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Artigo

Da pré-história à história indígena:


(Re) pensando a arqueologia e os povos
canoeiros do pantanal1

Jorge Eremites de Oliveira2


Resumo
Nesta tese de doutorado o autor anali-
sa criticamente a história e a historio-
grafia da arqueologia pantaneira, des-
de a segunda metade do século XIX até
fins do século XX, e aborda o processo
de ocupação indígena das terras baixas
do Pantanal, desde os primeiros pesca-
dores-caçadores-coletores do período
pré-colonial até os atuais canoeiros
Guató. O objetivo maior é contribuir
para a composição de uma história in-
dígena total, em seus múltiplos aspec-
tos e perspectivas espaço-temporais, a
partir de uma abordagem interdiscipli-
nar que emprega procedimentos teóri-
co-metodológicos próprios da arqueo-
logia, antropologia e história. Para tan-
to, foram utilizados dados contidos em
fontes textuais diversas, informações
recolhidas a partir da tradição oral dos
Guató e os resultados de pesquisas ar-
queológicas, etnográficas e etnoarque-
ológicas. Foi possível demonstrar que a
arqueologia pantaneira tem sido pau-
tada pelo estudo de povos pescadores-
caçadores-coletores, associados à ma-

1
O projeto de pesquisa concluído com a elaboração e defesa da tese de doutorado, aqui resumida e
apresentada, contou com apoio financeiro da UFMS, através de uma licença remunerada por 18 meses,
e da CAPES, por meio da concessão de bolsa de estudos.
2
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Programa de Pós-Graduação em História, Rua
João Rosa Góes n° 1761, Caixa Postal 322, Dourados-MS, CEP 79825-070. E-mail:
eremites@terra.com.br.

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Oliveira, J. E.

cro-tecnologia ceramista conhecida no and the results of archeological, ethno-


Brasil como tradição Pantanal e a es- graphic and ethnoarchaeological rese-
truturas monticulares do tipo aterro, os arch. It was possible to demonstrate
quais se estabeleceram na região mui- that the archaeology of the Pantanal
to antes do início da Era Cristã. Nos dias area has been ruled by the study of fi-
de hoje, a arqueologia pantaneira re- shers-hunters-gathers people, associa-
flete as mesmas mudanças de nuance ted to the series of ceramic styles kno-
constatadas para a arqueologia brasi- wn in Brazil as Pantanal tradition and
leira desde a década de 1980. Nos sé- the mounds, which settled down in the
culos XVI, XVII e XVIII, período de mui- area several centuries before the begin-
tas disputas entre Espanha e Portugal ning of the Christian Era. Nowadays, the
pelo domínio do alto Paraguai, foram archaeology of the Pantanal area reflects
produzidos vários relatos que atestam the same trends that are common to
a existência de um extraordinário mo- the Brazilian archeology since 1980s. In
saico sociocultural no centro da Améri- the 16th, 17th, and 19th centuries, period
ca do Sul, inclusive de um complexo de of many disputes between Spain and
povos canoeiros formado por socieda- Portugal for the control of Upper Para-
des cultural e lingüisticamente distin- guay river, several reports were produ-
tas. De todas essas sociedades, a dos ced that attest the existence of an ex-
Guató é a mais conhecida do ponto de traordinary sociocultural mosaic in the
vista etnoistórico e etnológico, estando center of South America, besides that
tradicionalmente organizada em grupos of a complex of canoeists people for-
domésticos ligados por laços de consan- med by cultural and linguistically diffe-
güinidade, descendência e afinidade, re- rent societies. Of all those societies, the
lacionados a um particular sistema de Guató are best known ethnohistorically
patrilocalidade e patrilinearidade.
and ethnologically, being traditionally
organized in domestic groups linked by
Palavras-chave: Arqueologia, Guató, His-
blood relationships, descent and like-
tória Indígena, Historiografia, Pantanal.
ness, related to patrilocality and patri-
lineal systems.
Abstract
In this PhD dissertation the author Keywords: Archaeology, Guató, Indige-
analyzes critically the history and his- nous History, Historiography, Pantanal.
toriography of the archaeology of the
Pantanal area, from the second half of Portanto, a primeira coisa que considerei
the 19th to end of the 20th, and it aims aqui é que a arqueologia do leste da Amé-
at studying the process of indigenous rica do Sul deve ser vista como a pré-his-
tória das populações indígenas históricas
occupation of the low lands of the regi-
e atuais. Se não forem estabelecidas rela-
on, from the first fishers-hunters-ga- ções entre as manifestações arqueológi-
thers of the pre-colonial period to the cas e as populações que as produziram, o
current canoeists Guató. The larger ob- mais importante terá se perdido. Assim
as conotações etnográficas das tradições
jective is to contribute to the composi- e estilos cerâmicos não devem ser evita-
tion of an indigenous history, in its mul- das, mas, pelo contrário, deliberadamen-
tiples aspects and perspectives, starting te perseguidas.
from an interdisciplinary approach using José Joaquim J. Proenza Brochado
theoretical-methodological procedures
of common to archeology, anthropolo- Este artigo é uma síntese ampliada
gy and history. Data were drawn from da tese de doutorado Da pré-história à
several textual sources, information co- história indígena: (re) pensando a ar-
llected through the Guató oral tradition queologia e os povos canoeiros do Pan-

