o plano —
ia continuando o Vice-Almirante, quando foi interrompido pelo General
Comandante-em-Chefe do Comando Combinado.
— Um momento, Almirante. Vamos por partes. Primeiro, detalhe-
mos essa armada, barco a barco, e depois traçamos o rumo dela, correto?
— Sim, senhor.
— Então comecemos pelo pessoal.
— Pois não — disse o Vice-Almirante, abrindo uma outra pasta.
— A bordo dos navios, temos o seguinte quadro: primeiro, os na-
vios modernos, evidentemente, estão com o efetivo completo e treina-
do; segundo, trinta por cento do restante do pessoal eram reservistas ou
militares que estavam em atividades auxiliares ou, mesmo, na reserva,
mas todos oriundos da Marinha ou ex-integrantes do Quadro Auxiliar. O
restante eram ex-oficiais mercantes, ativados entre quatro e dois meses
ou no quadro inferior, voluntários embarcados ainda no período. Daí uma
grande variação do índice de eficiência da Força. Os critérios de emprego
deverão ser muito cautelosos, mas, de maneira geral, o tipo de ação e
a possibilidade reduzida de oposição em alto-mar nos asseguram essa
margem de segurança.
— E todos os barcos já se encontram em condições?
— Só falta a corveta Itajaí, cujos motores somente ficarão prontos
daqui a 10, no mínimo, e 15 dias, no máximo. Sua tripulação é a de mais
baixo índice de adestramento. O próprio comandante, Capitão-de-Corve-
ta Rildo Haag, estava há 12 anos fora da Marinha e foi reativado há pouco
mais de vinte dias. Mas como ele quando estava na ativa tinha curso e
comando nesse tipo de barco, poderá navegar sem problemas. Em todo
o caso, segundo nossos planos, o Itajaí ficará no apoio, ao longo da rota.
— Muito bem, Almirante. Vamos ver agora a Força Aérea.
63
— Nossos efetivos são os seguintes: transporte: 100 c-130; 50 c-145
(Gálaxie); 20 c-119; 12 c-82; 200 Búfalos; 60 c-47; 150 aviões comerciais a
reação convertidos, sendo 60 Boeing 727; 40 Boeing 737, 30 Boeing 707,
16 Douglas DC-10 e quatro 747. Além disso, teremos 13 Electra II, dois
DC-6 e um Viscount. Há ainda dois BAC 111 da FAB cujo emprego no vôo
transoceânico é desaconselhado, mas estamos estudando sua utilização.
— Segundo — continuou o Brigadeiro — o controle desse tráfego
aéreo será feito pela 1a Esquadrilha de Alarma Aero-transportada, com
oito aviões Nimred e três Boeing 707; além disso, o sistema AWACS será
reforçado com três aviões Orion cedidos pela Alemanha, que chegarão ao
País dois dias depois do início das operações.
— Teremos quatro trampolins, dois em território nacional, em Trin-
dade e Fernando de Noronha, e dois nos aeroportos cedidos em Santa
Helena e Ascensão. É preciso advertir que, no caso de falharem as gestões
diplomáticas para a cessão de Santa Helena, a operação estará em perigo.
A FAB, em todo o caso, pode usar dois Batalhões de Guardas Aerotrans-
portados e garantir a posse das ilhas.
— Calma, Brigadeiro. Mas vamos em frente — continuou o Gene-
ral.
— A força de combate anti-submarino ficará em Macapá, Salva-
dor, Fernando de Noronha, Trindade, Florianópolis e Rio Grande. Tenho a
satisfação de informar que nossos mecânicos conseguiram recuperar 12
P-2 que estavam desativados, os quais irão reforçar nossos equipamentos
Araguaia e Bandeirante.
— A Força de Bombardeiros, armada com 280 B-52, parte do Rio de
Janeiro e metade dela ficará baseada em Lobito. Bem, vamos agora para
os elementos ofensivos.
— Oitenta aviões-tanque estarão voando em cima do Atlântico,
com base de reabastecimento em Trindade para garantir a ida e a vol-
ta dos caças. A Infantaria de Guardas, com apoio do Exército, estabelece
aeroportos em Nóqui e Benguela, Lobito e Girauí. Com o apoio dos Fuzi-
leiros Navais, será montado outro aeroporto em Santo Antônio do Zaire.
Vamos instalar 20 esquadrilhas nessas bases, assim divididas: a) — duas
esquadrilhas de transporte de Asa Móvel, uma de aviação de Caça com
Gavião-Rei EMB-115-F, três com F5E e uma com Mirage III; duas esquadri-
lhas de reconhecimento e ataque, uma com Xavante AT-26D e outra com

64
T-33 (esta com pilotos do segundo ano da Academia de Pirassununga);
duas esquadrilhas de Transporte Aéreo, em Santo Antônio do Zaire...
E, assim, o Brigadeiro foi detalhando a mobilização da Força Aérea.
Pela tática, o primeiro impacto seria dos aviões dos três porta-aviões: São
Paulo, a nau-capitânia da esquadra. Minas Gerais e Rio de Janeiro. O São
Paulo e o Minas, armados por aparelhos ingleses do tipo Harrier; o Rio de
Janeiro, com Hunters, também ingleses. Em seguida, chegariam os B-52 e
os caças vindos do Brasil e reabastecidos no ar. Essa operação coincidiria
com a tomada dos aeroportos, o que não se espera ser muito difícil, pois
em Lobito e Benguela é certa a adesão total das forças militares angola-
nas. Em Girauí, há a possibilidade de socorro de um batalhão cubano. Em
Santo Antônio do Zaire, os fuzileiros terão de empurrar os cubanos para o
interior e tomar o aeroporto de Nóqui. A oposição aérea pode partir das
três bases cubanas: Luanda, Carmena e Roçados. Essas bases serão ata-
cadas de surpresa. Nos outros aeroportos, há muito pouco armamento.
Em Nova Lisboa e Silva Porto, estão os efetivos aéreos angolanos, com
MIG-21. Nessas bases, é provável que os instrutores soviéticos decolem
para contra-atacar.
— Perfeito, agora vamos almoçar e à tarde nos dedicamos ao Exér-
cito — disse o General-Comandante.
A exposição do Exército começou com um plano de deslocamento
de pessoal e material para os pontos de embarque. Uma parte seguiria
de navio e outra, por via aérea. As unidades destacadas para intervir em
Angola teriam de deixar uma parte do efetivo no País. E as que não fos-
sem empregadas na manobra deveriam estar aptas a sustentar as várias
possibilidades de retaliação inimiga.
— A atividade do Exército será desdobrada em três níveis. Um pri-
meiro enfoque serão as pontas-de-lança, a cargo das duas brigadas de
pára-quedistas e da 23a Brigada de Infantaria de Selva, de Marabá, que
será transportada por avião. O segundo enfoque será cumprido pela tro-
pa convencional, progredindo no terreno em progressão territorial. O ter-
ceiro enfoque será a defesa dos pontos críticos, assegurando o abasteci-
mento e o livre fluxo de tráfego.
— A primeira leva de pára-quedistas, formada pela Primeira Bri-
gada Aerotransportada, salta entre Benguela e Sá Bandeira com o Grupo
de Obuses 105 mm Pára-quedistas, 6o Grupo de Artilharia de Campanha

65
Pára-quedista, 1a Companhia de Engenharia de Combate Pára-quedista,
20a Companhia de Comando Pára-quedista, 2o Batalhão de Infantaria Ae-
rotransportada, 20o, 25o, 26o e 27o Batalhões de Infantaria Pára-quedista.
A missão dessa brigada será tomar Sá Bandeira. O outro grupamento des-
ce em Girauí.
— Em Benguela, transportados pelos jatos civis, desembarcam o 3o
Batalhão de Polícia do Exército de Porto Alegre, o 2o Batalhão de Polícia
do Exército de São Paulo e o 3o Grupo de Canhões Antiaéreos de Caxias
do Sul.
— Em Lobito, também por via aérea, desembarcam o 2o Batalhão
de Infantaria de Selva de Belém, o 56o Batalhão de Infantaria de Campos,
o 62o Batalhão de Infantaria de Joinville e o 1o Grupo de Canhões An-
tiaéreos do Rio. A missão desses grupos será assegurar o desembarque
de pessoal que vem pelo mar. Vamos então ver como serão lançados os
demais agrupamentos.
— Um momento, General — atalhou o Almirante — não seria inte-
ressante eu falar rapidamente da operação em Santo Antônio do Zaire?
— Pois não.
— O desembarque em Santo Antônio será feito em duas cabeças-
de-praia com quatro horas de intervalo uma da outra. O primeiro corpo
de fuzileiros desembarca na Foz do Congo. A primeira unidade a chegar
na praia será o Batalhão Humaitá, seguido do Batalhão de Comando e o
Batalhão de Operações Especiais. Também desembarcam nesse primeiro
momento o Batalhão de Engenharia de Comando e o Batalhão de Trans-
portes Motorizado. Com a base plantada na praia chega, então, a Força de
Fuzileiros da Esquadra. Ao Sul, quatro horas mais tarde, a Divisão Anfíbia
fará o seu desembarque. O Batalhão de Engenharia assegura a aterrissa-
gem dos efetivos da 23a Brigada de Infantaria de Selva, em Nóqui.
— Obrigado, Almirante — disse o General — essa posição das for-
ças é que garantem a cabeça-de-ponte em Angola. A seguir, passo aos
preparativos do momento.
— O Exército já está com todas as forças concentradas nos pontos
de embarque prontas para entrar nos navios — aliás — disse, olhando o
relógio — há uma hora que os efetivos estão subindo aos navios.
— Então prossiga — consentiu o General Pedro Paulo.

66
— Primeira Infantaria: em Santos, embarcam o 2o Batalhão de Ca-
çadores, o 2o Batalhão de Guardas, o 16o Batalhão de Caçadores de Cuia-
bá, o 17o Batalhão de Caçadores de Corumbá e o 39o Batalhão de Infanta-
ria Motorizada de Quitaúna (SP); em Salvador, embarcam o 19o Batalhão
de Caçadores, o 28o Batalhão de Caçadores de Aracaju e o 59o Batalhão
de Infantaria Motorizada de Maceió; em Recife, embarcam o 25o Bata-
lhão de Caçadores de Teresina, o 15o Batalhão de Infantaria Motorizada
de João Pessoa, o 16o Batalhão de Infantaria Motorizada de Natal e o 71o
Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns; no Rio, embarcam o
3o Batalhão de Infantaria de São Gonçalo, o 6o Batalhão de Infantaria de
Capaçava (SP), o 10o Batalhão de Infantaria de Juiz de Fora, o 22o Batalhão
de Infantaria Motorizada de Barra Mansa, o 42o Batalhão de Infantaria
Motorizada de Jatai, Goiás, o 43o Batalhão de Infantaria de Goiânia, o 57o
Batalhão de Infantaria Motorizada do Rio, o 24o Batalhão de Infantaria
Blindada, o 1o Regimento de Carros de Combate, o 3o Regimento de Car-
ros de Combate e o 2o Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado. Em
Pelotas, embarcam o 17o Batalhão de Infantaria de Cruz Alta e o 63o Ba-
talhão de Infantaria de Florianópolis; em Rio Grande, o 7o Batalhão de In-
fantaria Blindada de Santa Maria, o 8o Batalhão de Infantaria Motorizada
de Santa Cruz do Sul, o 9o Batalhão de Infantaria Motorizada de Pelotas,
o 33o Batalhão de Infantaria Motorizada de Jaguarão e o 61o Batalhão de
Infantaria Motorizada de Santo Ângelo. Esta, a posição da Infantaria. Ago-
ra passemos à Cavalaria — disse o General, procurando outro mapa, que
demonstrava os deslocamentos.
— Em Santos, embarca o 11o Regimento de Cavalaria de Ponta
Porã; no Rio, embarcam o 1o Regimento de Cavalaria de Combate, o 3o
Regimento de Cavalaria de Combate e o 5o Regimento de Cavalaria Me-
canizada; em Recife, embarca o 16o Regimento de Cavalaria Mecanizada
de João Pessoa; em Rio Grande, embarcam o 4o Regimento de Cavalaria
Blindada de São Luís Gonzaga, o 9o Regimento de Cavalaria Blindada de
São Gabriel, o 1o Regimento de Cavalaria Motorizada de Santa Rosa, o 3o
Regimento de Cavalaria Mecanizada de Bagé, o 5o Regimento de Cavala-
ria Mecanizada de Quaraí e o 14o Regimento de Cavalaria Mecanizada de
Dom Pedrito; em Porto Alegre, embarcam o 3o Regimento de Cavalaria
de Guarda de Porto Alegre, o 8o Regimento de Cavalaria Mecanizada de
Uruguaiana, o 12o Regimento de Cavalaria Mecanizada de Porto Alegre e
o 3o Regimento de Polícia Rural Montada de Pelotas.

67
— Agora, a Artilharia: embarcam em Santos o 9o Grupo de Artilha-
ria de Campanha de Nioaque, Mato Grosso, o 20o Grupo de Artilharia de
Campanha de Barueri e o 6o Grupo de Artilharia de Costa de Praia Grande;
em Porto Alegre, embarcam o 13o Grupo de Artilharia de Campanha de
Cachoeira do Sul, o 19o Grupo de Artilharia 105 mm de São Leopoldo e
o 27o Grupo de Artilharia de Campanha de Ijuí; em Rio Grande, embarca
o 22o Grupo de Artilharia de Campanha de Uruguaiana; em Paranaguá, o
15o Grupo de Artilharia de Campanha de Lapa, Paraná; no Rio, o 1o Grupo
de Artilharia de Campanha Autopropulsado e o 8o Grupo de Artilharia de
Costa; em Recife, embarca o 17o Grupo de Artilharia de Campanha de Na-
tal; em Fortaleza, embarca o 10o Grupo de Artilharia de Fortaleza.
— Ufa! — deixou escapar o General, passando um lenço naotesta.
— Continuemos. Vamos ver agora a Engenharia. Embarcam no Rio
o 1o Batalhão de Engenharia de Combate, o 4o Batalhão de Engenharia de
Combate de Itajubá, Minas Gerais e o 2o Batalhão Ferroviário de Araguaí,
Minas. Devo esclarecer que algumas unidades, como esses Batalhões
Ferroviários, irão assegurar a manutenção e reconstrução de estradas
destruídas. Mas vamos lá. Em Rio Grande, embarcam o 6o Batalhão de
Engenharia de Combate de São Gabriel e o 16o Batalhão de Engenharia de
Combate de Alegrete. Em Recife, o 7o Batalhão de Engenharia de Comba-
te de Natal e o 2o Batalhão de Engenharia de Construção de Teresina; em
Salvador, embarca o 4o Batalhão de Engenharia de Construção de Barrei-
ras, Bahia; em Belém, embarcam o 6o Batalhão de Engenharia de Comba-
te de Boa Vista e o 2o Batalhão Ferroviário de Mauá.
— Por fim, as unidades de apoio. Vejamos: no Rio, embarcam a
111a Companhia de Apoio de Material Bélico, 1o Batalhão de Manutenção
de Armamento, o 1o Batalhão de Comunicação Divisioná-ria, o 1o Bata-
lhão de Comunicações de Exército, o 16o Batalhão Logístico de Brasília,
o 17o Batalhão Logístico de Juiz de Fora, o 19o Batalhão Logístico e o 21o
Batalhão Logístico, ambos do Rio. Em Porto Alegre, embarcam a 3a Com-
panhia-Depósito de Material de Intendência, o 6o Batalhão de Comuni-
cação Divisionária de Bento Gonçalves e o 4o Batalhão Logístico de Santa
Maria; em Recife embarca o 4o Batalhão de Comunicação de Exército; em
Santos, a 2a Companhia Independente de Saúde e o 2o Batalhão Logístico
de Campinas. Em Paranaguá, o 5o Batalhão Logístico de Curitiba.
— Esta, a posição de embarque, senhores.

68
— Perfeito, agora vamos detalhar o plano de operações, propôs o
Comandante-em-Chefe. Mas, antes, um cafezinho.

69
70
CAPÍTULO IX

— General, com licença — disse o Coronel Assis, um dos assistentes


e que estava do lado de fora da sala do Comando — o Presidente está
vindo para cá.
— Como você não me avisou, rapaz? — questionou o General.
— O senhor mesmo proibiu — desculpou-se o Coronel.
— Bem, vamos ver o que o homem quer, agora — disse o General,
dirigindo-se para a sala onde os outros três oficiais esperavam por ele,
que tinha aberto a porta para pedir o cafezinho.
— Aí vem o Presidente. A reunião do Comando está dissolvida até
nova ordem. Agora, se me dão licença, preciso ver o que nos trás de novi-
dades nosso comandante supremo.
O helicóptero pousou na prainha do Forte São João. Rápido, desceu
o Presidente. Alto, meio grisalho, caminhou com desenvoltura, apertou a
mão do comandante da Escola e os dois entraram na sala do velho prédio.
Já se ouvia o ruído de outro helicóptero chegando.
— Pedro Paulo — disse o Presidente — precisamos conversar com
toda a urgência. Como está a operação?
— Em marcha, Presidente.
— Tive hoje notícias de Nova Iorque. Será tudo como estava previs-
to. Algum atraso?
— Até agora, não. Ou melhor, nada que não possa ser recuperado.
Algumas unidades que tinham de embarcar ontem recém estão chegando
nos portos, coisas de rotina.
— Pois bem, então vamos conversar sobre os aspectos políticos,

71
propôs o Presidente.
— Quais aspectos políticos? — perguntou o General, intrigado.
— Hoje de manhã pus o Alto-Comando a par. — disse o Presidente.
— Sim? e qual foi a reação?
— De espanto.
— E então?
— Terei de fazer mudanças, mas nada que seja indesejável.
— Como assim?
— Eles temem um fracasso.
— Bem, isto é praticamente impossível. Contar com o sucesso é da
natureza da emboscada.
— Eu argumentei isso. Mas, sejamos realistas. Se não der certo, o
que faremos?
— A operação não terá erro. Sempre teremos alternativas.
— Não adianta. De qualquer forma, você tem razão, não há mais
condições de recuarmos. Mas o que eu quero dizer é o seguinte: a única
chance que tenho de manter algum controle sobre a situação, em caso de
emergência, é manter o Comando Combinado no Brasil.
— Como assim?
— Bem... por decisão do Alto-Comando, em conjunto comigo, fize-
mos algumas alterações no quadro de pessoal. Você e o Comando Combi-
nado ficam em Brasília. O General Ludwig está chegando aqui para assu-
mir o comando expedicionário.
— Mas, Presidente!
— Não há alternativa, Pedro Paulo.
— Como não, você é o Comandante-em-Chefe — disse o General,
já agora retomando uma intimidade que tinha com o Presidente. Aliás,
até uma certa superioridade, pois era mais antigo que ele.
— Pedro Paulo, você deve entender...
— É claro que eu entendo, Presidente.
— Você sabe muito bem que eu mesmo sou contra essa operação.
Foi uma herança horripilante que o General Figueiredo deixou para mim.
— Mas está feito. Como você mesmo disse, já passamos do ponto
72
de retorno.
— Saiba, Pedro Paulo — lamentou o Presidente — o que eu mais
sinto é não poder retornar. Eu não queria isso tudo — disse, sinceramente
— não tenho vocação, paciência, ambição, nada! Nenhuma das condições
necessárias para ocupar o posto que ocupo. Preferiria, se você quer saber,
estar no seu lugar.
— Pois eu também acho. Na minha opinião nós (militares) deve-
ríamos estar fora disso. Os paisanos que cuidassem dessa fofocada toda
e nós poderíamos viver altivos, e não contra a parede como estamos, só
porque somos obrigados a dar cobertura para uma situação que não de-
sejamos.
— É fácil falar.
— Se eu fosse você, ia embora.
— Antes pudesse.
— É verdade. Mas vamos em frente, o que deve se fazer?
— Tudo. Achei o Ludwig um bom nome. É capaz e vai se sair bem
desta. Gostaria que você passasse para ele o pessoal, mas fique comigo,
lá em Brasília, pois só assim estarei tranqüilo.
O General pensou e resolveu distender um pouco. Fez uma brinca-
deira.
— Com o cu na mao?
— Se você acha, é isso mesmo — disse o Presidente, sem entrar na
brincadeira, mas sem hostilidade.
— Eu também. Vamos vencer. Algo me diz que tudo dará certo.
Você avalia a importância disso tudo para o Brasil?
— Claro. O Ludwig já chegou. Vamos ao trabalho.
Na verdade não foi necessário explicar muita coisa para o General
Ludwig. Ele era o Comandante do IV Exército e por isso conhecia todo o
plano teórico da manobra. Sua única surpresa foi saber que era para valer
e agora tinha decidido aceitar o Comando. Sabia, também, que estavam
na Escola oficiais altamente preparados para formarem os Estados-Maio-
res das Brigadas. Sua função seria dar continuidade ao plano e, o mais
difícil, compor politicamente, lá na África, com os angolanos. O próprio
Pedro Paulo, quando lhe passou o comando, reconheceu que ele seria
melhor para a função, pois tinha mais jeito para essas coisas.
73
— Como você vê a operação? — perguntou Ludwig.
— Bem, os pilares-da-ponte ficam em Fernando de Noronha e Trin-
dade. Ainda no Brasil, a pista de São Pedro e São Paulo será usada basi-
camente para emergências. Somente uma unidade, SAR (Busca e Salva-
mento), ficará lá. Com a cessão de Santa Helena, ficamos com mais quatro
aeroportos como segundo pilar: um em Ascensão e três em Santa Helena.
Os ingleses já fizeram a terraplanagem, de maneira que nós só teremos
de lançar as chapas em cima. Levará cinco horas essa operação, embora
os aeroportos possam funcionar somente com o piso básico. Em Ascen-
são já existe aeroporto, o que facilita as coisas. Será mais um problema de
montar uma infra-estrutura para ele.
— Sim — aprovou o novo comandante.
— Nosso primeiro esforço se concentra no litoral. Devemos assen-
tar uma base firmíssima nas terras baixas e, só depois de totalmente esta-
belecida a cabeça-de-ponte, subiremos a serra para ocupar o território. O
grande porto para desembarque de material pesado será Lobito. Teremos
de descer ali, em três dias, no máximo, 60 M-4, uns 200 M-3 Al, 250 M-41
B, 30 M-41, 50 X-l, 400 Cascavel M-8, 150 Urutu M-59, 3000 M-113, 350
Zebus. os caminhões, jipes etc. e todo o material motorizado e a maior
parte da Intendência. Mas vamos soltar material e gente em Girauí, de-
sembarcaremos em Benguela. Segurar a franja litorânea será o mais im-
portante. Depois, avançamos com duas brigadas ao longo da ferrovia para
tomar as principais cidades.
E, assim, o General foi mostrando seu plano. Carros de combate,
mísseis antitanques Cobra, canhões antiaéreos de 40 milímetros, de 90
milímetros, misses terra-ar Roland, mais a proteção da Marinha. No fim,
sugeriu que o comando da — agora, com o novo decreto — Força Expedi-
cionária Brasileira Salvador Correia de Sá fosse estabelecido em Trindade,
nos primeiros dois dias, em vez de Lobito. Mas a medida foi rejeitada pelo
General Ludwig. Ele desceria na segunda leva.
O Presidente estava à vontade ali naquela sala, discutindo os deta-
lhes da operação. Foi quando o novo comandante fez uma pergunta que
não tinha surgido na reunião do Alto-Comando.
— Como o senhor pretende encaminhar politicamente, aqui no
Brasil, a aprovação do desembarque?
— Isso veremos na hora. Mas tenho para mim que será necessário
74
lançarmos mão da legislação de emergência.
— Não aconselho, Presidente. Sugiro que o senhor discuta o pro-
blema com os partidos.
— Como assim?
— O senhor chama os presidentes dos partidos e faz um acordo
com eles em troca da aprovação, pelo Congresso, da legislação necessá-
ria.
— Impossível.
— Por quê?
— O sigilo absoluto é a base de toda essa operação. Se puzer-mos
mais um homem a par, corremos perigo.
— Mas, Presidente! — ponderou o General Ludwig — essa legisla-
ção de emergência foi criada em circunstâncias que a torna obsoleta hoje,
diante do quadro nacional. Não podemos recorrer a um ato de força, em
hipótese alguma. O preço dessa vitória não deve ser um golpe na nossa
democracia, nessa estabilidade política sui-generis que conseguimos nes-
tes últimos anos.
— Bem... Vamos discutir o assunto no Alto-Comando. Não agora,
por favor — propôs o Presidente.
Os outros dois generais voltaram aos mapas e continuaram falando
da guerra.

75
76
CAPÍTULO X

Souza Aguiar quase não pôde dormir à noite. Agostinho Neto tinha
chegado, inesperadamente para os demais, e iria falar no Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Ninguém sabia o que ele teria a dizer, pois
aparentemente a situação em Angola era de calma, fora as especulações
normais em função do agravamento da doença do Presidente do País.
A tarde, logo após a chegada, Souza Aguiar esteve com o Presiden-
te, na sede da Embaixada junto às Nações Unidas. Ele viera num avião
especial, um Tupolev de quatro turbinas das Linhas Aéreas de Angola.
Ele tinha mandado Luís Paulo esperar Agostinho no Aeroporto La
Guardia. Aparentemente, seria uma gentileza da Embaixada brasileira.
— Como está o homem? — perguntou o Embaixador.
— Mal. Acho que mal. Está pouquinho. Disse-me para o senhor ir
falar com ele a partir das quatro da tarde.
— Quer dizer que tenho uma hora e meia. E o Martinho?
— Parecia nervoso. Mas não é para menos.
— Quem mais estava lá?
— Que eu visse, o Rudolf, da ONU, e o Stevenson, do Departamento
de Estado. Só deram boas-vindas e foram embora. Além disso, deveriam
estar agentes de segurança, mas não notei. Quer dizer, havia a seguran-
ça normal da Sala VIP, os guardas angolanos e uma infinidade de gente.
Ele saiu direto para o carro da legação e seguiu para a Embaixada deles.
Dorme lá.
— Obrigado, Luís Paulo. Vamos nos preparar, então — disse.
— Sim, senhor — respondeu o, agora, segundo-secretário, saindo

77
para uma última verificação nas pastas.
Para evitar suspeitas caso fossem vistos, fotografados ou filmados
entrando na Embaixada, ele dividiu a documentação em duas pastas do
tipo executivo, evitando um volume maior. Lá dentro, tomou uma em
cada mão e entrou no gabinete do Embaixador. Martinho abraçou o cole-
ga, na ante-sala e o introduziu no escritório dele, agora ocupado pelo Pre-
sidente e os outros membros da comitiva. Estavam ali os chefes militares
angolanos. A justificativa no País para acompanharem o Presidente fora
a mais tola, mas tinha funcionado plenamente: mordomia. Um passeio
para os generais e o almirante.
— Boa tarde, Embaixador, prazer em vê-lo, como está?
— Boa tarde, senhor Presidente, prazer em vê-lo. Estou muito bem,
obrigado. E o senhor? — respondeu apertando a mão.
— Muito bem.
— Fez boa viagem?
— Ótima. E o senhor teve problemas para chegar aqui?
— Um pouco de tráfego, mas tudo correu bem.
— E a família?
— Bem, obrigado.
— Quero lhe apresentar meus companheiros. Creio que o senhor
já conhece alguns deles?
— Sim. Como está, General Murtinho?
— Bem. E o senhor?
Muito bem, obrigado. Prazer em revê-lo.
— Apresento-lhe o Almirante Emílio Costa.
— Muito prazer.
— Muito prazer.
Apertou a mão dos outros: o Comandante da Força Aérea, General
Boucinhas (ele já o conhecia), o Ministro da Saúde, Dr. Eduardo Patrício, e
o Ministro dos Transportes, engenheiro Mobuto (que Souza Aguiar tam-
bém conhecia; ele era estrangeiro, mas se formou em Portugal e lá conhe-
ceu os patriotas angolanos, tendo participado da luta pela emancipação.
Falava bem o português).
— Amanhã será o dia, Embaixador?
78
— O senhor é que sabe.
— Acho que está perfeito. Notícias do Brasil?
— Iniciamos a contagem regressiva há dez dias, quando a Armada
começou a zarpar.
— Estou informado. Em Angola também. O senhor sabe, Embaixa-
dor, que nós somos conspiradores profissionais?
— Imagino, senhor.
— Essa característica que as pessoas adquirem por viver muitos
anos na clandestinidade, escapando de perseguições, escondendo-se e
dissimulando o tempo inteiro, nos dá certa margem para articular um de-
senvolvimento — não é assim que vocês diplomatas costumam chamar as
ações políticas? — como esse. Certamente se fossem os velhos cubanos
que estivessem lá em Angola, os da Sierra Maestra, ou os velhos bolche-
viques da Revolução de Dezessete, ou os antigos partizans tchecos ou co-
munistas alemães, teríamos sido descobertos. Mas ninguém desconfia de
nada. Será uma surpresa.
— Por aqui também. Todos acham que o senhor veio à América à
procura de um médico — atalhou o Embaixador Martinho Luque.
— Os senhores são os professores — elogiou Souza Aguiar.
— Pois bem: as nossas ordens, na medida exata, foram dadas a
todas as pessoas. Cada um, lá em Angola, saberá o que fazer, na hora
certa. O senhor não acha isto admirável? — perguntou, dirigindo-se ao
brasileiro.
— Sem dúvida, Presidente, admirável! — respondeu Souza Aguiar.
De certa forma, ele achava justo o orgulho do angolano e acreditava, mes-
mo, que ele estava gostando de voltar, nestes meses, a ter uma parte de
sua vida de novo clandestina.
— Mas vamos ao ponto — propôs o Presidente, mudando o tom do
encontro. Começariam ali a trabalhar.
— O Presidente só tem uma última dúvida — colocou o Embaixa-
dor Martinho.
— Sim? — assentiu Souza Aguiar, atento.
-- Falo eu ou o senhor? — perguntou Martinho, olhando ao Presi-
dente.

