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Salvador – 2019

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Alma Cativa © Margarete Carvalho – 2019. Todos os direitos reservados:
Lei nº 9.610 de 19/02/1998

Projeto Gráfico da Capa e Editoração:


Lino Greenhalgh

Gravura da Capa:
Moustafa Assem

Revisão de texto:
Thiara Vasconcelos de Filippo

Apresentação:
Géssica Santos Seles

Impressão e acabamento:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C331a Carvalho, Margarete

Alma Cativa/Margarete Carvalho. 1. ed – Salvador, BA


Ed. Òmnira, 2019 – 200 p.; 21 cm.

ISBN 978-85-87066-65-7

1.Romance. 2. Literatura brasileira. I Título

CDD B869
B869.3

Contato com a autora:


E-mail: mrgtsantos@gmail.com

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agradecimentos

Agradeço a minha família que me trouxe à vida. A quem


me enxerga para além do que a colonização e o racismo no
Brasil descreveram e descrevem sobre nós. E, em especial,
àquelas que me resgataram das armadilhas raciais espa-
lhadas nessa sociedade. Minha especial gratidão à escri-
tora Jovina Souza que, através da sua escrita emancipado-
ra, compartilhou saberes, livrando-me das armadilhas da
ignorância através de seu olhar generoso que, diante dos
meus equívocos, sempre me estendeu livros.

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Para a escritora Cristiane Mare.

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Sumário

11 Apresentação
15 Entre mãos
29 A ponte
35 Amò Dúdú
41 Pérola negra
55 Visitas
67 Homenstruado
75 Interstícios
87 Ouro Preto
97 Amor de jardim
107 Ciclos
123 Cartas geográficas
131 Caravelas
143 Reformulações
155 Travessias
161 Chaves
167 Migrações
173 Caso de família
177 Lembranças
183 Desencantamento
189 Voltar-se para si
195 Vale das cobranças

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APRESENTAÇÃO

Ao adentrar no texto ficcional intitulado Alma Cativa,


da autora Margarete Carvalho, o leitor embriaga-se com
uma obra desprendida do pensar colonizador e que con-
templa as diversidades de gêneros e raças.
Composta de 21 capítulos e de diálogos curtos, a obra
é estruturada em tempo psicológico e ambientada em
espaços diluídos, tendo um narrador onisciente. Nela se
misturam elementos místicos e míticos, fantasia e verossi-
milhança. E surgem passagens secretas, cidades cósmicas,
personagens com poderes sobrenaturais, entidades africa-
nas que se materializam na forma humana, personagens
dotados de saberes, advindos da ancestralidade, que se es-
condem no subconsciente.
Em Alma Cativa existem descolamentos temporais
e a história que conta não está fixada em um só tempo,
tem como referência temporal inicial a perseguição, cap-
tura e escravização de africanos, perpassando o presente
e trazendo uma visão futurista. A própria ficção entra em
um movimento que ora se materializa e ora transcende,
propiciando constantes trânsitos de tempo e espaço. Tais
trânsitos culturais são um convite a desbravar os entrela-
çamentos étnicos que se dão, por meio das memórias, nas
afetividades e nos DNAs africanos.
As relações culturais vão se desdobrando, ao tempo em
que várias histórias da diáspora negra são contadas e se
impõem como verdadeiras impressões digitais. Este as-
pecto faz emergir o sentimento de etnicidade, por meio do
compartilhamento de elementos subjetivos, como acon-

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tece quando, ao desafiar as personagens em suas buscas


constantes por pertencimento étnico, se retrata a detur-
pação identitária nos processos de colonização e pós-co-
lonização.
O místico se faz presente nas trajetórias das persona-
gens, que nascem e renascem, se refazem e ressignificam.
O que parece fadado ao fim da existência recomeça, num
emaranhado de histórias e trajetórias. É a vida vencendo a
morte pela ancestralidade, pelo legado africano. No texto,
emergem as relações étnicas: o indígena se mostra solidá-
rio ao negro no compartilhamento das dores e violências
impostas pelo dominador; o dominador se projeta nas fi-
guras de seres que assumem sua branquitude e tornam-se
agentes da opressão.
Dentro de um limbo identitário, as personagens nas-
cem e renascem. Os injustiçados, por exemplo, ressusci-
tam, assumindo outros “eus” marcados pela cor e dor. Três
personagens mais se destacam: Amò Dúdú, a protagonista,
uma espécie de deus(a) africano(a); Caravela, como an-
tagonista e representação da supremacia branca, um ser
também místico; e Pérola Negra, uma das personagens
que busca, a todo tempo, uma conexão africana outrora
perdida, a fim de reestabelecer sua identidade, que fora
deturpada pelo colonizador.
Nesse emaranhado, os personagens habitam vidas di-
ferentes, locais e momentos históricos diversos. Os encon-
tros e desencontros, os cruzamentos de histórias, a fim de
estabelecer o sentimento de etnicidade e pertencimento
étnico africano, direcionam o leitor para uma consciência
coletiva de resistência. Ao mesmo tempo, revelam a face
do dominador, com o seu insaciável desejo de poder sobre
o outro e de usurpar as riquezas advindas dos saberes an-
cestrais, que gera opressão, perseguição física e psíquica.

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No romance, a morte é ressignificada, tornando-se pas-


sagens, rotas para as cidades místicas: Entre Mãos, Pên-
dulo e Mediterrânea. E escreve-se sobre as vidas que atra-
vessaram os mares da Costa Africana, que adentraram em
territórios brasileiros ao aportarem na Ilha de Itaparica e
se desdobraram por entre os espaços urbanos a fim de “ca-
tar” os fragmentos das línguas, os costumes e hábitos, os
vestígios identitários esquecidos.
Alma Cativa remete a um pensar sobre os aprisiona-
mentos culturais, não apenas dos corpos, mas das mentes,
sobre as investidas constantes das tentativas de aniqui-
lação do reconhecimento dos elementos positivos do ser
negro, que se configuram pelo aprisionamento e pelas de-
turpações dos pensamentos, das vivências e dos saberes
dos povos colonizados. Talvez a reflexão mais ampla que
Alma Cativa proporcione esteja pautada nas dificuldades
de uma libertação, na sua totalidade, daquele que já se
apropriou quase tão completamente, que se tornou par-
te necessária para uma reorganização dessas identidades
africanas diaspóricas.

Géssica Santos Seles, de etnia afro-indígena, é professora. É licen-


ciada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), curso que concluiu em 2014. Fez mestrado, concluído em
2017, no curso de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contempo-
raneidade (PPGREC-UESB), desenvolvido pelo Órgão de Educação
em Relações Étnicas (ODEERE) da Universidade do Sudoeste da
Bahia (UESB). Email: gessicasseles@gmail.com

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Entre Mãos

A escultura é quem disse o que queria ser, a criadora


apenas precisou ouvi-la e foi isso que fez no seu silêncio la-
boral. Ela, a criadora, respirava concentradamente o chei-
ro do barro em suas mãos, barro preto sendo moldado e
já visualizava a escultura ganhando vida e beleza. Com as
pernas bem abertas e as mãos molhadas, esculpia o barro,
indo e voltando com as mãos, jogando o corpo para então
reformular e reverberar as energias no ar.
Na escassez da água, serviam-lhe a saliva, o suor, as
lágrimas e os fluidos da libido. Socou, bateu, expandiu.
Moldou as curvas do corpo, escureceu a pele, encrespou
os cabelos furando o ar. Detalhou traços usando as unhas
compridas, desenhou sobrancelha, lábios grossos, nariz
expansivo. Afiou os seios, engrossou a maçã do rosto, re-
gou os pensamentos. Alisava, corria as mãos, misturava-
se, molhando, escorregando e moldando a vida, a virilha,
o útero e, em seguida, os testículos. Acariciou o barro para
que a pele se tornasse macia, aumentou o tamanho dos pés
a fim de apoiar de maneira equilibrada toda a estrutura
corporal que majestosamente acabara de criar.
Enamorada de si mesma, Arìnnà Àjò, a viajante, fazia-
se brotar, refazendo-se na criatividade que era possível
de se materializar ao moldar o barro. A criatura de barro
preto assim que pronta sacudiu-se impetuosamente. Sua
matéria ao ganhar alma movia-se, ainda que descontrola-

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damente. Ao assentar os sentidos em si, a criatura olhou a


sua criadora nos olhos, balançou os ombros, jogou o cor-
po para o lado e para frente, sendo movida pelas energias.
Continuou a olhar, sendo ainda mais incisiva em cada de-
talhe, reconhecendo-se nela. Faminta, suspendeu o vestido
de sua mentora, pôs a língua para fora e beijou seus seios,
lambendo o leite, para assim se alimentar de vida e se pro-
jetar no mundo.
Tudo em si era completo. A criatura recebeu em sua ge-
nética todos os caminhos interplanetários para viver onde
escolhesse, no tempo em que quisesse ou fosse necessário.
Seu cordão umbilical era ligado à terra, o mundo sua nova
gestação. Amò Dúdú, o barro preto, herdara a capacidade
de sentir os prazeres e as dores, morrer e viver reinven-
tando-se homem, mulher, menino ou menina, transgênero,
hermafrodita, transexual, preto ou preta, pele vermelha ou
qualquer tom de pele que forme os diversos tons da diáspo-
ra africana pelo globo terrestre. Amò Dúdú, criatura de bar-
ro, pode se moldar a qualquer coisa ou ser, sem limite de
tempo ou espaço e conhecer todos os caminhos possíveis
gerados nesse mundo, tenham sido eles visitados ou não,
conhecidos pela ciência ou não, descritos em mitos ou não.
A criadora lançou as palavras no ar, cantou o nome Amò
Dúdú, o barro preto com adornos humanos, de cabelos es-
culpidos em dreads e de túnica azul-anil com listras escu-
ras na borda. Arìnnà Àjò reverenciou os(as) senhores(as)
dos caminhos, tendo orgulho de si mesma ao depositar
em sua criação todo o seu legado ancestral. Com um beijo,
orientou sua cria dizendo:
– Amò Dúdú, somos singulares, únicos(as) e somos to-
dos(as) um(a).
Arìnnà Àjò soprou no rosto de Amò Dúdú, que respi-
rou pela primeira vez, sentindo doer o ar nos pulmões.

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E, por isso, gritou, cerrando com muita força os olhos tão


negros quanto a pele. As narinas abriam ainda mais dolo-
ridas e quando a energia do ar completou todo o circuito
das veias do seu corpo, Amò Dúdú bruscamente abriu os
olhos, sentindo os raios do sol queimarem seu globo ocu-
lar ao acordar nas areias quentes do Saara, enquanto fugia
com outros homens e mulheres da captura que os levavam
para a costa ao norte. Esse foi o primeiro caminho que fez
no mundo, sendo perseguido pelos romanos que, à época,
invadiam, se expandiam e escravizavam seus prisioneiros
de guerra para suprir a mão de obra na construção de um
anfiteatro em terras africanas, mais precisamente ao nor-
te, em Thysdrus.
Os soldados, incumbidos de caçarem pessoas, resseca-
vam na ardência ao adentrarem o Saara enquanto trava-
vam uma árdua perseguição aos seus inimigos. Mal prepa-
rados, os míseros soldados, todos mandados, juntavam-se
às areias que se perdiam, rodopiando alienadamente por
detrás das túnicas que protegiam o povo em fuga da ardên-
cia do deserto.
Após a longa caminhada, quando percebeu que o Saara
havia engolido uma parte dos soldados em uma tempes-
tade de areia e com o sol a desidratá-los impiedosamente,
Amò Dúdú riscou os pés no solo, afastando as areias das
estruturas subterrâneas da cidade para onde os olhos da
cobiça não tinham alcance. Alguns soldados relataram
mais tarde que os fugitivos haviam sido engolidos pelas
areias, tentando não acreditar na loucura de verem pes-
soas sumirem repentinamente de suas vistas.
Amò Dúdú, com muita preocupação, avisou aos seus li-
derados fugitivos que adentravam a cidade:
– Nunca lancem o nome da cidade em palavras no ar,
pois o vento carrega a cidade e as palavras também de um

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lado a outro dessas areias. Peço que entrem tranquilamen-


te, sem olhar para trás. E nem olhem para frente. Atrás de
nós, podem estar os soldados inimigos e, à nossa frente
provavelmente, verão as ondas de calor iludindo nossas
vistas. No máximo, olhem para o lado, acolham os seus e
se deem as mãos. Concentrem-se nos seus dedos entrela-
çados. A cidade está aí, o nome dela é Entre Mãos. Se per-
derem seu olhar para o que há atrás de vocês, serão presos
pelos soldados. Não se fixem neles e nem se iludam com as
imaginações à frente. Percebam que, para onde iremos, o
passado e futuro não nos importarão mais.
Apenas aqueles que são capazes de acolher alguém nas
próprias mãos enxergam as escadarias para realizar a des-
cida para a cidade de Entre Mãos. No pânico, alguns caí-
ram em um abismo à frente dos próprios pés, outros viram
apenas soldados ao longe na tentativa de se aproximarem.
No entanto, a maioria desceu as escadas da cidade, aper-
tando firmemente as mãos uns dos outros. Nessa cidade,
ninguém consegue entrar só. Para adentrar Entre Mãos é
preciso ter aliados, comungando da mesma história, dor,
cultura, afinados no pensamento de apenas ir se todos(as)
também forem.
Todos e todas desceram as escadarias sob o olhar e
a supervisão de Amò Dúdú, que aguardava em transe no
topo da areia quente. Após se acomodarem, Amò Dúdú
abriu os olhos, sacudiu os ombros, rodopiou os quadris,
pôs o pé direito à frente do corpo e riscou novamente o
solo, jogando toda a areia do Saara sobre a cidade e, dessa
maneira, perdendo de vista o encantamento do lugar.
Sorriu, logo após deu gargalhadas, muitas gargalhadas,
vendo os soldados se aproximarem, alienados com as on-
das de calor. Teve orgulho de si mesmo e muita gratidão
por ter aprendido a fazer o seu primeiro caminho para

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chegar a uma das cidades existentes no planeta, mas não


descrita nos mapas dos colonizadores e geógrafos, quiçá
na memória dos andarilhos aventureiros.
Entre Mãos é uma das cidades mais ricas do planeta.
Ela guarda as melhores invenções científicas. Isso por-
que tudo que se criou nela foi feito por pessoas que pos-
suíam em si o sentido de coletividade, que é o principal
requisito para encontrar os seus caminhos. Dessa forma,
as obras eram feitas pensando-se sempre no bem co-
mum, assim como todo o trabalho era uma engrenagem
realizada por uma única equipe, formada por todos os
seus moradores.
Amò Dúdú mal via a hora de poder passar um tempo
naquela belíssima paisagem da cidade de Entre Mãos, mas
as suas tarefas apenas começaram. No entanto, guardou na
memória as escadarias que levavam até o portal da cidade
e imaginou por alguns segundos quais seriam as possíveis
invenções que nela poderia haver. Sabia que o que não fora
possível realizar em diversas partes da África devido aos
genocídios e etnocídios promovidos por séculos de domi-
nação de um povo sobre o outro, havia sido feito nas cida-
des para onde os povos resgatados se refugiavam e onde
poderiam estar em paz para de fato viverem.
Com o pensamento de que teria esse presente na vida,
o de que, além de conhecer os mapas cósmicos na terra,
poderia usufruir dos saberes relatados em cada presença
viva, Amò Dúdú arrumou sua túnica azul-anil, que sacu-
dia com os ventos fortes. Olhou para o horizonte, respirou
fundo e seguiu caminhando só sem medo das imaginações
causadas pelas ondas de calor, pois Amò Dúdú era o pró-
prio caminho. Tudo em si era caminho. Herdara os mapas,
todos eles registrados em cada gene que edificava seu cor-
po. Apenas precisava aprender a acessá-los.

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Após descer as escadarias e atravessar o portal da ci-


dade, o grupo de refugiados(as), formado por 30 pessoas,
sendo 8 homens jovens, 12 mulheres jovens, 4 crianças, 2
adolescentes, 4 anciões, levantou as mãos ainda unidas,
saudando o lugar e tudo que nele habitava. As pessoas
ajoelharam-se e apanharam um punhado de terra, derra-
mando-a uma na cabeça da outra, renascendo para o lugar.
Ao renascerem, as feridas dos açoites se cicatrizaram, as
lembranças das violências físicas e psicológicas foram res-
significadas. Foram recebidos por homens e mulheres de
turbante, que, ao desenrolarem os tecidos de suas cabeças,
traziam os segredos da vitalidade, devolvendo o sopro de
vida àqueles e àquelas que um dia foram arrebatados de
seus lares e de si mesmo para serem explorados impiedo-
samente, morrendo em vida. Ao longe, avistaram crianças
brincando nas copas das árvores caminhantes.
Quando a lua desceu trazendo a noite, Amò Dúdú dei-
tou-se para descansar da longa caminhada de volta da ci-
dade de Entre Mãos e dormir. Sonhou com sua criadora
dizendo-lhe:
– Amò Dúdú, rígido com o calor do sol, molhada e fle-
xível com a água da chuva, pode moldar-se à túnica, ao
manto, ao véu ou ao hijab que pouco importa! Reconhecer-
te-ei.
Com o susto do rodopio secular da areia promovido
pela ventania, Amò Dúdú acordou e voltou a caminhar
por muito tempo, aproximando-se da costa do continente.
Após alguns séculos, adentrou em terras próximas ao Me-
diterrâneo, ao norte da África, mas, ao pisar no porto, fora
violentamente aprisionado. Rasgaram sua túnica, amarra-
ram seus pulsos e tornozelos, fazendo-o sangrar, para en-
tão jogarem-no em um tumbeiro com mais cem pretos e
pretas tão escuros quanto o seu corpo. Curvou-se sobre o

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sangue dos que lá padeciam antes mesmo de serem trans-


portados além-mar. A quantidade de sangue era tanta que
Amò Dúdú amoleceu-se e dilui-se por entre as frestas da
madeira do navio negreiro.
Horas após, quando o sol apontou escaldante durante a
travessia, Amò Dúdú tomou a forma das madeiras, dos pa-
rafusos, dos canhões, da cabine, do convés, das munições,
da âncora, do mastro, do leme, das velas, dos remos, dos
chicotes e das armas. E o sangue dos que ali padeceram
acordou todos(as) em Amò Dúdú, fazendo-o sentir a dor
da morte de cada um(a), as lamúrias, os anseios, o pânico
de ser capturado(a) e levado(a), as dores dos socos, das
pauladas, dos estupros, das mortes dos familiares, da se-
paração da família, da aldeia, das fronteiras e da alma com
o corpo. Seus gritos se confundiam com os das baleias,
com o zunido do vento, com as imaginações dos tripulan-
tes diante da vastidão do mar.
Amò Dúdú sofria, contorcia-se, sua existência torna-
ra-se dor. Dores nas articulações pelas lembranças de
serem arrastados por cavalos em solo quente com pedre-
gulho, dor da ardência no rosto sendo rasgado no chão,
dores ardentes no globo ocular por ter experimentado o
castigo por olhar os senhores, dores nas entranhas, nos
dentes arrancados, nas unhas extirpadas e da alma nua
sem moradia.
Os olhos de cada homem sucumbido abriram com os de
Amò Dúdú, olhando para cada um que ali no meio do ocea-
no se encontrava. A boca de cada mulher esfolada abriu-
se junto à de Amò Dúdú, tentando respirar e buscando ar
para soprar fortemente as velas. Os corações das pequeni-
nas vidas que poderiam ter desabrochado, senão fosse ta-
manha perversidade sob aquele convés, batiam na mesma
cadência do coração de Amò Dúdú. Coraçõezinhos batendo

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ao longe numa tentativa de chorar pela vida. Ouviam-se os


estalos no navio e não era, por causa da dilatação, nem a
contramão de um rochedo, nem bala inimiga. Era o batuque
dos corações dos mais velhos mortos e dos órfãos aflitos no
exato momento que os pais deixaram o cais.
Quando o vento assobiou, a vida tensionou e, de pé no
tumbeiro, negros e brancos passaram a escutar as garga-
lhadas do desespero, os gritos de lamúria da cobiça e do
mau cheiro da putrefação dos corpos, os gritos de sofre-
guidão da riqueza e da dor que pagará a busca de uma su-
premacia branca diante da diversidade de povos no mun-
do. Bem como, no arrepio da pele, passaram a perceber o
último suspiro seguido do sufoco das almas alienadas que
caíram pelas laterais das embarcações, fazendo do Medi-
terrâneo também mar vermelho-sangue. Àquela época,
por mais que a potência do vento movesse as velas, se na-
vegava com dificuldades em mares densos, coagulados,
cheirando a vísceras.
O vento soprou para longe e Amò Dúdú se deu conta de
que estavam no caminho de uma cidade submersa. Podia
sentir as energias da cidade a renová-lo. Amò Dúdú abriu
seus olhos enormes, esbugalhados, protuberantes. Eram
olhos planetários e neles reverberavam as energias emi-
tidas pela proximidade da cidade submersa, fazendo-os
girar. Amò Dúdú gritou como quem chega ao mundo, e o
navio passou a girar, girar e girar. No ímpeto, a embarcação
mergulhou na cidade que os peixes veem, mas não a en-
tendem. Mães, pais, filhos, guerreiras, matemáticos, cien-
tistas, reis, rainhas, magos, anciãs e agricultoras lá viram
seu refúgio. As águas entraram e preencheram as pessoas,
o sal ardia nas feridas e nas lembranças dolorosas, os tu-
barões assustavam-se e as baleias paralisadas gritavam ao
abrirem lentamente a boca para dizer:

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– Não pronunciem o nome dessa cidade, pois a água


leva tudo, inclusive vocês quando quiserem retornar. Eis a
Cidade Mediterrânea. Alguns atravessam de um continen-
te para outro, mas poucos podem fazer pousada na cida-
de onde os engenheiros e engenheiras trouxeram consigo
seus melhores projetos.
Após ter mergulhado para a Cidade Mediterrânea, o
navio emergiu sem mais nenhuma pessoa escravizada que
fosse, bem como não havia capitão, tripulantes e nenhu-
ma patente em missão colonialista que fossem mais tarde
narrados pela história como os heróis da navegação. Após
tempos à deriva, ele aportou no litoral das cidades ao nor-
te da África, completamente esvaziado, um navio fantasma
sobre o qual ninguém sabia dizer nada.
Incrédulos sobre as histórias desse navio fantasma
apropriaram-se da nau, remendaram-na, reutilizaram para
o mesmo fim e lá entraram todos, alta patente na cabine e
convés, pessoas escravizadas derramadas no porão e mar-
cas de mãos ensanguentadas nas madeiras. Mais uma vez,
cruzariam o Mediterrâneo, mas, no meio do caminho, suas
estruturas começaram a girar novamente. Era Amò Dúdú
que insistia em permanecer navio.
A fama gerada pelas mentes maledicentes do tráfico de
pessoas atribuiu ao navio diversos nomes, como o de Barca
Indomável, Tumba Marítima e outros, movidos pelo medo
e pela ignorância. Essa fama logo percorreu todos os por-
tos do norte da África e do litoral das Américas, atiçando
o desejo de alguns aventureiros e piratas de se apossarem
do navio e navegarem-no. Na América do Sul, era conheci-
da como A Barca das Almas, uma vez que, quando nela se
entrava, o corpo sumia. No litoral do nordeste do Brasil,
ficou conhecida pelos quilombolas como A Barca de Me-
diterrânea. Os pretos guerreiros e as pretas governantes

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que chegavam em navios negreiros nos portos brasileiros


podiam avistá-la de tempos em tempos. Choravam só de vê
-la e clamavam para embarcarem e serem resgatados(as).
O medo também percorria as falas dos moradores e
agentes governamentais das regiões litorâneas onde ocor-
ria o tráfico negreiro, por isso acreditaram que difundi-lo
seria uma estratégia dos inimigos políticos. Qualquer sol-
dado tinha ordem de explodir o navio. Os padres missio-
nários que percorriam as tribos na região de Itaparica, no
litoral brasileiro, chamavam-no de Nave do Diabo. Acre-
ditava-se que ela era preenchida de desalmados, hereges,
mulheres perdidas e com o próprio Diabo no leme, convi-
dando todos para embarcarem em uma viagem sem volta
para o inferno. Alguns freires complementavam, explican-
do que nem os arrependidos e tementes aos castigos de
Deus eram poupados. Esses, por qualquer indício de ar-
rependimento, eram jogados às grandes feras marinhas
no meio da viagem. Os tupinambás, quando avistavam o
navio, corriam para mata para avisar aos caboclos e às ca-
boclas.
Após alguns anos, ao aportar pela milésima vez nas re-
giões do tráfico negreiro, quando todos acreditavam que
sabiam do que se tratava, a embarcação foi recebida com
tiros de canhão. Após o planejamento estratégico de quem
não acredita acreditando, havia condutas ensaiadas para
receber a embarcação estranhada. Pela primeira vez, acer-
taram-na. Mal imaginavam que nela estavam todos os colo-
nizadores, açoitadores, escravagistas, estupradores do ve-
lho mundo, usurpadores, ladrões de vida e ouro, canibais
de alma e destruidores do planeta que ela se compadeceu
em devolver. Uma vez que eles nunca entrariam na Cida-
de Mediterrânea, ficaram a vagar no mar até Amò Dúdú
devolvê-los aos seus conterrâneos. Entretanto, não foram

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bem recebidos, pois, no porto, todos os canhões estavam


apontados para eles, que gritavam feitos loucos, cuspindo
sangue coagulado:
– Não atirem!
Alguns pulavam, alguns morriam na queda com o mar
endurecido. No entanto, não se ouvia outra palavra:
– Fogo!! Preparem os canhões. FOGO!!!! Explodam
tudo!!!!
Eram as palavras que ecoavam o som da morte, grita-
das pelos generais lusitanos à espreita no Porto de Vera
Cruz, que mal reconheceram os seus pares, parentes, fa-
miliares:
– Fogo, fogo, fogo, fogo! Explodam tudo!
As bocas entortavam para esbravejar:
– FOGO!!!!! HAAA
Toda a madeira do navio negreiro se despedaçou na
água do mar. Tudo se tornou pó, lama e mais sangue. Os
que acompanhavam aquela destruição próxima ao cais
do porto imaginavam que se tratava de sangue negro nas
águas e comemoravam felizes sem saber que haviam as-
sassinado seus conterrâneos.
E foi assim que Amò Dúdú decidiu não ser mais uma
embarcação a resgatar escravizados pelos litorais. Havia
aproveitado dos sentimentos imperialistas dos dominado-
res de mundo e pregado uma peça nos súditos do império
escravagista. Devolveu os corpos dos tripulantes coloniza-
dores aos seus próprios povos, que os receberam com fogo
e sede de morte. Todos os brancos foram mortos por mãos
brancas, arma de branco, sede de dor de branco, tudo era
branco.
Amò Dúdú diluiu-se agonizando com os demais, dire-
cionando seus restos para o fundo do mar, onde ao mesmo
tempo boiavam braços estraçalhados e cabeças decepadas.

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Amò Dúdú foi se desviando dos restos dos corpos euro-


peus, escorregando aos poucos entre as águas e o sangue
dos que insistiam em destruí-lo. Partes suas assentaram
nas profundezas junto aos destroços mais pesados do na-
vio. Outras partes se assentaram nos corais, onde calma-
mente Amò Dúdú esperou pelas mãos do equilíbrio para
moldar a vida novamente. Era hora de descansar para se
reerguer. Recebeu em sonho o acalento de sua criadora,
que lhe disse:
– Amò Dúdú, reconheço-te ainda que tudo seu esteja
dissipado. Somos iguais. Fiz, faço e sempre farei por sua
vida. Por enquanto, precisa descansar, foram muitos anos
de trabalho. Assente.
No cais, a alegria dos traficantes foi intensa. Narraram
à realeza a façanha de destruírem o inimigo e declararam
que, a partir daquele momento, não havia mais o que te-
mer, poderiam retornar às sequências de viagens feitas
por conquistadores que navegavam com os navios pesa-
dos de nações africanas. Passaram a comemorar os ventos
que fariam fluir a trajetória sem sobressaltos em alto-mar,
sem medo de serem interrompidos e de perderem o que os
escravagistas chamavam de carga.
Beberam à noite inteira, planejaram viagens, manda-
ram rezar missa a fim de agradecer pela derrota de um
suposto demônio. Não havia sido dessa vez a sua vitória
sobre os homens. O dia do juízo final ainda demoraria a
chegar e, quando chegasse, teriam, a partir de sua lógica
supremacista, o argumento de que mataram para se defen-
der e narrariam o heroísmo europeu sobre o mal.
As populações aprisionados nas cadeias dos fortes vi-
ram as águas subirem densas nos calabouços, e intuitiva-
mente o coração apertava pensando se ainda seria possí-
vel serem resgatados ou não.

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Às margens das fileiras humanas no mercado, na qual


os homens e mulheres eram expostos(as) em pele para
serem vendidos, avistaram a destruição da embarcação,
atônitos(as). Alguns puseram a cabeça no chão em direção
ao mar, reverenciando a resposta dada de que nada ficaria
sem resolução. Tudo é imediato. Tudo tem consequências.
Não há fraqueza extrema que impeça alguma reação, nem
poder absoluto que não possa ser desafiado.

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A ponte

Na lua minguante, a maré esvaziou e o vento levou o pó


que havia se acumulado nas pedras e nos corais. Vento que
foi peregrinando e impregnando as barras dos vestidos
alheios, os cabelos dos bêbados e os turbantes das mulhe-
res do cais do porto ao sul.
M´are, aquele que reconhece o que é justo e toma a
decisão certa, após carregar todas as pedras para a cons-
trução da ponte, deitou-se ao fim do dia para descansar. A
sujeira do trabalho o fez mudar de cor. A areia vermelha
pesou nos longos fios crespos untados com cera, tornando
seus cabelos ainda mais rígidos e deixando-o com os mio-
los doendo. Suas mãos calejadas estavam cada vez mais
grossas e o pó nos cílios retardava o piscar dos olhos. Ha-
via pó nos lábios e em toda a sua vestimenta amarrotada
e com rasgões oriundos dos pesos que carregara durante
todo o dia. Havia também pedras afiadas, comida embo-
lada no estômago, os filhos por aí e a mulher carregando
água-doce por trilhas infinitas.
M’ are mal tinha fôlego para voltar para casa, rever os
parentes e os demais trabalhadores da comunidade. Sem
pensar muito, com muitas dores musculares e com rouqui-
dão devido ao pó na garganta, por lá mesmo entre as pedras
que carregou, jogou o corpo preto, vermelho e roto. De lá,
olhando para as estrelas, pediu aos ancestrais que as melho-
res memórias preenchessem seus sonhos até o dia seguin-

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te, quando tudo começaria novamente e novamente e mais


uma vez até que, quando pronta, a ponte fizesse com que
uma vila se comunicasse com a outra, o comércio fluísse, os
animais fossem transportados e as crianças se visitassem.
As horas passaram, a lua foi se abrindo acordando-o.
Ainda sonolento, tragou a energia da noite para ter o mí-
nimo de apoio para levantar e foi banhar-se nas águas por
onde construiriam a ponte. Pôs os pés na água fria e grada-
tivamente todo aquele conjunto de músculos feridos que
traziam histórias seculares. Agachou-se, puxando com as
mãos a água para si. Esfregou suas mãos calejadas sobre
os próprios braços e toda aquela areia impregnada ras-
pava-lhe a pele, arranhava-o, energizava-o. Em sintonia
pela água, corriam o barro e M´are. Assim foi acordando
e percebendo seu corpo redefinindo-se por todos aqueles
grãos, pedregulhos, o pó fazendo-se lama.
Mal podia compreender suas extensões. Estranhamen-
te percebeu os dedos mais compridos e as pernas ainda
mais volumosas. Pôs as mãos em todo o rosto para saber
se ele ainda estava a se banhar e sentiu a barba que não
tinha, os pelos que nunca vira brotar sobre o seu corpo
de pele lisa, os lábios ainda mais grossos. E, à medida que
esfregava a própria pele, perdia-se de si. Redobrando-se,
ora si, ora outrem. Alisava-se com mais mãos do que seria
concebido possuir. Seus olhos viam o que tinha à sua fren-
te e às suas costas. O ar entrava em maior quantidade. O
coração bateu, lançando o corpo inteiro na água. Percebeu
em si o pulsar de dois corações, batendo um após o outro,
tocando mais forte que macumba.
Lá estava M´are, confundindo-se com o próprio barro.
E, à medida que emergia, despia-se de si. Em um único fô-
lego, emerso, abriu os próprios olhos e os de Amò Dúdú.
Olharam-se de frente para que, com o mesmo compasso da

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macumba, seus corações anunciassem os corpos chegando


ao mundo. Continuaram a se banhar. M´are banhava Amò
Dúdú. Amò Dúdú banhava M´are.
Entre mãos pretas, a humanidade da pele acontecia.
Amò Dúdú alisou todo corpo fragilizado e dolorido de M´a-
re a fim de retirar-lhe as dores seculares, herdadas de his-
tórias repetidas de vida. Lavou as tristezas e as injustiças
sofridas, transformou a dor e o cansaço em força. Lambeu-
lhe os cílios, retirando o peso do pó, apagou o peso das
imagens desestruturadas do mundo dos vivos sem vida.
Mordeu-lhe os lábios, sentindo seu sangue na língua e be-
beu da sua sabedoria. Bebeu de sua saliva, amolecendo as
entranhas, beijou os mamilos sentindo vida, lavou todo o
pó da virilha e das coxas, desgarrando-se completamente
um do outro, se fazendo dois.
M´are mergulhou, tentando despertar de um prová-
vel sonho que rezou aos ancestrais. Mas, ao mergulhar e
emergir, reencontrou Amò Dúdú ainda vermelho, de olhos
arregalados como a lua no breu, a barba e os cabelos ainda
em lama. M´are tocou a si mesmo e a ele novamente. Amò
Dúdú produziu o silêncio para que os peixes e as cobras
do rio não o ouvissem. Estendeu-lhe as mãos e, quando o
vento foi favorável para levar sussurros em pensamento,
pediu-lhe:
– Beije-me, homem, e me ofereça vida plena. Toque-me,
pegue-me, me tome para si.
M´are tocou-lhe novamente e o envolveu com os pró-
prios dreads, moldou-lhe as mãos a fim de senti-las com
mais maciez sobre si, moldou-lhe o sexo a fim de senti-lo
dentro de si, modelou-lhe a boca a fim de que coubesse
nele toda a vida. Amò Dúdú, num grito, sentiu a dor da
vida. E o sol brotou uma hora mais cedo, deixando M´are
ainda mais preto e estrábico com os raios solares.

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M´are adormeceu à beira do rio, vindo a acordar com


os gritos de alegria dos que chegavam abismados com o
que viam:
– Homem, a ponte está perfeita! Agora temos um cami-
nho até a aldeia.
M´are olhou a ponte toda construída, ajoelhou, pôs a
cabeça no chão e agradeceu aos ancestrais pelo sonho rea-
lizado.
No outro lado do Atlântico, Amò Dúdú acordou na
praia da Ilha de Itaparica, viu seus seios, seus longos ca-
belos negros e tudo era ainda muito vermelho pelos seus
braços e pernas, mas era um vermelho-urucum. Sorriu
quando olhou para as suas seis filhas brincando nas águas
do mar. Olhou ao redor, sentiu o vento e o prazer da vida
na natureza, rodeada de tanta beleza. Amò Dúdú desceu
as areias da praia, mirou o horizonte e viu algo chegando
pelas águas. O cheiro da carne branca bateu em suas na-
rinas, seu coração gelou, parando por alguns segundos,
deixando-a sem fôlego. Era hora de recolher as filhas e os
parentes. Alguns permaneciam na praia por curiosidade
e se interpelando sobre o que avistavam. Mas Amò Dúdú
já imaginava que deveria ter por ali um caminho a desco-
brir e seguir.
A anciã da tribo aproximou-se ao ouvir a gritaria dos
demais sobre a estranheza do que avistavam. Olhou para a
estampa da vela e não conseguiu identificar, apenas sabia
que não eram velas portuguesas. Avistou homens cobertos
da cabeça aos pés. Respirou fundo, com aflição, e evocou
aos deuses da sabedoria para traçar rapidamente um pla-
no que a protegesse e a toda tribo. Aproximou-se de Amò
Dúdú e disse:
– Parente encarnada, bem recebida! Conta a essa velha
o que vê.

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Amò Dúdú, naquele momento, percebeu a sua pró-


pria ingenuidade em acreditar que não seria reconhecida.
Ajoelhou-se diante da sabedoria da anciã, curvou a cabeça
e respondeu-lhe:
– Me ensinaste nesse exato momento a como apren-
der mais. E quem pergunta sou eu. O que devemos fazer?
Aquele navio que se aproxima trará genocídio como todos
os outros que aqui desembarcaram. Ali está o veneno que
matará não apenas os corpos, mas os idiomas e consigo
toda a história. Matará as identidades e com isso as men-
tes. Fará com que almas encarnadas vivam em um limbo
sobre a terra, perdidas em vida, alienadas, completamente
desmemoriadas.
– Amò Dúdú, minha filha, reúna suas filhas no centro
da aldeia e lá evocaremos Floresta Azul. Ela guiará todos
os parentes dentro da mata e garanto que nada de ruim
nos alcançará. No momento certo, você cumprirá sua ta-
refa. Deixe que os espíritos dos animais se desdobrem em
você. Simples assim.
– Estou aos seus serviços. Expresso aqui minha extre-
ma gratidão por me confiar a mais um caminho.
– Vá filha, vá depressa!
Amò Dúdú estava diante do acervo milenar de quem
sabia interagir sem tomar posse de nada, onde a doença
não tinha vez, onde onça-pintada não caça gente e mos-
quito manda recado. Correu para recolher todas e todos
enquanto aguardava a evocação de Floresta Azul.

