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2

A resolução de conflitos internacionais

2.1
Introdução

Este capítulo traz as principais perspectivas sobre a resolução de conflitos


internacionais, presentes na disciplina de Relações Internacionais e no campo de
estudos sobre resolução de conflitos16. Não obstante as diferenças teóricas e
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analíticas entre as duas áreas, cabe observar que não há uma preocupação em
abordar o tema de modo a estabelecer comparações entre os dois campos. Mesmo
quando o texto explicitar em qual dessas áreas se insere uma determinada
abordagem, o interesse básico é mostrar conceitos, perspectivas analíticas e
paradigmas que permitam compreender essa temática de modo o mais abrangente
possível. A forma como se organizou o capítulo reflete essa intenção.
Assim sendo, primeiramente, serão mostradas duas perspectivas
abordando conflitos internacionais a partir de diferentes níveis de análise. Em uma
seção subseqüente, os estudos sobre esse tema serão categorizados de acordo com
duas configurações que a resolução de conflitos pode assumir, ou seja, uma que

16
Deve-se notar que, além dos dois campos acima citados, outras áreas - pesquisas sobre a paz e
estudos sobre conflitos - têm contribuído para o debate acadêmico sobre a dinâmica dos conflitos
internacionais, em particular, com suas pesquisas empíricas e suas proposições sobre como esse
fenômeno pode ser transformado. Serão feitas algumas referências às pesquisas desses campos
neste capítulo, sem um maior aprofundamento para não distanciar de seu tema central, além de os
mesmos não comporem o quadro analítico desta tese (ver adiante, nas páginas 30 e 31, as
contribuições de Johan Galtung e de centros europeus no estudo sobre a paz). Cabe salientar que
cada um desses campos recebe contribuições teóricas e metodológicas de estudiosos de diferentes
disciplinas das Ciências Sociais, da Psicologia, da Economia e da Matemática. Dentre os autores
demonstrando as conexões entre esses campos estão Quincy Wright (1957), John Burton (1964),
David J. Dunn (1978), Christopher Mitchell (1981; 1985; 2002), Louis Kriesberg (1991b; 1999;
2001b) e Peter Wallensteen (2002). Quanto aos estudos sobre conflitos, refiro-me àqueles
fundamentados em teorias sociológicas. Portanto, por entender que o campo sobre conflitos
constitui uma subárea da Sociologia, não serão apresentadas aqui suas principais abordagens.
James A. Schellenberger (1996), no entanto, considera as pesquisas sobre resolução de conflitos e
sobre a paz como subáreas do campo de estudos sobre conflitos. Discordo desse seu
posicionamento. Com base nos autores antes citados, pode-se dizer que cada uma dessas áreas de
estudo representa um campo próprio sobre a temática dos conflitos internacionais.
27

interpreta esse processo de forma competitiva e uma outra que denota uma visão
cooperativa sobre o mesmo. Em seguida, o capítulo versará sobre as etapas da
resolução de conflitos. Em conjunto, essas seções permitirão delinear o quadro
analítico que norteará esta tese, conforme será mostrado ao final deste capítulo.
Diferentemente da disciplina de Relações Internacionais, o campo sobre a
resolução de conflitos inclui pesquisas sobre a ocorrência desse fenômeno não
somente no âmbito internacional, mas também no plano doméstico, no que diz
respeito às interações entre atores de uma mesma comunidade. Nessa direção, são
examinados, por exemplo, conflitos familiares, em organizações e entre empresas
ou, ainda, entre grupos de uma dada sociedade. Há, portanto, abordagens, nesse
campo de estudos, propondo modelos analíticos voltados exclusivamente para a
resolução dessas categorias de conflito que se passam na arena interna. Por outro
lado, alguns autores desenvolvem modelos de análise para que sejam igualmente
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aplicáveis nos níveis doméstico e internacional.


Antes de prosseguir com uma discussão sobre as análises dos conflitos
conforme a esfera em que ocorrem, é pertinente apresentar um retrospecto
histórico sobre a incorporação dessa problemática na disciplina de Relações
Internacionais e as origens do campo de resolução de conflitos. Nesse sentido,
cabe observar que a institucionalização desses dois campos, em centros de
pesquisa e em universidades, ocorreu em momentos históricos distintos. No
entanto, seus primeiros estudos mostram preocupações analíticas similares em
torno do fenômeno da guerra.
Sendo assim, quanto à disciplina de Relações Internacionais, sua origem
está relacionada ao contexto da Primeira Guerra Mundial. Até à ocorrência desse
evento, questões sobre a paz, a guerra e outros temas das relações entre Estados
eram examinados por especialistas de História, Filosofia Política e Direito
Internacional. A proporção que aquele conflito tomou e as enormes perdas
materiais e humanas motivaram alguns estudiosos a investigar suas causas e a
ponderar sobre a validade das premissas sobre o uso da força na manutenção da
balança de poder no sistema internacional e sobre as práticas diplomáticas
baseadas em negociações e tratados secretos. Diante desses questionamentos,
perceberam a necessidade de se fundar uma disciplina acadêmica avaliando as
causas de um confronto armado e os meios de se prevenir conflitos similares
àquele de 1914-1918. O surgimento dessa nova disciplina se deu em 1919, quando
28

do estabelecimento da Cadeira de Relações Internacionais na Universidade de


Gales (Aberystwyth). Essa iniciativa foi logo seguida por outras instituições na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, compartilhando as mesmas indagações17.
Nas décadas de 20 e 30, idéias liberais predominavam nos debates e nos
estudos acadêmicos da área de relações internacionais, com discussões sobre
desarmamento e Estado de Direito, além de enfatizarem as organizações e
políticas externas fundamentadas em reconciliação e cooperação (Banks, 1984).
Os pensadores da corrente liberal argumentavam que a Primeira Guerra resultava,
em parte, da natureza e da prática da política de poder e, por conseguinte, uma
nova ordem mundial, mais pacífica, poderia ser criada na medida em que as elites
se tornassem mais responsivas à opinião pública e mediante a democratização das
relações internacionais (Burchill et al., 2005, p. 8). Ademais, acreditavam na
possibilidade de se alcançar uma harmonia entre os países, promovendo-se o
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desenvolvimento econômico, o comércio, valores democráticos e reformas no


sistema internacional.
Além da resposta acadêmica aos efeitos da guerra, no nível institucional
criou-se a Liga das Nações, determinando que os países notificassem sua intenção
de entrar em um confronto armado. No entanto, a crença nesses ideais, como
garantidores de uma paz duradoura, foi posta em xeque com a Grande Depressão
em fins dos anos 20, o fascismo e a devastadora Segunda Grande Guerra. Esses
acontecimentos estimularam alguns estudiosos a defenderem a premissa de que a
guerra decorria, em parte, de cálculos equivocados das lideranças políticas e, em
parte, da natureza anárquica do sistema internacional, vale dizer, da ausência de
um governo mundial acima das soberanias nacionais.
Essa visão de um sistema de Estados competidores entre si está no cerne
da crítica da vertente realista às concepções liberais, iniciada com Edward Hallett
Carr18 antes da Segunda Guerra, prosseguindo nas décadas seguintes por outros
estudiosos, como Hans Morgenthau19. Segundo essa linha de argumentação, a paz
identifica-se com a ausência da guerra, sendo que o uso da força e a balança de
poder entre os Estados correspondem aos elementos-chave na resolução de

17
Sobre as origens da disciplina de Relações Internacionais, ver BANKS (1984) e BURCHILL et
al., 2005.
18
CARR. The twenty years’ crisis: 1919-1939: an introduction to the study of international
relations, 1939.
19
MORGENTHAU. Politics among nations: the struggle for power and peace, 1948.
29

conflitos. Embora o realismo não negue o papel da moral, do direito e da


diplomacia, sua ênfase recai nos recursos militares e no equilíbrio de poder entre
os Estados como importantes mecanismos para a manutenção da paz.
As preocupações analíticas em torno de confrontos armados
permaneceram nas décadas seguintes nos estudos de internacionalistas, em
particular com relação à dinâmica da Guerra Fria. Mas o campo não se limitou a
esta temática, expandindo-se rapidamente ao longo das décadas de 60 e 70 com
novas abordagens, pesquisas sobre novos tópicos e a formação de subáreas, como
a de análise de política externa.
Assim como os estudiosos da disciplina de Relações Internacionais
preocupavam-se com questões ligadas à Guerra Fria e às armas nucleares, um
grupo de pesquisadores da Universidade de Michigan passou a estudar
sistematicamente esses temas e a resolução de conflitos dos mais diversos tipos.
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Seus primeiros esforços para a institucionalização do campo de estudos sobre essa


temática ocorreram em 1956. Contudo, os objetivos iniciais desses pesquisadores,
naquela universidade norte-americana, dariam distintos contornos a essa nova área
de estudos, uma vez que enfatizavam que a mesma deveria ter um caráter
interdisciplinar, além de ressaltarem a necessidade de se buscar uma teoria geral
sobre as causas e a prevenção de todos os tipos de conflitos humanos.
No ano seguinte, fundaram o periódico Journal of Conflict Resolution
(JCR) e, em 1959, um centro interdisciplinar para a realização de pesquisas dessa
área (Center for Research on Conflict Resolution - CRCR), ambos voltados para a
análise de conflitos variados. Os comentários do corpo editorial do JCR
sinalizavam, no primeiro volume publicado, os temas que seriam alvo dos
trabalhos do emergente campo de resolução de conflitos, além de evidenciarem
sua interação com a área de relações internacionais.

If intellectual progress is to be made in (...) the study of international


relations [it] must be made an interdisciplinary enterprise, drawing its discourse
from all the social sciences, and even further. (…). Our belief in the fruitfulness
of an interdisciplinary approach in this area is based on the conviction that the
behavior and interactions of nations are not an isolated and self-contained area
of empirical material, but part of a much wider field of behavior and interaction.
(…). Conflict, which is perhaps the key concept in international relations (…) is a
phenomenon studied in many different fields (…). The isolation of these various
fields, however, has prevented the building of these contributions into an
integrated whole. (…). We welcome insights, theoretical models, and
confirmatory tests from all spheres of conflict resolution; for we believe that only
30

as all such areas are drawn on, can we devise an intellectual engine of sufficient
power to move the greatest problem of our time – the prevention of war. This
same engine will move us toward greater knowledge and greater power in all
areas of conflict – in the personality, in the home, in industrial relations, and so
on. [Editorial, JCR, March 1957, p. 1-2]20.

No entender de um dos fundadores do JCR, o economista Kenneth


Boulding, a prevenção da guerra deveria se fundamentar em pesquisas e em
informações obtidas por meio de sistemática coleta de dados e de investigações
sobre conflitos, em vez de se basear em diagnósticos diplomáticos. Propunha,
portanto, que se concebesse o campo de resolução de conflitos como uma área de
conhecimento apoiada em dados sobre a possibilidade de ocorrência de confrontos
armados. Passava-se, a partir de então, a dar uma ênfase maior à metodologia
quantitativa e a modelos estatísticos21. Portanto, esse perfil analítico e
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metodológico revelava que as pesquisas no campo sobre resolução de conflitos


identificavam-se com os pressupostos da chamada “revolução behaviorista”
iniciada nos anos 50 e que prosseguiu ao longo dos anos 70 22.
A agenda de pesquisas sobre conflitos desenvolvida nos Estados Unidos,
na década de 50, mostrava-se limitada na medida em que se concentrava tão
somente no fenômeno da guerra e no seu controle. Nesse mesmo período, surgia
na Escandinávia um pólo de pesquisas direcionado para estudos sobre a paz. Um
dos expoentes desse campo é Johan Galtung, que em 1959 inicia seus trabalhos no
Institute for Social Research23, na Universidade de Oslo, contribuindo, ainda, para
a publicação do periódico Journal of Peace Research, em 1964. Galtung trouxe
uma nova visão sobre o conflito, identificando-o como um processo dinâmico, no
qual sua estrutura, as atitudes e o comportamento dos atores estão em permanente
mudança. Por conseguinte, conclui, a resolução de conflitos requer a