79
— Eu falo — respondeu Agostinho — é sobre o papel da República
Federal da Alemanha nessa empreitada. Qual será?
— Os alemães são nossos aliados — começou Souza Aguiar, vendo
que teria de repassar essa parte.
— Eles não têm envolvimento direto na questão. Se nós pudésse-
mos simplificar um enquadramento, diríamos que eles são aliados do Bra-
sil. E não o contrário, nós deles. A Alemanha tem nos apoiado muito nes-
tes últimos anos. Eu não diria que essa aproximação deriva de ambições
alemãs de usar o Brasil para fins pouco claros. Acho que eles não têm es-
sas intenções, ainda (não digo que daqui a uns tempos eles não mudem).
A Alemanha não quer ser um potência militar. Ela preza sua aliança com
os Estados Unidos, mas atua conosco em faixa própria, porque acredita
que o Brasil será um país importante e quer como nação amiga, ter laços
sólidos conosco. Sem eles, também nós não teríamos os meios de chegar
onde chegamos: eles nos forneceram um programa completo Siemens,
para operação militar. Todo o esquema de tráfego, equipamento, coorde-
nação dos diversos fatores nos possibilitaram rápido aumento da produ-
ção bélica e nos transferiram tecnologia, principalmente para fazermos
o Leopard, que será o único blindado com capacidade para se bater com
vantagem contra os tanques soviéticos.
— E como estão os Leopard? — perguntou o Comandante do Exér-
cito, General Murtinho.
— Ganharam o nome de Zebu. O que é um bom nome, no Brasil,
pois um zebu brabo ninguém segura — respondeu o Embaixador, voltan-
do ao assunto com o Presidente.
— O apoio financeiro também foi básico, pois, se não houvesse a
liderança decidida dos bancos alemães, a gente não teria conseguido le-
vantar todos os recursos. Mas onde eu vejo que a mão deles foi decisiva
é a lealdade incontestável nas gestões junto aos britânicos para obter as
duas ilhas. Sem isto, a operação seria impossível. Nós precisávamos que
a Inglaterra nos cedesse os territórios sem levar o caso ao conhecimento
prévio dos Estados Unidos. E só os alemães tiveram essa penetração, que
nos passaram de mão-beijada.
— Esse ponto — devo confessar — é o único a provocar certa des-
confiança entre nosso pessoal — disse o Presidente.
— Entendo, Presidente. Mas nossos acordos são claros e o Brasil
80
fará tudo exatamente como foi negociado. Os alemães não interferirão,
pois nada nesta guerra será da competência deles.
— Nós temos certas dúvidas com os alemães, Embaixador — dis-
se o General Murtinho — porque não queremos novos equívocos. Nosso
objetivo nisso tudo é simplesmente preservar a soberania de nosso país.
E por isso iremos até o fim. Mas esse propósito não deve se desdobrar a
ponto de cairmos em outras mãos.
— E evidente, General. Concordo com o senhor. Eu diria que nós
agora estamos atendendo àquele apelo de 1822. Naquela época, não ti-
vemos meios de agregar Angola no nosso esforço de independência. Éra-
mos mais débeis que os senhores hoje. Veja assim a nossa aliança — disse
o Embaixador — portanto, não permitiremos que nosso apoio se transfor-
me num retrocesso político para Angola independente.
— Disso estou certo, Embaixador — ajudou Martinho Luque.
— Agora, uma última pergunta sobre essa operação. O que real-
mente me confunde, pois vocês, brasileiros, são realmente curiosos: para
que levar escolas de samba e esses outros espetáculos que estão pro-
gramados? Eu concordei, mas confesso que me desconcerta — disse o
Presidente.
— Bem, Presidente. Como o senhor mesmo disse, são coisas do
Brasil — começou o Embaixador brasileiro.
— Não, não. Está bem. Eu não sou contra. Só falei. Acho que nós,
comunistas, somos sérios demais. Só isto — e parou.
Depois, passaram para as verificações finais. A única coisa que o
Brasil exigiu dos angolanos foi o amparo legal para a intervenção. Nesse
ponto, foram tão minuciosos que, ao se completar a operação, não deve-
ria existir o menor reparo a ser feito. O governo constituído teria de dar
todos os passos, formalizar todos os atos, sem deixar o menor rabicho.
— O senhor deve entender, Presidente, que o Itamaraty teve de
armar uma manobra diplomática talvez mais complexa que a operação
militar. Nosso objetivo é evitar qualquer retaliação e decidir a guerra sem
a intervenção das grandes potências. Se houver a menor margem, eles
entram, e aí — disse, usando uma expressão brasileira — a vaca vai pro
brejo.
— Como?

81
— Aí eles nos roubam a vasa — disse olhando para o Presidente,
certo de que ele entenderia, pois em Angola também se jogava o solo.
— Sim, sim. Muito bem feito. Nessas coisas eu admiro muito vocês.
— Eu diria — atalhou Martinho — que o Itamaraty compensa, com
sua competência, a defasagem entre nós, Brasil e Angola, e as grandes
potências. Eu acho que nosso Souza Aguiar tem toda a razão.
— Eu também concordo — desculpou-se o Presidente.
Na verdade, Agostinho, um homem de ação, achava que as situ-
ações de fato são fortes por si para se manterem. Mas concordava com
aquilo, pois tinha muito claro a confusão mundial que se iria armar e o
papel diversionista que uma diplomacia poderia jogar nesse momento.
Ao entardecer estava tudo decidido. Souza Aguiar saiu às pressas, entrou
no carro e voltou para a Embaixada.
— Você parte em seguida para Brasília. Hoje, saem os últimos
aviões para lá e você tem de aproveitar — disse o Embaixador para o seu
assistente.
— Já estão prontas as reservas? — perguntou.
— Sim. Vou de PanAm até o Rio e de lá para Brasília na Transbrasil.
— Você tem certeza que não devo mandar ninguém acompanhan-
do?
— Melhor assim, Embaixador.
— Então, está bem. Como ficou resolvido?
— De acordo com o programa. Amanhã, depois do discurso nas
Nações Unidas, partiremos para Brasília. Vou com eles.
— Então nos vemos por lá?
— Com certeza.
— Assim, espero.
— Quem mais espera chegar sou eu — disse, pensando em Lia, que
a esta hora deveria estar vendo televisão ou, quem sabe...
O segundo-secretário não entendeu. Aliás, muito pouca gente sa-
bia da ligação dos dois. E só eles tinham idéia de como já estava profun-
do aquele relacionamento. Souza Aguiar pensou: “Quando ela souber de
toda a trama, será que não vai querer me esgoelar por nunca ter falado
nada para ela?”
82
CAPÍTULO XI

— Está confirmado, o Presidente Agostinho Neto chega a Brasília


agora às três da manhã num Tupolev das Linhas Aéreas de Angola.
— Ciente. Vou avisar ao General.
— A relação de passageiros inclui cinco ministros deles e o nosso
Embaixador nas Nações Unidas, mais familiares e funcionários do segun-
do escalão. A relação nominal está sendo decodificada.
— Ciente.
— Dentro de quinze minutos, enviamos um relatório completo.
— Certo.
— Até logo
— Até logo.
O General Pedro Paulo, os ministros militares, os outros militares
do Alto-Comando da Marinha, Exército e Aeronáutica receberam a infor-
mação de que os angolanos já estavam voando de Nova Iorque. A FAB
imediatamente emitiu ordens para um esquadrão de Caça preparar a de-
colagem de proteção, quando o aparelho angolano entrasse no território
nacional. Havia grande movimento.
— Vou avisar ao Presidente. Ele precisa estar no Aeroporto. O Ca-
pitão fez a ligação.
— Presidente?
— Sim?
— Estão vindo. Chegam às três.
— Certo, Pedro Paulo. Estarei lá. Como estão as coisas aí?
— Tudo bem.
83
— Vou me reunir agora com os políticos.
— Boa sorte.
— Obrigado. Espero que o Zappa ganhe esta parada.
— Tenha certeza, Presidente.
— Estou tranqüilo.
— Até logo, então.
— Até logo.
— Ministro — disse o Presidente, desligando o telefone — o negó-
cio começou. O avião já saiu de Nova Iorque. Chega às três.
— Posso mandar entrar os políticos?
— Pode. Seja o que Deus quiser.
— Tenha confiança, Presidente. O Ministro Ariosto já conversou
bastante com eles. Aqui, será mais um encontro formal.
— Assim, espero.
Na ante-sala, já esperavam os líderes dos cinco partidos. Eles ti-
nham sido envolvidos no processo aos poucos. No primeiro contato, ain-
da no Governo anterior, o Congresso aprovou sem problemas um aumen-
to de 500% do orçamento militar, para financiar a manobra. Os políticos
não chiaram, porque preferiam, realmente, ver os militares se preparan-
do para a guerra do que se metendo nos assuntos deles. Depois, aos pou-
cos, foram sendo trabalhados para aceitarem um bom nível de reserva
sobre a Política Externa do País e deram uma lei especial, autorizando o
Presidente a fazer tratados secretos, que só deveriam ser apreciados pelo
Congresso a pôsteriori, e assim mesmo após sua efetivação. Isto é, quan-
do fosse inevitável a existência do acerto internacional vir a furo.
A porta abriu-se e o Presidente viu entrar as cinco figuras. Dois de-
les causaram um certo arrepio ao Chefe da Nação, pois, de certa forma,
foram seus inimigos, embora tivessem votado nele nas eleições. Um era
o líder dos trabalhistas, Leonel Brizola, eleito Senador pelo Rio de Janeiro
nas últimas eleições e que chefiava a um dos novos partidos. O outro
era o secretário-geral do Partido Comunista, agora legalizado e que fez
trinta deputados em todo o País, Osmar Neimeiar, eleito Deputado pelo
distrito do Leblon, no Rio. O voto distrital, implantado na reforma consti-
tucional de 1982, dera certo em muitos casos, mas garantiu aos comunis-
tas algumas cadeiras e eles, na sucessão presidencial, se alinharam com
84
os trabalhistas e emedebistas, formando a maioria provisória. Os outros
eram o que se chama de velhas raposas, embora o termo raposa, hoje,
tenha mais o sentido da habilidade em tratar questões delicadas do que
o sinônimo de truculência que vigorou no passado. Magalhães Pinto, que
conseguiu um partido social-democrata, o PSB, Ulysses Guimarães, chefe
da maior facção política do país, o MDB, e Jarbas Passarinho, que liderava
os conservadores da Arena, agora minoritária, e que votou em branco na
última eleição, mesmo sendo militar e candidato.
— Tenham a bondade, senhores — disse o Presidente.
Todos sentaram. O Ministro da Justiça fez uma explanação sucinta
do que tinha sido acertado.
— Os líderes dos partidos concordaram com o plano, em linhas
gerais. Eles não querem, contudo, se responsabilizar pelo resultado se
os desdobramentos forem desfavoráveis, o que eu acho muito natural.
Assim nós acertamos uma fórmula que responsabiliza o Executivo pelo
que acontecer. É importante, no entanto, que o senhor, Presidente, dê
aqui sua palavra a eles de que a intervenção em Angola será resguar-
dada por todos os preceitos legais. Quais sejam: primeiro, o Brasil envia
tropas atendendo a pedido expresso e legal de um Governo constituído;
segundo, o comando das forças brasileiras será exercido pelos angolanos;
terceiro, o Governo decretará Estado de Emergência, ad referendum do
Congresso, após o cumprimento do pedido formal para nossa intervenção
no caso.
O Presidente falou e formalizou aquelas garantias. Já tinha sido
tudo combinado durante a tarde, mas os políticos queriam ver o homem
antes de assinarem o cheque em branco. Os políticos saíram e deixaram o
Presidente a sós com seus dois ministros.
— E então, Ariosto?
— Acho que acertamos, Presidente. Não foi fácil, no início. Eles fi-
caram espantados. Depois, viram que não havia outra saída. A situação
mais difícil era a de Neimeiar, pois ficou entre dois fogos. No fim, ele
achou que seria, realmente, mais interessante ficar do lado de Agosti-
nho, nesta guerra, pois mesmo em Moscou o caso irá provocar grandes
divisões. Para nós, isso é importante, porque o de acordo dele deixará o
PCUS meio imobilizado. Os trabalhistas podem se cindir nesse caso, mas
o Brizola garantirá a maioria e fechará a questão na bancada. Os outros

85
partidos apoiarão sem problemas.
— Pois eu vou lhe dizer, Ministro: não gosto nada disso. Herdei esse
caso e — gracejando — por causa dele tive de engolir o continuísmo de
nosso Ministro Zappa.
Zappa riu, um tanto azedo, mas sem ressentimentos pelo puxão-
de-orelhas. Todos sabiam que o candidato a Chanceler do Presidente era
outro, o Embaixador aposentado Roberto Campos. Mas concordou em
ficar com Zappa até terminar a questão angolana.
— Se os senhores me permitem, vou descansar um pouco para es-
perar a chegada do Agostinho Neto às três da manhã. Imagine, por causa
disso não poderei estar no primeiro aniversário de meu único neto.
Os dois Ministros saíram juntos. Cada um teria ainda uma centena
de providências a tomar antes da chegada da comitiva angolana. Despedi-
ram-se na garagem do Palácio, e, cada um no seu carro oficial, foram para
seus Ministérios. Era só cruzar a rua, mas dava para ver o movimento na
Esplanada dos Ministérios. Àquela hora, Brasília dormia, normalmente.
Mas havia nessa noite grande número de luzes acesas e um trânsito inu-
sitado. Os decretos estavam todos prontos, as máquinas do Diário Oficial
em posição para rodar. Só faltava o sinal verde para dissipar a tensão da
expectativa e todos mergulharem no redemoinho da ação.
Um pouco depois, saiu o Presidente. Como sempre, os batedores
à frente, a caravana da Segurança e ele no Gálaxie blindado, sozinho no
banco de trás. Ele deveria ter ficado no Palácio. Talvez dormindo um pou-
co ali, num apartamentinho que mandou improvisar próximo ao gabine-
te, depois que as reuniões dos preparativos absorviam quase todo o seu
tempo. Só ia em casa para aplacar a crise interna. Dona Neuza estava a
ponto de estourar. Ela não sabia de nada (pois se soubesse não iria se
conter e bateria tudo para as mulheres dos generais, só para se mostrar)
e achava que o marido andava com algum cacho e por isso passava tantas
noites fora.
Teria poucas horas para contornar a situação e depois deveria vol-
tar para o trabalho, impávido, como era de se esperar de um homem que
estava para liderar uma guerra que podia sacudir o mundo. Teria de dissi-
mular, frente aos grandes homens, a sua miséria pessoal.
— Ainda bem que encontrou o caminho da casa, querido.
— Deixe-me dormir um pouco — e deu um beijo, sem gosto.
86
— Como, dormir? precisamos combinar a festa do Albertinho. Você
conseguiu a dispensa para o Alberto? — perguntou ela, pelo genro, capi-
tão do Exército.
O Presidente engoliu em seco. O genro deveria estar embarcando
para Angola, mas ele teve de arrumar uma substituição só por causa do
aniversário do neto. Ele se incorporaria às forças no dia seguinte, porque
assim dona Neuza quis. Foi meio desgastante para ele ter de falar sobre
a dispensa ao Ministro do Exército, no fim de uma audiência complicada,
em que se discutiam planos e assuntos de toda a relevância. Entre eles
estavam as últimas incorporações de oficiais R/l que foram convocados,
mas que relutaram ao máximo em voltar para as fileiras, porque tinham
negócios e obrigações a tratar. No fim disso, pedir para tirar o genro, que
era da ativa, da tropa dele, só por causa do aniversário do Albertinho...
O Ministro concordou, mas ficou bem claro de onde vinha a imposição.
O que não era novidade, mas cada vez que se explicitava deixava o Presi-
dente desconcertado .
O Presidente bufou.
— Olha, Neuza... deixa pra lá.
E foi para o banheiro, tirando a roupa, decidido a dormir.
— O que você quer dizer com isso? — disse ela, vendo ele regular
o despertador para a uma e meia da manhã.
— Tenho de estar às três no aeroporto. Está chegando aí o Presi-
dente de Angola, Agostinho Neto. Vou recebê-lo
— Vai nada! — afirmou ela.
— É minha obrigação.
— Obrigação, coisa nenhuma!
— Deixa de ser boba.
— Você vai ver boba.
— Eu ganho para isto, lembra-se?
— Ganha coisa nenhuma! Você não vai é sair. Vai ficar aqui até de
manhã e organizar as coisas como prometeu.
— Neuza, escute bem, pela última vez: esse aniversário não será
possível. Está chegando aí um Presidente estrangeiro. Ficarei envolvido
com ele. Ou você quer que eu diga para ele que não posso, porque tenho

87
uma festa do primeiro aniversário do meu netinho?
— Não sei o que você vai dizer para ele. Sei é que você vai estar
aqui, e nós vamos dar a festa do Albertinho!
— Neuza, não seja tola!
— Tola eu sou.
— De novo...
— De novo! Ou você pensa que não vejo nada? De burra eu só
tenho a cara.
— Neuza, você quer parar? Estou cansado...
— Cansado de saracotear por aí.
— Neuza...
— Se você sair agora, eu saio junto.
— Deixe de dizer bobagens.
— Pois então saia, para ver.
— Neuza, você está a fim de fazer escândalo? Pois então faça! Só
porque as minhas obrigações me impedem de estar aqui numa festinha
para você se mostrar para as outras.
— Mostrar para as outras, coisa nenhuma. Já estou cheia de sua
cara. Fica me tratando de palhaça. Já estou há seis meses na Presidência
e ainda não fiz nada. Não vou a nada.
— Neuza...
— Neuza, coisa nenhuma. A palhaça aqui não tem vez mesmo. E
você lá o dia inteiro, enrabichado por aquelas secretariazinhas. Ou você
pensa que eu não sei...
— Olha. Eu preciso descansar um pouco. Por favor.
— Por favor, coisa nenhuma. Você vai é me ouvir. Se você sair ago-
ra, eu saio junto e quero ver a sua cara. Faço tudo. Dou até entrevista e, se
você me chatear muito, digo que você é corno. Corno, ouviu?
— Olhe, você está passando dos limites.
— Quem é você para me dizer quais são meus limites? Comi merda
a vida inteira a seu lado por aí para chegar a esta idade e ter de ouvir você
me dizer isso. Quem você pensa que é?
— Trate de entender que eu não estou brincando.
88
— Ora, vá plantar batatas... Você se diverte, e muito. Eu é que fico
aqui nesta chutura o tempo inteiro enquanto você se distrai.
— Neuza, o que é isto? Eu sou um cara que tem obrigações. Tenho
vivido a minha vida inteira para o trabalho, para a família. E você vem me
enlouquecer agora? Esta não...
— Não venha com esses papos para cima de mim. Quando eu era
moça e gostosa, bem que você vivia babadinho aos meus pés. Agora, que
não sirvo mais... Você vai ver. Eu devia era colocar um par de cornos na
tua cabeça. Aí eu queria ver a tua cara.
— Neuza, deixe de besteiras. Vá descansar. Deixe-me! Eu preciso
refletir. Preciso ficar um pouco sozinho para pensar.
— Qual! pensar...
— Tenho uma questão grave pela frente. Por favor, ajude-me.
— Pois estou te ajudando: se você for agora para aquele aeroporto;
se você não estiver aqui no aniversário do Albertinho e não tratar — e
muito bem — a todo o mundo, eu acabo com a tua raça.
— Neuza, deixe de criancices.
— Criancice, uma ova!
— Assim não dá, Neuza. Eu não consigo administrar esta crise con-
jugal e viver nessa loucura que é a Presidência, que é a crise mundial
ao mesmo tempo. Você está me forçando a uma opção catastrófica, seja
qual for a saída por que eu optar.
— Pois trate logo de escolher. Eu estou sendo bem clara.
— Mas, Neuza. Nós somos uma família, uma unidade, você terá de
cumprir o seu papel. Desde já. Eu sou o Chefe da Nação. Você é a primei-
ra-dama. O povo, toda a população, não só nos observa, mas nos vê como
a segurança de que as coisas têm um rumo. Nós somos prisioneiros de
nós mesmos. Entenda isto.
— Entendo, coisa nenhuma. Eu sei o que eu entendo.
— Assim não dá! Assim não dá! Te confesso aqui, do fundo do co-
ração: eu não agüento! A gana que tenho é largar tudo. Tudo, entendeu?
Sumir. Evaporar. Rodar o filme ao contrário e parar a máquina numa certa
parte — que não sei qual é — e dizer: daqui para a frente, o roteiro é ou-
tro. É isto que deveria ser feito.

89
— Pois faça o que quiser e não me venha com essas conversas para
boi dormir.
— Está bem, Neuza. Você está me jogando contra a parede. Seja o
que Deus quiser.

***

Ao telefone, o Presidente falou com o Chanceler e depois com o


General Pedro Paulo.
Ministro, por favor, desculpe-me com eles. Diga ao Presidente que
fiquei retido numa reunião de Estado-Maior, que estou indo encontrá-lo,
mas que só chegarei pela manhã. Você inicia as demarches e eu pego o
bonde andando e toco junto, mais tarde. Está bem?
— Perfeito, Presidente — respondeu o Ministro, com segurança
contrariado e meio vexado com a descortesia que seria obrigado a segu-
rar dali a poucas horas.
— Pedro Paulo — pediu ao General — converse com eles, recheque
as ordens, vá articulando o comando. Mais tarde, eu entro na jogada.
Agora não vai dar. Você compreende. Está dificílimo. Não sei se agüento.
— Entendo, Presidente. Boa sorte — disse o General, compreen-
dendo o que se passava, mas com uma ponta de susto.

90
CAPÍTULO XII

A chegada foi na hora prevista. E, sem dúvida, impressionou o Pre-


sidente angolano. Da janela do avião, ele podia ver claramente apesar da
escuridão, o perfil dos EMB 115F, acompanhando o Tupolev na reta final
do pouso. Virou-se para o Comandante da Força Aérea angolana, General
Ataliba Boucinhas.
— Esses são feitos aqui, não?
— São, sim, Presidente.
— E que tal?
— Vamos ver. Nota-se claramente a solidez do projeto alemão. Ve-
remos como são lá em cima, na pauleira...
Quando se abriu a porta, mais de cinqüenta pessoas se aproxima-
ram, para as boas-vindas. Zappa, para contornar a falta do Presidente,
conseguiu que o Ministro da Justiça levasse até ao aeroporto os líderes
políticos, o que foi inesperado para os angolanos.
— Fez boa viagem, Presidente?
Agostinho estava abatido, tenso, doente e cansado das longas via-
gens. Tinha dormido a bordo. Propôs que iniciassem logo o trabalho e não
se amofinou, como esperava o Chanceler, com a ausência do Presidente.
O que poderia ser considerado normal, pois às vésperas de uma guerra
não era de estranhar que ele estivesse ocupado noutro lugar com coisas
mais importantes que o protocolo. Agostinho comandara uma guerra, sa-
bia dessas coisas.
— Vamos dividir as equipes. Os decretos estão aqui. Os códigos,
com o Ministro Lourenço.
— Pois bem, Presidente. Nós também já estamos com nossas pro-
91
vidências tomadas — disse o Chanceler.
Os angolanos impressionavam-se com a importância que os brasi-
leiros davam para as formalidades legais. Entendiam somente porque ti-
nham uma idéia de que o Brasil era um país organizado. Assim havia uma
parafernália de papéis, decretos, ordens de serviço e outros documentos
a serem assinados e postos em vigor para respaldar a invasão. Uma longa
e complicada série de negociações, ajustamentos legais e outras provi-
dências que tiveram de ser tomadas.
Às 4h30min, foi enviada uma mensagem em código para Luanda,
captada na Chancelaria, pelo funcionário competente, decodificada e en-
viada para o gabinete da Presidência. Uma ordem paralela mandou ro-
dar o Diário Oficial. Cinco páginas foram substituídas. Os flãs já estavam
prontos e guardados num cofre. O funcionário encarregado de mudar
as páginas, assim como os demais homens-chave nesse esquema de co-
municações, era de confiança absoluta do Presidente. Essas ordens fala-
vam, basicamente, o seguinte: a) — o Presidente convidava e autorizava
a presença de forças brasileiras no país; b) — demitia alguns ministros;
c) — decretava a dispensa imediata e a desmobilização, com agradeci-
mentos efusivos, das forças estrangeiras de Cuba e do Leste Europeu; d)
— condecorava os chefes dessas forças; e) — autorizava os comandantes
do Exército, Marinha e Aeronáutica a chefiarem às forças brasileiras; f)
— fazia trocas de comando em determinadas unidades das três Armas
(isto criaria certa confusão; os demitidos ou transferidos eram aliados dos
golpistas e isto tornava ilegal o comando deles).
O Brasil também estava com uma edição do Diário Oficial pronta
para legalizar outras ordens.
Um decreto baixava o Estado de Emergência, diante da solicitação
expressa do Governo de Angola, para apoio contra a intervençào estran-
geira no seu território. Outro decreto punha as forças à disposição de
Angola e passava o comando a seus comandantes, indicados pelo Gover-
no angolano. Os comandos seriam pro forma, embora o Brasil tenha de-
cidido que operações que envolvessem perigo as propriedades e pessoas
devessem ter a aprovação por escrito dos chefes angolanos, como, por
exemplo, o bombardeio de cidades.
Antes de amanhecer, as forças já estavam partindo. Na verdade,
já estavam em marcha há dias. Aquilo era só para segurar legalmente o

92
desembarque, pois na mesma hora em que o Diário Oficial em Luanda
saía para a rua e se transformava num documento de valor inequívoco, os
primeiros pára-quedistas já estavam botando o pé no chão, nas imedia-
ções de Benguela e Lobito. O Comandante da Marinha, Almirante Emílio
Costa, embarcou num F-5B, de dois lugares, para voar a Mach 2.5 até
Santa Helena. De lá, num FH 1.100 iria até o São Paulo assumir o comando
formal da Esquadra e da força de fuzileiros; o chefe da Força Aérea partiu
para o Galeão, onde estava o Comando-em Chefe das forças aéreas. O
General Murtinho sairia dali mesmo, de Brasília, junto com o General Lu-
dwig, que seria o comandante de fato. Eles instalariam o quartel-general
em Lobito. Iriam num dos Boeing 707 da Presidência da República. O Pre-
sidente Agostinho Neto faria um pronunciamento no Congresso, às sete
da manhã, e depois seria internado no Hospital da Aeronáutica, até ser
transferido para São Paulo.
Para os desembarques, os angolanos garantiram que não haveria
problemas. No eixo Lobito-Benguela havia 3.000 homens do Exército re-
gular de Angola, absolutamente leais, que garantiriam o desembarque
dos brasileiros. O único batalhão cubano seria neutralizado pelo Exército
até à chegada dos primeiros pára-quedistas. Em Girauí, a oposição tam-
bém seria nula, pois o batalhão angolano e as forças navais estavam do
lado do Presidente. Haveria luta no Norte. Na região da Foz do Congo,
as tropas adeririam, em parte, aos cubanos, e haveria forças em posição
de combate. Por isso, ali se concentraria o desembarque com fuzileiros
navais. Mas uma força de pára-quedistas seria lançada na retaguarda e a
divisão de selva pousaria em Nóqui, para convergir sobre a praia e descer
pela selva em direção a Luanda. A manobra isolaria a praia, e as tropas,
vindas do norte e do sul, convergiriam sobre a capital, onde havia 10.000
cubanos, 800 soviéticos e 5.000 angolanos que poderiam ser ativados
contra Agostinho, pois seus comandantes estavam no golpe e os indecisos
não teriam muitas opções.
A outra parte das tropas estrangeiras estava na fronteira com o Zai-
re, próximas à Namíbia e na divisa com Zâmbia. Eles esperavam que um
ataque pró-Agostinho viesse dessas nações vizinhas, onde já havia refu-
giados angolanos e se esboçava um cessar-fogo com o pessoal de Jonas
Savímbi, o que poderia se converter numa impossível aliança (Na verda-
de, isto era só diversão, pois o Savímbi não recompôs com Agostinho e,
na primeira confusão, fez negócio com os cubanos, fornecendo 2.000 ho-
93
mens para atacar os brasileiros. Quem lutou contra o Savímbi foi a Polícia
Rural Montada gaúcha).
De Lobito, o Exército deveria marchar com as brigadas motorizadas
na direção de Vila Teixeira, subindo à serra. De lá iriam para Luanda. Outra
força subiria o litoral e, se houvesse oposição nesse avanço, os fuzileiros
desembarcariam tropas em Novo Redondo, na baía de Quicombá, para
isolar esses efetivos em Luanda, dividindo os golpistas em dois bolsões.
De Novo Redondo, também, uma força marcharia para Quibata, fazendo
a junção com as brigadas que subiam de Vila Teixeira.
A Cavalaria e algumas unidades blindadas, com apoio de artilharia,
seguiriam para o interior pela linha ferroviária, a partir de Benguela. O
objetivo dessa manobra seria impedir o reforço de Luanda pelas forças
que estavam nas fronteiras. Haveria um certo tempo, pois os cubanos,
alemães, soviéticos e tchecos não poderiam chegar ao litoral antes de
cinco dias de marcha, isso se não encontrassem nenhuma oposição.
Com o bloqueio marítimo, seria quase impossível o reabastecimen-
to e substituição das forças do interior. E assim, partindo em dois os exér-
citos inimigos, os brasileiros poderiam obter diplomaticamente o recuo,
para seus países, das forças estrangeiras. Feito isso, o Brasil sairia da luta,
deixando que a guerra civil se decidisse somente entre as facções nacio-
nais angolanas.

94
CAPÍTULO XIII

— Tudo correto, Presidente? — perguntou o General Pedro Paulo.


— Tudo certo.
— Posso detonar?
— Pode.
— Até logo.
— Boa sorte.
O General saiu do gabinete presidencial e dirigiu-se para o Minis-
tério do Exército.
No segundo andar, estava o Estado-Maior Combinado. Todo o
sistema tinha sido montado para a manobra. Tudo estava planejado, os
computadores afiadíssimos. Ali, havia realmente condições de fazer real
aquela guerra que eles tinham planejado no Forte São João, no Rio.
Pedro Paulo entrou rápido. Os outros generais, almirantes e briga-
deiros aguardavam ansiosos. Ele olhou no relógio e autorizou.
— Almirante, pode mandar a mensagem para a Esquadra, mandan-
do abrir o pacote de ordens número 72.
— Correto. Com licença — disse o Almirante, saindo rapidamente
para entregar a fita, já pronta e cifrada, que estava sob sua guarda exclu-
siva, para os equipamentos de telecomunicação. O documento mandava
o comandante-em-chefe da Esquadra abrir um envelope onde estavam
os planos completos para o ataque, bem como eles tinham planejado no
enredo. O que era simulado virou real.
Estava amanhecendo, quando os Hunters começaram a levantar.
Um a um. O estrondo do jato rompendo a barreira do som era ouvido

95
pelos tripulantes dos navios da Armada que, de uma hora para outra,
começaram a perceber que estava se iniciando algo muito importante.
Os jatos sumiram. Sua missão: reduzir ao máximo a força aérea inimiga
ainda no solo. Os navios navegavam à toda a força. Só na manhã seguinte,
estariam na frente da praia. Eles haviam, pouco antes, ouvido o barulho
das grandes formações de transporte passando por cima da Esquadra.
Sabiam que bem mais alto, fora do alcance do ouvido, as nuvens de bom-
bardeiros B-52, os caça-bombardeiros, centenas de aeronaves, algumas
delas carregando o dobro do seu peso em armas, iam para o mesmo lado.
O Atlântico Sul era cortado por enxames de pequenos bólidos me-
tálicos, voando uma, duas e até duas vezes e meia a velocidade do som.
Tudo ia transcorrendo mais ou menos como se esperava. Àquela
hora, as primeiras unidades de comandos já tinham sentado pé no país.
Alguns partindo de submarinos. Outros chegando por via aérea. Eram sol-
dados e oficiais treinados em sabotagem, destruição e outras operações
que exigiam enorme audácia e extrema crueldade.
Entre Benguela e Sá Bandeira, uma caravana de bantos nômades,
pastores, olhou para cima. O céu estava coalhado de pontinhos pretos.
Cada vez mais. Milhares deles. Sentaram-se e ficaram observando a cena.
Lentamente se aproximavam do solo. O primeiro a cair quase bate neles.
Olharam e viram um preto alto. Jovem. Armado. Um soldado, isto eles
conheciam. Não entenderam bem o que ele quis dizer, mas acharam en-
graçado o sotaque.
— Oi, gente fina! — disse abrindo um sorrisão, agarrando o corda-
me, com o pára-quedas ainda copado.
Em minutos, havia milhares deles ali. Do alto ainda caíam coisas.
Uns aviões maiores, agora, soltavam pesados volumes, que se abriam em
dois e até três pára-quedas. O que seria? Dali há pouco, ouviram o ronco
de motores. Em menos de meia hora já havia jipes puxando canhões, pe-
quenos caminhões de 5.5 toneladas, outros menores, de 3.5 toneladas,
vários tipos de quetês se movimentando no terreno semidesértico. Uma
gritaria, correria. Os bantos achavam que eles não se entendiam, mas es-
tavam maravilhados com o que viam: aquela massa de gente chegando
do céu.
A missão dos pára-quedistas era firmar Benguela, ocupar a franja
de 150 km do litoral, não deixando as forças inimigas descerem a serra.

