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Gravura da Capa:
Moustafa Assem
Revisão de texto:
Thiara Vasconcelos de Filippo
Apresentação:
Géssica Santos Seles
Impressão e acabamento:
ISBN 978-85-87066-65-7
CDD B869
B869.3
11 Apresentação
15 Entre mãos
29 A ponte
35 Amò Dúdú
41 Pérola negra
55 Visitas
67 Homenstruado
75 Interstícios
87 Ouro Preto
97 Amor de jardim
107 Ciclos
123 Cartas geográficas
131 Caravelas
143 Reformulações
155 Travessias
161 Chaves
167 Migrações
173 Caso de família
177 Lembranças
183 Desencantamento
189 Voltar-se para si
195 Vale das cobranças
APRESENTAÇÃO
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Entre Mãos
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A ponte
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AMÒ DÚDÚ
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PÉROLA NEGRA
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VISITAS
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Reencontraram-se no anfiteatro romano das terras
africanas. Ao descer as escadas das ruínas do anfiteatro de
El Jem, a vasta cabeleira crespa e grisalha de Arìnnà Àjò
se deparou com os labirintos de séculos. Os olhos revira-
ram e por lá se deixou perder diante dos suplícios, a fim
de se aproximar de Pérola Negra. Os cabelos caíram pelo
caminho, o calcanhar passou a sangrar e sentiu o peso dos
músculos negros na alma em plena colônia romana.
No primeiro dia, ao fugir pelos labirintos subterrâneos
sem achar a saída, Pérola Negra se deparou com os olhos
planetários ao fundo da burca. No segundo dia, ouviu vo-
zes estrangeiras indicando o caminho, mas sem nada dizer.
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Entre o cigarro e o sono velado, alguns relances subje-
tivos. Arìnnà Àjò não fuma, mas achou importante aceitar
o convite para compartilhar o cigarro de palha de milho
daquela jovem mulher sem-terra. No ir e vir da fumaça,
algumas palavras se evaporavam. Momentos como aquele
não tem nem depois e nem antes, são sempre únicos entre
as duas.
Pérola Negra, ao puxar a fumaça, aspirava os olhares
e expirava algumas dificuldades, timidez por exemplo.
Quando o cigarro acabou, Arìnnà Àjò se inspirou nele para
se fazer volátil e efêmera ao dançar com quem melhor sa-
bia cultivar qualquer semente. E, entre as pernas, jogou o
corpo, naquele movimento idêntico ao do vento na fuma-
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Pérola Negra, por diversas vezes, retornava a vida em
África, diante da sua tarefa de aprender a voar nos abis-
mos em que Pangeia a jogara. Caminhava pela cidade de
Sousse a fim de apreender o que pudesse entre vielas e
avenidas da África mulçumana. Muito atenta aos detalhes
da cidade, se deparou com uma pequena placa informan-
do que ali, entre aquelas casas azuis e brancas, havia “Ba-
nho Turco”.
Impossível para aquela mulher oriunda da diáspora
africana não desejar entrar em um lugar que dizia: “No pe-
ríodo da tarde, a entrada é restrita às mulheres”. Não se
conteve e quis saber o que havia lá, onde os homens eram
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Revisitaram-se novamente andando pelo Bairro da Li-
berdade. Pérola Negra avistou Arìnnà Àjò varrendo a rua.
Tropeçou na vassoura, a gari estendeu as mãos e os calos
delas se reencontraram.
– Agradecida.
Foi o único diálogo e nada mais. Pérola Negra conti-
nuou andando e quando olhou para trás percebeu que, na
verdade, tropeçara no meio fio.
Revisitaram-se, a paulista gari que trabalhava em um
bairro japonês no Brasil e a empregada doméstica. Arìnnà
Àjò ficou triste por não ser reconhecida, mas guardou para
si suas feições de insatisfação.
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Ministrando aula, Pérola Negra subitamente reencon-
trou Arìnnà Àjò entre alunos e alunas. Arìnnà Àjò levantou
as mãos e fez uma pergunta em iorubá. Pérola Negra não
respondeu, mas pediu a benção. Dessa vez, estava diante
da passagem dela quando ela fora professora universitá-
ria. Segundos depois, viu apenas seus alunos conversando
entre si.
