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BLAVATSKY
ÍSIS SEM
VÉU
CONDUTORES CEGOS DOS CEGOS
VOLUME I
UNIVERSALISMO
3. CONDUTORES CEGOS DOS CEGOS*
“O espelho da alma não pode refletir ao mesmo tempo a terra e o céu; um desaparece
da sua superfície quando o outro é espelhado em suas profundezas.”
BULWER-LYTTON, Zanoni, livro IV, cap. IX.
“Qui donc t‟a donné la mission d‟annoncer au peuple que la divinité n‟existe pas (...)
quel avantage trouves-tu à persuader à I‟homme qu‟une force aveugle préside à ses
destinées, et frappe au hazard le crime et la vertu?”
ROBESPIERRE, Discours sur Ia Constitution, 7 de maio de 1794.
“Ver vol. I, cap. III, de Ísis sem véu, escrito contra esses espevitadores da Alma” (N. do Org.)
1. Ver De Mirville, Question des esprits [p. 32], e Tables tournantes, etc., de De Gasparin.
A DESCENDÊNCIA DO OROHIPPUS
SEGUNDO HUXLEY
3. Jó, XXXII, 9.
5. Ver Dr. F. R. Marvin, The Philosophy of Spiritualism and the Pathology and Treatment of
Mediomania, Nova York, 1874.
6. Vapereau, Biographie contemporaine art. “Littré”; e Des Mousseaux, Les hauts phénomènes
de la magie (1864), cap. VI, parte 6, p, 421.
Vejamos, então, até que ponto a tão alardeada religião do futuro de Comte é
superior ao Espiritismo e quanto menos provável é que os seus defensores
necessitem o abrigo desses asilos de alienados que eles oficiosamente
recomendam a todos os médiuns com uma solicitude tocante. Antes de
começar, chamemos a atenção para o fato de que três quartos das
características vergonhosas apresentadas pelo Espiritismo moderno provêm
diretamente dos aventureiros materialistas que se pretendem espiritualistas.
Comte pintou ofensivamente a mulher “artificialmente fecundada” do futuro. Ela
não é senão a irmã mais velha do ideal cipriota dos amantes livres. A
imunidade contra o futuro, oferecida pelos ensinamentos dos seus discípulos
lunáticos, impressionou de tal maneira alguns pseudo-espiritistas, que ela os
levou a se constituírem em associações comuniais. Nenhuma, porém, foi de
longa duração. Como a sua característica dominante fosse geralmente um
animismo materialista enfeitado por uma fina camada de filosofia barata,
ataviada com uma combinação de pesados nomes gregos, a comunidade não
podia senão chegar a um fracasso.
Pedimos ao leitor que tenha em mente que não atacamos Comte na qualidade
de filósofo, mas na de pretenso inovador. Na irremediável obscuridade das
suas opiniões políticas, filosóficas e religiosas, frequentemente encontramos
observações isoladas e notas em que uma profunda lógica e uma sensatez de
pensamento rivalizam com o brilho de suas interpretações. Mas estas vos
fascinam como raios de luz numa noite tenebrosa, para vos deixar, no
momento seguinte, mergulhados numa noite ainda mais escura. Se fossem
condensadas e refundidas, as suas muitas obras poderiam produzir, em
conjunto, um volume de aforismos muito originais que dariam uma definição
muito clara e muito engenhosa da maioria de nossos males sociais; mas seria
em vão procurar – seja através dos tediosos circunlóquios dos seis volumes do
seu Cours de philosophie positive, seja nessa paródia contra o clero em forma
de diálogo, o Catéchisme positiviste – uma única idéia suscetível de sugerir um
remédio pelo menos preventivo para esses males. Os seus discípulos sugerem
que as sublimes teorias de seu profeta não se destinam ao vulgo.
Comparando-se os dogmas pregados pelo Positivismo com a sua
exemplificação prática feita pelos seus apóstolos, devemos confessar a
possibilidade de que uma doutrina acromática esteja na base desse sistema.