96
Eles dominariam a ferrovia de Benguela, que poderia ser o caminho para
os cubanos e aliados do Leste descerem à costa e empurrar os brasileiros
de volta para o mar.
Em Lobito, a segunda cidade do País, com 80.000 habitantes, a
guarnição angolana cercou o batalhão cubano e garantiu o pouso da pri-
meira leva aerotransportada. O primeiro grupo a chegar foram os pára-
quedistas da FAB, que tomaram o aeroporto, pacificamente, é verdade,
pois as tropas locais já tinham o domínio da situação. Logo desceu a in-
fantaria de guarda da Força Aérea com o equipamento de defesa da base.
Depois, chegaram as forças do Exército. No entanto, houve uma falha. O
comandante local, que era amigo pessoal do coronel cubano, permitiu
que eles se retirassem em paz da cidade, levando somente armas leves
e transporte motorizado. Essa unidade saiu em direção à Vila Teixeira,
conseguiu se ressuprir em parte, o que atrasou a subida da serra pela in-
fantaria. Isso foi a causa de um dos momentos mais sangrentos da guerra,
pois o 62o de Infantaria de Joinville foi sacrificado como boi-de-piranha
para salvar a operação em sua totalidade.
Em Girauí, a outra divisão de pára-quedistas, apoiada pela guarni-
ção angolana, permitiu a atracação dos transportes, no dia seguinte, e o
desembarque dos soldados e material. Ali também não houve resistência,
pois os angolanos cumpriram, sem queixas da parte dos brasileiros, o seu
papel.
Mais difícil foi o desembarque no norte. Como era previsto, os cuba-
nos resistiram. Os fuzileiros do Humaitá perderam 30% do efetivo e não
conseguiram passar a praia. Toda a operação-norte estava em risco. Foi a
bravura do comandante-em-chefe do corpo de fuzileiros que possibilitou
a salvação dessa parte da operação. Com o impasse criado na praia, na
cabeça-de-ponte do rio, o aeroporto de Nóqui, onde deveriam pousar os
Gálaxies e Hércules, que transportavam a 23a Brigada de Infantaria de
Selva, continuava em poder dos cubanos. Eles não esperavam o ataque
do aeroporto, é verdade, tanto que ele estava escassamente defendido.
Mas havia defesa suficiente para derrubar os aviões, um a um, como se
fosse uma linha de fogo atacando um bando de marrecos-da-patagônia
pousando num banhado crivado de caçadores. Os aviões de transporte
não poderiam aterrissar ali. E o aeroporto não podia ser destruído pela
aviação ofensiva, pois seria necessário estar intacto para receber as tro-
pas. A força de transporte já estava sobre o Atlântico, dirigindo-se para
97
Ascensão, trampolim da invasão do norte angolano.
O comandante-em-chefe da Esquadra se comunica com a Força Aé-
rea:
— É preciso retardar a força de transporte, Brigadeiro.
— Impossível, Almirante.
— Como impossível?
— Não há como. Já estão indo. O senhor precisa arrumar uma al-
ternativa para nós.
— A curto prazo, é impossível. Precisarei de, no mínimo, mais doze
horas. O Primeiro Corpo de Fuzileiros está paralisado na praia. Temos uma
divisão na nossa frente e não conseguimos andar um passo. A praia do
Congo está um inferno.
— E como o senhor propõe resolver?
— O desembarque da Divisão Anfíbia já está quase completo. Tive-
mos resistência, mas nossos blindados já plantaram uma cunha nas de-
fesas deles. E por aí que vamos entrar e surpreendê-los pela retaguarda.
Vamos abrir um buraco para o Corpo de Fuzileiros da Esquadra penetrar e
dividimos eles em dois. Não há outra tática a empregar. Os aviões devem
esperar até nós termos as condições de assegurar a operação do aero-
porto.
— Almirante, eu entendo a sua situação, mas nós estamos agora
numa sinuca. A base em Ascensão não tem capacidade para abrigar toda
a força. O senhor entende? Não cabem todos aqueles aviões no pátio.
Eles têm que descer e sair, senão eu terei de empilhar uns por cima dos
outros.
— Como que o senhor aprovou uma manobra sem alternativas, Bri-
gadeiro?
— Ora, Almirante, eu é que pergunto: como nossa Marinha nos dei-
xa empenhados assim? Nossos aviões no ar, cheios de soldados, e agora
o senhor me diz que os fuzileiros não conseguiram chegar até ao aero-
porto?
— Brigadeiro... — ia dizendo furioso.
— Sim?
— Pois mande seus aviões virem. Eu lhe garanto que o aeroporto

98
será seu quando chegarem aqui. Como está o horário deles?
— Uma coisa a seu favor: uma hora e meia de atraso.
— Pois então podem vir — e desligou.
— Tragam imediatamente o comandante dos Fuzileiros — vocife-
rou o comandante-em-chefe.
Em menos de uma hora, pousava no convés do São Paulo um Bell
47G. O Almirante-Fuzileiro desceu apressado. Em dois minutos, estava a
par da situação. Seria difícil. Mas fez uma proposta. Ele mesmo coman-
daria um ataque ao aeroporto, duas horas antes da 23a chegar. Seria tudo
ou nada.
— O que o senhor acha?
— Topo. Tudo ou nada — respondeu o comandante-em-chefe.
Os aviões já estavam pontilhando nas telas de radar da Marinha
quando se iniciou o ataque. Todos os helicópteros foram preparados para
levar gente e material. Duas companhias de marinheiros armados de fuzis
e metralhadoras. Seis companhias de fuzileiros navais. Mais a artilharia,
incluindo mísseis anticarro (ATGW) Cobra, e uma unidade blindada, anfí-
bia, foram para o local. Um ataque sem precedentes.
Os tanques foram suspensos pelos guinchos dos helicópteros pe-
sados que transpuseram as linhas inimigas, soltando suas cargas nas pro-
ximidades do aeroporto. Também de helicópteros desembarcaram os
infantes e o material de defesa, formando o que os alemães na Segunda
Guerra Mundial chamavam de ouriço. Ou seja: o grupo ficou isolado e
completou uma defesa de cerco. Os tanques formaram uma muralha blin-
dada. Atrás deles, as forças a pé, com baionetas caladas, prontas para não
recuar mesmo no limite do corpo-a-corpo. Atrás, a artilharia, convencio-
nal e teleguiada. No centro, ficou o aeroporto. O importante era manter
uma faixa de 10 kms, ao comprido da pista, para garantir a aterrissagem
dos aviões. Os primeiros momentos seriam os mais duros, pois à medida
que fossem chegando os soldados do Exército, a posição iria ficando cada
vez mais forte. Havia, pelo menos, uma vantagem sobre o que passaram
os alemães, há mais de quarenta anos. Os brasileiros tinham a suprema-
cia aérea. Um esquadrão de Hunters foi designado para livre-caça sobre a
região, com ordens de atirar em tudo o que se mexesse. Morreram mui-
tos civis, pessoas que simplesmente fugiam pelas estradas; mas também
várias unidades cubanas foram atingidas em cheio, tentando, à luz do dia,
99
atacar o pessoal que havia tomado o aeroporto.
Quando o primeiro Hércules pousou na pista, foi uma surpresa
para os soldados. Ouvia-se a fuzilaria perto dali. Não tiveram tempo para
nada. O Almirante chegou correndo e indicou a eles:
— Corram para lá! E fogo neles que estão quase entrando aqui!
— Sim, senhor — disse o tenente — e já começou a dar ordens a
seus soldados.
Os aviões nem desligavam os motores. Desovavam os homens e já
arremetiam. Aparelhos de longo curso voltariam para Ascensão e de lá
para o Brasil. Alguns pilotos ficariam 100 horas dentro das cabinas, dor-
mindo em quartos, alternando o comando com os co-pilotos, só ficando
acordados os dois ao mesmo tempo, na hora do pouso. Dormiam embai-
xo das asas, enquanto esperavam gasolina. Caíam desmaiados, na hora
das manutenções essenciais. A ponte-aérea foi uma das bases mais bem
conduzidas de toda essa guerra.
A Infantaria de Selva, que esperava converter sobre Luanda, atra-
vessando a floresta angolana, teve de fazer uma experiência inteiramente
nova para aqueles homens treinados e curtidos na Amazônia, profundos
conhecedores do mato, da sobrevivência sem comida em plena selva.Ti-
veram de atacar os cubanos na praia, rastejando no areião. Ao anoitecer,
eram os cubanos que se defendiam em pquenos bolsões contra o ataque
dos fuzileiros, que já limpavam o terreno e davam condições de desem-
barque para o Exército que estava a bordo dos transportes ao largo, no
aguardo da tomada do porto para seguirem, com os blindados à frente,
na direção de Luanda. A 23a embrenhou-se na mata e fez uma marcha so-
mente comparável ao ataque japonês à Birmânia, em 1942, surpreenden-
do os cubanos, pela retaguarda, numa ofensiva inesperada e admirável.
Ali, em Santo Antônio do Zaire, a FAB montou uma base de B-52,
EMB-115F, F-5E, Xavantes, T-33 e outras aeronaves para apoiar o avanço
da divisão do Norte.

100
CAPITULO XIV

Já restava pouca gente na redação do Correio do Povo, em Porto


Alegre. Os secretários, editores, alguns copys e o pessoal de apoio: tele-
xistas e contínuos. O jornal estava fechado. Só aguardavam Brasília.
Às duas e meia, o telex bateu. O chefe da redação foi até à máquina
e começou a acompanhar a matéria enquanto ela entrava. Linha a linha.
Mal tinha iniciado o segundo parágrafo, ele deu ordens aos operadores
de telex:
— Por favor, me deixem sozinho aqui na sala. Vão tomar um café
que eu cuido de tudo.
— Sim, senhor, obrigado.
— Fechem a porta ao sair. Obrigado.
Pelo interno, ligou para o diretor. O velho era o último patriarca da
imprensa brasileira. Parece que tinha sentido uma coisa no ar; a informa-
ção de que Brasília tinha algo muito importante para mandar aguçou-lhe
o faro e ele decidiu esperar, ali mesmo na redação, a chegada a matéria.
— Doutor Breno, está chegando. Venha ver. Inacreditável!
O velho entrou e começou a acompanhar o texto. Sem dizer uma
palavra, voltou a seu gabinete, pegou o telefone e fez uma ligação. Quinze
minutos mais tarde voltou ao telex e deu uma ordem.
— A matéria está correta. Vamos dar em oito colunas. Só uma coi-
sa: ninguém deve saber que a temos. É exclusiva. Quem estiver aqui na
hora de baixar não deve sair da redação e nem falar com ninguém até o
jornal rodar.
— Sim, senhor.

101
A reportagem ia entrando. Sem detalhes muito precisos, dava as
informações necessárias a garantir um bom furo jornalístico. Breno sabia
que só ele tinha a matéria e queria evitar que o fato se propagasse, pois
poderia ainda chegar a tempo às redações dos jornais do Rio e São Paulo,
alertando a todos e quebrando a primazia que ele tinha assegurada.
— Passamos para a Guaíba?
— Não, fica só com o jornal. Outra coisa: esse material pode pro-
vocar até a apreensão do jornal, porque, como diz a matéria, estaremos
daqui a pouco sob legislação de emergência. Portanto, vamos cuidar da
distribuição. O último reparte a sair deve ser o da Capital, somente depois
que as remessas para o interior estiverem viajando. Assim será quase im-
possível recolher toda a edição. Antes disso, ninguém pode se comunicar.
— Dr. Breno — disse o chefe da redação.
— Sim?
— E o Daniel? É nosso companheiro e correspondente da UPI.
Como fazer a coisa sem constrangê-lo?
— Ele também terá de guardar segredo. Negocie uma solução com
ele.
— E o que mais?
— Baixe a matéria. Vou para casa. Boa noite, e mande meus cum-
primentos ao rapaz lá de Brasília.
— Sim, senhor, farei isso.
— Então, boa noite.
— Boa noite.
O chefe da redação saiu logo em seguida da sala do telex e chamou
Daniel Cunha Lima.
— Olhe aqui, rapaz. Temos uma bomba. Você vai preparar o mate-
rial. Mas antes vamos ter uma conversa.
— Sim, disse o outro, intrigado.
— Eu não tenho nada contra você ser da UPI. Mas neste caso temos
de fazer um acordo.
— Que acordo?
— Você terá primeira-mão sobre o material, mas só poderá despa-
chá-lo após minha liberação.
102
— Por que isso?
— Porque não queremos correr o risco de o jornal ser apreendido.
— Apreendido? Por quê?
— Segurança Nacional. Além disso, a esta hora já devemos estar
sob legislação de emergência.
— Mas o que houve?
— Leia isto aqui e você compreenderá.
Daniel leu a matéria e deu um pulo. Depois, profissionalmente, foi
para sua máquina de escrever e começou a copidescagem. O chefe da re-
dação escrevia o título: Neto Pede Ajuda ao Brasil; Tropas Desembarcam
em Angola.
Um título com ponto-e-vírgula. Maravilha. Ele gostou. No caso, era
perfeito e ele sabia que estava escrevendo duas linhas que seriam lem-
bradas na História.
O chefe da redação chamou um linotipista e o chefe da oficina.
— Vamos compor a matéria, mas ninguém deve vê-la. Você mesmo
pagina, sem chamar muito a atenção.
Daniel aproximou-se.
— A que horas o senhor acha que eu poderei mandar a mensa-
gem? Tenho de acordar o pessoal do escritório.
— Lá pelas cinco. Mas não há problema. Eu autorizo você a usar o
telex da Caldas Júnior, sem custo — disse rindo.
— Eu precisava, então, pelo menos chamar o pessoal do Rio. O es-
critório central estará às moscas.
— Está bem. Confio em você. Dê um recado. Mas olhe lá!...
— Obrigado — e foi para o telefone. Procurou na caderneta o nú-
mero do chefe do Rio, discou 021 e o telefone tocou. Levou um pouco até
a atender.
— Guille?
— Sim, quem é? — disse com leve sotaque.
— Daniel, de Porto Alegre. Tenho uma bomba.
— O que foi?
— Não posso dizer. Estou embargado. Mas vá para o escritório que
103
às cinco em ponto eu entro com o flash.
— Tem que me dizer o que é.
— Não posso. Vá para lá, que eu garanto que você terá uma das
maiores bombas de sua vida na mão.
A conversa continuou um pouco, com o homem do Rio pouco con-
vencido, até que concordou. Às cinco, estaria lá. E foi mesmo. Por via das
dúvidas, checou com Buenos Aires. Havia um plantão. Ele conversou com
o plantonista e ele concordou, também, em repassar o material para Nova
Iorque imediatamente. Guille teria de escrever em inglês, que não era sua
língua, mas ele dominava esse idioma com bastante fluência, mesmo para
escrever.
Daniel estava impaciente. A matéria foi composta, paginada e o
jornal passava pelas etapas finais da preparação gráfica, antes de rodar.
Além disso, ele tinha que esperar a edição se espalhar, na distribuição.
Só poderia soltar a matéria quando a edição chegasse para venda avulsa
na Praça da Alfândega e isto só aconteceria após a saída, para a rua, com
uma hora de luz, dos entregadores para assinantes. Breno Caldas queria
seu jornal circulando, o que ele achava correto, mas enlouquecia sua ca-
beça saber que tinha a notícia, com exclusividade, e devia esperar para
divulgá-la pelo mundo inteiro.
A muito custo, Daniel convenceu o chefe da redação a permitir que
ele fosse preparando uma fita de telex. Assim, quando desse o OK, seria
só discar e disparar a máquina.
Ele preparou a fita com perfeição, dentro das normas para esse tipo
de informação. Primeiro, o flash; depois, os urgentes e, por fim, a matéria
completa em duas versões: uma de 400 palavras e um budget de 800.
Sozinho na sala da UPI no Jornal do Brasil, no Rio, o correspondente
já aguardava há meia hora quando começou a entrar o primeiro flash.
Porto Alegre, 25 (UPI) — O Brasil acaba de desembarcar tropas em
Angola, informou o matutino Correio do Povo.
Repetia três vezes a mesma informação, com as câmpanhias do te-
lex batendo.
Guille deu um salto ao perceber a situação. Mudou o plano imedia-
tamente. Na linha ponta-a-ponta aberta para Buenos Aires mandou nova
ordem para o plantão.

104
“Probaires, exRio —flash palegre deve ser retransmitido serviço
amlat imediatamente. Rio fala telex new york tks. “
E colocou a fita, em português, mesmo, na máquina. Ela saía do
telex, vinda de Porto Alegre e, com dois metros de folga, já entrava de
novo no ponta-a-ponta. Foi só o tempo de ela dar a mesma folga lá em
Buenos Aires e já rebatia de novo no teletipo do Rio, o que significava que
todas as redações sul-americanas estavam recebendo a mensagem. Ele
traduziu o flash para o inglês e mandou por telex para a matriz em Nova
Iorque. Às 5h40min., o computador da UPI, em Dallas, repassava a notícia
para o mundo inteiro.
Urgente
“Porto Alegre, 25 (UPI) — O Brasil acaba de desembarcar tropas em
Angola, informou o matutino Correio do Povo de Porto Alegre.
A medida foi tomada a pedido formal do Governo de Luanda. O
Presidente angolano Agostinho Neto chegou esta madrugada ao Brasil e
pediu ajuda militar.
DL/GP 5.05.

105
106
CAPÍTULO XV

O Tenente-Brigadeiro Carlos Alberto de Oliveira Sampaio Huet pou-


sou sua mão longa e fina sobre as duas bolinhas de plástico do cabo das
alavanquinhas das manetes e deu uma pequena pressionada. Primeiro
com a bunda da mão, e depois foi levando pela polpa, polegar estendido.
O motor deu uma leve engrossada; os conta-giros deram um pulinho: algo
em torno de 600 rotações por minuto. Uma pequena mecha de cabelos
brancos desprendeu-se da onda da testa. Olhou para o lado esquerdo
e fez uma cara para seu companheiro de viagem, o co-piloto: Segundo-
Tenente R2 (reserva) Brum, segundo ano de engenharia na Universidade
de Santa Maria e 103 horas de vôo, 45 das quais num aeroclube de Santa
Maria. O jovem sorriu. Huet procurou dar um ar de confiança e cumpli-
cidade.
O motor acelerou bem mais, 1.600 rotações. 3.000 rotações. A gra-
ma curva-se com o vento. As rodas, meio amassadas pelo peso. movem-
se preguiçosamente. O avião começa a andar.
O Brigadeiro concentrou-se. Mais ainda: ficou quase tenso. Fez
uma certa força com a mão e tornou a puxar as manetes para trás. Não
precisava mais tanta máquina. O avião já estava rolando, e agora o ne-
gócio era levá-lo devagar até à cabeceira, sem deixá-lo ser inconfortável.
Afinal, não há nada com ar mais desajeitado do que um C-47 taxiando na
pista. O piloto hábil sabe que o importante, nesse momento, é ser discre-
to para não assustar o passageiro. Pois quando aquela geringonça entrar
na corrida da decolagem não haverá, talvez exceto ele, quem não fique
com medo, estando ali dentro. Um DC-3 correndo numa pista, mesmo de
asfalto, parece que vai despedaçar-se. Os motores quase rasgam o avião
ao meio.

107
Nisto, fala o rádio.
— Torre Campos falando.
O Brigadeiro voltou a si. Reagiu prontamente.
— 2426, dois quatro, dois meia, comandante, Brigadeiro Huet,
câmbio!
— Livre táxi decolagem, dois meia, câmbio!
— Meia, câmbio!
Aos poucos, outras vozes foram entrando, chiadas, pelo alto-falan-
te do velho rádio de bordo.
— Dois zero, três quatro, comandante, Brigadeiro Artigas.
— Livre táxi e decolagem, três quatro.
— Dois zero, quatro cinco, comandante, Coronel Leôncio, ligando.
— Entendido, quatro cinco.
— Quatro cinco.
E assim por diante. Antes que o C-47 do Brigadeiro Huet chegas-
se à cabeceira da pista, o pequeno aeroporto transformara-se num lugar
trepidante com o ruído dos 100 motores acelerados. Um a um, em fila
indiana, os velhos aparelhos iniciavam a rolagem em direção à cabeceira.
Deveriam decolar com dois minutos de diferença um do outro. O curio-
so era a composição hierárquica dos comandantes daquela esquadrilha:
10 tenentes-brigadeiros, 12 majores-brigadeiros, 15 brigadeiros-do-ar, 12
coronéis e um segundo-tenente, foram os postos dos pilotos anunciados
pelos comandantes de aeronaves à torre.
— Vamos checar esse avião — comandou o Brigadeiro — você lê
os cheques.
— Entendido, Brigadeiro — respondeu Brum, apanhando ima pla-
nilha de itens que eles deveriam verificar pela última vez antes de jogar o
avião no espaço.
— Leme — leu Brum.
— Livre e desimpedido — respondeu o Brigadeiro, acionando os
pedais.
— Profundores?
— Livres.

108
— Freios?
O avião deu um pequeno solavanco, resultado da rápida freada,
indicando que eles funcionavam perfeitamente.
— OK! — respondeu o Brigadeiro. Agora o resto do cheque seria
feito na cabeceira da pista. Para isto, Huet entrou ali e atravessou o avião,
de lado, na posição correta para esse tipo de procedimento. Pisou, então,
no freio, elevou o motor para 4.000 rotações por minuto, primeiro o da
direita, e começaram a verificação.
— Manifold?
— OK!
— Tacômetro?
— OK!
— Magnetos?
— OK! — respondeu o Brigadeiro, desligando um de cada vez, pois
cada motor tem dois, para ver se estavam funcionando. Enquanto o che-
que continuava, os outros aviões aproximavam-se, lentamente, à espera
do lugar na cabeceira para um, a um, repetirem a mesma operação. Final-
mente, Huet deu-se por satisfeito e começou a decolagem. Com firmeza,
sua mão direita empurrou os aceleradores manuais até ao fundo. Os pés
moveram-se suavemente até ele sentir que com eles comandava o leme
do avião, dirigindo sua corrida. O volante do manche foi empurrado para
a frente, com o objetivo de levantar a cauda do aparelho do chão, dei-
xando-o correr somente nas duas rodas dianteiras. O velho C-47 vibrava
como se estivesse num terremoto.
O velocímetro subia lentamente: 10, 20, 50, até chegar a 80 milhas.
Então, o Brigadeiro, ainda com a mão firme nas manetes, sentiu na base
da bunda o reflexo que indicava que seu avião saíra do chão. Até àquele
momento ainda estava no reino da Terra. Começou o vôo. Delicadamente,
foi tirando a manete do fundo, deixando a rotação cair, aliviando os mo-
tores. O pé esquerdo levemente pressionava o pedal, para compensar a
distorção de rumo provocada pela hélice. Ela puxa um pouquinho o avião
no sentido de sua rotação. A mão do manche ainda apertava o aparelho
na direção do chão, para evitar que subisse demais, perdendo velocidade.
— Pode cabrar— falou ao co-piloto. Brum recuou os estabilizado-
res, regulados para a decolagem, fazendo o aparelho mudar de altitude,

