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2005 - Da Pre-Historia A Historia Indige PDF
2005 - Da Pre-Historia A Historia Indige PDF
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O projeto de pesquisa concluído com a elaboração e defesa da tese de doutorado, aqui resumida e
apresentada, contou com apoio financeiro da UFMS, através de uma licença remunerada por 18 meses,
e da CAPES, por meio da concessão de bolsa de estudos.
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Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Programa de Pós-Graduação em História, Rua
João Rosa Góes n° 1761, Caixa Postal 322, Dourados-MS, CEP 79825-070. E-mail:
eremites@terra.com.br.
Essa proposta não deve ser confun- Nessa linha de argumentação, desde
dida, especialmente por parte dos mais o início das pesquisas entendeu-se que
afoitos, aqueles se vêem obrigados “a não se poderia partir do nada, pois an-
marchar sob alguma bandeira teórica”, tes da conclusão deste trabalho outros
como criticou Norman Yoffee cientistas sociais publicaram os resulta-
(1995:109), com a proposta geral da dos de suas pesquisas arqueológicas, et-
escola histórico-cultural decadente na nológicas ou etnoistóricas a respeito da
arqueologia estadunidense já na déca- presença indígena no Pantanal. Por isso,
da de 1960. Proceder assim seria um na Primeira Parte da tese, Capítulos 1 e
contra-senso. Ocorre que conceber a ar- 2, consta uma exaustiva e crítica análi-
queologia como uma forma particular de se sobre o desenvolvimento da arqueo-
produzir história indígena não significa, logia pantaneira, à luz da história e da
historiografia. Um estudo desse nível,
bem entendido, abraçar paradigmas há
embora polêmico para alguns arqueólo-
muito abandonados. Significa, por exem-
gos fechados a críticas e ao debate aca-
plo, buscar compreender diferentes his-
dêmico, foi de suma importância para a
toricidades nativas a partir de uma pers-
compreensão das idéias publicadas so-
pectiva que possa conjugar aportes pro-
bre a história indígena pré-colonial da-
cessualistas e pós-processualistas, den-
quela que é a maior planície de inunda-
tre outros, analisando a trajetória de ção do globo. Além disso, também foi
grupos étnicos do passado e do presen- importante para o entendimento da pró-
te. Por isso cumpre aqui citar o que dis- pria arqueologia brasileira, uma vez que
se o referido arqueólogo em conferência a arqueologia pantaneira não está isola-
realizada no Brasil, no ano de 1995: da da disciplina praticada em outras re-
“[...] absorvemos a vantagem da arqueo- giões do país e do mundo.
logia processual, especialmente no uso do A partir dessa constatação e seguin-
desenho de pesquisa, métodos quantitati-
do o exemplo de vários representantes
vos, ecologia e outras investigações soci-
ais. Nós somos também pós-processualis- da nova geração de arqueólogos brasi-
tas, no sentido de que não vemos a ideolo- leiros, a qual não está limitada a uma
gia com um epifenômeno, nós examinamos faixa etária, mas a uma postura profis-
os papéis importantes da mulher e do gê- sional com afinidades em comum, so-
nero no passado e estudamos preocupa- bretudo seguindo as propostas de Pe-
dos com a representação do passado de
dro Paulo A. Funari (1989, 1992, 1994,
outros povos de uma maneira cripto-colo-
nialista, especialmente em museus e na in- 1999), foi analisada a arqueologia pan-
dústria turística” (Yoffee, 1995:109-110). taneira dentro do contexto histórico da
própria sociedade em que vivemos. As-
Com efeito, ao longo do trabalho pro- sim foi possível melhor compreender
curou-se analisar todo tipo de informa- como determinados modelos interpre-
ção possível, perseguindo deliberada- tativos foram criados, isto é, os cami-
mente a interdisciplinaridade, como pro- nhos percorridos e os paradigmas utili-
pôs Brochado (1984), com o propósito zados para a construção de certas re-
de contribuir para o conhecimento do presentações sobre o passado indígena
transcurso dos grupos canoeiros no Pan- pré-colonial. Essa parte da tese foi a que
tanal. Esse transcurso teve início com os os membros da banca examinadora
primeiros pescadores-caçadores-coleto- mais se detiveram a criticar, em detri-
res que ali se estabeleceram e vem até mento dos poucos questionamentos
os últimos argonautas Guató que vivem apresentados sobre as outras duas.
no curso inferior do rio São Lourenço, Também foi a que mais gerou polêmica
na divisa entre os estados de Mato Gros- e litígio em relação a certos grupos exis-
so e Mato Grosso do Sul, e outros gru- tentes na arqueologia brasileira, o que
pos estabelecidos na região pantaneira. já era de se esperar.