Enquanto o “grande sacerdote” prega que “a mulher deve deixar de ser a
fêmea do homem”8; enquanto a teoria dos legisladores positivistas sobre o
casamento e sobre a família consiste sobretudo em fazer da mulher a “simples
companheira do homem, desembaraçada de toda função maternal”9; e
enquanto eles preparam para o futuro um substituto por meio da aplicação “à
mulher casta” de “uma força latente”10 – alguns dos seus sacerdotes leigos
pregam abertamente a poligamia e outros afirmam que as suas doutrinas são a
quintessência da filosofia espiritual.
9. Ibid.
10. Ibid.
“A Filosofia Positiva”, continua Littré, “não aceita o ateísmo, pois o ateu não é
uma mente deveras emancipada, mas é, à sua maneira, um teólogo; ele dá a
sua explicação sobre a essência das coisas; ele sabe como elas começaram!
(...) Ateísmo é Panteísmo; esse sistema, contudo, é inteiramente teológico e,
em consequência, pertence às facções antigas.”13
15. Robert Hare, Experimental Investigation of the Spirit Manifestations, etc. Nova York, 1858,
p. 26.
“Há mentes que foram criadas e alimentadas nas Ciências exatas e positivas,
mas que, entretanto, sentem uma espécie de impulso instintivo pela Filosofia.
Elas não podem satisfazer esse instinto a não ser com os elementos que já têm
em mãos. Ignorantes em ciências psicológicas, tendo estudado apenas os
rudimentos da Metafísica, estão dispostas, todavia, a combater tanto essas
mesmas metafísicas quanto a Psicologia, da qual também conhecem tão
pouco. Tendo feito isso, elas se imaginarão fundadoras de uma ciência
positiva, ao passo que a verdade é que elas apenas criaram uma teoria
metafísica nova mutilada e incompleta. Arrogam-se a autoridade e a
infalibilidade que pertencem propriamente às ciências reais, baseadas na
experiência e no cálculo; mas elas são desprovidas dessa autoridade, pois as
suas idéias, tão defeituosas quanto possam ser, pertencem todavia à mesma
classe daquelas que elas combatem. Donde a fragilidade da sua situação, a
ruína final de suas idéias, logo dispersas aos quatro ventos.”16
16. Revue des Deux Mondes, 1º de agosto de 1864, p. 727 e segs. Cf. Des Mousseaux, Les
hauts phénomènes, etc., p. 471.
E agora, que nos seja permitido perguntar, em nome do senso comum, por que
os místicos cristãos seriam tachados de credulidade ou os espiritistas seriam
consignados a Bedlam quando uma intitulada religião que incorpora tais
absurdos revoltantes encontra discípulos até mesmo entre os acadêmicos? –
quando rapsódias insensatas, tais como a que consignamos abaixo, saem da
boca de Comte e são admiradas por seus seguidores: “Meus olhos estão
fascinados; mais e mais eles se abrem a cada dia à coincidência sempre
crescente entre o advento social do mistério feminino e a decadência mental do
sacramento eucarístico (...).” A Virgem já destronou Deus nas mentes dos
católicos do Sul! “O Positivismo realiza a Utopia dos tempos medievais ao
representar todos os membros da grande família como que provenientes de
uma mãe virgem sem esposo (...).” Depois de ter indicado o modus operandi,
ele ainda diz: “O desenvolvimento do novo processo causará logo o advento de
uma casta sem hereditariedade, mais bem adaptada do que a procriação
vulgar ao recrutamento dos chefes espirituais, e mesmo temporais, cuja
autoridade repousará numa origem verdadeiramente superior que não recuaria
diante de uma investigação.”17
Quão natural é que uma filosofia que pode engendrar tal casta de íncubos
didáticos faça exprimir pela pena de um dos seus mais loquazes ensaístas
sentimentos desse gênero: “Esta é uma época triste, muito triste, cheia de fés
mortas e moribundas; recheada de preces ociosas emitidas em vão à procura
dos deuses fugidos. Mas oh! é também uma época gloriosa, cheia da luz
dourada que jorra do sol levante da ciência! Que faremos pelos náufragos da
fé, desprovidos de intelecto, mas (...) que procuram conforto na miragem do
Espiritismo, nos enganos do transcendentalismo ou nos fogos-fátuos do
Mesmerismo? (...)”18.