20
FINK, 1968, p. 412-413.
21
MIALL, RAMSBOTHAM e WOODHOUSE, 2000, p. 42-43.
22
Alguns estudiosos de relações internacionais também demonstravam, nesse período,
preocupações sobre a necessidade de um tratamento mais científico e objetivo em pesquisas sobre
política internacional, inserindo-se no contexto da “revolução behaviorista”. Esse questionamento
metodológico feito pelos behavioristas à produção de conhecimento no campo das relações
internacionais marcaria o segundo grande debate nessa disciplina. Sobre esse ponto, ver BANKS,
Michael (Ed.), 1984, p. 3-21.
23
Esse instituto denomina-se atualmente International Peace Research Institute of Oslo – PRIO.
31

transformação das relações entre as partes envolvidas na disputa ou no fim do


choque de interesses que residem no centro da estrutura do conflito24.
A institucionalização do campo sobre resolução de conflitos e as pesquisas
sobre a paz, em universidades e por meio de periódicos, prosseguiu ao longo dos
anos 60, intensificando-se nas décadas seguintes. Nos Estados Unidos, cabe
destacar: The Hoover Institute’s Project on International Conflict and Integration
(Universidade de Standford); e na Universidade de Harvard, The Program on
International Conflict Analysis and Resolution e The Program on Negotiation. E
na Europa, dentre os centros criados, vale mencionar: The Polemological Institute
(Holanda); Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI); Center for
the Analysis of Conflict (CAC – University College London).
Pode-se dizer que o trabalho desenvolvido neste último centro de
pesquisas resume a essência dos estudos do campo sobre resolução de conflitos.
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Formado por um grupo de discussão composto por acadêmicos de diferentes


disciplinas, desde sua origem vem buscando uma avaliação que integre distintas
perspectivas teóricas e as práticas de resolução de conflitos. Ademais, partindo do
pressuposto de que o conflito deva ser analisado como um fenômeno com
características comuns, seja no plano internacional, seja na arena doméstica ou,
ainda, no nível das relações familiares e individuais, passa a incorporar em seus
trabalhos determinadas abordagens originalmente aplicadas a outros contextos,
como, por exemplo, nas relações industriais e na mediação entre grupos sociais25.
Cabe observar que a diversidade de análises sobre conflitos e sua
resolução por distintos campos de conhecimento têm levado a variações
terminológicas que geram, por um lado, imprecisões conceituais; por outro,
revelam a dificuldade de se examinar esse fenômeno de modo uniforme. Nessa
direção, é comum ver na literatura sobre essa temática termos sendo usados
indistintamente como sinônimos, tais como disputas, controvérsias, confrontos e
conflitos. Seguindo essa ordem de idéias, para Johan Galtung (1996), por
exemplo, um conflito pode configurar-se como um dilema ou uma disputa. Sendo
assim, diz Galtung, um dilema pode ser identificado quando um ator persegue

24
MIALL, RAMSBOTHAM e WOODHOUSE, 2000, p. 43-44; HARTY e MODELL, 1991, p.
722.
25
BANKS e MITCHELL, 1996.
32

objetivos inconciliáveis, enquanto que uma disputa ocorre quando dois atores
buscam o mesmo objetivo.
De modo similar, há distinções quanto ao significado de resolução de
conflitos e, por conseguinte, as proposições quanto aos mecanismos a serem
empregados, nesse processo, também podem variar. Isso se deve não somente à
natureza do conflito em questão, mas os significados ditinguem-se também
conforme as linhas investigativas dos autores. Contudo, em geral, os conceitos
atribuídos à resolução de conflitos são muito amplos, referindo-se à total
eliminação de suas causas ou, ainda, das incompatibilidades entre as partes e a um
processo em que não mais se recorre à violência (Wallensteen, 2002, p. 8;
Zartman e Rasmussen, 1999, p. 11). É comum também na literatura sobre
resolução de conflitos uma visão prescritiva sobre tal processo. Ou seja, nesses
estudos, nota-se uma ênfase na idéia de que a resolução de conflitos deve levar a
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uma alteração no comportamento das partes envolvidas, cujas ações deixarão de


ser violentas e hostis26.
Diante do que foi exposto, tendo em vista as diferentes concepções de
conflito e de sua resolução, é importante apontar quais as definições a serem
adotadas neste estudo. No que diz respeito a conflito, será concebido como um
fenômeno social resultante da incompatibilidade de objetivos entre dois ou mais
atores e/ou quando as partes disputam, simultaneamente, os mesmos recursos27.
Essa mesma definição pode ser aplicada para um conflito internacional. Embora
esse tema seja retomado na próxima seção, cabe adiantar que será assumido que a
unidade de análise para definir um conflito como internacional não se limita à
visão de um confronto entre Estados, mas pode igualmente envolver atores
estatais e não-estatais.
No que concerne à resolução de conflitos, seu significado deve ir além da
idéia de restringir-se a um processo em que as causas do conflito e/ou as
incompatibilidades entre as partes sejam eliminadas. São dignos de nota conflitos
cuja natureza prolongada lhes dá contornos distintos de outras situações
conflitivas e, por conseguinte, sua resolução pode assumir formas diferentes de
outros casos. Em outras palavras, casos de antagonismos violentos e prolongados

26
Como exemplo, seguindo esse posicionamento, cabe apontar uma das principais referências
sobre essa temática: MIALL, RAMSBOTHAM, WOODHOUSE, 2000.
27
Ver AZAR, 1990, p. 5 e WALLENSTEEN, 2002, p. 7.
33

costumam ser resistentes aos métodos pacíficos de controle e às técnicas de


negociação e de mediação, podendo, ainda, surgir novos ciclos de violência entre
as partes, mesmo depois de iniciado um processo de paz28.
Por conseguinte, para se compreender o fim de conflitos sob as
características acima, não devem ser tomadas como parâmetro as concepções
sobre resolução envolvendo processos unilaterais, em que propostas para a
supressão de uma situação conflitiva sejam impostas por terceiros às partes em
confronto. Esse posicionamento fundamenta-se na constatação de Jacob
Bercovitch, Paul F. Diehl e Gary Goertz (1997) de que métodos unilaterais
(ameaças e sanções), mediação e outros tipos de intervenção externa exercem um
pequeno impacto sobre as partes em conflito. Sendo assim, o processo de
resolução deve caracterizar-se pela decisão das partes de estabelecerem um
acordo, por meio do qual serão definidos mecanismos institucionais, lidando com
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as causas que motivaram o conflito, buscando, ainda, evitar novas manifestações


de violência. Essa ordem de idéias aproxima-se do conceito de Andrew Buchanan:

“(...) conflict resolution shall be understood to be a state in which conflicting


parties agree to cease all politically motivated and national-goal oriented hostile
acts toward one another, and contract to coexist benignly, with mutual respect,
refrain from malevolent acts aimed at the disruption of internal affairs to the
detriment of the other party in pursuit of national goals, and allow for the free
movement of peoples, goods, services and ideas within an agreed institutional
framework based on justice and respect for human rights.” (Buchanan, 2001, p.
61).

Esta parte introdutória indicou a existência de duas áreas que vêm se


dedicando a estudos sobre a resolução de conflitos internacionais, delineando suas
diferenças básicas, apresentando, ainda, os primórdios da institucionalização
desses dois campos. Para o desenvolvimento da discussão sobre o alcance
analítico de suas perspectivas, é preciso, antes, voltar a atenção para alguns temas

28
Louis Kriesberg (1993) denomina esses conflitos como “intractable conflicts” e Charles
Gochman e Zeev Maoz (1984) os classificam como “enduring rivals”. Entre os trabalhos voltados
para esse tema, destacam-se: War and power transitions during enduring rivalries (1982), de F.
Wayman; um artigo de Paul Diehl, Contiguity and military escalation in major power rivalries
(Journal of Politics, vol. 47, n. 4, 1985); The empirical importance of enduring rivalries (1992),
de Gary Goertz e Paul F. Diehl; e um artigo de Daniel Geller: Power Differentials and war in rival
dyads (International Studies Quarterly, vol. 37, n. 2, 1993). Essas referências estão em
BERCOVITCH e REGAN (1999). Sobre o assunto, vale ver, também, BERCOVITCH, DIEHL e
GOERTZ (1997).
34

e categorias da literatura que aborda a resolução de conflitos internacionais. Para


isso, conforme foi explicado no início, as três próximas seções dedicam-se às
principais abordagens em torno das seguintes dimensões: os níveis de análise; as
configurações de um processo de resolução de conflitos; e as etapas desse
processo.

2.2
A análise de conflitos internacionais
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Em sentido lato, conflito é uma das formas de interação social entre os


mais diversos tipos de atores, vale dizer, indivíduos, classes, comunidades e
Estados (Azar, 1990; Kriesberg, 1992). Entretanto, uma simples definição como
esta tem levado a consideráveis diferenciações analíticas entre aqueles que se
dedicam à investigação desse fenômeno29.
Claro está que as avaliações dos pesquisadores variam conforme as
dimensões do conflito analisado, a saber: que unidades estão em situação
conflituosa e como as mesmas se classificam quanto à sua natureza, tamanho e
recursos disponíveis30; o número de atores envolvidos; em que arenas os conflitos
se manifestam; e a intensidade quanto ao grau de violência empregada, por
exemplo. E, nesta direção, um conflito pode ter a forma tanto de uma crise
internacional, em que as partes não recorrem a métodos violentos, como assumir
um formato mais destrutivo, sob a forma de uma guerra entre Estados. Assim
sendo, conflitos podem apresentar configurações distintas não apenas quando se
passam no plano doméstico (como as revoluções e guerras civis) ou na esfera
internacional (como os confrontos armados entre países), mas distinguem-se,

29
Essa interpretação sobre a natureza do conflito baseia-se em uma vasta literatura sociológica
contendo uma gama de hipóteses e modelos teóricos explicando esse fenômeno, mas que não cabe
aqui ser discutida. Sobre as perspectivas dessa literatura, vale conferir: FINK, 1968; COSER 1972;
MACK e SNYDER; 1972; DEUTSCH, 1972; BIRNBAUM, 1992.
30
FINK, 1968.
35

ainda, em sua complexidade, dependendo das questões e dos objetivos


envolvidos31.
Um dos elementos mais evidentes para se classificar um conflito como
nacional/doméstico, regional ou internacional é o seu alcance geopolítico32. Nesse
sentido, diz respeito ao local em que ele se manifesta e à natureza dos atores
envolvidos. Isto posto, um conflito pode configurar-se como internacional (entre
Estados ou se envolver atores e comunidades de diferentes Estados) ou nacional
(quando participam apenas atores de um único país e se ocorrer dentro de um
mesmo território nacional).
Um conflito pode, ainda, passar por um processo de internacionalização,
como observam Frank Pfetsch e Christoph Rohloff (2000, p. 28). Em outras
palavras, essa situação ocorre quando um conflito interno toma proporções
internacionais se: a) receber apoio político, diplomático e recursos externos; b) as
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questões do conflito tornarem-se a causa de um confronto em outro país; c)


houver a intervenção militar de forças externas (um país vizinho, uma potência
regional ou internacional).
Contudo, a despeito da multiplicidade de conceitos e dimensões do
conflito, há estudiosos aplicando os mesmos instrumentais analíticos no exame de
casos distintos. John Burton (1986; 1987; 1990) é um dos autores a seguir essa
perspectiva, no intuito de formular uma teoria para a resolução de conflitos para
todos os níveis em que esse fenômeno possa se manifestar (entre indivíduos, na
arena nacional e no âmbito internacional). Antes porém de discutir a validade de
modelos equiparando diferenciados conflitos como se seguissem a mesma lógica,
será verificado como alguns dos mais relevantes estudos da disciplina de Relações
Internacionais e do campo sobre resolução de conflitos examinam um conflito
internacional a partir da análise de suas causas. Nessa apresentação serão
privilegiadas as perspectivas que representem uma contribuição em termos
analíticos e explicativos sobre conflitos e que se tornaram referências para outros
trabalhos sobre esse tema.
Nesse sentido, uma referência obrigatória é Kenneth Waltz. Sua
caracterização dos níveis analíticos, elaborada inicialmente para compreender a

31
DE REUCK, 1984, p. 97.
32
PFETSCH e ROHLOFF, 2000, p. 27.
36

guerra, acabou se tornando um recurso metodológico recorrentemente empregado


também em estudos sobre outros fenômenos das relações internacionais.
No clássico Man, the State and War, originalmente publicado em 1959,
Waltz identifica três níveis de análise (“imagens”) em que podem ser encontradas
as causas da guerra: o individual, o doméstico e o internacional. Quanto ao
primeiro, refere-se à natureza humana, destacando, portanto, as características
pessoais e psicológicas dos estadistas como elementos capazes de afetar as
decisões na arena externa. Para o segundo nível, o autor relaciona conflitos
internacionais com a estrutura interna dos Estados, apontando, por conseguinte, a
sociedade, a cultura e instituições domésticas como as variáveis a influenciar as
ações estatais. No que diz respeito ao terceiro nível, concernente à natureza do
sistema internacional, Waltz atribui à posição de cada Estado nesse sistema como
o fator a determinar o modo como agirá no plano externo.
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A partir dessa organização de diferentes perspectivas quanto à origem das


guerras, Waltz formula uma diferenciação quanto ao status das causas daquele
fenômeno. Assim, para ele, o nível internacional constitui a “causa permissiva”
ou explicativa da guerra, sendo outras variáveis, presentes nos outros dois níveis,
suas “causas eficientes” ou imediatas (Waltz, 1959, p. 232). Segundo o autor:
“(…). It is true that the immediate causes of many wars are trivial. (…). But it is
not often true that the immediate causes provide sufficient explanation for the
wars that have occurred”33. Seguindo essa ordem de idéias, argumenta que
explicações voltadas apenas para o primeiro ou para o segundo nível são
equivocadas, uma vez que as causas que se manifestam nessas esferas interagem
com fatores do plano sistêmico. Ainda sobre este último, ressalta que a
competição e o conflito derivam da busca dos Estados por poder e segurança, em
um sistema internacional sem uma autoridade central que se coloque acima das
soberanias nacionais.
Em um trabalho posterior - Theory of International Politics (1979) -,
Waltz retoma uma discussão iniciada por David Singer (1961) sobre a
necessidade de se especificar os níveis de análise macro (sistêmico) e micro
(estatal) para uma distinção clara entre as causas e os efeitos dos fenômenos no
plano internacional. Conclui, naquela obra, que abordagens fundamentadas em