109
soltando a cauda um pouco para baixo. Devagar, nesse momento, come-
çou a retirar os flaps, abaixados para ajudar a decolagem, melhorando a
sustentação do avião.
— Rotação a 2.400 — disse o Brigadeiro.
— Confirmado, 2.400, respondeu Brum.
— Então já estamos indo. Pode pegar um pouco. Vamos ver — fa-
lou o Brigadeiro, já bastante descontraído.
Brum agarrou firme a meia-lua. Com o pé direito, primeiro, deu um
pequeno apertão no pedal junto com uma lijeira inclinação no volante.
Depois para o outro lado. Isso era necessário para ele sentir como o apa-
relho estava voando. O altímetro marcava 700 pés. Ainda voavam baixo
e era a primeira vez que pilotava o avião carregado. Estranhara tanto o
tempo que levou para decolar, bem mais que nos treinamentos, com o
aparelho vazio;.e, agora, custava mais a ganhar altura, embora demons-
trasse que voava sem problemas, como se fosse novinho em folha.
— Faça a curva com cuidado, até ao rumo trinta — comandou o
Brigadeiro, já de olho numa carta aérea — agora, pode ir.
O velho aparelho baixou a asa esquerda e, pachorrentamente, mu-
dou sua direção. O Brigadeiro, então, apertou o botão, abrindo o micro-
fone e informou à torre.
— Cinco decolado aos 15.
— Entendido, cinco, boa viagem!
— Obrigado, Campos, câmbio! — falou o Brigadeiro. Voltou se para
o radiotelegrafista e deu outra ordem — Sargento, assuma o rádio. Vou
desligar este alto-falante. Acompanhe a decolagem da esquadrilha. Quan-
do estiveram todos no ar, quero dar uma palavrinha com eles. Entendido?
— Entendido, sim, senhor — respondeu prontamente o graduado,
colocando os fones nos ouvidos.
Recuou um pouco seu banco, colocado bem perto dos comandos,
afrouxou um buraco dos suspensórios de segurança e sentiu-se mais ali-
viado. Como é incômodo viajar com tantas tralhas apertadas ao corpo
— o colete salva-vidas, flutuador, o pára-quedas no colo e o Colt 45 pen-
durado na cintura. Abriu o coldre e tirou a arma, aliviando o peso que já
fazia doer os rins.
— Brigadeiro? — perguntou Brum.
110
— Sim? — respondeu.
— Nós estamos realmente indo para a África?
— Acho que sim.
— É inacreditável!
— Também acho. Agora pilote. Temos cinco horas pela frente.
— Brigadeiro?
— Sim?
— O que está acontecendo?
— Eu acho que estamos invadindo a África.
— Verdade?
— É o que está parecendo.
— Mas desse jeito? com isto aqui? — disse com voz incrédula, var-
rendo com os olhos a velha cabina do C-47.
— Pois, veja só... Brum, não me amole, pilote este avião que eu
preciso pensar. Ou você acha que será fácil levar este clube da tosse até
ao outro lado do Atlântico?
— Está bem, Brigadeiro, desculpe-me.
— Então se concentre, senão você vai pôr essa joça abaixo.
— Brigadeiro?
— Sim?
— O que é clube da tosse?
— Aha! era assim que o pessoal de Porto Alegre costumava chamar
a sede do Partido Libertador. Só tinha velhos. Eu ia lá, quando fui Coman-
dante da Base Aérea de Gravataí. Agora eu achei engraçada essa unidade
só de velhinhos querendo ganhar uma guerra. Parecia uma reunião do PL.
— Ha! Ha! Ha! — riu-se o Tenente.
Brum concentrou-se no vôo. Como co-piloto do líder da esquadri-
lha, deveria levar o avião até à ilha de Trindade, a 300 milhas da costa.
De lá, saltariam para Santa Helena. Aí, ele já não entendia mais. Depois,
outra jornada até à costa africana. O Brigadeiro falava no rádio. Em códi-
go, imitando uma conversa de caçadores, reunia seu bando e preparava-
se para a grande jornada. Todos os aviões decolaram e, em fila indiana,
seguiam o líder. Iriam pela praia até à costa do Espírito Santo. Lá, fariam
111
uma curva de 90 graus e seguiriam para Trindade. Sem nenhuma escala.
Os aviões levavam um mínimo de peso. Estavam equipados com
tanques auxiliares, capacitados a transpor o oceano, como quando vie-
ram do norte da África para o Brasil, depois da Segunda Guerra. A maioria
daqueles pilotos havia feito o trajeto contrário, trazendo os aviões para a
FAB ou, como free lancers, para as companhias aéreas que se formaram
com sobras de guerra na segunda metade da década dos 40.
— Brigadeiro?
— Sim?
— Este avião está um aço, não?
— Está ótimo. Chegaremos.
— Brigadeiro? por que mandar os C-47 numa expedição destas?
— Eles são muito versáteis. Vão ser importantes em operações de
resgate e abastecimento.
— Então estamos levando esse pessoal só para não irmos vazios?
—É
— Bem, pelo menos vou conhecer a África — e calou-se. O Briga-
deiro não estava para muita conversa. Olhava um mapa e acendia um
cigarro Luiz XV. Com duas horas de vôo ainda não haviam gasto nem 1/6
de combustível. O C-47 voava firme, embora pachorrento. A bordo, os
soldados do Exército jogavam cartas e conversavam, em voz baixa. No
meio do corredor as equipagens que, por causa da necessidade de aliviar
ao máximo o peso, reduziam-se a um fuzil, um pente-de-balas, o saco de
dormir e uma muda de roupas para cada um. O grosso do material seguira
em dois Hércules que decolaram pela manhã. Quando chegasse a Lobito,
estaria tudo espalhado no aeroporto, com o número de cada um.
— Brigadeiro?
— Sim?
— Nós já desembarcamos na África?
— Sim, hoje pela manhã. Pára-quedistas e fuzileiros navais.
— Então é de verdade, mesmo?
— O que você acha?
— Parece tão irreal. Eu saí de casa pensando que viria para uma
manobra e quando me dou conta estou lutando numa guerra...
112
— Pois assim é a vida militar.
— Mas eu não sou militar.
— Isto é o que você pensa. A esta altura, queira ou não, você é um
soldado. E o que é pior, um soldado-combatente.
— O que nós temos a ver com isto?
— Um soldado não faz perguntas — respondeu irritado — cumpra
o seu dever!
— Desculpe, não tema que não estou pensando em voltar — disse
olhando para baixo. O Brigadeiro percebeu o bom-humor do rapaz e sor-
riu, também.
— Brigadeiro?
— Sim?
— O senhor sabia?
— Não. Eu estava tão por fora quanto você.
— Como foi possível?
— Porque nós estávamos preparadíssimos.
— Mas como?
— Pensamos que era uma manobra e acreditávamos na possibili-
dade. Só isso — respondeu, passando a mão na testa.
— É incrível!
— Eu também acho. Se você quer saber minha opinião, eu garanto
que pouquíssimas pessoas sabiam o que estaria acontecendo. Eu só sou-
be ontem que a gente iria mesmo para Angola.
— O senhor não sabia, mesmo?
— Não, não sabia. Sempre pensei que fosse uma manobra, embora
nos últimos dias tivesse a convicção de que se a gente quisesse poderia,
mesmo, desembarcar em Angola e vencer a guerra.
— Como foi que conseguiram fazer o negócio com tanto segredo?
— Ora, meu filho, dizendo para todo o mundo que iríamos a Ango-
la, só isto bastou para ninguém acreditar que fosse verdade.
— Ninguém acreditou.
— Pois é. Eu também gostaria agora de estar lá fora para ver a cara
do mundo inteiro. Acho que somos a manchete dos jornais por aí tudo.
113
— Eu soube pelo Correio.
— Foi perfeito, isto não podemos negar. O mérito de quem pensou
nisso tudo ainda será revelado.
— Quem foi?
— Dizem que foi o ex-Presidente. Convenhamos, é preciso muito
senso de humor para fazer uma confusão dessas desta maneira.
— Agora que já aconteceu, o senhor poderia me contar.
— Eu só conheço em detalhes a parte da Força Aérea. Mas foi assim
com todos. Temos um tenente-coronel do Exército a bordo e ele, tenho
certeza, ainda não se habituou à idéia de que amanhã estará combatendo
na África, embora tenha estudado minuciosamente a sua parte e saiba
direitinho o que terá a fazer, os problemas que enfrentará. Acho que foi
assim com todos.
— Vamos por partes, Brigadeiro: como foi a operação?
— Quando eu soube, a idéia era fazer uma grande mobilização. Ha-
via objetivos internos das Forças Armadas e outros de natureza efetiva-
mente militar, você entende o que digo?
— Mais ou menos...
— O Presidente disse que precisava tirar as Forças Armadas da
política e que a melhor maneira de conseguir isso seria pôr-nos todos a
trabalhar com as armas. A justificativa para um trabalho tão caro era que
o Brasil precisava testar seu poderio militar, pois suas responsabilidades
internacionais cresciam, nós tínhamos armas bem modernas, sabíamos
mexer com elas, mas continuávamos com elas dentro dos quartéis sem
praticarmos em grandes exercícios. Era isto. Daí para a frente, tudo fazia
parte de um enredo.
— O enredo das manobras?
— Isso. Era uma manobra de guerra externa. Na África. Um ataque
para lutar com os cubanos em Angola. Teríamos de fazer tudo no papel e
criarmos movimentos com o mesmo alcance, como se estivéssemos re-
almente indo a Angola, num deslocamento de 4.000 milhas, enfim, tudo
isto que estamos fazendo agora. Só que isto ficaria no papel, a gente voa-
ria essas milhas em cima do território brasileiro, deslocaríamos as tropas,
tudo igualzinho. Só que, como você está vendo, nós estamos efetivamen-
te indo para Angola.
114
— E ninguém desconfiou?
— Não, pois quem imaginaria que a gente poderia ir atacar a Áfri-
ca?
— Mas estamos indo, não é?
— E verdade. Na realidade, o Brasil tinha os meios para uma ope-
ração dessas.
— O que nos valeu foi a surpresa?
— Exatamente. Quando começaram a falar na manobra e mesmo
nos seus preparativos finais, ninguém pensou que a coisa aconteceria.
Veja só: primeiro, treinaram todo o pessoal. Depois, recebem material
para completar o que nos faltava. Por fim, o ataque. Todo o mundo sabia
disso, até os cubanos deviam estar sabendo das manobras. Mas até agora
não devem estar acreditando nos seus próprios olhos, quando vêem um
F-5 vomitando bombas em cima deles.
— E como foi transmitida a ordem?
— Os generais souberam que era para valer no dia 24, de manhã.
Logo em seguida, os comandantes de unidades. Os soldados só souberam
à noite, poucas horas antes de embarcar. Ninguém teve sequer tempo
para comentar o assunto. Quando vimos, estávamos na guerra. Agora, foi
uma operação perfeita.
— Foi a FAB que atacou?
— Todo o mundo. A ponta-de-lança foi das tropas de elite. Depois,
vieram os outros, em ondas. É verdade que tivemos um bom apoio local.
Sem isto acho que seria impossível fazer a coisa tão facilmente.
— O senhor acha que foi fácil?
— Olhe, meu filho, pois vou te dizer: é inacreditável o que está
acontecendo. Até ao momento ainda não me habituei à idéia de que a
gente está vivendo tudo isto.
— Como foi, até agora, Brigadeiro?
— Pois bem. Se estou bem informado, a esquadra estava no meio
do Atlântico em manobras. O enredo era um desembarque de fuzileiros
em Angola, bombardeio das bases aéreas para destruir ao máximo o po-
der de retaliação aérea cubana; a Força Aérea atacou essas bases, partin-
do dos porta-aviões e do Brasil. Uma frota de aviões-tanque foi mandada
para o meio do Atlântico. No plano de manobra, os caças sairiam de suas
115
bases, iriam até ao meio do Oceano, reabasteceriam e voltariam para
casa. Pouco antes de decolar, os pilotos receberam ordens de seguirem
em frente, atacando os objetivos teóricos que tinham no enredo. Os Mi-
rage de Anápolis iriam fazer o mesmo vôo, mas na volta deveriam pousar
num aeroporto tomado pela Infantaria de Guardas da Aeronáutica, com o
apoio de pára-quedistas. Esse grupo sairia do Rio e faria sua parte numa
base do Amapá. Na última hora, disseram que essa base seria o aeropor-
to de Lobito. Os navios mercantes carregados com tanques, canhões e
foguetes, que deveriam deslocar-se ao longo da costa para desembarcar
num dos portos escolhidos para as manobras, tiveram ordens de seguir
para a África e muitos deles estarão desembarcando material pesado
amanhã de manhã, pois se encontravam a mais do meio do caminho,
pensando em fazer a distância entre o Brasil e Angola numa meia-lua en-
tre Rio Grande e Fortaleza, por exemplo. Você entende? Era tão perfeito o
plano que ninguém, creio que nem mesmo os agentes da CIA, imaginava
que a coisa aconteceria. Bastou o Agostinho Neto fazer aquele discurso,
em Nova Iorque, e poucas horas depois nossas tropas estavam lá, para
prestar uma ajuda legal.
— Puxa, que história, Brigadeiro!
E ainda não terminou. Espero que os rapazes tenham fincado o pé
firmemente lá na África, se não, a gente não volta.
— Brigadeiro, Vitória ao meio-dia.
— Ah, sim. Em cinco minutos fazemos a curva. Você está cansado?
— Um pouco.
— Ainda temos duas horas e meia até Trindade. Lá você poderá
dormir algumas horas.
O pouso em Trindade impressionou o Brigadeiro.
— Virgem, nunca pensei! — deixou escapar. O Tenente também
parecia não acreditar no que via. A pista tinha uns 40 metros de largura.
Bem iluminada e marcada. Não havia prédios para um aeroporto daquele
tamanho, mas tinha espaço de sobra. Havia pelo menos uns 300 aviões
estacionados. Quatro pistas e um movimento constante. Uns 100 cami-
nhões-cisterna andavam rápido, de um lado para outro. Os aviões eram
modernos. Na entrada, à esquerda, uns 50 Hércules CT30 sendo abaste-
cidos. Mas além, uma fila de Búfalos. Mais à direita, parecendo terem sa-
ídos de um museu, como os C-47, os C-119, que serviram, noutras vezes,
116
aos pára-quedistas. Como não se via soldados perto deles, pensaram que
estavam carregando carga. Tanques, talvez. Ao fundo, podia-se ver uma
fila da Gálaxies. Há pouco mais de três meses que a FAB recebera aqueles
gigantes transoceânicos. Do outro lado da pista. Nisso uma vez gritou no
alto-falante:
— Quer fazer o favor de tirar essa lata-velha do caminho?
— Ei, Brigadeiro! — disse o Tenente — acho que essa história de
lata-velha é conosco.
— Como? — e corrigiu-se, em seguida — claro, acho que se há al-
guma lata-velha por aqui sou eu.
— Ei, quem gritou lata-velha que se acuse! — falou no rádio.
— Sou eu aqui, à sua direita. Saia da frente, se não eu passo por
cima de você.
O Brigadeiro e Brum olharam simultaneamente e viram a sombra
escura, enorme, quase em cima deles. Nisto estouraram na cara deles,
iluminando a cabina do C-47, uns holofotes, cegando a visão. Eram as
luzes de pouso do gigante que parecia vir por cima deles. O Brigadeiro pi-
sou nos dois freios. Roncando, ele foi passando, quase batendo no velho
Douglas. Ainda gritou pelo rádio:
— Ei, você! onde você pensa que vai?
— Brigadeiro, que avião é esse?
— Veja só, rapaz, o que está acontecendo aqui! — dizia o Brigadei-
ro, fascinado com aquilo tudo.
— Você sabe que avião é esse? — falou o Brigadeiro, entusiasma-
do. E, sem esperar resposta, continuou — É o Strato Tanker KC-135. Claro,
eles estão em cima do Atlântico dando de mamar para os rapazes dos
caças. Veja só, meu filho! — dizia emocionado.
— Vamos ver, meu jovem, o que é isto! — disse como que convi-
dando.
Pelo rádio, pediram instruções. A coisa parecia confusa, pois o ofi-
cial da torre não sabia que vinham nem onde eles poderiam conseguir
gasolina. Mas autorizou que estacionassem no pátio e pediram que o co-
mandante fosse até lá; que eles poderiam, quem sabe, dar um jeito.
— Como dar um jeito? — vociferou, pelo rádio, o Brigadeiro.

117
— Mas senhor — respondeu a voz pelo rádio — nós achamos que
se o senhor chegou até aqui vai conseguir sair. Mas nós não recebemos
nada. Nós ficamos mais perplexos do que o senhor quando nos chama-
ram dizendo que voavam para cá em C-47.
— Ora ora, vou dar uma parte. Uma parte, ouviu?! — gritou o Bri-
gadeiro.
— Veja só, Brum — disse para o companheiro, irritado — isto aqui
está uma zona, com o perdão da má palavra.
Brum riu-se. Começara a gostar do velho. Aliás, mais velho que o
seu avô, mas que agora vivia com ele aquela incrível aventura, sem per-
der o espírito esportivo. Apesar da dureza, Brum achava que a Brigadeiro
estava adorando.
— Major, está aí o comandante dos C-47 — disse um oficial, entran-
do num trailler que servia de posto de comando. Eles haviam montado
um grupo de trailers, de onde os oficiais administrativos dirigiam aquela
base. As pistas haviam sido construídas somente para apoio de um peque-
no núcleo da Marinha que havia em Trindade. Mas eles haviam ampliado
e feito um negócio enorme. Os traillers tinham tudo, até computadores
para organizar aquela confusão. Pois havia aviões e aviões, chegando de
todos os lados. Não paravam nunca, e o grupo do pessoal de terra treina-
do que eles tinham ali não conseguia mais dar conta do serviço.

***

— Com licença, quem é o comandante disto aqui? — falava alto


o Brigadeiro, procurando chamar a atenção para as suas quatro estrelas
de general. O Major apressou-se, fazendo sinal para todo o mundo ficar
quieto e deixassem ele resolver aquele caso que se criava. Mas Huet pôde
ouvir, falado entre os dentes, alguém cochichar: “Era só o que nos faltava
chegar aqui um graudão para atrapalhar o serviço”. Ele fez que não ouviu
e interpelou o Major:
— Como que não tem gasolina para os meus C-47?
— Não, não estou dizendo que não tem, Brigadeiro. Mas procure
compreender; nós estamos numa guerra e na nossa lista de prioridades...
— Quais são as suas prioridades? Diga-me! — gritou o Brigadeiro.
118
— Bem, tropas, por exemplo, têm prioridade — disse o Major, bai-
xando a voz e procurando não deixar aquele caso degenerar em um inci-
dente.
— E o que você acha que eu transporto? Galinhas? Tenho comigo
o 56o Batalhão de Infantaria a bordo e você me vem dizer que não tenho
prioridade? — continuou o Brigadeiro, lutando por sua gasolina.
— Mas então — ia dizendo o Major — Co... como? se... senhor leva
tropas naqueles aviões? — perguntou espantadíssimo o oficial.
— Quer ver os meus papéis? Aqui estão! — disse, mostrando seus
documentos e requisições que faziam parte do material burocrático.
— Tenente! — gritou o Major — providencie imediato reabasteci-
mento para o — qual é mesmo o seu grupo? — perguntou ao Brigadeiro.
— 78o Grupo de Transporte Aéreo, Major — respondeu com empá-
fia o Brigadeiro, percebendo que tinha impressionado — e vou garantir-
lhe uma coisa, Major: chegaremos sem uma perda e voaremos esta guer-
ra inteirinha, nessas latas-velhas — e virou-se, deixando-os todos calados.
— Vamos logo, Tenente, que meus passageiros estão loucos para
ver a cara dos cubanos.!
— Sim, senhor, Excelência! — retrucou o oficial de abastecimento,
indicando o caminho para um jipe. Iria conseguir gasolina para os C-47.
Em vez de duas, levaram três horas reabastecendo. O que ele não
esperava era comer refeição quente. Todos tinham rações para a viagem,
mas o Tenente providenciou um trailler que serviu lanches a todos os sol-
dados e oficiais. A única ordem era que ninguém, a não ser os comandan-
tes de esquadrilhas, podia se afastar de seus aviões. Era chegar, fazer o
que tinha de fazer e ir embora. Ou dormir por ali mesmo, quando o caso
fosse alguma avaria.
Eram cinco da manhã quando, mais uma vez, em fila indiana, os
C-47 voltaram a voar. Só que dessa vez toda a base parou para vê-los sair,
deixando a silhueta ir sumindo, contra a luz do sol nascendo. As longas
asas ganhando altura pouco a pouco. Até o último.
— Cansado, Brigadeiro? — perguntou Brum, já de dono do avião.
— Um pouco. Vou chegar melhor que o avião. Não se preocupe.
— Pois bem. Se o senhor permite, vou sintonizar o radiofarol de
Santa Helena. Temos seis horas pela frente.
119
— De acordo.
— Algo mais?
— Sim: Olho vivo, pois daqui para a frente já estaremos ao alcance
do inimigo. Qualquer coisa, me chame; vou pegar uma pestana. Afinal, só
eu não pude descansar em Trindade.
— Bom descanso, Brigadeiro.

120
CAPÍTULO XVI

O velho Amaro Silveira hesitou um segundo antes de puxar o dedo.


Nesse segundo, a sua cabeça teve de se adaptar à realidade, pois, final-
mente, após 29 anos, no finzinho da carreira, a coisa estava acontecendo.
Ele se deu conta que estava começando e então puxou o gatilho: a costu-
reira matraqueou e ele viu as cabecinhas, lá longe, abaixarem-se, a terra
saltar, traçando o rumo do tiro.
— Rá-ta-ta-ta-ta-ta...
O jipe deu um arranco, jogou-o contra o banco e saiu da estrada. A
coisa vinha, de lá, feroz, enquanto o veículo caía na barranca, derrapando,
freado, protegido.
— Vai lá, Amadão! — gritou Ângelo, agarrando o microfone e co-
meçando a falar, gritando que “havíamos feito contato”.
— Xeque-mate um ao Rei dois, coelhos à frente. Amigo bate-bola.
— Xeque-mate um ao Rei dois, coelhos à frente. Amigo bate-bola.
O velho Amaro, meio boleado pela violência da manobra, não sabia
se puxava as calças, meio caídas, porque ele afrouxara a cinta enquanto
viajava no banco do lado, para diminuir a pressão na barriga, ou se pegava
a FM 7mm e tocava fogo neles, pois sabia, muito bem, que agora não era
brincadeira. E tinha de ser feito por ele.
Bom profissional, o velho. Em segundos, pousava as perninhas da
FM no areirão da beira do aterro e vomitava mais uma rajada, que salpi-
cava na beirinha da cabeça deles.
— Aqui tem braço — gritou para os inimigos, a excitar-se.
Lá em baixo, no barranco, o jipe ainda atravessado, com o cabo
Ângelo grudado no microfone e uma INA na mão.
121
— Ô, véio! — gritou Ângelo — quantos são?
— Uns quatro ou cinco, gritou encolhido, enquanto se ouvia o esta-
lo dos tiros dos FK soviéticos e o sibilo das balas passando.
Curioso, nenhum deles parecia ter medo. Falavam com uma certa
naturalidade e faziam tudo como num ensaio.
— Eles já vêm — gritou outra vez o Ângelo — como é que está aí?
— O que tu achas? — respondeu o velho, levantando a cabeça para
espiar, antes de soltar outra descarga na direção dos cubanos.
— Agarra essa, vagabundo! — gritou e, abaixando-se: Peguei um!
Ângelo já tinha dado um salto, deixando o jipe e se deitou, de cos-
tas, ao lado do Amaro. Ali, no barranco do aterro, ele ficou semi-deitado,
nuns 70 graus.
Firmou os calcanhares na terra e, empurrando o corpo enquanto
espichava as pernas, com a INA colocada ao peito, o cano um pouco aci-
ma da cabeça; suspendeu-se, com as costas no chão, e deu uma rajadi-
nha, encolhendo-se rapidamente.
Nem bem baixou a cabeça, veio o troco: uma fuzilaria violenta de
um grupo de armas automáticas, jogando areia no seu capacete.
— Como é, falou com a Companhia? — perguntou Amaro.
— Disseram que estão chegando. Estão a uns cinco quilômetros
daqui.
— Cinco quilômetros?
— É... Já vêm!
— Então, vamos sair daqui. Por ali — disse, mostrando outra posi-
ção, ainda no aterro, perto de um macegal.
O velho saiu tropeçando, deixando a FM rolar, metendo a mão no
coldre para sacar o revólver.
Ângelo repetiu ainda uma vez a manobra do tiro de costas, deitado,
e resvalou até à base do aterro, para correr atrás do velho, com vontade
de xingá-lo por ter abandonado a FM, mas, vendo-o uns vinte metros à
frente, fazendo um esforço hercúleo para carregar seus 85 quilos, com-
preendeu a inutilidade do protesto e foi rápido atrás dele, antes que a
coisa esquentasse demais por ali.
Mal haviam chegado no abrigo, explodiu a primeira granada, bem
122
em cima do jipe, que havia ficado a uns três metros de onde estiveram en-
trincheirados. O jipe voou pelos ares. Os dois olharam-se, viraram-sé para
o matinho e saíram correndo à toda. Ângelo mergulhou na vegetação e
andou, rastejando, procurando um ponto de observação, quando ouviu
uma rajada, depois mais duas e um silêncio. Afastou o capim e percebeu
que Amaro estava deitado. Inerte.
“Merda — pensou — também, como mandam um velho desses na
ponta. Só mesmo aquele filho-da-puta do Falcão” — resmungou, pensan-
do no desprezo que sentia pelo capitão.
— “E agora...” pensou, rastejando para trás, cautelosamente, evi-
tando provocar o menor movimento na vegetação. Eles tinham pego o
velho e sua única chance seria afastar-se dali e procurar um abrigo que
lhe possibilitasse resistir uns 15 minutos, até chegarem os homens da
Vanguarda.
De novo, esgueirou-se no meio do mato e ficou imóvel, tentando
observar o que acontecia. Pôde, em seguida, vislumbrar os capacetes de-
les, deitados na estrada. Um a um, saltaram o barranco e se entricheira-
ram atrás dos destroços do jipe, incendiado pela granada que o atingira.
Por entre a fumaça preta, pôde ver um deles sair de trás do fogo e correr,
com o tronco abaixado, mas muito rápido, em direção ao corpo do Amaro.
Então, Ângelo foi surpreendido pelo que viu. Como se fosse em
câmara-lenta, o cubano levou a mão na testa e projetou-se no ar, num
salto ornamental, enquanto se ouvia o estalido seco do Smith & Wesson
44, ano 1901, do velho Amaro.
— Peguei mais esse! — gritou ele triunfante, rolando-se para trás
de uma pedra e se abrigando. De longe, Ângelo viu o velho abrindo o tam-
bor do berro, para remuniciá-lo com os perigosos arrebites.
Aquilo animou Ângelo. Imediatamente, percebeu a manobra do
velho. Era arriscada, mas se eles tivessem um pouquinho de sorte pode-
riam colocar os cubanos num fogo cruzado, paralisados atrás do jipe, até
os reforços chegarem. Dali de onde estava, ele, com sua INA, e Amaro,
com seu infalível 44, poderiam manter os cubanos imobilizados. Se não
fossem as granadas. Nem bem acabara de pensar, e uma delas explodiu
quase ao lado do velho, levantando capim e espalhando seus estilhaços
mortíferos, tapando tudo de fumaça e terra. Quando a poeira abaixou,
não viu mais Amaro. Seu capacete estava a uns cinco metros. Era a única

123
coisa que tinha sobrado inteira da explosão.
Pela primeira vez, sentiu medo.
Pensou em render-se. Desistiu logo. Avaliou a situação: ali onde
estava, os cubanos não podiam vê-lo. Não sabiam, portanto, sua posição.
Assim, mesmo suas granadas não poderiam atingi-lo, desde que encon-
trasse um abrigo adequado. Isso ele achava possível, pois não acreditava
que eles saíssem de trás do jipe, em campo aberto, depois do que aconte-
cerá a seu companheiro na mira do 44 do velho Amaro.
— Venham logo, seus sacanas — murmurou baixinho, como se es-
tivesse mandando uma mensagem a seus companheiros, que ele sabia
estarem correndo para ali a bordo de seus três transportes blindados.
Rastejou mais um pouco e viu o que pensou ser a salvação: camu-
flada no mato, havia uma calha antiga, certamente feita pelos constru-
tores da estrada para drenar o terreno durante a construção do aterro.
Tinha uns trinta centímetros de profundidade. Ali poderia escapar dos
estilhaços das granadas. Seria muita falta de sorte uma delas cair logo
dentro da trincheira.
Nem bem tinha mergulhado na toca, estourou a primeira. Em
seguida vieram mais duas. A quarta já caiu longe. Devem ter explodido
umas dez antes de se fazer o silêncio.
Primeiro atilou o ouvido, antes de, cuidadosamente, levantar a ca-
beça. Ouviu o barulho de mato quebrado, o som claro de um homem
correndo dentro do macegal. Firmou a metralhadora, sentou-se rapida-
mente e, num mesmo lance, tocou fogo no cubano que corria mais ou
menos na sua direção, a uns 10 metros de distância. Ele caiu e ficou imó-
vel. Ângelo encolheu-se de novo. Em seguida, estourou outra granada,
quase a seu lado. Se a calha não fosse funda, estaria frito. Viu que ali
estava bem protegido.
O novo silêncio deve ter durado um minuto. Nesse tempo, com o
ouvido tão atento que chegava a tremer a orelha, pensou várias vezes em
todas as possibilidades do desfecho daquilo ali. A maioria das alternativas
eram francamente apavorantes. Contudo, não era hora para medos, mas
para ação. Levantou cuidadosamente a cabeça, olhou, viu o corpo que ha-
via atingido ainda inerte, apontou a INA com cuidado e fez uma pequena
pressão no gatilho. Em cheio.
— Esse tá garantido! — disse em voz alta, virando-se para o jipe,
124
onde os outros ainda deveriam estar escondidos. No mesmo instante,
pensou que seu pente-de-balas deveria estar no fim. Decidiu esvaziá-lo
antes de eles virem, para estar com a INA reabastecida quando a coisa
voltasse a esquentar. Sem pressa, voltou a apertar o gatilho, com o cano
apontando para o carro em chamas e só o afrouxou quando parou de
tremer o braço do cano, que tinha de sustentar a arma saltando, durante
a rajada.
A resposta veio logo. Mais duas granadas explodiram, levantando
montes de terra e provocando um estrago enorme na vegetação. Sentiu
um calor na coxa.
— Merda! — vociferou mais uma vez, ao perceber que tinha sido
atingido.
Com raiva, ainda teve forças para levantar o tronco, usando a força
das pernas, como se nada tivesse acontecido e vomitou mais uma carga
em cima do jipe incendiado. Pela primeira vez, então, sentiu uma agulha-
da, vinda do ferimento. Passou a mão e ela veio empapada de sangue.
Lembrou-se do que havia aprendido durante a instrução. Tirou o
cinto da calça e amarrou na coxa para tentar estancar o sangue. Uma vez,
em Blumenau, levara um tiro, de um ladrão, e resolvera o caso mandan-
do o dono de um botequim, que acorreu tão logo o bandido fugiu dali,
deixando-o ferido, atar-lhe o cinto no braço, até que chegasse o socorro.
Enquanto amarrava a cinta, ouviu o ruído dos motores se aproxi-
mando. Entretanto, não se fiou: terminou de fazer o torniquete e ficou
novamente atento, com a INA pronta para agir.
Viu, então, três homens subindo de volta ao aterro, certamente
alertados pelo barulho dos motores. Apontou o cano e tocou fogo, no-
vamente. Um deles pareceu cambalear, antes de desaparecer atrás da
estrada, quando já avistava a poeira das lagartas se aproximando veloz-
mente.
Daí para a frente, ele só pôde contar o que ouviu. Primeiro, o ma-
traquear grosso das ponto 50. Depois, várias explosões dos 37mm. Me-
nos de um minuto, vislumbrou a silhueta de um dos carros parando junto
ao barranco, no lugar de onde saía o fumo do jipe incendiado. Abriu-se
uma porta e saltaram três homens que se agacharam atrás dos destroços,
bem como estavam os cubanos. Reuniu então todas as forças e deu um
berro descomunal.
125
— Ó, pessoal, estou aquil Não atireml
Dois deles se destacaram e correram na direção de Ângelo.
— Está bem, companheiro? — foi o que perguntou o praça.
— Me acertaram — respondeu Ângelo, mostrando o estrago.
O praça Artur levantou a mão, abanando para o carro blindado,
como a dizer que não havia perigo ali, mas que tinha encontrado alguma
coisa: ele.
Foi esse o primeiro contato das tropas da 3a Companhia de Polícia
Militar de Santa Catarina com os cubanos. Tinham chegado de Itajaí. de-
pois de 14 horas a bordo de um Hércules da FAB e nem bem desembar-
caram já receberam ordens de marchar. A Companhia da PM seria a van-
guarda do 62o Batalhão de Infantaria de Joinville, que deveria progredir
30 Km e ocupar o vilarejo de Lobumo e ali aguardar novas ordens.
O Exército dava condução: Um jipe, com ele e o velho Amaro, 15
minutos na frente de um pelotão que ia amontoado dentro dos três trans-
portes blindados. Depois, vinha o grosso da Companhia em caminhões e
em cima dos carros blindados do 62P.
O Capitão Falcão tinha avisado: se encontrarem inimigos, avisem
pelo rádio que a gente vai logo atrás. Mas nesse meio tempo, haviam
acertado o velho Amaro. O coitado, a seis meses da reforma, no final de
sua carreira de policial, morreu ali, sem entender direito onde estava.

126
CAPÍTULO XVII

O sacrifício do 62o Batalhão de Infantaria foi uma decisão de que o


General Ludwig até hoje se arrepende. Embora a culpa não fosse só dele,
pois a própria unidade insistiu duas vezes em marchar quando ele aconse-
lhava, na primeira oportunidade, outra solução e, na segunda, a rendição.
Tudo começou por um fato até agora inexplicado. Será necessária
uma investigação profunda em Bonn para saber como teria vazado para
os alemães orientais uma dica do que estaria acontecendo. A verdade é
que eles desconfiaram e, mesmo sem avisar aos cubanos, iniciaram um
movimento imprevisto e independente. Assim, a própria inteligência an-
golana, que estava com boas fontes dentro do Estado-Maior cubano e
repassou, o tempo inteiro, boas informações e informes geralmente con-
firmados para os brasileiros, não sabia que os alemães tinham movimen-
tado seu regimento.
Aparentemente, eles queriam chegar a Lobito. Mas saíram muito
atrasados. No entanto, os pára-quedistas toparam com eles. Era um re-
gimento blindado, armado até aos dentes, formado só de soldados pro-
fissionais (há quem diga que essas tropas orientais seriam, hoje, mais
aguerridas que os próprios SS da Segunda Guerra) e já com mais de um
ano em Angola, combatendo Savímbi e dissuadindo os sul-africanos. Eles
chocaram-se com os pára-quedistas e refluíram no rumo de Nova Lisboa,
girando depois para o Norte. Se se plantassem entre Vila Teixeira e Nova
Lisboa, nos desfiladeiros, cortariam a pinça e comprometeriam todo o
avanço no sentido Leste. O General Ludwig teve de tomar uma decisão
rápida. Era obrigado a mandar tropas que impedissem os alemães de se
fixarem. Mas não havia disponibilidades.
— Temos de enviar uma diversão para tentar enganar os alemães
127
e ganhar tempo até os efetivos do 24o Batalhão de Infantaria Blindada
poderem assegurar a passagem entre Vila Teixeira e Nova Lisboa — disse
o General.
— Nós faremos esse trabalho, General — disse o Coronel Moss-
man.
Ele estava em Lobito no comando do 62o Bat. Inf. A missão do 62o
consistia em ocupar a cidade e defendê-la, junto com o 56o de Campos.
Era uma tropa de conscritos, que não deveria ser empregada em ações
de choque, conforme o planejamento inicial. Mas Mossman insistiu. O
Coronel tinha assumido o comando do 62o por uma razão pouco ortodo-
xa. Ele estava em Brasília, agregado ao serviço diplomático, quando uma
forte colite, um dia antes do embarque, acamou o comandante do 62o,
Coronel Júlio César Coutinho. Insistiu com o Ministro para assumir o co-
mando, mesmo sendo de Cavalaria, por ser ele uma das poucas pessoas
que estava informado de toda a operação e que de agora em diante sua
presença seria inútil ali em Brasília. O Ministro concordou. E, assim, ele
foi parar em Lobito.
— Coronel, não há sentido. Mandamos os batalhões da PE. Por que
o 62o?
— O senhor precisa mais da PE aqui do que do 62o. Os PEs são sol-
dados de elite que terão de combater na primeira linha. Na verdade, são
a única reserva para os pára-quedistas atualmente disponíveL E, depois
do susto que a Divisão Pára-quedista passou com esses mesmos alemães,
seria um risco desviar essas tropas para uma diversão.
O General gostou do pique do Coronel. Terminou concordando.
— Está bem, mas lembre-se: sua função é só distrair o inimigo até
os blindados poderem cair em cima deles com toda sua força.
Eles são, com certeza, a unidade mais poderosa, pelo armamento e
qualidade dos seus homens, que temos perto de nós.
— Sim, senhor.
Mossman pôs a Companhia da Polícia Militar catarinense na frente
e mandou a coluna marchar. Deviam enganar os alemães, atraí-los, até
os tanques terem tempo de assegurar as estradas essenciais. O primeiro
choque com os alemães foi o encontro com a retaguarda deles, formada
por dois pelotões de cubanos desgarrados, de Vila Mariano Machado.