19. Howitt, History of the Supernatural, vol. II, p. 469. [Cf. Thos. L. Phipson, Phosphorescence,
etc., Londres, 1862.]
21. Referência a um cartão que foi publicado, algum tempo depois, num jornal de Nova York,
assinado pelas três pessoas caracterizadas acima, que se apresentavam como uma comissão
científica formada dois anos antes para investigar os fenômenos espiritistas. A crítica à tríade
foi publicada na revista New Era.
Gostaríamos que não fosse preciso lançar nossas vistas de crítico para além
do círculo de fúteis e de pedantes que impropriamente usam o título de
cientistas. Mas é também inegável que o tratamento de novos assuntos pelas
eminências no mundo científico frequentemente passa sem réplica ainda
quando a merecia. A cautela própria do hábito arraigado de pesquisa
experimental, o avanço tentativo de opinião a opinião, o peso atribuído a
autoridades reconhecidas – tudo isso encoraja um conservantismo do
pensamento que, naturalmente, leva ao dogmatismo. O preço do progresso
científico é muito frequentemente o martírio ou o ostracismo do inovador. O
reformador de laboratório deve, por assim dizer, levar a cidadela do costume e
do preconceito na ponta da baioneta. É raro que uma mão amiga lhe entreabra
a porta dos fundos. Ele pode permitir-se não levar em consideração os
protestos ruidosos e as críticas não-pertinentes do povinho da antecâmara da
ciência; a hostilidade da outra classe constitui o perigo real que o inovador
deve enfrentar e vencer. O conhecimento aumenta rapidamente, mas o grande
corpo de cientistas não está autorizado a confiar nele. Eles fizeram todo o
possível em toda ocasião para arruinar uma descoberta nova e, com o mesmo
golpe, o inventor. O troféu é daquele que o vence por sua coragem individual,
por sua intuição e por sua persistência. Poucas são as forças da Natureza de
que não se zombou no momento em que foram anunciadas e que não foram
postas de lado como absurdas e acientíficas. Ferindo o orgulho daqueles que
nada descobriram, as justas reivindicações dos que sé recusaram a dar
ouvidos até à negação terminaram por se tornar imprudentes e então – ó pobre
Humanidade egoísta! – estes descobridores verdadeiros muito frequentemente
tornaram-se os oponentes e os opressores, por sua vez, de exploradores ainda
mais recentes no domínio da lei natural! Assim, passo a passo, a Humanidade
move-se no círculo restrito do conhecimento, reparando a ciência
constantemente os seus erros e reajustando no dia seguinte as suas teorias
errôneas da véspera. Esse foi o caso, não somente para as questões relativas
à Psicologia, tais como o Mesmerismo no seu duplo sentido de fenômeno ao
mesmo tempo físico e espiritual, mas também para as descobertas diretamente
relacionadas com as ciências exatas – e elas têm sido fáceis de demonstrar.
OS MATERIALISTAS DE LONDRES
Existe uma obra cuja leitura resultaria muito proveitosa nas horas de lazer dos
céticos homens de Ciência. Trata-se de um livro publicado por Flourens, o
Secretário Perpétuo da Academia Francesa, intitulado Buffon: histoire de ses
travaux et de ses idées. O autor aí mostra como o grande naturalista combateu
e finalmente venceu os defensores da teoria dos fac-símiles; e como eles
chegaram a negar tudo o que existe sob o Sol, embora às vezes o corpo
erudito caísse em fúria, numa epidemia de negação. Ele negou Franklin e sua
refinada eletricidade; zombou de Fulton e de seu vapor concentrado; sugeriu
uma camisa-de-força ao engenheiro Perdonnet por ter este pretendido construir
estradas de ferro; desconcertou Harvey; e proclamou Bernard de Palissy “tão
estúpido quanto um dos seus próprios vasos”!