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Da pré-história à história indígena: (Re) pensando a arqueologia e os povos canoeiros do pantanal

tanal, defendida em 31 de julho de 2002, Em verdade, sem saber sobre o sis-


no Programa de Pós-Graduação em His- tema sociocultural de determinados gru-
tória, área de concentração em Arqueo- pos humanos conhecidos historicamen-
logia, da Pontifícia Universidade Católi- te, o especialista em cultura material
ca do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob teria muito mais dificuldades para in-
orientação do Prof. Dr. Klaus Peter Kris- terpretar os vestígios materiais dos gru-
tian Hilbert. pos que viveram no passado pré-colo-
O objetivo do trabalho esteve dire- nial. Ocorre que em arqueologia as in-
tamente relacionado à possibilidade da terpretações teóricas são feitas, para
elaboração de um estudo que pudesse mais ou para menos, consciente ou in-
contribuir, substancialmente, para a conscientemente, com base em analo-
construção de uma história indígena em gias etnográficas ou históricas diretas
seus múltiplos aspectos e perspectivas e indiretas, quer dizer, por meio de com-
espaço-temporais, conforme explicado parações feitas entre o presente etno-
em outras publicações (Eremites de Oli- gráfico ou histórico e o passado arque-
veira, 2001, 2003b). Procurou-se seguir ológico. Isso não significa advogar a tese
mais ou menos a proposta de José Joa- de que a cultura dos grupos humanos
quim J. Proenza Brochado (1984), apre- pode permanecer fossilizada no tempo
sentada em sua conhecida tese de dou- e espaço, pelo contrário. A cultura é aqui
torado An ecological model of the spre- entendida como algo verdadeiramente
ad of pottery and Agriculture into Eas- dinâmico e plural. Logo, não há como o
tern South América, qual seja, a idéia arqueólogo estudar as sociedades indí-
de perceber que as populações indíge- genas de um passado longínquo em de-
nas atuais do leste da América do Sul trimento do completo desconhecimen-
descendem daquelas conhecidas arque- to dos grupos atuais.
ologicamente para o passado pré-colo- Dito de outra maneira: é exatamen-
nial. Por isso ele propôs que “[...] as te o conhecimento a respeito dos gru-
conotações etnográficas das tradições pos conhecidos etnográfica e historica-
e estilos cerâmicos não devem ser evi- mente que possibilita ao arqueólogo le-
tadas, mas, pelo contrário, deliberada- vantar hipóteses, propor modelos inter-
mente perseguidas” (Brochado, pretativos e repensar continuamente as
1984:565), conforme apresentado na evidências arqueológicas que constitu-
epígrafe deste artigo3. em grande parte dos documentos por ele
Foi seguindo o referido paradigma estudado (Eremites de Oliveira, 2004).
que em linhas gerais o presente estudo Para tanto, além dos aportes da ar-
foi inicialmente pensado, visto que no queologia stricto sensu, tornou-se im-
decorrer das pesquisas a arqueologia prescindível valer-se das contribuições
também foi percebida como uma forma de outras áreas do conhecimento, como
particular de se estudar a história indí- a antropologia, a história e as geociên-
gena lato sensu. Isso explica o por quê cias, na perspectiva de contribuir para
da realização de estudos etnoarqueoló- construção de uma história indígena
gicos, etnológicos e etnoistóricos que, ao mais holística e de longa duração. Uma
serem sistematicamente concatenados, história indígena assim grosso modo se
possibilitaram melhor compreender a re- propõe a cobrir praticamente todas as
lação entre comportamento humano e lacunas espaço-temporais existentes,
registro arqueológico na região do Pan- desde o período pré-colonial até os dias
tanal. de hoje.
3
O Prof. Dr. José Joaquim J. Proenza Brochado orientou o autor deste trabalho até ser desligado do
Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. A partir de seu desligamento a orientação ficou sob
a responsabilidade do Prof. Dr. Klaus Peter Kristian Hilbert.

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Oliveira, J. E.