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Teve um pesadelo e abriu os olhos à noite. No escuro
do seu quarto, Pérola Negra ouviu um sussurro em árabe
nos seus ouvidos. Depois sentiu passando pelas suas cos-
tas a textura de cabelos crespos desenhando-a. No chão, a
burca. Ao lado da janela, uma garrafa com uma vela acesa.
Na penumbra da vela, reconheceu a voz de outrora. O peso
sobre si, a pressão dos calos na pele, o hijab que antes ha-
via vedado os olhos. Cobria o chão do quarto o cheiro das
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Em uma consulta no hospital, um paciente deixou cair
um cartão. O paciente era um homem rastafári que se re-
cuperava de um processo cirúrgico. Pérola Negra arrumou
o jaleco ao devolver o cartão para ele, surpreendentemen-
te se deparou com um sorriso e com o pedido:
– Fique com ele!
Meses depois, Pérola Negra, a médica mais conceitua-
da do hospital, ligou para o dono daquele cartão, que, ao
atender o telefonema, se surpreendeu com o fato de ela
não reconhecê-lo depois de tantas vezes que se reviram. A
médica iniciou o diálogo perguntando:
– Você é real? Liguei para saber se esse número é real.
Não entendo porque o cartão não desaparece da minha
bolsa!
– Te reconheci, logo que vi.
– Não entendi.
– Não se preocupe. Não somos loucos. Eu também me
acostumei em rever suas vidas por aí... Quer que eu te
conte?
– Soube de você quando foi morta e comida pelos leões
do Anfiteatro onde hoje está a cidade de El Jem há uns 300
km da Avenida Bourguiba na capital onde, décadas depois,
você tomava tranquilamente seu chá após publicar textos
feministas.
– Tenho as lembranças de você moradora do assenta-
mento do MST no nordeste do Brasil.
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HOMENSTRUADO
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INTERSTÍCIOS
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OURO PRETO
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AMOR DE JARDIM
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CICLOS
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com uma das mãos no queixo. Como ela quis estar naquela
pele naquele momento! A elegante pele preta retinta, seus
colares, seu perfume forte de madeira, sua habilidade de
comentar os livros que leu.
Pérola desistiu de esperar por Helena fazer sala, e se
sentiu na obrigação de sair do diálogo evasivo para estabe-
lecer contato real. Parou de olhar para baixo e se atreveu
a olhar para a figura intrigante daquela mulher em frente
a ela. Novamente! Com o segundo olhar de Dona Arìnnà,
Pérola se pôs ainda mais confusa. Dona Arìnnà estendeu
sua mão e indicou um lugar ao seu lado na varanda. Um
chamado singelo para conversar espantou o pobre cora-
ção daquela mãe e dona de casa maltratada pelo marido
egoísta. O espanto intensificou-se com a delicadeza e pelo
convite para algo sério, que com certeza exigiria das duas.
Simplesmente passaram a divagar sobre o tempo, en-
quanto não achavam um tema em comum e mais íntimo.
Discutiram sobre o quanto para alguns o tempo passava
despercebido e para outros era importante! Aquele assun-
to a fez pensar sobre o seu tempo de vida. O que restaria
para uma dona de casa, uma mulher de quarenta e oito
anos que dedicou os seus anos menos maduros para cui-
dar da prole e do marido?
Pensou que por sorte o jantar estaria posto no instante
seguinte, antes que pudesse derramar qualquer lágrima
de arrependimento por sua vida. Pérola corria o risco de
entrar em prantos, ali mesmo, naquela varanda. Pôs-se a
beber a fim de segurar melhor as emoções e parar de se
importar tanto consigo, quase deixando a comida de lado.
Pérola sentiu-se tão à vontade, ao beber a primeira dose de
uísque, que resolveu beber outras doses.