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AMÒ DÚDÚ

Amò Dúdú assim compreendia-se desde o dia em que


sua criadora concedeu-lhe o poder de transpor os mundos
e o tempo através do pó, bem como de sentir e transformar-
se em matéria viva por meio da água. Amò Dúdú possuía
tudo dela, saliva, sangue, líquido amniótico e lágrimas. Foi
com a água das próprias entranhas que Arìnnà Àjò moldou
o barro preto e deu vida a todo amor que havia em si. Amò
Dúdú, com muita gratidão e inteligência, se mantém na
perspectiva da sua própria história, pois correria o risco
de, caso o contrário, perder-se de si e não entender mais
de suas habilidades poderosas.
Arìnnà Àjò, viajante dos mundos da diáspora africana,
trouxe Amò Dúdú para aprender as rotas de fuga e condu-
zir em segurança os povos do mundo que são perseguidos
pela ganância da ideia de supremacia da branquitude. Foi
atribuído a Amò Dúdú o poder de se moldar às coisas do
mundo, de ser quem quisesse, de se transmutar, de viajar
pelos fluidos terrenos e humanos. No tempo e no espaço,
podia ir e voltar, podia ser e não ser mais em qualquer
instante. Tinha a capacidade de sentir a vida, as dores, os
amores, a própria alegria e a aflição de todos os seus an-
cestrais e descendentes.
A criadora de Amò Dúdú havia acumulado muitas ro-
tas e habitado em diversas cidades nas quais os povos res-
gatados assentavam-se temporariamente a fim de seguir

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viagem. As suas veias descrevem as linhas dos mapas das


cidades situadas nos entrelugares, naquilo que é chamado
propositadamente de inóspito, no subterrâneo, no sub-
merso, no imerso, para depois de alhures.
Ela havia visitado aqueles espaços quando tudo ainda
era uma pangeia, seguindo sempre com o olhar bem atento
todos os deslocamentos geográficos e todas as formações
de massa terrena, perseguindo os desenhos e viajando
com eles na mesma velocidade. Ela viajou nas areias dos
desertos, no pó, na fumaça, na larva dos vulcões, nas on-
das, nas tempestades, nas lágrimas, nas menstruações, no
suor, no gozo, no sangue das veias dos animais, nas águas
dos rios, aprendendo assim toda geografia necessária para
orientar qualquer viajante.
Todo o saber de Arìnnà Àjò está registrado no incons-
ciente dos que orientam a fuga e dos que são perseguidos.
No entanto, ela precisa aprender a ler em si esse legado.
Quem se esquece dos seus deixa de ter acesso ao legado
ancestral.
Arìnnà Àjò assentou-se em umas das cidades secretas a
fim de registrar nas bibliotecas localizadas nos interstícios
da abstração e da matéria todos os mapas outrora dese-
nhados em seu cérebro. Por muitas vidas, precisou se ocu-
par em desenhar os mapas dos entrelugares e alimentar
as bibliotecas cósmicas. Então, escolheu uma cidade para
trabalhar, decidiu pela que mais gostava, a mais movimen-
tada e bonita. Lá, recebeu diversos povos com diferentes
línguas, culturas, saberes, mas todos com o mesmo obje-
tivo, todos lutando para preservar a vida e o acúmulo de
saber, de emoções, de imagens, de som, matéria e energia.
A Cidade do Pêndulo, como ficou conhecida, oscila en-
tre as ilhas de Cabo Verde, no continente africano, e a Ilha
de Itaparica, situada ao sul do continente americano. Para

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entrar nela, é preciso aprender com as galinhas a olhar


tudo, menos o que há na frente. As aves entram e saem
dessa cidade com muita facilidade. Muitas das espécies di-
tas extintas nas cidades dos cinco continentes ainda vivem
por lá. A rota de lá é oscilante, navega-se pelas laterais,
num ir e vir que promove transe, no qual o equilíbrio é sair
do eixo. Nessa hora é que o corpo entra na cidade, quando
não consegue se manter de pé, caindo para um lado e para
outro. Se olharem para frente, irão ver um abismo e, uma
vez visto, cairão nele se perdendo. Nos abismos, há rotas
ainda não ensinadas. Quem foi não voltou ainda para ex-
plicá-las.
Arìnnà Àjò, decidida em se hospedar na Cidade do Pên-
dulo, soltou uma galinha e a seguiu sem olhar para frente,
entrando assim na cidade por Itaparica. Assentou-se na ci-
dade que não tem praça, não existe centro, onde galinha,
pavão e todo tipo de ave entra e sai de repente com um
olho vendo Cabo Verde e o outro vendo Itaparica.
Ao assentar pela primeira vez uma casa na cidade,
Arìnnà Àjò passou a criar vínculos afetivos. Lá, aprendeu
o ofício da artesã Pérola Negra, moradora da Ilha de Ita-
parica, que fugira das pragas da colonização portuguesa.
Pérola Negra entrara na cidade sozinha, mal sabia ela que
estava em um lugar não descrito nos mapas coloniais.
Ao aprender a fazer vasos, pratos e adornos de bar-
ro, Arìnnà Àjò, pelo ofício de Pérola Negra, descobriu um
caminho para trazer seus filhos. Amò Dúdú foi um deles.
Na convivência, Pérola Negra quis aprender a usar o ofí-
cio para trazer também sua filha. E, por alguns anos de
trabalho e perseverança, dedicou-se junto a Arìnnà Àjò a
desdobrar-se pelo barro. Pérola Negra mal podia se conter,
ansiosa por resgatar sua filha das terras de escravizadores.
A cada avanço, comemorava e dedicava-se, com mais aten-

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ção e disciplina, a compreender sobre o legado dos seus


ancestrais africanos para então conseguir fluir no mundo.
Arìnnà Àjò e Pérola Negra trabalharam por bastante
tempo juntas, viam-se quase todas as luas cheias. Com a
vinda de Arìnnà Àjò para a Cidade do Pêndulo, Pérola Ne-
gra pôde sossegar mais as aflições, uma vez que gradativa-
mente estava ganhando noção de vida naquele lugar, bem
como foi reformulando as suas memórias. As lembranças
da artesã oscilavam entre a dor da tragédia vivida até con-
seguir fugir para a Cidade do Pêndulo e a alegria de rever
diariamente os olhares acolhedores de Arìnnà Àjò.
No entanto, um abismo de séculos havia entre as duas.
Mas, à medida que as memórias de outras diásporas fo-
ram deixando pistas, a distância entre elas foi se encur-
tando. Entre a dor e o amor, houve o caminho do beijo,
tão necessário para amolecer o barro e fazer com que se
desdobrassem.
Arìnnà Àjò, ao explicar a Pérola Negra sobre as traje-
tórias do mundo, desenhou, no pote de barro, os mapas
dos caminhos das diversas mulheres que a engendraram.
Desejosa por essa mulher de extrema coragem, Arìnnà Àjò
compartilhava suas habilidades, ao mesmo tempo em que
podia também sentir as dores que Pérola Negra trazia na
pele. Cuidadosamente, amaciou essas dores. E, à medida
que se molhavam amolecendo o barro, fazendo do pó uma
massa densa, tornavam-se também pasta. Pérola Negra
passou a ler os códigos que se materializavam na sua fren-
te a cada adorno, a cada cozimento moldando peças orna-
mentadas.
Arìnnà Àjò contornou todo o rosto de Pérola Negra, co-
brindo-a de barro e pedia-lhe que lhe fizesse o mesmo. À
medida que as mãos se entrelaçavam pelos cabelos uma
da outra e as bocas molhavam as peles, desdobravam os

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corpos das mulheres que traziam em si. Na mordida em


Pérola Negra que a fez brotar lágrimas, desdobrou-se, pelo
canto do cômodo, uma senhora de cabelos azuis, olhos cor
de azeite, pele breu de mata fechada, mostrando no corpo
tatuagens no mesmo movimento dos planetas, conhecida
pelo nome de Floresta Azul.
De pronto com os olhos cerrados, os corações abertos
aos cuidados do amor entre ambas, outras mulheres apa-
receram e permaneceram sentadas nas camas das duas,
olhando umas para as outras, se cumprimentando en-
quanto conversavam, saltando entre uma cama e outra. À
medida que elas foram descendo da cama e se encontran-
do, o lastro foi se quebrando a ponto de arranhar e ferir
as costas daquela que tinha poucas esperanças. Porém, a
senhora de cabelos azuis circulou pelo cômodo, pela casa,
derrubando os agdás, beijando todas as outras e deixan-
do assim vazia a cama de quem quase morria pelos lastros
quebrados. De algumas, ela arrancava a roupa e mordia a
pele. De outras, simplesmente ria e esnobava. Mas, ao ir
até Pérola Negra, profetizou:
– Ou levantas e constrói os caminhos... ou morras aí
com um pau de lastro pontiagudo atravessando seu co-
ração!
Pérola Negra, assustada, arregalou os olhos.
Outra mulher, que acariciava os pés de Arìnnà Àjò, que,
por sua vez, se deleitava e lambia os dedos de Pérola Negra
ainda amedrontada, olhava todas enquanto jogava os len-
çóis no chão. Até que ela, a mulher que ensinou a Arìnnà
Àjò alguns dos caminhos entre os continentes, Pangeia,
desferiu leves tapas na pobre face da desacreditada Péro-
la Negra, jogando-a no abismo e a separando de todas. De
cima, Pangeia ficou a olhar, até pular em seguida, num voo
contínuo.

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Desse abismo não se volta quando não se aprende a


voar, pensou Arìnnà Àjò, que abriu assustada os olhos, per-
dendo toda configuração daqueles caminhos, vendo cada
uma indo embora gradativamente e virando as costas para
assim sumirem de suas vistas.
Arìnnà Àjò suspirou preocupada, mas aguardou com
confiança Pérola Negra reaparecer um dia. Respirou fundo
e voltou-se para o trabalho, tendo esperança de que Péro-
la Negra voltaria à cidade junto aos pássaros. Confiou no
tempo, na atitude e nos propósitos de Pangeia.

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PÉROLA NEGRA

Pérola Negra nasceu na passagem pelo Atlântico em


um navio negreiro português que saíra das ilhas de Cabo
Verde para o litoral do Brasil em missão escravagista. Sua
mãe, uma jovem estudiosa chamada Aziza Omorode, ain-
da grávida, foi arrastada para o porão, amarrada nua com
mais outras 20 jovens mulheres africanas, capturadas
poucos dias antes de concluírem a pesquisa geológica de
sua equipe de cientistas.
Há algum tempo, as estudiosas responsáveis em colher
informações para a comunidade, a fim de avaliar a prospe-
ridade da região, haviam descoberto que o chão era capaz
de navegar. Elas perceberam que a terra não era um local
fixo, bem como que o chão tinha mais vida do que podiam
imaginar. Naquele momento, quando mal se deram conta
de que aquelas terras seriam nomeadas por desconheci-
dos navegantes, as cientistas estavam prestes a analisar
quais seriam as rotas das ilhas da costa oeste africana. Es-
tavam ávidas para informar a seu povo se seguiriam junto
à ilha para além-mar ou se em breve haveriam de ter cui-
dados com um futuro terremoto proveniente de uma pro-
vável colisão entre os pequenos blocos de terra e o grande
continente.
Aziza Omorode estava muito entusiasmada com as in-
formações de extrema utilidade e que poderiam mudar os
caminhos de seu povo. Registrara tudo, todos os cálculos,

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imagens e análises geomorfológicas. Ela e as outras cien-


tistas produziram um material vasto contendo cartas to-
pográficas, identificando as curvas de nível dos terrenos
e das depressões, delimitando os divisores, com cálculos
precisos sobre a área: perímetro, profundidade, elipsida-
de, simetria interna, relação profundidade e diâmetro, ei-
xos. Trabalho de anos, de muitos anos.
Tamanha era a concentração de energia daquelas mu-
lheres africanas estudiosas, que mal perceberam a presen-
ça de navios portugueses ao redor da ilha. Tudo foi toma-
do, foram queimados os assentamentos e todo o acervo lo-
cal. Crianças, velhos e adultos foram arrematados. O local
que um dia fora descrito como terra caminhante, consa-
grada com belezas naturais de extrema importância para
os estudos sobre as conexões com as energias terrenas,
transformou-se em um mercado no qual se comercializava
pessoas.
Todos e todas engolidos(as) pela boca afiada do porão,
os corpos foram jogados uns por cima dos outros. E lá Azi-
za Omorode sentiu as dores do rapto, do parto, da captura,
da ruptura e por ver todo o seu acervo esfumaçado, e os
segredos dos terrenos viajantes desenhados no ar. Aziza
Omorode sabia que havia mais caminhos no mundo do que
aquilo que se podia ver. Os caminhos não estavam restritos
ao globo terrestre porque havia várias conexões entre os
planetas, entre os períodos temporais, entre os cérebros
e as almas.
Junto ao aglomerado de jovens africanos(as) corriam
os ratos que buscavam as porcarias geradas a bordo da
embarcação há meses navegando. As pessoas deitadas ali
uma do lado da outra, deitadas sobre as fezes, urina, suor,
sangue. Acorrentados, fechavam os olhos e a boca quando
as ratazanas passavam e deixavam, às vezes, mordidas e

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rastro de morte. Quando algum cadáver estava prestes a


estourar, os marinheiros engulhando carregavam-no ra-
pidamente, lançando-o ao mar o mais distante possível.
Mas não evitavam que deixassem rastro fétido no convés
e larvas no porão, nas mãos e no casco da nau aventureira.
Alguns cadáveres explodiam no ar ao serem jogados, der-
ramando em chuva fétida o que outrora era vida.
Amordaçado, acorrentado, ferido com náuseas e des-
maiado de dor, Léfòó Lékè despertara ao ouvir os gritos
do nascimento de sua filha Pérola Negra. A bela criança, de
posse das palavras de agradecimento de seu pai, recebeu
todas as bocas para assim consumir o mundo. A mãe de
Pérola Negra morreu de escorbuto durante a viagem for-
çada, duas semanas após o parto, e com ela se foi a leitura
de mundo e de muitas descobertas de anos naquelas ilhas
na costa africana. A criança herdou todas as habilidades de
seu pai e de sua mãe, mas antes mesmo de poder usá-las e
se defender, fora levada para o convés do navio e avaliada
pelo capitão escravagista que imaginou realizar suas per-
versões sexuais com a indefesa criatura.
Em fila no convés e amarrados, os que haviam sido cap-
turados tomavam banho de sol e água salgada. O capitão
orientou os marinheiros a separar os doentes e os mortos
daqueles que poderiam ser vendidos a alto preço, os for-
tes, os mais altos, os que tinham dentes inteiros, os menos
ensanguentados e os que mais comiam a ração oferecida.
Léfòó Lékè foi o primeiro a ser separado, ficando no canto
esquerdo do convés. De lá, assistiu a sua criança ser leva-
da. Léfòó Lékè via tudo, os brancos, os pretos, os mortos no
mundo dos vivos e os vivos no mundo dos mortos.
Ao olhar para o alto, Léfòó Lékè fechou os olhos e se
concentrou a fim de buscar caminhos para sair daquele
martírio. Ao seu redor apenas o mar. Olhou para seu ab-

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dômen nu a fim de ler as coordenadas. Ele havia nascido


com os mapas desenhados no corpo. O que para os portu-
gueses eram manchas mais escuras, no legado cultural de
Léfòó Lékè eram os mapas das cidades por onde sua alma
já havia vivido.
Todas as vezes que Léfòó Lékè se aproximava de algu-
ma cidade cósmica, o desenho correspondente a essa cida-
de se estufava na pele e ficava dolorido. Foi por isso que,
após meses de viagem, percebera que estava próximo da
Cidade do Pêndulo, do lado oposto ao da costa africana.
Olhou para sua filha e viu no corpo dela o mesmo desenho
que havia no seu. Deduziu que poderiam escapar juntos
para a Cidade do Pêndulo.
Léfòó Lékè fingiu dores, tosses, fez corpo mole, forçou
vômito, cuspiu sangue e mostrou-se doente. Fora desacor-
rentado para ser descartado ao mar. Arrastaram-no pelo
convés com a finalidade de lançá-lo ao mar. Quando o ar-
rastaram o suficiente para que pudesse correr para perto
de onde estava a filha, Léfòó Lékè voltou a ser gigantesco.
Lançou um marinheiro para o lado e o outro para o mar.
Correu em direção à cabine do capitão.
Tomado pela dor da mulher falecida e pela indignação
ao ver sua criança no convés do navio sendo levada pelo
aliciador de almas, o guerreiro Léfòó Lékè aspirou todas as
energias que eram possíveis de sentir com tamanho ódio
que brotava das suas pupilas ao ver o capitão português,
um homem coberto de pulgas, gengivas inchadas e desnu-
trido, segurando sua filha indefesa. De um lado, estavam
os marinheiros projetando os corpos na direção de Léfòó
Lékè. Do outro lado, os que acabaram de se tornar eguns
ao serem lançados no mar subiam de volta para o convés.
E, atrás de Léfòó Lékè, os parentes cantavam, manipulan-
do as energias do ar com o som dos pulmões. Léfòó Lékè

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gritou para os perseguidores vivos e para os refugiados


mortos e avançou.
O navegador, autodenominado aventureiro, corrido da
vida malsucedida na Europa, buscando riqueza fácil além
-mar, ladrão de tesouros e almas, extremamente religioso,
chamava-se capitão Manuel Agostinho. Criado como bom
cristão, ele imaginara estar em frente ao próprio Satanás
ao perceber o corpo negro se projetando enfurecido so-
bre o seu. Ouviu-se um intenso grito de quem guarda um
leão nos pulmões. Seguido do grito de Léfòó Lékè, veio o
estrondo da trovoada, uma forte onda inclinando o navio e
fazendo todos tentarem se reequilibrar. O covarde capitão
reagiu como quem reage diante de uma fera. Sacou a arma
e apontou, deixando cair de seus braços a criança. Imedia-
tamente, Léfòó Lékè a tomou nos braços, que estavam en-
sanguentados pelos tiros.
Ao olhar para sua filha, a força de Léfòó Lékè redobrou,
seu corpo cresceu para fora do navio e mergulhou no mar.
Vários marinheiros atiravam na água, gastando as balas,
matando golfinhos e acertando peixes. Mas não consegui-
ram acertar nem Léfòó Lékè nem sua filha, que, pela pri-
meira vez, sentiram as dores se diluírem na água salgada
por serem acolhidos a salvo pelo mar. Léfòó Lékè suspirou
livre e projetou-se a nadar sem nunca parar. O navio se-
guiu, deixando um rastro de corpos no mar.
– Mais um preto fétido ao mar!!!!! Não gastem muni-
ção. Bando de homens estúpidos, idiotas da pior espécie.
Precisaremos delas no desembarque, seus estúpidos! Não
veem que mais uma tempestade está a chegar? Preparem.
A chuva que vem, apesar de lavar todas as fezes e vômitos
no convés, nos dará muito trabalho.
– Capitão, por favor! Sendo o senhor um dos poucos
com capacidade lógica nesse lugar repleto de degradados

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da pior espécie e com o porão cheio de mercadoria das ca-


ras, não pode se dar ao luxo de deixar de raciocinar e guiar
esses fugitivos da justiça, esses miseráveis com dívida com
Deus. Se realmente quiser apoio e proteção para chegar
com vida nas Américas é melhor não se misturar demais e
se contaminar com esse bando de gente desgraçada.
– Comande, meu senhor!!! – gritou o encarregado da
segurança da expedição.
Outros trovões ecoaram nas cabeças febris da maruja-
da emporcalhada meses ao mar, vomitando em meio aos
mantimentos apodrecidos. Infestados de piolhos, coça-
vam-se, arrotavam e peidavam diante dos tremores dos
trovões. Esfomeados, comendo apenas o que conseguiam
pescar, mal digeriam o peixe cru. Vesgos por causa do sol,
brigavam com os eguns, confundindo-os com os acorren-
tados.
Diante dos receios do que o aguardava na travessia
forçada, Léfòó Lékè sumiu com a filha, Pérola Negra, pelo
Atlântico. Nadou e boiou por horas com sua menina sob o
peito. Quando pulara do navio, sabia que estava próximo
à costa das terras da Cidade do Pêndulo e que a qualquer
momento poderia oscilar para lá. Nadou por quase um dia
e uma noite até morrer. Seu último suspiro foi para pôr Pé-
rola Negra na areia da praia da Ilha de Itaparica.
Mensageiro Jupiara da pele vermelha admirou a resis-
tência do estrangeiro africano, sepultou seu corpo negro
e pesado na igaçaba, acolheu a menina. Mas, receoso das
perseguições, fugiu com ela para a mata fechada. Enquan-
to cantava para abrir as passagens para o corpo de Léfòó
Lékè, avistava o navio preparando o bote com os tripulan-
tes prestes a remarem para a ilha em busca de água-doce.

* * *

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Mais ao norte nas terras avistadas pelos destemidos


degradados e responsáveis pela diáspora, adentrando o
continente, nasceu Sertão Omin, molhando a terra parti-
da e as mãos das parentes quilombolas. O pai de Sertão
Omin, ao ver o quilombo evaporar-se no fogo, sumiu com
ele no cavalo que corria para nunca voltar. Após uma longa
viagem, aproximavam-se do litoral, mas, após uma tocaia,
quis aumentar as esperanças de que a vida do seu filho iria
progredir. Nem mesmo com o tiro nas costas do caboclo, o
cavalo parou, levando por mais um dia e uma noite Sertão
Omin para a proteção do Mensageiro Jupiara.
Mais uma vez, Mensageiro Jupiara se deparou com a
situação de ter que sepultar um corpo negro. Como for-
ma de respeitar a resistência daqueles que não baixam a
cabeça, acolheu também o corpo negro na igaçaba, cantou
para abrir os caminhos para a alma do caboclo e acolheu a
criança Sertão Omin.
O Mensageiro Jupiara ao longo dos anos, nos desloca-
mentos da tribo e no apoio mútuo aos perseguidos, acabou
construindo um caminho de igaçabas, contornando com os
corpos mortos e em posição fetal as rotas de fugas de po-
vos pretos e povos vermelhos.
Sertão Omin e Pérola Negra cresceram com mais ou-
tras crianças diaspóricas fugindo das perversidades da
colonização. Na juventude, tornaram-se pais de Amadi. A
vida inteira, precisaram correr.
Pérola Negra usufruiu da mata e entendeu como se pro-
teger nela. Trazia em si os mapas no abdômen, que coça-
vam com frequência, no entanto os entendia como simples
manchas provenientes de alguma doença na pele. Ela estu-
dou e aprendeu sobre todas as ervas no intuito de se curar.
Sertão Omin, resistente à seca, voltou compulsoria-
mente para as terras no interior da Bahia, fugindo de ser

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morto ao tentar evitar que Pérola Negra fosse capturada


para trabalho escravo. Lá formou outro quilombo, prepa-
rando-se para buscar Pérola Negra, que fora levada à força
para trabalhar na casa-grande.
Ainda com a filha de Sertão Omin na barriga, Pérola Ne-
gra trabalhava o dia inteiro e à noite era encurralada pe-
los filhos brancos do fazendeiro. Quando mal podia andar
com o peso da barriga, Pérola Negra ouviu dos capitães do
mato que sua criança seria vendida. Aflita, perto das do-
res do parto, Pérola Negra fugiu. Por horas, os capitães a
caçavam. Mas só a acharam porque ela precisou parar de
correr, para enfim sua criança nascer.
Pérola Negra agachou-se, gritou, olhou para o alto e viu
a ponta do rifle próxima às folhas. Sua filha havia escor-
regado pelas suas pernas. Agarrou-a, mas levantou com
dificuldade e correu. Não sabia de onde havia tirado forças
para correr logo após ter parido. Não sabia que era possí-
vel para uma mulher ser forte assim. Jogou a placenta fora,
rasgou o cordão umbilical no dente, tudo isso enquanto
corria. Bambeou, o céu girou, o coração acelerou, olhou
para a pequenina, preta e vermelha do seu sangue, e ouviu
o seu primeiro choro no mundo. Pérola Negra correu infi-
nitamente com ela entre seus seios, contornando a plan-
tação.
Olhou para trás, viu os homens olhando para seu corpo
e os cachorros lambendo suas entranhas. Alguns tiros re-
fletiram na memória da sua mente. Bambeou novamente,
porém continuou correndo com sua criança nas mãos.
No caminho, diante do corpo daquela mãe aflita pela
perseguição, os capitães do mato esbravejavam em diálo-
gos perversos:
– Está morta... Não gaste mais balas, capitão Jocoso.
– Cadê, a criança? Andando é que não saiu!

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– Deve ter jogado em algum lugar antes de atirarmos


nela.
– Ponham os cachorros para farejar! Vai logo, estúpido,
para de olhar para isso!
– Não encontramos nada!
– Procura direito!
Continuou correndo, correndo, correndo. Não impor-
tava o fôlego, corria o cansaço, corria o sangue escorrendo
pelas pernas. Não importava nem mesmo para onde iria
com a criança, continuou correndo.
Na mato, os perseguidores concluíam freneticamente:
– Não achamos nada.
– Então está aí dentro ainda!
– Revire as entranhas! Imbecil, me dá a faca!
– Nada!
– Não podemos perder a mercadoria.
Continuou correndo, já não mais se cansava. Só parou
para alimentar a filha. E, pela primeira vez, a amamentou!
Banhou-a no rio, rasgou parte do seu pano da costa e fez
um manto para ela. Amamentou novamente e, logo após,
ela abriu os olhos e sorriu para a mãe que desde que se
entendeu por gente sabia que tinha que correr.
Atônitos, os lacaios, defensores dos interesses dos co-
lonizadores esbravejavam:
– Alguém esteve aqui, então! Vai cada um para o lado,
mas encontrem.
– Encontrar quem, Jocoso? Um bebê correndo?
– Vocês não servem para nada, é por isso que tantos
mulatos fogem daqui!
Todavia, Pérola Negra continuou correndo, queria ir
o mais longe possível da ilha. Quem a dera atravessar o
mar e sair de Itaparica. Entranhou-se pela mata até achar
a areia da praia. Ao alcançar as areias alcalinas, quentes

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do sol, olhou para o horizonte imaginando atravessar as


águas do mar. Fez súplica à memória de seu pai, que nada-
ra até morrer por aquelas águas de Itaparica. Rogou a ele a
volta para casa. Pensou que faria como seu pai, nadaria até
deixar a salvo sua pequena Amadi.
Lá, à beira do mar, estava Pérola Negra, com sua filha
nos braços, tomada pelo desespero da perseguição dos
capitães do mato, jocosos, filhos mestiços que vieram ao
mundo forçosamente trazidos pelos portugueses, estupra-
dores de iorubás e tupinambás. Agora soldados, homens
negros embranquecidos que cumpriam as ordens de to-
mar-lhe a criança. No entanto, Pérola Negra foi mais rápida
e inteligente que eles. Pensativa e cansada, questionava-se
quanto a como fazer para atravessar aquele mar. Sentou-
se à sombra do coqueiro, chorou e das suas lágrimas se
fizeram as de Amò Dúdú, que olhava para as suas filhas
a brincar na areia da praia de Itaparica. Amò Dúdú, ver-
melha-urucum, aproximando-se acolheu a bela criança de
Pérola Negra entre seus seios compridos e a pintou.
– Como você se chama?
– Pérola Negra.
– Meu nome é Amò Dúdú.
– Preciso sair da Ilha. Preciso atravessar.
– Infelizmente, não vai ser possível atravessar.
– Você poderia me ajudar, poderia me pôr em uma canoa.
– Não posso fazer isso.
– Por quê? Não vê? Eles estão me caçando.
– Olha naquela direção, vê ali entre as rochas ao longe?
Veja, sente o cheiro. Não está sentindo o cheiro da carne
branca? São quatro embarcações.
– Não acredito, nisso!!! Não há lugar! Não há paz! Em
qual lugar do mundo posso viver de verdade? O que há
com esse mundo?

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– Vamos comigo e minhas filhas.


– Não posso mais caminhar.
– Entendo seu cansaço. Mas o que fará quando eles de-
sembarcarem?
– Leve minha filha. O nome dela é Amadi.
Amò Dúdú levou Amadi junto às próprias filhas e a vá-
rias outras crianças todas pintadas de vermelho-urucum
para dentro da mata fechada. Correu com elas enquanto
ainda era tempo. À sua frente, a senhora cor de breu mata
fechada, cabelos azuis, olhos cor de azeite que abria os ca-
minhos na mata, guiavam os pequenos pezinhos. As crian-
ças corriam, davam gargalhadas e gritavam em coro numa
melodia infantil:
– Floresta Azul. Floresta Azul! Floresta Azul! Segue Flo-
resta Azul!
Amò Dúdú resgatou crianças de várias tribos com o
simples sorriso e a curiosidade que os cabelos e os olhos
de Floresta Azul causavam nos pequenos. Enquanto as ocas
queimavam, os cavalos fugiam e os açoites contorciam as
costas dos povos vermelhos, as crianças eram chamadas
a entrar nos caminhos das folhas. As folhas tremiam, sem
exceção. Cada folha do caminho sacudia, indo de um lado
a outro, abrindo espaço para as crianças passarem e esta-
peando os perseguidores.
Quanto mais próximas da senhora chamada pelas
crianças como Floresta Azul, mais afiadas eram as folhas.
Mãos que se aproximassem dos pescoços dos pequeninos
de vermelho-urucum eram cortadas fora com um simples
golpe de samambaia. Os olhos dos brancos que viam os ca-
belos de Floresta Azul saltavam do crânio, as balas de ca-
nhão que miravam as crianças caíam na cabeça dos aven-
tureiros exterminadores, esmagando-os.

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Pérola Negra vira a hora que os navegadores europeus


adentraram a mata buscando a tribo, queimando as ocas,
afoitos com armamentos. Aflita, temeu que alcançassem
sua filha, Amadi, que parecia ser destinada a morrer no
nascimento mas esteve para a resistência desde o seu iní-
cio no mundo.
Pérola Negra, com muito custo, acessou os saberes dos
seus ancestrais e intuitivamente corria entre os mundos,
deixando assim de ser vista. Ainda sem entender isso,
desesperou-se com o desembarque dos marinheiros na
praia. Gritou, revirou os olhos, levantou, mas a cabeça os-
cilava de tanta fraqueza que sentia. Tão fora de si, tão sem
eixo, fechou os olhos sem poder mais deter as oscilações e
os solavancos que seu corpo dava. Deu dois passos para o
lado direito, dois outros para o lado esquerdo. E os olhos
sem força para abrir. Sentiu a respiração dos homens per-
to de si, gritou de desespero e caiu. Era o exato momento
da passagem da cidade pela Ilha de Itaparica. Pérola Negra
caiu na Cidade do Pêndulo.
Na mata, as folhinhas abanavam o suor dos pequeninos
serelepes percorrendo os caminhos traçados por Floresta
Azul. Outras folhinhas lhes faziam cócegas, estampando no
rosto sorrisos e, às vezes, gargalhadas. O coro das crianças
permanecia na corrida atrás dos cabelos de Floresta Azul,
brilhosos, azul-anil, enfeitados com flores e folhas.
Os pequeninos corriam buscando-a, rindo na tentativa
de tocá-la. As folhas, de tanto sacudirem, faziam ventania
e os pássaros abriam as asas abraçando-as e transforman-
do seus pequenos bracinhos em asas. Felizes em saltarem
do chão, voaram para as copas das árvores. No assobio de
Amò Dúdú, partiram em revoada para outra tribo.
Amò Dúdú trazia na cabeça as penas que a fariam voar.
Foram três dias de voo e as crianças estavam sendo espe-

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radas pelo ancião na copa da árvore sagrada. Era lá que as


mães buscavam seus filhos perdidos no mato ou pediam
para engravidar. O pajé rezava para a árvore dar frutos.
Cunhã, todos os dias, visitava a árvore na tentativa de as-
sistir ao dia das crianças descerem de lá. Pensava, como
podiam as crianças descer prontas, pintadas e falando ou-
tros idiomas? Quando menos dava por si, o pajé chegava
com os pequenos e pedia sempre a cunhã que identificasse
os idiomas e o legado histórico que chegavam com elas.

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VISITAS

Arìnnà Àjò revê Pérola Negra em todos os caminhos


percorridos pela alma dela, sempre visitando suas idas e
vindas. Reencontrou-a na Avenida Bourguiba usando hi-
jab e transgredindo ao tomar chá solitariamente nas cadei-
ras externas do Café Bar próximo ao Hotel África. Pérola
Negra a reconheceu através de um sorriso, mas não a con-
vidou para o chá. Era o chá de comemoração da publicação
dos seus textos clandestinos sobre direitos das mulheres
homossexuais. Arìnnà Àjò leu mais tarde em publicações
clandestinas que Pérola Negra, infelizmente, havia morri-
do no dia seguinte aquele chá, apedrejada pela oposição.

* * *
Reencontraram-se no anfiteatro romano das terras
africanas. Ao descer as escadas das ruínas do anfiteatro de
El Jem, a vasta cabeleira crespa e grisalha de Arìnnà Àjò
se deparou com os labirintos de séculos. Os olhos revira-
ram e por lá se deixou perder diante dos suplícios, a fim
de se aproximar de Pérola Negra. Os cabelos caíram pelo
caminho, o calcanhar passou a sangrar e sentiu o peso dos
músculos negros na alma em plena colônia romana.
No primeiro dia, ao fugir pelos labirintos subterrâneos
sem achar a saída, Pérola Negra se deparou com os olhos
planetários ao fundo da burca. No segundo dia, ouviu vo-
zes estrangeiras indicando o caminho, mas sem nada dizer.

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No terceiro dia, encontrou a mulher que percorreu aquelas


encruzilhadas a fim de encontrá-la e orientá-la:
– Não corra de mim. Quem sobe a arena volta morto,
como os que estão à sua volta, como você está agora. Morta
para os senhores ditadores da política, mas viva diante de
mim.
Correu e se deparou com o som do rosnar de leões que
pareciam mastigar pedaço de corpos dos gladiadores.
Passaram-se mais dias, os cabelos cresceram, os seios
brotaram e sentiu o peso de carregar no ventre o próximo
a digladiar.
– Quem é você, finalmente? – perguntou relutante,
diante da mulher na encruzilhada seguinte, já envelhecida,
oferecendo-lhe as ervas para as feridas.
– Sou você te mostrando a saída.
A voz ecoou na mente. Caminharam juntas. Os dias pas-
saram e brotou por entre os pés os caminhos do anfiteatro
de El Jem vazio, embora ainda repleto de memórias.

* * *
Entre o cigarro e o sono velado, alguns relances subje-
tivos. Arìnnà Àjò não fuma, mas achou importante aceitar
o convite para compartilhar o cigarro de palha de milho
daquela jovem mulher sem-terra. No ir e vir da fumaça,
algumas palavras se evaporavam. Momentos como aquele
não tem nem depois e nem antes, são sempre únicos entre
as duas.
Pérola Negra, ao puxar a fumaça, aspirava os olhares
e expirava algumas dificuldades, timidez por exemplo.
Quando o cigarro acabou, Arìnnà Àjò se inspirou nele para
se fazer volátil e efêmera ao dançar com quem melhor sa-
bia cultivar qualquer semente. E, entre as pernas, jogou o
corpo, naquele movimento idêntico ao do vento na fuma-

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ça. A viajante se inspirou também naquela pequena chama


que surge na ponta do cigarro para acender as próprias
chamas. A cada toque diferenciado das mãos calejadas de
Pérola Negra, uma tragada de desejo pronta para ser aspi-
rada. E assim o fez ao perceber o cheiro daquela mulher
em suas mãos.
O cigarro se esvaiu, a música acabou e as emoções fala-
ram bem baixinho, pois muito trabalho vinha pela frente.
Às 4h da manhã, Pérola Negra sairia para o plantio no Bela
Vista. Entretanto, naquele encontro no forró, muitas coisas
aconteceram entre elas, muitas transformações, mas pre-
cisariam de tempo para diluir tudo aquilo.
Ela não costuma beber, mas achou importante beber
do copo de cachaça preso à roupa ao lado do facão. Não
sabia dizer se seria sempre assim, mas o que antecedeu a
dança foi mais provocador. Aquele gole desceu pela gar-
ganta de Arìnnà Àjò, queimando-a e o que a fez engasgar
não foi a bebida, e sim os olhares. Engoliu então a falta de
possibilidade de agir naturalmente diante de todos. Res-
tringiu-se apenas a um gole durante a noite a fim de que
permanecesse sóbria, embora tivesse medo de, mesmo só-
bria, fazer tudo aquilo que poderia fazer inebriada.
No caminho para casa, Arìnnà Àjò e Pérola Negra se per-
deram olhando as estrelas, vendo aquele céu impossível
de ver nas metrópoles, nos conjuntos de concreto. Pérola
Negra olhava e olhava, mas, com medo daquela imagem se
apagar da sua frente e da memória, pensou que precisava
aproveitar a oportunidade que a vida lhe deu de ver aquele
céu e simplesmente olhar.  E fez o mesmo com a mulher
ao seu lado, de pele envelhecida do sol e linda, ainda que
tivesse olheiras, cabelos queimados, unhas partidas e co-
ração seco feito o chão que insistia em regar. Deixou que
Arìnnà Àjò a levasse para dentro de casa e simplesmente

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permitiu que velasse seu sono. De maneira bem acolhedo-


ra, como quem semeia o chão, o amor se pôs ali. Pérola Ne-
gra fechou os seus olhos e os de Arìnnà Àjò, deixando que
o mundo girasse sem que nada vissem. Compartilharam as
voltas que o mundo deu enquanto dormiam.
Ao amanhecer, a viajante agradeceu pela cama pronta e
pelos carinhos da manhã, pelo pé quente e pelo beijo, em-
bora difícil, singelo. Difícil porque estavam sem ar, porque
as peles lhes diziam coisas impossíveis de serem comuni-
cadas naquele instante. Singelo porque se lembraram de
imediato da caminhada que teriam pela frente, e se detive-
ram para sentir as mãos calejadas do trabalho pelo rosto e
assim iniciaram o dia de maneira bem sensata.
No meio de todo um embate político para permanecer
na terra e de envolvimento no trabalho agrícola, quando a
manhã mal havia brotado, a polícia avançou com tratores,
desfazendo as casas e inutilizando o alimento plantado,
apagando assim da memória os relances subjetivos daque-
las duas senhoras.