No livro History of the Conflict between Religion and Science, bastante citado, o
Prof. Draper apresenta uma marcante propensão a fazer pender para um lado
o prato da justiça e deixa às portas apenas do clero todos os impedimentos
suscitados ao progresso da ciência. Com todo o respeito e toda a admiração
que merece esse eloquente escritor e cientista, somos forçados a protestar e
dar a cada um o que lhe é devido. Muitas das descobertas enumeradas acima
são mencionadas pelo autor do Conflict. Em cada caso, ele denuncia a
enérgica resistência oposta pelo clero e se mantém calado sobre a oposição
semelhante invariavelmente experimentada por todo novo descobridor por
parte da ciência. A sua reivindicação em nome da ciência de que
“conhecimento é poder” é, sem dúvida, justa. Mas o abuso do poder, provenha
ele de um excesso de sabedoria ou de ignorância, é, no mesmo nível,
censurável em seus efeitos. Além disso, o clero se encontra, agora, reduzido
ao silêncio. Os seus protestos, hoje, seriam muito pouco notados no mundo da
ciência. Mas, enquanto a Teologia está relegada a um segundo plano, os
cientistas agarraram o cetro despótico com ambas as mãos e o usam, como o
querubim a sua espada flamejante do Éden, para manter as pessoas afastadas
da árvore da vida imortal e imersas neste mundo de matéria perecível.
Um dos escritos mais hábeis que devemos ao punho do Prof. Tyndall é o seu
cáustico ensaio sobre o “Materialismo científico”. Ao mesmo tempo, trata-se de
uma obra que, nos anos futuros, o autor, sem dúvida alguma, será a pessoa
indicada para reler a fim de eliminar certas grosserias de expressão
imperdoáveis. Por enquanto, contudo, não nos ocuparemos delas, mas
consideraremos o que ele tem a dizer sobre o fenômeno da consciência. Ele
cita a seguinte pergunta feita por Martineau: “Um homem pode (...) dizer „eu
sinto, eu penso, eu amo‟; mas como é que a consciência se imiscui no
problema?”. E logo responde: “A passagem da parte física do cérebro aos fatos
correspondentes da consciência é inconcebível. Dado que um pensamento
definido e uma ação molecular definida ocorrem simultaneamente no cérebro,
não possuímos o órgão intelectual nem aparentemente nenhum rudimento
desse órgão que nos permitiria passar, por um processo de raciocínio, de um a
outro. Eles surgem juntos, mas não sabemos por quê. Se as nossas mentes e
os nossos sentidos fossem muito extensos, fortificados e esclarecidos de
maneira que pudéssemos ver e sentir as mínimas moléculas do cérebro;
fôssemos nós capazes de seguir todos os seus movimentos, todos os seus
agrupamentos, todas as suas descargas elétricas, se tais coisas existirem; e
estivéssemos nós intimamente familiarizados com os estados correspondentes
do pensamento e do sentimento, nós nos encontraríamos ainda mais longe do
que nunca da solução do problema „Como estão esses processos físicos
ligados aos fatos da consciência?‟. O abismo entre as duas classes de
fenômenos ainda continuaria a ser intelectualmente intransponível”25.