Essa proposta não deve ser confun- Nessa linha de argumentação, desde
dida, especialmente por parte dos mais o início das pesquisas entendeu-se que
afoitos, aqueles se vêem obrigados “a não se poderia partir do nada, pois an-
marchar sob alguma bandeira teórica”, tes da conclusão deste trabalho outros
como criticou Norman Yoffee cientistas sociais publicaram os resulta-
(1995:109), com a proposta geral da dos de suas pesquisas arqueológicas, et-
escola histórico-cultural decadente na nológicas ou etnoistóricas a respeito da
arqueologia estadunidense já na déca- presença indígena no Pantanal. Por isso,
da de 1960. Proceder assim seria um na Primeira Parte da tese, Capítulos 1 e
contra-senso. Ocorre que conceber a ar- 2, consta uma exaustiva e crítica análi-
queologia como uma forma particular de se sobre o desenvolvimento da arqueo-
produzir história indígena não significa, logia pantaneira, à luz da história e da
historiografia. Um estudo desse nível,
bem entendido, abraçar paradigmas há
embora polêmico para alguns arqueólo-
muito abandonados. Significa, por exem-
gos fechados a críticas e ao debate aca-
plo, buscar compreender diferentes his-
dêmico, foi de suma importância para a
toricidades nativas a partir de uma pers-
compreensão das idéias publicadas so-
pectiva que possa conjugar aportes pro-
bre a história indígena pré-colonial da-
cessualistas e pós-processualistas, den-
quela que é a maior planície de inunda-
tre outros, analisando a trajetória de ção do globo. Além disso, também foi
grupos étnicos do passado e do presen- importante para o entendimento da pró-
te. Por isso cumpre aqui citar o que dis- pria arqueologia brasileira, uma vez que
se o referido arqueólogo em conferência a arqueologia pantaneira não está isola-
realizada no Brasil, no ano de 1995: da da disciplina praticada em outras re-
“[...] absorvemos a vantagem da arqueo- giões do país e do mundo.
logia processual, especialmente no uso do A partir dessa constatação e seguin-
desenho de pesquisa, métodos quantitati-
do o exemplo de vários representantes
vos, ecologia e outras investigações soci-
ais. Nós somos também pós-processualis- da nova geração de arqueólogos brasi-
tas, no sentido de que não vemos a ideolo- leiros, a qual não está limitada a uma
gia com um epifenômeno, nós examinamos faixa etária, mas a uma postura profis-
os papéis importantes da mulher e do gê- sional com afinidades em comum, so-
nero no passado e estudamos preocupa- bretudo seguindo as propostas de Pe-
dos com a representação do passado de
dro Paulo A. Funari (1989, 1992, 1994,
outros povos de uma maneira cripto-colo-
nialista, especialmente em museus e na in- 1999), foi analisada a arqueologia pan-
dústria turística” (Yoffee, 1995:109-110). taneira dentro do contexto histórico da
própria sociedade em que vivemos. As-
Com efeito, ao longo do trabalho pro- sim foi possível melhor compreender
curou-se analisar todo tipo de informa- como determinados modelos interpre-
ção possível, perseguindo deliberada- tativos foram criados, isto é, os cami-
mente a interdisciplinaridade, como pro- nhos percorridos e os paradigmas utili-
pôs Brochado (1984), com o propósito zados para a construção de certas re-
de contribuir para o conhecimento do presentações sobre o passado indígena
transcurso dos grupos canoeiros no Pan- pré-colonial. Essa parte da tese foi a que
tanal. Esse transcurso teve início com os os membros da banca examinadora
primeiros pescadores-caçadores-coleto- mais se detiveram a criticar, em detri-
res que ali se estabeleceram e vem até mento dos poucos questionamentos
os últimos argonautas Guató que vivem apresentados sobre as outras duas.
no curso inferior do rio São Lourenço, Também foi a que mais gerou polêmica
na divisa entre os estados de Mato Gros- e litígio em relação a certos grupos exis-
so e Mato Grosso do Sul, e outros gru- tentes na arqueologia brasileira, o que
pos estabelecidos na região pantaneira. já era de se esperar.

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Fig. 01: Mapa com a localização do Pantanal Matogrossense e suas sub-regiões ou pantanais.
Fonte: Magalhães (1992:17 [modificado]).

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Oliveira, J. E.

De todo modo, como dito antes, a conhecidos para a maioria dos arqueólo-
análise foi feita sem desconsiderar o con- gos e antropólogos brasileiros.
texto sócio-histórico da época em que Em certos casos houve a estratégia,
os estudos foram realizados. Partiu-se que está cristalina nos textos publica-
do pressuposto de que não há neutrali- dos por alguns arqueólogos brasileiros
dade científica na arqueologia, tampou- que divulgaram seus estudos a partir da
co que os cientistas sociais vivem desli- década de 1990, em omitir as contribui-
gados de seu tempo. Demonstrou-se, por ções dadas por esses dois antropólogos
exemplo, que a arqueologia pantaneira europeus. Em verdade, negou-se o le-
não é tão jovem como muitos têm suge- gado deles para poder se apresentar
rido, em especial alguns membros do como pioneiros em uma região suposta-
Projeto Corumbá4. Foi explicado que seu mente virgem de pesquisas arqueológi-
primeiro momento teve início em 1875, cas. Quando muito se fizeram menção a
com o militar João Severiano da Fonse- eles sem a apresentação de qualquer dis-
ca (1880), logo após o término da guer- cussão sobre o resultado de suas pes-
ra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança quisas. Nada mais incoerente do ponto
(1864-1870). Na época o governo im- de vista científico. Exemplo disso está
perial estava definindo ou redefinindo as na surpresa com que alguns colegas es-
fronteiras do Brasil com as repúblicas vi- tão percebendo, hoje em dia, a ocorrên-
zinhas do Paraguai e da Bolívia. cia de sítios com pinturas rupestres no
Daquele ano até a década de 1980, o Pantanal, como é o caso do Morro do Ca-
etnólogo alemão Max Schmidt, em tra- racará, algo que Schmidt havia tratado
balhos publicados em 1902, 1905, 1912, na primeira metade do século passado
1914, 1928, 1940, 1942, 1949, 1951 e (vide Schmidt 1914, 1928, 1940a,
1959, por exemplo, e a etnóloga de ori- 1940b, 1942a, 1942b; Eremites de Oli-
gem eslovena Branka J. Susnik, em pu- veira & Viana 1999/2000; Eremites de
blicações feitas em 1959, 1961, 1965, Oliveira 2003a). Essa situação também
1972, 1975, 1978, 1982, 1984, 1987, contribuiu, durante décadas, para que a
1991, 1992, 1994, 1995, 1996 e 1998, região do alto Paraguai passasse prati-
dentre outras tantas, foram os pesquisa- camente despercebida aos olhos de ar-
dores que mais contribuíram para o co- queólogos que propuseram modelos ex-
nhecimento dos grupos indígenas no Pan- plicativos sobre a história indígena pré-
tanal. Eles publicaram vários estudos ar- colonial platina e sul-americana5.
queológicos, etnológicos e etnoistóricos Paradoxalmente, se no Brasil alguns
e ministraram aulas e conferências sobre arqueólogos têm omitido o legado de
o assunto. Ambos os autores foram in- Max Schmidt, a mesma situação não
fluenciados por idéias difusionistas e evo- ocorre em outros países, como se pode
lucionistas da época (escola histórico-cul- perceber em uma rápida observação aos
tural de origem alemã) e, embora tenham recentes trabalhos de Binford (2001) e
publicado vários trabalhos em países pla- Politis (2002), apenas para citar dois
tinos e europeus, permaneceram pouco exemplos.