* * *
Pérola Negra, por diversas vezes, retornava a vida em
África, diante da sua tarefa de aprender a voar nos abis-
mos em que Pangeia a jogara. Caminhava pela cidade de
Sousse a fim de apreender o que pudesse entre vielas e
avenidas da África mulçumana. Muito atenta aos detalhes
da cidade, se deparou com uma pequena placa informan-
do que ali, entre aquelas casas azuis e brancas, havia “Ba-
nho Turco”.
Impossível para aquela mulher oriunda da diáspora
africana não desejar entrar em um lugar que dizia: “No pe-
ríodo da tarde, a entrada é restrita às mulheres”. Não se
conteve e quis saber o que havia lá, onde os homens eram

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proibidos de entrar em um horário específico.


Ao entrar no banho turco, a primeira visão que Péro-
la Negra teve foi a de uma mulher seminua, sentada num
banco de madeira ao lado da recepção, penteando uma
criança que chorava em árabe. Naquele momento, os seus
olhos correram para o teto do ambiente para que não se
prendessem nos seios fartos e nus daquela senhora que
acabara de se banhar.
A recepcionista, que usava um hijab, passou a informar
todas as instruções em francês, em árabe e em inglês, nas
palavras possíveis de comercializar seu atendimento e de
como funcionava tudo ali. O local não tinha nada a ver com
o que o mundo ocidental forçosamente fala sobre o que há
no mundo. Ela estava em uma casa com adornos árabes,
onde as paredes estavam amareladas pela vida romana,
ambiente quente e úmido, e, para seu alívio, sem as ideias
etnocêntricas que distorcem a visão dos visitantes quanto
ao entendimento que têm sobre sujeira e desorganização.
As passagens eram estreitas, tudo estava muito molhado.
Ali era um lugar possível de sentir todos os cheiros dos
corpos e das essências que se uniam a eles. Tudo aquilo
permanecia escondido em uma neblina de vozes em vapor.
Uma neblina atrativa devido à curiosidade de querer saber
o que se tem atrás da fumaça de um cheiro que não se per-
cebe nas lojas de shopping center de padronizada chatice.
Pérola Negra estava por ali, nos caminhos dos cheiros.
O cheiro tinha o poder de atiçar a imaginação, os batimen-
tos cardíacos e deixava um gosto na boca que suscitava a
fome de amar. Enquanto se preenchia com os cheiros do
lugar e ainda na recepção, Pérola Negra notou que a crian-
ça chorava por alguma coisa, o que fez com que a mulher
que a penteava se levantasse, deixando seus seios avanta-
jados falarem por si só o quanto não se importavam com

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a presença de mulheres estrangeiras especulando sobre o


que acontecia naquele banho coletivo.
Conversa! Muito diálogo é o que tem por ali, deduziu
Pérola Negra ao ouvir tantas vozes misturadas. Provavel-
mente uma boa conversa, foi o que imaginou que faria
lá. Pagou 15,00 dinares, recebeu algumas essências e foi
orientada sobre o local onde deixar a roupa e em como ob-
ter água fervente e gelada. Pôs-se nua e descalça, caminhou
por um corredor estreito que ligava a recepção a outro am-
biente. Enquanto caminhava naquele corredor esfumaça-
do, no qual mal podia enxergar, alguém tocou suas mãos,
ajudando-a a caminhar no chão escorregadio e gorduroso.
O volume das vozes ficava cada vez mais intenso à me-
dida que Pérola Negra se aproximava das outras mulheres,
cujos nomes árabes ela mal sabia pronunciar. Reconheceu
como familiares aquelas mulheres de corpos diversos, úni-
cos, sem parâmetros midiáticos, com medidas, formatos,
acréscimos e ausências corporais daquilo que nunca veria
em outras terras.
Ainda meio atônita com a desenvoltura delas ao falar
nua umas com as outras quando se lavavam ou banhavam
as crianças e as idosas ou esfregavam as costas de quem
narrava os fatos da semana, Pérola Negra se deparou com
uma mulher negra, exuberante, com os cabelos enroladas
no topo da cabeça, estendendo-lhe a esponja. Ao receber a
esponja, a mulher lhe apresentou o dorso molhado, o qual
Pérola Negra passou a esfregar levemente enquanto a mu-
lher verbalizava palavras ainda indecifráveis àquela dias-
pórica mulher, que mal podia compreender as declarações
de amor em outro idioma.
Pérola Negra ainda tentava se acostumar com corpos
cobertos ao extremo perambulando pelas ruas com bur-
cas pretas e sem permissão de mostrarem os cabelos. Se

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deparar com aquela realidade nua, deixou-a mais confu-


sa. Em pleno mundo islâmico, sabia agora onde se encon-
travam todos os fios femininos de cabelos. Mas, para isso,
precisou atravessar uma neblina fina de cheiros interes-
santíssimos e dialogar em poucas palavras árabes com os
corpos em pele.
Aprender as primeiras palavras em árabe deixou Péro-
la Negra feliz, pois a fez imaginar os significados das vozes
femininas. Ainda que estivesse no desconforto do calor, en-
xergando mal com a fumaça e incomodada com o engordu-
ramento do chão na sola dos pés, sentia-se extremamen-
te satisfeita em ouvir qualquer palavra de uma daquelas
mulheres sobre qualquer coisa. Foi o local em que teve a
sensação de pertencimento por ter permissão para estar
ali, por reconhecer e ser reconhecida. Permissão essa que
nem todos os cidadãos considerados de fato, os homens,
teriam. Uma mulher que retorna séculos após, dessa vez
oriunda das terras estrangeiras das Américas, fora reco-
nhecida naquele espaço, fora acolhida, pois estava entre as
suas irmãs.
Dessa vez, Pérola Negra fez a passagem até Arìnnà Àjò,
mas não havia se dado conta de que esteve no entrelugar,
muito menos que a banhara. Ao terminar o banho, atraves-
sou novamente a neblina, passou pelo estreito corredor
até a recepção, recolhendo seus pertences e agradecendo
pelos serviços prestados. Abriu a porta e deparou-se com
a cidade aparente. Seguiu pelas ruas de Sousse, cheirosa e
sorridente. Pérola Negra sempre carregou os mapas tatua-
dos no abdômen, mas não foi sempre que os entendeu, e,
nos momentos mais difíceis de sua existência, usava medi-
cações sobre aquilo que a ensinaram se tratarem de man-
chas que coçavam com frequência.

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* * *
Revisitaram-se novamente andando pelo Bairro da Li-
berdade. Pérola Negra avistou Arìnnà Àjò varrendo a rua.
Tropeçou na vassoura, a gari estendeu as mãos e os calos
delas se reencontraram.
– Agradecida.
Foi o único diálogo e nada mais. Pérola Negra conti-
nuou andando e quando olhou para trás percebeu que, na
verdade, tropeçara no meio fio.
Revisitaram-se, a paulista gari que trabalhava em um
bairro japonês no Brasil e a empregada doméstica. Arìnnà
Àjò ficou triste por não ser reconhecida, mas guardou para
si suas feições de insatisfação.

* * *
Ministrando aula, Pérola Negra subitamente reencon-
trou Arìnnà Àjò entre alunos e alunas. Arìnnà Àjò levantou
as mãos e fez uma pergunta em iorubá. Pérola Negra não
respondeu, mas pediu a benção. Dessa vez, estava diante
da passagem dela quando ela fora professora universitá-
ria. Segundos depois, viu apenas seus alunos conversando
entre si.

* * *
Teve um pesadelo e abriu os olhos à noite. No escuro
do seu quarto, Pérola Negra ouviu um sussurro em árabe
nos seus ouvidos. Depois sentiu passando pelas suas cos-
tas a textura de cabelos crespos desenhando-a. No chão, a
burca. Ao lado da janela, uma garrafa com uma vela acesa.
Na penumbra da vela, reconheceu a voz de outrora. O peso
sobre si, a pressão dos calos na pele, o hijab que antes ha-
via vedado os olhos. Cobria o chão do quarto o cheiro das

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ervas que banharam os cabelos. Tudo aquilo a inebriava.


Os lábios grossos e macios acalentando nos espaços dos
arranhões causados às curvas do corpo. Pensou ser um so-
nho, mas saudosamente passou o dia com a lembrança de
um afeto longínquo.

* * *
Em uma consulta no hospital, um paciente deixou cair
um cartão. O paciente era um homem rastafári que se re-
cuperava de um processo cirúrgico. Pérola Negra arrumou
o jaleco ao devolver o cartão para ele, surpreendentemen-
te se deparou com um sorriso e com o pedido:
– Fique com ele!
Meses depois, Pérola Negra, a médica mais conceitua-
da do hospital, ligou para o dono daquele cartão, que, ao
atender o telefonema, se surpreendeu com o fato de ela
não reconhecê-lo depois de tantas vezes que se reviram. A
médica iniciou o diálogo perguntando:
– Você é real? Liguei para saber se esse número é real.
Não entendo porque o cartão não desaparece da minha
bolsa!
– Te reconheci, logo que vi.
– Não entendi.
– Não se preocupe. Não somos loucos. Eu também me
acostumei em rever suas vidas por aí... Quer que eu te
conte?
– Soube de você quando foi morta e comida pelos leões
do Anfiteatro onde hoje está a cidade de El Jem há uns 300
km da Avenida Bourguiba na capital onde, décadas depois,
você tomava tranquilamente seu chá após publicar textos
feministas.
– Tenho as lembranças de você moradora do assenta-
mento do MST no nordeste do Brasil.

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– Isso não pode estar acontecendo. Por que então te-


nho a sensação que você mente para mim?
– Porque você acha que está louca. E porque no meu
cartão consta que eu sou psiquiatra.
– Olha, esse telefonema não é real. Esse cartão nunca
existiu, assim como todas as visões estranhas que tive ao
longo do mês.
A ligação caiu. O telefone tocou novamente, mas Pérola
Negra não atendeu mais. Ela pegou o dinheiro para uma
bebida e saiu. Na porta do bar, estavam todos(as) à sua es-
pera: a escritora mulçumana sorrindo e chorando, a pro-
fessora com vários livros nas mãos, um leão esfomeado, a
gari com a vassoura arreada sobre os pés, o rastafári com
flores vermelhas nas mãos, a sem-terra, a amante árabe
consertando o hijab, a aluna estrangeira fazendo pergun-
tas. Olhou novamente ao redor, respirou fundo e observou
que não havia ninguém. Retrucou, então:
– Hoje eu vou beber sozinha! Me deixem!!!!
Quando se cai nos abismos entre as cidades, quem
sabe voar vai para onde quer, mas quem fica a cair, acaba
materializado(a) nas cidades aparentes, afastando-se dos
entrelugares. Isso ocorreu com Pérola Negra quando fora
lançada no abismo da Cidade do Pêndulo.
Arìnnà Àjò incessantemente tentou conectar Pérola
Negra ao seu próprio legado. No entanto, o contexto das
cidades aparentes era desumanizador, fazendo com que
Arìnnà Àjò não obtivesse êxito em explicar de diversas
maneiras a Pérola Negra que a sua identidade era maior
do que ela imaginava ser. Com a captura dos pais e a
morte deles em ambiente estrangeiro, foi impedido que
fosse acionado de maneira consciente em Pérola Negra
todo o legado de seu povo. Nem mesmo a língua materna
foi aprendida por ela.

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Novas identidades foram se forjando no corpo de Pé-


rola Negra, mas como uma roupa que não cabia nela, cau-
sando-lhe mal-estar existencial, fazendo-a viver em um
limbo ainda que em vida. Uma vida sem vida. Mal sabia ela
que as manchas que tanto coçavam eram as respostas que
precisava para ter vida plena. Estavam registradas, na sua
genética, as memórias da língua materna e as informações
sobre todas as suas forças. Mas ela apenas as acionava es-
poradicamente, de maneira inconsciente, imatura, trans-
formando sua riqueza em martírio, transformando-as em
câncer de pele, coceiras, micoses e outras enfermidades
inventadas.
Pérola Negra estava prisioneira das identidades forja-
das nas cidades aparentes. Tais identidades a faziam per-
der muita energia no seu percurso pelos abismos na Ci-
dade do Pêndulo. No entanto, ainda que demoradamente,
ainda com os contratempos dolorosos, todos e todas con-
fiavam que ela conseguiria. Mas cedo ou mais tarde, Pérola
Negra conseguiria cumprir sua trajetória pelos abismos
e se reencontrar. Quando isso acontecesse, as passagens
mais surpreendentes seriam conhecidas.

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HOMENSTRUADO

Amò Dúdú, à medida que caminhava nas geografias


aparentes a todas as cidades e todos os países desenha-
dos nos mapas, foi aprendendo não apenas a moldar-se no
barro que o compunha, mas também às possíveis identi-
dades existentes dessas cidades, com as quais tinha que
lidar com as consequências e diversidades de efeitos de
assumir essa ou aquela forma. Era um desafio para Amò
Dúdú porque, caso administrasse mal a sua capacidade
de transmutar-se, correria o risco de afastar-se dessa sua
habilidade herdada. Ele podia transmutar-se no que bem
quisesse, mas, caso se afastasse muito de sua matriz, de
suas raízes, de seu idioma, da própria identidade, daquilo
o que o faz ser quem é, do seu orgulho próprio, corria o ris-
co de esquecer-se de si e perder-se do seu legado ancestral
e assim ficar preso(a) nas identidades forjadas e impostas
pela cultura das cidades aparentes.
Aprendera sobre diversas identidades, mas o orgulho
mesmo era de ser o que era. As suas forças e a sua ira eram
voltadas para a defesa de poder ser quem é junto aos seus
e às suas. A vergonha que trouxesse seria para expor a fra-
queza por ter se afastado de si, bem como qualquer outra
emoção que surgisse à tona de seu peito, esquentando o
barro, era para se lembrar de si. As energias das emoções
lhe eram de extrema necessidade, pois fazia uso delas para
cozinhar o barro da pele.

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Às vezes, chamavam-no de homem, outras de mulher.


As palavras estrangeiras do Ocidente eram bastante limi-
tadas para compor as suas características, bem como para
verbalizar sobre sua sexualidade, uma vez que as dualida-
des são limites rasos para alguém com uma diversidade de
caminhos registrados nos genes. Era alguém com a possi-
bilidade de desmontar-se e remontar-se, um ser em movi-
mento sendo constantemente rotulado por conceitos que,
ao longo do tempo, precisou dominar.
Por vezes, refletia sobre qual palavra poderia descrever
melhor seu momento nessa ou naquela cultura. Pesquisa-
ra em quase todos os idiomas maneiras de se apresentar.
No entanto, o que dizer da idade de alguém que transita
no tempo? Para Amò Dúdú, além da linha do passado, da
linha do presente e da linha do futuro, havia também as
linhas laterais que se comunicam e formam algo próximo
a um rizoma. Esses pontos de intersecção, Amò Dúdú não
encontrava palavras nas línguas estrangeiras para retratá
-los. Bem como havia momentos em que o tempo não es-
tava. Ele seguia muito as linhas laterais do tempo quando
precisava aprender sobre si ou para consultar os seus e as
suas ancestrais, que bem entendiam de todos aqueles ca-
minhos percorridos.
Durante os trabalhos na construção da Cidade do Pên-
dulo, Amò Dúdú, enquanto carregava as pedras cósmicas
de um lado a outro, dialogava com os seus mais velhos,
viajantes que estavam de passagem na cidade. Perguntava
muito sobre que gênero ter, sobre o que seria mais ade-
quado ser e quando se revelar. Responderam-no com outra
pergunta:
– Por que perguntas tanto? Cuidado com as perguntas!
Mate Masie, o irmão mais obdiente de Omara Omnira,
pessoa nascida para ser livre, ouvindo as indagações de

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Amò Dúdú, sorria a cada equivoco dele. Enquanto Amò


Dúdú carregava as pedras cósmicas que os seus fortes bra-
ços conseguiam levantar, Omara Omnira soprava as pedras,
coletando delas seus registros temporais e colocando todo
o pó em um recipiente feito com as presas de um leopardo.
Omara Omnira colocou a presa pendurada no pescoço e
saiu caminhando até Amò Dúdú e lhe disse:
– Parente perguntador, se tua boca continuar assim,
um poço de dúvidas, vai brotar mais dúvidas ainda e você
se engasgará nelas. Parece até morador das cidades apa-
rentes! Suponho que sua criadora esteja a chorar de de-
cepção! Se você tem a capacidade de transportar-se pelo
tempo, seguindo todas as possíveis linhas de um rizoma
temporal, como não entendeu ainda que todas as linhas o
compõem?
Amò Dúdú olhou para Omara Omnira com o alívio de
quem volta para casa.
– Isso, meu parente, volte. O tempo é onde a vida está.
A unidade de tempo é mental, e você está para além disso.
Não deixe que as dúvidas acumuladas com as informações
que adquiriu nas cidades aparentes o afastem de seu pró-
prio tempo. Você vive o tempo onde ser homem ou mulher
é o que menos importa para se empenhar na lida com as
diversidades ou para desenvolver qualquer atividade que
seja.
– Essa é minha irmã Omara Omnira – anunciou Mate
Masie a todos e todas que ali trabalhavam em prol da cons-
trução, reunindo as pedras cósmicas.
– Ela irá concluir nossos trabalhos. Cada bloco desse
de pedra foi codificado e ela agora está reunindo as infor-
mações que ele traz, para então fazer a leitura dos estudos
que ela realizou sobre o local. Poderemos saber então o
que é possível erguer aqui.

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Amò Dúdú arriou a última pedra, posicionando-se à


frente de Omara Omnira que soprou por sua nuca, sacu-
dindo o barro preto do seu corpo, completando o dente de
leopardo. Após isso, Omara Omnira pôs-se de frente a Amò
Dúdú segurando suas mãos. Amò Dúdú sacudiu os ombros
para frente e para trás, sentindo a presença das mulheres
em suas veias.
Sangue na boca, nos pelos da barriga, nas pontas dos
dedos e na barba. O sangue de Omara Omnira subiu e des-
ceu as artérias de Amò Dúdú. Aquele que um dia se enten-
dera homem sucumbiu. Os seios brotaram-lhe nas mãos e
surgiram mais lábios no corpo para contar outras histó-
rias.
A vida ardia, as contrações do ventre eram compassa-
das com as do próprio coração. Os dentes afiaram-se ras-
gando parte dos lábios, seu nariz farejou os hormônios,
salivando, engasgando com o próprio pensamento, redes-
cobrindo o cheiro da fala, da barra da saia, da calça, dos
esmaltes nas unhas, dos barbeadores, enxergando a umi-
dade, engolindo as próprias regras. Canibal de si, devorou
cabelos barba.
Mal se deu conta da transitoriedade, tão seduzido fez
a passagem. Ao abrir os olhos, o desespero. Outro gênero,
outro sexo compulsoriamente lhe foi atribuído.
Então Omara Omnira trançou os cabelos daquela mu-
lher que ali brotou no lugar de um homem tão bem amado
a ponto de se perder. Amò Dúdú estranhou a vagina entre
as pernas, sentiu o caminhar mais leve e as coxas umedeci-
das. Os cabelos erguiam-se pela cabeça, pelas laterais e pe-
los ombros fazendo uma onda de calor pela nuca. Tentou
gritar, mas a voz assim sutil mal representou seu espanto.
Arranhou-se com as próprias unhas. Os seios não ca-
biam na túnica e os sapatos folgaram. O ventre despertou a

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dor e a mente despertou o medo do olhar dos homens das


cidades aparentes sobre aquele novo corpo que passou a
existir repentinamente e repetidamente. Engravidou-se!
Tremeu ao pensar sobre as dores do parir! Pensou que
perderia os títulos, o prestígio, as habilidades e imaginara
que perderia também seu valor! Triste e choramingando,
implorou que os seios não fossem doloridos, que o ventre
não inchasse tanto e que a TPM não lhe tirasse a vida.
Perplexa com a mulher diante de si rogando-lhe o retor-
no ao antigo corpo, Omara Omnira aproximou-se e disse:
– As perguntas que você lançou, apenas a mulher que
se tornou poderá responder. A partir de agora, terá to-
das as resposta. Na minha presença, sempre será mulher.
Acostume-se.
– Me chamo Omara Omnira, nasci livre, sou engenheira,
geóloga. Estudo as pedras e pergunto a elas o que elas po-
dem ser. Eu perguntei ao barro do seu corpo o que ele que-
ria ser. E aí está. Acho muito importante essa habilidade
de transformar-se, transmutar-se, de ser uma diversidade
de coisas. Logo que te conheci, Amò Dúdú, fiquei admira-
da contigo e perplexa com sua insistência em ser homem.
Ganhei meu nome para lembrar de que sou livre, inclusive
livre das prisões das dúvidas ou de ter que escolher ser
isso ou aquilo.
Omara Omnira tocou-lhe o dorso e em seguida a nuca.
Lambeu as lágrimas de Amò Dúdú, as dores e amoleceu-lhe
o corpo. Amò Dúdú mal podia continuar a reclamar, pois a
fala contornou-se em suspiros. Os seios doloridos lhe de-
ram prazer, o ventre dilatando-se abrigou outros corpos e
outros mundos, os quadris tornaram-se valorosos para si
mesma, pois quanto maiores mais mundos sustentariam.
Em seus braços, estavam tatuadas as ordens dos planetas
redondos como seu ventre.

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Omara Omnira suspirou nos ouvidos de Amò Dúdú:


– Vamos, querida, deve agradecer. Vamos, quero que
participe desse meu diálogo com as pedras. Ouça, elas es-
tão aqui antes de nós e têm muito a nos dizer. Sopre tuas
mãos.
Ao soprar as próprias mãos, o barro preto soltou-se
formando uma fumaça que passou a correr com o vento
por entre as pedras. Enquanto isso, Omara Omnira der-
ramou a mistura contida no dente de leopardo em uma
grande cabaça com água. A água começou a borbulhar e,
aos pouco, formar uma imagem de um lugar esplendoroso.
Mate Masie emocionou-se ao ver a magnitude do lugar de-
senhado na água.
Amò Dúdú, diante da perplexidade da imagem, per-
guntou:
– Do que se trata, Omara Omnira? O que as pedras di-
zem sobre esse lugar?
– Estamos diante de Ilé Èkó Gíga. Bem imaginei, dian-
te de tanta informação que essas pedras possuem. Tivemos
bastante trabalho para localizar cada pedra e reuni-las aqui.
– Veja, amada Amò Dúdú, é assim que se sopra.
Omara Omnira soprou os cabelos de Amò Dúdú com
tamanha força que cada fio que apontava para uma direção
do mundo derramou barro preto em tudo. Junto ao barro,
Omara Omnira derramou o conteúdo da cabaça, formando
uma lama capaz de colar cada pedra amontoada.
Amò Dúdú subiu no amontoado de pedras cósmicas e
soprou na direção de Omara Omnira, que ouviu a orienta-
ção das pedras para que posicionasse a pedra fundadora
onde seria a entrada do Ilé Èkó Gíga. Mate Masie, pescador
dos mares dos entrelugares, trazia consigo as pedras fun-
dadoras, as pérolas negras. Sacou uma pedra e entregou à
mulher mais velha da comunidade de viajantes. Obí Gbán-

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ja, a mais antiga das passageiras da Cidade do Pêndulo, re-


cebeu a pérola negra, aquela pequenina semente.
Obí Gbánja, uma linda anciã nascida na sombra de uma
árvore de noz-de-cola, carregava a tranquilidade da sa-
bedoria nos olhos. Caminhava com a paz necessária para
sentir o mundo entrelaçando-a enquanto se movimentava.
Ela é o próprio cosmo, linda, poderosa e graciosa. Teve paz
na vida quando deixou de se dividir entre isso ou aquilo e
percebeu que entre ela e o cosmo não havia distanciamen-
to algum. Tornou-se assim anciã.
Obí Gbánja é quem dá início a todas as construções na
Cidade do Pêndulo. Ela é a própria semente. Suas energias
potencializam qualquer semente e impulsionam tudo que
quer nascer.
Graciosamente com o olhar, Obí Gbánja pediu licença
aos que se encontravam aos redores para desenrolar o tur-
bante. Despregou o feixe ao lado da face, deixando escapar
todo o amor e entusiasmo que edifica sua existência. De
dentro dos enlaces estampados, saíram os cabelos e com
eles todas as outras mulheres que habitam seu manto. E,
num coro de vozes, o convite aconteceu:
– Eu me vejo em você, na sua cor e em cada fio crespo
que fura o ar. Fora nosso Ilé e agora será o Ilé de todos e
todas.
Diante de um eclipse onde dois astros coabitam o mes-
mo mundo, os dias e as noites ficaram à mercê do que elas
decidissem. As estrelas percorreram os olhos de umas e
os raios do sol se derramaram entre as pernas de outras.
Ao aceitar o convite, Obí Gbánja se deparou com todos os
mistérios.
Omara Omnira saudou as diversas mulheres que se fi-
zeram presentes, oriundas do turbante de Obí Gbánja, de-
clarando-lhes:

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– Sejam todas bem-vindas. E antes de ir, levem presen-


tes. Todas e todos viajantes dessa cidade guardaram para
momentos como esse as mais lindas memórias do univer-
so, encontradas ao longo das suas caminhadas. Escolham
as que mais vos agradarem e nos deixarão muitíssimo feli-
zes pelo reconhecimento dos nossos esforços.
Diante do mundo desvelado e de todos os presentes
deixados pelos e pelas viajantes, Obí Gbánja deitou-se so-
bre o tecido que acolhe as respostas da vida disponibili-
zando o útero, todas as suas entradas e saída, todas as suas
bocas para saborear e consumir os presentes. Sob o véu,
o sangue, o suor e a saliva. Sobre a pele, o som, a efeme-
ridade e a vida. Sobre a boca de umas, todos os lábios das
outras. Dentro da pele de umas, os corpos das outras. Dos
pés às mãos, pele e tecido, tudo um manto só.
Já lânguida e empoderada com o trabalho que cumpri-
ria, Obí Gbánja engoliu a pérola pescada por Mate Masie.
As mulheres recolheram os presentes e os usaram para
rearrumar o mundo no manto. Entrelaçando-se umas nas
outras, disseram a Obí Gbánja:
– Sua pele fora nosso véu e foi assim que algumas mu-
lheres renasceram. E esse manto sustentará esse Ilé Èkó
Gíga.
Obí Gbánja recebeu o manto de volta e o lançou sobre
as pedras cósmicas que ofuscavam os olhares de tanto
raios coloridos que promoviam ao se rearrumarem. Elas
absolveram o manto e formaram um portal pelo qual Obí
Gbánja adentrou, plantando ao centro a pérola junto ao
seu próprio corpo. De dentro de Obí Gbánja, brotaram os
alicerces do Ilé Èkó Gíga, a casa do saber, onde os e as via-
jantes, passantes da Cidade do Pêndulo, compartilhariam
seu legado de experiências cósmicas entre os diversos ca-
minhos, fossem eles aparentes ou não aparentes.

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INTERSTÍCIOS

Precisou dizer para si mesma que ela era o amor de sua


vida. Então, decidiu chamá-la para dançar. Diva da Noite
admirava a sua barba tão bem feita e seus traços macios
pelo pó compacto da maquiagem que comprou para ela,
sorrindo para depois elogia-la. Quantas noites, depilou
suas penas sem ao menos dizer que a amava! Quantas e
quantas vezes, removeu sua maquiagem, descobrindo ou-
tras identidades nela! Seus saltos, os dela, seus brincos, os
brincos dela. E assim trabalhavam naquela pista.
Seu itinerário mais rasgado, meio triste, um fardo. Mas,
às cinco da manhã, elas se encontravam no mesmo desfe-
cho, na padaria do Campo Grande para um café com pão,
com o dinheiro dos maridos bem casados, mas malsucedi-
dos no amor. Avenida 7 de Setembro, Largo do 2 de Julho,
Beco dos Artistas, Ladeira da Montanha e seus sorrisos e
cuidados com quem amava, para quem corria todas as ma-
nhãs. As duas tão exaustas.
Todo aquele amor era retribuído. Amò Dúdúa várias
vezes aplicara o megahair de sua amada, fazia as suas
unhas e as dela. Quantas vezes a salvou de morrer nas es-
quinas quando fugia dos perseguidores de pretas trans,
travestis e quem mais precisasse das esquinas para sobre-
viver?! Quantos socos deu por ela nos maus pagadores?!
Naqueles momentos, Diva da Noite a desconhecia e reco-
nhecia seu homem!

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margarete carvalho

Todas as manhãs, às cinco, ela descia para a padaria,


com a peruca nas mãos, já de bermudão, sem maquiagem,
falando grosso, gingando e cumprimentando os morado-
res de rua. Às cinco da tarde, a encontrava para fazer a bar-
ba, as sobrancelhas, depilar pernas, peito, costas e todos
aqueles pelos que perturbavam sua vida. Mas não adian-
tava, de terno ou vestido, Amò Dúdú era a preta mais linda
da noite.
Naquela data especial, Diva da Noite não foi trabalhar,
tomou fôlego e comprou para ambas o café da manhã de
rainhas, com flores e um cartão perfumado, nele escrito:

“Me dá uma chance? Sei que você queria que eu tivesse


nascido menino, mas prometo te fazer feliz. Ser sua mu-
lher, ser seu homem, ou qualquer outra coisa que te deixe
assim, tão diva! Amò Dúdú, você é linda!!! É minha família,
meus melhores caminhos nessa vida.”.

Aguardava-a pacientemente, quando veio descendo a


rua um policial correndo após alguns tiros. Saiu da padaria
desnorteada, olhou na direção dos cachorros que latiam
sem parar. Alguém veio afagá-la, dizendo para que não fos-
se até lá.
O policial, ainda com mancha de sangue na roupa, per-
guntou:
– Senhora, reconhece aquele corpo? Na identidade aqui
diz, Pedro dos Santos de Jesus. A senhora é o que dele?
Mais uma vez em sua vida, Diva da Noite engoliu as pa-
lavras, pensando em gritar:
– O nome dela é Amò Dúdú!
Diva da Noite era ex-moradora de rua, posta para fora
de casa aos 15 anos quando revelou a família que era lésbi-
ca. Por diversas vezes, fora perseguida por alcoólatras, ca-

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alma cativa

pitães do mato, pastores, seguranças de night club, feiran-


tes ranzinzas e turistas europeus. Conheceu Amò Dúdú em
uma das suas corridas sendo perseguida, descendo pela
Rua Gamboa de Cima, quando cinco corriam atrás dela.
Viu-se acuada entre os homens e o amontoado de lixo.
Pensou que nem que tivesse que engolir todo o lixo fi-
caria ali a aguardar pelos tapas na cara e socos no estôma-
go. Saltou as ratazanas, esmagou as baratas, sujou-se de
chorume. Naquela noite na qual se conheceram, subiu no
morro de lixo, com a dificuldade de quem está em areia
movediça. Olhou para cima e encontrou a mão preta de
Amò Dúdú auxiliando-a a completar a subida até o muro
no qual estava apoiado todo o morro de lixo.
– Sobe, viada! Sobe rápido, mas sem quebrar minha
unha! Venha, minha pretinha, que eu te ajudo a pular!!!!
Pularam em um voo para a vida e depois correram sem
olhar para trás. Amò Dúdú corria, numa mão segurando a
mão de Diva da Noite, na outra o scarpin vermelho. A peru-
ca loira comprida de Amò Dúdú caiu pelo caminho quando
ela virou o rosto e percebeu que os cinco homens de cabe-
ças raspadas estavam mais próximos que imaginava.
De emboscada, mais dois lgbtfóbicos se impuseram à
frente de Amò Dúdú e de Diva da Noite, fazendo-as parar.
Atrás, os outros cincos já a dois metros.
Um deles puxou uma faca. Outro segurava uma pedra
e os demais apertavam seus órgãos sexuais. Amò Dúdú,
travestida, e Diva da Noite, com as vestes rasgadas dos
arranhões, estavam de costas uma para outra, rodando e
contanto o número de homens ao redor. Vieram, à mente
de Amò Dúdú, as lembranças dos caminhos da Medina de
Tunis, onde costumava comprar seda, tamancos e túnicas.
Em Medina, havia uma mesquita e lá a passagem para vá-
rios lugares de Magreb. Apenas conseguia fazer aquele ca-

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minho quando travestida adequadamente. Naquela fuga, a


mulher que se tornou seria impedida de adentrar a mes-
quita.
Corriam por vielas e becos, perseguidas porque eram
mulheres pelas suas aparências e o que elas poderiam
informar de suas sexualidades. Amò Dúdú pensou: assim
como conhecera caminhos que só conseguira fazer porque
tinha aparência reconhecida como masculina, haveria de
haver caminhos apenas feitos por serem transexuais, tra-
vestis e lésbicas, caso fosse possível aquela lógica.
Amò Dúdú ajeitou o vestido, calçou o scarpin, puxou da
bolsinha um batom, passou nos lábios, olhando firmemen-
te para os homens em fúria homofóbica. Diva da Noite as-
sistia Amò Dúdú atônita, imaginando que ela se arrumara
para morrer bonita. Amò Dúdú esbravejou:
– Viada, componha seu black, arrume seu cinto. Você é
tudo de bom nesse mundo, nunca esqueça disso!
Os homens riram e o que carregava um porrete rosnou:
– Retoca a maquiagem pra apanhar, sua desgraça!
Amò Dúdú soprou as mãos e lançou barro nos homens.
O barro contornou cada detalhe dos seus corpos. Eles en-
gasgavam com o pó e mal enxergavam com a penumbra
formada. Amò Dúdú evocou as mulheres que coabitavam
aqueles corpos masculinos. As mulheres brotavam dos cor-
pos, suspirando de alívio por se libertarem da rigidez dos
pensamentos daqueles homens alienados pela violência.
– Irmãs, preciso da ajuda de vocês. Olhem o que está
acontecendo! Esses homens não sabem como ser livres de
si mesmo. E descontam sua raiva em nós. Os séculos pas-
sam, mas sempre inventam um motivo, uma circunstância
para nos perseguir.
As mulheres olharam para os corpos nos quais habi-
tavam com tamanha decepção. Desejavam ser mulheres,

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mas a rigidez do pensamento sobre os próprios corpos


não permitia tamanha liberdade.
– O que devemos fazer, querida Amò Dúdú? Assim que
voltarmos, ficaremos presas e sufocadas nessas monta-
nhas de músculos e nesses cérebros retrógados que não
nos servem. A energia retrógrada mal nos deixa respirar.
As mulheres faziam diversas perguntas para Amò
Dúdú, que não parava de olhar preocupadamente para
Diva da Noite. Diva da Noite estava estatelada acreditando
estar tendo alguma alucinação devido ao cigarro constan-
te de maconha que consumia pela manhã e à cocaína que
cheirava quando conseguia comprar nas bocas de fumo
próximas à escola municipal.
– Fumei demais, amiga, nas últimas semanas! Está tudo
congelado ao meu redor. E eu vejo mulheres lindas brota-
rem por todos os lados. Viada, por favor, se você estiver
realmente aqui comigo, me proteja. Se eu estiver tendo um
pesadelo, que eu acorde logo. E caso eu tenha surtado, diga
aos orixás que eu não acho nada disso justo!
– Minha querida, é hora de saber. Sou sua protetora.
Cuido de ti todas as vezes que você viaja para as cidades
aparentes. As energias das cidades aparentes não permi-
tem que você se lembre de que é uma preta poderosa. Sai-
ba que sempre te acompanho com muita honra. Brigo para
que a sua memória seja preservada. É muito arriscado ex-
por, por essas regiões, a sua sabedoria. Você corre o risco
de ser capturada.
– Você cheirou também agora pela manhã?
– Só se for muito pó preto!!! Eu sou de barro, meu nome
é Amò Dúdú, querida!!! E você é minha rainha!
– Quem são essas mulheres brotando desses homens?
– São cativas nesses corpos e nessas mentes. Elas não
conseguem emergir e ganhar vida porque as mentes des-

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ses homens as aprisionam no inconsciente. O consciente


deles foi forjado para provar soberania através da masculi-
nidade, então eles aprisionam qualquer pulso de vida que
lhes impeça de serem reconhecidos como másculos.
As mulheres olhavam atentamente para os seus corpos
paralisados. Questionavam-se sobre a dificuldade de se li-
bertarem das amarras mentais de seus corpos.
O alívio momentâneo fez com que dialogassem. Uma
delas interpelou:
– Amò Dúdú, querida, não imaginava o quanto essa fi-
xação desnorteada sobre os órgãos sexuais poderia atra-
palhar todo nosso progresso no mundo. Quando viajei
para aqui, não tinha desejo algum em passar meu tempo
caçando homossexuais, travestis ou batendo em mulheres.
Eu apenas estava de passagem. A minha meta é chegar até
a Cidade Mediterrânea, reencontrar as projetistas de pro-
dutos orgânicos. Sabia que fui eu quem inventou a jaca?
Formato, cheiro, gosto e forma de reprodução?
– Sério? Eu só tenho que te agradecer! Eu fico enlou-
quecida saboreando cada bago de jaca!!!! É uma delícia!!!
– Sabe por que aquele visgo?
– Conta!!!
– Para proporcionar energia de aderência do corpo ao
chão quando chegar de uma cidade cósmica para uma apa-
rente. A nossa tendência é não ficar aqui.
– Mas estou aqui, presa. Meu desejo é inventar coisas
e não chatear pessoas. Mas não entendo, que energias são
essas? O que há com esse mundo?
– Todas nós queremos entender. Está complicado ali-
nhar o racional, o emocional, o consciente, o inconsciente,
o legado genético e energético com todo o cosmo sendo
perseguido pelas energias ideológicas de supremacia de
um sobre o outro. Estamos numa luta infindável, tentando

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alinhar essas energias e assim conseguir realmente fazer a


vida brotar e crescer.
– Talvez essa deva ser a nossa nova descoberta. Terá
que adiar as demais.
– Muito trabalhoso isso! São séculos de intervenções
irresponsáveis.
– Mas, olha só!! Não acredito que tenha algum medo
diante do trabalho para lapidar o saber!!! Aceite o desafio,
querida, que por sinal é de todas nós! Sabe quantas vezes
me estraçalharam? Isso dói muito. Sem falar que levo mui-
to tempo para remontar minhas estruturas. Eu sinto tudo!
Sangro, fico ofegante, morro, atravesso martírios. No en-
tanto, saber da minha capacidade de me remontar me pro-
porciona esperança. A cada remontagem, eu revivo a me-
mória de minha criadora, dialogo com ela e ela me orienta.
– Vamos lá!!!! O que faremos???
– Por favor, Amò Dúdú, nos leve para a Cidade Mediter-
rânea!
– Não posso.
– Mas Diva da Noite pode.
– Ela não sabe disso.
– Um simples pensamento dela e já estaríamos lá.
– Acontece que a memória dela é preservada nesses
ambientes das cidades aparentes. As energias dela não
podem circular por aqui, desestruturariam muita coisa e
seriam cooptadas como já foram para atender aos ideais
de fascistas.
– Como pode a criadora dos caminhos entre os mundos
ficar aqui para ser perseguida por sua cor, por sua sexuali-
dade ou por causa do seu cabelo?
– Ora, do mesmo modo que vocês, as projetistas das
tecnologias orgânicas estão!!!
– Difícil!! Quanto trabalho!!!