Pérola pouco imaginava que seria capaz de convidar
Dimas, seu esposo truculento, para dançar! Para Dimas,
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Em uma tarde solitária, após ter lavado a louça e se
despedido das filhas que estavam indo para a faculdade,
Pérola lia um bom livro como costumava fazer todas as
vezes que se encontrava com a oportunidade de realizar
algo para si. No meio da leitura, assustou-se com o som do
telefone tocando. Atendeu. Era Dona Arìnnà convidando-a
para um café. Pérola quase enfarta ao aceitar o convite.
Do pobre arrepio de quem abre uma porta aos argu-
mentos desafetuosos, as emoções de Pérola oscilavam ao
telefone. Pensou que felizmente havia quem regasse seu
chão com delicadeza, umidade e humanidade. Seu cora-
ção, nascido dos trópicos, onde o sol tende a secar, é onde
também teimava o quiabeiro, contrariando, nascendo ali
mesmo e como retorno molhava a garganta de quem tem
palavras quebradiças, secas, desalinhadas, para então en-
sinar que há de ser assim bem molhada a fertilidade, como
são as coxas, os olhos, o útero e a boca de quem se importa
com a semelhante. E para tudo nascer, há de molhar, ge-
mer, salivar, suar, chorar, beber, brotar e crescer. Mas, antes
disso tudo, sabiamente há quem abra os caminhos, para
surgirem sorrisos, para deixar fluir, nascer flor e borbole-
tas voarem. Pérola aceitou como quem sempre aceitaria e
desligou o telefone com um sorriso na alma.
Os encontros mensais passaram a ser semanais com
forte tendência a se tornarem mais frequentes durante
todo aquele ano em que se conheceram. Por conta da ale-
gria desconhecida da esposa, em mais uma tarde chuvo-
sa, Dimas a fez sair de casa desnorteada, apressada e do-
lorida com a vida. Naquela semana, ela havia levado um
soco nas costelas. E atônita andava com os cílios arriados
de tanto perdoar o homem que dizia que a amava e, por
várias vezes, a cobria de mimos após os espancamentos.
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Não foi bem assim que ela imaginou que estaria aos seus
48 anos. Como pode alguém que leu Simone de Beauvoir
aos 20 anos apanhar do marido quando está perto dos
50? Naquela tarde, quando mal podia respirar, leu um
bilhete deixado no livro que ganhou de Dona Arìnnà. O
título dizia:
“Ensaio”.
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Cartas Geográficas
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CARAVELAS
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– Então o quê?
– Se ele atinge a consciência dela é porque ele a reco-
nhece. No entanto, ele não a alcança por completo porque
não a reconhece com a mesma importância do que a si pró-
prio. Que idiota! Não acha, Arìnnà? Não é à toa que, em
alguns momentos, ela se torna um fantasma diante dele. E
aquilo que poderia ser sua fraqueza se torna a chave-mes-
tra para ela.
– Você é incrível!
– O que ela está fazendo, então?
– Não deu a mínima para ele. Ele só será o que é se for
reconhecido como tal. O problema é que ele passa os sé-
culos querendo mostrar isso. Atravessando a vida alheia,
empatando as pessoas de usufruírem o mundo. Adoecen-
do a si e ao mundo.
– Isso me fez lembrar da minha relação doentia com o
meu marido. Ele não quer meu amor e compartilhar a vida,
ele quer que eu o reconheça como meu superior, como
meu dono. Pelo menos essa é a explicação que eu tenho
para um cara que me despreza tanto, mas não me deixa de
uma vez por todas.
– E porque você nunca foi embora?
– Me tornei dependente dele. Passei boa parte do tem-
po tentando convencê-lo de que ele não poderia me tratar
da forma que me trata. Mas é uma tarefa difícil que me cus-
tou muito tempo de vida.
– O que fazer com uma pessoa com essas característi-
cas?
– E o que fazer quando pessoas assim adoecem e exter-
minam civilizações inteiras?
– Como não ser cativa disso? Resistir e lutar é impor-
tante, mas... E nossas vidas? Quando viveremos? Quando
usufruiremos de fato da vida?