128
Mossman animou-se. Perdeu só dois homens, um morto e um feri-
do. Uma hora depois, no entanto, ele encararia a dura realidade. Os ale-
mães revertiam sobre ele. De um lado era uma vitória, pois o objetivo da
manobra era justamente atrasar os alemães para dar tempo ao 24o. Mas
havia uma decisão a ser tomada: retirar ou combater. Pediu ordens.
— Retire! — mandou o General Ludwig.
Mossman conseguiu marchar de volta. Mas foi insuficiente. Os ale-
mães, rodando rapidamente e usando o melhor conhecimento do terre-
no, envolveram o 62o. Ele ficou ilhado. Nova comunicação.
— General, não podemos passar; precisamos de reforços.
— Impossível agora, Coronel.
— Então, o que fazemos? Eles têm vantagem de dois para um, em
número de homens, sem falar no armamento.
— O que o senhor sugere, Coronel?
— Não sei, General. Quais são suas ordens?
— Fique parado onde está. Falamos depois.
Mossman paralisou a marcha e ficou à espera. Enquanto isto, anali-
sou uma possibilidade de defesa. Ele tinha no seu raio uma vila escudada
por duas montanhas. A estrada passava pelo meio. Com muita sorte ele
seguraria os alemães, se o ataque viesse. Meia hora depois, o General
voltou a falar com ele.
— A que distância estão os alemães?
— No máximo em uma hora fazem contato conosco.
— Não há para onde recuar?
— Nem mesmo se abandonássemos o material.
— Pois então vou lhe dizer uma coisa, Coronel: renda-se!
— Como? Que ordem é essa, General?
— Já lhe disse, renda-se!
— Isso, nunca!
— Coronel, não há necessidade. Entregue-se e estará fazendo mais
pela vitória do que sacrificando esses meninos. O senhor não tem a me-
nor chance.
— Mas peço licença para discordar.

129
— Esqueça a luta, Coronel. Se o senhor e toda sua tropa forem
capturados serão um problema maior ainda para eles. Além disso, dentro
de meia hora eles estarão cercados. Será só uma questão de tempo. Eles
não terão nem mesmo como retirar seus prisioneiros daí, e vocês na mão
deles serão um estorvo muito maior.
— Discordo, se me permite, General. Não é essa a missão do solda-
do, lutar como estorvo.
— Pois eu estou dizendo que esta é uma nova tática.
— Pois eu estou lhe dizendo, se me desculpe, General, que não
concordo. Só me rendo se for uma ordem muito clara.
O General pensou. Como dar a uma unidade de combate intacta,
com todo o armamento em perfeitas condições, uma ordem para se ren-
der diante do inimigo? Mas também havia o outro lado. Essa tropa não
teria a menor chance. Seus soldados eram jovens conscritos, as armas
eram obsoletas, na sua maior parte. Uma decisão difícil.
— Coronel, peço-lhe por favor, que só resista simbolicamente. É
um pedido pessoal. O senhor sabe que não posso dar uma ordem de ren-
dição, mas seria o mais humano, pois de nada, nem militarmente nem
politicamente, valeria seu gesto.
— Render-me com pouca luta, então?
— Seria uma saída.
— Não, General. Só lhe peço reforços. Vamos resistir até ao fim, se
o senhor me permite. Em caráter pessoal, vou lhe dizer: não tenho ambi-
ções de heroísmo. Mas um oficial da Cavalaria não pode se render dessa
maneira num comando de Infantaria.
— Entendo. Mas esse é um objetivo menor, o senhor deve concor-
dar. O Exército é um só e seus oficiais só têm compromissos com a Pátria.
— E pela honra dela que vou combater, General.
— A decisão é sua. Se o senhor combater pode estar certo que nós
faremos tudo para tirá-lo desse inferno.
— Obrigado, General.
— Boa sorte, Coronel. E que Deus o proteja.
O Coronel já tinha tomado uma série de providências. Dispunha
de 30 Cascavéis M-8, 12 tanques médios M-4, cinco M-3A1, sete canhões

130
108R, 18 74mm pack (Krupp), dezesseis carros com Cobra ATGW e ainda
15 106mm SP (canhões autopropulsados). Tinha também material obso-
leto para aquele combate, mas que poderia servir, como os canhões anti-
carro de 37 mm fabricados no Arsenal de Guerra, no Rio. Os soldados es-
tavam armados com fuzis FAL (fabricados em Itajubá), metralhadoras FAL,
INA e fuzis-metralhadoras Mauser (FM), granadas antipessoal, anticarro
(que furam chapas de até 20 cm de espessura), fabricadas em Juiz de
Fora, morteiros e lança-rojões do Arsenal de Guerra. A munição era farta.
— Os trinta-e-sete ficam na encosta, mas só disparam depois que
os alemães virarem a bunda para eles, entendido, Capitão?
— Sim, senhor.
— Eles de nada valem contra a blindagem dos T-54.
— Sim, senhor.
— Como estão seus soldados, Major?
— Já cavaram trincheiras. Estamos prontos.
E, assim, foi cobrando ordens de um por um dos comandantes. Um
sargento da cozinha, com um FAL a tiracolo, perguntou:
— O que eu faço, Coronel?
— Garanto-lhe que você não vai cozinhar tão cedo. Siga com o Ca-
pitão e ele indicará onde deve combater. Boa sorte.
— Obrigado, Coronel. Para o senhor, também.
Os aldeões estavam apavorados. Uma comissão veio falar com eles
e se surpreendeu que falassem português. Quase todos louros, pensaram
que eram sul-africanos, que finalmente tinham invadido. Ao saber que
eram brasileiros, ficaram animados. Se ofereceram para ajudar.
— O melhor que o senhor pode fazer, disse a um mais velho que
parecia ser o chefe, é tirar sua gente destas imediações, pois vamos ter
muita luta, aqui.
Em Lobito o General Ludwig tomava medidas de emergência. Man-
dou formar um regimento de Infantaria para socorrer o 62o: o 7o Blindado
de Santa Maria, o 2o Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado, o 16o
Batalhão de Caçadores, os 33o e 61o Batalhões de Infantaria Motorizada,
incluindo o 17o Grupo de Artilharia da Campanha e o 1o Grupo de Artilha-
ria Autopropulsado e o 6o Batalhão de Engenharia de Combate (este já
estava partindo para trabalhar nas obras de transposição do rio Cuanza,
131
quando foi desviado para a missão de resgate).
— Senhores. Uma missão de socorro parte para cá. Esta batalha
não estava planejada. Teremos de agüentar os alemães no mínimo até
amanhã, antes de nossos reforços chegarem. Boa sorte a todos e que
Deus nos ajude.
Os oficiais saíram tensos. Sabiam que não teriam mais de 15 minu-
tos antes de entrarem no fogo.
Mas não chegou a tanto. Como um aviso, o primeiro petardo da ar-
tilharia alemã chegou sibilando e explodiu um pouco além da vila. Depois,
outro. Mais dois. Era o ajuste do tiro. Em dois minutos, iniciava a barra-
gem. A terra saltava. O barulho era ensurdecedor. Os soldados estavam
apavorados. Em pânico.
Aquilo durou mais de uma hora. Aí, o silêncio. Mas por pouco tem-
po. Logo se pôde ouvir o ruído firme dos motores a Diesel dos tanques
que se aproximavam. Os primeiros Cobra dispararam. O troco veio em se-
guida. Os velhos M-4 conseguiam sair da floresta, canhoneando em cima
dos alemães. Mas duraram pouco. Quando os T-54 passaram receberam
pelas costas o impacto dos 37mm. De pouco adiantou. A Companhia PM,
de baionetas caladas, lançou-se em cima dos alemães. Eles não recuaram.
A briga de arma branca era um disparate naquela batalha. Os jovens sol-
dados atiraram com os FAL, mas foram dizimados pelas metralhadoras e
pelos obuzes dos T-54. Em duas horas terminava a batalha. A ajuda che-
garia tarde. Os alemães tinham percebido, quando suas patrulhas avan-
çadas detectaram os movimentos em outras regiões, a 50 kms dali, que
estavam também perdidos. Seriam esmagados. Mas, antes, escreveram
essa página da história do 62o Batalhão de Infantaria. Mossman morreu.
Com ele, tombaram outros 200 homens, e mais de 300 ficaram feridos em
graus variados de gravidade.

***

— Quero condecorar todo o 62o, Presidente, disse o General Lu-


dwig, numa das últimas comunicações que teve com o Chefe de Estado
em Brasília.
Quanto aos alemães, eles conheceram mais tarde o peso das pró-

132
prias costas. Os T-54 chocaram-se com os Zebus na planície de Angarita,
desta vez na proporção contrária. Houve acusações de massacre. O que
não foi bem o caso. Na verdade, o que aconteceu foi uma batalha cruel.
Uns vingando, outros se defendendo, até ao último cartucho.

133
134
CAPÍTULO XVIII

— Senhor, examine este gráfico do satélite — propôs o Tenente da


Meteorologia. — Olhe só, é um furacão que se aproxima.
— Xi!... disse o Coronel. Isto pode atrapalhar as coisas. Vamos ava-
liar imediatamente e comunicar Operações.
— Sim, senhor, respondeu o Tenente, levando o material para ser
analisado nos computadores.
O Coronel telefonou para o centro de controle do Galeão, avisou a
Marinha e ficou à espera da interpretação dos técnicos. Em quinze minu-
tos, na sala de conferência, quatro especialistas fizeram a exposição. Uma
formação de cúmulus nimbus se aproximava, com ventos e chuvas. Um
temporal.
— É fantástico, Coronel. A velocidade é de 120 nós. Vem do Sudes-
te. O centro passa justo em cima da baía e depois desborda para o norte.
— Muito bem. E que mais?
— Verifiquei nos parâmetros e acho que será o tufão mais forte que
a gente anotou, desde que existe controle. Já consultei a Marinha para
ver se eles têm algum dado que possa nos auxiliar.
— Quanto tempo?
— Dentro de cinqüenta minutos, o centro estará passando em cima
da baía. Acredito que teremos duas horas de interrupção do tráfego aé-
reo.
— Vamos ligar para a Polícia Rodoviária e mandar interromper a
ponte.
— Sim, senhor — disse o Capitão — preparando-se para emitir as

135
ordens.
Em quinze minutos, o alerta tinha entrado em vigor. O aeroporto
apressava as partidas e começava a desviar o tráfego para São Paulo e
Vitória, porque o Rio estava fechando. Os bombeiros preparavam-se para
atender aos chamados inevitáveis de socorro pelos desabamentos nas fa-
velas, telhados rompidos. Os marinheiros apertavam os cabos dos navios.
Mas era na ponte Rio-Niterói que o mau tempo provocava trans-
tornos maiores. Dez camionetas e cinco motociclos da Polícia Rodoviária
tomavam as providências para interromper o tráfego na maior ponte do
mundo. Há anos que essa providência era adotada. Os ventos fortes fa-
ziam os carros pequenos perderem a direção, nas duas pistas, e muitos
acidentes fatais já tinham acontecido por causa dos ventos.
O temporal ia chegar pelas 16,55. Primeiro, a nuvem negra cobrin-
do o céu. Uma camada tão espessa que os carros tiveram de acender os
faróis e as células fotoelétricas da iluminação pública acionavam o dispo-
sitivo que fazia as luminárias das ruas se acenderem automaticamente.
Os sistemas de transmissão de energia tinham de antecipar o horário de
ponta, aumentando o consumo de eletricidade. Itaipu foi ligada para re-
forçar o Rio.
Na ponte, com suas luzes já acesas, uma Chevrolet da Polícia Rodo-
viária recebe ordens: Agora, podem sair para a verificação final. Suspei-
tamos que uma Fiat está trocando o pneu. Vão indo e se o vento pegar
vocês, cuidadol — advertiu a voz que falava no rádio.
— Estamos saindo, câmbio! — respondeu a viatura.
O guarda Moacyr, de serviço como motorista, ligou a chave. O mo-
tor pegou. Já tinha atravessado muitas vezes a ponte durante os tempo-
rais. Não era agradável, mas ele também não se impressionava muito,
pois sabia que o vento não iria derrubar a perua lá embaixo, os primeiros
pingos já caíam. Pingões, a bem da verdade. Caindo de um a um e pare-
ciam estourar no capo da Chevrolet. Quando batiam no vidro, respinga-
vam para os lados.
— Essa vai ser das boas — comentou Expedito com a mão no mi-
crofone, pronto a chamar a Central, caso observasse algum problema.
— Vai ter pedra adoidado.
— Tomara que não rebente o vidro.

136
— Vamos lál
Pelo rádio, falou Expedito: Estamos entrando na ponte. Tudo vazio.
E calou-se. O carro andava a quarenta por hora e o vento começava. Veio
a primeira rajada e Moacyr teve de corrigir a direção, pois ela influiu no
carro.
— Essa é das brabas — comentou Expedito no rádio.
A nova rajada confirmou a suspeita de Moacyr. Uma, outra, mais
outra e em poucos segundos as pedras batiam e saltavam na frente do
carro, tapando de branco a pista e fazendo um barulhão na capota. Uma
pedra bateu tão forte que parecia que tinha quebrado o carro. O motoris-
ta comentou, já limpando o embaçamento quase sem ver na frente com
o limpa-brisa ligado, já não dando conta de tanta chuva.
— Epa!
A força do vento era impressionante. Dentro do carro eles sentiam
a ponte trabalhar.
— Você não acha que está um pouco demais, Moacyr?
— Igual a essa nunca tinha visto — comentou o outro guarda.
Mesmo pesando um milhão de toneladas de aço e concreto, a pon-
te se curva ao vento. Ela tem alguma flexibilidade para absorver o tem-
poral, movendo-se. Os guardas conhecem este princípio físico, na prática,
quando saem para a patrulha durante os vendavais.
— Barbaridade, Moacyr! Parece que esse negócio vai cair!
— Deixa de ser bobo, Expedito!
— Te digo, Moacyr, eu acho, mesmo, que está demais.
— Ora, Expedito, você está com medo?
— Sei lá, mas desta vez não estou gostando.
— Te acalma! Até parece que é a primeira tormenta que você pega
aqui na ponte.
— Mas estou achando muito demais — insistiu o outro guarda —
vou comunicar.
— Até agora tudo normal. Fora a ponte que treme muito mais do
que a gente estava acostumado — falou no rádio.
Veio a resposta de lá: Seja mais claro sobre o que você quer repor-
tar!
137
— Estou dizendo que a ponte treme feito uma vara.
— Explique melhor o que você quer dizer?
— Eu não sei direito — controle — mas acho que é um exagero o
que treme esta ponte.
“Mas ela sempre se move no vento. O que você reporta de anor-
mal?”
— A gente quase não vê nada. O carro está andando a 10 por hora
e esta ponte treme toda.
E continuou, já gritando:
— Agora está começando a trepidar, como se estivesse saltando.
“Continue, vinte-e-cinco. Vamos falar para o D.N.E.R. e reportar sua
observação.”
— Eu não sei o que está acontecendo, mas daqui parece que ela
está arriando para a esquerda. Aliás, parece não. A ponte está arriando
mesmo, acho que vai cair. Ela está se torcendo. Uma laje de concreto está
saltando, podes crer, a ponte está caindo. Nós vamos tentar sair daqui...
O rádio da Chevrolet parou. Ouviu-se um estalido. Um estrondo.
Ninguém entendia o que estava acontecendo. Pelo rádio, o controle gri-
tava:
— Vinte-e-cinco, responda; o que houve, vinte-e-cinco?

***

— Alô, Guille, você quer explicar melhor essa história? O chefão


aqui já me deu umas vinte puteadas hoje por sua causa — falava o chefe
do desk central da UPI em Nova Iorque.
— Mas eu não consigo nada de concreto. Em Brasília, parece que
todo o mundo enlouqueceu.
— Pois então fale direto com Mister Brian. Vou passar para ele e
você explica as coisas diretamente, pois eu também não estou entenden-
do nada.
Enquanto aguardava a transferência da ligação, Guille desejou que
aquele temporal avariasse as linhas e ele não tivesse como falar com odi-
retor-geral da UPI. Em Nova Iorque, eles estavam mais estabanados que
138
ele. Desde a manhã, quando recebeu o despacho do stringer de Porto
Alegre, que não tivera sossego.
— Alô, como está o senhor?
— Bem. Agora me explique o que está acontecendo?
— Não sei nada além do que tenho enviado nos despachos. Aqui
está tudo paralisado. Tentei embarcar para Brasília, mas não há vôos. O
que consigo por telefone é muito pouco. E aí, que notícias vocês têm?
— Parece que Washington foi invadida por um bando de bobocas.
Eles não dizem coisa com coisa.
— Mas como Washington não tem nada a dizer?
— Estamos com todo nosso pessoal trabalhando nessa matéria e
até agora não conseguimos arredondar um budget de oitocentas pala-
vras. Vamos repassar a situação, OK?
— Correto, Mr. Brian.
— O Governo Brasileiro não diz nada?
— Exatamente. A única informação foi a nota oficial da Presidência
da República, dizendo que decidiram apoiar o pedido de ajuda militar do
Agostinho Neto e que as Forças Armadas iniciavam uma operação de res-
gate em Angola.
— Só isso? Não falaram quantos homens, não falaram nada?
— Nada. Mas há intensa atividade militar no País, pois eles estavam
fazendo grandes manobras por aqui. Até agora a notícia mais completa
que tenho foi a que recebi de Porto Alegre, que saiu publicada no maior
jornal de lá, o Correio do Povo, assinada pelo correspondente diplomático
que eles têm em Brasília.
— Essa foi a matéria que você mandou de manhã?
— Sim, aquela mesmo. Até agora ninguém entendeu como o jor-
nal gaúcho teve acesso às informações, pois a própria imprensa brasileira
está perdida nessa história.
— E como foi que o Correio soube?
— O jornalista não revela a fonte dele, mas aparentemente ele es-
tava a par do plano ontem à tarde.
— E o que mais?
— A seqüência da matéria parece estar correta. Mas como o País
139
entrou em estado de emergência, não há meios de a gente se movimen-
tar.
— O que acontece, Guille, é que eu não estou engolindo essa his-
tória de que, de repente, toda nossa organização entrou em colapso e
ninguém consegue dizer coisa com coisa. Aqui, aí, na Europa, em Mos-
cou, de repente parece que baixou um disco voador no Planeta e os nos-
sos jornalistas não conseguem chegar às informações. Eu diria que isto é
inadmissível.
— Se eu estivesse em Brasília... quem sabe. Mas daqui não dá para
saber nada.
— E o Bill, não fala nada?
— O Bill está bloqueado. Só recebi um recado dele dizendo que os
correspondentes estrangeiros serão transportados até Angola e poderão
mandar matéria. Mas até lá não terei notícias dele. Ele está sob regime
militar.
— Não há como falar com ele?
— Não há como, Mr. Brian.
— E o Agostinho Neto?
— Sei que está em Brasília. Nada mais foi divulgado.
— E as embaixadas?
— O que o senhor sabe. Aliás, fala-se aqui que a Alemanha era
o único Governo que estava a par de toda a operação. Foram eles que
conseguiram dos ingleses Ascensão e Sania Helena. O senhor tem algum
dado?
— Estamos tentando apurar. O pessoal de Bonn diz que a situação
lá é extremamente confusa. A Lei Marcial foi baixada na Alemanha.
— Senhor, eu estou achando essa coisa mais esquisita do que o
senhor. Então me diga: os russos, os americanos, as grandes potências, o
que dizem?
— Como eu te digo, não admito que essas coisas todas estejam
acontecendo e a gente não tenha material para um único telegrama. Os
correspondentes me dizem que estourou uma guerra enorme e ninguém
mais tem uma palavra coerente para dizer.
Estava tudo escuro. Relâmpagos, e o vento levantando tudo. Guille

140
falava ao telefone olhando o céu desabar ali na frente dele, protegido
pelo vidro triplex do escritório da UPI, no sexto andar do Jornal do Brasil.
A visibilidade era pequena, mas ele podia avistar as luzes da cerração da
ponte já acesas e o congestionamento que se formava nos acessos, com
carros, ônibus e caminhões esperando o tráfego ser restabelecido na pon-
te.
— Senhor, a única coisa que posso dizer é que em mais de quinze
anos de Brasil nunca tinha visto um toró tão grande. Parece que o céu vai
desabar sobre nossas cabeças, aqui no Rio.
— Pois trate de se virar e mande notícias imediatamente! É inad-
missível que a gente não tenha nada até a esta hora.
— Não levo muita fé, Mr. Brian. Dizem que o Presidente vai falar
pela televisão. Acho que será inútil qualquer providência até lá, pois já
tentei tudo e não deu certo.
— Olhe aqui, Guille, eu insisto que não admito. Pelo que estou ven-
do nossa agência virou um escritório burocrático. Uma coisa eu garanto:
vamos ter muitas demissões na UPI.
— Mas, senhor... olhe, vou lhe dizer: não acredito no que estou
vendo, as luzes da ponte se mexem como se ela estivesse balançando
como um brinquedo de papelão.
— Que ponte, que história é essa?
— É verdade, Mr. Brian, a ponte está sacudindo.
— Que ponte?
— Aponte Rio —Niterói.
— Ahm! — disse o outro de lá — deixe de dizer asneiras e cuide de
seu trabalho.
— Senhor, ela está ruindo. Desculpe, vou desligar, que loucura! — e
bateu o telefone.

***

Em Nova Iorque.
— Louis — disse o chefão da UPI — o Guille enlouqueceu. Aliás,
estão todos loucos. Ele me despachou dizendo que a ponte ruiu.
141
***

Em Brasília, no gabinete do Presidente.


— General, quando teremos o Rio novamente em ordem? Esse
temporal quando vai passar?
— Vamos ver — e apanhou o telefone. Falou um pouco e aí come-
çou a perguntar, pediu confirmação. Desligou lentamente, virou-se para o
Presidente, afrouxou a gravata e disse:
— Presidente, acabam de me informar que a ponte Rio —Niterói
caiu.
— O quê???
— É isto. A ponte ruiu com o vendaval.

***

— Louis, venha cá imediatamente! — chamou o chefão, Brian, pelo


telefone interno.
O chefe do desk entrou correndo. Eles continuavam perdidos. O
correspondente na Casa Branca acabara de telefonar dizendo que o Go-
verno americano dispunha de informações escassíssimas e que o Secre-
tário de Estado estava partindo para o Brasil, a fim de se informar e que
o Presidente poderia seguir no dia seguinte. Além disso, havia Alerta Ver-
melho nos Estados Unidos. Ou seja: havia a possibilidade de um confron-
to com a União Soviética. Esse dado, por sinal, era o que mais irritava
o chefão, pois não havia o menor sinal dos desdobramentos do ataque
brasileiro a Angola.
— Uma coisa, Louis, eu não admito: é que me gozem. Quero que
você demita aquele argentino que temos lá no Rio de Janeiro.
— O Guille, senhor Brian. Mas por quê?
— Ora, para se ver livre de mim, ele disse que aquela ponte que
eles construíram lá no Rio, como é mesmo?
— Rio —Niterói.
— Isto mesmo, Rio —Niterói, acabava de cair, na frente dele, e ba-
teu o telefone. Ahm, como é que você sabe o nome da ponte?
142
— Porque ele acaba de entrar com um flash dizendo que a ponte
ruiu e que se instalou a maior confusão no Brasil.
— Então era verdade?
— Exatamente, senhor. A ponte caiu e o Brasil invadiu a África. E
ninguém em todo o Mundo sabe o que está acontecendo, nem mesmo o
nosso Governo. E possível que o Carter siga para lá, amanhã.

143
144
CAPITULO XIX.

Madrugada do dia 26. Saint Louis, Estados Unidos. O telefone toca


pela décima vez naquela manhã. Sonolento, Eddie Travolta levanta-se da
cadeira, pega o fone e diz:
— Alô?
— Quem fala?
— Eddie, o que você quer? — ele fala com intimidade, pois aquela é
a linha privada do Presidente. Somente alguém da administração poderia
estar chamando por ali.
— O Presidente. Preciso falar com ele com toda a urgência.
— Ora. Me deixe dormir. O Presidente está dormindo e disse que só
o acordasse se os russos estivessem nos atacando.
— Pois então diga a ele que é alguma coisa muito próxima disso.
— Afinal, quem está falando?
— Aqui é o Secretário de Estado.
— Ah! sim, senhor. Em que posso ser útil?
— Chame o Presidente.
— Desculpe, mas não posso. Tenho ordens expressas.
— De quem?
— Do Presidente.
— Pois bem. Mas pode chamá-lo, eu me responsabilizo.
— Senhor, desculpe. Hoje é a décima vez, pelo menos, que eu aten-
do o telefone de gente da Casa Branca ou aí do Departamento de Estado,
pedindo para falar com o Presidente. Mas ele disse que precisa dormir. O

145
senhor me entende?
— Entendo, perfeitamente.
— Pois então?
— Escute, Eddie. Eu preciso, entende? Preciso falar com o homem,
agora! Se você não acordá-lo eu vou pegar um avião para aí e quando
chegar vou dizer a ele a razão de você ter me desobedecido.
— Talvez seja melhor assim, senhor secretário.
Eddie, não me encha mais o saco. Vá lá, acorde o homem e me
obedeça.
— Sinto muito, senhor.
— Então chame alguém aí.
— Com quem?
— Alguém. Uma pessoa que resolva, pois vejo que não nos enten-
demos.
— Mas diga quem o senhor quer que eu chame.
— Qual é o funcionário mais graduado, aí, próximo de você?
— Eu acho que sou eu mesmo, senhor. O resto da comitiva ficou
no Hilton.
— Obrigado — e desligou.
Meia hora mais tarde entrou correndo sala adentro o Secretário do
Tesouro.
— O Presidente! — disse sôfrego.
Eddie quis impedi-lo de entrar nos aposentos presidenciais, mas
não pôde conter o homem. Num minuto, ele estava batendo na porta.
Carter — um dos raros americanos a chegar ao terceiro mandato conse-
cutivo — atendeu, ainda sonolento, e ficou espantado. Smith, o seu em-
perdigado banqueiro estava de roupão. E o Presidente sabia que ele tinha
ido dormir no hotel. Daí a surpresa.
— O que houve, Smith? O que houve?
— Presidente, algo muito grave. Acho que o senhor deve ligar ime-
diatamente para o Secretário de Estado.
— Mas como, o que houve? Posso saber?
— Uma guerra, senhor!
146
— Uma guerra?! Como? Estamos sendo atacados?
— Nós não, senhor.
— Quem, então?
— Ligue para o Secretário de Estado, ele lhe dirá.
— Diga-me logo!
— Não, senhor. Eu também não sei. Há horas que a Casa Branca
inteira quer lhe falar, o Secretário de Estado mandou chamar para cá de-
zenas de vezes, ele próprio falou uma vez com esse Eddie aí, e ele não o
chamou. Por isso vim aqui. Ligue para ele que é grave.
— Está bem, está bem. Eddie, ligue-me agora mesmo com o Secre-
tário de Estado.
— Sim, senhor, imediatamente! — disse o guarda-costas, agindo
rápido, já com a certeza que tinha dado uma enorme mancada.
A ligação levou cinco minutos, pois o Secretário não estava no ga-
binete na hora em que o segurança presidencial ligou. Ele tinha ido ao
centro de comunicação do Ministério para saber das últimas novidades.
O Presidente notou aflição na voz de seu auxiliar.
— Alô? Presidente?
— Sim Zbigniew, o que houve?
— O Brasil, o senhor não imagina o que está acontecendo lá.
— O que está acontecendo?
— Desde ontem à noite o Pentágono me diz que notou uma inu-
sitada atividade aérea em cima do Atlântico Sul. Dali há pouco eles me
confirmaram que isso era nada mais nada menos do que, imagine, Presi-
dente?
— Um ataque?
— Acertou.
— Angola?
— Pois veja o que estão fazendo os filhos-da-puta!
— Espere aí, Zbig. Você está me dizendo que o Brasil está atacando
Angola?
— Exatamente.
— Mas isso é impossível!
147
— É tão impossível que está acontecendo.
— E como está a situação?
— Parece que fincaram o pé lá.
— Agora, me explique uma coisa? Nós não sabíamos de nada?
— Presidente, é muito confuso.
— Como confuso?
— Nós sabíamos, mas não sabíamos.
— Como assim?
— Como o senhor sabe, o Presidente Agostinho Neto fez um apelo,
ontem, ao Brasil, na ONU, pedindo para salvar seu Governo da ameaça de
uma intervenção indesejada das forças de ocupação.
— Sim, sim.
— Veja como são sutis esses lusitanos: até ontem eram os aliados,
os companheiros. De repente, o homem chega nas Nações Unidas e cha-
ma os cubanos de tropas de ocupação.
— Continue.
— Eu preciso dizer que nós não fomos insensíveis. Quando ouvimos
o discurso, colocamos o assunto imediatamente em nível de prioridade
zero, para estudo imediato. Mas só amanhã ou depois nossos analistas
teriam uma interpretação.
— E já vem tarde, não Zbigniew?
— Eles foram rápidos demais.
— E não nos falaram nada?
— Aí é que está a matreirice deles...
— Como assim?
— O Embaixador brasileiro acabou de me comunicar, dentro do sis-
tema de protocolo que temos com eles, desde a época do Kissinger.
— E então?
— Na verdade, ele estava me procurando desde ontem à tardinha.
A Embaixada me pediu um encontro urgente; eu marquei para daqui a
cinco dias. Eles insistiram que era muito grave. Marquei para hoje às dez
da manhã. Quando soube das coisas, entrei em contato com o Embaixa-
dor deles, o Velloso.
148
— E então?
— Dei uma bronca, disse que tínhamos sido traídos.
— E aí?
— Aí ele me disse que não, pois ele me procurava desde o dia ante-
rior para me comunicar. Disse que a decisão foi de última hora.
— Como de última hora?
— Mentira deles, mas está formalmente correto.
— Explique melhor.
— A seqüência que eles alegaram é diplomaticamente perfeita.
Veja: ontem, o Agostinho fez discurso e embarcou imediatamente para o
Brasil, para ser operado no Hospital de Câncer em São Paulo. Na passa-
gem por Brasília, fez um apelo ao Presidente deles em nome da solidarie-
dade da comunidade lusa, coisas lá deles, negócio de língua portuguesa
e outras mitificações. Eles então socorreram a nação irmã com toda a
presteza.
— Ora, Zbigniew, você me vem com essa a esta hora?
— Mas, Presidente...
— Nada de mas! Isso não se faz de uma hora para outra. Eu quero
saber é como chegaram a isto sem que nós soubéssemos.
— Bem, Presidente, na verdade, nós sabíamos.
— Sabíamos????
— Exatamente. Parece uma comédia de Woody Allen. Mas esta é a
verdade. Sabíamos tudo, mas não demos crédito.
— Como assim?
— Era público que o Brasil preparava um plano para desembarcar
em Angola. Nós até fornecemos equipamentos.
— Agora, você enlouqueceu. Esses equipamentos que nós forne-
cemos a eles recentemente eram para invadir Angola? E como nunca se
falou nisso?
— Bem, eles diziam que era uma manobra real para viabilizar a
possibilidade. Nós achamos interessantíssimo, pois, se isso se tornasse
necessário, bem que os brasileiros poderiam fazer o serviço para nós. Até
estimulamos a realização do exercício.
— Então a CIA sabia de tudo?
149
— De tudo. A gente tinha até um controle total dos serviços de
inteligência deles?
— Como assim?
— A gente sabia tudo o que eles estavam espionando de nós. E o
que espionavam?
— Na verdade, achávamos um desperdício de recursos, pois o má-
ximo que eles tinham conseguido era saber 80% do que nós sabíamos
deles.
— Então foi assim. Na verdade, eles estavam sabendo tudo o que
queriam..
— Pelos fatos de hoje o senhor tem toda a razão. Mas nossos ana-
listas de inteligência estavam corretos na avaliação que tinham de que era
inócuo o esforço de informações deles aqui.
— Inócuo, é?
— Veja só, Presidente. Eu concordo com o senhor que nos fizeram
de palhaços.
— E então?
— Acho que temos de sair dessa. Em primeiro lugar, armar um es-
quema de apoio para eles, pois isto não vai terminar bem.
— Como não vai?
— O senhor já imaginou os russos?
— Olhe, vou imediatamente para aí. Fale com todo o mundo. Este
caso é gravíssimo. Até mais tarde.
— Eddie, ligue-me com o Secretário da Defesa.
— Imediatamente, senhor.
Enquanto o Presidente se escovava, o agente da segurança fazia
nova ligação, depois de avisar ao aeroporto que o Air Force One deveria
decolar dentro de trinta minutos. O Presidente mal teve tempo de esco-
var os dentes e Washington estava novamente na linha.
— Alô, é Huttington?
— Sim, sou eu.
— Você está a par?
— Claro, Presidente.