29. C. B. Warring.
OS MANTOS EMPRESTADOS
Num velho livro intitulado Demonologia, o seu autor cita muitos casos em que
remédios importantes, antes tratados com descaso, foram a seguir postos à luz
por circunstâncias fortuitas. Mostra ainda que a maioria das descobertas da
Medicina não é mais do que “a ressurreição e a readoção de práticas muito
antigas”. Durante o século passado, a raiz de feto macho era vendida e
amplamente anunciada como uma panacéia secreta para a cura efetiva da
solitária por uma certa Madame Nouffleur, uma curandeira. “O segredo foi
comprado por Luís XV, por uma soma muito elevada; depois disso os médicos
descobriram que ela era recomendada e administrada para esse mal por
Galeno. O famoso pó do Duque de Portland contra a gota era o diacentaureon
de Célio Aureliano. Mais tarde verificou-se que ele fora usado pelos mais
antigos escritores sobre Medicina, que o haviam descoberto nos escritos dos
velhos filósofos gregos. Aconteceu a mesma coisa com a eau médicinale do
Dr. Husson, que leva o seu nome. Neste famoso remédio contra a gota foi
reconhecido, sob sua nova máscara, o Colchicum autumnale, ou açafrão da
campina, que é idêntico a uma planta chamada Hermodactylus, cujos méritos
como antídoto infalível contra a gota foram reconhecidos e defendidos por
Oribásio, um grande médico do século IV, e por Étio Amideno, um outro
eminente médico de Alexandria (século V).” Posteriormente, esse remédio foi
abandonado e caiu em desgraça apenas porque era velho demais para ser
considerado bom pelos membros das faculdades de Medicina que floresciam
no final do último século!
Mesmo o grande Magendie, o sábio fisiologista, não estava acima do viés que
consiste em descobrir o que já foi descoberto e considerado bom pelos
médicos mais antigos. “O remédio proposto por ele contra a consumpção, a
saber, o uso do ácido prússico, pode ser encontrado na obra de Lineu, o
Amenitates Academicae, vol. IV, em que mostra que a água de louro destilada
foi empregada com grande proveito nos casos de consumpção pulmonar.”
Também nos demonstra que o extrato de amêndoas e de caroços de cerejas
curavam as tosses mais obstinadas. Segundo a observação feita pelo autor de
Demonologia, pode-se, sem temor algum, afirmar que todas “as diversas
preparações secretas do ópio, enaltecidas como descobertas dos tempos
modernos, encontram-se nas obras dos autores antigos”, que estão
desacreditados em nossos dias30.
33. Os rishis eram sete e viveram nos dias que antecederam o período védico. Eram
conhecidos como sábios e reverenciados como semideuses. Haug mostra (Aitareya-
Brâhmanam II, 479, nota) que eles ocupavam na religião bramânica uma posição que
correspondia à dos doze filhos de Jacó na Bíblia Judaica. O clã dos brâmanes descende
diretamente desses rishis.
Em primeiro lugar, a sua cosmogonia prova até que ponto foi errônea a opinião
que prevaleceu nas nações civilizadas de que Brahmâ foi sempre considerado
pelos hindus como o seu chefe ou seu Deus Supremo. Brahmâ é uma
divindade secundária e, como Jeová, é “um ser que move as águas”. Ele é o
deus criador e, nas suas representações alegóricas, possui quatro cabeças,
correspondentes aos quatro pontos cardeais. Ele é o demiurgo, o arquiteto do
mundo. “No estado primordial da criação”, diz Polier, em sua Mythologie des
Indous, “o universo rudimentar, submerso na água, repousava no seio do
Eterno. Emanado desse caos e dessas trevas, Brahmâ, o arquiteto do mundo,
repousava sobre uma folha de lótus, flutuava [movia-se?] sobre as águas,
incapaz de nada discernir entre água e trevas”. Isto é tão idêntico quanto
possível à cosmogonia egípcia, que mostra, nas suas frases de abertura,
Hathor ou a Mãe Noite (que representa as trevas incomensuráveis) como o
elemento primordial, que recobria o abismo infinito, animado pela água e pelo
espírito universal do Eterno, que habitava sozinho no caos. Como nas
escrituras judaicas, a história da criação abre-se com o espírito de Deus e sua
emanação criadora – uma outra divindade35. Percebendo um estado de coisas
tão lúgubre, Brahmâ, consternado, assim se exprime: “Quem sou? Donde
vim?”. Ouve então uma voz: “Dirige tua voz a Bhagavat – o Eterno, conhecido
também como Parabrahman”36. Brahmâ, abandonando a sua posição
natatória, senta-se sobre o lótus numa atitude de contemplação e medita sobre
o Eterno, que, satisfeito com essa prova de piedade, dispersa as trevas
primordiais e abre o seu entendimento. “Depois disso, Brahmâ sai do ovo
universal [o caos infinito] sob a forma de luz, pois o seu entendimento agora
está aberto, e se põe a trabalhar; move-se sobre as águas eternas, com o
espírito de Deus nele; em sua capacidade de ser que move as águas ele é
Nârâyana.”