33
WALTZ, 1959, p. 235.
37

determinantes da arena nacional ou nas percepções dos decisores políticos têm um


alcance analítico limitado. Em contrapartida, sugere que estudos sobre a política
mundial não se restrinjam à análise interna dos Estados, uma vez que tal método
não possui suficiente poder explicativo para se compreender a continuidade e a
recorrência de certos fenômenos no sistema internacional. Isto posto, Waltz
defende a premissa de que a estrutura do sistema internacional constitui o
principal fator explicativo para a ação externa dos Estados (Waltz, 1979, p. 87).
O ponto a caracterizar essa obra é a absoluta importância que Waltz atribui
à explicação estrutural para o comportamento dos Estados no sistema
internacional. Ou seja, para o autor, a anarquia (como princípio organizador do
sistema internacional) e a distribuição de capacidades entre os Estados constituem
os parâmetros a delinearem as ações estatais naquele sistema e limitarem a
cooperação internacional. Acrescenta o autor que a multipolaridade tende a ser
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mais instável e propensa a gerar conflitos armados do que a bipolaridade. E a


partir dessa sua perspectiva, elimina em sua abordagem o papel dos atores
domésticos. Para Waltz, portanto, o Estado constitui o ator central e unitário na
política mundial, agindo de acordo com um conjunto de valores e interesses,
realizando suas escolhas estratégicas em termos de custos e benefícios.
Os postulados de Edward Azar (1986; 1990) sobre conflitos prolongados e
de difícil resolução34 tornaram-se uma importante referência no campo de estudos
sobre a resolução de conflitos e podem ser considerados uma alternativa à
perspectiva sistêmica de Waltz. Segundo Azar, um conflito prolongado
caracteriza-se como um fenômeno social. E esta propriedade está presente tanto
em uma guerra civil como em um conflito entre Estados, diz o autor. Por
conseguinte, conclui, o foco analítico deve ser a identidade dos grupos envolvidos
no conflito, que pode ser definida em termos étnicos, raciais e religiosos. Sobre
esse ponto, afirma que:

“The most useful unit of analysis in protracted social conflict situations is


the identity group (…). It is a more powerful as a unit of analysis than the nation-
state. The reason is that ‘power’ finally rests with the identity group. (…).
The professional debate over the question of the appropriate unit of
analysis has dwelt on the differences between focusing on the individual, state

34
O termo cunhado por Azar para esses casos duradouros e aparentemente incapazes de serem
solucionados é “protracted social conflicts”.
38

or system and their implications (Waltz, 1959; Singer, 1961). It has ignored the
group totally. Our protracted social conflict research has impressed upon us the
need to re-examine this issue of the unit of analysis and to correct this deficiency
in the international politics literature. (…).
Many internal and external relations between states and nations are
induced by the desire to satisfy such basic needs (…). The unity of analysis is the
identity group that makes this possible, be it the state, the nation or some more
intimate group. The origins of international conflict are, therefore, in domestic
movements for the satisfaction of needs and in the drives of nations and states to
satisfy the same needs. Thus, distinctions made between domestic and
international conflicts are misleading”35.

Prossegue o autor, argumentando que conflitos não resultam apenas de


disputas em torno de interesses materiais, mas também do impedimento da
satisfação de necessidades humanas básicas e universais, em especial, a garantia
de segurança, o reconhecimento social, justiça distributiva e participação
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política36. Portanto, conclui, situações conflituosas emergem quando o acesso às


necessidades humanas é limitado e quando identidades étnicas estão ameaçadas. E
porque essas necessidades são sociais, Azar alega que:

“To separate domestic and international is artificial – there is really only


one social environment and its domestic face is the more compelling: thus, there
are international and national interests which actors manipulate and exchange in
return for the opportunity of satisfying domestic needs, but not the other way
around” (Azar, 1986, p. 33).

Sendo assim, afirma Azar, os atores buscam satisfazer as necessidades


sociais que se caracterizam como domésticas, e não como internacionais. Dito
isso, declara “(...) we have been mistaken in taking the state as the unit of analysis
in international relations and thus failed to perceive the continuity between
domestic and international (...)” (Azar, 1986, p. 35). Portanto, mesmo em caso de
conflitos internacionais, estes resultam da tentativa dos beligerantes em assegurar

35
A primeira frase foi grifada para chamar a atenção para o fato de que Azar acaba equiparando o
termo unidade de análise à noção de nível de análise no sentido empregado por Waltz. O segundo
trecho foi grifado para destacar que o plano doméstico é que deveria ter sido explicitado pelo autor
como o nível de análise (nível em que se encontram as causas do conflito). A citação acima está
presente em AZAR, 1986, p.31-33.
36
Em outro trabalho, Azar faz uma categorização das necessidades humanas: 1) aceitação
(reconhecimento da identidade definido em termos de valores culturais compartilhados); 2) acesso
(participação efetiva em instituições políticas, do mercado e decisórias); 3) segurança (segurança
física, alimentação e habitação). Ver AZAR, 1990.
39

suas necessidades, como a segurança ou a identidade do grupo. No caso do


confronto entre a Grã-Bretanha e Argentina pela soberania das Ilhas
Malvinas/Falklands, em 1982, a raiz do conflito não se referia a hostilidades
étnicas ou a manifestações nacionalistas, mas a origem fundamentou-se em uma
disputa por soberania territorial37. Segundo ele, esta última é um elemento da
identidade de um grupo (Azar, 1990, p. 102).
Também John Burton aponta a identidade de grupos como a unidade de
análise em estudos sobre conflitos entre nações e entre comunidades (Burton,
1987, p. 9 e 23; 1993, p. 55). Seguindo uma linha argumentativa próxima à de
Azar, Burton busca explicar por que determinados conflitos persistem por longos
períodos e quais os motivos que levam a constantes fracassos em sua resolução.
Nesse sentido, aponta a não-satisfação de necessidades humanas básicas como a
causa primária. Esses conflitos relacionados a valores e necessidades humanas –
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identificadas por Burton como identidade, segurança, reconhecimento social,


justiça distributiva, alimentação e desenvolvimento - foram por ele denominados
“deep-rooted”. Ou seja, as raízes desse fenômeno estão nas complexas relações
que se passam no interior de uma nação e nas interações entre nações, envolvendo
necessidades ontológicas dos indivíduos e de grupos. Nas palavras do autor:

“Deep-rooted conflicts of the kind that is our concern occur, however, at


all social levels. They occur in the social relationships of the work place.
Furthermore, most modern societies are multi-cultural or multi-ethnic. Most have
problems of poverty and plenty. Most have problems of inequality of opportunity.
Most have problems of frustration and lack of participation and identity. Most, as
a consequence, have high levels of alienation, leading to conflict situations of
many kinds that affect the whole of a society and, indirectly, the world society.”
(Burton, 1987, p. 3).

A aplicação de métodos inadequados para a resolução de conflitos, conclui


Burton, leva à continuidade ou à intensificação de conflitos “profundos”. Sobre
esse ponto, o autor identifica os tradicionais processos de negociação
fundamentados na lógica do poder ou, ainda, a imposição de um processo de paz

37
Para o autor, embora esse caso se assemelhe a uma disputa entre “potências” (apesar de a
Argentina ser um país em desenvolvimento), possui também características que permitem
classificá-lo como “protracted social conflict”. Nessa direção, destaca que a disputa pela soberania
da região estava associada a questões identitárias. Por esse motivo, conclui o autor, o processo de
resolução do conflito, baseado em métodos tradicionais de diplomacia, foi ineficaz para evitar as
crises e o progressivo deterioramento das relações entre a Argentina e a Grã-Bretanha (Azar, 1990,
p. 82-105).
40

por meio do uso da força como possíveis razões adicionais para o prosseguimento
de um conflito (Burton, 1987, p.18). Esse posicionamento reflete sua crítica ao
paradigma realista, como será visto na seção que se segue.
Herbert C. Kelman é outro autor a apresentar uma análise das relações
internacionais e dos conflitos diferenciada das perspectivas realista, neo-realista e
daquelas voltadas para fatores estruturais. Essa distinção pode ser percebida na
forma como o autor descreve a natureza de um conflito internacional:

“(...) a process driven by collective needs and fears, rather than entirely a product
of rational calculation of objective national interests on the part of political
decision makers. Second, international conflict is an intersocietal process, not only
an interstate or intergovernmental phenomenon. Third, international conflict is a
multifaceted process of mutual influence, not only a contest in the exercise of
coercive power. And fourth, international conflict is an interactive process with an
escalatory, self-perpetuating dynamic, not merely a sequence of action and
reaction by stable actors. (Kelman, 1999, p. 194).
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Portanto, para o autor, a análise sobre conflitos internacionais deve


concentrar-se no nível da sociedade. Sua linha argumentativa aproxima-se da
perspectiva de Azar e Burton ao apontar a falha no atendimento de determinadas
necessidades humanas como causa do surgimento de conflito e de sua escalada e
perpetuação (Kelman, 1990; 1999). No entanto, diferencia-se desses autores ao
dizer que o não-atendimento das necessidades básicas constitui o único fator a
causar esse fenômeno.
Nesse sentido, para Kelman, os conflitos geralmente resultam de uma
combinação de fatores objetivos e subjetivos, que se correlacionam de modo
circular (Kelman, 1999, p. 195). Deixa claro, pois, reconhecer a importância do
Estado no sistema internacional, o papel do poder nas relações internacionais e o
impacto de fatores estruturais sobre um conflito internacional, mas ressalta que
fatores subjetivos são igualmente relevantes em uma análise sobre esse fenômeno.
Nessa direção, aponta a segurança, autonomia e o senso de justiça como algumas
das necessidades básicas de natureza subjetiva.
Kelman destaca que a análise de um conflito não deve se restringir às
questões militares e diplomáticas, mas deve contemplar também as dimensões
econômica, psicológica, cultural e social de cada uma das partes em confronto.
Sobre essa sua observação, o autor explica que essas dimensões delineiam o
contexto político com o qual os governos, de cada sociedade em conflito, terão de
41

lidar. Nesse sentido, é importante notar a existência de restrições políticas a serem


enfrentadas pelos governos, além das divisões em sua respectiva sociedade, diz o
autor. Nessa direção, sugere que:

“A view of conflict as a process that occurs between two societies


immediately prompts us to examine what happens within each society. In
particular, this view alert us to the role of internal divisions within each society.
Although theories of international relations often treat states as unitary actors,
the societies that states or other political organizations represent are never
monolithic entities. Every political community is divided in various ways, and
these internal divisions often play a major role in exacerbating or even creating
conflicts between such political communities. The course of an intergroup
conflict typically reflects the intragroup conflicts within both conflicting groups,
which impose constraints on the political leaders. Leaders pursuing a policy of
accommodation have to consider the reactions of opposition elements, who may
accuse them of betraying the national cause or jeopardizing the nation’s
existence. They also have to be responsive to the anxieties and doubts within the
general population, which opposition elements foster and from which they draw
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support. In all these ways, internal divisions introduce severe constraints on


efforts at conflict resolution”. (Kelman, 1999, p. 200).

No entanto, embora a escalada do conflito esteja associada ao não-


atendimento das necessidades básicas e à percepção das partes em conflito de
ameaça à sua própria existência, Kelman observa que esses mesmos fatores
podem, em contrapartida, favorecer a sua resolução. Assim, o autor salienta que,
se por um lado, as divisões no interior de cada sociedade em conflito possam
impor limites às decisões de seus respectivos líderes, por outro, pode se constituir
uma coalizão entre grupos de cada uma das partes, buscando uma proposta
alternativa de paz (Kelman, 1999, p. 199-200).
A exposição dessas diferentes linhas argumentativas mostrou que a
identificação das principais causas dos conflitos internacionais revelam
substanciais diferenciações teóricas e metodológicas entre os estudiosos desse
fenômeno. Contudo, não é o objetivo aqui avaliar a validade dos modelos
mencionados. Também não se pretendeu esgotar o tema incorporando outras
perspectivas. A indicação das abordagens dos autores teve a intenção de ser
ilustrativa sobre as possibilidades que permitem caracterizar um conflito como
42

internacional, seja por fatores localizados nos níveis sistêmico, doméstico,


individual ou, mesmo, uma combinação destes38.
Cabe explicar, no entanto, que essa seleção não foi aleatória, mas se buscou
exemplificar as distintas perspectivas com modelos que se tornaram importantes
referências para os estudos sobre conflitos internacionais. Vale notar, ainda, que a
diferenciação em termos da natureza das causas dos conflitos leva à proposição e
à aplicação de distintos métodos para sua resolução. Este é o ponto que será visto
a seguir.