150
— Já tomou providências?
— Todas ao meu alcance.
— O que mais devemos fazer?
— Sugiro o Alerta Total.
— Pois está autorizado.
— Sim, senhor!

151
152
CAPÍTULO XX

Moscou, Secretaria para América do Sul do Departamento da Amé-


rica Latina do Ministério das Relações Exteriores. Antônio Vaz da Silva,
Embaixador do Brasil, entrega uma nota ao subsecretário de plantão, o
único funcionário disponível para atendê-lo com a presteza que tinha pe-
dido.
Em português? — perguntou Nabocoff. Ele falava bem o português.
Estivera no Brasil, fora Embaixador no Uruguai, servira na Ásia e na África.
Nunca foi um diplomata destacado, mas chegara ao pico da carreira. Ago-
ra, estava aguardando a aposentadoria, naquele departamento obscuro,
mas que demandava um funcionário de alta graduação.
— Deixe-me ver — disse ele ao Embaixador brasileiro. Vaz queria
uma audiência com o Primeiro-Ministro para entregar formalmente a
nota, que dizia ser de grande importância.
Nabocoff leu com atenção. Não se espantou, mas percebeu que
estava com um caso grave na mão.
— Vocês são muito hábeis — comentou.
Vaz da Silva limitou-se a concordar, mexendo a cabeça.
— Humm! — exclamou o soviético. — Muito bem feito. Mas isto
aqui é só um papel. A realidade pode ser outra, Embaixador. Pode ser
difícil. Vou copiar e traduzir isso. Com licença.
Saiu dali e deixou o Embaixador a sós por uns dez minutos.
— Muito bem o Primeiro-Ministro vai lhe atender. Dentro de uma
hora.
— Certo. Vamos juntos?

153
— Sim, eu também vou. Acabei de falar com o Ministro do Exterior.
Já sabia, nosso pessoal tinha avisado.
— O que você acha, Nabocoff?
— A nota está muito bem redigida. Mas, como lhe disse, não basta.
Isto terá repercussões.
— Nós não temos intenções de combater contra os soviéticos.
— Claro, nem nós aos brasileiros. No entanto, não podemos deixar
as coisas assim. Diga-me — para minha informação — quem está por trás
disso?
— Você pode não acreditar, mas não há ninguém. Somos nós e o
Governo de Angola. Ninguém mais.
— Eu sei que não adianta dizer que não acredito. Mas vamos aos
fatos. Vou fazer uma pré-análise da nota de vocês para que você tenha
uma idéia do que vem por aí.
— Vamos ver, então.
— Bem — iniciou — para começar, acho muito inteligente escre-
ver a nota em português, pois na transcrição para o russo, por elegância,
devemos retirar todo o conteúdo agressivo da tradução e assim vocês
parecerão extremamente cordiais e bem-educados. Além disso, vocês es-
tão ganhando tempo. No mínimo, uma ou duas horas até o texto final da
transcrição ficar pronto. Qualquer ação nossa, até aí, seria intempestiva,
não? Que vocês esperam com isso? Que nossos homens fiquem paralisa-
dos até lá?
— Você que está dizendo. Eu, a bem da verdade, não tenho a me-
nor informação do que está se passando lá na África e, mesmo, no Brasil
— respondeu Vaz da Silva.
— Está bem. Eu até acredito que você esteja por fora.
— Continuemos — propôs Nabocoff — Admirável essa introdução.
Muito boa, mesmo. Principalmente aqui onde vocês reafirmam a amiza-
de do Brasil à União Soviética e pedem que os cidadãos soviéticos não
interfiram no problema. Só um erro: uma boa parte desses cidadãos são
militares que foram para lá jurando defender o Tratado de Amizade, que é
um documento tão válido quanto o seu. Ou você acha que esses soldados
vão ficar indiferentes à invasão?
— Bem, se eles resistirem à uma única ordem do Governo consti-
154
tuído do País que os recebe, o que podemos pensar deles? (Mais tarde,
no ríspido encontro com o Primeiro-Ministro, ele respondeu igualzinho,
só que o Chefe de Governo não teve o mesmo humor do veterano Nabo-
coff).
— Suponhamos que eles não sejam bem-educados como o Brasil
espera. São perto de oito mil homens de elite. Uma parada dura para os
pracinhas — ironizou Nabocoff.
— Nesse caso, nossos homens vão cumprir o dever deles.
— Vaz, você já pensou nas conseqüências disso aí? Você já se deu
conta de que uma potência como a União Soviética não vai aceitar um
fato consumado? Ou vocês acham que essa retórica serve para ganhar
esta parada — falou, firme, mostrando a xerox da nota que tinha recebido
há pouco.
— E tudo uma questão de pontos-de-vista. Se você quer saber, acho
que essa é a maneira mais pacífica de resolver a questão. Uma guerra civil
em Angola seria uma tragédia muito maior. O Brasil facilita as coisas, esta
é a verdade. Nós garantimos o pessoal do Agostinho e depois vamos em-
bora. Isso que está aí na nota é claríssimo e eu posso assegurar a vocês
que será religiosamente cumprido.

***

No Kremlim, não era exatamente de calma a situação dos ânimos.


O Primeiro-Ministro esperava o Embaixador brasileiro, mas já tinha toma-
do uma série de providências. Nas próximas horas, deveria telefonar para
o Presidente dos Estados Unidos. Agora, falava com o Ministro da Defesa.
— Já estão de prontidão?
— Sim, senhor.
— Então me explique por que nossos serviços secretos não sabiam
de nada. Aliás, como até o momento não conseguem explicar o que se
passa?
— Está tudo explicado. Mas eu concordo com o senhor que é inve-
rossímil. Só o Alunev aqui acha que a versão dele é correta.
— Perdão — interrompeu Alunev, o chefe da KGB, a polícia secre-
ta internacional dos russos. — Mas nossa versão é correta. Primeiro: os
155
americanos sabiam tanto quanto nós. A verdade que apuramos é esta: os
próprios brasileiros não sabiam da operação.
— Brincadeira tem hora, camarada — retrucou o Primeiro-Ministro.
— Mas esta é a verdade. O nosso informante era o número um do
hospital.
— Que hospital? - perguntou o Secretário Geral.
— O hospital é o centro da inteligência deles nos Estados Unidos.
— Deles quem?
— Dos brasileiros.
— Como assim?
— Eles instalaram a inteligência num pequeno hospital, próximo de
Washington. O disfarce era esse. O chefe da operação nos Estados Unidos
é um policial aposentado, de São Paulo, chamado Ghelig.
— Sim, já ouvi falar. Um cara que foi da polícia política nos anos
setenta.
— Exatamente, aquele mesmo. Ele sofreu um derrame, em oitenta
e um. Ficou paralítico, surdo, mudo e quase cego. Só mexe um olho e o
dedo mingo.
— Você quer me dizer que o chefe da espionagem deles é um alei-
jado?
— Pois é verdade. Eles têm uns cinqüenta homens chefiados por
esse Ghelig. Eu achava a operação uma palhaçada, mas agora iniciamos
uma reavaliação de todo o material que temos sobre a Operação Trata-
mento — como eles chamam a missão, no Código do SNI brasileiro.
— Explique melhor.
— Até agora a descrição é a seguinte. Primeiro: Ghelig era um in-
vestigador de grande prestígio entre os militares da linha dura, por isso foi
indicado para iniciar uma operação em grande escala, nos termos deles,
nos Estados Unidos. Como ele era doente já estava aposentado desde
que sofreu o derrame — o disfarce era um tratamento médico. Os enfer-
meiros eram agentes disfarçados que levavam até a ele os relatórios do
pessoal local. A interferência direta do Ghelig parecia ser mínima, pois ele
só consegue ler os relatórios passados num aparelho ótico que projeta
os textos numa tela. E dá as ordens escrevendo numa maquineta, letra

156
a letra, com o minguinho. Chega a levar três horas para escrever uma
frase e se desgasta tanto que leva dois dias para se recuperar do esforço.
Segundo: todos os espiões da operação eram agentes duplos. Ou seja:
antes de serem deslocados para a missão externa eram informantes da
CIA, no Brasil. Assim, tudo o que o Brasil sabia da CIA, a CIA sabia que ele
sabia. E por aí nós também ficávamos acompanhando a operação. Com
pequeno interesse, é verdade, pois nossa missão lá na América é vigiar os
americanos, os chineses, franceses, ingleses, japoneses, italianos e todos,
antes de nos preocuparmos com o Brasil. Mas, por uma questão de roti-
na, comprávamos algum material sobre eles. Assim a gente sabia que eles
estavam se preparando para uma grande manobra militar que simularia
um desembarque em Angola. Uma coisa tão notória que nunca imagina-
mos que eles poderiam estar no pé em que estão.
— Como vocês são estúpidos! — vociferou o Primeiro-Ministro.
— Mas, Excelência! — defendeu-se Alunev — A própria CIA tam-
bém não sabia. Os relatórios de hoje dizem que eles estão mais tontos do
que nós com o que está acontecendo na África. Com certeza, se os ameri-
canos estivessem envolvidos na manobra, a gente saberia com detalhes.
— Você continua querendo se defender, me impingindo que os
americanos não estão nessa jogada e que os brasileiros fizeram tudo so-
zinhos?
— Essa é a realidade. É claro que eles tiveram ajuda, mas ninguém
sabia que era para valer. Os banqueiros alemães e ingleses financiaram
a operação; os americanos forneceram muito equipamento. A idéia era
que seria interessante adestrar o Brasil para uma operação desse porte.
Mas só adestrar. Ninguém pensou que eles estavam se preparando para
realizar mesmo a operação.
— Eu não acredito. E qual é a situação local? — perguntou ao Mi-
nistro da Defesa.
— Bem, temos o seguinte quadro — começou o Marechal da União
Soviética, dando um quadro militar — Dois terços do Exército local ficou
com eles. Do terço restante, a metade está indecisa e a outra metade for-
mou ao nosso lado. Mas eles tiveram apoio onde queriam, no litoral. Até
podermos chegar lá, levará mais dois ou três dias. Os cubanos e os ale-
mães orientais já estão chegando. Os tchecos estão parados, como nós,
sem saber o que fazer.

157
— E os outros países? — perguntou olhando para o Ministro do
Exterior.
— Até agora a única atividade diplomática identificada é o Embai-
xador brasileiro querendo falar com o senhor. O senhor sabe o que ele
quer? — e deixou-se esperar um pouco, criando expectativa — ele vem
explicar respeitosamente a situação e pedir a colaboração da União Sovi-
ética no sentido de evitar que seus cidadãos lotados em Angola não sejam
molestados pelo conflito interno no país. Eles falam em nome do Governo
constituído angolano, que, por sinal, está funcionando num hospital de
Brasília.
— Os americanos não fizeram nada?
— O Secretário de Estado disse que levará algumas horas até nos
comunicar a posição deles, pois o Presidente estava fora de Washington,
mas está voltando para lá e assim que chegar tomará uma posição. Até
isso acontecer, ele não pode dizer nada.
— Fantástico! atalhou o Ministro da Educação.
— Esse Embaixador?
— Que Embaixador, o brasileiro?
— Sim, esse mesmo.
— Está lá no Ministério, com o Nabocoff. Estão traduzindo a nota
diplomática deles, pois a versão que entregará ao senhor será em portu-
guês.
— Então mande apressar isso. É uma loucura — desabafou o Pri-
meiro-Ministro, logo recobrando a energia e, se dirigindo ao Ministro da
Defesa: — Já foi concluída a prontidão?
— Dentro de meia hora, estaremos com dois terços da força na
posição verde.
— Então, me tragam logo a tradução da nota do Brasil.
— Sim, senhor, virá logo — disse o Ministro do Exterior.
— Camarada Primeiro-Ministro — interrompeu o Ministro da Defe-
sa — o que mandamos nossos homens fazer em Angola?
— Que esperem ordens nossas. Vamos ver o que é isto antes de
nos metermos nessa confusão.

158
CAPÍTULO XXI

Buenos Aires, cinco horas da manhã, gabinete do Presidente, na


Casa Rosada.
— Acabei de dar instruções à Casa Militar para providenciar um
avião para você. Vá a Brasília ver o que está acontecendo e volte hoje
mesmo — disse o Presidente.
— Sim, senhor. Vou me despedir do Embaixador Barbosa, passo em
casa para apanhar uma mala e parto. Acho que no máximo em uma hora
estarei voando para lá — respondeu o Chanceler.
Mal ele saiu na porta, o Presidente pegou um telefone sem disco,
levantou o fone e, em menos de dez segundos, estava falando.
— General, já decretou a prontidão?
— Já, sim.
— Então venha para cá. Estou esperando para a reunião. Os outros
chefes, da Marinha e Força Aérea, também estão vindo, tão logo desen-
cadeiem o alerta geral. Estarei esperando.
Desligou. Enquanto ficou sozinho, à espera dos chefes militares,
olhava pela janela os primeiros sinais do dia e começava a rememorar as
últimas horas.
O Presidente tinha-se deitado há pouco quando tocou o telefone.
O ajudante-de-ordens acordou-o. Ele falou com o Chanceler.
— Presidente, precisamos falar com urgência.
— Venha cá, então.
— Não pode ser, Presidente. Terá de ser algo formal, pois está
acontecendo algo muito grave no Brasil. Por isso eu acho que a gente

159
devia começar a formalizar as coisas desde o início.
— Mas do que se trata?
O Chanceler explicou por alto. Acrescentou que iria para a Casa Ro-
sada acompanhado pelo Embaixador brasileiro. Ele tinha uma nota para
entregar. O Presidente chamou o ajudante-de-ordens, mandando provi-
denciar condução; ligou imediatamente para o Ministro da Defesa e falou,
antes de sair, com os comandantes-em-chefe das três Armas. Decretou
prontidão absoluta de todas as Forças Armadas, inclusive policial. Não
tinha ainda uma idéia, mas percebia que essa era a primeira medida a
tomar.
A seqüência foi mais ou menos esta: 1h30min, telefonema do
Chaceler; 2h10min, reunião com o Ministro da Defesa e decisão sobre a
prontidão das Forças Armadas; 3h, encontro com o Embaixador brasilei-
ro. Sete da manhã, o Chanceler desembarca em Brasília, com uma nota
expressando o apoio da Argentina ao Brasil e se colocando à disposição
para coordenar medidas defensivas conjuntas.
As 10h, depois de tomar as principais decisões, o Presidente reti-
rou-se para repousar um pouco, pois tinha dormido pouco mais de uma
hora, àquela noite, e já estava esgotado. Deitado, então, vieram-lhe as
imagens do dia, melhor dizendo, da madrugada e ele firmou a convicção
de que a América do Sul nunca mais seria a mesma coisa, a partir daquele
dia.

***

— Senhor Presidente, meus cumprimentos e as desculpas pessoais


por incomodá-lo a esta hora, mas nosso Governo não gostaria de iniciar
esse desenvolvimento sem consultá-lo — disse o Embaixador do Brasil.
— Posso ouvi-lo com muito gosto, senhor Embaixador. Mas não
posso esquivar-me de revelar minha surpresa — respondeu o Presidente.
— Eu garanto que vim no prazo mais rápido possível, tão logo pude
decodificar a nota recebida esta noite de Brasília.
— Pois não — disse o Presidente.
— Quero lhe comunicar, também, que nove cidadãos argentinos
participam da operação como convidados de nosso Exército.
160
— Como? — estranhou o Presidente.
— São jornalistas. Como o senhor sabe, nossas Forças Armadas es-
tavam prestes a realizar um grande exercício, para adestramento, quando
recebeu o apelo do senhor Presidente Agostinho Neto. A operação foi
imediatamente reconvertida e transformada. Os jornalistas, nacionais e
estrangeiros, que estavam convidados para a manobra concordaram em
seguir com as tropas, dentro do estatuto de correspondentes de guerra,
sob a proteção da Associação Brasileira de Imprensa, e terão ampla liber-
dade para escrever sobre o caso em foco.
— Além disso, senhor Presidente — continuou o Embaixador — os
adidos militares de países amigos estarão esta manhã no Estado-Maior, a
convite de sua excelência, o General Ministro-Chefe do EMFA, para terem
uma explicação detalhada das operações; e, posso adiantar-lhe, recebe-
rão um convite a visitar o teatro das operações, tão logo tenhamos apro-
vado um esquema de segurança para eles.
— No entanto — prosseguiu — o caráter de minha presença aqui é
o exame com o senhor das implicações hemisféricas dessa intervenção. A
nossa presença em Angola é um ato de solidariedade dentro do contexto
da comunidade luso-brasileira à qual pertencemos, mas não esquecemos
que a existência de tropas cubanas em Angola dá ao fato uma dimensão
americana igualmente relevante.
— Posso saber o que se espera nesse desdobramento? — pergun-
tou o Mandatário.
— Ainda hoje nosso Governo comunicará os fatos à Organização
dos Estados Americanos e pedirá apoio com base no Tratado do Rio de
Janeiro, para prevenir uma possível retaliação extra-hemisférica.
— E se a reação vier, digamos, do Caribe?
— Nesse caso específico, o Brasil esperaria da Argentina o cumpri-
mento do protocolo de defesa interna recíproca, com base no documento
reservado número dezoito.
— Esse documento era um protocolo contra a subversão interna,
totalmente superado, senhor Embaixador — atalhou o Chanceler.
— Mas continua em vigor, unicamente no caso específico, pois se
mencionava Cuba, naquela época. O que vem a ser exatamente o caso do
momento — colocou o Embaixador.

161
— O que o Brasil espera de nós? — perguntou o Presidente.
— Defesa comum, senhor Presidente. Estamos dispostos a nego-
ciar os detalhes a qualquer momento. Tanto multilateralmente, na OEA,
como entre nós, pois imagino que a segurança do Brasil é, também, parte
da segurança argentina.
No fim da conversa, quando o Embaixador passou à ante-sala, dei-
xando o Chanceler a sós com o Presidente, por uns minutos, depois de já
terem se decidido a aceitar o convite brasileiro para uma visita no mesmo
dia, de nível ministerial, para consultas e informações (e o Presidente ter
pedido à Casa Militar para preparar um avião que levasse, direto e rapi-
damente, a Brasília, o seu Ministro do Exterior), o Presidente argentino
exclamou:
— Essa não! Esses filhos-das-putas não podiam ter feito isso! Ao
que reagiu com pragmatismo o Chanceler.
— Vamos ver, Presidente, o que acontece. Vou lá e volto ainda hoje.
Depois, pensamos numa posição para nós.

***

Na Chancelaria alemã, em Bonn, o Chanceler da República Federal


da Alemanha está no seu gabinete, cercado por dez ministros. Parecem
esperar alguma coisa. Entra então, na sala, o Ministro do Exterior, com
um cabograma.
— Está aqui. Começou.
— Bem — disse então, calmamente, o Chefe de Governo — vamos
preparar a distribuição da nota a todos os governos que mantêm relações
conosco, agora mesmo, tão logo o Embaixador brasileiro chegue. E forma-
lize a prontidão das Forças Armadas.
— Senhor Ministro, interrompeu o Ministro do Exterior, que aca-
bava de atender um telefonema interno — o Embaixador brasileiro está
vindo para cá. Autorizei sua entrevista com ele.
— Perfeito, Hermann. Vamos ver, vamos ver.

***

162
Londres. Palácio de Buckinghan. A Primeira-Ministra apanha o pa-
pel e lê o decreto.
— Está feito, Majestade — diz ela à rainha ainda com a caneta na
mão. Na mesma mesa, ela, então, assina outro documento, dando anda-
mento ao Decreto Real. Por telefone, o Ministro do Exterior comunica ao
Embaixador brasileiro que foi permitido o uso do Departamento de Santa
Helena para escala de aviões militares brasileiros que levam tropas sobre
o Atlântico. A medida teve de ser tomada por decreto da Rainha, para ter
efeito imediato. Pela manhã, vai ser levado ao Parlamento.
— Senhora Primeira-Ministra, boa sorte — disse a Rainha, pois sa-
bia que um envolvimento daqueles da Inglaterra alvoroçaria o país inteiro
dentro de poucas horas.
— Obrigada, Majestade. Vossa Majestade pode estar certa que o
uso dos seus poderes reais nos permitiu reassumir uma posição de rele-
vo. Agora, por favor, assine este outro decreto, colocando nossas Forças
Armadas em prontidão.
Com firmeza, mais uma vez, Isabel II colocou sua firma e o selo real.
Desde o ataque alemão à Polônia, em 1939, que um monarca britânico
não punha sua marca num documento tão decisivo para o Império.
Àquela noite, os embaixadores brasileiros em todo o mundo re-
ceberam uma mensagem em código de Brasília. Mesmo as intercepta-
ções estrangeiras não puderam captar do que se tratava. No cofre pessoal
dos embaixadores estava um envelope lacrado, que somente poderia ser
aberto quando autorizado por aquela mensagem radiográfica.
Todos os embaixadores estavam prevenidos. Nos últimos meses
tinham ido pelo menos três vezes a Brasília e tinha havido reuniões de
grupos regionais de embaixadores, preparando uma grande operação
diplomática. O envelope continha uma série de instruções sobre proce-
dimentos e uma nota do Ministério de Relações Exteriores para ser entre-
gue imediatamente ao Governo local.
As reações foram as mais diversas. Os embaixadores no Oriente
receberam a ordem durante o dia, o que facilitou o contato com os Gover-
nos. No Ocidente, ainda era noite. Isso obrigou-os a complicadas gestões
telefônicas antes de chegarem a algum funcionário graduado o suficiente
para receber a nota e dar andamento à surpreendente comunicação que
163
continha.
No Japão, o Embaixador levou só meia hora para chegar ao Pri-
meiro-Ministro. Uma hora depois, a força de defesa japonesa estava em
alerta, o que fazia supor que os japoneses tinham algum indício de que
algo estaria acontecendo no Brasil.
Em Pequim, o Primeiro-Ministro Deng Xiaoping sorriu quando sou-
be e, no fim da conversa, desejou boa sorte ao Governo brasileiro e se
rejubilou com o apoio a Angola contra o hegemonismo soviético.
Mas a reação mais positiva foi em Assunção, no Paraguai. O velho
Presidente ouviu com atenção a explanação do Embaixador brasileiro. Fez
perguntas, elogiou a esperteza dos generais e pediu licença para telefonar
imediatamente ao Presidente do Brasil.
Levaram pouco mais de uma hora para colocar Brasília na linha.
— Presidente, os meus cumprimentos. Era necessário alguém dar
umas pauladas nesses cubanos — disse o velho General.
— Presidente, o senhor deve estar muito ocupado para perder
tempo com um velho sonhador como eu — falou o General, depois de
ouvir um pouco, o que indicava que o brasileiro tinha dito algo (na ver-
dade, somente agradecera o telefonema) — mas estou muito satisfeito
e desde já coloco o Exército paraguaio à disposição do Brasil para ajudar
a defender seu território, ou mesmo para apoiar a ação lá na África, se é
que isto pode ser viável.
Parou um pouco, ouvindo; concordava com a cabeça; dizia alguns
sim, sim, e por fim deu uma tirada:
— Perfeito. Já vou decretar a prontidão. Mas eu queria lhe pedir
um favor. Quero que o senhor receba, hoje ainda, uma esquadrilha de
nossos aviões de combate, em território brasileiro, como prova inequívo-
ca de nossa solidariedade. Pedirei para o nosso Ministro da Aeronáutica
entrar em contato com seu Ministério para que indiquem para qual base
nós deveremos rumar.
Cinco horas mais tarde, dez aviões Gavião-Rei II, também conheci-
dos como EMB-115-F, fabricados no Brasil, sob licença, projeto da Mes-
serschmitt, aterrissavam no Aeroporto de Brasília.
— IP Grupo de Aviação de Caça, Coronel Alberto Molina — bateu
continência o piloto.

164
E foram encaminhados aos alojamentos.

165
166
CAPITULO XXII

O telefone vermelho tocou.


— Primeiro-Ministro?
— Sim, Presidente.
— Posso saber o que está acontecendo?
— O quê? Pode repetir sua pergunta?
— Posso, sim. Quero saber o que está acontecendo.
— A mim que você pergunta?
— Sim, a você. Afinal quem tem tropas lá em Angola senão a União
Soviética e seus satélites europeus e caribeanos?
— Ora, ora. Então é para mim que você vem perguntar?
— Para quem mais?
— Para seus lacaios brasileiros. Não foram vocês que mandaram
eles para lá fazer essa palhaçada?
— Não me venha com essa, também. Sei que você sabe que nós
estamos por fora.
— É o que me disseram, mas não acredito.
— Pois acredite, porque é verdade.
— E o que você quer, então?
— Negociar.
— Negociar o quê?
— A neutralidade de vocês.
— Como assim?
— Retirem seus homens de lá e deixem brasileiros e cubanos deci-
167
direm a parada.
— Você está maluco. Nós não traímos nossos aliados.
— O que vocês pensam fazer?
— Ainda não sei. Mas escute: seus amiguinhos brasileiros vão ter
uma lição que não levará menos de mil anos para esquecerem. Vai ser
uma página terrível na História deles. Isto eu lhe garanto.
— Você não pode fazer isso.
— Por que não?
— Por que aí nos envolve. Temos um tratado com eles, o Tratado
do Rio de Janeiro. Se um só soldado de fora do nosso Hemisfério tocar
num cabelo de um deles, nós estamos automaticamente envolvidos. Por
isso é melhor deixar só eles e os cubanos — que de certa forma são daqui
também — resolverem sozinhos.
— Não me venha com esses papeluchos hegemônicos de vocês. Eu
sei o que você está querendo.
— Não estou querendo nada. Só penso numa maneira de evitar
que esse caso se desdobre mais ainda. Vamos limitar o caso e aí eu asse-
guro que a questão será resolvida por lá mesmo.
— Você propõe então que a gente saia de Angola e fique só suprin-
do os cubanos. E vocês, os brasileiros. Quem ganhar, leva?
— Mais ou menos isso.
— Vou estudar o caso. Mas não se anime. Essa história já foi muito
longe. Tem pessoal nosso por lá. Se algum morrer, se houver violência,
sei lá, tanta coisa pode acontecer que é difícil dizer como controlar as
próximas horas.
— Pois bem, vou falar isso com os brasileiros. Minha intenção é
ajudar. Pode estar certo disso.
— Está bem. Falamos daqui a duas horas.

***

— Zbigniew: parta imediatamente para Brasília. Eles têm de man-


ter os russos e os demais europeus fora disso. É essencial que a coisa não
se generalize. Entendido?
168
— Sim, senhor. Estou indo.

***

— Marechal, os norte-americanos nos pediram tempo e fizeram


uma proposta. Diga a nosso pessoal para se manter parado até segunda
ordem.
— Você — disse ao Ministro do Exterior — fale com os alemães e
com os thecos para não entrarem no conflito, pois estamos negociando
um acerto global.

***

Duas horas depois. O telefone vermelho volta a tocar.


— Presidente?
— Sim?
— Você pode me explicar o que significa a participação de Bonn
nessa jogada?
— Ora. Eles são amigos dos brasileiros, como vocês são amigos dos
cubanos.
— Não banque o ingênuo. Você imagina que repercussão está
tendo em nossas Forças Armadas a informação de que os alemães estão
apoiando o Brail?
— Imagino. Vocês têm medo deles até hoje.
— Pois vou lhe dizer que isto só complica as coisas.
— Eu também acho. Ou você pensa que os meus milicos também
não estão loucos para cair em cima de vocês?
— Alguma novidade?
— Meu Secretário de Estado já está a caminho.
— Voltamos a falar à noite, então.
— Até lá.

169
***

— Brasília na linha, Presidente.


— Alô?
— Presidente?
— Sim, Zbigniew. Fale.
— Um imprevisto: houve um choque com os alemães.
— Como assim?
— O regimento alemão manteve dois combates com os brasileiros.
O primeiro choque foi limitado, pois havia uma divisão de pára-quedistas
pela frente. Não passou das escaramuça. Mas no segundo...
— O que houve?
— Os alemães eliminaram, literalmente, um batalhão brasileiro in-
teirinho. Mais de 500 baixas. Prisioneiros. Um desastre.
— E daí?
— Eles querem o sangue dos alemães, agora. Têm uma força supe-
requipada atrás deles.
— Mande parar.
— Estou tratando. Mas é difícil.
— Como, difícil?
— Virou uma questão, digamos, pessoal.
— Pessoal?
— É. A Infantaria quer os alemães só para eles. Dispensaram a avia-
ção e estão se aproximando com tanques alemães fabricados no Brasil
para um verdadeiro ajuste de contas.
— E qual é a situação local?
— Pelo que eu sei, os alemães estão cercados. O choque das duas
forças é iminente.
— E você não pode fazer nada?
— Estou tentando.
— Pois faça o impossível. Você já pôs os brasileiros a par do con-
texto geral?