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– Vejam, queridas, vou pular aquele outro muro ali à


frente com Diva da Noite, que é nossa querida Pérola Ne-
gra. Nos esperem andar cinco minutos e só depois se reor-
ganizem em seus corpos. Podem fazer isso por nós?
– Obviamente!
– Grata!
– Nós é que agradecemos o descanso que nos propor-
cionou. Estou energizada com o pó de barro preto que so-
prou em nós.
– Acredito que isso as ajudará temporariamente para
ter mais flexibilidade nos pensamentos. Aproveitem e to-
mem uma ação que proporcione aos seus corpos reprogra-
marem as ideias! Quem sabe algumas leituras desmistifi-
cadoras? Ou atitudes, como a de cuidar de alguém ou, até
mesmo, a de experimentar ceder aos desejos sem sentir
culpa. Sei o quanto o aprisionamento é um martírio, mas
sei também que juntas vamos encontrar um meio de liber-
tar todas e todos. Confio na contribuição que nos darão.
Reflitam aí, enquanto fujo com Diva da Noite!!!
E assim Amò Dúdú segurou a mão de Diva da Noite
para não mais deixá-la. A amizade perdurou e tornaram-
se uma família. Como sempre atônita com o que via, Diva
da Noite, apesar de entender muito pouco sobre as expe-
riências com Amò Dúdú, tinha confiança de que ela era
realmente sua protetora ou seu protetor como gostava de
pensar.
No entanto, naquele dia em que Diva da Noite prepa-
rava as flores para enfeitar a manhã de Amò Dúdú, ela se
deparou com o corpo morto da sua companheira de estra-
da, estraçalhado a tiros de metralhadora. Tiros no rosto
desconfigurando-a, tiros nos órgão sexuais, e tiros que di-
laceraram os seios grandes que tinha. Diva da Noite estava
extremamente abatida, com o coração queimando em dor

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e com seus olhos revirando de indignação diante da usur-


pação daquela vida.
No dia seguinte, não queria acordar e ter que lembrar
que mataram sua família. A foto do corpo no chão foi es-
tampada nas páginas policiais dos jornais, informando que
houve troca de tiros com a polícia e que Pedro dos Santos
de Jesus era envolvido com o tráfico de drogas da região.
Diva da Noite chorou semanas seguidas sem suportar
ver as fotos dos jornais em cada esquina, as imagens nas TVs
das vitrines, as imagens circulando nos aplicativos das re-
des sociais, formando um caminho de imagens degradantes,
machucando seu coração a cada esquina. Vivia mergulhada
nas próprias lembranças para não surtar nas memórias for-
jadas pela mídia. Subia e descia as ruas, pensando que cada
amanhecer foi na vida de ambas um pobre desfecho.
Muito querida na região, o assassinato de Amò Dúdú
mudou o retrato urbano. O que antes era movimento, bri-
gas e risadas transformou-se na presença de uma moça
que chorou quando deixou a esquina no taxi e de uma
senhora que abaixou o olhar quando a porta do elevador
fechou-se, no guarda-roupa que se fez vazio, na xícara de
café que caiu no chão e no zíper fechando a mortalha.
Diva da Noite passou a viver com as memórias. Fazia
os caminhos e neles enxergava apenas o que queria. Via
Amò Dúdú em todos os lugares. Tudo dela era admirado,
os seios, a testosterona da voz, as curvas guiando qualquer
possibilidade de ser o que preferisse. Nem homem, nem
mulher, mas o que pudesse emergir na vida.
Foi a companhia das mulheres mais interessantes. Elas
a queriam pelo batom atraente que usava, pelos músculos
negros, e algumas simplesmente admiravam a imagem da
barba por fazer caminhando pela rua de saia curta, enro-
lando os longos dreads no turbante.

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Lindo e linda era esse amor de pessoa, que as mulheres


tanto suspiravam.
– Isso é uma bixona – insultavam os conservadores.
– Isso é um sapatão – insultavam as recatadas.
– Vocês não podem comigo, seu vocabulário é limitado.
Respondia ao passar desfilando.
Fora assim que Diva da Noite havia conhecido a pessoa
que um dia resolveu pedir em casamento. Amò Dúdú, na-
quela passagem no tempo, se autorreferia pelo pronome
ela, pois gostava de agir nesse gênero. Sempre fez mistério
sobre o que seu nascimento trouxe. A única implicação era
que os homens, seus amigos, gostavam de seus seios gran-
des sempre soltos em qualquer roupa.
Encontravam-se sempre nas esquinas pelas madruga-
das. Depois que se encantaram em afeto uma com a outra,
se acharam e nunca mais se perderam. Nos primeiros diá-
logos após o trabalho noturno, os olhos observavam o ba-
tom borrado, a barba machucando o cheiro no pescoço, a
gravata de diva, os sapatos números 39 e 44 de ambas nas
mãos dela descendo a rua, sonolenta, vendo o dia amanhe-
cer e começar tudo novamente.
– Feliz em te rever!
– Eu também.
– Adoraria ter essa sua liberdade!
– De que?
– De não usar sutiã!
– É só tirar!
– Ah! Os seus são pequenos! Pode se dar ao luxo! Olha
os meus, nasceram avantajados. Tenho que contê-los aqui
para não fugirem nas mãos de alguém!
Desciam a rua rindo. Essas eram as lembranças que
buscava para não se fixar nas imagens dos jornais e do
asfalto.

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No chão onde Amò Dúdú teve a vida ceifada, as amigas


escreveram:

Um dia fora o sol e ela a lua,


o elefante e o mosquito,
a estrada e a carroça,
o vestido e os seios.

Fora mar e ela rio,


a cruz e a espada,
a cria e a criatura,
a boca e a língua.

Um dia fora ele e ela sempre ela,


a bala e a agulha,
o pé e a mão
a nuvem e a chuva.

A palavra, a caneta... Mas e o papel? O papel caiu sobre


as palavras e nele se narrou a história triste, violentamen-
te atravessada, interrompida, impossibilitada. Aqui jaz o
amor.

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OURO PRETO

Três dias sem comer por punição, acusado de esconder


ouro nos cabelos crespos. Teve parte da cabeça escalpelada
em plena praça pública. O pelourinho ficava em frente da
cruz que, por sua vez, era em frente à igreja. Um dia e uma
noite pendurado, olhando os cristãos fiéis tementes a Deus
e ao Diabo passarem vestidos pomposamente para a missa,
e enfim ouvir palavras sobre caridade e amor ao próximo.
Enquanto olhava todos aqueles trajes de extrema elegân-
cia e nobreza absurda, as feridas ardiam muito inflamadas,
minando bastante, o que fazia grudar nelas várias espécies
de mosquitos. Com os olhos inchados e a cabeça latejando
de dor, não conseguiu nem ao menos desmaiar para assim
se retirar momentaneamente daquela gastura de vida.
Seu couro cabeludo fora sacudido e batido que nem
tapete, derramando pó, muito ouro em pó. Os capatazes,
a mando dos enriquecidos, mostraram assim qual seria o
desfecho para quem ousasse roubar qualquer coisa dos si-
nhozinhos e das sinhazinhas que, na verdade, eram quem
se apropriava de tudo que viam em qualquer lugar que
chegassem.
O padre reuniu suas “ovelhas”, os fiéis, para que entras-
sem na igreja, mas, antes de adentrar o local, aproximou-se
do pelourinho. Quem o via fazer o sinal da cruz ao redor do
castigado imaginava quão tamanha era a sua compaixão,
ainda que diante de um “Barrabás”.

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A vossa santidade abaixou o olhar e sussurrou:


– Manoel José Imundo dos Oliveiras!!!! Esse é teu nome,
não é??? Quase tão extenso quanto o de um nobre portu-
guês, senão fosse pela partícula “de” indicando os seus
donos e a sua descrição imunda. Preto ladrão, ingrato.
Demos-lhe compreensão e misericórdia divina, te civiliza-
mos, permitimos que comesse da nossa comida. E é assim
que trata teus donos? Até os cachorros sabem como tratar
seus donos para continuar sobrevivendo.
– Deixa eu em paz!
– Presta atenção no que vou te dizer, seu fariseu, here-
ge, Barrabás. Se tu abrires essa tua boca fedida e falares
qualquer coisa a meu respeito ou sobre as encomendas da
igreja, prometo que, caso não morra logo, tratarei de ma-
tar-te eu mesmo.
Manoel José mal podia enxergar, pois os seus olhos
estavam compulsoriamente cerrados pelos inchaços cau-
sados pelos golpes de pau dados em sua face. Respirava
pouco, mas o suficiente para sentir os odores da batina
próximos a ele. Tomou fôlego para verbalizar:
– Não se preocupa com eu. Só terei tempo de falar sobre
vossa santidade, sobre vosmecê, seu padre, apenas com o
Satanás, aquele de quem tanto fala, e a quem nos compara
nossa pele preta, principalmente se nós veste vermelho.
O padre arregalou os olhos, pois sabia que seria isso
mesmo que aconteceria, ficando aflito ao pensar em como
evitar essa delação. Teve vontade de chutar a cabeça escal-
pelada daquele que ele chamava de preto, mas imaginou
que se sujaria, não apenas sua batina que mal conseguia
lavar diariamente como também sua fé alva, tão branca
quanto ele.
Dias atrás aconteceu que Manoel José, desastrosa-
mente ao carregar os santos de pau oco na procissão da

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Semana Santa, deixou cair parte do ouro em pó em sua


cabeça. O devoto do senhor Jesus Cristo mal percebera
que o ouro em pó caía por uma ínfima fenda que se abria
com o movimento do caminhar pelas ruas de pedras co-
ladas com óleo de baleia. Enquanto rezava para Cristo
sonhando em um dia beber água a hora que bem qui-
sesse, parte do quinto sonegado derramava pelos seus
cabelos. A vida fora mais uma vez perversa com Manoel
José. Mais uma vez, fora pego de surpresa, arrebatado,
raptado. Mais uma vez, seu destino de prosperidade foi
atravessado pelas configurações mentais da época de
extrema supremacia branca. No caminho de volta para
a igreja, já quando escurecia, de longe, era possível per-
ceber a lua no breu da vila e os cabelos de Manoel José,
que também brilhavam como quem carregava uma coroa
de rei.
Apressadamente os religiosos guardaram o santo do
pau oco a fim de consertá-lo e jogaram Manoel José no
meio da vila, apontando-o, açoitando-o e esbravejando,
chamando-o de ladrão de dízimo. Prenderam-no no pelou-
rinho. E logo pela manhã, antes mesmo de começar a mis-
sa, fora julgado e condenado.
Sua pena: ser escalpelado, açoitado e espancado a pau
e pedra para pagar pelas suas atitudes, atitudes que supos-
tamente havia cometido, e por seus erros, erros que lhe
imputaram os corrompidos. Manoel José passou um dia e
uma noite pendurado no pelourinho. De lá, sentia o odor
das batinas, soprando verdades na sua cabeça escalpelada,
que ardia por causa das palavras das santidades que por
ali passavam a caminho da igreja, sensibilizados em enco-
mendarem a alma dele a Satanás.
A reza foi tamanha que, à noite, Satanás veio lhe dizer
para não se preocupar tanto, pois uma coisa boa aconte-

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ceria quando morresse. Na pior das hipóteses sobre o seu


destino, no mínimo para a sorte dele, não havia motivos
para continuar sentindo os odores oriundos das batinas
arrastando o pó da rua.
No sol de meio-dia, fora arrastado sem água e sem co-
mida para a senzala, ficando nesse estado por três dias.
Estava amarrado, dolorido, com fome, com sede, todo in-
flamado, inchado, ardendo, e tinha bichos comendo-o vivo.
Eram pequenas larvas que já se acumulavam sobre suas
feridas abertas e reabertas.
No terceiro dia, foi tratado como uma peça inutilizável.
Foi jogado no pasto para que terminasse de morrer sen-
do comido pelos urubus. Ninguém fazia questão de gastar
uma bala sequer para abreviar o sofrimento, adiantando-
lhe a morte. Ao ser jogado no pasto, sentiu um pequeno
alívio por poder estirar o corpo inteiro no chão sem as li-
mitações das correntes segurando-o.
O senhor, dono de uma das minas da região, gritou:
– Enterrem-no antes que vire carniça e deixe tudo a fe-
der!!!
– Só estou esperando que morra para enterrar – esbra-
vejou o capataz, assoberbado de tarefas sanguinárias e en-
xugando o suor da testa.
O senhor branco rosnou, retirou o chapéu, rearrumou
as roupas pomposas compradas na Europa, que vestia na-
quele horário para ir à missa, e disse ao capataz:
– Enterre-o assim mesmo e nos poupe de começar a
sentir o fedor do cadáver.
– Logo, logo. Assim que eu recolher todos para a senza-
la. Retrucou o mestiço serviçal.
Manoel José com meio palmo de olho aberto sentiu a
cabeça latejar com o calor do sol. Pensou: “Estou vendo a
luz!!!! Como posso estar vendo a luz se todos já me enco-

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mendaram ao inferno? Que decepção, como quis delatar


aquele padre!!”.
Manoel José levantou-se a fim de seguir a luz e, na
curiosidade de saber como era o tal paraíso de que tanto
os padres narravam, tentou apurar as vistas. Ao conseguir
perceber com um pouco mais de nitidez as imagens, viu
assim as ruas da cidade de Mucugê. Percebeu que ainda
estava vivo e que o capataz iria enterrá-lo vivo se não cor-
resse para longe.
Olhou para todos os cantos, analisou as saídas, sentiu
as ruas livres e começou a traçar mentalmente os cami-
nhos. Tentou respirar para adquirir força, tentou esquecer
temporariamente cada dor latejante que partia de cada
canto do seu corpo. Rezou o que aprendera desde crian-
ça com os padres, sem muita esperança que seria ajudado
por um Deus branco. Rezou assim mesmo, pois era o Deus
que conhecia, e rogou-lhe forças para correr. Aspirou to-
das as energias possíveis para conseguir se manter de pé.
Deu o primeiro passo e, com muita dificuldade, o segundo.
Sua cabeça latejava, sua mente e seu coração também late-
javam ardendo. Sentiu perto de si um calor intenso, bam-
beou para um lado, bambeou para outro.
Uma figura encapuzada, vestida com uma túnica azul
-anil com lista brancas, vinha caminhando em direção a
Manoel José que, suspirando, perguntou:
– O senhor é Jesus Cristo?
Manoel levantou as vistas e viu um homem preto com
o rosto estampado de barro, feito a terra quebrada que um
dia conhecera ao olhar para o chão do sertão.
A pessoa se aproximou, retirou o capuz e disse:
– Não, não sou Jesus. Sou eu, Amò Dúdú, seu irmão.
Nossa mãe tem caminhos para você. Estão descritos nas
marcas que tem no seu couro cabeludo e que o pó de ouro

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ao cair nele fez com que caísse ouro em nós também, me


fazendo reencontrá-lo. Atendi ao teu chamado, irmão. Eu
sou feito de barro, e tu de ouro. Levanta, Ara Wúrà, o ouro
aqui é você e isso que tem aqui sustentando os argumentos
para tanta perversidade é ouro de tolo.
O corpo ergueu-se esbelto e mais preto do que o de
costume. Ara Wúrà começou a correr. Descia rua abaixo,
escorregando com o sangue que escorria dos pés nos para-
lelepípedos, o que fazia com que corresse feito uma flecha.
No entanto, impossível de não perceberem um corpo es-
guio, alto e de cabeça escalpelada descendo aos sacolejos
pelas ruas de Mucugê.
Logo quando visto, deixou de ser assunto apenas do se-
nhor e do capataz para ser problema do estado português. Os
soldados, ao avistarem um preto correndo ofegante, por ins-
tinto policial forjado no racismo, lançaram os seus corpos em
captura na direção do que compreendiam como nego fujão.
Manoel José conseguiu ir até as margens da cidade
onde ficavam os barracos de algumas pessoas alforriadas.
Por lá, fugitivos pousavam para seguir viagem, esconden-
do-se dentro dos troncos das árvores dos terreiros. Por lá,
escravizados doentes, pretos velhos e aqueles com algu-
ma deficiência, todos os que não serviam para o trabalho
eram acolhidos em uma casa com vários cômodos. Na casa,
construída de adobe, com telhado estruturado com madei-
ra, uma mulher mais velha com conhecimentos das plan-
tas medicinais recebia os enjeitados, descartados do ser-
viço forçado e que nem mesmo as freiras caridosas eram
capazes de acolher.
A mão comprida de Ara Wúrà esparramou aberta na
porta do sobrado, abrindo-a bruscamente. Entrou e avis-
tou, no primeiro cômodo, uma senhora de 65 anos sentada
na cadeira de balanço, vestida com roupa de ração, com

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alma cativa

várias contas rodeando seu pescoço. Olhando para o corre-


dor ao fundo, avistou algumas crianças com as pernas atro-
fiadas, sentadas na saída para o quintal, respirando os ares
que vinham sacudindo as folhas da mangueira. Ao lado da
senhora, um velho cego de pé, vestido com um terno roto,
com alguns furos e descosturas, um chapéu também des-
feito com o tempo e as queimaduras do sol. E, sentado no
chão, bebendo água, um homem fugido da cidade que fazia
limite com Mucugê.
A percepção de todos e todas se direcionaram para a
presença de Ara Wúrà. As pessoas naquela sala se depara-
ram com um preto dourado mudando a cor do ambiente.
Ficaram estatelados. Ara Wúrà pediu silêncio, sobrepondo
o dedo na boca cerrada. Entrou no cômodo à direita da ca-
deira onde a senhora sábia estava sentada. Subiu na estru-
tura de madeira do telhado e lá deitou o corpo, vendo, pela
fresta da porta, o cômodo de entrada.
Os homens fardados e armados desciam a rua, en-
trando em cada barraco, sobrado e remexendo qualquer
possibilidade de esconderijo. Quando quase desistiam de
procurar, já que o cansaço tomava conta das pernas dos
soldados, escaldados com fardas ao sol, decidiram revirar
a casa abrigo dos enjeitados, como a chamavam. O soldado
chutou a porta para entrarem e esbravejou, apontando a
arma para a Dona Shena:
– Velha mal-assombrada, fala logo o que acontece
aqui!!!
– Conto sim. Aqui eu tenho as ervas que precisa para
curar as dores na sua coluna e que têm te deixado noites
sem dormir, te trazendo fadiga quando corre atrás dos ne-
gos. Ocorrem essas coisas aqui, a cura! O senhor aceita?
– Feiticeira herege!
– Revistem tudo.

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Preto de Guiné, como era conhecido o senhor cego,


esquivou-se da passagem dos soldados pelo sobrado ao
sentir o vulto dos corpos. Percebia o feixe reluzente dos
fios dourados do corpo de Ara Wúrà com o calor que vinha
do alto. Ara Wúrà, camuflado nas madeiras de sustentação
do telhado, tentou controlar a respiração a fim de não ser
percebido, mas o suor pingava de seu corpo e as batidas
do seu coração pareciam ser escutadas do outro lado do
Atlântico, tamanho nervoso e pavor diante da perseguição.
Rezou para Jesus novamente, mas logo lembrou em cha-
mar por Amò Dúdú. Fechando os olhos por alguns segun-
dos, tinha agora quem o atendesse.
Ao abrir seus olhos ainda doloridos e rodeados de he-
matomas, sua íris sincronizou-se com a de Dona Shena e,
no segundo seguinte, ouviu o tiro que acertou em cheio o
coração dela. Os olhos de Dona Shena ainda abertos, rígidos
nos olhos de Ara Wúrà, fizeram com que disparasse ainda
mais o coração dele. Tentou conter-se, pôs as mãos na boca
a fim de travar o barulho da respiração e os sons corporais
involuntários, os ossos que se estalavam, o corpo que se re-
mexia com calafrios, o coração movendo o corpo contra a
madeira com os seus próprios ruídos de cupim roendo.
Preto de Guiné desviou de duas balas. Do corredor, vi-
nham as crianças se deslocando de quatro, correndo feito
leopardos e gritando. Sem mais munição e sem mais fôlego
para procurar por um negro fugido, o soldado concluiu:
– Por hoje já deu!!! Esse preto vai morrer. Depois a
gente encontra o corpo e mostra a cabeça. Vamos embora,
quero beber! Quero embebedar hoje com as meretrizes.
Saíram do sobrado com o ar de superioridade, mos-
trando para os demais, que viam toda a movimentação,
que a presença deles nunca se daria sem estrago algum,
ensinando a andar com cautela sob as leis portuguesas.

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O soldado guardou as ervas no bolso a fim de depois


da bebedeira se medicar de suas dores de coluna, mas não
disse a ninguém que seguiria as orientações de Dona She-
na. Enquanto subiam as ruas de volta para o centro da ci-
dade, as portas e janelas iam gradativamente se fechando.
Ainda no sobrado, Preto de Guiné chamava por Dona
Shena aos prantos, sem querer acreditar que tinha, em
suas mãos, o sangue da amiga. Tirou o chapéu, direcionou
a cabeça para o teto do sobrado e verbalizou:
– Que onda de calor vem do teto. Quem tá aí?
Ara Wúrà desceu se apoiando pela porta e se pôs de
pé na frente de Preto de Guiné, chorando a morte de Dona
Shena.
– Nós passa a vida chorado a dor da perda! Correndo,
fugindo e apanhando.
– É tu?
– Sim sinhô, seu Guiné.
– Homi, eu acreditei que estivesse de cara para o sol. Tu
quebrou o telhado, foi?
– Não sinhô, quebrei nada não. Apenas fiquei deitado
ali em cima, atrás da porta desse cômodo de cá, escondido
feito uma aranha no teto.
– Ocê tá quente demais, fio!
Ara Wúrà pegou nas mãos de Dona Shena, beijou, assim
como beijou também sua testa. Acariciou os seus cabelos,
deixando-a toda dourada da cor de ouro preto. Dona Shena
tossiu, levantando a cabeça e espirrando ouro em pó.
Amò Dúdú tocou o ombro do irmão e disse-lhe:
– Ara Wúrà, a condutividade elétrica do ouro faz até
mesmo um coração estraçalhado voltar a pulsar. Estou te
esperando acordar dessas dores seculares, meu irmão.
Ara Wúrà desmaiado dormiu por uma semana aos cui-
dados da curandeira Dona Shena e de Preto de Guiné.

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AMOR DE JARDIM

Sentada no terminal aéreo olhando para seus pés e to-


mando café, Amò Dúdú surpreendeu-se com a areia que
soltava da sua calça jeans, deixando um rastro de poeira
até a cidade para onde imaginara reencontrar Pérola Ne-
gra. Sempre estava à disposição para atendê-la, auxiliá-la
na fuga como assim fazia com qualquer perseguido(a),
abrindo os caminhos necessários para ganhar fôlego de
vida. Morria e nascia novamente, desmontava-se e remon-
tava-se, visitava-a e revisitava-a na esperança de ser reco-
nhecida, lembrada. Desde que Pérola Negra fora lançada
nos abismos da Cidade do Pêndulo, permanecia naquele
exercício de tentar dominar os caminhos, enquanto que
Amò Dúdú, na esperança, torcia para que ela de uma vez
por todas acordasse em si todas as suas forças e percebes-
se que era mais do que imaginava ser, libertando-se a si e
todas e todos.
Amò Dúdú avançava e retornava no tempo, parava-o,
fazia-o lento e às vezes mais rápido, antecipava reações.
Antecipou setembro em si para permanecer mais tempo
em primavera, escurecendo ainda mais a pele com o sol
que foge do inverno, unindo ainda mais os seus cabelos em
lama e aumentando o gosto de húmus na boca.
E por causa de um pensamento de sua protegida, acor-
dou nos jardins de Pérola Negra. Assustada, Amò Dúdú,
com os cílios cerrados em lama, caminhou por entre mis-

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turas de cheiros, de caules secos riscando-a e de peque-


nas folhas pregando-se nas pontas dos seus dedos. Com o
empurrão dos ventos foi secando, arrastando-se numa dor
sem lágrima, rachando tudo em si, já ofegante, quebrando
até ser pó novamente.
Para sua alegria, após voltar a ser chão, com o coração
em surpresa sentiu os pés de Pérola Negra caminhando,
segurando uma vasilha e deixando cair água. Lá estava ela,
regando cada flor, folha e todo tipo de planta que cultivava.
A cada planta regada, Amò Dúdú ia se recompondo, sen-
tindo as delícias dos beijos dela nas rosas, aspirando junto
as fragrâncias, energizando-se com o verde do mato. Após
tantos toques e cuidados, a admiração pela vida fez bro-
tar um colorido para aquele jardim, Amò Dúdú sentira-se
muito bem cuidada, tornando-se um chão fértil.
Pérola Negra cuidava das flores e tinha o privilégio de
saber manusear com delicadeza os rostos alheios. Então,
fez um pedido ao universo para que, naquela sua efêmera
passagem pelo jardim regado por ela, nascesse ali o amor,
a beleza e um mundo tranquilo e promissor.
Ao escurecer o dia e sentindo as flores exalarem ainda
mais os perfumes e mais adiante se banhando de orvalho,
Amò Dúdú aproveitou-se da satisfação que era estar usu-
fruindo daquele jardim tão amorosamente cuidado. Cui-
dar das flores era a única ação feliz de Pérola Negra para
reestruturar sua mente dos trabalhos forçados na cozinha
e limpeza da casa-grande. Por causa da tamanha beleza
que fez ao redor da casa, lhe era permitido algumas horas
no jardim e esse era um dos poucos momentos em que se
sentia viva, se sentia humana.
Naquele jardim, Amò Dúdú sentia as energias de vida
transbordando e se inebriava. Enquanto sentia toda aque-
la humanidade percorrer a terra, as flores, os cheiros e a

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umidade do ar, Amò Dúdú foi surpreendida com os torno-


zelos pretos de Pérola Negra abrindo a terra velozmente
ao ser arrastada por um homem com botas de couro, 80
quilos, branco, falando uma língua que Pérola Negra ou-
vira pela primeira vez naquele dia em que serviu o jantar
para os convidados estrangeiros da casa-grande.
A terra ia abrindo em sulcos e sendo molhada pelas
lágrimas de Pérola Negra, bem como pelo sangue de sua
boca. Amò Dúdú sentiu o pavor, o medo e todas as dores
da violência sofrida por Pérola Negra. No lugar da cantoria
em manejar as sementes, os gritos de dor da tortura e vio-
lação sexual. Misturado às gotas de orvalho, sangue, saliva
e esperma. No lugar de humanidade e beleza, lá estavam a
perversidade, o ódio e a violência redefinindo a atmosfera
do lugar.
Amò Dúdú se diluiu nas dores da desumanização, nas
rupturas da carne e na ausência de vida plena. Por algu-
mas horas, sentiu o peso do corpo de Pérola Negra deixa-
da inerte, fora de si, tentando não estar mais ali, querendo
deixar de existir. Estava tudo desligado nela, a mente, o
consciente e o inconsciente, a alma e a memória ancestral.
Caso fosse possível e tivesse esse domínio, faria com que
o seu próprio sangue parasse de correr nas veias, porém
nada podia fazer além de tentar entender e resistir para,
depois, tentar reestruturar os acontecimentos da sua vida.
Pérola Negra olhou o sol nascer, levantou-se, amarrou
as roupas e saiu para preparar o café para os hóspedes da
casa-grande. Mal se aproximava e já ouvia os gritos:
– Mucama, ou adianta ou te penduro no pelourinho.
Sua preguiçosa!

Voltou no tempo e novamente sentada no terminal aé-


reo, olhando para seus próprios pés e tomando café, Amò

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Dúdú replanejava tudo a partir dali. Já não mais se sur-


preendeu com a areia que soltava da sua calça jeans, dei-
xando um rastro de poeira, entendendo que Pérola Negra
a atraía emanando energia de amor. Amò Dúdú sempre es-
tava à disposição para atender Pérola Negra, e, dessa vez,
replanejava suas ações a cada segundo a fim de auxiliá-la
na fuga e livrá-la da violência.
Nos jardins da casa-grande, Amò Dúdú com os cílios
cerrados em lama, caminhou por entre as misturas de chei-
ros, caules secos riscando-a e pequenas folhas pregando-
se nas pontas dos seus dedos como em uma dança ensaia-
da. Com o empurrão dos ventos foi secando, arrastando-se
numa dor sem lágrima, rachando tudo em si novamente,
já ofegante, quebrando e se misturando a terra por onde
passaria os calcanhares de Pérola Negra.
Ao ser penetrada pelos calcanhares de Pérola Negra, o
barro a contornou e Amò Dúdú moldou-se ao corpo lança-
do ao chão, tornando-se uma. As duas eram terra, húmus,
barro, areia. O pelo tornou-se cansanção. Os dentes eram
espinhos. Os dedos, cipós que cresciam. Da boca e do nariz,
saía gás carbônico. Pelas axilas úmidas e escuras, se reve-
laram as cobras venenosas que durante o dia se escondem
do incômodo do calor do sol. Do púbis, caminhavam as viú-
vas-negras. Os beija-flores de bico afiado rodeavam as flo-
res que brotavam dos ouvidos, as abelhas e os maribondos
chegavam chamando os demais.
O corpo pesando 80 quilos ardia e coçava. As cobras e
as aranhas o envenenaram, os cipós atravessaram-lhe os
ouvidos de um lado a outro, o beija-flor perfurou o coração
e o bebeu. A terra o absorveu, e as pétalas caíram sobre
onde jaziam os planos da ignorância.
Pérola Negra levantou-se, olhou o seu jardim e viu mais
flores brotando. Os vaga-lumes a guiaram para a cama de

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grama onde descansou aliviada. Ao amanhecer, conversou


com todas as plantas, cheirou cada cor de rosa, agradeceu
a toda população de pequenos bichos que cuidavam do jar-
dim com ela. Ofereceu água à terra e às folhas. Rezou para
o senhor das matas, pôs a cabeça no chão e de lá ouviu:
– Mucama, ou adianta ou te penduro no pelourinho.
Sua preguiçosa!
Pérola Negra caminhou para a cozinha da casa-gran-
de. Fez chá com as ervas daninhas que colhera de onde
jazia a ignorância, misturou no café, no suco, na água do
cuscuz, no bolo que fez, na água que cozinhou o milho e
em tudo que cozinhou naquela manhã. Arrumou a mesa
comprida da sala onde os convidados eram servidos,
onde naquela manhã vinte pessoas estavam à mesa nego-
ciando vidas negras, sexo, e muito ouro, e organizando os
valores de tudo aquilo no leilão. Todos se fartaram e be-
beram das essências das próprias ervas que cultivavam
em si. Ninguém morreria imediatamente. Cada alimento
cozido com as ervas promoveria um tipo diferente de de-
finhamento, correspondendo ao que cada um(a) trazia
em seu caráter. Dentro de um mês, a casa estaria vazia e
todos mortos em lugares diferentes e aparentemente de
causas diferentes.
O capataz, que preparava o chicote lançando sua ponta
navalhada para o ar e mirando as costas da mulher que se
recusou a amamentar a filha do fazendeiro, enfartou en-
rolando-se no chicote, o coração apertou tanto como uma
cobra que se enrola e quebra os ossos da presa. A última
coisa que visualizou foi o sorriso de canto de boca da mu-
lher presa ao tronco, aliviada de não apanhar mais.
O leiloeiro, antes mesmo de conseguir gritar bem alto a
palavra “vendida”, engasgou-se com o fumo que mascava.
Entalado, segurando o pescoço, tentava respirar. Olhando

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para o negro e a negra mais caros no mercado escravagista,


caiu de joelho, morrendo por cima de pés pretos descalços.
Antes mesmo de gritar como sempre fazia para cha-
mar as mucamas, a senhorinha, após uma semana que mal
conseguia enxergar, passou a manhã tentando ver o seu
reflexo no espelho. A vaidade não permitiu que narrasse a
alguém que estava perdendo a visão. Também não contou
que sofria com uma incontinência urinaria, que a fazia dei-
xar um rastro malcheiroso de urina por onde passava. Foi
para seu cômodo, deitou-se e entrou em coma.
Os hóspedes traficantes passaram a ter visões na viagem
de volta para a África. Eram visões perturbadoras. Podiam
enxergar as dores do rapto, dos açoites e dos estupros. Sen-
tiam com intensidade o martírio e o banzo de quem estava
longe da sua família, de sua terra, de seu idioma. Podiam ou-
vir as almas gritando ao caírem do navio negreiro, as vozes
de fome dos excluídos, dos enjeitados, dos corpos descarta-
dos pelo defeito de não servirem ao trabalho forçado. Sen-
tiam o odor da putrefação dos corpos acumulados no gran-
de cemitério que estava se tornando o oceano Atlântico, um
cemitério de milhões de negros e negras.
As visões se desdobravam na pele que sentiam pinicar,
abrir e arder com açoites. Por dias, arrastavam-se de dores
pelo corpo, imaginando terem lepra, escorbuto ou qual-
quer outra doença possível de acontecer devido às mistu-
ras entre povos desconhecidos. Isolaram-se em suas ca-
bines, onde, à noite, não dormiam. Apavorados, gritavam,
estavam a enlouquecer. Um atirou em sua própria cabeça.
Outro se lançou ao mar. Alguns sucumbiram de imediato
diante do peso de beberem do próprio veneno.