2.3
Paradigmas sobre a resolução de conflitos internacionais
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Segundo Morton Deutsch (1994), as interações sociais podem se


caracterizar como cooperativas ou competitivas. Nas palavras dele:

“As a result of much research by my students and myself (...), I have


developed a hypothesis about what gives rise to cooperation and competition. I
have termed it, ‘Deutsch’s crude law of social relations’: the characteristic
processes and effects elicited by a given type of social relationship39. Thus,
cooperation induces and is induced by a perceived similarity in beliefs and
attitudes, sensitivity to common interests and deemphasis of opposed interests, an
orientation toward enhancing mutual power rather than power difference, and so
on. Similarly, competition induces and is induced by the use of tactics of
coercion, threat, or deception; attempts to enhance the power differences
between oneself and the other; poor communication; minimization of the
awareness of similarities in values and increased sensitivity to opposed interests;
suspicious and hostile attitudes; the importance, rigidity, and size of the issues in
conflict; and so on. (Deutsch, 1994, p. 15).

Baseando-se nessas premissas, o processo de resolução de conflitos, no


entender de Deutsch, também pode seguir um direcionamento cooperativo ou não.
Para o autor, há uma correspondência entre a natureza das causas de um conflito e
o modo como se configura seu respectivo processo de resolução. Portanto, de

38
Sobre essa discussão, vale ver LEVY, Jack S. Theories of interstate and intrastate war; a level-
of-analysis approach, 2001.
39
Ênfase do próprio autor.
43

acordo com as estratégias e mecanismos adotados na resolução de conflitos, esse


processo pode se manifestar de forma destrutiva ou construtiva. Sobre essa
questão, vale citar o autor:

“Understanding the conditions which give rise to cooperative or


competitive social processes, as well as their characteristics, is central to
understanding the circumstances that give rise to constructive or destructive
processes of conflict resolution. A constructive process of conflict resolution is, in
its essence, similar to an effective cooperative process, while a destructive
process is similar to a process of competitive interaction.(…)”. (Deutsch, 1994, p.
15).

O autor limita-se a fazer essa distinção, não buscando exemplificar as duas


vertentes de resolução de conflitos com modelos teóricos da literatura sobre
conflitos internacionais. No entanto, sua categorização é útil como referência para
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se enquadrar as abordagens sobre a resolução de conflitos internacionais, ora na


configuração destrutiva, ora na configuração construtiva.
Deve-se deixar claro que não se pretende forçar uma comparação entre
premissas pertencendo a áreas de conhecimento distintos, mas é possível traçar
algumas convergências que permitem agrupar perspectivas da disciplina de
Relações Internacionais e do campo de estudos sobre resolução de conflitos em
um mesmo paradigma. Vale dizer, ainda, que o fato de serem incluídos em uma
determinada categoria não implica assumir que pertençam a uma mesma “escola
de pensamento”.
Quanto às perspectivas interpretando os conflitos e sua resolução como
processos de interação competitiva, a primeira referência será o paradigma
realista40. Esta vertente caracteriza o sistema internacional como anárquico, no
qual prevalece a desconfiança entre os Estados quanto às intenções e
comportamentos mútuos. Diante disso, o principal objetivo de cada Estado é
assegurar sua sobrevivência, sendo a guerra um dos meios pelos quais defenderá
seus interesses vitais. A paz, por conseguinte, recebe um sentido restrito e
negativo, uma vez que é entendida como “ausência de guerra” e baseada na força
militar. Para Hans Morgenthau, por exemplo, a redução do conflito pode ocorrer
devido à formação de uma balança de poder ou quando uma das partes sobrepõe-
40
Registre-se que o realismo não constitui uma teoria unificada, contudo, os pressupostos aqui
apresentados são compartilhados pelas diferentes perspectivas dessa vertente teórica da disciplina
de Relações Internacionais. Vale conferir BURCHILL et al., 2005.
44

se à outra em virtude de sua superioridade em termos de recursos e poder.


Contudo, observa o autor, as guerras podem resultar dos efeitos não-intencionais
dos Estados que buscam preservar sua segurança e a paz.
Essas abordagens centradas no Estado como unitário e o principal ator nas
relações internacionais fazem uma leitura dos conflitos baseada no contexto da
construção de uma ordem centralizada e racionalizada no Estado moderno,
territorialmente delimitado. Dessa forma, associam a legitimidade do monopólio
do uso da força ao Estado, assumindo que a guerra constitui uma ação legítima
para se assegurar os interesses nacionais e a soberania.
Seguindo a argumentação realista, os instrumentos utilizados pelos
Estados em um conflito, ou seja, os recursos da política de poder, seriam os
principais mecanismos a serem empregados em sua resolução. No entanto, não
obstante esse cenário potencialmente conflituoso entre os Estados, processos de
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negociação tornam-se mecanismos alternativos ao emprego da força pelos Estados


e levam a um controle racional das decisões políticas referentes às crises
internacionais41. A restauração da ordem também pode ser realizada por meio da
mediação. Neste caso, a eficiência da atuação do mediador é avaliada em termos
de sua capacidade de iniciar a resolução de um conflito por meio da persuasão ou
coerção para que as partes aceitem um determinado acordo.
O processo direcionado para o fim do conflito, seguindo os argumentos
dessa corrente de pensamento, seria marcado pelo confronto, centrado na lógica
do poder e por resultados de soma zero (o ganho de uma parte representa uma
perda diretamente proporcional para a outra parte). Esse modelo analítico encaixa-
se, portanto, no processo competitivo a que se referiu Morton Deutsch.
Os estudiosos do campo de resolução de conflitos costumam definir esse
modelo apresentado pelos realistas como “settlement”, em contraposição ao termo
“resolution”42. Dito de outro modo, para aqueles estudiosos, as proposições do
realismo para o término de um conflito constituem apenas uma resposta imediata
a uma determinada situação de violência, ou seja, seria uma estratégia de controle
do conflito. Por conseguinte, não são eliminadas as causas que, de fato, geraram o

41
Dentre os trabalhos sobre processos de barganha, vale conferir: How Nations Negotiate (1964)
de Fred Charles Iklé; e sobre a racionalidade dos atores em negociações, ver The Art and Science
of Negotiation (1982), de Howard Raiffa.
42
John Burton foi o primeiro autor a fazer essa distinção. Sobre esse ponto, ver BURTON, 1987.
45

conflito, sem haver, ainda, alterações no âmbito das atitudes das partes envolvidas
e de suas percepções mútuas.
Uma outra linha argumentativa, que também fundamenta seus
pressupostos no comportamento racional dos atores (maximizadores de seus
ganhos com os menores custos possíveis), pode ser enquadrada no paradigma
sobre a resolução construtiva dos conflitos. De acordo com esse segundo modelo,
o cálculo racional explicaria tanto a origem de um conflito, a intensificação do uso
da violência e mesmo o fim de uma guerra. Essa perspectiva pode ser ilustrada
com o modelo teórico proposto por Anatol Rapoport, introduzindo o método de
“solução de problemas” (problem-solving) como uma prática pacífica para
resolução de conflitos43.
Para esse autor, eventualmente, os conflitos entre Estados podem resultar
de falsas percepções e de entendimentos equivocados quanto às questões da
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agenda de negociações. E, por conseguinte, conclui Rapoport, dá-se início a um


círculo de hostilidades que passa a se configurar como uma ameaça à segurança
dos Estados. A solução proposta reside, pois, em esforços dos negociadores para
se constituir uma base comum de entendimento, de modo que haja ganhos mútuos
para as partes envolvidas em uma disputa. Portanto, por meio da participação de
mediadores, os representantes das partes em conflito discutem seus interesses e
propõem soluções. Nota-se a influência dessa segunda perspectiva em trabalhos
de William Zartman e Maureen Berman; de Roger Fisher e William Ury; John
Burton, Edward Azar e Herbert Kelman44.

43
Costuma-se referir a essa estratégia como “barganha integrativa”. Ver: RAPOPORT, Lutas,
Jogos e Debates. Brasília, DF, Ed. Universidade de Brasília, 1980 (originalmente publicado em
1960). Assim como outros autores, Rapoport utiliza-se da teoria dos jogos para compreender as
situações de conflitos e sua resolução. Essa teoria, introduzida em 1944 por John von Neumann e
Oskar Morgenstern (Theory of Games and Economic Behavior), busca mostrar, por meio de
modelos matemáticos e hipotéticos, o modo pelo qual atores se comportam em situações de
tomada decisória e de confrontação de estratégias racionalmente formuladas. Tanto a disciplina de
Relações Internacionais como o campo de resolução de conflitos possuem trabalhos baseados
nessa teoria, analisando como conflitos de interesses podem ser resolvidos em situações diversas.
Embora o desenvolvimento desse modelo teórico seja normalmente associado aos jogos de soma
zero – interações competitivas -, a teoria dos jogos também reconhece que conflitos envolvem
interesses cooperativos, podendo gerar resultados de soma-variada. Sobre a utilização da teoria dos
jogos e escolhas estratégicas sob esse segundo enfoque, vale conferir: Robert Axelrod, The
Evolution of Cooperation, 1980; e Cooperation under Anarchy, editado por Kenneth A. Oye
(1986).
44
William Zartman e Maureen Berman (The practical negotiator, 1982) enfatizam a importância
de as partes terem o devido entendimento sobre o problema. Posteriormente, devem chegar a uma
fórmula conceitual que sirva de guia para a negociação no que se refere aos seus detalhes
(diagnosis-formula-detail). Fisher e Ury (1991) enfatizam que as negociações fundamentam-se
46

Uma outra linha de pesquisa a argumentar que os conflitos podem ser


resolvidos de forma cooperativa fundamenta-se em preceitos liberais. Sob pena de
reducionismo, dada a variação de perspectivas com base na tradição liberal, no
que concerne ao tema desta seção, importa fazer referência apenas a uma de suas
principais premissas: a constituição de uma ordem mundial pacífica fundada em
valores democráticos, no livre mercado e na idéia de progresso45. Nesse sentido,
as possíveis respostas para se dirimir os conflitos incluiriam meios não-violentos e
mecanismos como a arbitragem e a negociação. Essas estratégias devem ser,
ainda, capazes de produzir mudanças políticas, sociais e econômicas relacionadas
às origens daquele fenômeno. O mediador teria a função de facilitar as
negociações e os acordos, sem adotar um posicionamento coercitivo ou de
ameaças. Esses pressupostos se inserem, pois, na descrição de Morton Deutsch
sobre processos construtivos para a resolução de conflitos.
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Há que se registrar, contudo, que a liberalização não necessariamente leva


à paz. Roland Paris (2001) é um dos autores a notar que operações voltadas para
uma rápida democratização e liberalização do mercado, em países que passaram
por guerras civis, podem favorecer o reinício de conflitos sociais. Como observa
Paris, esses dois processos podem gerar uma competição entre os grupos de uma
dada sociedade que passa por reformas após um contexto de conflito. De fato,
essa foi a situação em alguns países, como Angola, quando uma iniciativa
internacional para a paz mostrou-se ineficaz, na medida em que após a realização
de eleições, em 1991, divergências entre os principais partidos políticos
resultaram em uma retomada do conflito civil dois anos depois.
Em contrapartida, Paris sugere que, em uma fase em que se está
construindo a paz, é preciso, antes, estabelecer instituições governamentais,
econômicas e políticas estáveis e que o processo de liberalização do mercado seja
gradual para se evitar efeitos desestabilizadores que as reformas possam causar.
Nessa direção, é importante, afirma o autor, que a estabilidade política local seja

sobre os interesses, e não sobre as posições de barganha. Sobre as referências dos demais autores
citados, ver ao final da tese: BURTON (1987); AZAR (1990) e ROUHANA e KELMAN (1994).
45
Dentre os autores inseridos nessa tradição liberal estão os pensadores clássicos Jean-Jacques
Rousseau, Immanuel Kant, Hugo Grotius, Adam Smith. Registre-se que há diferenciações
substantivas em suas perspectivas, mas não cabe aqui serem exploradas, pois não são essenciais
para o propósito desta tese. O que importa assinalar não são os distintos posicionamentos entre os
autores dessa corrente, mas sim seus pressupostos que indicam uma leitura cooperativa acerca da
resolução de conflitos internacionais. Sobre o legado desses autores para os estudos sobre as
relações internacionais, vale conferir BURCHILL et. al., 2005.
47

assegurada por uma efetiva administração internacional dirigida à formação de


instituições capazes de solucionar possíveis tensões sociais no interior da
comunidade. Como denomina o próprio autor, trata-se de um “modelo de ajuste”
orientado para a paz (Paris, 2001, p. 779).
Há que se ponderar, contudo, que sua ênfase no papel das instituições na
construção da paz diz respeito a mecanismos que promovam a estabilização
político-econômica no plano interno, mas que não são relacionados diretamente
ao processo negociador ou a acordos firmados entre as partes em confronto. Dessa
forma, a proposta do autor deve ser vista como uma indicação de metas que julga
ideais a serem cumpridas pela comunidade internacional na fase de resolução de
um conflito, deixando de lado, em sua argumentação, uma análise da
operacionalização desse processo pelos atores nele envolvidos.
A abordagem sobre necessidades humanas (seção 2.2, p.34-42) é outra
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perspectiva que interpreta a resolução de conflitos como um processo cooperativo.