170
— Já. O pessoal do Ministério do Exterior compreende. Os generais
também, mas dizem que não podem deter o combate por causa do moral
das tropas, lá na África.
— Mas você não disse a eles que a gente está ajudando? Que va-
mos conseguir tirar de lá o pessoal do Pacto de Varsóvia, deixando os
cubanos para eles? Que daremos toda a ajuda? Você não falou nisso?
— Falei. Eles acharam muito bom. Mas esse caso é particular. Uma
questão de honra. O caso com os alemães é totalmente circunstancial.
Acredito mesmo que o massacre chocou tanto a eles que os generais aqui
de Brasília não têm condições de deter o contra-ataque. Coisas de guerra,
Presidente.
— Mas se eles atacarem os alemães, vai tudo por águas abaixo.
— Eu falei isso também. Mas parece que, nesse caso específico, já
é incontrolável.
— Quando será o combate?
— Amanhã de manhã, talvez.
— Pois vou agora mesmo para aí.
— Talvez o senhor consiga.
— Estou indo.
— Outra coisa.
— Sim?
— Está uma confusão dos diabos aqui. Desabou aquela ponte gi-
gante que eles construíram no Rio. Foi um grande choque. Parece que
a obra era uma espécie de símbolo do regime militar que antecedeu a
redemocratização. O senhor sabe. Ninguém se entende por aqui, e mais
isso. Na televisão e nas ruas falá-se mais da ponte que da guerra, propria-
mente.
— Então, até mais tarde. Viajo logo. Se eles não recuarem é quase
inevitável um conflito de proporções catastróficas.

***

O telefone vermelho chama em Moscou.


— Estou indo para Brasília. Você precisa me dar tempo.
171
***

— O Air Force One rola na pista do aeroporto de Brasília. Uma guar-


da forma-se às pressas para as honras militares. Na recepção, falta o Pre-
sidente brasileiro. Caminhando ao lado do Secretário de Estado, o Chefe
do Governo americano fala baixinho.
— Mas como, renunciou?
— Há pouco.
— Que loucura! E agora?
— Ninguém sabe. O Alto-Comando deles está reunido; até o ama-
nhecer terão uma solução. E o senhor, fez boa viagem?
— Dormi. Pelo menos isso. E o que faremos?
— Esperar, Presidente.
— E o ataque?
— Impossível deter. A esta hora — disse olhando o relógio as van-
guardas já devem estar se encontrando.
— Puta que pariu!

***

— Os americanos disseram que eles podem soltar uma bomba atô-


mica em nós. Seria uma tragédia, General — disse o Ministro do Exterior.
— Como o senhor vê esse caso?
— Eu acho que agrava muito a situação internacional, mas é bem
possível...
— O que poderíamos fazer para evitar? — perguntou o General.
— Duas coisas: ceder ou retaliar.
— Como assim?
— Eu estive pensando. Quantos Sonda VIII a gente poderia armar
até amanhã à tarde?
— O que você quer dizer?
— A gente poderia blefar mais uma vez. Da seguinte maneira: a

172
gente, transporta para a Barreira do Inferno alguns artefatos nucleares,
desses que construímos secretamente. Põe eles nos foguetes e ameaça-
mos retaliar a União Soviética.
— Daria certo?
— Pelo menos criaria uma situação de fato. Uma situação nuclear.
Eu sei que militarmente essa posição não se sustenta, mas abriria espaço
para a gestão política.
— E que outra alternativa?
— Deter o ataque ao regimento alemão.
— Impossível. O Ludwig até concordou, mas disse que se der or-
dem corre o risco de perder o comando.
— Entendo. Então só nos resta esta alternativa.
— E o que dirão os americanos?
— Não terão nada a dizer. Nós estaremos defendendo o nosso ter-
ritório. Terão de aceitar o fato consumado.
— Então vou tomar as providências.
— Certo. Quando estiver com tudo pronto, me avise. Uma coisa,
General: nós só devemos brandir essa arma depois que os americanos
nos abandonarem. Mas tenho motivos para achar que eles o farão.
— Por que eles vão bancar esta com os russos?
— Eles também não têm muita saída. Se os russos soltassem mes-
mo uma bomba aqui no Brasil, daria merda. Será mais uma crise de retóri-
ca. Acho que é um bom momento para nos transformarmos em potência
nuclear e ninguém tem nada a reclamar.
— Está bem. Dentro de dez horas, pelo que calculo, poderemos ter
os Sonda em posição.

***

— Por que essa reunião? Por que não nos convidam? — perguntou
o General Pedro Paulo.
— Dizem que é para nos apoiar. Mas não sei, não.
— Quando começa?

173
— Estão indo para La Paz.
— E vão todos?
— Sim. Todos os comandantes-em-chefe de exércitos latino-ameri-
canos e mesmo alguns presidentes militares estarão lá.
— Não gosto nada disso.
— Ora não tema. São todos nossos amigos.

***

— Presidente, olhe só a solução política que encontraram, que lou-


cura! — disse o Secretário de Estado, mostrando um comunicado — o que
faremos?
O Presidente leu, abanou a cabeça, pareceu pensar, virou-se para o
Secretário de Estado e deu uma ordem:
— Reconheça imediatamente.

174
CAPÍTULO XXIII

— Cafezinho, senhores?
— Obrigado, cabo. Se tiver alguma bebida, por favor — disse o Os-
mar Neimeiar. Ele era o mais nervoso de todos. Os outros estavam sen-
tados numa roda junto com os três ministros militares e mais o Chefe do
Estado-Maior das Forças Armadas e o Chefe do Estado-Maior Combinado,
General Pedro Paulo.
— A situação é esta, senhores — disse o Ministro, encarando os
cinco políticos.
— Em nome do MDB, eu sugiro que façamos, então, a sucessão.
Temos um Vice-Presidente que pode assumir o Governo e estaremos dan-
do uma aula ao mundo de maturidade democrática — sugeriu Ulysses
Guimarães.
— Eu não concordo. Quando acolhemos a solução militar era no
interesse da pacificação do País. Se surgir um Vice-Presidente vinculado
a um dos partidos, nós teremos de renegociar todo o pacto — atalhou o
líder dos trabalhistas, Leonel Brizola.
— Eu acho que devemos convocar o Presidente Geisel e pedir con-
selhos. Ele saberá o que fazer — sugeriu Jarbas Passarinho, da Arena.
— Eu acho que precisamos ser mais rápidos, como disse o General
Pedro Paulo, pois o País está em guerra e sem governo — propôs o chefe
dos socialistas, Senador Magalhães Pinto.
— Acredito que o Senador Magalhães Pinto está com a razão. Já
falamos com o Generai Geisel e ele sugeriu que as Forças Armadas ouvis-
sem os políticos antes de tomar uma decisão — falou o Ministro do Exér-
cito. E continuou: — Vamos restabelecer os pontos: primeiro, as Forças

175
Armadas não irão indicar outro Presidente, a menos que os senhores não
encontrem uma convergência entre si; segundo, é totalmente descartada
a hipótese de o Presidente reconsiderar sua renúncia, pois ele foi categó-
rico; terceiro, é inadmissível qualquer solução que não contenha um alto
índice de estabilidade. Portanto, a palavra está dada aos políticos e as
Forças Armadas apoiarão uma sugestão nesses termos.
— Eu sou novo nisso, senhores, mas ousaria dizer que estamos
frente a um impasse — disse Neimeiar, sem esconder a perplexidade.
— Talvez o Neimeiar tenha razão. O pacto majoritário formado nas
eleições entre a maioria provisória cedeu a Vice-Presidência ao MDB.
Trabalhistas e comunistas são considerados ainda suspeitos por amplas
facções militares, o que desestabilizaria o Governo do Vice-Presidente
Paulo Brossard. Uma coalizão possível seria entre a Arena e PSB, desde
que, evidentemente, o MDB desse seu apoio a esse novo pacto — propôs
Magalhães.
— O senhor está querendo isolar trabalhistas e comunistas, sena-
dor — interveio Brizola — mas a própria direção do MDB não chegará a
um consenso sobre isso. Quando no passado, os senhores formaram a co-
alizão governamental, criaram-se alianças históricas que não possibilitam
mais essa reviravolta para o MDB. As antigas oposições são um consenso
do povo brasileiro que não pode ser traído num golpe de gabinete, aqui,
na calada da noite — concluiu o senador pelo Rio de Janeiro.
— Eu acredito que a liderança e o patriotismo do Senador Ulysses
Guimarães serão respeitados pelo MDB e os acordos que ele fizer aqui
serão cumpridos pela maior parte do partido. Isto é um fato, senhores, e
um fato majoritário. Os dissidentes que se agrupem noutro lado — falou
Jarbas Passarinho.
— Este filme eu já vi — disse com ironia Osmar Neimeiar — então
o MDB se parte outra vez e a Arena volta ao Governo?
— Não foi isso que eu quis dizer — atalhou Passarinho.
— Essa solução é inadmissível. A unidade do MDB é indiscutível.
Justamente por isso o partido é ainda o maior do País. Não vamos sacrifi-
car nossa História por migalhas no Poder — falou Ulysses.
— Mas faço um apelo à inteligência de todos para salvarmos o
País de mergulhar num abismo. Não fomos nós que fizemos essa guer-
ra e fomos contra a construção dessa malfadada ponte — continuou o
176
presidente do Movimento Democrático Brasileiro — que agora ameaça
levar para o fundo do poço também a nossa tão duramente conquistada
democracia. No entanto, não abro mão da negociação como a única saí-
da para esse impasse concreto. Porém, o Vice-Presidente Paulo Brossard,
que deveria estar por direito aqui nesta reunião, num esforço supremo
de conciliação, concordou em me autorizar a negociar em seu nome, mas
jamais aceitaria, nem ele, nem eu, nem o MDB e o povo do Brasil, que
solucionássemos esse problema pisoteando a Constituição da República.
— Um momento, senhores — interveio o General Pedro Paulo —
nós militares estamos reunidos com os senhores para resolver o impasse
criado, mas por favor eliminem da discussão as suas divergências. As For-
ças Armadas aceitam qualquer solução. Embora — sem querer com isto
menosprezar a figura que tanto respeitamos do Professor Neimeiar —
realmente os membros do Partido Comunista Brasileiro não podem fazer
parte da coalizão governamental. O voto dos comunistas no nosso Presi-
dente que, infelizmente, renunciou, foi aceito como um fato voluntário
e incontornável, pois ali no Congresso cada um votava em quem queria.
Mas, já no Governo...
— Nós não queremos o Governo — atalhou Neimeiar.
— É, entendo, mas ninguém iria acreditar — ponderou o Ministro
do Exército.
— Mas também não podemos nos alinhar com Arena e mesmo
com o MDB, seria difícil. Nos aproximamos do MDB e do PTB. Isto é lím-
pido. Confesso que não sei o que fazer aqui para evitar que a presença
de uns gatos pingados comunistas no Congresso levem o País, de novo, a
uma ditadura — desabafou Neimeiar.
— Os senhores devem entender — disse Ulysses, dirigindo-se aos
militares — que a posse do nosso Vice-Presidente Paulo Brossard não sig-
nifica de maneira nenhuma a volta da antiga coligação PSD/ PTB, é... es-
queçam — disse o senador, achando melhor calar-se.
— O Brossard é libertador; é até parlamentarista — relembrou Bri-
zola.
— Talvez aí tivéssemos uma solução — disse, rápido, Magalhães.
“Eu já vi este filme” — pensou Neimeiar.
— Proponho que tomemos um café. Deputado Neimeiar, seu uís-

177
que — disse o anfitrião, o Ministro do Exército.
— E o Tancredo? — perguntava Magalhães, baixinho a Ulysses.
— Está no Rio, na casa do Amaral, aguardando notícias minhas.
— Então, ligue para ele.
— De que maneira? Aqui na toca do leão? Vão me gravar todo.
— A esta altura, o que importa?
— Você tem razão.
Foi até ao Ministro e perguntou: “Posso fazer uma ligação interur-
bana? Vou fazer uma consulta”.
— Pois não, nossos serviços de comunicação estão à disposição de
todos. Capitão — comandou, abrindo a porta — arranje um telefone com
total prioridade para o Senador Ulysses Guimarães.
Em dois minutos, Ulysses Guimarães estava com os dois velhos po-
líticos do outro lado da linha. Amaral Peixoto e Tancredo Neves, cada um
segurando uma extensão. Amaral não tinha mandato, desde que perdeu
a cadeira biônica. Mas ainda era influente, principalmente como negocia-
dor.
Ali no gabinete do Ministro, a ligação era de alta qualidade técnica.
Amaral: “O único jeito é pedir uns dois dias; com esse tempo, a
gente arruma uma solução”.
Ulysses: “Impossível. Se não resolvermos aqui e rápido, amanhece-
mos num regime militar”.
Tancredo: “Se não fosse essa guerra, bem que daria tempo. E por
que, concretamente, não querem o Brossard?”.
Ulysses: “Não é bem que não queiram. Eles acham que nessa crise
toda um Governo sem amplo respaldo levaria o País à derrota”.
Amaral: “É, na prática eles não deixam de ter razão. E a solução
parlamentarista colocada pelo Brizola?”
Ulysses: “Também não dá por causa dos comunistas”.
Tancredo: “Puxa, de novo. Realmente os militares não engoliriam
nem por uma hora”.
Ulysses: “O jeito seria chamar o Dom Pedro de volta. Aí ele nome-
ava um Gabinete de tecnocratas e a gente ganharia tempo para salvar o
País”.
178
Tancredo: “Ha, ha, ha, que saída brilhante! Ha, ha ha!”.
Amaral: “Bem que era uma saída. Você falou sério?
Ulysses: “Claro que estou brincando. Mas que era uma saída, isto
lá era”.
Amaral: “Pois eu também acho”.
Tancredo: “Vocês dois estão loucos. Ninguém aceitaria isso”.
Amaral: “Pois eu garanto que o Congresso vota ainda esta noite
qualquer reforma que garanta os mandatos”.
Ulysses: “No cagaço em que estão...”
Aquela ligação durou meia hora. Começou como um exercício de
alquimia política e terminou num acerto. Na sala, os outros esperavam.
Passarinho e Brizola, na frente dos generais, aprofundavam seus anta-
gonismos. Neimeiar, quieto, tinha certeza de que sairia dali, no mínimo,
preso. Magalhães falava com um e outro militar, ora com o Almirante,
ora com o Brigadeiro. Os chefes militares iam ao banheiro com incrível
freqüência. Ali foi improvisado um gravador para ir reproduzindo, aos ta-
lhos, a escuta da ligação com o Rio. Na medida que chegavam os retalhos,
Magalhães ia compondo os militares.
Ulysses voltou e o Ministro do Exército reinstalou a reunião. Havia
grande tensão. Ulysses tinha certeza de que tinha sido escutado e confir-
mou no claro nervosismo dos Ministros do Exército, Marinha, Aeronáu-
tica, EMFA e do, agora, Comandante do Exército na África. Desconfiou,
quase com certeza, que Magalhães já estava a par e achou que o olhar do
senador mineiro indicava alguma cumplicidade. Os outros estavam quie-
tos, mas atentos, pois perceberam a inesperada tensão e se deram conta
de que algo tinha acontecido. Suspeitaram que Ulysses iria falar, com algo
vindo do telefone. Mas foi Magalhães quem pediu a palavra.
— Senhores — começou Magalhães — o momento é muito grave e
garanto a todos que não temos mais que uma hora para decidir o futuro
de nosso País. Nunca o Brasil esteve, em toda a sua História, com a espada
de Dâmocles tão próxima do seu pescoço. Nossas Forças Armadas estão
além-mar enfrentando sozinhas uma guerra difícil cujo desfecho depen-
de primordialmente de um Governo decidido, capaz, rápido e estável. As
grandes potências estão com suas armas atômicas apontadas e prontas a
disparar em função de movimento criado pelo desembarque brasileiro na

179
África. Temos aqui em nosso País, neste momento, cinco Chefes de Esta-
do, sendo um deles o Presidente dos Estados Unidos da América, a maior
potência econômica e militar do mundo. E não temos Governo para falar
com eles. O País está perplexo com a elevada quantidade de choques que
recebeu nestes últimos dias: uma guerra, o desabamento da ponte e a
renúncia de um Presidente. Os nossos chefes militares, que representam
esse verdadeiro poder moderador, têm razão ao nos impor o dever de,
através de patriotismo e da inteligência, agirmos como estadistas e re-
solvermos o maior problema jamais enfrentado por nossa nacionalidade.
Relembremos uma crise semelhante: na Guerra do Paraguai, quando sur-
ge o impasse entre Caxias e o Governo, Nabuco — o Estadista do Império
— em nome da própria sobrevivência da Pátria, dá seu voto: “Mantenha-
se Caxias no Paraguai, demita-se, em vez dele, o Gabinete”. O Conselho
do Estado foi contra a primazia da espada. Nabuco manteve seu voto, e o
bom-senso, historicamente comprovado, decidiu: Zacarias caiu com seu
Gabinete. Caxias ficou à frente da guerra. Agora a questão é mais grave,
pois envolve a própria Chefia do Estado. Neste momento, ouso propor
uma solução de aparência casuística, destinada a suplantar a gravidade
do momento, mas de amplas repercussões para a vida do País, enquanto
o Brasil for uma Nação (e o será por muitos e muitos séculos para a gran-
deza do Mundo da vida civilizada). Antes, porém, quero reafirmar minha
convicção na unidade do País. Estamos divergentes, mas não divididos.
Esse detalhe, porém, nos impede de compormos um Governo que salve
a Pátria sem que a hecatombe nos sucumba. E todos aqui concordamos
que a solução é formar um Governo acima das divergências. O que na
prática todos sabem como deve ser. Ou seja: um Governo de técnicos,
sem a participação de nenhuma das correntes, pois somos o único país
do mundo que só tem minorias, sem formar uma maioria. Para salvar essa
convivência sui-generis é que estamos aqui. O impasse é como fazer um
Chefe de Estado, saia ele dos partidos, das Forças Armadas ou da própria
sabedoria nacional. Pois vou dizer: é a mesma desunião unida do consen-
so da Independência. Só nos resta restaurar aquela fórmula, assumirmos
nossas idiossincrasias e reabilitarmos o País ainda esta noite.
Magalhães calou-se. Todos mantiveram o silêncio. Ulysses Guima-
rães assentiu com a cabeça e ficou à espera. Os outros não se moviam.
Brizola foi o primeiro a se dar conta.
— Isso é golpe! Se bem entendi, enquanto tomávamos cafezinho e
180
eu divergia do Senador Passarinho, tramou-se, aqui nesta sala, a restau-
ração do Império. Isso é ridículo! Me recuso a continuar falando e partici-
pando dessa pândega.
— Senador. Isto não é pândega nem golpe. E tão bem quanto nós
o senhor entende o que se passa. O que imagino é que o senhor está já,
desde agora, procurando um espaço para negociar. Pois então vamos par-
tir daqui, se os senhores chefes militares estão de acordo — disse Ulysses.
Neimeiar esvaziou o copo de uísque que tinha na mão.
O Ministro do Exército falou.
— Nós aceitamos qualquer solução que seja estável, como disse-
mos. Portanto, não descartamos nem essa, mesmo que se admita que é
inteiramente inesperada. O que quero dizer é que de nosso lado damos
todas as garantias. E os senhores?
— Será um choque no Congresso. Neste momento, todos os depu-
tados e senadores que se encontram em Brasília aguardam, em vigília, o
resultado desta reunião. Mas se nós, os chefes dos partidos, assumirmos
aqui um compromisso, ele terá maioria e até o amanhecer a Constituição
estará emendada — garantiu Magalhães.
— Eu peço desculpas por outro casuísmo — disse Ulysses, descon-
traindo — mas será que a nossa Força Aérea não poderia abrir uma exce-
ção e transportar imediatamente até Brasília o Senador Tancredo Neves e
o Almirante Amaral Peixoto? Eles serão, ainda esta madrugada, indispen-
sáveis às articulações.
Enquanto o Ministro da Aeronáutica saía para mandar buscar os
dois, Neimeiar atalhou:
— Senhores, eu até concordo, dadas as circunstâncias, em ser um
Comunista de Sua Majestade. Mas não me venham dizer que o Rei será
aquele príncipe da TFP.
— Concordo com Neimeiar — disse Brizola. — O Imperador terá de
ser o Príncipe de Petrópolis, que, pelo menos, honra as tradições de nossa
Família Imperial sendo um autêntico liberal.
A escolha do Príncipe levou mais algum tempo. No fim todos acha-
ram que um Rei direitista não seria o indicado. E assim o Capitão ajudan-
te-de-ordens foi procurar numa lista telefônica o número de Dom Pedro
de Orleans e Bragança, futuro Dom Pedro III, em Petrópolis, e ver o Prín-

181
cipe levar o maior susto de sua vida.

182
CAPÍTULO XXIV

A chegada dos líderes dos partidos foi às 10h30min. Eles desceram


e foram diretamente para a sala da presidência do Senado. Os deputados
e senadores queriam saber o que estava acontecendo, mas a porta per-
maneceu trancada por 15 minutos. Eles faziam um relatório do encontro
com os Ministros (que já estavam sendo chamados de Junta, nos corredo-
res, pois o golpe era considerado inevitável) para os presidentes das duas
Casas, Senador Pedro Simon, do MDB gaúcho, e Deputado Aírton Soares,
do MDB paulista.
Na porta, uma confusão de parlamentares, todos querendo entrar.
O primeiro sinal foi a convocação dos líderes dos partidos e também dos
líderes dos blocos da maioria e minoria. Junto saiu uma convocação para
reunião das bancadas dentro de duas horas.
— Precisamos esperar o Tancredo e o Amaral — dizia Ulysses Gui-
marães, convencendo os outros a ajudá-lo a ganhar tempo, pois dessa vez
não poderia segurar o rojão sozinho.
Lá dentro estava também o Vice-Presidente da República, Paulo
Brossard.
— Vocês querem que eu renuncie e ainda escreva o texto da refor-
ma? — perguntava Brossard, visivelmente perplexo com a proposta que
acabava de ouvir.
— É urgente, Paulo, temos que definir toda essa história rapidinho
— disse Ulysses.
Não era fácil enquadrar o Imperador. Que títulos ele teria? Qual
seria sua renda? Suas atribuições? A nobreza? A bandeira? Seria uma res-
tauração ou um novo Império? Fora disso, ao mesmo tempo, era neces-

183
sário articular uma maioria no Congresso, para mexer na Constituição e
conseguir um nome que pudesse chefiar o Gabinete. A única coisa que
realmente animava Brossard era essa parte do parlamentarismo, pois nin-
guém, ali naquele Parlamento, sabia tanto dos mecanismos do regime do
Gabinete. Alguém sugeriu:
— Não seria mais fácil a gente eleger o Imperador Presidente da
República?

***

Tocou o telefone. Era do Ministério do Exército. Dom Pedro já tinha


sido localizado. Um helicóptero estava sendo providenciado para apanhá-
lo em Petrópolis e levá-lo até ao Galeão, de onde um jatinho da FAB iria
trazê-lo até Brasília. Outra decisão dos generais: ele seria empossado
envergando um uniforme de Marechal do Exército. O Congresso deveria
dar-lhe o título de Marechal das três Armas e o direito de usar o unifor-
me. Ainda não tinha sido decidido qual seria o posto dos príncipes e dos
maridos das princesas.
— E o Imperador? — perguntou Simon, que atendera ao telefone.
— Já aceitou — respondeu de lá o General.
— Pois bem, senhores — disse Simon, falando para os presentes, já
desligando o telefone — os ministros militares já convidaram o Imperador
e ele aceitou. Estamos diante de um fato consumado. Ele será Rei com a
aprovação do Congresso ou sem ela, sendo que esta última hipótese sig-
nifica, com certeza, o fechamento do Legislativo.
Paulo Brossard foi até a uma máquina de escrever, na mesa de Si-
mon e começou a bater.
— O que está fazendo, Paulo? — perguntou Ulysses.
— Começo pela carta-renúncia, que lerei pessoalmente em plená-
rio. Depois, faço o texto da reforma.
Tocou o telefone de novo. Eram Amaral e Tancredo, chegando ao
aeroporto militar. Vieram num supersônico executivo e seriam transpor-
tados até à Praça dos Três Poderes num helicóptero militar.
O Ministro do Exército ligou, dizendo que a posse poderia ser às
oito da manhã. Simon perguntou por que aquele horário. O Ministro res-
184
pondeu que seria o tempo mínimo pedido pelos alfaiates militares para
ajustar o uniforme do Imperador. Assim que estivesse fardado, poderia
tomar posse no Congresso.
— Outra novidade — disse Simon aos demais — a posse será no
Congresso. Vou sugerir uma coisa, Brossard disse para o Vice-Presidente,
que escrevia no canto da sala: coloque aí no decreto que a mudança do
regime deverá ser ratificada por um referendo. O que acham disso?
Todos aprovaram. Um referendo seria o ideal. Ninguém sabe quem
levantou dúvidas sobre a coroação: antes ou depois do referendo? quem
colocaria a coroa no Rei? Ficou decidido que o Rei seria coroado pela Igre-
ja Católica. O Papa seria convidado.
A reunião das bancadas teve tumulto. No fim, todos aceitaram vo-
tar a reforma para salvar a democracia, mas ali mesmo abriram-se divi-
sões nos partidos, com lideranças declarando-se, de imediato, a favor da
República.

***

Já amanhecia quando foi reinstalada a sessão conjunta das duas


Casas e deram a palavra ao Vice-Presidente, para ler sua carta-renúncia.
Pouco antes tinha chegado um carro do Exército, trazendo uma
mensagem. Os militares sugeriam que o Parlamento convidasse o Chan-
celer ítalo Zappa para encabeçar o Gabinete. O documento esclarecia que
o Ministro já tinha sido avisado e que concordara, estando à disposição
do Legislativo para submeter um Gabinete. O Governo seria composto
por quase todos os membros do Ministério anterior; mudavam só dois
nomes: o Embaixador Souza Aguiar seria Ministro do Exterior e o Vice-
Presidente Paulo Brossard seria convidado para o Ministério da Justiça.
— Estou achando que já é um excesso de imposições — discordou
Brizola — que nos façam mudar o regime está certo, mas nos mandar um
Governo por bilhetinho, aí já é demais!
— Eu também não estou gostando disso — falou o líder da bancada
trabalhista no Senado, Alencar Furtado — isto pode ser uma manobra:
nós fazemos esse ridículo Império ser legalizado e os militares vêm de lá
com um Governo deles.

185
— Não há esse perigo — atalhou Passarinho — eles nos deram ga-
rantias. Além do mais, Zappa é civil. E se não bastasse, é lógico que eles
se preocupem e sugiram um nome do Itamaraty.
— Por que não um tecnocrata da Fundação? — ironizou Neimeiar.
— Uma questão de hierarquia — respondeu Passarinho.
— Como assim?
— A tecnocracia brasileira se compõe de várias camadas. Os diplo-
matas são, digamos assim, os mais cosmopolitas deles todos, pois são
habituados ao manejo político.
— Eles são, entre os civis, o equivalente aos generais do Exército,
nas Forças Armadas?
— Mais ou menos. A verdade é que neste momento o mais indi-
cado será colocar mesmo o Ministro do Exterior na Chefia do Governo,
pois ele é um dos poucos que está a par de todos os andamentos e dos
compromissos assumidos pelo País.
Não houve problemas também para a aprovação do Governo. Za-
ppa, que tinha ido dormir às duas da manhã, foi acordado às três e in-
formado de que deveria assumir o cargo de Primeiro-Ministro. Teve de
aceitar. No entanto, foi o único a levantar uma objeção à restauração do
Império.
— Devíamos, antes, estudar melhor a disposição de nossos vizi-
nhos, para depois nos decidirmos por uma fórmula como essa — disse o
Chanceler ao General Pedro Paulo, quando os dois se encontraram logo
depois da reunião entre políticos e militares.
Essa advertência não foi considerada, mas ela reforçou no consen-
so dos generais a necessidade de o Governo ser entregue ao Itamaraty
até às coisas clarearem.

***

Quando o Imperador chegou ao Congresso para assumir o trono,


já havia uma aglomeração em frente ao palácio do Legislativo. A notícia
tinha corrido. O Rei veio pela grande avenida, do Palácio da Alvorada,
escoltado por batedores das três Armas. Ele teve um tempo para tomar
banho e escrever um discurso, enquanto os alfaiates ajustavam nele um
186
uniforme de general, conseguido emprestado e que teve de ser recorta-
do para não ficar sobrando na barriga. Dom Pedro é um homem alto e
magro.
Também a designação do Palácio da Alvorada para ser o Palácio Im-
perial levou algum tempo. Quando o Rei chegou no Aeroporto, ainda não
tinha pensado nesse detalhe. Primeiro pensaram numa suíte no Hotel Na-
cional. Alguém do Protocolo achou que não ficava bem e lembrou na gafe
com a Rainha da Inglaterra, em sessenta e oito, quando ela dormiu pela
primeira vez em sua vida fora de um palácio.
O Ministro da Marinha lembrou do Alvorada. O Presidente tinha
se recolhido à Granja do Riacho Fundo. E ele nunca morou lá mesmo. O
Ministro da Aeronáutica mandou buscar toalhas e cobertas na casa dele,
ativaram a criadagem, e quando Dom Pedro chegou ao palácio já havia
uma suíte à espera. O que, de resto, de pouco serviu, pois ele estava mui-
to nervoso para dormir e, além disso, a toda hora os alfaiates vinham
provar o uniforme que estava sendo ajustado.
Um problema entre o Imperador e os militares: as condecorações.
Dom Pedro trouxe as medalhas de seu antepassado e defendeu o uso de-
las no uniforme, argumentando que, com a restauração, o ato que cassou
os títulos de Dom Pedro II era automaticamente revogado.
Com isso ele herdava além do trono as medalhas do antecessor.
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica ficaram em dúvida. Resolve-
ram telefonar para o Congresso. Puzeram o Ministro do Exército ao tele-
fone com o Vice-Presidente Brossard. Ele saberia das implicações legais
do caso.
— O senhor acha que está certo? Afinal, faz tanto tempo e além
disso a maioria daquelas ordens já nem existem mais — ponderou o mi-
litar.
Brossard aproveitou para dar uma agulhada.
— O certo mesmo, Ministro, seria eu assumir o Governo. Com isto
a gente livraria o País de problemas mais graves que esses das condeco-
rações. Não imagino o que se falará amanhã sobre esse ato. Além disto,
acho que se nomeamos o homem para ser Rei, ele já está automatica-
mente condecorado.
— Se o senhor acha...