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REFORMULAÇÕES
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TRAVESSIAS
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CHAVES
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MIGRAÇÕES
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CASO DE FAMÍLIA
– Essa mulher que ora beija meu pai, essa mulher que
ora beija minha mãe deixou o almoço pronto para quando
chegássemos famintos. Muitas vezes, eu quis jogar pedras
no telhado da casa a fim de quebrar as telhas nela, mas a
vizinha da esquina, ao fazer isso por mim, fez com que eu
me arrependesse das minhas ideias não reveladas. Tive dó
dela. Tive dó também quando a professora da escola ar-
rancou-a do ambiente. Tive dó de saber que ela era proibi-
da de entrar na igreja e também de saber que ela não era
bem-vinda no meu coração. Tive apenas dó. Essa mulher,
que às vezes alinhava as roupas de minha mãe e que às
vezes lustrava os sapatos de meu pai, outro dia ao aten-
der a porta revelou-se casada com todo mundo da minha
família.
O carteiro riu e pensou na audácia daquela mulher que
supôs ser uma doméstica.
– Janja, essa mulher, me ensinou a fazer beiju de coco
e a mudar de idioma a cada cômodo da casa como quem
atravessa uma fronteira. Pai quando chegava, dias após ter
viajado por aí, era o suficiente para que ele retirasse de
mim a minha companhia das tardes de estudo.
– Tia Janja, a namorada do meu pai e de minha mãe,
é assim que passei a apresentar, não samba, não balança,
não brinca. Ela graceja do meu pai, minha mãe zomba dela
e ele já reparou na brincadeira entre elas. Os três somem
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– E você?
– Eu ri na cara do oficial de justiça, desacatei um poli-
cial. Tem mais uns dois artigos, mas que não sei dizer se
alguém além de mim já foi preso por isso aqui.
Obí Gbánja ouvia as encarceradas e várias outras vozes.
– Por quanto tempo você acha que ficará nesse presí-
dio? Preciso de você, Obí Gbánja. Pode me ouvir?
– Muito ao longe. Fale bem devagar.
– Estou perto.
– Mate Masie está à sua procura. Ele está dentro do in-
consciente de Pérola Negra.
– Percebi, mas tem alguém seguindo o rastro dele.
– Não consigo te ouvir mais.
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LEMBRANÇAS
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sabe mais de nós do que nós de nós mesmos, mas não sabe
tudo.
– Isso nós já sabíamos, Pérola Negra. Que ele nos obser-
va e que rouba nossas memórias, que nos vigia e nos caça.
– Mais que isso, Mate Masie, você é meu hospedeiro.
Isso significa dizer que...
– Significa dizer que não há genocídio que me retire
por completo do universo.
– Onde ele está?
– Bem aqui, Mate Masie. Você está cego que não me vê?
– Pérola, fique perto de mim. Apareça, criatura repug-
nante!
– Você é surdo ou não entende o que foi dito? Estou
dentro de você. Sinta a respiração.
– Pérola, o que há?
– Vamos lá, é hora de acabar com tudo isso! Mate-
me. Arranque teu chifre e com ele o seu próprio coração!
Não é assim que seres marítimos híbridos são extermi-
nados?
– Sabe de tuas pérolas? Todas elas também possuem
genes meus!
Os chifres de Mate Masie aumentaram afiando-se dian-
te da fúria de ouvir Caravelas em sua mente. Aos gritos
atônitos, estava fervoroso em avançar para o inimigo sem,
no entanto, vê-lo, mas na ânsia de saber como alcançá-lo.
Mate Masie desdobrou-se entre o pescador e o peixe. Suas
presas cresceram, suas escamas sacudiram. Ora pescador,
jogava a rede ao vácuo, ora peixe, enchia as guelras de ódio.
Toda a causa das desgraças vividas o rodeando e por den-
tro de si. Mate Masie, sedento de luta, mal podia conceber
de maneira coerente seus golpes no ar.
– Mate Masie, não se perca de si. Reorganize suas ener-
gias, reorganize sua indignação e fúria. Você precisa de sua
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DESENCANTAMENTO
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VOLTAR-SE PARA SI
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