Este, por sua vez, deve distinguir-se de processos tradicionais que se
fundamentam na lógica da política de poder e da coerção. Sendo assim, essa
perspectiva sugere que esse processo ocorra por meio de discussões informais,
explorando as possibilidades de se atender às necessidades de todas as partes
envolvidas em um conflito.
O papel de uma terceira parte também deve ser distinto daquele assumido
por um intermediário que se limita a dialogar com cada uma das partes em
separado ou, ainda, que imponha uma solução. Por seu turno, os autores inseridos
nessa perspectiva sugerem que o mediador ajude as partes a definirem seus
respectivos objetivos. Um dos métodos sugeridos é a realização de workshops,
favorecendo a mudança de percepções negativas entre as partes, o estabelecimento
de confiança mútua e uma proposta conjunta para a resolução do conflito de modo
a atender as necessidades fundamentais46. Cabe observar, todavia, que a realização
de seminários e fóruns de debates, assim como a participação de mediadores,
representam importantes passos para a resolução de um conflito, mas, ainda que
essenciais, são apenas etapas desse processo. Ou seja, permitem um controle do

46
Esse método é uma das formas sugeridas por John Burton (1986; 1987) seguindo a lógica da
“solução de problemas”. Apesar de o significado ser o mesmo, há diferentes termos na literatura.
Hebert Kelman, 1999, e Ronald Fisher, 1997, por exemplo, referem-se a essa prática como parte
da “resolução interativa de conflitos”.
48

conflito, por exemplo, quando um mediador é bem sucedido no estabelecimento


de um acordo de cessar-fogo.
Mas, de acordo com essa perspectiva, o processo de resolução do conflito
deve ser mais abrangente, permitindo que sejam identificadas as necessidades
básicas de cada uma das partes, além de apontar caminhos para sua reconciliação
(Azar, 1990, p. 127; Kelman, 1999, p. 197). Para Herbert Kelman (1999, p. 198),
uma vez que se alcance uma resolução para o atendimento dessas necessidades
básicas das partes, outras questões como as disputas territoriais, por exemplo,
podem ser discutidas em um processo de negociação. Segundo esse autor, a
resolução de um conflito deve ser realizada de forma gradual e voltada para
mudanças nas atitudes das partes, nas palavras dele:

“(...) the development of a new relationship that recognizes the interdependence


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of the conflicting societies and is open to cooperative, functional arrangements


between them. The real test of conflict resolution in deep-rooted conflicts is how
much the process by which agreements are constructed and the nature of those
agreements contributes to transforming the relationship between the parties.”
(Kelman, 1999, p. 201).

As propostas dessa última perspectiva, quanto às estratégias e técnicas a


serem empregadas para a resolução de conflitos, aproximam-se das abordagens
analisando a transformação positiva das relações entre os atores envolvidos em
disputas47. Assim, por meio de processos interativos entre as partes, a resolução
de conflitos consistiria na busca por uma acomodação de seus interesses e uma
redefinição de seus objetivos. Sendo assim, suas proposições são prescritivas e
estão direcionadas a uma conduta construtiva do processo de resolução de
conflitos.
Dentre os autores adotando a lógica que os conflitos podem ser
transformados, uma referência obrigatória é Adam Curle. Em Making Peace
(1971), o autor salienta a importância de as partes modificarem a natureza
beligerante de suas relações, uma vez que tal comportamento representa um fator
a impedir o desenvolvimento humano. Esse processo, no entanto, depende da
distribuição de poder entre os adversários, conclui Curle. E, dessa forma, acredita

47
Duas referências que se destacam nessa literatura são: FISHER, Ronald. Interactive conflict
resolution, 1997; e KRIESBERG; NORTHRUP; THORSON. (Eds.). Intractable conflicts and
their transformation, 1989.
49

que quando há um equilíbrio entre as partes, em termos de recursos e capacidades,


há maior probabilidade de se chegar ao fim de um conflito. Entretanto, em uma
situação inversa, é necessário haver primeiramente uma conscientização quanto ao
desequilíbrio de poder e à injustiça existentes no relacionamento entre os
adversários. Tal processo pode até gerar uma intensificação do conflito em um
segundo momento. Nesta etapa de confrontos, explica o autor, as partes se
organizam de modo a compatibilizar suas divergências, chegando, em seguida, a
um terceiro estágio, a fase das negociações. Estas, por sua vez, representam a
passagem para a reestruturação de seus relacionamentos até que se alcancem
maior eqüidade e justiça entre as partes.
Outro autor a avaliar o potencial de transformação de conflitos é John Paul
Lederach (2001). Destacando a relevância de se considerar as diferenças culturais
entre comunidades, o autor sugere que os esforços para a resolução de conflitos
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levem em conta as particularidades e os recursos de cada comunidade. Seguindo


essa ordem de idéias, acredita que transformações deveriam ocorrer não apenas na
estrutura do conflito, mas também nas relações entre as partes e no nível pessoal,
isto é, nas percepções e atitudes relativas ao conflito e nas condições, refletindo o
bem-estar individual, psicológico e espiritual dos indivíduos. Para o autor, a
construção da paz e a transformação de conflitos permitem reconfigurar processos
e estruturas de modo que as relações violentas se tornem construtivas e
cooperativas. Diante disso, Lederach declara três postulados.
Em primeiro lugar, diz que a construção da paz deve ser realizada
simultaneamente em todos os níveis da sociedade. Sobre este ponto sugere que as
negociações não sigam um processo “top-down”, sob orientação de alguns líderes
e representantes. Mas antes, argumenta o autor, deve-se estabelecer uma interação
entre as lideranças de todos os níveis sociais. A segunda premissa formulada por
Lederach refere-se ao momento apropriado para o processo de construção da paz.
Neste ponto o autor trata das ações de curto prazo direcionadas para a resolução
de crises e para o atendimento de necessidades mais imediatas. Essas ações a
serem implementadas, prossegue Lederach, devem ser capazes de responder às
crises a qualquer momento em que ocorrerem48. Ressalta, portanto, que as

48
Os termos empregados por Lederach são, originalmente, “crisis responsive” quando se refere às
ações de longo prazo, em contrapartida às ações de curto prazo, por ele denominadas de “crisis
driven” (Lederach, 2001, p. 846).
50

estratégias de paz a serem desenvolvidas sejam de longo prazo. Sua terceira


premissa diz respeito às questões mais contenciosas de um conflito, como as
disputas territoriais ou defesa de direitos de cidadania, explica o autor. E aqui
Lederach retoma sua argumentação em torno da prática da reconciliação e no
fortalecimento da sociedade civil. Prossegue dizendo que esse processo requer
mudanças nos padrões históricos e nas estruturas, que delinearam as relações entre
as partes em conflito, como precondições para se resolver as questões que
deflagraram os confrontos.
De um ponto de vista próximo a essa visão de transformar os conflitos, os
chamados “Teóricos da Paz” vislumbram a possibilidade de se reduzir a violência
por meio de práticas cooperativas49. A título de exemplo, vale citar Francis Beer
(1990) propondo o equilíbrio (“balancing”) e nova estruturação do sistema
internacional em termos de maior igualdade de poder, riqueza e conhecimento. A
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paz, avalia o autor, seria alcançada por meio de projetos cooperativos entre nações
e grupos direcionados para essa reformulação sistêmica. E esse processo deve
ocorrer por meio de gradativas ações objetivando a paz, ou seja, através de “ações
construtivas” realizadas em etapas (Beer, 1990, p.18). Ademais, privilegia-se a
defesa de direitos do ser humano, sua proteção e seu desenvolvimento. Trata-se,
portanto, não apenas de se promover a desmilitarização e de se dar uma ênfase
menor à dimensão militar (alianças e regimes domésticos), mas, como sugere
Galtung (1990c), deve-se buscar a igualdade no sistema internacional.
Mas, para isso, é fundamental que sejam alteradas as práticas dos
indivíduos, como propõem os estudos baseados nos princípios de Gandhi sobre a
não-violência. Esse processo implicaria envolver-se no conflito de forma ativa,
porém, sem infligir qualquer ato violento sobre o(s) outro(s). Por conseguinte,
propõem esses estudos que se busque a resolução de conflitos não por meio de
interesses individuais, mas que o indivíduo pense e atinja seus objetivos de acordo
com um senso de justiça universal; ver-se a si mesmo como parte de um todo
orgânico, com objetivos e propósitos maiores do que aqueles referenciados no
indivíduo isoladamente. Portanto, diferentemente das abordagens que
“antropomorfizam” o Estado e o concebem como sujeito a lidar com o controle da

49
Sobre as perspectivas que se enquadram nessa argumentação, vale conferir: A Reader in Peace
Studies, de Paul Smoker, Ruth Davies e Barbara Munske (Orgs.), 1990.
51

violência, essa perspectiva permite incluir o indivíduo como o objeto e agente da


paz.
Esta seção mostrou como a literatura de resolução de conflitos pode ser
classificada conforme dois direcionamentos na condução desse processo. A partir
da indicação das linhas de pesquisa mais relevantes sobre essa temática, viu-se
que as duas configurações aqui apresentadas refletem os posicionamentos dessas
abordagens em torno de dois eixos analíticos, quais sejam, as causas dos conflitos
e as estratégias a serem seguidas para sua resolução.
Nesse sentido, uma perspectiva realista, por exemplo, poderia partir da
premissa que o dilema de segurança tenha sido o contexto que deu origem a um
conflito internacional. Como estratégias para o fim do conflito, poderiam indicar a
ameaça do uso da força ou a aplicação de sanções econômicas. Seriam seguidas,
assim, medidas associadas à lógica da política de poder e, caso houvesse a
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participação de uma terceira parte, esta seria conduzida por uma potência. Dito
isso, cabe observar que, seguindo essa ordem de idéias, as estratégias empregadas
refletiriam o perfil competitivo do processo de resolução de conflitos, para usar
uma das categorias vistas nesta seção.
Assim sendo, a identificação das distintas linhas argumentativas presentes
na literatura sobre essa temática permitiram compreender uma das dimensões do
processo de resolução de conflitos, ou seja, se este último caracteriza-se de forma
destrutiva ou não. Dessa forma, foi possível ter uma noção desse processo com
base nas duas categorias apresentadas, faltando, pois, examiná-lo conforme suas
etapas, como será visto a seguir.

2.4
As etapas da resolução de um conflito

Estudar a resolução de conflitos internacionais por meio de um exame de


suas sucessivas etapas constitui um instrumental analítico útil para se identificar
fatores que favoreçam ou dificultem seu progresso ou, ainda, para se delinear as
52

expectativas quanto ao comportamento dos atores envolvidos nesse processo.


Nesse sentido, a literatura sobre esse tema concentra-se nas técnicas empregadas
para se promover a evolução de um processo de paz, como, por exemplo, a
mediação e a negociação.
Segundo Peter Wallensteen (2002), o processo de resolução de um conflito
ocorre em três estágios, a saber, um período que antecede as negociações para um
acordo, seguido da fase das negociações em si, e uma etapa em que se implementa
o acordo firmado. De um modo semelhante, Christopher Mitchell (2003)
identifica três estágios sequenciais para a resolução de conflitos, mas atém-se ao
papel do mediador ao longo de todo o processo e de forma meramente descritiva
quanto às suas funções. No caso específico da fase pós-acordo, Mitchell propõe
que, na atribuição de verificador, o mediador deve assegurar que os termos dos
acordos sejam cumpridos; na função de implementador, deverá impor sanções
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pelo não-cumprimento dos acordos; e como conciliador deverá favorecer a


construção de um novo relacionamento entre as partes (e no interior delas).
As análises desses dois autores são ilustrativas sobre o tipo de enfoque
geralmente adotado por essa literatura. Sendo assim, a exemplo de Wallensteen, é
comum ver trabalhos que se limitam a uma identificação e a uma descrição de
etapas compondo o processo de resolução de conflitos internacionais. Outros
estudos, como o de Mitchell, priorizam a análise de uma etapa específica,
enfatizando ora as estratégias propostas pelos mediadores, ora as decisões e
concessões dos negociadores ou, ainda, suas percepções e expectativas quanto ao
comportamento dos atores em um processo de barganha. Esse segundo conjunto
de pesquisas também restringe a compreensão acerca da resolução de conflitos, na
medida em que se atém a avaliar parcialmente uma única etapa, sem considerar as
implicações dos resultados nela obtidos sobre os estágios seguintes desse
processo.
Em contrapartida, alguns estudiosos sobre processos de paz têm avançado
em relação a essas perspectivas ao tecerem uma análise mais fina sobre as etapas
da resolução de um conflito. Nessa direção, uma referência que se destaca é
Barbara Walter (2002), que identifica elementos capazes de favorecer ou dificultar
a passagem de um estágio a outro. Assim sendo, consoante a autora, cada uma das
fases receberá os impactos de distintos fatores que, por sua vez, podem alterar o
comportamento das partes envolvidas na resolução do conflito.
53