187
— E, convenhamos, General, seria uma desmoralização para o Bra-
sil coroar um Imperador sem medalhas. Acho que é inerente à figura de
um monarca o peito cheio de grã-cruzes.
— Se o senhor diz, estou de acordo.
O Imperador pôde usar algumas de suas medalhas no peito. Ficou,
sem dúvida, um monarca respeitável, com seu metro e oitenta e tantos,
os cabelos grisalhos, o bigode esbranquiçado, o corpo magro, mas vigo-
roso. E também seria um dos mais nobres do mundo, melhor que o es-
panhol e que os nórdicos, pois Dom Pedro III carrega os sobrenomes dos
Bourbon, dos Orleans e dos Bragança.
Ficou acertado com Dom Pedro que ele teria sua manutenção e de
sua família asseguradas pela União. A nobreza seria admitida somente
pelo sangue e sem quaisquer privilégios. Ele manifestou desejo de reco-
nhecer títulos estrangeiros, de famílias nobres que vieram para o Brasil.
Os militares aceitaram, mas o caso deveria ser discutido mais tarde, quan-
do fosse feita a regulamentação.
No Congresso havia expectiva. Nenhuma pessoa, que não fosse
parlamentar, teve acesso às reuniões das bancadas. Só se soube que os
deputados e senadores, membros da Comissão de Constituição e Justi-
ça, saíram para uma sala separada e ficaram uma hora e meia redigindo
um parecer, em conjunto com o Vice-Presidente Paulo Brossard. Às cinco
da manhã, os parlamentares voltaram ao plenário. Em silêncio, sem falar
com ninguém. Um deles, o gaúcho Paraguassu, teve tempo de comunicar-
se com um repórter.
— Uma bomba, espera só — disse o petebista, e continuou indo
para sua cadeira.
Quando todos estavam nos seus lugares, o presidente abriu os tra-
balhos. A seguir, convidou o Vice-Presidente da República a fazer parte da
mesa. As televisões acenderam as câmeras, os rádios abriram os microfo-
nes. Os repórteres anotavam.
— Agora, tenho a honra de dar a palavra a Sua Excelência, o Vice-
Presidente Paulo Brossard de Souza Pinto.
Brossard poderia falar da mesa. Mas preferiu ir à tribuna. Os jor-
nalistas não sabiam o que pensar. O Vice-Presidente não foi claro. Falou
de coragem, de patriotismo, de despreendimento e citou vários vultos da
História. Por fim, leu sua mensagem renunciando à Vice-Presidência da
188
República o que, na prática, significava abrir mão da Presidência. Até aí
ninguém se espantou, pois, como os boatos que havia, era uma solução
para o civil, até natural, de abrir o caminho para uma saída pacífica, sem
traumas institucionais. Mas quando foi lido o parecer conjunto das comis-
sões de Justiça e chamaram as bancadas para votação, o susto foi geral.
— Emenda aprovada por unanimidade dos senhores senadores e
senhores deputados aqui presentes — disse o presidente.
— Peço aos líderes das bancadas e aos presidentes dos partidos
políticos que têm assento nesta Casa que formem uma Comissão para
receber Sua Majestade Imperial, Dom Pedro III. A sessão fica suspensa até
à chegada da comitiva.
Levou uma hora até o Imperador chegar, envergando um uniforme
de gala do Exército Brasileiro. A Guarda Presidencial já estava formada
em continência, quando ele chegou, num dos carros do Palácio, seguido
de todo o Ministério. A posse foi breve. Ato contínuo, ele fez o convite ao
Ministro Ítalo Zappa para chefiar o Gabinete. Estava feito.

189
190
CAPÍTULO XXV

No Palácio do Quamado, em La Paz, trinta generais. Na presidência,


o Almirante Emílio Massera, da Argentina.
— Senhores, acabamos de receber uma mensagem de nossa Em-
baixada em Brasília. Como Chefe da Nação argentina eu me declaro mui-
to preocupado com o problema surgido no Brasil. Agora nos chega uma
informação que nos desnorteia. Diz a mensagem: “Impossibilitados de
encontrar uma solução política para a renúncia do Chefe de Estado, o
Congresso Brasileiro, de comum acordo com os líderes de todos os parti-
dos, inclusive os comunistas, aprovou emenda constitucional, restauran-
do o regime monárquico e entregando o trono a Dom Pedro Bourbon de
Orleans e Bragança. A decisão teve pleno respaldo das Forças Armadas.
Saludos”.
— Senhor Presidente, qual a explicação para essa mensagem insó-
lita? — perguntou o representante da Nicarágua, Tenente-General Andrés
Barrios.
— Proponho que se suspenda a sessão para tomarmos maiores in-
formações — disse o Presidente da Argentina.
A sugestão foi aceita. Só ao meio-dia voltaram a se encontrar todos,
depois de conversarem com seus países, se articularem entre si e ligarem
para Brasília para falar com as Embaixadas e com os próprios chefes mili-
tares brasileiros, pois, afinal, na América Latina todos se conhecem.
Quando foi reinstalada a reunião, só os chefes militares puderam
entrar. Massera chamou o General Carrasco, do Paraguai, e perguntou:
— Qual sua posição?
— Acho que nosso Presidente vai gostar. Ele sempre quis ser amigo

191
de um Rei. Agora que pode ser sócio, nem lhe conto...
— Pois então vou lhe pedir que se retire. Os demais países não
vêem com simpatia o que aconteceu esta madrugada em Brasília.
— Como assim?
— Essa posição agressiva de Brasília, sem consultar a nenhum de
nós; a restauração do Império, que foi o causador da expansão brasileira
no século passado; o apoio americano a isso, tudo nos cheira muito mal.
Não sabemos o que vamos deliberar, mas acho que a primeira lealdade
dos integrantes desta assembléia é com o consenso latino-americano. Se
o Paraguai vai ficar do lado do Brasil, nós lamentamos, mas não podemos
admitir sua presença daqui para a frente.
— Almirante, o senhor fala como se esta reunião fosse de inimigos
do Brasil e não de aliados — retrucou o paraguaio.
— Não estou dizendo que somos inimigos. Muitas propostas po-
dem surgir e não queremos que elas transpirem daqui. Não estou tam-
bém querendo dizer que o senhor não é de nossa confiança, mas todos
achamos que os senhores, no Paraguai, estão demasiadamente compro-
metidos com o Brasil para terem uma posição isenta. É isto o que quere-
mos.
— Almirante, isto é uma desconsideração para um vizinho e uma
ofensa ao Paraguai.
— Entenda como quiser. Mas não creio que sua presença seja útil,
nem para o senhor, nem para seu país, nem para os outros.
— Veremos. Isso é um desaforo — e saiu. Iria dali para a Embaixada
comunicar-se com seu Governo e pedir instruções, pois ficara totalmente
desconcertado com a grosseria e intrigado com o gesto grave do Presi-
dente argentino.
Sem o paraguaio, a reunião recomeçou. Fala o Comandante-em-
Chefe do Exército boliviano.
— Eu declaro que estamos sumamente preocupados com o que
ocorreu em Brasília. Meu país se sente cercado. E não sei o que advirá
após esse robustecimento do nosso gigante vizinho.
— Eu estudei no Brasil: fiz a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais,
quando era capitão, e mais tarde Estado-Maior, no Rio. Por isso os conhe-
ço muito bem e imagino o temor de nosso companheiro boliviano — dis-
192
se o Comandante-em-Chefe do Exército guatemalteco.
— Não há a menor dúvida que esse novo regime, perfumado, pela
presença de um Bourbon, Orleans e Bragança e que sei mais lá, vai pro-
vocar um grande acercamento com a Europa — atalhou o Ministro da
Defesa do Peru.
— Já estão unha-e-carne com os alemães; já têm a bomba. Qual
será o próximo passo? — questionou o hondurenho.
— Eu sei — disse o uruguaio — será em cima de nós.
— O senhor acredita? — interrompeu Massera.
— Sem a menor dúvida. Hoje é o Brasil, e não Cuba, o nosso maior
perigo. Onde estão nossos exilados? O que se faz para deter a sanha sub-
versiva? Quem nos pressiona para abrir liberdade para os comunistas e
seus aliados idiotas úteis e baderneiros sem norte? O que poderá querer
esse Brasil, agora tão poderoso? — perguntou.
Os demais ouviam com atenção. O regime uruguaio, com efeito,
era o que mais sofria com os perigos da democratização brasileira. Mas os
generais começaram a admitir que aquela fala tinha algum sentido.
— Continue, companheiro, por favor — sugeriu Ornar Torrijos, do
Panamá.
— O que poderá querer esse país que há alguns anos vem se auto-
denominando “potência emergente”?
O discurso do uruguaio fazia a sala manter um silêncio medonho.
— Qual será a oferenda que essa nação vizinha quererá brindar
àqueles que julga ser, depois de uma incursão como a que faz pela África,
aos seus novos parceiros? Às nações ricas do Ocidente, com as quais já se
julga equiparada?
— E sabem por quê?
— Porque restauraram aquele Império, que foi o sucessor natural
do imperialismo português da colonização, que roubou mais da metade
da América do Sul para eles,
— E por isso que trazem o Rei, pois são diferentes de nós. Não!
temos de ser rápidos. Se não, em breves tempos, a América Espanhola
será entregue num prato ao Ocidente como área de influência da potên-
cia regional, alçada à posição de grande. Nossos regimes, serão o tributo.
Os comunistas, criptocomunistas e baderneiros que foram expurgados de
193
nossas pátrias lá vivem e conspiram. E, sem dúvidas, terão de servir como
paga da hospitalidade e do apoio, para trazer de volta, aos nossos países,
a traição e a anarquia — concluiu.
— Eu concordo inteiramente com o companheiro uruguaio — disse
o Chefe das Forças Armadas venezuelanas — pois acho inevitável que es-
ses desdobramentos venham a acontecer. Contudo, não creio que nosso
Governo concorde com medidas drásticas. Vivemos em combate com os
guerrilheiros que muitas vezes usam a fronteira para se abastecer, sem
que medidas concretas de repressão sejam tomadas do outro lado. E te-
nho convicção que só não prendem todos e não expulsam os dissidentes
que por lá transitam para nos enfraquecer. Porém, nossos governantes
são fracos, as situações viram oposições ao fim de cada mandato. Isso,
sem dúvidas, nos torna vulneráveis.
— Aí está um problema para os militares resolverem — ironizou o
uruguaio.
— Quem sabe, quem sabe — disse baixinho, meio que concordan-
do.
— Se eu bem entendi, deveríamos atacar o Brasil? — colocou o
chileno.
— Para sermos claros, acho que foi isso que nosso colega uruguaio
propôs, — sugeriu o equatoriano.
— De certa forma, eu diria, categoricamente, que, diante das cir-
cunstâncias, sim — disse o uruguaio.
Massera estava incômodo. Mexia-se na cadeira, sem saber o que
dizer. De uma parte gostava de ver o consenso que se formava ali. De
outra, temia pelas conseqüências daquele encontro. Resolveu deixar a
reunião andar um pouco mais para ver até onde chegaria.
— Eu acho que a situação está perdida — analisou o colombiano.
— Vejamos: O Brasil está fazendo um serviço que as grandes potências
ocidentais há muito queriam realizar e não podiam. E fez tudo direitinho,
como, aliás, aquele Itamaraty deles sempre faz. O ataque a Angola foi
a pedido do Governo local, cumprindo-se todas as formalidades, como
as legais e o respaldo adicional da solidariedade histórica decorrente da
coincidência lingüística dos dois países. Esse fato obteve a unanimidade
interna no Brasil e o apoio interno, igualmente, nos Estados Unidos e Eu-
ropa. Os Governos desses países estão com as mão livres para dar todo
194
o apoio que o Brasil precisar, seja político ou material, sendo que o apoio
material, através das armas, é o mais efetivo. Tanto que devido à pressão
soviética, os brasileiros puderam montar quatro ogivas nucleares naque-
les seus ridículos Sonda VIII, lá na Barreira do Inferno e dar, com isto, a en-
tender que são eles, e não os americanos, que estão impedindo os russos
de reduzirem eles a nitrato de pó de merda.
— O senhor está querendo dizer que nós já estamos perdidos? —
perguntou o nicaragüense.
— Exatamente. Se nós aqui falássemos mais claro e disséssemos
que está no ar uma proposta de atacarmos o Brasil, eu diria que ela é
uma sugestão inviável. Não temos os recursos e nem fontes de abasteci-
mento para mantermos uma guerra com um país do tamanho do Brasil.
Eles seriam abastecidos pelos americanos e europeus, pois não só fazem
o jogo deles na América Latina, como ainda daria dividendos internos aos
Governos que os apoiaram. Afinal, com excessão dos nossos amigos ve-
nezuelanos, todos estamos na lista-negra das esquerdas desses países.
— Não creio que a situação seja tão grave — ponderou o perua-
no. — Sob esse aspecto talvez. Acho que o maior perigo são as armas
atômicas.
— Eles jamais poderiam usar armas atômicas contra nós — atalhou
Massera.
— Nesse ponto, eu concordo com o senhor, Almirante — disse o
chileno. — Tanto eles quanto nós não poderíamos chegar a este nível de
retaliação. Se, por hipótese, houvesse tal confronto, seria com armas con-
vencionais, até o fim.
— Além disso — completou Massera — eles só têm essas quatro
bombas que estão lá na Barreira do Inferno. Levariam no mínimo dois
anos para fazê-las em série. Sabemos disso. Fizeram as bombas secreta-
mente junto com os alemães, mas não passa disso.
— O senhor quer dizer que seria possível, Almirante? — perguntou
o panamenho.
— Não estou dizendo nada, senhores. Apenas dei uma informação
aos presentes — respondeu Massera.
— Pois eu diria uma coisa concreta — disse o peruano — dadas as
circunstâncias, se nós atacássemos o Brasil com certa eficiência, o Peru

195
com certeza teria condições de reciclar equipamentos soviéticos para to-
dos os Exércitos, Marinhas e Forças Aéreas. Os russos nos apoiariam.
— Se essa hipótese for viável, podem contar com o Uruguai desde
já. Temos um exército pequeno, mas aguerrido e de alto nível de instru-
ção que absorveria essas armas com extrema rapidez.
Massera continuava mudo.
O guatelmateco, então, lançou na mesa uma proposta concreta.
— Eu acho que isto é possível, desde que a gente possa agir com
muita rapidez. Vejamos. Todos juntos, excluindo a Venezuela, que o nosso
companheiro disse que a gente não poderia contar com ela, temos uma
força razoável na mão.
— Eu não disse que não podiam contar com a Venezuela — atalhou
o General — o que falei é que precisaria de um tempo — uns dois a três
meses, para compor uma situação de apoio. Pois, como falei, aqueles bo-
bocas que estão no Governo serão capazes de, no início, até apoiarem o
Brasil, por causa dessas bobagens liberais que eles cultivam.
— Muito bem. Para uma ação inicial, contamos com 310 aviões
ofensivos e mais 791 aparelhos de combate e de transporte. Temos 2.070
tanques, 1689 canhões, 490 misses, de tipos variados, 241 navios e 541
mil homems em armas. Se a Argentina e o Uruguai puderem fazer a van-
guarda desse ataque e o Panamá garantir o Canal (pois não podemos con-
tar, de início, com o Atlântico) a gente conseguiria agir antes de os Estados
Unidos se meterem. Nesse caso, há duas hipóteses: primeiro, eles pedem
trégua e negociam; segundo, nós colocamos eles diante de um impasse,
o que nos dará tempo para recebermos esses equipamentos que os peru-
anos dizem ser possível. Nesse caso, podemos lutar vários anos.
— O General não está sendo muito otimista? Desconhece o poder
de retaliação deles — disse Massera.
— Eu acho que o senhor está querendo simplesmente dar corda. O
poder de retaliação brasileira é quase nulo. Suas melhores tropas estão
na África. Eles não têm, em primeiro lugar, como trazê-las de volta.
— Isto é verdade — interveio o equatoriano — pelo que sabemos a
situação lá está tão difícil que não há condições de manterem as posições
senão avançando. Eles não podem organizar a retirada e estão usando
todo o material sofisticado de que dispõem para neutralizar os cubanos.

196
— Exatamente — disse o colombiano — além disso tudo, as tropas
que ficaram no país são todas de segunda linha. As forças de elite foram
todas para Angola e as melhores tropas conscritas e forças policiais mi-
litares também estão lá. As defesas brasileiras estão no seu ponto mais
crítico.
— Um ataque ao Brasil desarticularia eles inteiramente, ou não? —
reforçou o uruguaio.
— Nao há dúvida. Mas dependemos da Argentina — disse o chile-
no. O Chile pode transportar suas forças terrestres e aéreas para o campo
de batalha em três dias, depois de iniciadas as operações (isso se a gen-
te atacar amanhã, como penso). Formaríamos a segunda leva do ataque
pelo Sul.
— Nós cuidaríamos do Paraguai — disse o boliviano.
— Não. O Paraguai ainda poderá se unir a nós. Deixemos eles fora
disso até as coisas clarearem — ressalvou Massera.
— A Guatemala pode colocar um regimento de pára-quedistas em
dois dias na Argentina, desde que os argentinos garantam a logística, após
a chegada. Em alguns meses, poderemos até abastecer nossas tropas,
mas acho que essa parte deverá ser entregue a um Estado-Maior Conjun-
to que coordene todos os recursos.
— O Panamá garante o canal — disse Torrijos.
— A única coisa que se pergunta é se devemos ajudar os russos a se
livrarem dos brasileiros. Afinal, se os macacos perdem aqui, estão liquida-
dos na África, também — disse o equatoriano.
— Uma mão lava a outra — disse o peruano.
— Está bem. Vamos estudar isso melhor, vamos ver se é possível.
Interrompemos a reunião por duas horas para consultarmos nossos paí-
ses e depois voltamos à sessão — propôs Massera.

***

O General Carrasco conseguiu, finalmente, um encontro com o Al-


mirante Massera.
— Almirante, acho que não preciso dizer que estamos ofendidos

197
com nossa exclusão da conferência.
— Não foi nada pessoal, Carrasco. Você é malandro, entende as
coisas. Não?
— Mas não foi para isso que vim aqui. O que quero é, cumprindo
uma determinação de nosso Presidente, dizer que o Paraguai é neutro.
Não tomará partido se houver complicações regionais. Apoiamos aos
brasileiros e mandamos uma esquadrilha aérea para Brasília como gesto
solidário no caso de retaliação soviética. Como esse perigo passou, neste
momento os aparelhos estão sendo retirados do Brasil.
— Entendido. Achamos louvável essa atitude. A Argentina garante
que o Paraguai não será tocado.

198
CAPÍTULO XXVI

— Já está tudo pronto? — perguntou o Almirante Massera.


— Sim, Presidente — respondeu o Ministro da Defesa, General
Marcelo Busatto.
— Então, quanto começamos?
— Dentro de quarenta e cinco minutos, telefono para Paso de los
Libres.
— E os outros, já estão chegando?
— Sim. Os chilenos já estão entrando na Argentina. Os peruanos
também. A Bolívia deu ordens para um regimento passar a fronteira. Dos
outros países, estão por chegar as primeiras unidades.
— Isto é importante, pois dessa forma eles assumem a coisa com
a gente.
— Só um detalhe, Presidente. Foi difícil aos demais engolirem esse
acordo com a União Soviética.
— Mas que acordo?
— Ora, Presidente...
— General: já disse que não temos nada com os russos. Eles vão
mandar armas para o Peru. Os peruanos repassam essas armas para nós.
Isto não nos liga aos soviéticos de maneira nenhuma. Não está claro?
— Eu entendo, Presidente, mas é difícil de engolir.
— Pois que engulam. Só podemos contar com eles, pois só os rus-
sos podem nos socorrer numa horas dessas.
— É disso que os outros membros do Alto-Comando têm receio. O
que eles quererão de volta?
199
— Eles quem ?
— Os russos, Presidente.
— Nada, General. Olhe, para não haver dúvidas, mande prender
uns quinhentos comunistas para ficar bem claro que não temos nada com
os russos. Está bem assim?
— E aí eles não vão negar as armas?
— Você acha que os russos vão deixar de mandar armas numa hora
dessas, só porque você prendeu comunistas? Deixe de ser ingênuo!
— Está bem, Presidente. Acho que essa parte da prisão vai acalmar
o pessoal aqui. Posso fazer uma pergunta?
— Faça, mas seja rápido.
— Eu estou confuso para redigir a ordem-do-dia.
— Já não tem uma pronta? É só emitir.
— É, tem...
— Pois então?
— Eu acho ela meio... estranha.
— Por quê?
— Naquela parte que diz que nós estamos defendendo o Ocidente.
— E o que tem de errado nisso?
— As armas russas, Presidente.
— Esqueça os russos, já disse. E que fique bem claro: quem defen-
de o Ocidente somos nós. Quem está lutando do lado dos comunistas de
Angola? O Brasil. Quem tem um partido comunista que apoia o Governo?
O Brasil. Onde vivem e conspiram os inimigos do nosso regime? No Brasil.
Então, quer mais?
— Não, Presidente. Não vou discutir mais. Mas que é esquisito é.
— Quando eu chegar aí, explico tudo para vocês. Agora, é cumprir
ordens e, rapidamente, antes que seja tarde.
— Está bem.
— Como está o andamento?
— O seguinte: O Primeiro Exército passa para Colônia ainda hoje.
O Segundo Exército entra por Uruguaiana. As unidades de fronteiras, daí
para cima, seguram as guarnições opostas. Os chilenos entram por Mon-
200
tevidéu. Na medida em que forem chegando as tropas dos outros países,
a gente vai redividindo a frente. Isto levará no mínimo um mês, até con-
seguirmos reunir a força máxima.
— Sim, e a Marinha?
— Ataca Rio Grande e fica à espera dos reforços de nossos aliados
para subir.
— Perfeito!
— E como você se sente?
— Muito bem. Quanto ao moral, estamos todos muito bem.
— Perfeito!
— Então, até logo. Quando o senhor chega?
— Ainda hoje. Só não mando você esperar, porque não tenho tem-
po. Mas estou indo para aí.
— Então, até logo mais.
— Até logo mais e boa sorte, General.
— Obrigado, até logo.
— Até logo.
— É isto mesmo, Coronel, ponha em marcha o plano número três,
dentro de quinze minutos.
— Mas General, o senhor tem certeza?
— Absoluta.
— Não é insensato?
— O quê?
— Desculpe. Vou cumprir minhas ordens.
— E não esqueça. É vital que a ponte permaneça intacta. Defenda
ela a peidos, se for necessário.
— Sim, senhor.

***

A Ponte da Amizade estava deserta. Desde o início da intervenção


em Angola, a prontidão era completa dos dois lados e a primeira coisa

201
que se faz, nesse caso, é estancar o fluxo internacional, entre Libres e
Uruguaiana. Mas fora isto, tudo normal.
Os fuzileiros que faziam guarda na Alfândega estavam ali, relaxados
e até um pouco chateados pela inércia. Não havia nada a fazer, há dias. O
cabo Alípio escutava as notícias no rádio.
“O protesto da Alemanha Oriental foi mais uma vez rejeitado nas
Nações Unidas — dizia o noticioso da rádio local. — Uma informação do
Estado-Maior angolano disse que o movimento das tropas alemãs não
estava autorizado e se houve o choque com os brasileiros foi por causa de
uma decisão precipitada e pessoal do General Hans Müller.”
Os outros soldados, quinze ao todo, estavam sentados por ali. De
arma embalada, mas sem a menor convicção. Era tudo por causa dos re-
gulamentos, que determinavam aquela prontidão. O tenente estava na
sala dele, lendo a Isto é.
Alípio viu uma coisa apontar lá do outro lado.
— O que é aquilo, João Pedro? — perguntou ao outro soldado
— Não sei, parece que vem alguém.
— Esquisito, parece um tanque.
— Deixa ver — e apanhou um binóculo.
— É um tanque, mesmo.
— Você tem certeza?
— Tenho. E vêm outros atrás. O que será?
— Não sei. Avise ao Tenente, que não estou gostando.
— Não é melhor chamar Libres pelo telefone?
— Que telefone, nada! Chame o Tenente.
— Está bem.
— Ei, pessoal, vamos levantar, venham para cá! Tem algo esquisito.
Os outros se levantaram molemente. Fazia frio e os capotes eram
pesados.
— O que é, Cabo? — perguntou outro praça.
— Venham todos para cá. Acelerado, já disse! Os fuzileiros levanta-
ram-se rapidamente.
— Mexam-se! — gritou de novo.
202
Eles foram chegando. Ainda estavam longe, mas dava para ver, sem
dúvidas, que eram carros blindados.
— O que é aquilo, Cabo?
— Não sei. Mas se preparem!
— O que foi, Cabo? — disse o tenente, que chegou correndo, segui-
do pelo fuzileiro João Pedro.
— Olhe lá, Tenente. Estão vindo à toda.
— É verdade. O que será?
— Também não sei.
Os tanques já chegavam no meio da ponte. Ali, tinha cavaletes.
bem em cima da linha internacional. O primeiro Shermann passou pela
barreira sem tomar conhecimento dela. O tenente gritou:
— Fogo neles! Atirem neles! É uma invasão! Cabo, fogo neles, que
vou pedir reforços.
— Vocês não ouviram o tenente? — gritou o cabo da guarda:
— Fogo! Atirem, seus filhos-da-puta. Atirem!
O Tenente entrou correndo, com o Colt 45 na mão, escritório aden-
tro. Os soldados e o sargento que estavam ali demonstraram a perplexi-
dade. Já ouviam o espoucar das FAL, mas ainda não tinham assimilado o
que poderia estar acontecendo. O Tenente gritava:
— Vamos seus bundas-moles. Peguem suas armas e vão lá para
fora lutar com eles! Vamos!
Os outros pareciam não entender. O Sargento Otacílio ainda per-
guntou:
— Mas o que está havendo?
— Você não houve? É a guerra. Os argentinos estão vindo.
— O que fazemos?
— Defendam o Brasil, seus putos.
— “Que enrascada!” — pensou ainda, já levantando do gancho o
telefone de emergência, que dava na sala de comando do Quartel-Gene-
ral do Exército.
— O General Charão, rápido!
— Quem é? — respondeu a voz de lá.
203
— Aqui é o Tenente Amarildo Raimundo Soares, estou na ponte,
depressa, o General.
— Tenho de ver se ele pode atendê-lo.
— Não há tempo. Diga que é uma questão de vida ou morte.
— Mas o que está havendo?
— Um grupo blindado argentino atravessa a ponte. Estamos lutan-
do com eles.
— O quê?
— O que você ouviu; agora, me chame o General!
— Imediatamente.
— Sim? — perguntou o General, meio atônito, pois o Capitão do
gabinete entrara correndo na sala, levantando o gancho e botou literal-
mente o telefone no ouvido do General.
— General Charão?
— Sim, quem é?
O Tenente apresentou-se (os militares nunca dispensam certas .
formalidades), e contou o, que se passava.
— Você tem certeza?
— Claro. Já estão aqui, em cima de mim.
— Pois agüente firme, que estamos indo para aí — e desligou, sain-
do a gritar.
Os outros oficiais que estavam na sala contígua não compreende-
ram. O General, seguido do Capitão, saiu gritando:
— O alarma! O alarma! Toquem o alarma! Eles chegaram! Toquem
o alarma! Avisem aos outros quartéis! A Brigada Militar! Chamem Porto
Alegre!
Um tenente, na mesa, apertou um botão e a sirena soou, forte.
Os soldados da Companhia de Comando, no pátio, com os cadarços dos
coturnos frouxos, equipamento completo de prontidão, saltaram quase
automaticamente ao tocar a sirena, já correndo para entrar em forma. Os
motoristas corriam para as viaturas. Não sabiam o que se passava, mas
estavam treinados, reagindo ao primeiro apito da sirena.
Em um minuto, o mesmo se repetia nos outros quartéis. Uma men-
sagem seguia para o Quartel-General do III Exército em Porto Alegre.
204
***

Na rua, uma patrulhinha, com a segunda marcha engrenada, motor


girando um pouco acima da lenta, ia a passos junto ao meio-fio. O Sargen-
to Zenóbio, da Brigada, e o Cabo Raul, este dirigindo.
O tráfego intenso. Apesar da guerra, Uruguaiana fervilhava.
— O que é isto? — perguntou o Cabo ao ouvir os primeiros tiros,
vindos de duas quadras dali, dos lados da ponte.
— Acelere, vamos ver.
O Cabo pisou firme. O fusca saiu lerdo, mas foi embalando. O Sar-
gento ligou a sirena. Antes de chegar na esquina, ouviu a primeira explo-
são dos canhões 90mm dos M-4.
— Ala fresca, o que será? — tornou o Cabo.
— Vamos ver — respondeu o Sargento, já passando a mão na INA
que compunha o armamento do carro. O Volks estava a uns noventa,
quando apontou na beira-rio. A manobra do Cabo — um cavalo-de-pau —
foi instintiva. O prédio da Alfândega incendiava e um tanque apontava na
saída da ponte, passando por cima de um jipe que eles tinham colocado
ali, quem sabe, ingenuamente, para impedir o tráfego.
— Filhos-da-puta! — gritou o Sargento. — Volta! Vamos para a rua
Quinze. Acelera esta merda!
O Volks voltou pela contra-mão, sirena aberta, paralelo a rua prin-
cipal. Duas quadras, e dobrou à direita. Mais uma, e entrou pela Quinze.
Era uma confusão. As pessoas corriam. Ninguém entendia.
— Vamos para cima deles! — gritou o Sargento.
— Como assim? — perguntou o Cabo.
— Pisa fundo! Pisa fundo! — gritava.
O Cabo acelerou o carro, investindo contra os tanques que, agora,
apontavam na rua e vinham, em fila dupla, com a torre se mexendo, de
um lado para outro, como se fosse uma tromba (com aquele canhão na
frente) de um elefante se abanando.
O sargento engatilhou a INA, botou meio corpo para fora e, antes
de começar, ainda gritou:
— Daqui não passam, cachorrada! — e abriu fogo. O carro à toda.
205
A metralhadora pipocando. As pessoas encolhidas, junto aos prédios, nas
calçadas, e aquele fusca caqui com a sirena berrando parecia um louco se
jogando suicidamente contra os tanques.
Em Havana, o Primeiro-Ministro e Presidente Fidel Castro estava
numa sala de comando. Entrou um civil..
— E então?
— A Guiana concordou.
— Como está a situação?
— México e Paraguai estão de fora. A Venezuela muda. O resto já
entrou.
— Pois bem. Então escutem — disse para todos ali presentes —
agora vamos nós. Mande decolar para Georgetown. Passe um rádio para
Luanda e diga a eles que reiniciem a luta. À merda os russos e a dètente
deles. Esse caso é nosso. Eles que se mandem.

206
O AUTOR

JOSÉ ANTÔNIO SEVERO é gaúcho (Caçapava do Sul), tem 36 anos


(28/12/42) e trabalha em jornalismo desde os 14 anos (repórter da ZYU-
28, Rádio Caçapava). Em Porto Alegre trabalhou no Jornal do Dia, Zero
Hora, Correio do Povo, como repórter e redator; fora do RGS foi repórter
das revistas Veja e Realidade, redator da Agencia de Notícias Reuter’s e
correspondente da Latin em Buenos Aires e Santiago. Voltou ao Rio Gran-
de do Sul em 1972 como Editor-Chefe da Folha da Manhã, onde organi-
zou e comandou o processo de reformas no jornal; foi Editor-Executivo
da revista Exame, Diretor Regional, no Rio, da Gazeta Mercantil, repórter
da revista Repórter Três e, atualmente, é editor no Departamento de Jor-
nalismo da TV Globo. Mas foi na cobertura, para a Gazeta Mercantil, da
sucessão de Geisel e da sua experiência como correspondente da Latin,
que o colocaram em contato com fontes diplomáticas e militares do Brasil
e América Latina, que recolheu o material para fazer uma projeção da
crise político-militar que narra em A Invasão.

207
208

Você também pode gostar