Amò Dúdú e Pérola Negra desdobraram-se quando ela


já estava há alguns dias longe da casa-grande e banhando-

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se no rio. Amò Dúdú se dissolvia na água, reformulando-se,


remontando-se, nadando com seus próprios braços e per-
nas. Mergulhava e emergia, reenergizando tudo nas águas
que tudo levam e que contornam obstáculos. Pérola Negra
limpava suas marcas de dor, molhava o cabelo e a cabeça,
agradecendo por aqueles minutos de paz, nos quais podia se
banhar sem medo de que algo ou alguém atravessasse seu
caminho, usurpando sua vida, tomando sua alma de assalto.
Tranquila e feliz, Pérola Negra olhou para Amò Dúdú e
perguntou:
– Quem é você?
– Amò Dúdú. E você?
– Me chamam de mucama. Os meus me chamam de Pé-
rola, mas acredito ser outra pessoa. Me perdi das informa-
ções sobre mim e minha família. Não tive a oportunidade
de ter nascido em África. Mas o Mensageiro Jupiara que me
salvou me contou que meu pai era africano e que eu herdei
dele as marcas que tenho pelo ventre, pela cintura e parte
das costas. O Mensageiro Jupiara tentou me convencer de
que está tudo escrito aqui. Está escrito aqui quem eu sou,
quem são meus ancestrais e de que lugar da África vieram,
a língua que falavam e a minha importância no mundo. No
entanto, isso só coça, e mesmo que o Mensageiro Jupiara
estivesse certo eu não sei ler esses desenhos com os quais
nasci. Me sinto desnorteada sem saber o que fazer da mi-
nha própria vida. E a vida não tem sido nada fácil. Muitas
vezes, quis morrer ou surtar de vez a fim de esquecer e
desligar minha cabeça de tudo que vivo aqui nessas terras.
Eu sei que eu nasci na travessia pelo Atlântico. Mas não
sei se minha mãe sobreviveu e está escravizada. Apenas
sei que o Mensageiro Jupiara encomendou o corpo de meu
pai, que nadou sem descanso para me pôr segura na praia.
Essa é a única história que tenho sobre mim mesma, é a

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história que me sustenta e não me deixa dar cabo de minha


vida. Pois, quando penso que meu pai foi capaz de enfren-
tar a todos, inclusive a força do mar, e me fez chegar viva,
não tenho coragem de sair dos problemas que vivencio
de uma forma covarde. Todas as vezes quando estou apa-
nhando, sendo violentada ou fugindo, eu imagino as bra-
çadas que meu pai deu em alto-mar e tento imitá-las pelo
mar da solidão, pelo mar de sangue, pelo mar da injustiça
que estou sendo obrigada a atravessar.
– E você, o que sabe de si?
– Eu sou viajante e herdei isso de minha mãe. Ela me
concedeu as energias das transformações.
– Você nasceu aqui ou foi capturado em África?
– Eu não sou daqui. E mesmo se estivesse nascido aqui,
eu seria de outro lugar.
– Isso! Não me sinto pertencente a esse lugar. Essas
pessoas ignorantes e raivosas que nos tratam como ani-
mais nada têm a ver comigo. Elas atiçam em mim a von-
tade de matar e de morrer. Eu nasci a caminho daqui, mas
não saberia te explicar o que é viver. Não é possível estar
viva depois que morreram violentamente minhas memó-
rias, minha família, minha identidade, minha estima por
mim mesma, meu entusiasmo para me manter de pé e mi-
nha esperança de tudo se modificar. Meu corpo está aqui
pulsando, mas, se nada sei sobre mim, se nada sei sobre
minha alma e se esse corpo apenas me intermedia dores,
entendo-me como alguém morta.
– Sabe o que eu queria?
– Eu quero que seja concedida a mim a vida de fato!
– Eu faço, às vezes, um esforço incrível para imaginar
vida além desse meu corpo.
Amò Dúdú sentiu-se com o coração confortado ao ou-
vir sobre os exercícios de Pérola Negra de imaginar a vida.

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Era sobre isso que os desenhos no corpo dela tratavam.


Ela não podia ler ou entender, mas carregava nos seus ge-
nes a memória ancestral. Quanto mais se voltava para os
seus e para imaginar a vida além de toda aquelas dores, se
aproximava ou ativava essas memórias e com elas as suas
forças. Amò Dúdú segurou as mãos de Pérola Negra e lhe
disse:
– Saiba que, quanto mais você imaginar outras formas
da vida se fazer possível e plena, mais você se libertará. E
descobrirá que guarda em si a possibilidade de dar a vida
a tudo, a todas e todos, mas principalmente a você mesma.
As suas mãos têm vida e podem dar vida, estou sentindo
-as.
– Sabe o que imagino após o outro lado do rio? Imagino
meu lar. Seria capaz de nadar até lá, mesmo que fosse ape-
nas para sentir a expectativa projetada pela minha imagi-
nação de ter um lugar de paz para viver.
– Realmente, apenas precisa nadar, e estará em uma
das cidades mais férteis de amor.

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CICLOS

Do que o cheiro de uma mulher seria capaz? Ela não


sabia nem mesmo que era capaz de se envolver pelo cheiro
de uma mulher. O cheiro daquela mulher elegante a deses-
truturou.
Por muito tempo em sua vida, acreditou apenas que,
quando as mulheres se reuniam e permaneciam por mui-
to tempo no mesmo lugar, acabavam por menstruarem no
mesmo momento. No entanto, a convivência podia mos-
trar que os ciclos de umas vão se adequando aos das ou-
tras e, como em uma metamorfose de influências, o cheiro
de uma mulher tão próxima pode resgatar aquilo que se
tem de comum e de importante uma com as outras.
Descobriu por vários dos seus sentidos que o cheiro de
uma mulher é capaz de transformar as gotas de suor em
rajadas de cólicas, uma cantiga embaixo do chuveiro em
fertilidade, o sorriso em tensão pré-menstrual, a raciona-
lização em dores nas pernas, um susto em gozo, a leitura
de um livro em uma fecundação. O vestido florido e roda-
do em amor, a lembrança dos aromas dos fios de cabelo
furando o ar, tudo atravessou Pérola e bastou isso para ela
se transformar.
O perfume dos livros nas pontas dos dedos, a unha
vermelha, os anéis de prata e búzio, fizeram as palavras
semelhança e diferença não darem conta do que se pas-
sava entre as mulheres quando tão perto uma das outras.

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Pérola pensava que, se não podia com aqueles aromas, de-


veria imediatamente se afastar deles ou todo o seu corpo
mudaria, o seu organismo, as suas estruturas mentais e os
móveis de sua casa, como já estava acontecendo.
Na permanência, mesmo com o tempo passando deva-
gar, a pressa em respirar novamente aquele ar reformula-
dor fazia ficar cada vez mais difícil saber onde começava
uma e terminava a outra, pois a TPM de uma se confundiu
com a da outra, o espaço no calendário e os ciclos mens-
truais coincidiram.
No momento em que se casou, deixando as mulheres
de sua casa, Pérola acreditou que descobriria qual seria o
seu cheiro e entenderia qual seria o seu ciclo. Entretan-
to, a saudade do respeito aprendido com as demais a fazia
pensar tanto nelas que emergiu em si a mistura do cheiro
de todas, da mãe, das tias, das irmãs e primas. O cheiro de
sua mãe colocava seu ciclo de vida numa certa ordem. Se
sofresse por algo, o cheiro de suas filhas a aliviavam. Mas
o cheiro de Dona Arìnnà, dessa mulher que ela acabara de
conhecer! Aquele cheiro suspendeu as regras de Pérola
que, a partir de então, se viu sob a regência do inusitado.
Foi aniversário de Helena. O marido de Pérola tinha
acabado de conhecer o marido daquela distinta senhora e,
para se aproximarem na tentativa de conhecê-los melhor,
o casal aceitou o convite para jantar na sexta à noite.
Naquele dia, Pérola acompanhou o marido a contragos-
to, pois não se sentia muito bem. Na verdade, estava muito
envergonhada. Pelo caminho, seu marido, Dimas Carave-
las, foi jogando conversa fora, falando sem parar sobre as
despesas da casa e do quanto era difícil para ele, um pro-
fessor universitário, manter os pagamentos em dia. Com
muito desdém, ele lhe avisou sobre um novo emprego, no
qual teria que viajar em alguns momentos. Pacientemente,

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Pérola lhe sugeriu para não se sobrecarregar tanto, pois


ela poderia voltar a trabalhar, uma vez que as filhas já pas-
saram da adolescência e estavam iniciando a vida adulta.
Num susto, ele riu e disse:
– Vai trabalhar de que, em pleno século XXI, no qual só
se fala em crise econômica? O que você ainda sabe fazer?
Você não sabe fazer nada, está defasada. Há uma década,
você nem tentou fazer um curso universitário! Você ficou
em casa engordando e cheirando a leite! Nem para ensinar
o dever de casa para as meninas você serviu! O que passa
na sua cabeça? Quem vai te contratar? E para o quê? Você
só vive lendo bobagens literárias, livros de moças imbecis,
e escrevendo bobagens pelos cantos da casa. Você ainda
está nessa fase adolescente de escrever para o nada!
Engoliu o soluço e calou-se na ansiedade de chegar
logo na casa do amigo dele. Na porta dos novos amigos,
Pérola cumprimentou a todos como se fosse a mulher mais
realizada da face da terra. Helena a recebeu com um sorri-
so imenso, a ponto de fazer Pérola surpreender-se em ser
tão bem recebida.
Após as primeiras falas de quem se encontra pela pri-
meira vez, os casais foram para uma varanda bem acon-
chegante e lá se desabaram em dois olhos grandes e ex-
pressivos. Ao sofrer o impacto de ser vista, Pérola olhou
imediatamente para o chão. Os homens se puseram a con-
versar longe delas, Helena voltou a caminhar entre a sala
e a cozinha e lá estava Pérola com alguém conhecida como
Dona Arìnnà.
O olhar de Dona Arìnnà demonstrava saber de toda a
vida de Pérola. Só de pôr os olhos nela, Pérola corou de-
vido à baixa autoestima que possuía. Pérola viu em Dona
Arìnnà a mulher que ela queria ter sido! Enxergava-a de
forma tão perfeita, sentada apoiando o cotovelo na mesa e

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com uma das mãos no queixo. Como ela quis estar naquela
pele naquele momento! A elegante pele preta retinta, seus
colares, seu perfume forte de madeira, sua habilidade de
comentar os livros que leu.
Pérola desistiu de esperar por Helena fazer sala, e se
sentiu na obrigação de sair do diálogo evasivo para estabe-
lecer contato real. Parou de olhar para baixo e se atreveu
a olhar para a figura intrigante daquela mulher em frente
a ela. Novamente! Com o segundo olhar de Dona Arìnnà,
Pérola se pôs ainda mais confusa. Dona Arìnnà estendeu
sua mão e indicou um lugar ao seu lado na varanda. Um
chamado singelo para conversar espantou o pobre cora-
ção daquela mãe e dona de casa maltratada pelo marido
egoísta. O espanto intensificou-se com a delicadeza e pelo
convite para algo sério, que com certeza exigiria das duas.
Simplesmente passaram a divagar sobre o tempo, en-
quanto não achavam um tema em comum e mais íntimo.
Discutiram sobre o quanto para alguns o tempo passava
despercebido e para outros era importante! Aquele assun-
to a fez pensar sobre o seu tempo de vida. O que restaria
para uma dona de casa, uma mulher de quarenta e oito
anos que dedicou os seus anos menos maduros para cui-
dar da prole e do marido?
Pensou que por sorte o jantar estaria posto no instante
seguinte, antes que pudesse derramar qualquer lágrima
de arrependimento por sua vida. Pérola corria o risco de
entrar em prantos, ali mesmo, naquela varanda. Pôs-se a
beber a fim de segurar melhor as emoções e parar de se
importar tanto consigo, quase deixando a comida de lado.
Pérola sentiu-se tão à vontade, ao beber a primeira dose de
uísque, que resolveu beber outras doses.
Pérola pouco imaginava que seria capaz de convidar
Dimas, seu esposo truculento, para dançar! Para Dimas,

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aquilo era vergonhoso! Ao recusar, Dimas saiu de fininho,


argumentando que era duro para dançar e fazendo várias
autocríticas. Afinal, era o que muitos diziam! Ele ainda não
se sentia à vontade para destratar Pérola na frente dos no-
vos amigos.
Pérola, entretanto, surpreendeu-se quando o mari-
do de Helena, César, resolveu conceder a ela minutos de
dança. Ele dançou com ela de maneira suave e amorosa.
Conversaram enquanto dançavam e ele elogiou os seus ca-
chos! Terminada a dança, Pérola bebeu a terceira dose de
uísque. De súbito, se encontrou solitária entre todos que
conversavam e conversavam coisas e mais coisas. A sensa-
ção não lhe era estranha, pois era assim que passava seus
dias, solitariamente.
Diante da falta do que fazer ali naquela pequena mul-
tidão, sobrou para ela abrir a porta quando a companhia
tocou. Era o irmão de Helena, Mário. Trataram de se apre-
sentar um ao outro e Pérola acompanhou com o olhar o
rapaz adentrar cumprimentando a todos e, em especial,
a Dona Arìnnà. Pérola sentiu-se excitada quando o viu to-
cando a cintura daquela mulher, escorregando as mãos por
suas costas e a entrelaçando num abraço seguido de um
beijo no pescoço! Ficou sem ar e engoliu seco o uísque.
Viu quando ele chamou Dona Arìnnà para dançar, o que
divertiu Pérola por alguns minutos, pois passou a observar
o jeito como ele a tocava e como ela se movimentava.
Depois de dançar com Dona Arìnnà, Mário surpreendeu
Pérola chamando-a para dançar também. Dessa vez, ela
teve medo de aceitar e ficar nervosa com os seus desejos
reprimidos. Pasmou quando se viu tão tranquila dançando
com aquele rapaz de vinte e nove anos. Ele não foi tão amo-
roso quanto César, mas conversaram bastante também. Ele
narrou a Pérola sobre o quanto o racismo atrapalhava as

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aulas e a vida de Dona Arìnnà quando ela coordenava o


curso de pós-graduação. Contou-lhe também o quanto ad-
mirava Dona Arìnnà e se indignava com qualquer ato de
racismo que sofresse. Sem sombras de dúvida, Pérola pas-
sou a admirá-la mais.
E se? Era a pergunta que mais circulava na mente de Pé-
rola. Essa expressão não saía da sua cabeça, acompanhada
de diárias cogitações. Contemplar Dona Arìnnà não foi algo
muito simples de fazer. Primeiro, porque ela era misterio-
samente impenetrável e, depois, porque Pérola não sabia
como se aproximar dela. Não sabia onde Dona Arìnnà mo-
rava, não conhecia os seus gostos e muito menos o que ela
pensava quando olhava para Pérola e para a sua história de
vida. Pérola sentia vergonha de sua própria história.
A primeira coisa que fez Pérola fixar os olhos em Dona
Arìnnà foi a forma como ela falava, o seu domínio linguís-
tico. Pérola achava que não sabia falar! E movida por qual-
quer sentimento então, ficava lenta e monossilábica. Já
Dona Arìnnà tinha a capacidade de expor tudo que pen-
sava. Como era difícil para Pérola se deparar com a forma
simples e inusitada com que Dona Arìnnà conseguia trans-
formar um simples pensamento em algo admirável por
causa das palavras que usava!
A voz, a voz feminina daquele discurso culto que pouco
lhe dizia tomou o corpo de Pérola, apossou-se de sua pele,
a transformou. Pérola enlouquecia diariamente pensando
em como reencontrá-la novamente, e novamente. Torcia
para encontrá-la por acaso quando saía à rua. Observava
Dimas para saber se ele teria algo a dizer sobre o seu novo
casal de amigos. Como chegaria até ela era a sua mais re-
cente preocupação. O que seria preciso fazer para sentir
aquele perfume forte e ouvir o que ela tem a dizer passou
a ser o seu objetivo.

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* * *
Em uma tarde solitária, após ter lavado a louça e se
despedido das filhas que estavam indo para a faculdade,
Pérola lia um bom livro como costumava fazer todas as
vezes que se encontrava com a oportunidade de realizar
algo para si. No meio da leitura, assustou-se com o som do
telefone tocando. Atendeu. Era Dona Arìnnà convidando-a
para um café. Pérola quase enfarta ao aceitar o convite.
Do pobre arrepio de quem abre uma porta aos argu-
mentos desafetuosos, as emoções de Pérola oscilavam ao
telefone. Pensou que felizmente havia quem regasse seu
chão com delicadeza, umidade e humanidade. Seu cora-
ção, nascido dos trópicos, onde o sol tende a secar, é onde
também teimava o quiabeiro, contrariando, nascendo ali
mesmo e como retorno molhava a garganta de quem tem
palavras quebradiças, secas, desalinhadas, para então en-
sinar que há de ser assim bem molhada a fertilidade, como
são as coxas, os olhos, o útero e a boca de quem se importa
com a semelhante. E para tudo nascer, há de molhar, ge-
mer, salivar, suar, chorar, beber, brotar e crescer. Mas, antes
disso tudo, sabiamente há quem abra os caminhos, para
surgirem sorrisos, para deixar fluir, nascer flor e borbole-
tas voarem. Pérola aceitou como quem sempre aceitaria e
desligou o telefone com um sorriso na alma.
Os encontros mensais passaram a ser semanais com
forte tendência a se tornarem mais frequentes durante
todo aquele ano em que se conheceram. Por conta da ale-
gria desconhecida da esposa, em mais uma tarde chuvo-
sa, Dimas a fez sair de casa desnorteada, apressada e do-
lorida com a vida. Naquela semana, ela havia levado um
soco nas costelas. E atônita andava com os cílios arriados
de tanto perdoar o homem que dizia que a amava e, por
várias vezes, a cobria de mimos após os espancamentos.

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Não foi bem assim que ela imaginou que estaria aos seus
48 anos. Como pode alguém que leu Simone de Beauvoir
aos 20 anos apanhar do marido quando está perto dos
50? Naquela tarde, quando mal podia respirar, leu um
bilhete deixado no livro que ganhou de Dona Arìnnà. O
título dizia:

“Ensaio”.

Deixou para ler junto a outros livros de Angela Davis.


Assim o fez, guardando o livro e o bilhete para uma
hora oportuna. Na semana seguinte, evitou sair, pois dias
atrás acordou com os olhos furiosos do marido arrancan-
do o seu cobertor e lhe indagando sobre o café da manhã.
Como de costume, ela nada respondia, apenas providen-
ciava. Após fritar os ovos, cozinhar o aipim, coar o café e
providenciar roupa passada, Pérola respirou fundo e ver-
balizou baixinho:
– Não tem o direito de me violentar! Hoje mesmo vou
te denunciar.
Quando mal terminou de respirar, ganhando fôlego
para ir até a delegacia da mulher, Pérola recebeu um soco
na boca. E seu marido, mais uma vez, saiu esbaforido para
o trabalho, confiante em encontrar o jantar pronto quando
chegasse.
Dessa vez, sua boca sangrava. Foi até o espelho e imagi-
nou qual desculpa daria ou qual maquiagem seria possível
para esconder seus lábios enormes e macios, que estavam
moídos com o soco. Pensou também em quanto tempo se-
ria necessário ficar presa em casa até cicatrizar e curar os
hematomas. Enquanto colocava gelo para amenizar o he-
matoma, sentou à mesa da cozinha com o livro, onde guar-
dara o bilhete, nas mãos e leu:

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“Um pequeno ensaio sobre sua boca...

Senhora Pérola, a sua boca... Ela é desestruturante para


qualquer ser humano, seja ele ou ela um fundamentalista
ferrenho, uma freira, um velho, uma dona de casa, um ca-
pitalista amante de Ford, até aquela mulher que morre de
amores pelo marido. E inclusive ela e esse marido teriam
que se desfazer dos seus indesejáveis ‘rótulos’ para se per-
mitirem continuar olhando para a sua boca. Teriam que se
desnudar, ou então deveriam desviar os olhares para ou-
tra coisa menos delirante. Qualquer outra coisa que não
tenha esse formato que dispensa batom. Mas, se o batom
nela estiver, ninguém vai poder fazer nada além de con-
tinuar olhando. E não bastasse sua boca ser o que é, e ter
o formato peculiar que tem, além das pessoas terem que
se desnudar de suas possíveis identidades para continuar
olhando para ela, são convidadas a se deslocarem também
de suas bases ao ouvir o que ela tem a dizer. Porque não
bastasse ser adoravelmente perfeita, essa boca é manipu-
ladora da linguagem, conhecedora dos discursos, sedutora
no falar, rápida nos argumentos. E, de maneira muito tran-
quila e sorridente, para o terror dos mais fundamentalis-
tas, desconstrói a base que sustenta o discurso de qualquer
mortal. Houve momentos que eu me perguntei como seria
beijar essa boca... A sua presença, a sua fala, a sua boca, os
seus cabelos e a sua voz me tomaram os pensamentos.  Às
vezes, eu fico divagando sobre qual seria o efeito da  sua
saliva, do seu suor, da sua voz em outro tom não controla-
do por você mesma, e que cheiro tudo isso teria ao abrir os
caminhos em mim.”

Após ter lido, voltou ao espelho e atônita ainda não re-


conhecia em si a própria boca e tudo o que ela poderia re-

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presentar. Continuou em lágrimas, indagando-se em frente


ao espelho:
– Me explica, com que cara eu vou sair?
– Se explica você com que cara sairá daí – respondeu o
espelho, deixando pérola desacreditada e, ao mesmo tem-
po, confortada em ter com quem desabafar, ainda que tudo
não passasse de um delírio!
– Eu ficarei aqui mesmo no espelho. Mas e você, que
pode andar por aí? Não me apareça mais aqui mostrando
essas imagens. Não é assim que quero te refletir.
– Como posso? Sei que havia te prometido nunca mais
essa imagem no espelho!
– Por favor! Não vá. Não me dê as costas. Volte, por fa-
vor!
A imagem de Pérola olhou para a diagonal, apontou os
lábios grossos num ângulo acima, pôs as mãos na cintura e
deu meia-volta, fazendo sumir o reflexo. Após 10 minutos,
voltou. Com os cabelos a esticar para o alto, retrucando:
– Não vês? Quando qualquer mulher beijar essa mi-
nha boca que você carrega, o único sangue que aqui po-
deria surgir de imediato era o das entranhas de quem
viveu afogando as mágoas nas próprias poesias. Sangue
de menstruação! Esse sim construiria algo de interessan-
te. Mas, o sangue do soco, do atropelo, do tapa de louco,
dispensemos. Vá enlouquecer o Diabo. Porque eu quero
mesmo é me enlouquecer, sufocada com a boca preenchi-
da na tentativa de alcançar as palavras certas, engasgan-
do tudo no coração. E para que seja possível eu não que-
rer ir embora antes mesmo de ter começado toda essa la-
dainha, conte-me então outras histórias. Para que assim
eu continue a te refletir no espelho, para que eu durma e
sonhe com os saltos altos e com você caminhando esbelta
e feliz. Entretanto, se as lembranças contrariarem as mi-

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nhas expectativas, de súbito despertarei só para enfartar


de você. Impeça-me de atender os afoitos por dilatarem
fervorosamente todas as minhas passagens. Mas bem que
mereço ser acordada no susto pelos calafrios de quem lê
os ímpetos de sonhos melhores. Porém, se nem ganhos
dos carinhos tão alheios hei de ter, ainda que não se lem-
brem de que estou a te aguardar aqui no espelho. Se não
mudar, pode apostar que cada vez menos nítida me en-
xergarás. Eu quero ser a dona das palavras sem soluçar.
Eu quero me desmontar em mil para deixar de ser terre-
na em frações de segundo!
– Não fala assim comigo! Você não! Qualquer pessoa
menos você. Vamos arrumar o cabelo, vamos? Eu ficarei
muito melhor se eu passar a tarde me arrumando. E come-
çarei pelo cabelo. Vou alisá-lo.
A imagem no espelho esfumaçou, cinza, azul, vermelha,
gritando, agonizando nas ideias, esmurrando o vidro rígi-
do do espelho.
– Sai daí desse corpo. Por favor, saia desse corpo, venha
comigo ser o que quiser!
– Cabelão!!! Sai desse corpo. Vem para o espelho.
– O que tem meu cabelão? Inapropriado? É isso?
“Inapropriado! Aqui não entra, aqui não é bem quisto,
aqui parece desconfigurado, não compõe uma boa ima-
gem, não transparece sanidade, arranque-o. Violentem-no,
ponham-no no seu devido lugar!”
– Cansei de ouvir. Quantas falas ainda terei que aturar
diante de ti?
“Só o permita se ele não for mais ele mesmo. Se ele for
outro, se ele for outra coisa.”
– Logo, logo, assim que pegar o pote de soda cáustica
com creme Aloe vera, irá repetir a verborragia bem ensina-
da desse martírio das cidades aparentes.

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– Solte-o, mão ignorante. Deixe-o viver! Sempre desejei


expulsar essas mãos tentando alisar.
“Molhem-no, joguem-lhe ácido, queimem o couro cabe-
ludo, raspem-no se necessário!”
– Escrevem nos rótulos dos cremes de cabelo. Já conhe-
ço todos esses mandamentos. Deixe nosso cabelo em paz!
Sabia que ele é capaz de furar os olhos de qualquer um com
um simples fio? Ah! Como já quis que isso acontecesse.
“Só com tratamento”.
– Insistem nos argumentos.
– O alisamento é que é uma doença. Deixe-o em paz!
Cale todos esses tratamentos capilares!!! Não ceda!! Mal
afeiçoado os secadores e as escovas reverberando a bran-
quitude em nós!
– Cale a escova progressiva. Não sabes que muitos se
perderam de amor nesses fios intensos e fortes? Muitos se
ergueram apoiados nesses nossos fios.
– Ainda que gritem “domem-no”, ainda assim, adoce
com sua maciez os afetos.
– Pobre de ti que escuta tal violenta voz!!! Não lembra
mais que nele os filhos adormecem acolchoados?
– Esbravejam em cada salão de beleza: “alisem-no”. Re-
petidamente cospem a falar.
– No entanto, ninguém nunca lhe disse das histórias e
poderes que nossa cabeleira traz consigo? Acautele-se. As
ondas do mar aprenderam a ser o que são com as ondula-
ções dos nossos cabelos! Foi assim que uma mulher deu
conta de fazer o mar se mexer, observando os ondulamen-
tos dos cabelos.
– Por séculos, desprezaram-no como quem se repugna
pela feiura! E assim nos olham.
– Ele é a coroa da beleza. E os olhos da sofreguidão não
podem alcançá-lo. Me cansei da sua dificuldade. Não sabes

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que sou capaz de te fazer mudar de ideia? Mas gostaria que


o fizesse por conta própria, seria mais efetivo de sua parte.
– Não sabes tu que os primeiros raios do sol são para os
cabelos? Não sabes tu que, de noite, os cabelos se asseme-
lham ao universo? Pobre ignorância!!!
“Tirem-no de circulação!!!” Ainda vão continuar a fa-
lar!!!!
– Tudo isso é medo de mim? Olhe que eu vou e volto!!!
Tudo aqui é cacho!!
– “Isso fede!!!” Dirão para me assustar.
– Vem cheirar vem! Tome, sintam... Tenho veneno...
– Morra! Morram.
Pérola ouvia atentamente a catarse do seu reflexo. E to-
mou todo o ar energizando os pensamentos sobre si mes-
ma, com a mulher no espelho, a sua memória. Jogou o pote
de creme fora, libertou os cabelos. Limpou o vermelho da
face, o substituiu pelo vermelho do batom. Tocou seus ca-
belos, tocou sua boca, buscou desejo por si mesma. Amou
a si mesma. Beijou a sua imagem refletida no espelho, bei-
jou a testa perdoando-se, beijou a face com afeto e a boca
no espelho.
O pensamento nu tomou forma, adentrou a carne ultra-
passando os quadris, atravessando-a para além da alma,
até fazer com que tocasse a boca ao travesseiro. A queda,
o peso, a dor brusca lançou-a de volta para si. Os cabelos
crespos fizeram com que os impedimentos virassem pe-
dra. E para o desassossego dessa dama, o volume para o
alto sobre o couro cabeludo rogou-lhe agora os saltos mais
finos, as unhas mais afiadas e os dentes mais famintos. Do
seu marido, quis arrancar o beiço. Dela, imaginou os pou-
cos seios e das outras a curiosidade. 
Para toda a vida? Queria mesmo se ver assim desejosa,
fálica, despertada consigo? Contudo, a dama despertada

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clamou pela vida, narrando que Pérola merece mesmo é


viver para si. Pôs o batom em si e despertou para pôr em
quem mais desejasse. Saiu, bateu a porta, seguiu comendo
o sol, a lua, o tempo, a rua, os infortúnios ou qualquer outra
coisa que o desejo a lançasse. Olhou nos olhos de qualquer
pessoa por quem passasse. Tudo ruim perante ela estava
para ser quebrado com o fato dela se empoderar sobre si.
Voltou tarde para casa. O marido, aborrecido com o
atraso do jantar, assustou-se também com o batom ver-
melho nos lábios ainda mais inchados. Apanhou-a pelos
braços, deixando os desenhos dos seus dedos nela. Péro-
la reagiu pegando o primeiro objeto. Mas, antes mesmo
que pudesse se livrar do abusador, desmaiou de dor com
o tombo do desamor motivado pelo boletim de ocorrência
que o marido encontrou dentro da nécessaire dela.

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Cartas Geográficas

Pulsavam em sua cabeça oscilações entre o desprezo


por si mesma e o amor próprio que a arrancaria de seu
aprisionamento naquele corpo inerte, morto em vida. Pen-
sou em não sair mais de casa, tinha vergonha de atender
os convites de Dona Arìnnà e de ser vista daquela forma
entristecida e opaca por causa de seu marido. Sentia-se na
alma errada, pois não era aquela a mulher que ela desejou
ser quando parou de estudar para se dedicar aos filhos e à
manutenção da casa. Tinha outras mulheres possíveis na-
quele corpo ávido por vida.
Todos os dias, ela acordava e deparava-se consigo. Não
havia para onde correr, mas ela perseguia a si mesma cla-
mando por ar. Naquela maré de caos, a primeira visão que
tinha de si era dos seus seios indo e vindo como ondas. E a
primeira visão que tinha ao levantar os olhos era a do seu
agressor. Olhava para as filhas com um sorriso frágil por
guardar sob ele tantos desafetos. Mas dentro de si rever-
beravam outras memórias, os pulsos das histórias narrada
nos mapas entre uma auréola e outra, era possível jorrar
para fora de si caminhos melhores para seguir. Pérola, a
dona das histórias, assim desejou. A cada lua mudaria o
rumo do mundo para desenhar nele o que bem quisesse
com seus seios. Idealizações por um lado, desejos por ou-
tro e cronometrados, eles poderiam narrar a vida de quem
se apodera a engoli-los, deixando escrito nos palatos o que

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vai acontecer quando descansarem apenas na companhia


um do outro. Os seios são sim encantadores de vida.
Dona Arìnnà insistia na manutenção dos diálogos e pa-
cientemente introduzia ânimo à vida de Pérola, que passou
a se divertir com a caçada aos bilhetes distribuídos pela ci-
dade, que fazia com que ela saísse mais vezes de casa.
Sempre que Dona Arìnnà passava por algum lugar, dei-
xava um bilhete endereçado à Pérola, dizendo:

“Você quase me achou, quase me


pegou e eu quase te beijo!”.

Muitas vezes, com os olhos amorosos, Pérola encon-


trou esses bilhetes com o cheiro das mãos de Dona Arìnnà.
Encontrou-os entre os livros das prateleiras da Biblioteca
Central, embaixo do sabão em pó no mercado que frequen-
tava, embaixo da mesa do bar onde já tomaram vinho, na
sala de bate-papo virtual em plena madrugada. Quando
resolvia telefonar, a secretária eletrônica de Dona Arìnnà
a avisava:

“Há um minuto, você falaria comigo e


quem sabe me convenceria a ir até a sua casa!”.

Os bilhetes preferidos de se ler eram aqueles deixados


sob o ventre nu, quando, no fim da tarde, Pérola ia embo-
ra clandestinamente, correndo para preparar o jantar. Na-
queles bilhetes molhados de suor, o amor escrevia:

“Aqui eu passo as minhas melhores horas em cima desse


lugar quente, o qual eu beijei muitas vezes e descanso. Deixo
você ir com muito custo, mas leve esse cheiro de paz con-

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tigo. Sua saliva em todo o meu corpo, fios de cabelo, calor,


olhares, palavras, tudo isso me molda como quem molda a
argila. Levo seus sons na minha memória e sempre me lem-
bro deles quando quero. Você, a minha tatuagem desenhada
pelo tempo que se passa e pelos momentos que não se apa-
gam dentro de mim.”.

Às vezes, imaginava que ela seria duas, uma quando de


olhos fechados e outra quando de olhos abertos. Mas se
perdia nos sabores da terceira pessoa dela, aquela que une
as duas e sorrateiramente beijava Dona Arìnnà na calçada
da rua. Quando Pérola saía para comprar pão, ia cada vez
mais longe de casa.
Até mesmo indo à feira, pensava:
– Será que hoje eu serei surpreendida? Quando fico
dias sem vê-la, ao invés de procurá-la, eu fico olhando para
os cantos da rua, verifico cuidadosamente a banca de re-
vista para ver se encontro algum envelope ou folhas azuis.
– Estou angustiada, pois não vejo nenhum rastro dela.
Vou desistir de procurar! Não... Como sou boba!!! Olha o
que diz o outdoor:

“Como qualquer crônica, as de amor...


não são para amanhã... Vá hoje ao teatro!”.

Ao meio-dia, tanto o almoço quanto a sopa da noite já


estavam prontas. Às 16 horas, Pérola já havia corrido para
o Café Teatro. Lá se sentou, pediu um chá, abriu o livro e
pôs-se a pensar:
– Cá estou nesse Café Teatro! Apenas esse chá me
acompanha! O tempo passa vagaroso e já estou cansada de
andar pela rua ouvindo somente a minha própria voz em
minha mente!

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Pérola desconfiava que passaria a tarde sozinha. Com


surpresa, viu Dona Arìnnà chegar. Elas passaram pouco
mais de 1 hora conversando, sorrindo e se olhando. Com o
cair do dia, Pérola ia gradativamente tensionando os om-
bros. Disse a Dona Arìnnà:
– Já está anoitecendo e preciso ir.
Mas pensou com seus botões: “Na verdade, eu não gos-
to nem um pouco de chegar após meu marido. Ainda que
eu não saiba a que horas ele chegará à noite, melhor que eu
esteja em casa no fim da tarde”.
– Por favor, não me deixe ir! – era o que cogitava em
dizer, mas a boca tremia só de pensar em revelar que era a
mulher mais triste do mundo.
Elas sempre acabavam se despedindo antes de cair a
noite.
Após duas semanas sem se reencontrarem, Pérola
começou a buscar sinal de fumaça novamente!!! Parada
na porta de casa, pensou: “Será que tem algo na caixa de
correio? Deixe-me abrir... Ah! que alívio! Um papel azul!”.
Deixe-me ler:

“Como qualquer crônica, as de amor... não são para ama-


nhã... Estou na sua sala, tentando tirar o meu vestido. Quero
ficar andando nua por sua sala. Quem sabe ir até a cozinha,
pois estou com fome! Peguei suas uvas... São gostosas... e
suculentas. Hum... essas uvas lembram tudo em você. Estou
saboreando o doce e engolindo-as esfomeada. As uvas estão
geladinhas, vou passá-las em mim, pois estou com calor!”.

Eufórica, nem cumprimentou a vizinha. Fechou a caixa


dos correios, passou pelo portão estreito, com os pensa-
mentos atônitos:
– Ela é louca! Apanha eu e ela!!!

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– Droga de escada! Por que esse prédio não tem um ele-


vador? Mais dois andares para subir! Inferno! Cadê as cha-
ves? Bolso maldito, pare agora de esconder as minhas cha-
ves! Isso é hora da chave cair? Incrível! A chave sob mais
um bilhete! Está manchado com o suco das uvas!

“Desisti de esperar no seu sofá! Pois ficar nua aqui, me


lembra você saindo do quarto lânguida da tarde que se foi.
Isso ainda me lembra o meu retorno ao seu quarto. Acho que
vou mesmo para sua cama!”

Abriu a porta com toda a dificuldade que uma pessoa


bêbada teria. A primeira coisa que olhou foi para o sofá.
Indignada, verbalizou alto:
– Ela brinca demais com as minhas sensações. Essas
uvas espalhadas pelo sofá! Como ela conseguiu entrar
aqui? Hum... Nós vamos morrer, provavelmente!
Exaurida das leituras, correu para o quarto, enxergou a
cama vazia! E um bilhete umedecido em cima, manchado
de gel de cabelo e goles de vinho. A saliva desceu seca com
a leitura:

“Desculpe desarrumar a sua cama, mas eu fui além! Já


estava mesmo nua! Fui sentindo seu cheiro pelos lençóis,
fui lembrando de você. Lembrei-me das suas coxas rodan-
do pela cama, se abrindo e me apertando, forçando contra
minha pele ainda mais preta ao se juntar com a sua. Lem-
brei-me de você solta e encantada com os meus beijos, ou até
mesmo extasiada, desabafando sua fome de vida. O tempo
passou e resolvi ceder às massagens da água da sua ducha
para lembrar dos seus cabelos massageando as tensões do
meu pescoço.”.

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Indignada, sentou solitária na poltrona do quarto mais


apertado que o coração. Como poderia se convencer da-
quele abandono? Tudo molhado, o guarda-roupa aberto e
um bilhete com o cheiro do seu perfume:

“Você demorou, eu me enxuguei com a sua toalha,


vesti as suas roupas e fui embora.”.