4
O Projeto Corumbá foi um grande projeto interinstitucional de pesquisas arqueológicas e etnoistóri-
cas, sob a coordenação do Prof. Dr. Pedro Ignacio Schmitz, diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas
(IAP), estabelecimento ligado à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), de São Leopoldo,
Rio Grande do Sul. O projeto teve início em 1989, com as investigações preliminarmente realizadas por
pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Corumbá, atual
Campus do Pantanal, e foi concluído em 2001.
5
Um ensaio sobre o assunto, escrito em espanhol a partir da primeira parte da tese de doutorado,
ganhou o Prêmio Drª. Branislava Susnik, versão 2003, no campo dos estudos relevantes à antropo-
logia paraguaia. O prêmio foi ofertado pelo Museo Etnográfico “Andrés Barbero”, da Fundación La
Piedad, e pelo Centro de Estudios Antropológicos (CEADUC), da Universidad Católica, de Assunção,
Paraguai (vide Eremites de Oliveira 2003a).

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Da pré-história à história indígena: (Re) pensando a arqueologia e os povos canoeiros do pantanal

Fig. 02: Mapa com a localização das áreas abrangidas pelo Programa Arqueológico do Mato Grosso do
Sul.

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Oliveira, J. E.

O início do primeiro momento da ar- Desde esse segundo momento, o


queologia pantaneira atesta uma toma- Pantanal passou a ser alvo de pesquisas
da de consciência sobre a antiguidade no campo da arqueologia moderna, de
dos povos indígenas na região, especi- uma arqueologia desvinculada da pro-
almente dos pescadores-caçadores-co- cura incerta por objetos isolados, reco-
letores que ali construíram estruturas lhidos para museus nacionais e estran-
monticulares (aterros) e produziram pa- geiros. Passou a ser dedicada a pesqui-
inéis com arte rupestre (pinturas e ins- sas sistemáticas, contínuas e organiza-
crições). Significa dizer que a arqueolo- das. Nesse novo momento, as investi-
gia pantaneira surgiu de maneira seme- gações sobre os aterros continuaram
lhante à arqueologia desenvolvida em sendo o principal objeto de estudo, a me-
outras partes do continente americano, nina dos olhos, por assim dizer, dos pes-
onde desde a época colonial sítios ar- quisadores que passaram a divulgar am-
queológicos do tipo aterro, também cha- plamente, tanto no país como no exteri-
mados de aterrados, montículos, cerri- or, os resultados de suas investigações.
tos, tesos ou mounds, vêm despertando De todos os projetos desenvolvidos
a atenção de muitos exploradores e ci- na região, o Projeto Corumbá foi, sem
entistas sociais. Situação assim aconte- dúvida alguma, aquele que mais contri-
ceu no vale do Mississipi, no litoral Atlân- buições deu para a arqueologia panta-
tico da América do Sul, na região ama- neira, ainda que grande parte de seus
zônica e em outras áreas da própria ba- estudos tenha sido marcada por um certo
cia platina, conforme é amplamente co- determinismo tecno-ambiental de cará-
nhecido na literatura. ter histórico-culturalista. Avalia-se que
Contudo, foi em 1989, com o adven- seu maior legado tenha sido o treina-
to das primeiras pesquisas realizadas no mento contínuo de jovens pesquisado-
âmbito do Projeto Corumbá, que foi inau- res, os quais concluíram cursos de pós-
gurado o segundo momento da arqueo- graduação stricto sensu a partir da dé-
logia pantaneira, aquele que vem até os cada de 1990. Alguns deles atualmente
dias de hoje e também reflete as mu- estão estudando novos objetos, sob in-
danças de nuance registradas na arque- fluências de modernas teorias em voga
ologia brasileira nas duas últimas déca- na arqueologia e na antropologia mun-
das do século XX (vide, p. ex., Schmitz diais. Outros, porém, tiveram de migrar
et al. 1998, 2000a, 2000b). Tais mudan- para áreas afins, abandonando a arque-
ças estão relacionadas a um conjunto de ologia ou a etnoistória, em busca de
fatores, dentre os quais não se podem melhores oportunidades de trabalho.
ignorar o processo de redemocratização Além disso, não se pode esquecer que
do país e o surgimento de cursos de pós- no âmbito do Projeto Corumbá houve a
graduação stricto sensu. Mais ainda: es- publicação de dezenas de artigos e al-
sas transformações também foram im- gumas monografias, lançando novos
pulsionadas com o aparecimento de uma aportes a respeito do passado indígena
nova geração de arqueólogos brasileiros, do Pantanal e áreas adjacentes. Os tra-
a qual passou a inovar, e muito, os estu- balhos de Girelli (1994), Schuch (1995),
dos arqueológicos realizados no país des- Eremites de Oliveira (1995a, 1995b),
de a década de 1980. Seus estudos vêm Peixoto (1995), Peixoto & Schmitz
sendo influenciados por novos paradig- (1998), Herberts (1998), Magalhães
mas teórico-metodológicos, destacada- (1999) e Schmitz et al. (1998) são exem-
mente da nova arqueologia ou arqueo- plos bem sucedidos dessa contribuição.
logia processual e da arqueologia pós- Contudo, outros projetos, com menos
processual (Eremites de Oliveira 2002b, recursos e menor equipe, também con-
2005). tribuíram para o avanço da arqueologia