Nesse sentido, três são as etapas no processo de resolução de um conflito


indicadas por Walter: uma em que há uma decisão de se iniciar as negociações;
posteriormente, um período de negociações, culminando com a assinatura de um
acordo; e uma terceira, correspondendo à fase em que o acordo será
implementado. No primeiro estágio, período em que as partes tomam a decisão
de iniciar as negociações para um acordo, três fatores podem incentivar os
beligerantes a chegarem a uma proposição para a paz: os altos custos do conflito,
um impasse militar entre as partes e a presença de instituições democráticas50.
Quanto ao segundo estágio, referente à assinatura do acordo, Walter destaca dois
fatores com impactos sobre esse processo: a compatibilização dos interesses
mútuos e a presença de um mediador externo. A terceira etapa, correspondendo à
fase de implementação de acordos, pode ser afetada por restrições ocorridas nos
estágios precedentes e, por conseguinte, algumas questões que já deveriam ter
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sido resolvidas se mantêm. Portanto, os resultados desse terceiro estágio podem


estar relacionados a condicionantes estabelecidos nos dois estágios anteriores.
Além disso, outros fatores podem se manifestar nessa terceira fase, em
particular quando não se definem instrumentos assegurando que as partes
cumprirão as determinações delineadas nos acordos. Nesse caso, observa a autora,
o receio de uma das partes de que o processo de paz possa lhe trazer desvantagens
pode fazer com que a implementação do acordo seja interrompida. Walter
exemplifica essa situação com a recusa de Angola em implementar o acordo de
paz, caso não houvesse a presença de representantes da ONU para fazer com que
os termos negociados fossem cumpridos51. Isto posto, constata que uma bem-
sucedida implementação de acordos depende da capacidade de as partes obterem a
assistência necessária de um mediador ou, ainda, que sejam capazes de elaborar
um acordo delineando os mecanismos que garantam o cumprimento do mesmo.

50
A autora, ao elencar esses elementos, baseia-se no conceito “ripe for resolution” desenvolvido
por Willian Zartman. Correspondem, pois, a um conjunto de fatores favorecendo o início de um
processo de resolução de um conflito. Sobre esse conceito, vale conferir ZARTMAN, 1985.
Quanto à conclusão da autora sobre a relevância de instituições democráticas, refere-se a um
contexto de guerra civil, no qual já existem instituições domésticas fundamentadas em valores
democráticos capazes de influenciar a obtenção de um acordo.
51
A autora não diz a que acordo ela se refere, mas, tendo em vista que ela examina diferentes
casos de processos de paz entre 1940 e 1992, provavelmente este sobre Angola deve corresponder
aos “Acordos de Bicesse”, de 31 de maio de 1991, que buscavam o fim da guerra civil iniciada em
1975. No entanto, cabe dizer que novos confrontos internos, seguidos de novas iniciativas de paz,
ocorreram até 1998 naquele país.
54

Isto posto, diz Walter, ao contrário da linha investigativa de boa parte dos
trabalhos sobre resolução de conflitos, não se deve estudar o resultado final desse
processo como conseqüência de um único fator (Walter, 2002, p. 305). Ainda
segundo sua avaliação, a literatura sobre o processo de negociação internacional é
rica em trabalhos associando a resolução de um conflito à assinatura de um acordo
de paz. Contudo, não necessariamente a assinatura de um documento dessa
natureza implica o fim do conflito e, por conseguinte, o fato de as partes terem
firmado um tratado não constitui o melhor indicador de sucesso de todo o
processo de negociação. Como observa a autora, há uma fase subseqüente à
formalização da paz em que um novo contexto nas relações entre as partes pode se
configurar, como por exemplo, a recusa de um dos atores em cumprir os termos
dos acordos.
Barbara Walter (2002) chama a atenção para o fato de o estágio de
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implementação dos acordos ser o mais marginalizado na literatura sobre resolução


de conflitos. Ainda segundo a autora, falta nesses trabalhos uma discussão mais
intensa sobre a fase pós-acordo, mais precisamente no que se refere aos arranjos
institucionais necessários para a sustentabilidade dos termos dos tratados de
cooperação e de paz.
Stephen Stedman (2002) é outro autor a ressaltar a escassez de trabalhos
de analistas de resolução de conflitos sobre a implementação de acordos. Constata
que boa parte dos estudos sobre resolução de conflitos concentra-se nas fases de
mediação e de construção da paz, não atentando, devidamente, ao período
subseqüente às negociações que geraram os acordos.
Segundo o autor, os estudos sobre guerras civis durante a Guerra Fria
centravam-se nas condições e nos instrumentos necessários para que as partes
conflitantes assinassem acordos. Observa Stedman que as análises naquele
período tinham a tendência a considerar linearmente a resolução dos conflitos
(2001, p. 2). Isto é, pressupunham que os casos de negociações bem-sucedidas
levariam, irreversivelmente, a uma redução do conflito. Lembra o autor que as
guerras civis em Angola, Ruanda e Libéria desafiam essa visão linear. Exemplos
como esses, conclui, revelam as dificuldades para se estabelecer e implementar
acordos de paz, uma vez que houve o reinício da violência nesses países, a
despeito da participação de mediadores internacionais. A literatura desconsidera,
portanto, fatores capazes de levar, em um momento futuro, a uma retomada dos
55

confrontos, diz o autor. Ademais, ressalta Stedman, após a assinatura de acordos,


condições tais como a reconciliação, a justiça e a ordem democrática não são
facilmente obtidas no curto prazo.
Por conseguinte, conclui Stedman, o período após os acordos de paz serem
firmados pode-se configurar como incerto e instável, uma vez que existem
variáveis capazes de dificultar a solução de um conflito. Nessa ordem de idéias,
para o autor, os principais determinantes da implementação de acordos de paz são:
1) o número das partes (quanto maior for este número, maior o grau de
dificuldade de implementação); 2) a existência de um acordo firmado pelas
principais partes envolvidas em um confronto, antes de uma intervenção pela paz;
3) a presença de partes recalcitrantes (líderes ou grupos) com relação a um
processo de paz, chegando em determinados casos a recorrerem à violência para
impedir a efetivação de acordos (a quem o autor denomina “spoilers”); 4) em
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situações de falência do Estado, vale dizer, o sucesso de um acordo depende das


instituições estatais e de sua capacidade de manter os compromissos; 5) o elevado
número de soldados exigirá maiores esforços para o monitoramento em relação ao
cumprimento do acordo; 6) o acesso a recursos naturais que permitam às partes
adquirir armamentos; 7) a existência de grupos hostis e de Estados vizinhos
contrários aos acordos; 8) nas situações em que há conflitos separatistas ou
étnicos.
Para Stedman, quanto maior o número desses fatores manifestando em um
ambiente conflituoso, maiores serão as dificuldades para se resolver um conflito
(2000; 2001; 2002). Dois são os fatores, no entanto, que constituem as principais
causas do fracasso de um acordo, quais sejam, a presença de grupos ou líderes
contrários ao processo de paz (“spoilers”) e quando países vizinhos se opõem aos
acordos, chegando até mesmo a financiar grupos, do país em guerra, que são
igualmente opositores ao processo de paz. Nesse sentido, não se pode assumir que
determinadas estratégias utilizadas para solucionar um determinado conflito
produza resultados semelhantes quando aplicadas em outro caso. Um importante
aspecto a ser considerado, pois, argumenta Stedman, é o modo como o ambiente
do conflito está configurado, isto é, “mais benigno” ou “mais difícil” (Stedman,
2002, p. 664). A complexidade de um conflito também deve ser levada em conta
ao se examinar as estratégias mais adequadas. Em outras palavras, em certas
situações a busca pelo estabelecimento da confiança mútua pode ser um meio
56

adequado para que a fase de implementação dos acordos seja efetiva. Em


contrapartida, há casos em que são necessários mecanismos que forcem o
cumprimento dos acordos, por exemplo (Stedman, 2002, p. 664).
Em contrapartida, diz Stedman (2001; 2002), os seguintes fatores externos
podem favorecer a implementação de um processo de paz: apoio de outros países,
inclusive fornecendo recursos financeiros; a motivação de determinadas potências
(conforme seu interesse nos acordos); a atuação de agentes da comunidade
internacional como o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A exposição dos argumentos de Barbara Walter e de Stephen Stedman
ajuda a compreender um importante aspecto da resolução de conflitos, qual seja:
um exame de suas etapas, nos moldes em que fundamentam os argumentos desses
autores, revela que tal processo não pode ser concebido linearmente. Em outras
palavras, a análise deve ir além de uma constatação se o emprego de uma
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determinada estratégia negociadora ou de mediação leva a um resultado bem-


sucedido ou não. Como bem observam Walter e Stedman, diferentes fatores
podem ter impactos sobre cada uma das distintas fases da resolução de um
conflito. E, dessa forma, podem afetar um processo de paz em seus objetivos
centrais, ou seja, a eliminação de suas causas e das manifestações de violência e
de confronto entre as partes (Rasmussen, 1999, p. 40).
A apresentação dos estudos desses dois autores pretendeu chamar a
atenção para a relevância de se examinar a fase de implementação dos acordos
firmados, que, segundo eles, constitui uma temática ainda pouco explorada por
analistas de resolução de conflitos. Como observou Barbara Walter, há que se
considerar, ainda, que cada etapa de um processo de resolução de um conflito
pode ser afetada por distintas variáveis. Portanto, a avaliação da efetividade desse
processo não pode se limitar à assinatura de um acordo, já que, ao longo de sua
implementação, novos fatores podem surgir e gerar impactos sobre a resolução do
conflito. Seus trabalhos devem ser vistos como complementares às perspectivas
dos autores inseridos nos paradigmas descritos na seção precedente que, por sua
vez, não demonstram ter uma preocupação com uma análise das sucessivas etapas
do processo de resolução de conflitos.
57

2.5
Considerações a respeito da literatura sobre resolução de conflitos
internacionais

Toda a exposição anterior, ancorada em diferentes abordagens analisando


as causas dos conflitos internacionais e sua resolução, teve um objetivo, qual seja,
delinear um quadro analítico para este estudo. Cabe notar que a seleção dos
autores apresentados reflete, também, o interesse em apresentar um panorama
sobre o que há de mais relevante nessa literatura, a partir de seus critérios
metodológicos (níveis de análise) e paradigmas (cooperativo e competitivo). A
discussão feita a seguir retoma os temas das seções anteriores, na mesma ordem
em que elas foram organizadas.
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Assim sendo, no que diz respeito à questão da análise dos conflitos


internacionais (seção 2.2, p. 34-42), a revisão da literatura permite identificar duas
linhas principais acerca das causas desse fenômeno. Uma baseada no modelo de
Kenneth Waltz (1979), que aponta fatores sistêmicos para explicar o surgimento
de conflitos, e outra enfocando o não-atendimento de necessidades humanas como
a variável independente. Cabe dizer que aquela apresentação enfocou, ainda, a
unidade de análise de cada uma dessas perspectivas, um ponto importante para
este estudo. Nessa direção, a linha argumentativa a ser adotada nesta tese
aproxima-se dos pressupostos de Herbert Kelman (1999).
Portanto, em vez de centralizar a análise no nível sistêmico, pode-se
concordar com Kelman quando diz que o fenômeno do conflito internacional deve
ser investigado levando-se em conta os processos que se passam no interior das
respectivas sociedades em confronto. Essa dinâmica relaciona-se às dimensões
econômica e social, por exemplo, podendo corresponder, ainda, às restrições
políticas que os governos e os líderes negociadores terão de enfrentar na sua arena
doméstica. Essa perspectiva, ao tomar a sociedade como a unidade de análise,
permite, pois, que sejam identificados atores domésticos com importante papel na
evolução do conflito assim como na sua resolução.
Portanto, essa opção analítica contrasta com os pressupostos
metodológicos e teóricos de Kenneth Waltz (1979). Ao atribuir maior poder
explicativo às condições sistêmicas, a argumentação desse autor obscurece o
58

entendimento sobre certos casos. Nesse sentido, vale lembrar que Waltz
concentra-se nas causas das guerras entre Estados, ignorando conflitos,
manifestando-se exclusivamente no interior de um país por fatores domésticos,
mas com repercussões internacionais, não contemplando, ainda, casos de conflitos
entre sociedades e culturas distintas. Além dos limites analíticos dessa
perspectiva, por apresentar uma visão uniforme sobre o comportamento dos atores
domésticos e por partir da premissa que os Estados possuem preferências
domésticas similares e estáveis, duas questões são negligenciadas sob esse
enfoque.
Em primeiro lugar, reduz a unidade de análise a um só tipo de ator. Dito de
outro modo, ao assumir a centralidade do Estado, não abrange casos de conflitos
internacionais entre unidades de natureza diferenciada (entre um Estado e um ator
não estatal, por exemplo)52, capazes, por seu turno, de terem impactos em âmbito
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regional e internacional. Em segundo lugar, essa linha de argumentação, ao


assumir o Estado como ator unitário e central nas relações internacionais,
desconsidera fenômenos domésticos com impactos relevantes na esfera
internacional. Nessa direção, cumpre lembrar que a emergência de novos Estados
- engajados em um processo de formação e consolidação de instituições e voltados
para a centralização de poder em relação a outros atores domésticos -, pode levar a
conflitos não apenas no plano interno, mas pode também ter desdobramentos na
arena externa.
Essas questões evidenciam-se mais claramente no pós-Guerra Fria, quando
a atenção volta-se não apenas para os conflitos interestatais, mas igualmente para
os conflitos no interior dos Estados, as rivalidades étnicas, a militarização de
grupos religiosos, a escassez de recursos, as violações a direitos humanos
universais e as formas de combate ao terrorismo. Além disso, não apenas a
configuração dos conflitos vem mudando a partir desse período, mas também
fatores como inovações tecnológicas e a crescente integração de mercados têm
intensificado a competição entre Estados, classes e grupos. Portanto, a avaliação
sobre a manifestação de conflitos e os critérios para classificá-los como
internacionais devem ir além das explicações fundamentadas apenas em causas
sistêmicas e daquelas que tomam o Estado como um ator unitário.