Pensou o quanto a vida estava sendo dura com ela. Mal


previa sobre seus reencontros. Só poderia prever mesmo
que iria chover de novo. Pelo menos é o que percebeu ao
se debruçar na janela da área de serviço! Ficou entregue
ao frio do tempo! Foi o que pensou! Mas, mesmo assim, de-
sastrosamente procurou pedaços de papel e letras diferen-
tes da sua por todos os cantos da casa. Já cansada, desistiu,
estirou-se no chão da cozinha e olhou tristemente para a
maçaneta da porta da cozinha, onde um vestido pendura-
do lhe informava:

“Abra a porta porque eu trouxe champanhe! Mas não


abra a porta da área de serviço. Eu não sou qualquer pes-
soa, eu sou a mulher que anda de vestido e o vestido é a mi-
nha má intenção encarnada. Toda vez que o coloco é para
senti-lo roçar nas minhas pernas quando o vento passa, é
para que, de repente, eu não o queira segurar quando o
vento me despir em plena avenida enquanto os carros pas-
sam, as mulheres olham e os homens esbarram em mim. O
vestido é para deixar transparecer a minha pouca vergo-
nha, é para não pôr o sutiã ainda que os seios insistam em
se libertar como quem quer fazer parte do mundo lá fora.
As sandálias? Só servem para carregar meu vestido até as
tuas mãos, e aí...? Eu sofro... porque tuas mãos, essas sim...

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alma cativa

bem souberam como tratar uma mulher da importância


que sou... porque eu não sou qualquer uma... eu sou a mu-
lher vestida de saia... Saia feita de tecido chulo, pronta
para ser remendada, porque a saia pede você. Rasgue-me
para lá, rasgue-me para cá, e nesse balanço, eu sofro. Mas
as tuas mãos... Essas sim me convidaram, numa melodia
encantada, para tirar as sandálias e dançar ainda que
sem música. Estampa? Claro que sim! Está estampado, flo-
rido, colorido, vermelho, preto... Mas, o vermelho?! Esse é
provocador. Ah! suas mãos? Essas sim... mataram a curio-
sidade de saber dos meus caminhos. Suas mãos? Curiosas
como são...? Por causa de suas mãos, uma página se abriu
e você leu embaixo do vestido o quanto eu sou comum sem
ele... Eu me desvelei e igual as outras eu me vi, igual as
outras mulheres de vestido! Mas são elas, as tuas mãos,
são para elas que meu vestido anda pela cidade. Já disse
muitas vezes, eu não sou alguém que passa. Eu sou a mu-
lher que anda sozinha pelas ruas, carregando nos quadris
o vestido que eu quero que você admire. Por favor, abra a
porta para mim...”.

Pérola correu para a porta da sala, estendeu as mãos


até a maçaneta, mas hesitou em abrir. Teve medo de mais
uma decepção. Pensou que acabaria descendo as escadas,
ou que acabaria sendo levada de bilhete em bilhete até o
outro lado da cidade. Respirou fundo, olhou para os pés
cansados, pensou nessa mulher que sempre lhe escapava
e decidiu então jogar os bilhetes pela janela. Pôs um ponto
final na busca.
Uma jovem que passava, vendo aquela chuva de papel
caindo pela janela do prédio, alcançou um dos bilhetes e
leu:

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margarete carvalho

“PARA VOCÊ QUE TEM MULHER NA RUA

Quando tu amas, deitas em chamas até o inferno implodir.


E assim me abandonas, sem nenhuma paciência para
que eu tenha saudades de ti!
Mas, vá mesmo embora mulher, e vê se não erra meu
nome com outros homens, lembrando de si!
Nenhum deles tem seios, curvas ou geme, marcando as
suas orelhas com batom.
Mas deixe o dinheiro da feira, o aluguel da casa antes
mesmo de pedir desculpas e eu deixar você voltar!
Mas vá embora, criatura, se apresse! Chegue com meu
cheiro!
Que diferença faz se é cheiro de mulher?
Depois, eu te perdoo preparando seu drinque, te janto e
deixou você ir... comida!
Comida, não há de faltar nessa casa! Amor também não!
Quando tu vens, te alimento com sonhos,
Quando tu vais, me alimentas o João.”.

A transeunte olhou para cima e pensou:


Ganhei o dia!

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alma cativa

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CARAVELAS

“Atravessador de percursos de vidas, ele sorrateiramente


retira as pessoas de suas rotas. Ávido em dominar as pas-
sagens entre os mundos, ele rouba pensamentos, interfere
no consciente, fazendo com que as pessoas se esqueçam de
quem são, afastando-as da possibilidade de dominarem suas
próprias forças para andar no mundo com dignidade.
O nome dele é Caravelas. Possuía um rosto alongado, um
corpo muito grande, um cérebro inimaginável de extrema
inteligência. Veloz ao vento, alcançava a fala de qualquer
um já no pensar. Vestia-se bem como sempre gostou de ves-
tir-se. Elegante na vestimenta e na postura, falava rebusca-
do e usava os perfumes mais variados das rosas. Sua pele
era meio esverdeada e, às vezes, azulada devido ao fato de
ser possível ver sua corrente sanguínea fluindo sob a pele.
Explorador dos caminhos, desejou dominar todos, não ape-
nas os comuns, já navegados ou os previsíveis de serem en-
contrados, mas queria também os entrelugares, os caminhos
cósmicos, a fim de subordinar e explorar povos.
Senhor Caravelas pesava 80 quilos e sempre usava sa-
patos pretos de couro. Os óculos escuros lhe davam um tom
de seriedade, falava sempre pausadamente e em tom bai-
xo. Corpo esguio, olhos azuis, cabelos sempre bem cortados,
gostava de terno, andava alinhado.
Para alcançar sua meta, tentou de várias formas se
apropriar dos acervos sobre as cidades aparentes. Roubava
os corpos e os escravizava, no entanto tinha muita dificul-
dade em manter o domínio, uma vez que a maioria dos po-
vos rebelava-se contra ele, pondo-o para correr, ou simples-
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margarete carvalho

mente desaparecia em fuga. Por mais que reelaborasse seus


métodos de tortura e destruição, uma força mais inteligente
constantemente o vencia.
Dessa forma, entendeu que dominar os corpos não era o
suficiente, então se empenhou em dominar a consciência.”

– Que horror, Arìnnà. Que personagem louca!


– Espere, não está gostando da história?
– Sempre gosto que leia para mim, minha querida! Mas
está me assustando!
– Por quê?
– Estou sofrendo como se essa figura exótica realmente
existisse!!!
– Pede um chocolate quente, por favor!!! E então con-
tinuemos.
– Certo que sim. Pois bem! Tome devagar esse chocola-
te, querida.

“Imbuído em dominar a consciência, Caravelas e seu


exército capturou povos inimigos de diferentes idiomas, os
misturou e logo em seguida torturou qualquer um que ver-
balizasse seu idioma de origem. E as crianças, assim que nas-
cidas, eram afastadas de seus pais. Ele separou os amantes,
os casados, os parentes, separou comunidades inteiras que
interagiam entre si. Os submeteu aos limites da dor, e essas
dores faziam com que muitos suspendessem a consciência
momentaneamente como forma de anestesiar o corpo. Era
nesse momento que ele entrava na mente das pessoas.
Uma vez na mente delas, colhia as informações que que-
ria em busca de rotas ou de dados que levassem a quem
conhecesse as rotas. Passou centenas de anos fazendo isso
sem êxito. Ele não tinha acesso às informações principais.
Empenhado nisso, acabou por destruir mentes incríveis e a

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enclausurar almas nos próprios corpos. A fim de fugir dele,


as almas se desligavam e os corpos se tornavam corpos mor-
tos em vida.
Caravelas, apesar de conseguir manipular as consciên-
cias, apagando o acervo de informações mentais e colocan-
do outro no lugar através da imposição de idioma diverso,
não descobrira ainda uma forma de acessar o inconsciente
e atingir a alma.”

– Por que choras, Pérola?


– Não faço ideia porque choro ouvindo essa história!!!
– Vamos com isso, continue! Quero saber o que há!!!
– Pede um café para mim?
– Pois então!

“Seu exército era formado por seus descendentes e por


seus lacaios, que são os descendentes dos capturados que
perderam a língua, que nunca souberam realmente de si,
que acreditam ser descendentes da linhagem de Caravelas.
As almas desses lacaios estão cativas nos corpos, elas vivem
um limbo identitário repleto de sofrimentos que não sabem
explicar. Habitam tempos em que todas as vezes que a noite
chega vivem um mundo de sustos.”

– Por sinal, está quase chegando o meu horário!


– Vai mesmo, Pérola, voltar para o seu mundo de sustos?
– Continue, estou a te ouvir! O que esse Caravelas faz
diante da falta de êxito em alcançar o inconsciente?

“Ele destruiu a mente de gerações inteiras de povos. Ele


retirou de todos(as) a possibilidade de vida plena. As pessoas
vivem no automático, cumprindo regras que não sabem nem
dizer porque existem e porque as cumprem. A dor de ter par-

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margarete carvalho

tes do corpo sendo dilacerado em vida diariamente promo-


veu desmaios, reações psicológicas graves, surtos em massa.
No lugar do legado histórico, cultural que o idioma na-
tivo resguardava, ele introduziu outro idioma com infor-
mações que promoviam aos capturados pouca autoestima,
a indução depreciativa sobre si mesmos, condenando-os ao
fracasso político, social e psicológico, econômico, sexual,
cultural e religioso. E por séculos, ele promoveu práticas so-
ciais que retiraram o desejo da maioria dos cativos de ser
outra coisa que não fosse descendente de Caravelas. Como
isso nunca foi possível na prática, se tornar um Caravelas,
ele acabou por fragilizar as mentes e, como consequência,
abriu espaços para a intensificação da opressão e da explo-
ração, que era o seu intento.
Mas o pior estava por vir. Após todo o genocídio e et-
nocídio causado em busca dos mapas das conexões entre as
cidades aparentes, como essas que estamos e que facilmente
descrevemos, com as cidades cósmicas, ele descobriu o prin-
cipal. Ele quis a criadora das conexões.
As conexões nunca estiveram aí postas, apesar de alguns
acreditarem nisso quando percebem as estudiosas dese-
nhando seus mapas. Na verdade, elas são produzidas pelas
pérolas.
Ao passar a saber sobre as pérolas, que são as mulheres
criadoras de conexões cósmicas, Caravelas perseguiu Pérola
Negra por todos os tempos. Pérola Negra foi a mais persegui-
da porque dominava os caminhos dos abismos. Através dos
abismos, as conexões são mais complexas e mais extensas. Por
meio deles, se fazia possível ligar uma galáxia a outra.
As mulheres, quando lançaram Pérola Negra no abis-
mo da Cidade do Pêndulo, sabiam disso, mesmo que naque-
le momento Pérola Negra não estivesse com a consciência
completamente ativa.”

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– Preciso ir! Meu marido vai chegar.


– Está bem. Nos veremos amanhã?
– Impreterivelmente.
Todas as tardes, Arìnnà Àjò narrava através de Dona
Arìnnà os livros da Ilé Èkó Gíga, realimentando o incons-
ciente de Pérola Negra. Ela fora capturada por Caravelas,
que a aprisionou em histórias de vidas deprimentes. Ca-
ravelas a fez sofrer de diversas formas a fim de, através
da dor, conseguir acessar seus saberes. No entanto, sendo
ela uma potência que constrói caminhos, transformou seu
inconsciente em um engenho poderoso para dificultar as
intervenções de Caravelas.
Uma vez sob o domínio de Caravelas, Pérola Negra per-
dera o acesso à sua consciência. Ela não sabia nitidamente
quem era apesar de ter vivido várias mulheres e sofrido
com todas elas. Mas o seu poder era extremamente pecu-
liar e forte. Ainda que não acessasse temporariamente os
saberes que trazia, ela intuitivamente caminhava entre as
cidades e guardava em si o desejo de vingar-se. Ela estava
se debatendo em luta incessante, não sabia contra quem
ou contra o que, o que a angustiava.
Todas as vezes que Amò Dúdú encontrou Pérola Negra
foi porque Arìnnà Àjò criou caminhos para isso acontecer.
Pérola Negra também edificou inconscientemente seus
próprios caminhos e por diversos períodos, passou mo-
mentos estudando na Ilé Èkó Gíga sem que ninguém a vis-
se. Todos e todas que acompanhavam Pérola Negra vez ou
outra eram aprisionados(as), ficando cada vez mais difícil
de resgata-la.

Na tarde seguinte, a primeira coisa que Pérola pediu


foi que Dona Arìnnà abrisse imediatamente o livro, pois
queria saber mais sobre a história que ela lia.

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– Por sinal, quem escreveu esse livro?


– Obí Gbánja. Ela escreve sobre tudo.
– Mas que nome estranho!!! Coisas de África, não é?
Está me dando medo!!!
– Não tenha medo, não tem porque ter medo. Não é
porque o colonizador demonizou a África que deveríamos
acreditar nisso. Se acreditássemos, estaríamos demoni-
zando nossa própria existência. Eu sei que não sou mal-as-
sombrada. Você é?
– Meu marido, quando brigava comigo, me chamava de
bicho da cara preta.
– E por que você não rosnou para ele sair correndo, en-
tão? Aquele covarde!
– Pérola, você condiz ao nome que tem.
– Vamos, leia para mim, pois quero muito distrair a ca-
beça!
– Sim, minha querida. Leio e lerei para você todas as
vezes que me chamar.
– Prepare-se.
Mais uma vez, Dona Arìnnà, com sua voz doce e forte,
narrava para Pérola sobre seus saberes. A cada narrativa,
ativava as potências que Pérola trazia no seu inconsciente.
Está tudo registrado na biblioteca cósmica, era de lá que
Dona Arìnnà trazia os livros. Dona Arìnnà abriu o livro e
começou a ler:

“A cada geração, Caravelas reinventava formas de che-


gar ao inconsciente e se aproximar cada vez mais da alma.
Manipulava os discursos, repetia as ideologias, apadrinhava
os capturados e seus descendentes, alimentava-os com pe-
quenas regalias, os seduzia fazendo-os acreditar terem po-
der. Assassinava, com requinte de crueldade e em público,
todo aquele(a) que se rebelasse, para com isso amedrontar.

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Precisou matar muitos, pois poucos se amedrontavam. A


maioria resistia. Encarcerou milhares, empobreceu de to-
das as formas e cometeu uma infinitude de ações dolorosas,
desgastantes, extrapolando os limites que um ser humano
poderia enfrentar.
Pérola Negra foi caçada de todas as maneiras, mas con-
seguiu fugir todas as vezes. Com ajuda ou sem ajuda, ela cor-
ria, cansada de ser a caça e tendo o trabalho de promover as
conexões que acabavam sendo sempre interrompidas pelos
ideais de quem queria dominar os caminhos. Entretanto Pé-
rola Negra resolveu que era hora de caçá-lo. Uma vez que
ela poderia criar caminhos, entendeu que faria os caminhos
até Caravelas, a fim de contra-atacá-lo.
Mas, para isso, precisou aprender a trabalhar todas as
suas energias para que promovessem a emergência da cons-
ciência e do inconsciente. Na busca de criar caminhos para
interromper Caravela, Pérola Negra vivenciou na pele todas
as perseguições seculares. No entanto, Pérola Negra progre-
dia paulatinamente com o trabalho de criar conexões, pon-
tes, caminhos entre tudo.
Os protetores dos caminhos e os nômades que fluíam pe-
los mundos a auxiliavam, cada um com sua habilidade.”

– Como caçar uma consciência?


– Me pergunto isso o tempo inteiro, Pérola! Mas não
tenho o alcance dessa resposta.
– Mas ela chegará até ele? Você já leu o livro inteiro,
poderia me dizer logo, não tenho tanto tempo assim!!
– Veja, no fim do livro ainda não está registrado como
ela conseguirá isso. Até porque ela está tentando.
– Ora! Eu já havia mandado Caravelas aos infernos!
– Pois bem, não adiantaria!
– Então!

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margarete carvalho

– Então o quê?
– Se ele atinge a consciência dela é porque ele a reco-
nhece. No entanto, ele não a alcança por completo porque
não a reconhece com a mesma importância do que a si pró-
prio. Que idiota! Não acha, Arìnnà? Não é à toa que, em
alguns momentos, ela se torna um fantasma diante dele. E
aquilo que poderia ser sua fraqueza se torna a chave-mes-
tra para ela.
– Você é incrível!
– O que ela está fazendo, então?
– Não deu a mínima para ele. Ele só será o que é se for
reconhecido como tal. O problema é que ele passa os sé-
culos querendo mostrar isso. Atravessando a vida alheia,
empatando as pessoas de usufruírem o mundo. Adoecen-
do a si e ao mundo.
– Isso me fez lembrar da minha relação doentia com o
meu marido. Ele não quer meu amor e compartilhar a vida,
ele quer que eu o reconheça como meu superior, como
meu dono. Pelo menos essa é a explicação que eu tenho
para um cara que me despreza tanto, mas não me deixa de
uma vez por todas.
– E porque você nunca foi embora?
– Me tornei dependente dele. Passei boa parte do tem-
po tentando convencê-lo de que ele não poderia me tratar
da forma que me trata. Mas é uma tarefa difícil que me cus-
tou muito tempo de vida.
– O que fazer com uma pessoa com essas característi-
cas?
– E o que fazer quando pessoas assim adoecem e exter-
minam civilizações inteiras?
– Como não ser cativa disso? Resistir e lutar é impor-
tante, mas... E nossas vidas? Quando viveremos? Quando
usufruiremos de fato da vida?

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alma cativa

– Dona Arìnnà, eu acho que não voltarei mais para casa


hoje.
As duas saíram do café e resolveram caminhar mais
devagar naquela tarde, esperar a noite chegar sem medos,
angústias e sem imaginar os horrores que poderiam ocor-
rer. Passaram pelo passeio da casa de Pérola e, à frente,
Dimas vinha esbaforido. Porém, não a enxergou. Pérola
Negra havia despertado do pesadelo de ser dona de casa, e
Arìnnà Àjò voltou a ser quem realmente era.

– Pérola Negra, minha mestra! Está cada vez mais difí-


cil te trazer. Eu não sou tão criativa assim para reinventar
formas de você emergir.
– Entendo, querida. A questão é que quanto mais en-
gendro caminhos no meu inconsciente menos te escuto.
– Espero que tenha boas notícias sobre seu trabalho,
porque, se não conseguir, nós correremos o risco de ficar-
mos todos cativos. Às vezes, penso que nem mesmo a mi-
nha capacidade de me remodelar dará conta de sentir as
dores da perseguição.
– Não se desanime.
– Vamos para a Cidade do Pêndulo.
– Vou catar uma galinha e já volto!
– Não preciso de galinha.
– Inventei uma passagem pelos abismos.
– Tenho medo dos abismos.
– Você!!!???
– As coisas estão ficando cada vez mais fora do contro-
le. Você está se tornando cativa. Logo você que costuma-
va esperar sentada na beira do abismo, apostando sobre
o tempo do meu retorno. Você se lembra dos navios que
ajudou o seu filho a roubar? Você se lembra que já atra-
vessou o deserto e as miragens te divertiam? Lembra que

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margarete carvalho

manuseia as energias do ouro? Eu crio os caminhos e você


os registra. Quantas vezes, me cobrou caminhos novos!!!
Vamos lá, confie em mim pelo menos.
– Isso eu acho difícil! Perder a confiança jamais! Mas
não subestime Caravelas. Ele nos faz perder a confiança
em nós mesmos, no nosso semelhante e faz com que dese-
jemos a ajuda dele!
– Vamos lá, você precisa confiar! Não se preocupe, é
menos doloroso que a forma como nascemos nesse mun-
do. Há uma forma mais simples de entrar na Cidade do
Pêndulo. Sorria com amor para mim!
Assim Arìnnà Àjò o fez. Em segundos, estavam elas sen-
tadas no pêndulo, ora beirava a Ilha de Itaparica, ora beira-
va as ilhas de Cabo Verde.
– A cidade é linda!
– Espere só para ver e anotar as conexões que fiz até as
cidades interplanetárias! Você terá muito trabalho, queri-
da!!!! E precisaremos de mais bibliotecas.
– Como fico feliz em te ouvir falar assim!
– No entanto, precisaremos nos libertar por completo
das atmosferas de pavor criadas nas cidades aparentes.
– Assim desgastadas, não suportaremos as viagens.
Precisamos nos fortalecer.
– Não se preocupe, falta pouco.
– Precisamos ser rápidas, pois está ficando cada vez
mais difícil de voltar após estarmos periodicamente cati-
vos. E Caravelas nos enfraquece com tantas torturas. E a
cada geração, ele danifica cada vez mais nossas memórias.
Ara Wúrà, por exemplo, precisa cair ouro nele para ele agir
como ouro. Amò Dúdú passou a se questionar sobre dois
gêneros, esquecendo-se que nele há infinitas possibilida-
des de ser. Preocupados com nossa memória e orientados
por Obí Gbánja, Omara Omnira e seu irmão Mate Masie

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estão construindo um Ilé Èkó Gíga em cada cidade já re-


gistrada. E eu estou desaprendendo os caminhos que você
criou. E que por sinal está tendo dificuldades de criar ou-
tros.
– Não pense que não entendo a gravidade da situação a
cada período que passa e a cada dor vivida. Desde que me
aprisionaram e eventualmente a todos e todas, está tudo
posto em risco. Vamos, preciso dos livros de Obí Gbánja
sobre Caravelas.

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REFORMULAÇÕES

Adentraram a cidade do saber onde se acumulavam to-


dos os estudos, registros de rotas, mandingas para abrir
os caminhos e toda a espécie possível de descrição entre
os mundos. Obí Gbánja, a nômade mais velha conhecida
pela maioria dos viajantes e habitantes em passagens de
diversas cidades dos entre mundos, tornou-se conhecida
porque era uma das anciãs que ainda permanecia no mes-
mo campo cósmico, a fim de apoiar as viajantes que se mu-
dariam para mais distante. Nessas passagens, sempre era
necessária a presença de guias experientes, e que apenas
poderiam partir de vez quando deixassem alguém para
substituí-la, a fim de vivenciar as cidades mais evoluídas e
incríveis, difíceis até mesmo de serem imaginadas.
Pérola Negra pediu licença a Obí Gbánja para adentrar
as câmaras complexas onde se reservava imagens das for-
mações dos planetas.
– O que precisa descobrir sobre as origens?
– Tenho uma tese. Preciso de sua orientação.
– Qual?
– Caravelas não apenas entra nas nossas mentes, ele se
alimenta da nossa consciência. Ele precisa de nós em vida.
Se ele exterminar a todos nós de uma única vez, ele defi-
nhará sem nossa sabedoria em lidar com o mundo. Veja
aqui nessas imagens, somos nós quem manuseia o mundo
com o nosso trabalho. Você vê algum descendente dele a

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trabalhar? Na nossa total ausência, ele sucumbirá. Ele nos


aprisiona porque sabe que nossas viagens estão ficando
cada vez mais distantes e que não voltaremos. Observe-
mos os povos dos quais ele apagou totalmente a memória,
fazendo-os sucumbir em todos os sentidos, fisicamente e
culturalmente a ponto de não terem o mínimo de sustenta-
bilidade de se reerguerem. Eles já não o interessam mais,
já não podem lhe dar o que precisa. Por isso, ele não nos
assassina por completo. Porque precisa de nós. Apesar de
todos esses séculos de martírios que ele nos fez passar, fa-
zendo com que acreditássemos que ele é imbatível e temí-
vel, na verdade o fraco é ele diante das nossas potências.
O poder que ele manuseia não é de sua propriedade, é um
poder surrupiado, do qual ele não sabe bem o que fazer.
Ele não sabe fazer nada. Ele não sabe construir caminhos,
apenas anda pelos caminhos que fizemos, se apropria do
que nos pertence, nosso corpo, nosso legado histórico. Não
conhece e não reconheceria os povos de lugar algum, quiçá
os povos intergalácticos. Eliminou as línguas nas quais re-
gistramos diversas respostas. Não pode imaginar a função
nem mesmo dos cálculos sobre cada pedra das pirâmides.
Manter uma identidade significa sustentá-la através do
diálogo com outras identidades. O diálogo que estabelece-
mos com Caravelas dá o tom de sua importância.
– Onde quer chegar, Pérola Negra?
– Perceba, Arìnnà Àjò. Sem mim, o que você faria? E eu
sem você, o que eu faria? A sua importância no mundo de-
pende do exercício da minha importância. Se eu não crio
caminhos, você não viaja. Se você não viaja, Obí Gbánja
não teria muito que registrar. Sem criadoras e criadores de
mundos, o que eu faria? Apenas fazemos sentidos uns com
os outros e umas com as outras. No dia em que desequili-
brarmos essas relações, impondo desníveis de importân-

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cia, não faremos mais nada de produtivo acontecer.


– Dessa forma, Pérola Negra, podemos deduzir então
que ele desequilibrou nossa existência.
– Não apenas a nossa, mas a dele também. E me per-
gunto, o que aconteceria se o exterminássemos?
– Não consigo imaginar, Obí Gbánja, que o extermínio
de Caravelas nos causasse desequilíbrio maior do que o
que ele já causou até agora.
– Minha ideia era caçá-lo e me vingar. O ódio por ele
me moveu por muito tempo. Percebo que essa energia
própria do ódio, da ira, também é importante fonte im-
pulsionadora e serve para a minha sobrevivência. O que
aconteceria se não tivéssemos a indignação diante da
perversidade? Como nos defenderíamos se fôssemos
completamente imbuídos de misericórdia por quem nos
assassina todas as vezes? Ele precisa de resposta! Nós
precisamos respondê-lo.
– Ele concentra bastante todos os tipos de energias.
Ele sabe manusear ao seu favor sentimentos de posse, ira,
raiva, vergonha, ódio, orgulho, amor, compaixão, solidarie-
dade. E não acho justo dispensarmos qualquer energia. Eu
admito que não sou composta apenas por energias positi-
vas. Está tudo aqui em mim latejando. Não posso ignorar
que além do amor, da compaixão, a ira, o ódio e o orgulho
circulam nas minhas veias. Eu preciso aprender a usar es-
sas energias. Eu preciso deixá-las emergir na hora que pre-
cisar. Eu acho estranho esse tipo de comportamento que
aprendi a ter nos períodos em que estive presa nas vidas
das cidades aparentes. Lá as pessoas foram ensinadas a
ser religiosamente boazinhas e ser bom significa para elas
reprimir as energias que eles chamam de ruins, como o or-
gulho, o ódio. No entanto, não se dão conta de que essas
energias continuam ali dentro de todos e todas. Elas fazem

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parte da composição das pessoas. É mentira dizer que es-


sas energias nunca perpassaram em algum momento da
vida das pessoas intituladas do bem. Acredito que preci-
samos aprender melhor sobre essas emoções reprimidas,
até porque penso que o desastre maior é a ignorância ope-
rar as energias da ira, do orgulho, do ódio, da vergonha.
Por isso que sempre que escapo do cativeiro, venho para
nosso Ilé Èkó Gíga refletir, estudar, ler sobre nosso legado,
resgatar as memórias que Caravelas apagou de mim e des-
fazer as fraquezas que ele me impõe a fim de me dominar.
– Você está me deixando cheia de orgulho, minha que-
rida Pérola Negra. Está no caminho certo, precisamos nos
atentar para isso! Porque realmente não pensamos muito
sobre isso, apesar de todos esses sentimentos também es-
tarem aqui latejando nos nossos corpos: o amor e o ódio,
o orgulho e a vergonha, a ira e a compaixão, a solidarieda-
de e o egoísmo. Nosso corpo é o pêndulo dessas emoções,
e cabe a nós decidirmos até onde vamos nos movimentos
dele. Não há como pararmos nossos corpos, e quando isso
acontece é porque estamos mortos.
– Isso. Veja, por exemplo, eu reconheço que o momen-
to mais satisfatório para mim quando consigo estabelecer
uma conexão entre as cidades não é a conexão em si, mas
o orgulho de vê-los caminhando e sorrindo para mim, ad-
mirando o que fiz. É isso que me move, o orgulho de fazer
algo pelo qual serei reconhecida pelos meus. Naqueles mo-
mentos, eu fiz sentido para mim mesma.
– Ele defendeu a sua verdade por meios violentos e
perversos. Mas nós também temos a nossa maneira de
defender a nossa verdade. No entanto, ficamos cativos
dos processos dolorosos que ele nos impôs. Temos ins-
taurada, nas nossas mentes, uma estrutura montada que
já não temos tempo e nem condição de alterar. Mas temos

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a possibilidade de mudar a perspectiva e reorganizar sa-


biamente aquilo que já está aí posto. E o principal, ainda
podemos resgatar nossas matrizes, e para isso nós pre-
cisamos nos voltarmos para nossas bases, a fim de deixá
-las emergir e confrontar com a estrutura que Caravelas
impõe a todos nós.
– Pretendo reinstaurar o conflito entre nós, com a dife-
rença que agora eu sei mais sobre mim. Que por mais que
ele arrancasse parte das minhas memórias me enclausu-
rando em vidas miseráveis, ele não é mais que eu ou que
qualquer outro ou outra aqui. O seu poder fora arrancado
de nós. É hora de resgatarmos esse poder.
– Pretende matá-lo?
– Matar não tem muita graça não!
– Quero reparação! Ele vai carregar o peso de cada
nação exterminada, de cada estupro, de cada século pa-
triarcalista, vai inchar sem implodir com cada lamento,
cada vida cessada, cada caminho interrompido. Vamos
devolver à sua mente cada memória ruim que nos fez vi-
ver. Cada açoite, cada tortura e todo tipo de exploração
causado fará parte da sua visão. Retomaremos nossa me-
mória de fato sobre nós e devolveremos os martírios que
nos causou.
Ele vai sucumbir em vida, ficará cativo do seu veneno
e da própria lógica de dominação. Está na hora de resga-
tar tudo aquilo que ele se apropriou, aquela alma sebosa.
Ali, nem cortando a cabeça morre. Há coisa pior do que
morrer. Não ser reconhecido é pior que morrer. E ser mal
reconhecido é a desgraça em vida!
– Mas isso seria algo justo de se fazer? Pagar na mesma
moeda?
– Bom, eu tenho obrigação de ser justa. Eu penso nisso
até porque busco o recurso necessário para refletir sobre

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isso. Não se trata de responder na mesma moeda. Não pos-


suo essa moeda. Busco reparação e precisamos parar as
injustiças que ele nos promove. Entendo, não posso deixar
de escutar os seus questionamentos, uma anciã tão expe-
riente. Sou inteligente e seguirei sua orientação. Agradeço
pelas funções a mim atribuídas, pois, por causa delas, a mi-
nha obrigação é ser ousada.
– Eu não faço perguntas que não me permitam seguir
em frente. Por isso, estou aqui. Esse papel cauteloso, coe-
rente e justo é seu! A única coisa que tenho certeza é que
merecemos vida plena. Há de convir que cada pedaço de
pele arrancada nos açoites não mediria esforços para re-
sistir à dor. Eu sei do que sinto! Ele vai ter resposta.
– Você pretende usar seu tempo para se vingar ao invés
de continuar criando caminhos?
– Ele roubou meu tempo! Todas as vezes que me fez
cativa, eu não criei caminho algum! Tudo foi dor!
– E agora, não está cativa dessa ideia? Você está pen-
sando com os sentimentos, e a razão? Qual seria sua ideia,
caso estivesse pensando friamente com a razão?
– Quanto à razão, com relação a mim, ela que ande
junto às minhas emoções, porque, no dia que uma coisa
se sobrepor a outra qualquer ideia, não me servirá. Quem
separa as duas coisas e as classifica em grau de importân-
cia dando legitimidade ora a um e ora a outro são os des-
cendentes de Caravelas. Eles alternam entre a razão e as
emoções no momento em que lhes é conveniente, a fim de
nos manipular.
– Eu estou movida pela imbricação dos dois.
– Você não tem medo de se igualar a ele?
– Não. E se isso acontecer será ruim para ele.
– Você não tem medo de se perder no seu inconsciente
e ele te dominar?

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– Não. Ele me tirou tudo e eu já não tenho nada a perder!


– Se você for dominada e se voltar contra nós? O que
deveríamos fazer?
– Se conseguirem, me cacem!
– Nós não somos caçadores de pessoas!
– Fomos escravizados por diversas gerações, as ex-
plorações apenas mudam de nomenclatura e na forma de
operar. Ele arrancou de nós toda nossa humanidade. So-
mos mortos em vida! O que quer com tantas perguntas?
Preciso que seja direta comigo, por favor.
– Penso que tudo tem uma consequência, e ele terá
a dele mais cedo ou mais tarde! Não pode ficar ileso,
usufruindo de nossas energias, sugando nossas almas. E
penso também que não somos Caravelas. Não pensamos
como ele, temos outros recursos racionais e emocionais
para além daqueles que você citou em suas reflexões.
Está certa quando entende que precisa resgatar as ma-
trizes. Lá está a resposta. Lá estão as orientações coe-
rentes sem contaminação das vivências que Caravelas a
fez passar e a qualquer um de nós. Perceba que qualquer
coisa que façamos motivada pelo que ele nos fez, terá
orientação e propósitos dele implícitos. Você precisa es-
tar mais próxima das origens, Pérola, e decidir através da
sua matriz porque, se decidir através da dor que nos foi
causada, estará caindo na armadilha das mentalizações
de Caravela. Fez bem quando se refugiou no seu incons-
ciente. O próximo passo é se orientar pela matriz do seu
inconsciente, aquela deixada por seus pais e por nossos
ancestrais. Qualquer coisa que faça guiada por Carave-
las consequentemente estará agindo contra você mesma.
Lembre-se, sempre de alguma forma há manipulação de
Caravelas. E estará seguindo o que ele quer, sempre ha-
verá armadilhas.

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– Aprendi a fazer caminhos pelo meu inconsciente.