Fig. 01: Mapa com a localização do Pantanal Matogrossense e suas sub-regiões ou pantanais.
Fonte: Magalhães (1992:17 [modificado]).
De todo modo, como dito antes, a conhecidos para a maioria dos arqueólo-
análise foi feita sem desconsiderar o con- gos e antropólogos brasileiros.
texto sócio-histórico da época em que Em certos casos houve a estratégia,
os estudos foram realizados. Partiu-se que está cristalina nos textos publica-
do pressuposto de que não há neutrali- dos por alguns arqueólogos brasileiros
dade científica na arqueologia, tampou- que divulgaram seus estudos a partir da
co que os cientistas sociais vivem desli- década de 1990, em omitir as contribui-
gados de seu tempo. Demonstrou-se, por ções dadas por esses dois antropólogos
exemplo, que a arqueologia pantaneira europeus. Em verdade, negou-se o le-
não é tão jovem como muitos têm suge- gado deles para poder se apresentar
rido, em especial alguns membros do como pioneiros em uma região suposta-
Projeto Corumbá4. Foi explicado que seu mente virgem de pesquisas arqueológi-
primeiro momento teve início em 1875, cas. Quando muito se fizeram menção a
com o militar João Severiano da Fonse- eles sem a apresentação de qualquer dis-
ca (1880), logo após o término da guer- cussão sobre o resultado de suas pes-
ra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança quisas. Nada mais incoerente do ponto
(1864-1870). Na época o governo im- de vista científico. Exemplo disso está
perial estava definindo ou redefinindo as na surpresa com que alguns colegas es-
fronteiras do Brasil com as repúblicas vi- tão percebendo, hoje em dia, a ocorrên-
zinhas do Paraguai e da Bolívia. cia de sítios com pinturas rupestres no
Daquele ano até a década de 1980, o Pantanal, como é o caso do Morro do Ca-
etnólogo alemão Max Schmidt, em tra- racará, algo que Schmidt havia tratado
balhos publicados em 1902, 1905, 1912, na primeira metade do século passado
1914, 1928, 1940, 1942, 1949, 1951 e (vide Schmidt 1914, 1928, 1940a,
1959, por exemplo, e a etnóloga de ori- 1940b, 1942a, 1942b; Eremites de Oli-
gem eslovena Branka J. Susnik, em pu- veira & Viana 1999/2000; Eremites de
blicações feitas em 1959, 1961, 1965, Oliveira 2003a). Essa situação também
1972, 1975, 1978, 1982, 1984, 1987, contribuiu, durante décadas, para que a
1991, 1992, 1994, 1995, 1996 e 1998, região do alto Paraguai passasse prati-
dentre outras tantas, foram os pesquisa- camente despercebida aos olhos de ar-
dores que mais contribuíram para o co- queólogos que propuseram modelos ex-
nhecimento dos grupos indígenas no Pan- plicativos sobre a história indígena pré-
tanal. Eles publicaram vários estudos ar- colonial platina e sul-americana5.
queológicos, etnológicos e etnoistóricos Paradoxalmente, se no Brasil alguns
e ministraram aulas e conferências sobre arqueólogos têm omitido o legado de
o assunto. Ambos os autores foram in- Max Schmidt, a mesma situação não
fluenciados por idéias difusionistas e evo- ocorre em outros países, como se pode
lucionistas da época (escola histórico-cul- perceber em uma rápida observação aos
tural de origem alemã) e, embora tenham recentes trabalhos de Binford (2001) e
publicado vários trabalhos em países pla- Politis (2002), apenas para citar dois
tinos e europeus, permaneceram pouco exemplos.
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O Projeto Corumbá foi um grande projeto interinstitucional de pesquisas arqueológicas e etnoistóri-
cas, sob a coordenação do Prof. Dr. Pedro Ignacio Schmitz, diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas
(IAP), estabelecimento ligado à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), de São Leopoldo,
Rio Grande do Sul. O projeto teve início em 1989, com as investigações preliminarmente realizadas por
pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Corumbá, atual
Campus do Pantanal, e foi concluído em 2001.
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Um ensaio sobre o assunto, escrito em espanhol a partir da primeira parte da tese de doutorado,
ganhou o Prêmio Drª. Branislava Susnik, versão 2003, no campo dos estudos relevantes à antropo-
logia paraguaia. O prêmio foi ofertado pelo Museo Etnográfico “Andrés Barbero”, da Fundación La
Piedad, e pelo Centro de Estudios Antropológicos (CEADUC), da Universidad Católica, de Assunção,
Paraguai (vide Eremites de Oliveira 2003a).