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regional. Um bom exemplo disso é pro- 2004). Nessa parte dos trabalhos tam-
jeto Ocupação Pré-colonial do Pantanal bém consta a defesa da tese de que não
Matogrossense: Cáceres-Taiamã, sob a há evidências de natureza alguma que
coordenação de Maria Clara Migliacio, cu- possam sustentar a idéia de que o Pan-
jos resultados foram apresentados sob tanal teria sido uma área inóspita à ins-
forma de dissertação de mestrado, de- talação de populações indígenas, como
fendida na Universidade de São Paulo sugerido em algumas publicações. Pelo
(USP) (vide Migliacio, 2000). contrário, os argumentos apresentados
Além da produção de novos conheci- corroboram a proposição de que aquela
mentos, no cômputo geral todos os pro- região do alto Paraguai, ao menos des-
jetos, de um modo ou de outro, ainda de o holoceno, apresenta uma expressi-
tiveram sucesso no campo da arqueolo- va biodiversidade e oferece uma gama
gia pública, principalmente no que se re- de recursos para grupos adaptados aos
fere à preservação de bens arqueológi- ecossistemas locais. Rechaçou-se qual-
cos e à socialização de novos conheci- quer estudo que, valendo-se de um de-
mentos científicos. Não se deve esque- terminismo ambiental, tenha interpre-
cer aqui das pesquisas executadas na tado o comportamento dos grupos hu-
modalidade de arqueologia por contra- manos como estando radicalmente in-
to, cada vez mais presente em todo o fluenciado por aspectos ecológicos, os
território nacional, ainda que gerando quais sequer se conhece em profundi-
novos dilemas éticos a serem superados. dade.
Apesar das contribuições apontadas, Os dados arqueológicos disponíveis
muito ainda está por ser feito conside- na literatura sugerem que a partir do fe-
rando os poucos estudos desenvolvidos nômeno climático conhecido como óti-
na porção pantaneira da Bolívia e do Pa- mo climático ou altitermal, sobretudo
desde uns 4.500 anos atrás, houve um
raguai. Ainda assim as perspectivas pa-
significativo aumento demográfico na re-
recem ser animadoras nesses países vi-
gião. Essa situação parece corresponder
zinhos, haja vista a crescente preocu-
ao momento em que grupos pescado-
pação, especialmente na Bolívia, com a
res-caçadores-coletores intensificaram a
preservação do patrimônio arqueológi- ocupação das terras baixas, ali constru-
co existente em áreas diretamente afe- indo várias estruturas monticulares. É
tadas por obras de engenharia. provável ainda que a partir do milênio
A respeito da história indígena pré- anterior ao início da Era Cristã tenha co-
colonial das terras baixas do Pantanal, meçado a gradativa formação de um rico
analisada na Segunda Parte da tese, mosaico sociocultural no centro da Amé-
Capítulos 3, 4 e 5, procurou-se abordar rica do Sul. Esse mosaico perdurou até
o assunto dentro de uma perspectiva tempos coloniais e foi constituído por
geográfica para além-fronteiras político- grupos canoeiros que lá estavam esta-
territoriais do país, diferentemente do belecidos, além de grupos agricultores,
que muitos seguem fazendo no Brasil. supostamente de origem amazônica, que
Inicialmente apontou-se, com base em migraram para o Pantanal por motivos
estudos paleoambientais e dados arque- ainda pouco conhecidos.
ológicos em escala supra-regional, que Ainda foram apresentadas hipóteses
as primeiras ocupações indígenas da re- que indicam uma antiga incorporação,
gião podem recuar ao início do holoce- inicialmente diferencial e anterior a
no, ao redor de 11.000 a 10.000 anos 3.000 AP (anos Antes do Presente), de
atrás, quando grupos pescadores-caça- elementos cerâmicos relacionados a dis-
dores-coletores devem ter se estabele- tintos estilos e etnicidades, pertencen-
cido pela primeira vez na planície pan- tes à macro-tecnologia chamada no Bra-
taneira (vide Eremites de Oliveira, 2003c, sil de tradição Pantanal.