35. Não nos referimos à Bíblia aceita ou corrente, mas à Bíblia judaica verdadeira explicada
cabalisticamente.
36. [M. E. de Polier, La Mythologie des indous (Paris, 1809), vol. I, p. 162-63.]
O lótus, a flor sagrada dos egípcios, como também para os hindus, é o símbolo
tanto de Horus quanto de Brahmâ. Nenhum templo do Tibete ou do Nepal
deixa de apresentá-lo; e o significado desse símbolo é extremamente
sugestivo. O ramo de lírios que o arcanjo oferece à Virgem Maria nos quadros
da “Anunciação” tem, no seu simbolismo esotérico, exatamente o mesmo
significado. Remetemos o leitor à obra de Sir William Jones37. Para os hindus,
o lótus é o emblema do poder produtivo da Natureza, pela ação do fogo e da
água (o espírito e a matéria). “Eterno!”, diz uma estrofe da Bhagavad-Gîtâ [cap.
XI], “eu vejo Brahmâ, o criador, entronizado em ti sobre o lótus!” e Sir W.
Jones38 nos diz que as sementes do lótus contêm – mesmo antes de
germinarem – folhas perfeitamente formadas, formas miniaturais daquilo em
que, como plantas perfeitas, elas se transformarão um dia; ou, como diz o autor
de The Heathen Religion – “a Natureza nos dá assim um espécime da pré-
formação das suas produções”; acrescentando que “a semente de todas as
plantas fanerógamas que trazem flores propriamente ditas contêm um embrião
de plantas já formado” 39.
37. Dissertations... relating to the History and Antiquities... of Asia, 1793, p25.
38. [The Works of Sir William Jones, 1799, vol. VI, p. 320.]
Todos estes fatos tendem a provar o parentesco comum deste símbolo nos três
sistemas religiosos – hindu, egípcio e judaico-cristão. Em qualquer lugar em
que o lírio da água mística (lótus) seja representado, ele significa a emanação
do objetivo para fora do oculto ou do subjetivo – o pensamento eterno da
Divindade sempre invisível que passa do abstrato ao concreto ou forma visível.
Assim, logo que as trevas foram dissipadas e que “havia luz”, o entendimento
de Brahmâ foi aberto, e ele viu no mundo ideal (até então eternamente oculto
no pensamento Divino) as formas arquetípicas de todas as coisas infinitas
futuras que devem ser chamadas à existência e, assim, tornadas visíveis.