Estou na busca das minhas matrizes. Entendi suas sábias
reflexões. Seguirei por completo sua orientação. Sinto
realmente que agora, com os pensamentos que me pro-
porcionou, terei um caminho melhor para buscar. Estou
aliviada com a ponte que fez em mim. Agradeço imensa-
mente, Obí Gbánja, por evitar que a ignorância guiasse
minhas energias.
– O preço da ignorância seria alto para todos e todas.
Ninguém sairá ileso ou ilesa disso. Por isso, sei que não
posso fazer nada que não seja bem articulado entre todos
e todas nós.
– Valerá a pena? Se falharmos, sabe das consequências?
Se Caravelas ultrapassar as fronteiras e tiver acesso às ci-
dades cósmicas, ele repetirá toda a sua exploração nas ci-
dades dos entrelugares e continuará nos perseguindo até
conseguir acessar também as cidades interplanetárias. E
novamente, com ideias imperialistas, seguirá em busca de
dominar. Você pensa nisso?
– Penso sim. Mas se não falharmos, nos libertaremos
desde já.
– O passado é meu guia, minha jovem Pérola Negra. E
ele nos informa que está coerente em sistematizar a res-
posta que precisamos dar a Caravelas, bem como se não
fizermos isso, ele em algum momento terá acesso às cida-
des cósmicas. Por isso, ele caça todas as pérolas que te-
mos. Ao longo dos tempos, vínhamos reagindo a algo que
é sistemático, repetitivo. Por diversas vezes, evitamos que
Caravelas entrasse aqui na Cidade do Pêndulo. A cada sé-
culo, ele descobre a existência das cidades. E, a partir daí,
age criando maneiras de acessá-la. Ele já entrou na Cidade
Mediterrânea, mas não conseguiu respirar estando lá. Se
não nos apressarmos, ele vai descobrir porque não conse-

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gue respirar lá e resolverá isso. Essas reflexões que faze-


mos possibilitam que sistematizemos ações para impedir
os ataques deploráveis e degradantes desse famigerado.
– E o que aconteceu? Como foi que ele entrou na Cidade
Mediterrânea?
– Você esteve lá, Pérola Negra, mas ele retirou essa me-
mória de você. Ele havia capturado você e suas irmãs, to-
das idênticas a você.
– Eu tenho irmãs? Quanto de minha memória ele já re-
tirou!!!
– Ouça, ele matou uma de suas irmãs na sua frente. Você
foi tomada pelo impulso da ira e da indignação, avançou
sobre ele e o abraçou, levando-o pelos caminhos cósmicos.
Você cogitou jogar ele em um dos abismos. Mas, em pouco
tempo, ele adentrou sua consciência e copiou os caminhos
da Cidade Mediterrânea e fez com que você o levasse para
lá. Ao entrar lá, ele surpreendeu-se não apenas com a quan-
tidade de ouro, uma vez que esse minério é um condutor
importante de conexão dessa cidade com os oceanos, mas
também se surpreendeu com a falta de possibilidade de
conseguir respirar. Ele queria o ouro, enquanto nós apren-
demos a deixar o ouro nos querer e nos conduzir. Então ele
sufocou e estava prestes a deixar de existir.
– E o que aconteceu? Por que ele ainda está vivo e exis-
tindo?
– Graças à sua misericórdia. Você o abraçou e o levou
de volta para uma das cidades aparentes.
– Eu fui misericordiosa?
– Sim!
– Que lástima!
– Não diga isso, Pérola. Ao usar as energias da miseri-
córdia e dar importância à vida, mesmo que tenha sido a
dele, você salvou o nosso acervo de memória que ele havia

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roubado até aquele momento. Se ele for exterminado, per-


deremos a oportunidade real de resgatar as memórias que
ele nos roubou.
– Nunca o eliminamos por isso. Eu não o mato com mi-
nhas próprias unhas porque, se eu fizer isso, jogarei fora
a chave do cativeiro com todos nós dentro. Se não resga-
tarmos nossas memórias, não teremos mais acesso a nós
mesmo, à nossa identidade, ficaremos presos nas identi-
dades que ele nos atribuiu. Você era muito mais jovem,
Pérola Negra, e a dor do extermínio de sua irmã ainda tão
pequena fez emergir as energias da revolta em você e você
voou nele. Tivemos sorte das energias da misericórdia agi-
rem. Depois, a resgatamos de imediato e explicamos a você
sobre de que forma realmente ficaríamos libertos.
– Percebe, essa sua ânsia em atacá-lo e essa miseri-
córdia é uma manipulação dele. Ele quer que você avance
nele, e com certeza há um objetivo nisso.
– Infelizmente, não posso narrar sobre cada passo, já
que a qualquer momento sistematicamente qualquer um
de nós é raptado e nossa consciência invadida. Lembremos
que todo esse nosso diálogo está sendo ouvido por ele. Isso
que te narrei, ele já sabe.
– Estou me sentido uma tola!
– Você não é tola. Você está sendo feita de tola por ele.
Você esqueceu exatamente quem é, tem poucas lembran-
ças. Mas confie em você. É a única coisa que posso dizer,
sabendo que ele escuta e monitora a Ilé Èkó Gíga que cons-
truímos. Confie, querida.
– Filha, nós sempre encontramos um caminho. Inven-
tamos várias formas de nos comunicar. Ele descobre, tenta
ter acesso, mas a gente reinventa. Uma vez, inventei uma
forma de contar histórias às nossas crianças que estavam
cativas, realizando trabalho forçado nas lavouras das ci-

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dades americanas. Os desenhos nas nuvens são narrações


nossas. Eu levava as histórias dos nossos povos às crian-
ças e elas assistiam. Apenas precisava que se deitassem no
chão. Floresta Azul nos ajudava a reunir as crianças. Mas
Caravelas, quando descobriu que as imagens nas nuvens
eram mais que um passatempo infantil, tratou de fazer
com que as crianças não prestassem mais atenção nos
céus. As crianças, diante de tanto desprezo e dor causada
pela escravização, passaram a andar olhando para o chão,
e a maioria delas foram enfurnadas dentro das minas de
ouros.
– Onde está Floresta Azul?
– Espero que ninguém saiba para que isso não seja dito
ou lido por ele nas nossas cabeças.
– Sei que você está engendrando no seu inconsciente
um caminho para lidar com a situação. Mas precisa lem-
brar que Caravelas não é o objetivo. Nós somos o nosso
objetivo. Gostaria de poder te narrar mais coisas, mas sa-
bemos dos riscos que corremos.
– Percebe? Não tem sido fácil sistematizar algo diante
das habilidades desse inimigo. Ele rouba nossa memória,
estuda nossa mente, manipula. Está sendo demorado por
isso. Mas estamos trabalhando em conjunto, ainda que não
possamos narrar tudo entre nós.
– Precisamos ir.
– Querida, conforte seu coração quando chegar à ci-
dade aparente. Você foi novamente capturada. Nesse mo-
mento, está presa em um manicômio. Eu estou no presídio,
a maioria de nós está no presídio.
– Arìnnà Àjò poderia nos reconduzir?
– Ainda posso. Mas está cada vez mais difícil.
– Eu estive presa por muito tempo dentro de um zoo-
lógico. Foi a primeira vez que viram uma mulher negra. O

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zoológico ficava na Europa. Eu dormia ao relento, comia


ração, e era adestrada à base de chicotes. Marcaram-me
com ferro quente e apagaram 60% de minha memória.
Depois, fui comprada por um circo onde todas as noites
era exposta nua e submetida a uma série de atrocidades.
Um circo de horrores foi o que vivi. As conexões em minha
mente estão cada vez mais frágeis.
– Sabemos. E todas as vezes que nos reencontramos te-
memos sempre que seja a última vez. Mas confio em você,
Arìnnà Àjò.
– Para onde foi levada dessa vez?
– Estou mais uma vez atravessando o mar Mediterrâ-
neo, dessa vez em um bote com 80 pessoas. Preciso muito
da ajuda de Amò Dúdú.
– Força para todas nós.
– Tentaremos sempre.
– Sempre
– Sim, sempre.
– Precisamos ir.

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TRAVESSIAS

Caravelas ainda não havia conseguido acesso completo


ao inconsciente de Pérola Negra, apesar de ter tentado in-
vadi-lo a todo custo. Gradativamente, Pérola Negra estava
perdendo o acesso ao seu acervo ancestral a cada momen-
to em que Caravelas atravessava o seu caminho, fazendo-a
viver a morte em histórias de vidas incessantemente do-
lorosas. À medida que sua memória ia sendo apagada, Pé-
rola Negra também ia se esquecendo de si, perdendo sua
identidade e, com isso, os recursos necessários para estar
no mundo de forma digna.
Diante dos ataques à sua memória e da devastação do
seu consciente, Pérola Negra refugiou-se no seu incons-
ciente. Para tanto, passou períodos longos criando cami-
nhos possíveis ao inconsciente e às informações ancestrais
em seus genes. Ao acessar todos os dados por completo,
Pérola Negra deixou cada vez menos de emergir para a
consciência. Desconectou-se daquelas identidades para
tentar se reconectar a uma outra de si.
Essa parte de seu inconsciente, aquela ainda não dani-
ficada pelos ideais de negação de si para ser outrem, Pé-
rola Negra ainda podia preservar das memórias impostas
por Caravelas. De lá, ela trabalhava em busca das respostas
necessárias para lidar com quem manipulou a consciência
e a identidade de populações inteiras. No entanto, ao refu-
giar-se em si, buscando se distanciar dos direcionamentos

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das ações do seu corpo para que elas se adequassem ao


padrão de comportamento imposto nos contextos de ex-
trema dominação, Pérola Negra passou a ser tratada como
louca.
Tentava cobrir o corpo, mas mal conseguia. Não tinha
medo de nada, de completamente nada. Andava por onde
queria sem se dar conta das vulnerabilidades. Perdera a
censura das ideias, das palavras e dos movimentos. Leva-
da ao manicômio por ter deixado de saber demonstrar co-
nexões entre as frases, Pérola Negra foi jogada com mais
duzentos corpos negros e nus em um galpão fétido, úmido,
e mofado. Na entrada do galpão, havia uma placa descre-
vendo que se tratava de um local de terapia intensiva. Era,
no dia a dia, submetida a uma série de experimentos, ditos
científicos, que testavam os limites do corpo à dor e à tor-
tura mental.
Doente mental, retardada, louca, doida, Pérola Negra
ouvia ecoar ao longe essas palavras no corpo. Buscava fu-
gir delas, pois uma vez pega por elas formataria suas ideias
e corria o risco de se alienar novamente. Quando, em pe-
ríodos de cativeiro, era obrigada a seguir as orientações
interpostas na língua de Caravelas, acabava por aprender
a odiar a si mesma, a ponto de se desprezar e desejar a
cura para si e para os seus. As interrupções do caminho,
as imposições da vida e as vivências de martírio induziam
os(as) aprisionados(as) a se embranquecer.
A última vez que Pérola Negra olhou-se no espelho, esta-
va com os cabelos alisados, os fios retos até o meio das cos-
tas. O nariz estava cirurgicamente afilado. Nos olhos, len-
tes de contato verdes alternavam com azuis. Usava cremes
embranquecedores que descascavam a pele diariamente,
reduzindo a camada escura. Suas roupas eram idênticas as
que se viam nas capas das revistas norte-americanas.

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Na biblioteca de sua casa, a maioria dos títulos era de


oitocentistas europeus. Ávida leitora, desejosa em ser uma
mulher culta, dominava a história grega e romana. Poliglo-
ta, falava inglês, francês, espanhol, italiano e português.
Apaixonada sempre por homens brancos, nunca foi ama-
da de fato. Almejava a dita barriga “limpa” como a maioria
das desejosas mães embranquecidas, a fim de extirpar das
próximas gerações os traços negroides. Na busca inalcan-
çável para ser aceita socialmente, afastava-se de si mesma.
Esse afastamento era entendido como coerente e apoia-
do amplamente em todas as instâncias sociais. Deixar de
ser negro e almejar embranquecer não era considerado o
sintoma de uma doença arquitetada para dominar corpos,
mentes, alma, sentimentos.
Depois de diversos martírios embranquecedores, já
não escutava os chamados ancestrais de Arìnnà Àjò, bem
como não aceitava mais as intervenções de Amò Dúdú. Sua
última alternativa foi fugir de tudo aquilo e tentar se re-
montar. Ao voltar-se para o real de si, fugindo do projeto
de perda de si, passou então a ser reconhecida nas cidades
aparentes como a mais louca das loucas.
Diante das dificuldades de acesso a Pérola Negra, Mate
Masie apareceu-lhe em sonho. Mate Masie, um homem ex-
tremamente alto, usava chapéu de palha para proteger-se
do sol, era pescador dos mares dos entrelugares, e trazia
consigo as sementes fundadoras, as pérolas. De bata bran-
ca, calça branca, descalço e careca, ao cair nas águas do
mar, ganhava escamas, calda e guelras. Nadava com mais
rapidez que qualquer criatura marítima.
Resgatador de vidas, beleza e energia, Mate Masie
não permitia que a dor e a lamúria fossem soberanas.
Até mesmo quando a ostra sofria com a invasão de um
corpo estranho dentro de si, Mate Masie, ao tocá-la,

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transformava a dor e agonia em riqueza, fazendo brotar


assim as pérolas.
Mate Masie, naquele momento, era o que mais reunia
habilidades para reencontrar Pérola Negra. Era o único
capaz de respirar nos caminhos complexos até o incons-
ciente dela. Suas guelras abriam bruscamente e ele nada-
va ondulando sua calda e suas nadadeiras por um fluido
cósmico negro com pontos brilhantes, semelhantes aos
do mar em noite estrelada. Como guia, seguia as vibrações
dos sons da batida da macumba, que o lançavam cada vez
mais para perto de onde se refugiava o legado mais impor-
tante de Pérola Negra.
Em sua cintura, Mate Masie trazia uma bolsa com pé-
rolas de diversas cores, além das pérolas fundadoras. Seus
cinquenta dentes afiados reluziam ostentando suas pre-
sas. Ao redor dos pescoços, trazia um colar de corais e os
seus três chifres ornamentavam as laterais e o centro da
cabeça. Figura imponente, por diversas vezes varreu dos
mares os piratas mais covardes e perversos.
Desbravador, fez a travessia, emergiu do fluido cósmi-
co. Ao respirar o ar, seus pulmões abriram e ele gritou com
a ardência. Olhou para o alto, tudo era azul feito os dias.
Surpreendeu-se, pois, no ar, as arraias gigantes voavam
como se pássaros fossem. O som da macumba estava cada
vez mais forte. Mate Masie estava dentro do inconsciente
de Pérola Negra.
O corpo de Mate Masie foi suspenso, e ele foi apoiado
por uma arraia preta com pontos amarelos, longa calda,
olhos protuberantes. A arraia alçou voo, levando Mate
Masie para longe, onde cada vez mais o ar ficava rare-
feito. A neblina tomou toda a visão. Sem enxergar mais
nada, sentia apenas os movimentos da arraia e o ar no
próprio rosto. Ao subir ainda mais, o frio perpassava

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por todo o seu corpo, no entanto confiou a navegação à


arraia.
Após transpassar a neblina, Mate Masie olhou para
baixo e visualizou um mar de rostos. Os diversos rostos
presos no chão, ao virem Mate Masie sendo conduzido por
uma arraia pintada, começaram a gritar mais alto do que
o que já estavam gritando. Iniciou-se um coro de lamen-
tos, diversas vozes, homens, mulheres, crianças gritavam
pedindo para serem retirados dali. Os rostos esverdeados
ficaram presos ao tentar acessar o inconsciente de Péro-
la Negra. Aquele mar de rostos fazia uma camada amarela
com pontas azuis. Todos e todas enviados(as) por Cara-
velas na intenção de usurpar Pérola Negra de seu incons-
ciente para conseguir ludibriá-la e fazer uso de suas ha-
bilidades, principalmente a de criar caminhos, acabavam
ficando presos nas próprias armadilhas, formando assim
um mar de rostos no chão.
Ao deduzir que aquele mar de rostos fora uma defesa
de Pérola Negra, Mate Masie seguiu adiante, obedecendo a
rota traçada pela arraia, com medo de seu rosto fazer parte
daquela visão horripilante.
A arraia inclinou-se, mergulhando no ar mais à frente,
onde era possível avistar Pérola Negra encolhida, sofren-
do com frio, fome, arranhões alheios e fortes medicações.
Mate Masie preparou-se para pousar.
O depósito de pessoas consideradas abjetas, rejeitadas
por tamanha repugnação social, tinha um odor muito for-
te. Lá estavam negros e negras com algum tipo de deficiên-
cia física ou diferente da norma por serem homossexuais,
lésbicas, pessoas consideradas feias e qualquer um que
contestasse o sistema político vigente.
Como todas as pessoas que ali se encontravam, Pérola
perambulava, atônita com as medicações delirantes sendo

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testadas pela indústria farmacêutica, em grande ascensão


mercadológica e imperialista. Pérola Negra mal conseguia
verbalizar algo ou qualquer palavra com o mínimo de coe-
rência. Quando tinha fome, abria constantemente a boca,
ora não sabia o que era fome. Quando se encontrava com
frio, se encolhia embaixo de algum móvel. Quando, com
raiva, tentava estrangular a si mesma, sendo obrigada vez
em quando a ter os pulsos amarrados e presos a alguma
pilastra.
Os contextos mudavam, mas as perseguições e as dores
eram semelhantes. Fosse o porão do navio, o pelourinho,
o marido machista, a pilastra no manicômio, o chicote, as
medicações, fosse o que fosse, o odor era sempre o mesmo,
o de cadáveres ao redor, o som sempre o do grito e a dor
sempre fruto de um ato de extrema covardia alheia.

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CHAVES

– Minha filha, sou sua mãe e me chamo Aziza Omoro-


de. Ainda grávida de você, fui arrastada para o porão de
um navio, amarrada nua com mais outras jovens pesqui-
sadoras. Com você em minha barriga, estávamos prestes
a concluir a pesquisa geológica e indicar os caminhos que
as ilhas de Cabo Verde fariam. Sabe o que descobrimos,
minha querida? A natureza é tão criativa quanto nós. As
ilhas construíam caminhos e deslocavam-se entre os mun-
dos. Você, minha filha, meu orgulho, sabe fazer o mesmo.
O chão é capaz de navegar, a terra não é um local fixo, o
chão tem mais vida do que podíamos imaginar àquela épo-
ca. Nós estávamos em diálogo com a terra, gradativamente
passamos a ouvi-la e, quando estávamos prestes a enten-
der sua linguagem, fomos atravessadas, aprisionadas e as
terras também, o chão perdeu a identidade e foi nomeado
por desconhecidos navegantes que nunca o entenderam
de fato. Estávamos prestes a analisar quais seriam as rotas
das ilhas da costa oeste africana. Estávamos ávidas para in-
formar ao nosso povo viajante se seguiríamos junto à ilha
para além-mar, mas nos transformaram em objeto. Você
tem registrado em seus genes tudo o que estudei, os cál-
culos, as imagens e análises geomorfológicas. Produzimos
um material vasto. Trabalho árduo. Meu amor, você tem
em si recursos importantes para criar caminhos. Apesar de
tudo ter sido tomado, assentamentos queimados e todo o

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acervo material destruído, está tatuado na nossa pele e em


cada célula do nosso corpo tudo sobre nós e sobre nosso
legado. Somos caminhantes como a terra e cada conexão
cerebral que temos está diretamente ligada ao nosso tra-
balho em lidar com o mundo e aprender sobre ele. Nossas
conexões são cósmicas. Infelizmente, a minha existência
foi interrompida. Caravelas sugou para seus pulmões meu
sopro de vida. Ele acreditou que, com isso, tomaria para
si as conexões, mas elas foram herdadas por você. E, por
muito tempo, ele busca mecanismos de tomar isso de você.
Querida, você pode criar caminhos, mesmo que isso não
tenha mais emergido na sua consciência. Assim como fez
caminhos até o seu inconsciente, poderá fazer caminhos
mais além. Você é livre e conseguirá construir um caminho
para fora desse corpo cativo, dessa identidade cativa.
– Como cresceu, minha pequenina. A primeira vez que
a vi, os ventos fortes faziam arder minha pele machucada
e inflamada no porão de um navio. Depois, você foi levada
para Caravelas que constantemente a segurava no convés,
confinando-a em seus braços. Eu, Léfòó Lékè, amo você,
minha filha, e todas as vezes que você precisou correr, fo-
ram as minhas pernas te levando. Para onde desejar se mo-
ver, terá minhas forças consigo. Todos os mapas no meu
corpo foram desenhados nos seus poros. Todo o meu sopro
de vida foi para atravessar as águas do Atlântico, deixando
você a salvo nas margens da Ilha de Itaparica. Não tive fô-
lego para adentrar a Cidade do Pêndulo, mas Mensageiro
Jupiara, pele vermelha, cantou para mim e eu me acalmei.
– Meus ancestrais, aqui estou muito grata pela vida que
me foi concedida, pela proteção e pelo legado que herdo e
levo comigo. Não tem sido fácil, como nunca foi para ne-
nhuma de nós. Em alguns momentos, precisei descansar,
em outros precisei reagir. Mas sempre tentamos com-

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alma cativa

preender a maneira de nos libertarmos de todo martírio


imposto, dos confinamentos em identidades que não nos
cabiam, dos danos sofridos e, muitas vezes, da falta de es-
perança diante das diversas derrotas. Por muitas vezes,
trilhei caminhos que não nos favoreceram, caminhos es-
ses induzidos. Muitas vezes, a supremacia da branquitude
transcendeu a tudo, todos e todas e, por diversos momen-
tos, nos retirou a possibilidade de evitar ou acabar de uma
vez o colonialismo, o imperialismo, a escravidão, as guer-
ras. Nada disso acabou, muito pelo contrário, todas essas
invenções foram se acumulando ao longo dos séculos, nos
assoberbando de afazeres de luta e resistência. A branqui-
tude transcende o branco a ponto de nada adiantar exter-
minar Caravelas. Ele se instaurou em tudo, inclusive nos
meus genes. Por mais que tentemos sair desse sistema, há
vertentes dele em todos e todas nós, assim como a reper-
cussão em cada pedaço de chão desse planeta. Pergunto a
vocês: como viver apesar do embranquecimento da vida?
Como permitir que nossas forças consigam emergir?
– As respostas estão aqui conosco, ainda que tenhamos
sido confinados fora de nós e com isso fadados ao fracas-
so. No entanto, precisamos emergir antes que todo o povo
venha a sucumbir fisicamente, culturalmente, emocional-
mente a ponto de perdemos de vez nossa sustentabilida-
de, a capacidade de se reerguer e se refazer nessa relação
desarmoniosa, desigual e degradante que era o caminho
para o qual estávamos seguindo durante o processo de es-
cravização, de colonização e diante das novas roupagens
de domínios contemporâneos. O apagamento da memória
é sistemático, por isso foi cada vez mais difícil nos reer-
guermos.
– Ouça-nos, querida. Ser quem somos é extremamente
vital para nós. Para resgatarmos nossa identidade e sus-

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tentá-la diante das demais, precisaremos nos inserir no


diálogo com outras identidades. Exterminar Caravelas nos
retiraria a possibilidade de resgatar nossa memória rou-
bada e ensiná-lo a nos respeitar. Ele também depende de
nós, por isso não nos exterminou ainda por completo. Ele
precisa de nosso saber sobre o mundo, de nossa experiên-
cia laboral em dialogar com o cosmo e com tudo que está
vivo ou morto sobre os caminhos. Se ele nos exterminasse
por completo, não teria mais acesso ao seu próprio mun-
do, pois nós somos essa ponte. Deveremos ganhar fôlego
e entrar na briga fazendo uso dos nossos próprios meca-
nismos. Ele não apenas apagou, da nossa memória, nossa
identidade ancestral africana, bem como insistiu em extir-
par tudo aquilo que nos impulsiona na reconstrução das
identidades, tudo aquilo que faz com que nos movimen-
temos para ser quem somos. Ele nos pôs goela abaixo a
dor extrema, a falta de entendimento sobre nós mesmos,
a autodepreciação e nos desenvolveu para o mundo como
cópias dele. No entanto, para Caravelas continuar se ins-
taurando no mundo como uma ogiva nuclear, precisa que
assim o entendamos. Ele escondeu de nós que ele desco-
nhece como ativar essa ogiva, então vá sem medo. Basta
pensarmos que tudo nesse mundo tem um sentido e que
o acesso ao sentido é através da consciência, bem como
a consciência emerge a partir da relação com todas as vi-
das, para entendermos que tudo que compõe o cosmo é
que nos dá sentido de mundo. Não seremos conscientes
enquanto não nos relacionarmos com as vidas e tivermos
consciência de todas as vidas, bem como perdemos senti-
do de mundo e de si mesmo quando não interagimos ou
exterminamos qualquer componente.
– Não podemos exterminar os oceanos, não podemos
envenenar a terra, não podemos exterminar completa-

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mente nada. Uma vez que façamos isso, estamos com-


prometendo nossa própria existência. Tudo está aí para
que dialoguemos e aprendamos a respeitar. Era isso que
estávamos tentando fazer quando Caravelas nos atra-
vessou.
– Filha, uma vez de posse dos nossos diálogos com os
diversos mundos, quem poderia contra nós? Ninguém. Li-
berte-se de acreditar que Caravelas pode com todo esse
mundo. Ele não pode. Tudo, todos, todas o responderão.
Não podemos implorar pela liberdade, devemos tomar. Fi-
camos cativos quando não reconhecemos o nosso próprio
valor. Quanto mais próximo disso nós estivermos, maior
será a violência usada contra nós. Todas as vezes que você
esteve próxima de se libertar, maior foi o golpe que preci-
sou enfrentar. Você resistiu com muita coragem, filha. As
metodologias de massacre mudam, mas a dor sempre é
intensa.
– Estamos orgulhosos! Você construiu um caminho que
nos será de extrema importância. Você abandonou Carave-
las e se voltou para nós e tudo mais que há no mundo.
– Lembre-se que ele nos desenraizou, nos depreciou e
nos causou todo tipo de dor. E lembre-se ainda mais que,
em todos os momentos, estivemos ocupados e ocupadas
em desfazer cada processo desse. Por isso, chegastes e está
aqui agora, com a possibilidade real de mudar todo o rumo
das nossas vidas.
– Caravelas quer que pensemos que resgataremos nos-
sa humanidade nele. Liberte-se disso também. Ele inven-
tou diversas prisões. Se as únicas prisões fossem as sen-
zalas e as grades dos presídios, já teríamos resolvido isso.
Mas ele estabeleceu prisões tão transcendentais quan-
to ele, prisões que transcendem gerações, emoções que
transcendem o corpo.

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– Filha, as chaves das celas na verdade estão conosco e


ele virá buscar. Abra os caminhos enquanto há tempo.
Pérola Negra, diante dos diálogos com seus antepassa-
dos, seguiu mais confiante do que estava antes. Continuou
sua busca adentrando nas informações dos próprios ge-
nes, tudo estava latente em sua pele e ela passou a ler.
No pátio do manicômio, Pérola Negra corria nua a se
coçar. Tudo coçava nela a ponto de se ferir com as unhas
com a constância dos arranhões. Passou a gritar na inten-
ção de ser ajudada, mas os enfermeiros carcereiros riam
da sua correria pelo pátio.
Amò Dúdú apareceu no pátio vestido de enfermeiro do
cárcere e jogou em Pérola Negra um balde de água, alivian-
do suas coceiras. Olhou nos olhos dela firmemente e disse:
– Sei que não pode me ouvir, e já não me reconhece
mais. Mas, veja, olhe para mim, eu tenho as mesmas cocei-
ras que você.
Pérola Negra sorriu.
– Assim que estiver pronta, eu faço questão de fugir
com você.
Amò Dúdú atravessou o portão do hospital e Pérola Ne-
gra continuou a perambular, verbalizando frases descone-
xas, sorrindo e chorando.

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MIGRAÇÕES

Porque voltou da feira, trouxe consigo todos aqueles


cheiros importantes de experimentar. Arìnnà Àjò energi-
zava-se no ambiente das feiras populares das cidades apa-
rentes. Tinha manjericão nas mãos, caroços de goiaba en-
tre os dentes, baba de quiabo entre os dedos. Toda sema-
na na feira, caminhava com Pangeia escolhendo as folhas
mais verdes. Pangeia se empenhava em construir receitas
amorosas ao mundo. Por entre tomates, cachos de banana
e cheiro de alecrim, a química era possível.
Ela cozinhava e distribuía, entre os feirantes, o almoço.
E fazia tudo muito cedo. De manhãzinha mesmo, já estava a
circular pela feira, recolhendo os ingredientes para o almo-
ço. Bem alimentados e sorrindo com pedaços de alface, e
azeite-doce escorrendo pela barba, ela intervia na química
do humor dos trabalhadores. A comida oferecida em agdás
não apenas preenchia o corpo, mas também a alma com
energias necessárias. As frutas cortadas após a refeição
deixavam todas e todos mais confiantes, e os cheiros que
exalavam dos temperos exalavam também na pele, afas-
tando assim inimigos. O aroma do molho ardia movendo
a vida.
Ao voltar à feira como fazia todas as manhãs, Pangeia
foi interpelada por Arìnnà Àjò:
– O que vai querer hoje?
Sorrindo e admirada, buscou seu bocapiu e disse:
– Vamos, querida, tenho almas para saciar.
Descendo a feira, Pangeia se pôs aos cuidados da bar-

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raca de frutas. Hipnotizada com mãos colhedoras e acolhe-


doras, esforçou-se a pedir a Maria das Frutas:
– Melões, Maria, por favor!
Calmamente, Maria perguntou:
– O que comeremos hoje? Estou cada dia mais feliz com
os nossos temperos.
Maria, desabotoando o decote do vestido e olhando a
pilha de melões, continuou anunciando na feira os melões
enquanto escolhia os mais suculentos para Pangeia. Gri-
tava aos berros para toda feira ouvir, mas mal podiam en-
tender os sussurros quando argumentava que seus melões
eram os melhores:
– Experimenta e verá como estão doces!
O bocapiu foi sendo preenchido gradativamente com
alimentos e, enquanto mordiscava a fatia de melão, sentia-
se apaixonada pela vida.
– É desse melão mesmo que farei suco.
– Espere, acrescente capim-santo.
– O capim-santo no suco será por sua conta. Depois,
não me responsabilize.
– O que pode haver de mal ficar inebriada de amor?
Arìnnà Àjò riu dos diálogos entre Pangeia e Maria das
Frutas.
Depois do almoço servido, Pangeia resolveu levar uma
jarra de suco a Maria das Frutas. Caminhava contente,
olhando todas aquelas cores de alimentos, pães empi-
lhados, cheiros de ervas, mais adiante carnes salgadas e
frutos do mar. Mal podia conter-se em imaginar se refres-
car com o suco de melão com capim-santo, tão geladinho.
Aqueles melões redondos de um amarelo forte e hipnoti-
zante. Avistou o colorido das frutas no fim do corredor e,
ao virar à direita, viu Maria segurando uma caixa de uvas
enormes e pretas. Pangeia logo previu a potência do doce

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daquela uva, sorriu já imaginando as receitas. Maria perce-


beu e sinalizou positivamente com a cabeça. Pôs o caixote
no chão, cruzou os braços e esperou Pangeia se aproximar.
Porém, ouviram um zunido que aumentava gradativamen-
te: uma bomba caiu no caminho da encruzilhada entre as
duas e tudo foi aos ares. A feira foi bombardeada junto aos
prédios do centro urbano há 10 km da zona rural. A jarra
estilhaçou e o suco se misturou ao sangue de Maria das
Frutas.
Arìnnà Àjò àquela altura orientava a fuga de quem ain-
da estava vivo. Os feirantes corriam atônitos, as mulheres
procuravam suas mães e as crianças que corriam nos car-
ros de frutas mal compreendiam que era possível o mundo
se acabar naquele instante. Estavam em guerra há alguns
anos. Nunca se sabia onde mais uma bomba poderia cair.
Saíam de um escombro para outro, tentando fazer a vida
possível, reformulando o vilarejo a cada vez que era des-
truído.
Na manhã seguinte, a terra foi a próxima a ser atingi-
da propositadamente e com componentes químicos. Mais
nada poderia ser plantado ali. No terceiro dia, o rio foi con-
taminado, envenenando quem tivesse contato com a sua
água. Encurralados, os habitantes do vilarejo não podiam
mais plantar, não tinham água para beber e tudo o que fora
produzido antes explodiu pelos ares junto à maioria dos
que ali viviam.
A população mais uma vez se organizou e decidiu partir
em retirada. Uma parte decidiu caminhar para o interior,
que também fora arrasado. Outra parte se arvorou a seguir
para o litoral e atravessar o Mediterrâneo. Poucos tiveram
essa coragem, mas era uma das poucas alternativas além
daquela, uma vez que quem os atacou explorou e acumu-
lou toda a riqueza do vilarejo e das cidades próximas.

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A caminhada foi de três dias até a praia da costa. Arìnnà


Àjò acompanhava-os receosa das propostas dos aliciado-
res. Buscou formas de comunicar sobre sua desconfiança,
mas diante da terra arrasada foi difícil convencê-los de não
irem e se desfazerem daquela fagulha de esperança que
havia brotado em quem havia perdido a casa e a família. As
pessoas caminhavam dolorosamente e em choque diante
de tamanha tragédia. A vida havia acabado, mas continua-
vam vivos, se arrastavam em busca de qualquer sentido
para se manter respirando.
As pequenas embarcações zarpavam lotadas e clan-
destinamente, cada uma com mais de 80 pessoas. Custou
muito caro para entrar nos barcos. Sabedores disso, to-
das as moedas de todas as famílias foram recolhidas para
esse fim. Traficantes de pessoas lucravam com as guerras
e vendiam sonhos de uma vida melhor do outro lado da
margem.
Ao avistarem o bote, a pequena fagulha deu lugar a uma
chama de vela que esquentou o peito de quem estava ali
na beira da praia com esperança de recomeçar a vida e ca-
minhar nas ruas sem o receio de pisar em uma mina ou de
ser atingido por um míssil. Havia pessoas ali que tinham
perdido a família por duas vezes, sem saber de onde reti-
rar energia vital para recomeçar. Sem mais nada a perder,
a maioria – homens jovens, algumas crianças, poucas mu-
lheres e raras idosas –, entrou na água em direção ao barco.
Ao molharem os pés nas águas geladas, sentiram o frio
entrar e percorrer seus corpos. Alguns traziam consigo
poucos pertences, o necessário para não pesar tanto no
barco e o que fora possível achar pelos escombros da vila.
Tinha pouco pão, o suficiente apenas para mais uma noite.
Carregavam em si a esperança de atravessarem com vida e
de lá correrem para a praia.

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Amò Dúdú, sentada em uma ponta, e Arìnnà Àjò, mais


ao centro, olhavam-se. Mas, dessa vez, mais receosas, sa-
biam que o pior estava por vir. O silêncio absoluto, a nebli-
na, o frio, a vida anoitecendo... Levariam muito tempo para
se acalmarem sob a rota que fariam pelo Mediterrâneo os
sobreviventes dos vilarejos bombardeados que haviam es-
colhido seguir por ali. Elas temiam os maus ventos, o frio
intenso e qualquer chuva. O clima era uma de suas maiores
preocupações.
O mar soprava a Amò Dúdú:
– Estão na rota da Cidade Mediterrânea. Pretende ir
para lá?
– Saudações, voz de equilíbrio. Sim, essa será nossa
rota para que nos salvemos – respondeu Amò Dúdú.
– Te sinalizo o melhor momento para mergulharem. O
clima está favorável, os ventos a seu favor. Não sei dizer
sobre as pessoas.
– Agradeço sua colaboração, mar mediterrâneo.
O barco seguiu em um silêncio absoluto. Apesar da
neblina atrapalhando a visão, a aproximação de algo de
grande proporção era muito perceptível. Os olhos cansa-
dos levantaram, movimentando lentamente a cabeça. Uma
embarcação se aproximava pela lateral e direcionando
luz para dentro do barco migratório. Ao olharem para o
alto, viram armas apontadas para as cabeças. Apenas com
o primeiro tiro, que acertou Amò Dúdú, foi que entende-
ram que se tratava de um ataque. Os traficantes estavam
forjando um naufrágio e criaram pânico para que todos se
levantassem e desestabilizassem a embarcação, fazendo
com que ela virasse. E foi o que aconteceu.
O sangue de Amò Dúdú se diluía novamente nas águas
salgadas, bem como seu corpo amolecia moldando-se a
tudo que tocava. Amò Dúdú era mar. A embarcação virou e,

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naquele naufrágio, Arìnnà Àjò conduziu todas as pessoas


para a Cidade Mediterrânea, onde existiam as melhores
engenharias.
Amò Dúdú reuniu todos em um abraço tranquilizador
para que percebessem que era possível respirar embaixo
d’água e saírem do estado de choque. As engenheiras da Ci-
dade Mediterrânea comunicaram às águas para que rece-
bessem quem precisasse adentrar a Cidade Mediterrânea.
Dessa forma o mar se modificou para que fosse possível
respirar nele, uma engenharia possível por conta da par-
ceria da criatividade humana com a natureza, que bastava
ser ouvida e entendida, e ser reconhecida em seu valor.
Os imigrantes fugitivos da guerra, imersos no mar, to-
cavam diversas vezes no próprio corpo, tentando entender
se tocavam o corpo ou a alma. Arìnnà Àjò pediu que nadas-
sem juntos como os cardumes, pois a água respirável se
concentrava especificamente na direção da Cidade Medi-
terrânea, e caso saíssem da rota poderiam se afogar.
Os traficantes estranharam o fato de nenhum corpo
emergir, mas não demoraram muito para saírem do local,
precisavam continuar forjando o acidente. No dia seguinte,
resgatariam a embarcação para continuar lucrando com a
guerra e a impunidade.
O povo foi mais uma vez recebido pela Cidade Medi-
terrânea, onde poderia seguir sem medo até se adaptar.
Arìnnà Àjò agradeceu a Amò Dúdú, orientou sua recupera-
ção e se pôs em silêncio a pensar em Pangeia e Maria das
Frutas. Mais uma vez, elas perderam-se entre si.

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CASO DE FAMÍLIA

– Essa mulher que ora beija meu pai, essa mulher que
ora beija minha mãe deixou o almoço pronto para quando
chegássemos famintos. Muitas vezes, eu quis jogar pedras
no telhado da casa a fim de quebrar as telhas nela, mas a
vizinha da esquina, ao fazer isso por mim, fez com que eu
me arrependesse das minhas ideias não reveladas. Tive dó
dela. Tive dó também quando a professora da escola ar-
rancou-a do ambiente. Tive dó de saber que ela era proibi-
da de entrar na igreja e também de saber que ela não era
bem-vinda no meu coração. Tive apenas dó. Essa mulher,
que às vezes alinhava as roupas de minha mãe e que às
vezes lustrava os sapatos de meu pai, outro dia ao aten-
der a porta revelou-se casada com todo mundo da minha
família.
O carteiro riu e pensou na audácia daquela mulher que
supôs ser uma doméstica.
– Janja, essa mulher, me ensinou a fazer beiju de coco
e a mudar de idioma a cada cômodo da casa como quem
atravessa uma fronteira. Pai quando chegava, dias após ter
viajado por aí, era o suficiente para que ele retirasse de
mim a minha companhia das tardes de estudo.
– Tia Janja, a namorada do meu pai e de minha mãe,
é assim que passei a apresentar, não samba, não balança,
não brinca. Ela graceja do meu pai, minha mãe zomba dela
e ele já reparou na brincadeira entre elas. Os três somem

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por dias. Às vezes, some minha mãe, às vezes, some meu


pai, às vezes, some tia Janja. A esposa de papai e de mamãe
passou seis meses fora a trabalho. No primeiro mês, pulei
de alegria com mãe e pai só para mim. No segundo, relaxei
nos estudos. No sexto, a esperava com uma tigela cheia de
beijus, os livros dela arrumados e com muita saudade.
– Alguém com crachá bateu na porta de nossa casa, fa-
zendo várias perguntas.
– Quem é a senhora? É da família?
– Sou uma das cônjuges – Tia Janja respondeu sorrindo
e eu ri também, me questionando sobre o que significaria
cônjuge.
Obí Gbánja retirou de dentro dos peitos uma folha de
papel dobrada e jogou, na cara do oficial de justiça, a certi-
dão de casamento. Ouviu os argumentos dele sem alterar
a voz, consertou os botões da camisa que faltavam para
completar a compostura, alinhou a saia, apertou a gravata.
E seguiu com o oficial de justiça.
– Tive aflição, apenas tive aflição. E, depois, um monte
de ideias bestas que me fizeram sofrer. Naquele dia, dormi
no quarto de tia Janja abraçado aos seus livros. Mas nova-
mente o homem de crachá, acompanhado de um policial,
estava na porta de nossa casa. Papai atendeu.
– O dono da casa, por favor!
– Espera um pouco que eu vou chamar minha mulher!
Amor, é para você!
– Pois não!
– A senhora é casada com a senhora... O nome dela é...
– Sim. Pode falar.
– E ele também? Então, já não sei mais quem dos três
deveria responder por fraudes em documentos.
– Mas nossa certidão é real!
– Por favor, me acompanhem.