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Oliveira, J. E.

Incorporaram-se ainda novos apor- Em tempos coloniais, muitos grupos


tes teóricos para a interpretação dos estavam estabelecidos na região: nas
aterros pantaneiros, a exemplo do que terras altas havia aldeias de grupos lin-
vem acontecendo em vários países ame- güisticamente aruák e guarani e nas ter-
ricanos, como é o caso do Uruguai. Em ras baixas era marcante a presença de
resumo, foi feita a argüição de que a grupos canoeiros mencionados nas fon-
compreensão dessas estruturas monti- tes textuais como Guató, Guasarapo,
culares é mais complexa do que havia Payaguá e por outros apelativos. Essa
sido pensado até pouco tempo. Explicou- idéia não pressupõe um modelo norma-
se, por exemplo, que os aterrados não tivo dos sistemas socioculturais. Sabe-
foram apenas construídos e ocupados se, no entanto, que grupos canoeiros
como resposta a fatores ecológicos regi- também ocuparam pontos das terras al-
onais, conforme o próprio autor havia tas e que grupos agricultores igualmen-
defendido em sua dissertação de mes- te chegaram a se estabelecer nas terras
trado e em alguns estudos posteriores baixas. O que deve ficar claro é que os
(vide Eremites de Oliveira, 1995a, primeiros estavam estabelecidos princi-
1995b, 1996). Sua construção requereu palmente nas terras baixas, ao passo que
o uso de conhecimentos arquitetônicos os segundos majoritariamente assenta-
e a organização do trabalho social, além dos nas terras altas, inclusive manten-
de fatores ideológicos, relações de po- do contatos inter e extragrupais.
der e estratégias de territorialidade, ou Feitas essas explicações, concluiu-se
seja, estratégias de domínio da paisa- que do ponto de vista etnoistórico, so-
gem natural e social dentro de uma vi- bretudo, há fortes razões para acreditar
são cognitiva do universo. na existência pretérita de um complexo
Alguns dos maiores montículos co- de sociedades canoeiras. Esse complexo
nhecidos em várias regiões do Pantanal, emergiu em tempos pré-coloniais e foi
inclusive no Paraguai, por exemplo, fo- desestruturado com a conquista ibérica.
ram erguidos em pontos estratégicos Foi marcado por diferenciações sócio-
para o controle de importantes vias flu- econômicas e políticas, havendo indíci-
viais e áreas lacustres. Trata-se prova- os consistentes da existência de desi-
velmente de um indício de disputas in- gualdades sócio-econômicas e da con-
terétnicas por nichos ecológicos com centração do poder político nas mãos de
abundantes recursos. Esta situação tam- uma minoria. A situação apontada teria
bém está registrada em fontes textuais sido o resultado da combinação de vári-
produzidas na época em que Espanha e os fatores inter-relacionados que favo-
Portugal disputavam a região do alto Pa- receram a existência de hierarquias e da
raguai, séculos XVI, XVII e XVIII, mo- centralização de poderes nas mãos de
mento em que as rivalidades interétni- indivíduos capazes de liderar determi-
cas foram estrategicamente estimuladas nados grupos domésticos, quais sejam:
pelos conquistadores de além-mar e seus – Abundância de recursos em algu-
sucessores na América do Sul. Ademais, mas áreas e iminência de estresse am-
ter a posse de aterros provavelmente foi biental em outras, em face de eventuais
motivo de diferenciação social e da exis- desequilíbrios entre oferta de recursos e
tência de hierarquias entre grupos pes- demografia, motivo de grande competi-
cadores-caçadores-coletores. Isso de- tividade por determinados nichos ecoló-
monstra que os grupos não viviam em gicos, a exemplo das disputas pelos ar-
sociedades frouxas, igualitárias e sem rozais nativos.
conflitos internos, para citar aqui outro – Pressão demográfica ocasionada
paradigma que precisa ser revisto em por migrações diversas, deslocamentos
estudos mais recentes. territoriais e crescimento populacional,

80 Revista Arqueologia, 16: 71-86, 2003


Da pré-história à história indígena: (Re) pensando a arqueologia e os povos canoeiros do pantanal

talvez a mais plausível explicação para de um determinismo tecno-ambiental6.