52
Como é o caso do conflito aqui analisado, em que uma das partes, o povo palestino constitui
uma nação sem Estado, representada por um ator não-estatal, a OLP.
59

Embora a perspectiva de Kelman siga uma linha analítica próxima à de


Edward Azar (1986; 1990) e de John Burton (1986; 1987; 1990), há uma
diferença significativa que permite dizer que seu modelo tenha uma capacidade
explicativa maior do que a análise empreendida pelos outros dois autores. Trata-se
da importância a ele atribuída à combinação de fatores objetivos e subjetivos para
se compreender a origem e a dinâmica de um conflito internacional, sendo que,
para cada caso, um determinado fator terá uma relevância relativamente maior do
que os demais, salienta Kelman. Dito isso, embora o autor dê uma atenção
especial a fatores subjetivos, como a percepção de uma sociedade quanto aos
riscos à sua existência em uma situação de conflito, reconhece, por outro lado, que
esse fenômeno possa resultar da busca de interesses nacionais, por exemplo.
Azar e Burton, por sua vez, não revelam uma preocupação em distinguir
claramente as necessidades básicas, vale dizer, se são objetivas ou subjetivas.
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Assim sendo, são apresentadas de forma genérica, como necessidades ontológicas


dos indivíduos e de grupos sociais, sem definirem critérios estabelecendo quais as
necessidades não-atendidas ou ameaçadas têm maior potencial para causar
conflitos. De uma forma muito simplista, Azar (1990) alega que mesmo a defesa
da soberania territorial está associada a essa idéia de necessidades humanas não-
atendidas ou ameaçadas. Sendo assim, ao buscarem explicar todos os tipos de
conflitos (que se passam entre indivíduos, grupos, comunidades e Estados) como
se seguissem a mesma lógica, ou seja, como se todos eles derivassem de
necessidades humanas não-atendidas, acabam criando um modelo que dificulta
uma análise comparativa de casos cujas causas sejam diferentes. No entanto, cabe
salientar que essas necessidades humanas são substancialmente distintas, como a
segurança física e a identidade étnica de um grupo, por exemplo. Por conseguinte,
os conflitos gerados por esses fatores teriam especificidades na sua dinâmica que
poderiam dificultar um estudo comparativo entre casos diferentes.
Cada uma dessas abordagens, portanto, apresenta distintos fatores como
causas dos conflitos, o que, por sua vez, implica a indicação de diferenciados
métodos para sua resolução (seção 2.3, p. 42-51). Apesar das especificidades das
abordagens e seus pressupostos, em comum, concentram-se em avaliar como
determinadas estratégias podem levar ao fim de um conflito. Mostrou-se, no
entanto, que as estratégias propostas podem conduzir a dois tipos de resultados:
um em que o processo de resolução de conflitos configura-se de forma
60

competitiva, outro em que esse processo se constitui de modo cooperativo. Há que


se observar, no entanto, que, mesmo que se chegue a um acordo, a resolução do
conflito não é certa, caso o documento firmado tenha sido obtido por meio de um
processo sob o perfil competitivo. Por outras palavras, pode-se concordar com os
estudiosos do campo de resolução de conflitos, em particular John Burton (1987),
ao afirmarem que o emprego de métodos coercitivos e a imposição de um acordo
não produzem resultados estáveis, podendo, ainda, haver uma retomada da
violência. Portanto, é preciso que se busque, por meio de métodos cooperativos,
um consenso em torno das soluções propostas e que os mesmos sejam capazes de
alterar o relacionamento das partes.
No entanto, em geral, a literatura sobre resolução de conflitos não atenta
devidamente para as diversas etapas de todo esse processo. Dessa forma, a
atenção volta-se para o processo negociador, o papel do mediador, ou a
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possibilidade de se transformar as relações entre as partes para que se tornem


cooperativas. Herbert Kelman (1999) chega a destacar que o conteúdo dos
acordos e a natureza das negociações podem comprometer o sucesso da resolução
de um conflito. No entanto, não aprofunda nessa sua ponderação, limitando-se a
sugerir que o processo negociador ocorra gradualmente, incorporando novas
questões no momento apropriado. Nessa direção, propõe que temas ligados às
necessidades básicas das partes envolvidas no conflito sejam negociados antes de
se buscar um acordo sobre a distribuição de recursos e de territórios, por exemplo.
John Paul Lederach também alega que as questões mais contenciosas
devam ser discutidas somente depois que houver mudanças nas relações entre os
beligerantes, de modo a assegurar resultados positivos na resolução do conflito.
Outro autor a dirigir sua atenção para a fase das negociações é Adam Curle,
julgando necessária uma reestruturação do relacionamento das partes em conflito
e que exista maior eqüidade entre elas, antes de se iniciar as negociações. Ainda
que pertinentes suas proposições, explicando como é possível mudar o
comportamento dos atores antes de se prosseguir na negociação de determinadas
questões mais contenciosas, não avaliam como o processo de resolução do
conflito, em suas etapas seguintes, pode afetar o comportamento e a constituição
dos atores.
Cabe ressaltar que a despeito de serem adotadas estratégias voltadas para a
reconciliação e a cooperação entre as partes, há fatores que podem afetar
61

negativamente a resolução de um conflito internacional. Esse ponto foi abordado


na seção anterior, quando se chamou a atenção para variáveis que podem alterar
os objetivos inicialmente propostos para o fim de um conflito. Nessa direção, a
título de exemplo, os resultados de uma eleição e a composição de coalizões
partidárias podem alterar a base de sustentação do líder de uma determinada
comunidade que iniciou negociações internacionais. Por conseguinte, essas
mudanças no cenário doméstico de um dos negociadores podem ter reflexos sobre
a continuidade de um processo de paz.
Dito isso, os capítulos seguintes apresentarão cada uma dessas três fases
do conflito aqui estudado, a saber: aquela que antecede as negociações, seguida
pelo período em que as negociações resultam em um acordo formal, e, por fim, o
estágio de implementação do acordo. Atenção especial será dada à etapa
subseqüente à assinatura dos acordos e, em particular, a dois relevantes fatores
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domésticos que podem ter impactos sobre a implementação dos mesmos: a


capacidade de as partes negociadoras implementarem os acordos por meio de suas
instituições; e uma avaliação de grupos domésticos, colocando restrições à sua
liderança no âmbito de negociações para a paz. Conforme a seção precedente
mostrou, esses dois fatores foram destacados por Stephan Stedman (2000; 2001;
2002) como elementos capazes de afetar, significativamente, a evolução de
acordos internacionais.
Entretanto, a literatura de resolução de conflitos internacionais é
analiticamente deficiente quanto a essas questões. A revisão bibliográfica revelou
que, por um lado, os estudos dessa área avaliam a efetividade das práticas de
resolução de conflitos, mas se limitam a uma apresentação de evidências
empíricas e de proposições gerais (Reimann, 2000). Dentro dessa ordem de idéias,
vale citar, como exemplos, os livros de Roger Fisher e William Ury (1981)53 e
John Burton (1987)54, que constituem meros manuais e receituários, instruindo o
modo pelo qual as técnicas de resolução de conflitos podem ser bem-sucedidas.
Há, ainda, trabalhos acentuando a necessidade de a resolução de conflitos
fundamentar-se em projetos normativos e emancipatórios (Richmond, 2001). Por
outro lado, é comum, nessa literatura, ver trabalhos concentrando-se nas decisões
estratégicas e no comportamento racional dos atores, buscando, assim,

53
Getting to yes: how to negotiate without giving in.
54
Resolving deep-rooted conflicts: a handbook.
62

compreender quando e por que mecanismos pode-se reduzir a violência ou como a


polarização entre as partes pode se tornar uma interação positiva (Wallensteen,
2002).
Isto posto, buscando cobrir algumas lacunas dessa literatura, os seguintes
eixos analíticos nortearão as discussões presentes nos próximos capítulos. O
primeiro diz respeito a fatores estruturais definidos pelo processo de paz, vale
dizer, os condicionantes delineados pelas negociações e acordos. Quanto aos
demais eixos analíticos, um se refere ao exame das características dos atores
envolvidos e sua capacidade para implementar os acordos; o outro dirige-se a
aspectos da arena doméstica, tais como as preferências e os posicionamentos de
grupos locais quanto à agenda do processo de paz, bem como em relação aos
desdobramentos desse último sobre a sociedade palestina. Essas dimensões serão
fundamentadas nos referenciais teórico-conceituais que se seguem.
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O histórico que antecede o “Processo de Oslo”, o retrospecto das


negociações israelense-palestinas entre (1993 e 2004) e a avaliação do conteúdo
dos acordos, apresentados no terceiro e quarto capítulos, indicam alguns dos
condicionantes à evolução do processo de paz. Essa parte do estudo contemplando
uma descrição dos fatos mais importantes relacionados à resolução do conflito,
trata-se de uma contextualização necessária para a análise feita nos capítulos cinco
e seis. A discussão ali empreendida é importante para mostrar em que medida a
estrutura criada para a resolução de um conflito é capaz de afetar a
institucionalização de um dos atores envolvidos e sua capacidade para
implementar os acordos de paz.
Nesse sentido, para nortear a discussão em torno do primeiro eixo de
análise, a linha argumentativa a fundamentar essa ordem de idéias segue uma
abordagem institucionalista sobre a noção de trajetória dependente (Krasner,
1988; North, 1990). Em outras palavras, as opções disponíveis aos decisores
políticos, no presente, variam em função das capacidades institucionais
disponíveis e que foram constituídas em um momento anterior. E, nessa direção,
arranjos institucionais podem ser mantidos, ao longo do tempo, mesmo quando se
apresentam ineficientes.
Parte-se, assim, do pressuposto de que decisões pretéritas, no âmbito do
processo de paz, restringem as escolhas futuras dos atores participando da
resolução de um conflito. Ademais, adota-se a premissa de que as preferências e
63

capacidades dos atores passam a ser condicionadas pelas estruturas institucionais


estabelecidas. Essa perspectiva permite cobrir uma lacuna da literatura sobre
resolução de conflitos que não apresenta uma análise mais fina sobre a fase em
que se operacionaliza esse processo.
O segundo eixo analítico também vincula a implementação de acordos ao
contexto institucional em que se inserem as partes em conflito. Contudo, o foco da
análise reside na institucionalização de um dos atores envolvidos no processo de
paz aqui examinado. O desenvolvimento dessa argumentação estará baseado em
duas categorias analíticas de Samuel Huntington (1965; 1971). Para esse autor, o
grau de institucionalização de uma entidade política pode ser medido em termos
de adaptabilidade, complexidade, autonomia e coesão das organizações e
procedimentos de um sistema político. Essa sua discussão concentra-se não no
tipo de regime político, mas na efetividade de um governo e na capacidade de suas
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instituições atenderem as demandas sociais. Em síntese, Huntington identifica a


institucionalização como uma precondição para a estabilidade política e o
desenvolvimento.
Para os objetivos deste estudo, serão utilizadas as duas últimas categorias:
autonomia e coesão. Adaptabilidade e complexidade não serão aqui empregadas
porque envolvem uma dimensão temporal – o desenvolvimento histórico e a
evolução cronológica das instituições que integram o governo - que não se aplica
neste estudo dado o curto período de existência do ator avaliado. Cabe notar que
essas medidas de institucionalização foram aplicadas pelo autor em sua avaliação
sobre a estabilidade política em países em desenvolvimento. O interesse nesta
tese, no entanto, limita-se a examinar o grau de institucionalização da Autoridade
Palestina por meio dessas dimensões, deixando, para um outro estudo, uma
apreciação sobre a estabilidade política do sistema político que vem se
desenvolvendo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia desde 1994.
Para Huntington (1971, p. 20), a autonomia refere-se à capacidade de uma
organização existir independentemente de outras, o que implica, pois, a sua
capacidade de sobrepor-se aos interesses de grupos sociais. Dessa forma, o grau
de institucionalização será alto quanto maior for o nível de independência entre as
organizações, e que estas não sejam meras expressões dos interesses de
determinados agrupamentos sociais. No que concerne ao fator coesão, também é
muito significativo: quanto mais coesa e unida uma organização, mais
64

institucionalizada ela se apresenta e menos vulnerável encontra-se diante de


influências não-políticas dentro de sua comunidade (Huntington, 1971, p. 22). As
duas dimensões relacionam-se, pois, às influências externas e à vulnerabilidade.
Com base nesses princípios, Huntington conclui que uma sociedade com
instituições débeis tem dificuldades para impedir que interesses pessoais e de
grupos se sobreponham aos interesses coletivos (1965, p. 411).
Como postula Huntington, a institucionalização de uma entidade política
associa-se à sua capacidade de governar. Esta deve ser entendida como a
capacidade de um governo formular e implementar estratégias que proporcionem
alcançar os objetivos econômicos e sociais de sua sociedade. Trata-se, portanto,
de suas capacidades em termos institucionais, técnicos, administrativos e políticos
(Kjær et al., 2002, p. 7; Grindel, 1996, p. 8-9). Essa dimensão pode ser observada
por meio de uma avaliação de índices sobre o desenvolvimento econômico e da
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capacidade de um governo para gerar receitas (Kjær et al., 2002).