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– Minhas mães foram levadas e meu pai também. Horas


depois, vi os três chegarem aos berros, discutindo sobre
multas, papéis e audiências. Eu corri e os abracei.
– Meses depois, tia Janja foi presa, condenada a dois
anos de prisão por falsidade ideológica e falsificação de
documento público. E, depois de ouvir a frase “você é des-
truidora de lares”, foi jogada em uma cela de segurança
máxima. O juiz argumentou a Obí Gbánja:
– No seu país, mas aqui não. Esse tipo de comportamento
é ultrajante, inadmissível, você é uma destruidora de lares.
Já na cela da penitenciária de segurança máxima, Obí
Gbánja fora recebida por uma das apenadas:
– Não se preocupe, todo mundo aqui é inocente!
– Qual foi o teu crime?
– Eu sou inocente – retrucou Obí Gbánja.
Todas riram.
– Todo mundo aqui é inocente! Né não?!!!
– Sim, somos todas inocentes sim.
– Fala aê, o que tu fez, que eu digo.
– Eu roubei o mercadinho do bairro. Fui lá fazer as
compras de mês!
– Eu bati na minha patroa. Não suportava mais aquela
mulher me empurrando a vassoura nas costas. Fui presa
por lesões corporais, mas não colocaram nos autos que as
lesões foram em mim.
– Eu tinha um marido que escondia drogas em casa e à
polícia disse que era minha.
– Eu matei meu ex-marido com requintes de crueldade.
Pedi que ele parasse de me bater, mas não me ouviu. Eu
revidei.
– Eu tava andando na rua quando todo mundo foi pre-
so. Tem cinco anos que estou respondendo por processo e
esperando julgamento.

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– E você?
– Eu ri na cara do oficial de justiça, desacatei um poli-
cial. Tem mais uns dois artigos, mas que não sei dizer se
alguém além de mim já foi preso por isso aqui.
Obí Gbánja ouvia as encarceradas e várias outras vozes.
– Por quanto tempo você acha que ficará nesse presí-
dio? Preciso de você, Obí Gbánja. Pode me ouvir?
– Muito ao longe. Fale bem devagar.
– Estou perto.
– Mate Masie está à sua procura. Ele está dentro do in-
consciente de Pérola Negra.
– Percebi, mas tem alguém seguindo o rastro dele.
– Não consigo te ouvir mais.

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LEMBRANÇAS

“Mate Masie, nosso irmão mais velho, tenha fé! Você


está mais perto que imagina.”
A macumba ecoava ainda mais perto dos ouvidos de
Mate Masie que planava avistando Pérola Negra encolhida.
Continuou a confiar na rota traçada pela arraia. A imagem
de alguém encolhida parecia uma miragem.
A arraia negra de pintas amarelas voava elegantemente
e passou a sobrevoar uma paisagem remota para Mate Ma-
sie. Ele avistou uma sequência de três planetas. A arraia se
preparou para mergulhar em um dos planetas. Mate Masie
segurou firme e tomou fôlego para suportar a rapidez da
descida naquela atmosfera que ele visitava pela primeira
vez.
A arraia pousou, Mate Masie escorregou pela lateral
pisando um chão macio. A arraia rodopiou e revelou-se
ser Pérola Negra, vestida em um manto negro com pintas
amarelas, seu manto era o universo. Pérola Negra, recupe-
rada das dores sofridas, mostrava intensa energia e beleza.
Quanto mais forte eu fico, mais preta me torno, pensava.
Meu globo ocular enegreceu, minhas unhas tornaram-se
pretas, a palma da minha mão denegriu!!! Meus dentes
também!!!
– Pérola Negra, linda como a noite, estou antes de tudo
grato pelo seu acolhimento. E, mais que isso, estou à sua
disposição.

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– Sei disso, nosso grande irmão mais velho.


– Te trouxe aqui e deixei os caminhos abertos para
quem mais quiser entrar.
– E quanto a Caravelas? Ele fará o mesmo caminho
que fiz?
– Sim.
– Mas, não bastasse usurpar das riquezas, Caravelas
quer as rotas. Ele precisa das rotas para deslocar as rique-
zas. Ele devastará tudo aqui.
– Não. Ele não vai. Ele não pode.
– Entendi. Trata-se de uma armadilha.
– Não. Não construo armadilha. Eu construo caminhos.
– O que devo fazer quando Caravelas chegar?
– Quando ele chegar, quero que ceda a ele uma pérola.
– Confio em você, mas estou com medo dessa sua ideia.
Uma vez que eu entregue uma pérola a ele, o que ele edi-
ficará?
– Sei do seu desconforto, mas preciso que se mantenha
mesmo no desconforto, no medo, na dúvida.
– Eu realmente estou atônito, tentando entender. Como
poderei entregar uma das pérolas para alguém que me
destruiu por séculos?
– Mas não te derrotou!
– Antes as pérolas brotavam em mim, mas, depois das
dores que ele me causou, nada mais brota dos cascos dos
meus chifres.
– Sei das suas angústias e conheço na minha própria
pele toda a dor que passou. Mas, lembre-se, somos maio-
res que tudo isso. Precisamos resgatar nossa memória. Ele
não sabe exatamente tudo sobre nós. Mas, e se ele souber
tudo sobre nós?
– Ele transcende, é onipresente, mas não é mais que
nós. Nesse exato momento, ele está aqui. Nos vê, nos ouve,

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sabe mais de nós do que nós de nós mesmos, mas não sabe
tudo.
– Isso nós já sabíamos, Pérola Negra. Que ele nos obser-
va e que rouba nossas memórias, que nos vigia e nos caça.
– Mais que isso, Mate Masie, você é meu hospedeiro.
Isso significa dizer que...
– Significa dizer que não há genocídio que me retire
por completo do universo.
– Onde ele está?
– Bem aqui, Mate Masie. Você está cego que não me vê?
– Pérola, fique perto de mim. Apareça, criatura repug-
nante!
– Você é surdo ou não entende o que foi dito? Estou
dentro de você. Sinta a respiração.
– Pérola, o que há?
– Vamos lá, é hora de acabar com tudo isso! Mate-
me. Arranque teu chifre e com ele o seu próprio coração!
Não é assim que seres marítimos híbridos são extermi-
nados?
– Sabe de tuas pérolas? Todas elas também possuem
genes meus!
Os chifres de Mate Masie aumentaram afiando-se dian-
te da fúria de ouvir Caravelas em sua mente. Aos gritos
atônitos, estava fervoroso em avançar para o inimigo sem,
no entanto, vê-lo, mas na ânsia de saber como alcançá-lo.
Mate Masie desdobrou-se entre o pescador e o peixe. Suas
presas cresceram, suas escamas sacudiram. Ora pescador,
jogava a rede ao vácuo, ora peixe, enchia as guelras de ódio.
Toda a causa das desgraças vividas o rodeando e por den-
tro de si. Mate Masie, sedento de luta, mal podia conceber
de maneira coerente seus golpes no ar.
– Mate Masie, não se perca de si. Reorganize suas ener-
gias, reorganize sua indignação e fúria. Você precisa de sua

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fúria para suportar as dores dos desdobramentos, não as


gaste com as abstrações de Caravelas.
Mate Masie gritava. Os olhos saltavam das órbitas a pro-
cura da voz de Caravelas, que o tomava por inteiro, vibrando
nos pulmões, na garganta, e nas cordas vocais. Os lábios de
Mate Masie reproduziam a voz de Caravelas, fazendo Mate
Masie engasgar-se com duas vozes na disputa do idioma.
– Vês como é fácil, Pérola Negra? Três frases minhas e
eu tomo conta, reconto, remonto, reformulo.
– Mate Masie, não o ouça. Mate Masie, não se volte para
ele. Ele quer a sua atenção, aparecer para você e dominá-lo
com ludibriações.
– Ele não é capaz de entender, Pérola Negra, querida
Pérola Negra.
– Mate Masie, você também é meu filho. Você carrega
minha garra, você carrega meu desprendimento, força e
coragem. Orgulhe-se disso. Dei-te parte dos meus genes.
Eu sou seu pai.
Mate Masie pôs-se a chorar em soluços.
– Por que choras? Homem não chora! Seja guerreiro!
Você é o guerreiro mais forte depois de mim. Veja o quanto
já suportou! Poderia ter te exterminado, mas te concedi a
permanência da vida! Não seja ingrato a quem te admira.
Admiro teus chifres. Quero-te vivo. Beije minha mão! Não
seria capaz de não ter misericórdia por nenhum dos meus
filhos. Ajoelhe-se. Peça a minha benção.
Mate Masie ajoelhou-se sacudindo os ombros e tentan-
do equilibrar as energias. Sacou sua bolsa de pérolas, der-
ramou-as no chão procurando as pérolas lilás. Pôs uma em
cada ouvido e começou a desdobrar-se. Os chifres de Mate
Masie faziam rodopios.
Caravelas teve receio, não sabia o que estava aconte-
cendo. Esperou para ver qual seria a serventia de uma pé-

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rola lilás em cada ouvido. Os chifres de Mate Masie, após


alguns rodopios, envergaram adentrando o chão, enrai-
zando-se nas memórias do inconsciente de Pérola Negra.
Suspenso e sendo apoiado pelos chifres fincados em raí-
zes, Mate Masie, com muita dificuldade, verbalizou:
– Minhas raízes me mantêm suspenso e não permitem
que eu me ajoelhe para você. Nada posso fazer por você.
Mate Masie voltou-se para seu legado ancestral, ali-
mentando através dos chifres com as memórias sobre os
seus. Viu seu pai, viu sua mãe, viu os filhos, os parentes, os
amigos, os caminhos, as aldeias, o mar vermelho, as pirâ-
mides, as cidades cósmicas, o gelo, os livros, as vozes dos
oceanos, as estrelas do mar, a vida brotando na água sal-
gada, o mar correndo entre os planetas, o mar escuro da
noite, o mar azul-anil do dia e o pescoço de esposa rodeado
de pérolas coloridas. A lembrança do amor abriu em Mate
Masie a porta da saudade.
– Olha que linda memória. Tu parece bruto, mas ama!
Tenho lembranças melhores sobre sua mulher. Veja-as.
Caravelas o lembrou de sua mulher sendo arrastada e
tendo seus chifres arrancados para fazer pente.
Mate Masie sentiu todas as dores do chifre arrancado
em vida.
Caravelas se aproximou e o olhou nos olhos, e vagarosa-
mente retirou de dentro de seu paletó alinhado um peque-
no pente, passou nos cabelos retos, ajustando cada fio liso!
– Não tem pente melhor! Todas as vezes que o passo
nos cabelos caem pérolas, sempre as mais valiosas. Nunca
precisei de seu saco de pérolas. Não vês como sou mise-
ricordioso contigo? Mesmo não precisando de você para
nada, nunca o descartei.
Mate Masie foi tomado pela dor da perda, da diminui-
ção, e da falta de sentido sobre as coisas. Suas raízes se-

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caram quebrando-se e fazendo-o cair, fraco, deprimido,


envergado.
– Queres conhecer melhor seus filhos? Conheço cada
um deles!
Mate Masie viu todos mortos de uma única vez por uma
ogiva nuclear. Seu coração parou, queimando junto à ogiva.
Os chifres de Mate Masie cresceram novamente, afiando-
se, envergando-se e atravessando seu coração. Caravelas
sorriu orgulhoso com sua manipulação ludibriante.
– Viu isso?!! Nunca sujo minhas mãos! O pescador ilu-
diu-se com meus encantos!
Pérola Negra encolheu-se a chorar, diluindo-se em do-
res! Mal teve tempo de fazer Mate Masie entender que as
palavras de Caravelas são de ludibriações, não devendo
ser assimiladas, sejam elas quais forem. Ainda que pare-
çam verdadeiras, não são.

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DESENCANTAMENTO

– Por mais quantos anos, ficará aqui? Estou começan-


do a ficar preocupado com você! Quando sairá dessa po-
cilga de manicômio? Até quando vai perambular a falar
palavras repetidas? Sabia que é meu nome que você cha-
ma o dia inteiro no pátio fétido desse lugar? “Caravelas”.
Fico lisonjeado quando chama meu nome. É tudo culpa
sua. Está numa vida de louca porque quer. Você era feliz,
Pérola, lembra? Você tinha um cabelo bonito e invejado,
lia os melhores livros europeus, tinha dinheiro. Dei-te
aquilo que passou a merecer! Nunca mais aconteceu es-
cravidão! Os tempos são outros, cooperamos entre nós.
Não há mais nada pelo que brigar, somos uma nação rica,
vivemos em harmonia a ponto de casarmos entre nós.
Veja, Pérola, veja como você era feliz quando casada co-
migo! Tivemos duas filhas! Lembra? Teria coragem de se
voltar contra elas? Suas crias! Você seria uma mãe capaz
de matar as próprias filhas? De negar as filhas? Tivemos
noite lindas de amor. Você cozinhava para mim, arruma-
va-se me esperando chegar. Por diversas vezes, disse que
me amava, lembro-me de todas as vezes. Você escolherá
uma vida belíssima ao meu lado ou o chão fétido e pega-
joso do manicômio, somado a todos os infortúnios desse
lugar? A escolha sempre foi sua. Conheço-te desde nasci-
da. Nasceu numa noite desafortunada em tempestade, sua
mãe gritava por mais que a mandássemos calar a boca.

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Ela te cuspiu por entre o escorbuto e as fezes acumuladas


no porão. Eu te salvei de lá. Trouxe-te para a cabine do
navio, te protegi do frio, te favoreci um local mais confor-
tável, ofereci minha comida. Eu a amo desde que a vi. Sou
teu homem, pode ter tudo de mim. Eu domino aqui, para
além da minha direita, para além da minha esquerda, o
que está à frente e o que está atrás, acima e embaixo, no
futuro e no passado. E você pode ter todos esses domínios
em seu nome, tudo de papel passado e registrado nas pe-
dras que vagam pelo universo. Aqui ou acolá, passará a ser
dona. Ficará sob sua responsabilidade decidir quem vive-
rá e quem morrerá. Poderá libertar quem quiser e assim
definir uma vida melhor para seus amigos. Depende de
você, a vida de todos depende de você. A história poderá
ser recontada. Poderá apagar tudo e contar do seu jeito,
porque você também será dona do cosmo. Mulher, levan-
te-se, empodere-se, não quero mais nenhuma lágrima em
você. Entendo que precisa de um ombro acolhedor agora
e peço perdão por não ter sido o marido que deveria ter
sido. Doeu muito mais em mim do que em você, acredite.
Arrependo-me de cada mancha roxa que te causei, mas
prometo que sou um novo homem e te recompensarei se-
guindo todas as suas orientações. Foi isso. Agora entendo
que foi isso! Eu não te escutava. Mas perceba, a partir de
agora, prometo, só sou capaz de escutar o que você diz, e
serei seu humilde servo. O seu amor me transforma, Péro-
la, de uma maneira absoluta. Sou um homem melhor por
sua causa. Cuido-me para você. Veja, como você teve cora-
gem de abandonar um homem tão bonito como sou para
você? Muitas mulheres queriam estar no seu lugar, casada
comigo! Mas eu escolhi você. Você é a mais importante de
todas. É você quem eu respeito, admiro. Vibro com cada
habilidade que você tem. Vibro com os caminhos que cria.

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A sua inteligência me surpreende. Você é a mulher mais


bonita, a mais fantástica e por isso a escolhi. Quero des-
filar contigo para que todos vejam o amor da minha vida,
e o quanto eu sou um homem modificado pelo seu amor.
Não vês o quanto o seu amor é transformador? O amor
transforma, move montanhas. O amor faz com que supe-
remos nossas dificuldades, nossas diferenças...
– CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CA-
LE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE,
CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE,
CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE,
CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE,
CALE-SE, CALE-SE...
– Aqui impera o silêncio. Eu preciso de silêncio, pois só
assim posso escutar a mim mesma. Não estou à sua dispo-
sição para te ouvir. Assassino imbecil, matou Mate Masie.
Isso significa que, em breve, não conseguirá respirar aqui.
O ar apenas era possível para você porque respirava por
Mate Masie. Por isso, fala freneticamente sem parar, me
envenenando com suas palavras e retomando memórias
que mobilizam em mim energias de dor.
– Deveria pensar melhor no que está falando. Lembre-
se que o inconsciente é uma porta perigosa de se entrar.
Não é possível ter domínio sobre o inconsciente, é ele
quem domina e pode te sabotar. Você está se autossabo-
tando, Pérola, querida, razão do meu viver. Quem não pode
permanecer aqui por mais tempo é você. Veja, você está
confusa.
– Não, não estou confusa. Você não é nada aqui sem os
conhecimentos que Mate Masie trazia sobre como respirar
em qualquer ambiente. Você dependia disso, assim como
depende de nós para muitas coisas.
– Se eu dependesse dele, por que eu o mataria?

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– Para que eu reconheça a sua onipotência. Para que eu


reconheça o seu domínio sobre mim. Eu não tenho medo
de você!
– Eu sou o dono de tudo!
– Sim, muitas coisas estão sob seu domínio sim. Todos
sabemos disso, mas sabemos também que você não sabe
nada sobre o que domina. Depende de nós para tudo, de-
pende de nossas habilidades, dos nossos acúmulos de sa-
beres, dos caminhos que construímos, depende até que
façamos sua comida, providenciemos sua água, que lim-
pemos sua roupa, que o curemos das enfermidades. Per-
gunto-me, Caravelas, o que sabes fazer? Pergunto mais, o
que seria de você sem nosso trabalho? Possui as Pérolas
de Mate Masie, mas mesmo sabendo que elas servem para
edificar, você não sabe como fazer acontecer. Sem nenhum
de nós, o mundo te seria hostil.
Caravelas tossia sem parar. Recolheu as Pérolas de
Mate Masie, folgou a gravata, desabotoou a camisa alinha-
da, começou a abanar-se. O ar era difícil de circular nas
veias, parecia respirar areia cósmica. Com a tosse inces-
sante, Caravelas viu-se obrigado a precisar sair logo que
possível, mas precisava providenciar como.
– Preciso que me leve de volta.
– Faça uso da própria inteligência e volte. Tens o cami-
nho registrado na memória.
– Preciso da arraia gigante.
– Eu sou a arraia. Eu não posso retornar.
Caravelas iniciou uma série de argumentos, tentando
convencê-la do erro que estava cometendo em não ajudá-lo.
– Preciso de ajuda para respirar. Amò Dúdú, homem do
barro preto, senhor das transformações da matéria, viajante
do tempo assim como sou, ajuda-me a fugir da falta de mi-
sericórdia alheia, da covardia dos que não disputam limpo

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com as mesmas armas. Abriga-me em seu manto e leva-me


para um lugar seguro, onde eu possa viver sem medos, sem
dramas, sem ter a minha vida levada de assalto.
– É muita audácia sua me chamar para ajudá-lo a fugir
daquilo mesmo que você promoveu.
– Por favor, Amò Dúdú, faça o que ele quer. Leve-o da-
qui.
– Não posso me conectar com ele.
– Por que não pode? Tenho todos os fluidos necessários
para te amolecer. Ofereço a ti a minha saliva.
– Cada cidade tem uma regra para entrar. Ele irá sufo-
car com o barro também. Vês?
– Mas você pode abrir os caminhos que quiser abrir!
Pérola Negra abriu todos os caminhos possíveis para
Caravelas passar.
– Aí estão, escolha o caminho que quiser fazer.
– Preciso de condução!
– Você precisa de tudo! Não sabe fazer nada sozinho?!
Estão diante de você caminhos para qualquer lugar do cos-
mo! E você ainda quer andar com as minhas pernas, assim
como na escravidão lavei tuas roupas, servi de experiência
científica e cortava tuas unhas dos pés enquanto contava
as moedas de ouro que roubava da missa.
– Claro que preciso de sua ajuda. O que acabei de dizer
há pouco? É você a mulher fantástica que merece meu res-
peito! Entenda isso e seja misericordiosa comigo.
– Qualquer coisa que você diga não deve ser assimila-
do. Tudo que vem de você atenta contra nossa dignidade.
Fale o que quiser, não acredito em você. Todas as suas pa-
lavras são de manipulação.
Caravelas escolheu o caminho até a cidade de Entre
Mãos, uma das mais ricas das cidades dos entrelugares.
Imaginou a quantidade de riqueza e de invenções que po-

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deria favorecê-lo. Ficou até o momento que podia suportar


respirando mal e adentrou nos caminhos que o levariam à
cidade.
– Até breve, minha querida. Torço para que se recupere
dessa sua desordem mental.
– Torço para que saiba usufruir das riquezas da cida-
de de Entre Mãos. Sabe dos códigos para entrar na cidade,
você tem todas as nossas memórias. Então, boa sorte – Pé-
rola lhe disse.
Caravelas, mesmo sabendo que não conseguiria cum-
prir com os códigos para ter acesso à cidade de Entre Mãos,
percorreu o caminho disponibilizado por Pérola Negra, na
tentativa de voltar a respirar melhor.

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VOLTAR-SE PARA SI

– Amò Dúdú, é reconfortante te rever, isso fortalece


meu coração e me deixa entusiasmada para prosseguir.
– Sempre estive ao seu lado mesmo quando a cruelda-
de sobrepôs os nossos corpos nos paralisando.
– Caravelas tentará entrar à força na cidade de Entre
Mãos.
– Ele escolheu esse caminho, mostrei vários.
– É de se imaginar porque... lá tem as engenharias mais
extraordinárias possíveis. E ele quer tudo.
– Mas não conseguirá. Amò Dúdú, escute-me atenta-
mente. A dor que Caravelas nos causou e nos causa pode
ter alimentado durante muito tempo o medo em nós e
muitas vezes matado nossas possibilidades de reagir, de
levantar. Mas uma vez que tivermos oportunidade para
rever nossa história, saberemos que ele depende mais de
nós do que o contrário. Ele tem o mundo nas mãos porque
usurpou de todas(os) e tudo. Ele não sabe criar caminhos,
não sabe manejar o mundo, não sabe dialogar com nada
nesse mundo. Ele precisa de nós para estar no mundo, a
vida dele depende do nosso trabalho e para ter o que pre-
cisa faz uso da violência extrema. Por mais que estejamos
vivenciando qualquer calamidade, ele sim está em nossas
mãos, mas sempre nos fez pensar o contrário quando rou-
bou nossa memória, nos incutindo mentiras sobre nós e
sobre as coisas e quando nos assolou com todo tipo de des-

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graça. O maior empenho dele foi nos fazer acreditar na sua


supremacia sobre o universo. Essa foi a chave da domina-
ção, ele manipulou o nosso entendimento sobre o mundo,
guiando com isso nossas ações.
– E quais os caminhos para nos livrarmos das atrocida-
des a que somos lançados?
– Ele não nos permitiu ter oportunidade alguma de nos
voltarmos para nós mesmos, para os nossos e para a nossa
verdadeira história e memória porque sabe que uma vez
que isso aconteça enxergaremos as nossas potências e sa-
beremos que ele não passa de uma retórica. O seu poder
existe, mas não é legítimo, não é real. A sua relação com
o mundo é através do nosso trabalho e do conhecimento
que acumulamos. Ele não tem relação direta com o mundo,
ele depende que façamos essa ponte e arranca de nós isso.
Ele inventou sobre sua própria supremacia e nos perse-
guiu tentando nos ensinar sobre isso como quem adestra
um cachorro, nos cegando para que não víssemos o fruto
do nosso próprio trabalho. O caminho é voltar-se para si,
para nossa verdadeira história, para a nossa memória real
e para os nossos.
– A resposta é simples, mas os acessos a ela foram os
mais difíceis de alcançar. O massacre que vivenciamos ao
longo do tempo, os genocídios, o etnocídio, os encarcera-
mentos, a miséria, o desmonte do corpo, a desumanização,
os danos mentais, as feridas na alma, a dor extrema, estão
tudo aí bloqueando nossos caminhos. E, dessa maneira,
continuo a me perguntar: o que fazer?
– Amò Dúdú, Caravelas é uma retórica. E todos nós es-
tamos contaminados pelo medo que a memória de dor nos
traz, mas ainda assim ele não passa de uma falácia. Não
tenha medo dele. Ele sim tem medo de nós, entretanto nós
nunca soubemos disso. Ele está se borrando, ele tem cala-

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frios. Ele é feito da mesma matéria que nós somos. A dife-


rença é que ele nos usa para acessar o mundo porque não
tem a capacidade de dialogar com o cosmo e nós aprende-
mos ao longo da nossa vivência a dialogar e compartilhar
do que o universo tem a nos oferecer. Ele quer tudo pronto
e à disposição sem precisar se envolver, compartilhar e de-
senvolver.
Nessa minha busca de caminhos para fugir da domina-
ção e tentar curar as fissuras da alma, senti necessidade de
voltar-me para o nosso legado e foi o melhor caminho que
já fiz, porque pude ouvir dos meus próprios caminhos que
nós não estamos no cosmo, nós somos o próprio cosmo.
Todos nós. Caravelas sabe disso, e também sabe que ele
também é o próprio cosmo, mas ele não quer esse poder
compartilhado, no qual todos nós reconhecemos nossa
própria importância. Ele quer ser o único a carregar essa
informação e dessa maneira ser o único a ser reconheci-
do como importante. Então ele rouba tudo, qualquer coisa
sem se dar ao trabalho de cultivar as energias, de desen-
volver todo o cosmo, ouvindo a si mesmo e a todos, todas
e tudo sobre as engenharias que são as nossas conexões.
Isso é trabalhoso de fazer.
Veja aqui essa memória que resgatei. Antes mesmo de
Caravelas se arvorar em seu projeto individualista e insano,
o mundo inteiro trabalhava. Veja, essa era eu, veja como eu
estava completamente concentrada em buscar conexões,
criando caminhos que muitas vezes nem eu mesma conse-
guia trafegar. E veja essa imagem, essa é você. Veja sua an-
tiga aparência, você não era isso ou aquilo, a cada piscada
de olho em você, nós víamos uma imagem diferente sua,
num segundo mulher, no outro homem, no outro mais 300
gêneros diferentes. Veja, você foi quem conseguiu percor-
rer pela primeira vez os caminhos da Cidade Mediterrânea.

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Eu criei aquele caminho, mas você provou que era possível


fazê-lo sem que corrêssemos perigo. Leia aqui essa outra
memória de quando ainda não sabíamos dos abismos dos
arredores da Cidade do Pêndulo. Muitos caíram antes que
conseguíssemos mapear. Veja, eu fui jogada nos abismos
da Cidade do Pêndulo em um momento em que eu estava
desmemoriada. E isso aconteceu porque a cidade estava
sendo invadida por Caravelas, o que fez com que Floresta
Azul me jogasse lá. Caravelas estava me caçando.
Passei muito tempo caindo até acordar e, por uma fagu-
lha de memória, lembrar que tenho a capacidade de criar
caminhos. E hoje é possível navegar pelos abismos. Você já
pulou no abismo?
– Sempre quis, mas não tive coragem.
– Vi nas memórias do meu inconsciente que foi você
quem inventou a coragem. A sua capacidade é essa, en-
frentar, ser destemida. Mas você foi incessantemente ca-
çada e, todas as vezes que foi pega, ia perdendo parte de si
mesma. Mas você é a mestra das fugas, nunca ficava presa
por muito tempo.
– Essa é mesmo eu?
– Percebe? Veja o que acontece quando retomamos
nossas memórias, nós nos transformamos e crescemos.
– Caravelas destruiu muitas coisas, mas ainda pode-
mos resgatar nossas vidas.
– Entendo melhor agora sobre a eficácia de resgatamos
nosso legado. Eu deixei de saber das minhas possibilida-
des e, se eu estivesse consciente sobre isso, as minhas ro-
tas realmente seriam outras.
– A rota de todas nós.
– O que faremos quando ele tentar entrar na cidade de
Entre Mãos? Vejo que ele, por não saber dos códigos para
entrar, irá invadir, utilizando as pérolas de Mate Masie.

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Será muito mais eficaz que você resgate as suas memórias


do que tente conter Caravelas.
– Mas não podemos deixá-lo prosseguir com a invasão,
principalmente agora que ele está munido de pérolas.
– Esse é nosso primeiro passo no caminho para nos li-
vrarmos das atrocidades de Caravelas. Ele não pode mais
ser o tema dos nossos pensamentos, das nossas ações, das
nossas vidas. Está vendo o que ele faz? Passamos a maior
parte do nosso tempo tendo ele como tema do nosso co-
tidiano, seja porque estamos tentando detê-lo, seja por-
que estamos aprisionados em histórias de sobrevidas que
ele nos aliena. Nós temos que ser nosso próprio tema de
vida. Ele nos atravessa o tempo inteiro, nos assoberba com
suas ideias. E o que nós precisamos é das nossas próprias
ideias. Não tenha medo de ficar, de resgatar aqui um pouco
o que consegui manter resguardado no meu inconsciente.
Não tenha medo porque ele não pode ir além sem nenhum
de nós.
– Omara Omnira está consciente e o aguarda. Omara
Omnira é quem mais ouve o universo. É quem mais ouve a
si mesma. Ela nasceu para ser livre, isso está na genética e
ela lê em si a cada minuto isso.
– Venha comigo, tem muito de nós que você precisa co-
nhecer, falando melhor, há muitos de nós que precisamos
nos reapresentar.
Amò Dúdú convenceu-se dos caminhos, se deu conta
da coragem que precisa resgatar e mergulhou, como de-
veria sempre fazer, nos caminhos propostos por Pérola
Negra. No acesso às memórias reservadas de Pérola Ne-
gra, Amò Dúdú resgatou ancestrais que havia perdido, que
haviam sido retirados de sua memória, resgatou imagens
sobre si mesmo e conheceu sobre as habilidades que não
podia lembrar.

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VALE DAS COBRANÇAS

Caravelas terminou o caminho, mas ao final nada en-


xergou. Apenas imaginou que a cidade poderia estar dian-
te dele. Lembrou-se, através das memórias roubadas, que,
para entrar na cidade de Entre Mãos, tem que ser capaz de
acolher a coletividade nas próprias mãos e assim conse-
guir enxergar as escadarias para realizar a descida para a
cidade mais rica de ideias.
Omara Omnira estava aguardando-o e ficou a observar
a angústia de Caravelas em olhar as pérolas e não ter meca-
nismos para utilizá-las. Furioso por não enxergar a cidade,
acessou novamente as memórias usurpadas e leu que as
pérolas possuem a capacidade de edificar pelas energias
concentradas que, ao combinarem com o contexto na qual
são lançadas como sementes, impulsionam o crescimento
daquilo que o contexto se propõe a ser. Cada cor de pérola
traz uma carga de energia diferente.
– Essa era de sofrimento acaba aqui. Eu nasci para ser
livre.
– Quem está falando?
– Omara Omnira.
– Não te conheço.
– Não mesmo, nunca fui capturada.
– Por enquanto! Não há quem não possa ser capturado.
Conhecerei seu ponto fraco em breve. Você pode até ter
essa habilidade na sua genética, mas não há nada nesse
universo que eu não consiga dominar!

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Omara Omnira riu uma gargalhada de amedrontar


qualquer inimigo.

– O que pensa que vai fazer?


– Sei que estou diante da cidade de Entre Mãos e sei
que, com uma dessas pedras, posso entrar na cidade.
– Perguntou às pérolas o que elas querem ser? Por aca-
so consegue escutá-las? Nem toda memória que você rou-
bou dá conta do que está por vir.
Aborrecido, Caravelas retirou a pérola mais clara e ati-
rou-a no chão à sua frente. A carga de energia foi suficiente
para fazer com que as escadarias e os portões da cidade
de Entre Mãos surgissem, ainda que danificadas pela carga
de energia empregada. Caravelas riu em resposta. E des-
ceu calmamente as escadas douradas, afastou parte dos
escombros, entrou na cidade, mas viu um imenso deserto.
– O que vês, Caravelas?
– Você vê o que eu vejo?
– Entrou na cidade, mas não possui os códigos necessá-
rios para se conectar a ela e às pessoas que aqui estão! Eu
adoro ver essa cidade! Uma das minhas preferidas.
– E quanto ao estrago no portal, esse vai para sua conta.
– Eu tenho as pérolas mais importantes nas minhas
mãos, as mais poderosas. E as usarei.
– Não duvido disso. E não duvido também que leia nas
memórias como fazer uso delas. Mas te questiono, as suas
mãos foram preparadas para manuseá-las? Já se pergun-
tou os motivos para Mate Masie as ter escolhido e reserva-
do, sem nunca as ter usado por séculos?
– Não sabes do que sou capaz!
– Não sei e não me interessa. Tenho muito que fazer.
Irrita-me ter que reservar meus ouvidos para saber de
você, sendo que tudo que compõe o universo fala. Não es-

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tou disposta a interromper minha concentração em ouvir


cada elemento da natureza me dando direcionamento e
me orientando na manipulação das energias, para gastar
com você, alguém disposto a destruir tudo porque não tem
vontade de construir nada.
Omara Omnira deixou Caravelas e seguiu no que pre-
cisava fazer. Voltou-se para a cidade de Entre Mãos e con-
tinuou seu trabalho com as demais engenheiras. Carave-
las aborreceu-se em deixar de ser motivo de preocupação
para os habitantes da cidade. Ainda mais irritado pelo fato
de Omara Omnira ter lhe dado as costas. Sentiu-se não re-
conhecido na sua potência destruidora que todos costu-
mavam temer.
Abriu a pequena bolsa e escolheu mais uma pérola. Es-
colheu a pérola azul, brilhosa feito a noite estrelada, se po-
sicionou próximo ao portal e engoliu a semente cósmica,
esperando com isso que edificasse nele a materialização
de suas habilidades.
Após engolir a pérola, o planeta parou de circular por
alguns segundos. Ele arregalou os olhos que brotavam de
medo diante do que poderia acontecer. Seu corpo cresceu
desproporcionadamente e numa sequência desarmoniza-
da foi edificado a partir dele um pelourinho banhado de
sangue e ao redor um lago de sangue com restos de peles
e corpos mutilados. Pendurado no pelourinho, o chicote
com pontas navalhadas.
– Essa cidade é tão belíssima e agora para nosso des-
gosto terá um pelourinho na porta! Que sirva ao menos de
memória para que lembremos sempre de ficar atentos aos
dominadores, aos egos inflados e preguiçosos poucos dis-
postos a compartilhar o mundo. A memória é importante
para que não venhamos mais tarde a repetir aquilo que po-
demos nos arrepender de ter feito.

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margarete carvalho

– O que há? Preciso que me retire daqui ou prenderei


todos nesse pelourinho e sentirás os açoites.
– A pérola fez o trabalho dela de edificar aquilo que é
potência no lugar onde ela é plantada. E é isso que você
representa, a dor do açoite. Você é um pelourinho.
– Que seja! Quem não fizer o que eu mandar, prenderei
aqui!
– Verdade? Como vai fazer para nos prender aí?
– Como sempre fiz! Vocês trarão os desobedientes até
mim.
– Preciso passar, tenho o que fazer!
– Retorne! Ou então sentirá toda a minha fúria!
– Com licença, não tenho tempo para você.
Mais uma vez, Omara Omnira deixou Caravelas irritado
por ter sido desdenhado e por suas ameaças não surtirem
efeito.
Passaram algumas décadas e Omara Omnira voltou a
dialogar.
– Está mais calmo?
– A primeira a vir para o pelourinho será você, auda-
ciosa!
– Estou de passagem. Há novas cidades para conhecer.
Pérola Negra, após deixar o manicômio e viver a história
de vida que ela mesma escolheu, tem andado muito criati-
va e feito descobertas incríveis.
– Isso até o dia que eu a trouxer para cá! Ela irá sucum-
bir nesse tronco e todos assistirão ao extermínio dela. E
servirá de exemplo.
– Com licença, não tenho o mínimo de interesse de tro-
car palavras com quem exterminou nosso irmão Mate Ma-
sie e muitos dos meus ancestrais. Não sabe o esforço que
faço para não pulverizar você.

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alma cativa

Após um século, Mate Masie surgiu para Caravelas. Ca-


ravelas assustou-se.
– Eu te exterminei! O que faz aqui?
– Exterminou meu corpo, verdade. Mas como consegui-
ria exterminar o cosmo? Não é possível. Estou aqui. Eu vim
cobrar o sangue que você derramou! Nesse lago de sangue
que te rodeia, tem sangue meu. Vim cobrar.
– Nesse chicote tem sangue meu e viemos cobrar – dis-
se um coro de 500 milhões de pessoas.
– Nesse tronco, tem sangue nosso, viemos cobrar – dis-
se um coro de mais 500 milhões, surgindo assim o vale das
cobranças onde Caravelas prestava contas de cada açoite,
devolvendo o sangue e as memórias de cada um e de cada
uma.
Essa é a única forma dele se libertar. Apenas após o
lago de sangue secar, fazendo o pelourinho cair, é que Ca-
ravelas poderia ser livre. Essa tarefa lhe custaria séculos.
Pela primeira vez, Caravelas trabalhou na vida.

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Este livro foi composto na tipologia Cambria 11,5/14,5
Formato 140 x 210 mm, em papel Pólen Soft 80g
Impressão e acabamento:

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