a existência de um rico mosaico socio- Eles argumentam, diante do que estão
cultural no Pantanal e no Grande Chaco. percebendo como “novo”, “desconheci-
– Relações interétnicas mantidas en- do” e até mesmo “ousado”, que ainda é
tre os grupos canoeiros e entre eles e cedo para esse tipo de análise. Em res-
outros grupos lingüisticamente guarani posta a crítica recebida por um de seus
e aruák, o que favoreceu em muito a cir- representantes, registra-se aqui que a
culação de informações e ideologias di- análise proposta é de fato prematura
versas, bem como a composição de es- para aqueles que ainda não perceberam
tratégicas alianças entre grupos vizinhos os sistemas socioculturais a partir de
para o controle, a defesa e talvez a ex- uma visão multidimensional. Esses ar-
pansão de seus territórios. queólogos seguem pensando que os da-
dos falam por si mesmos e não admi-
– Aquisição de matérias-primas e ar-
tem, pois, a possibilidade de pensá-los
tefatos variados, incluindo objetos exó-
de outra maneira que não seja recorren-
ticos oriundos de regiões distantes, pro-
do a velhos e ultrapassados modelos evo-
vavelmente acumulados nas mãos de
lucionistas e difusionistas.
poucas pessoas capazes de liderar um
sistema de intercâmbio e incursões a Em seqüência à proposta de analisar
longas distâncias, além de ataques sur- e concatenar dados de natureza varia-
presas a algumas expedições proveni- da, com vistas à compreensão da histó-
entes das zonas andina e sub-andina, ria indígena, na Terceira Parte da tese,
bem como às aldeias para onde elas se a última, Capítulos 6 e 7, tratou-se es-
destinavam. pecificamente dos Guató, grupo que há
mais de uma década o autor vem estu-
– Controle da organização do traba-
dando. Cumpre dizer, entretanto, que na
lho social relacionado à construção de
Segunda Parte da tese consta alguns
aterros e à economia de grupos domés-
dados sobre os aterros ou marabohó
ticos ligados por laços de consangüini-
construídos e ocupados por esses cano-
dade, aliança e afinidade.
eiros, valendo-se, sobretudo, da teoria
– Manutenção de índios cativos apri- de médio alcance para tratar do proces-
sionados em conflitos bélicos interétni- so de formação dessas estruturas mon-
cos. ticulares. A análise desses dados é rele-
– Eficazes estratégias de territoriali- vante para uma melhor compreensão
dade associadas à desenvolvida mobili- desse tipo de estrutura monticular que
dade estacional em espaços muito bem ocorre na região, repensando continua-
conhecidos, delimitados e defendidos mente as evidências arqueológicas.
contra possíveis invasores, o que reme- Inicialmente analisou-se, a partir de
te a particulares e distintas formas de uma ótica estruturalista, a organização
organização sócio-espacial. social do grupo dentro de uma perspec-
Esse novo paradigma, inspirado na tiva etnoistórica que privilegiou o siste-
tese da complexidade emergente, intro- ma de parentesco e as relações sociais,
duzida pela primeira vez no Brasil por e não apenas a economia. Após apre-
Tania Andrade Lima, em 1997, tem ge- sentar e discutir vários dados etnográfi-
rado algumas reações contrárias, em cos recolhidos de fontes textuais e obti-
especial entre arqueólogos que, para in- dos em campo, por meio de observação
terpretarem a história indígena pré-co- participante, foi apresentada a seguinte
lonial no Pantanal, seguem fazendo uso tese: a organização social guató tem sido
6
Sobre o tema complexidade emergente entre grupos pescadores e coletores, para a elaboração da
tese de doutorado valeu-se basicamente dos aportes de Arnold (1992, 1997), Arnold et al. (1997),
Lima (2000a, 2000b), López Mazz (1998, 2002) e Lima & López Mazz (2000).

Revista Arqueologia, 16: 71-86, 2003 81


Oliveira, J. E.