Ainda sobre o contexto institucional, vale citar Huntington: “(...) without
strong political institutions, society lacks the means to define and to realize its
common interests. The capacity to create political institutions is the capacity to
create public interests”55. Em sociedades com essas características, diz o autor, a
autoridade geralmente recai em líderes carismáticos que buscam promover o
desenvolvimento institucional, desempenhando o papel de “Founding Father”
(1965, p. 423). Prosseguindo sobre esse ponto, observa o autor que:

“The existence of political institutions (…) capable of giving substance to


public interests distinguishes politically developed societies from undeveloped
ones. A government with a low level of institutionalization is not just a weak
government; it is also a bad government. The function of government is to
govern. (…)”. (Huntington, 1971, p. 28).

Embora Huntington destaque o papel da autoridade política no


desenvolvimento das instituições, não avalia um aspecto relevante sobre essa
questão. Trata-se de examinar como a autoridade instituída adquire legitimidade
para governar. Segundo Leslie Lipson, há uma estreita ligação entre autoridade e
poder:

55
HUNTINGTON, 1971, p. 24.
65

“(...) o que estabelece a distinção entre autoridade e poder é o fato de a


primeira consistir no poder reconhecido como válido. Por conseguinte, seu
exercício é sancionado pelos que aprovam determinados atos e seus agentes,
sendo tolerado por aqueles que o desaprovam. Em face do poder, pode o cidadão
escolher entre dar-lhe apoio ou a ele se opor. Ante a autoridade, a obediência é
um dever. Se é legítima a resistência ao poder, a resistência à autoridade é ilegal.
A autoridade é o poder revestido das roupagens da legitimidade.” (Lipson, 1967,
p.104).

No que diz respeito à legitimidade da autoridade, Lipson destaca que:

“A fonte da autoridade é a massa de que se compõe a comunidade, a qual


deve ser considerada como formada de concidadãos e nunca de súditos. Eles é
que conferem o poder, fiscalizam-lhe o emprego e podem retirá-lo. A autoridade
não consiste em algo imposto por alguns sobre o grande número dos demais. É o
que muitos delegam, temporariamente, a uns poucos.” (Lipson, 1967, p. 259).
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Portanto, essa noção acima distingue-se da premissa de Max Weber (1979;


1994) de que a relação entre comando e obediência fundamenta-se na crença na
legitimidade das ordens dos governantes de acordo com as posições sociais
reconhecidas intersubjetivamente.
Pode-se dizer que a argumentação de Niklas Luhmann (1980) aproxima-se
dos pressupostos de Lipson, ao propor que sejam observados os mecanismos
sociais que legitimam as decisões da autoridade política. Para o autor, a
legitimidade da autoridade resulta, sobretudo, de procedimentos legislativos,
judiciários e de eleições. Nas palavras de Luhmann:

“A legitimidade depende, assim, não do reconhecimento ‘voluntário’, da


convicção de responsabilidade pessoal, mas sim, pelo contrário, dum clima social
que institucionaliza como evidência o reconhecimento das opções obrigatórias e
que as encara, não como conseqüências duma decisão pessoal, mas sim como
resultados do crédito da decisão oficial.” (Luhmann, 1980, p. 34).

Fundamentando-se em Luhmann e Lipson, pode-se concluir que a


legitimidade vincula-se aos processos sociais que institucionalizam a validade das
ações da autoridade política. Ainda sobre esse ponto, vale fazer referência a G.
Hossein Razi, para quem legitimidade diz respeito, por um lado, a um conjunto de
normas e valores políticos compartilhados capazes de tornar um sistema político
66

possível (Razi, 1990, p. 70)56. Por outro lado, o termo diz respeito à percepção,
por parte de uma relevante parcela de uma dada sociedade, de que o regime
comporta-se, ou não, conforme ditas normas e valores (Razi, 1987, p. 461-62).
Ainda segundo sua argumentação, a satisfação quanto às ações governamentais
nas áreas de identidade, participação, igualdade e soberania é fundamental para a
legitimidade do regime e, por conseguinte, a estabilidade da ordem pública.
Ainda consoante Razi (1987), elementos motivadores de instabilidade e
revolução tornam-se significativos quando colocados no contexto de privação
relativa, participação política limitada e desigualdade. Fundamentando-se em Karl
W. Deutsch57, para quem o termo legitimidade aproxima-se de justiça, Razi
salienta que uma população percebe seu governo como justo ou não, legítimo ou
ilegítimo, não somente pelo modo como alcançou o poder, mas sobretudo por suas
ações. Ou seja, o autor chama a atenção para a compatibilização de ações políticas
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com a configuração de valores prevalecentes em uma dada comunidade. E ainda,


fazendo referência a Dankwart A. Rustow58, que destaca a importância da
legitimidade para a estabilidade política, lembra Razi, que a manutenção do
regime relaciona-se ao somatório: legitimidade das instituições e legitimidade dos
governantes. Legitimidade, pois, deve ser considerada em termos da avaliação que
uma dada população faz a respeito do regime político ao qual se submete, assim
como ao seu relacionamento com sua respectiva liderança.
Quanto à terceira dimensão analítica a nortear o exame do caso aqui
proposto, diz respeito às preferências de atores domésticos no âmbito de acordos
de paz. Conforme foi apresentado na revisão da bibliografia sobre resolução de
conflitos, há autores destacando a relevância de se considerar a sociedade como o
nível de análise, além de associarem variáveis domésticas à evolução de um
processo de paz. Há que se observar, contudo, a existência de lacunas nessa
literatura no que tange a aspectos da arena doméstica.

56
No entanto, vale sublinhar que embora legitimidade derive de crenças compartilhadas, o
consenso em torno delas desenvolve-se gradualmente, além de que nem todos os membros de uma
dada comunidade se identificarão com as normas e valores sobre governança. Alguns deles sequer
se esforçarão ou se interessarão pela defesa de seu regime. Ver DIAMOND, Larry e LIPSET,
Seymor Martim (1995), The Encyclopedia of democracy. Routledge, London. Verbete
“Legitimidade”, vol. III, p.747-751.
57
DEUTSCH, Karl W., Politics and Government, 3rd ed., Boston: Hooghton Mifflin, 1980, p. 15,
In: RAZI (1987, p. 461; 1990, p. 70-71).
58
RUSTOW, Dankwart A. A world of nations: problems of political modernization. Washington,
D.C., Brookings Institutions, 1967, p. 35-71. In: RAZI (1987, p. 460-461).
67

Assim sendo, embora essas abordagens tenham o mérito de destacar a


importância de fatores domésticos para uma bem-sucedida proposta de resolução
para um conflito, limitam-se a fazer prescrições a respeito do comportamento dos
atores para que as situações de barganha sejam consideradas efetivas, sem
examinarem, contudo, os mecanismos institucionais relevantes na fase seguinte
aos acordos. Os trabalhos de Edward Azar e John Burton ilustram essa
perspectiva analítica ao sugerirem que a resolução de conflitos depende da
superação do problema de necessidades básicas não atendidas, mas suas análises
não indicam por que meios esse processo pode ser operacionalizado.
Cabe notar, por conseguinte, que apesar de alguns estudos reconhecerem
que a preferência dos atores e as instituições políticas domésticas tenham
impactos sobre o progresso da resolução de um conflito, não indicam como essas
correlações se procedem. Poucos são os trabalhos comprovando empiricamente
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seus modelos ou que evidenciam uma conexão entre uma negociação


internacional e elementos da arena doméstica do negociador. Nessa direção,
dentre os autores que se destacam por sua contribuição para essa área de estudos
estão Barbara Walter (2002), Stephan Stedman, Donald Rothchild e Elizabeth
Cousens (2002), além de Hebert Kelman (1999), cujos pressupostos centrais
foram apresentados nas seções precedentes.
Outra perspectiva analítica, nesse sentido, vem sendo desenvolvida na
disciplina de Relações Internacionais desde fins dos anos 80. Diz respeito a
estudos relacionando o resultado de uma negociação internacional com fatores
domésticos. Embora essa abordagem concentre-se em casos de cooperação
econômica e na área da segurança, constitui uma referência obrigatória para se
compreender os efeitos de divisões domésticas sobre uma negociação
internacional. Nesse sentido, a literatura sobre conflitos internacionais, mesmo
para casos prolongados e aparentemente insolúveis, poderia avançar em sua
capacidade explicativa se incorporasse categorias análiticas dessa perspectiva
sobre negociação internacional, que leva em consideração a estrutura de
preferências dos atores e instituições domésticas como fatores com impactos sobre
a cooperação no plano internacional.
68

Essas questões foram objeto de uma nova linha argumentativa inaugurada


por Robert Putnam59 em fins dos anos 80. Sua proposta baseia-se na metáfora do
“jogo de dois níveis”, em que se explica o insucesso da realização de acordos
internacionais devido a restrições domésticas sobre as decisões de seu respectivo
governo. Em outras palavras, no nível nacional, atores pressionarão seu governo
para que sejam adotadas medidas que lhes sejam favoráveis. Dessa forma, o
governo estará restringido por um lado pela necessidade de atender demandas
domésticas e obter suficiente apoio às suas decisões; simultaneamente, por outro
lado, buscará minimizar a possibilidade de fatores na arena externa causarem
resultados adversos. Sugere, portanto, o autor que a cooperação internacional
pode avançar ou se limitar conforme o poder de veto ou o apoio de atores
domésticos às decisões sobre acordos internacionais. Assim sendo, a ratificação
de um acordo internacional pode ocorrer formalmente como, por exemplo, por
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meio de uma aprovação do Parlamento, ou informalmente, por meio do apoio da


opinião pública, sindicatos e outros grupos sociais. Essas questões apontadas pelo
autor são fundamentais, portanto, para se compreender a interação entre uma
autoridade política e grupos de sua arena doméstica após a assinatura de acordos
internacionais. Ademais, cabe ressaltar que essa temática tem sido pouco
explorada pela literatura de resolução de conflitos internacionais.
Assim sendo, é importante notar que, na fase posterior a um acordo
firmado, os líderes negociadores terão de enfrentar os dilemas na arena interna,
tais como as insatisfações e frustrações de grupos sociais, ou, ainda, a
possibilidade de perderem o apoio político de membros de sua própria
comunidade. Seguindo uma linha analítica voltada para o plano doméstico de uma
das partes participando da resolução de um conflito, o estudo pretende mostrar
que a interação da autoridade política com sua sociedade tem impactos sobre a
evolução desse processo. Cabe sublinhar que, por um lado, recursos materiais e
financeiros limitados comprometem a capacidade governativa das partes

59
PUTNAM, R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games,
International Organization 42, 1988, p. 427-60. Esse estudo afigura-se como fonte de inspiração
para outros trabalhos voltados para a integração das arenas interna e externa em processos de
negociação internacional. Alguns analistas contribuíram de forma bastante relevante para o
tratamento dessa temática com a publicação do livro Double-Edged Diplomacy: International
Bargaining and Domestic Politics (1993), em que se aplica o modelo dos “jogos de dois níveis” ao
estudo de casos de cooperação internacional. Helen Milner (1997) também se dedica a uma
abordagem semelhante (Interests, Institutions and Information).
69

envolvidas em um acordo internacional, no suprimento das necessidades básicas e


de bens públicos para suas respectivas comunidades. Pode-se dizer, ainda, que
essas limitações de uma das partes negociadoras constituem fatores capazes de
condicionar sua participação no cumprimento dos acordos.
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