Fig. 02: Mapa com a localização das áreas abrangidas pelo Programa Arqueológico do Mato Grosso do
Sul.
regional. Um bom exemplo disso é pro- 2004). Nessa parte dos trabalhos tam-
jeto Ocupação Pré-colonial do Pantanal bém consta a defesa da tese de que não
Matogrossense: Cáceres-Taiamã, sob a há evidências de natureza alguma que
coordenação de Maria Clara Migliacio, cu- possam sustentar a idéia de que o Pan-
jos resultados foram apresentados sob tanal teria sido uma área inóspita à ins-
forma de dissertação de mestrado, de- talação de populações indígenas, como
fendida na Universidade de São Paulo sugerido em algumas publicações. Pelo
(USP) (vide Migliacio, 2000). contrário, os argumentos apresentados
Além da produção de novos conheci- corroboram a proposição de que aquela
mentos, no cômputo geral todos os pro- região do alto Paraguai, ao menos des-
jetos, de um modo ou de outro, ainda de o holoceno, apresenta uma expressi-
tiveram sucesso no campo da arqueolo- va biodiversidade e oferece uma gama
gia pública, principalmente no que se re- de recursos para grupos adaptados aos
fere à preservação de bens arqueológi- ecossistemas locais. Rechaçou-se qual-
cos e à socialização de novos conheci- quer estudo que, valendo-se de um de-
mentos científicos. Não se deve esque- terminismo ambiental, tenha interpre-
cer aqui das pesquisas executadas na tado o comportamento dos grupos hu-
modalidade de arqueologia por contra- manos como estando radicalmente in-
to, cada vez mais presente em todo o fluenciado por aspectos ecológicos, os
território nacional, ainda que gerando quais sequer se conhece em profundi-
novos dilemas éticos a serem superados. dade.
Apesar das contribuições apontadas, Os dados arqueológicos disponíveis
muito ainda está por ser feito conside- na literatura sugerem que a partir do fe-
rando os poucos estudos desenvolvidos nômeno climático conhecido como óti-
na porção pantaneira da Bolívia e do Pa- mo climático ou altitermal, sobretudo
desde uns 4.500 anos atrás, houve um
raguai. Ainda assim as perspectivas pa-
significativo aumento demográfico na re-
recem ser animadoras nesses países vi-
gião. Essa situação parece corresponder
zinhos, haja vista a crescente preocu-
ao momento em que grupos pescado-
pação, especialmente na Bolívia, com a
res-caçadores-coletores intensificaram a
preservação do patrimônio arqueológi- ocupação das terras baixas, ali constru-
co existente em áreas diretamente afe- indo várias estruturas monticulares. É
tadas por obras de engenharia. provável ainda que a partir do milênio
A respeito da história indígena pré- anterior ao início da Era Cristã tenha co-
colonial das terras baixas do Pantanal, meçado a gradativa formação de um rico
analisada na Segunda Parte da tese, mosaico sociocultural no centro da Amé-
Capítulos 3, 4 e 5, procurou-se abordar rica do Sul. Esse mosaico perdurou até
o assunto dentro de uma perspectiva tempos coloniais e foi constituído por
geográfica para além-fronteiras político- grupos canoeiros que lá estavam esta-
territoriais do país, diferentemente do belecidos, além de grupos agricultores,
que muitos seguem fazendo no Brasil. supostamente de origem amazônica, que
Inicialmente apontou-se, com base em migraram para o Pantanal por motivos
estudos paleoambientais e dados arque- ainda pouco conhecidos.
ológicos em escala supra-regional, que Ainda foram apresentadas hipóteses
as primeiras ocupações indígenas da re- que indicam uma antiga incorporação,
gião podem recuar ao início do holoce- inicialmente diferencial e anterior a
no, ao redor de 11.000 a 10.000 anos 3.000 AP (anos Antes do Presente), de
atrás, quando grupos pescadores-caça- elementos cerâmicos relacionados a dis-
dores-coletores devem ter se estabele- tintos estilos e etnicidades, pertencen-
cido pela primeira vez na planície pan- tes à macro-tecnologia chamada no Bra-
taneira (vide Eremites de Oliveira, 2003c, sil de tradição Pantanal.
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fornia Press.
BROCHADO, J. J. J. P. 1984. An ecological model of the spread of pottery and Agriculture into
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EREMITES DE OLIVEIRA, J. 1995a. Os argonautas Guató: aportes para o conhecimento dos
assentamentos e da subsistência dos grupos que se estabeleceram nas áreas inundáveis do
Pantanal Matogrossense. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, PUCRS.