marcada pela existência de famílias nu- em profundidade a história do grupo


cleares independentes, ao menos do (Eremites de Oliveira, 1998).
ponto de vista da subsistência, estrutu- Apesar de eles não viverem em gran-
radas em um complexo sistema de pa- des aldeias, mas dispersos por um terri-
trilocalidade, o qual por sua vez sugere tório muito bem conhecido e demarca-
a predominância de uma descendência do, mantiveram um mesmo estilo cerâ-
patrilinear. As famílias poderiam ser mo- mico, uma mesma língua, uma mesma
nogâmicas ou poligâmicas, pois quanto organização social, enfim, um modus vi-
mais esposas, maior o prestígio, a pro- vendi e uma identidade étnica que mar-
dução doméstica e a rede de alianças cam o ethos canoeiro do grupo. Signifi-
mantida pelo homem. Esta constatação ca dizer que essa forma de organização
também buscou descortinar o papel da social também se refletia em sua pró-
mulher guató, há muito omitido por via- pria cultura material, a exemplo da ca-
jantes e etnógrafos. pacidade volumétrica das vasilhas cerâ-
As informações analisadas possibili- micas conhecidas etnograficamente, cujo
tam pensar que em várias regiões do tamanho variava de acordo com o nú-
Pantanal, especialmente em áreas de mero de co-residentes em um assenta-
grandes baías como a Gaíva e a Ubera- mento. Essas vasilhas apresentam se-
ba e rios caudalosos como o Paraguai e melhanças morfológicas com o vasilha-
o São Lourenço, diversas famílias cons- me conhecido para a tradição Pantanal,
tituíram parentelas ligadas por laços de o que não significa que com esta afir-
consangüinidade, afinidade e reciproci- mação se possa lançar mão de analogi-
dade. Elas mantiveram grande mobili- as históricas diretas.
dade espacial como forma de controle Contudo, diante do processo da con-
do território e coesão do grupo. Por isso, quista ibérica e ibero-americana do alto
por séculos os Guató conseguiram man- Paraguai, feita, sobretudo, por bandeiran-
ter o domínio sobre um grande territó- tes e monçoeiros de São Paulo e seus su-
rio. Além disso, como estratégia de ter- cessores na região, gradualmente houve
ritorialidade essas famílias formaram ali- a diminuição do nível de complexidade
anças interétnicas com grupos canoei- da organização sócio-política do Guató.
ros vizinhos, a exemplo dos Guasarapo. Isso também resultou do desmantela-
Essas alianças, articuladas por indivídu- mento de muitas parentelas e diante de
os capazes de liderar grupos locais, fo- um processo de depopulação decorrente
ram constituídas em tempos pré-coloni- de guerras e epidemias. Por conta disso,
ais e perduraram até o período colonial. várias famílias partiram em sua diáspora
Serviram como uma espécie de barreira rumo a direções distintas, porém dando
interétnica contra os europeus e diver- sua contribuição biológica e sociocultural
sos grupos inimigos, destacadamente para a formação da população pantanei-
contra os grupos genericamente chama- ra atual. Hoje em dia, muitos Guató vêm
dos de Guarani, Mbayá-Guaikuru e Paya- ressurgindo em várias sub-regiões do
guá, conforme está claro nos primeiros Pantanal e mesmo em outros países e es-
relatos produzidos pelos conquistadores tados da federação, conforme noticiado
de São Paulo nas décadas de 1710 e pela mídia brasileira.
1720. No último capítulo da Terceira Parte,
Esse estudo se opõe, portanto, à idéia o Capítulo 7, analisou-se ainda a pre-
de que os Guató não constituíram obs- sença dos Guató no curso inferior do
táculo algum para os conquistadores ibé- antigo rio dos Porrudos, atual São Lou-
ricos, contrariando o que há muito vem renço. Comprovou-se a existência um
sendo dito e reproduzido por antropólo- continuum desde o século XVI até os úl-
gos e historiadores que não estudaram timos descendentes do conhecido João

82 Revista Arqueologia, 16: 71-86, 2003


Da pré-história à história indígena: (Re) pensando a arqueologia e os povos canoeiros do pantanal

Casado, João Caetano ou simplesmente Mas hoje em dia a situação é dife-


Caetano, o último cacique do vale do Ca- rente. José faleceu e foi sepultado no
racará. Ele foi o indivíduo com quem Max Morro do Caracará. Veridiano está mui-
Schmidt manteve interlocução em 1910, to doente e foi levado para a Ilha Ínsua.
cujos estudos foram publicados em 1914. O assentamento guató no Morro do Ca-
racará foi abandonado. Júlia (que conti-
Até fins de 1999 havia quatro indí-
nua cega por conta de uma catarata) e
genas na região, distribuídos em dois as-
Vicente ainda estão morando às margens
sentamentos permanentes: um no Mor-
do rio São Lourenço, onde residem a
ro do Caracará, onde moravam os irmãos
mais de duas décadas. O órgão indige-
José e Veridiano; e outro à margem es-
nista oficial, no entanto, nada tem feito
querda do rio São Lourenço, estabeleci- para identificar aquele território de ocu-
mento em que viviam Júlia e Vicente, pação tradicional dos Guató, tampouco
mãe e filho, respectivamente irmã e so- tem demonstrado interesse no assunto.
brinho dos dois primeiros. Nesses locais
Por tudo isso, acredita-se que este
foram realizadas pesquisas etnográficas,
trabalho, composto por três objetos in-
etnoistóricas e etnoarqueológicas, ten-
terdependentes e complementares,
do por último iniciadas investigações ar-
apresenta relevantes contribuições para
queológicas momentaneamente inter- um (re) pensar contínuo sobre a presen-
rompidas. Tratou-se basicamente de al- ça indígena nas terras baixas do Panta-
guns assuntos relevantes à interpreta- nal, especialmente para aqueles pesqui-
ção do registro arqueológico, inferindo sadores ávidos por produzir novos co-
sobre eventuais continuidades e mudan- nhecimentos e rever antigos paradigmas
ças no modus vivendi, quais sejam: ati- e modelos explicativos. Além disso, esta
vidades de subsistência, mobilidade es- é apenas mais uma etapa das pesquisas
pacial, relações com a sociedade envol- no Pantanal. Outros problemas e obje-
vente, distribuição no espaço das estru- tos já estão sendo estudados, desde vez
turas existentes nos assentamentos, pro- contando com uma equipe maior e uma
cessos de formação do sítio arqueológi- melhor infra-estrutura, da qual em prin-
co, vida cotidiana, áreas de atividade e cípio deverão fazer parte arqueólogos e
cultura material. especialistas de áreas afins.

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