Nesse primeiro estágio da ação, Brahmâ ainda não se tornou o arquiteto, o
construtor do universo, pois lhe será preciso, como um arquiteto, familiarizar-se
primeiramente com o plano e compreender as formas ideais que repousavam
no seio do Uno Eterno, tal como as folhas futuras do lótus estão ocultadas na
semente dessa planta. E é nessa idéia que devemos procurar a origem e
explicação do versículo da cosmogonia judaica em que se lê: “E Deus disse:
Produza a terra (...) árvores frutíferas que dêem fruto, segundo a sua espécie,
e que contenham a sua semente em si mesmas”40. Em todas as religiões
primitivas, o “Filho do Pai” é o Deus Criador – isto é, Seu pensamento tornado
visível; e antes da era cristã, desde a Trimûrti dos hindus até as tríades das
escrituras judaicas, segundo a interpretação cabalística, todas as nações
velaram simbolicamente a trina natureza de sua Divindade suprema. No credo
cristão vemos apenas o enxerto artificial de um ramo novo num tronco velho; e
a adoção pelas Igrejas grega e romana do símbolo do lírio, que o arcanjo
segura no momento da Anunciação, mostra um pensamento que possui
precisamente a mesma significação simbólica.
40. [Gênese, I, 11.]
41. Brahmâ não cria a Terra, Mrityuloka, mais do que o resto do universo. Tendo-se
desenvolvido a partir da alma do mundo, antes separado da Primeira Causa, ele por sua vez
faz emanar de si toda a Natureza. Não paira sobre ela, mas mistura-se a ela; e Brahmâ e o
universo formam um Ser, de cada partícula é em sua essência o próprio Brahmâ, que procede
de si mesmo. [Burnouf, Introduction à I’ historie du bouddhisme indien, p. 118.]
“Eu, Zuane Mocenigo, filho do muito ilustre Ser Marcantonio, denuncio à vossa
muito reverenda paternidade, para obedecer à minha consciência e a mando
do meu confessor, que eu ouvi dizer por Giordano Bruno, nas muitas vezes em
que ele comigo conversava em minha casa, ser uma grande blasfêmia os
católicos dizerem que o pão se transubstancia em carne; que ele se opõe à
Missa; que nenhuma religião o satisfaz; que Cristo era um desventurado (un
tristo), e que, se realizava obras perversas para seduzir o povo, poderia ele
muito bem predizer que Ele deveria ser empalado; que não há distinção de
pessoas em Deus, e que haveria imperfeição em Deus; que o mundo é eterno,
e que há infinitos mundos, e que Deus os faz continuamente, porque, diz, Ele
deseja tudo o que Ele pode; que Cristo fez milagres aparentes e que ele era
um mago, como também os apóstolos, e que ele tinha em mente fazer tanto
quanto ou mais do que eles; que Cristo mostrou relutância em morrer e evitou a
morte tanto quanto a ela Ele pôde se furtar; que não existe nenhum castigo
para o pecado, e que as almas criadas por ação da Natureza passam de um
animal a outro, e que assim como os animais brutos nascem da corrupção,
também assim os homens quando eles renascem após a dissolução”.
43. [Domenico Berti, Vita di Giordano Bruno da Nola (Florença, Turim, Milão, 1868), p. 327-28.]
“Eu creio, em suma, num universo infinito, isto é, num efeito do poder divino
infinito, porque estimei que seria indigno da bondade e do poder divinos que,
sendo eles capazes de produzir além deste mundo outros e infinitos mundos,
pudessem produzir um mundo finito. Assim, eu declarei que há mundos
particulares infinitos semelhantes ao da Terra, que, com Pitágoras, creio ser
um astro de natureza semelhante à da lua, à dos outros planetas e à dos
outros astros, que são infinitos; e creio que todos esses corpos são mundos,
que eles são inumeráveis, e que isso constitui a universalidade infinita num
espaço infinito, e se chama universo infinito, no qual existem mundos sem
número, de maneira que há uma dupla espécie de grandeza infinita do universo
e de multidão de mundos. Indiretamente, pode-se considerar que isto repugne
à verdade de acordo com a verdadeira fé.
Mas vemos agora que seu herói de uma hora não é nem ateu, materialista,
nem positivista, mas simplesmente um pitagórico que ensinou a filosofia da
Ásia Central, e se vangloriou de possuir os poderes dos mágicos, tão
menosprezados pela própria escola de Draper! Nada mais divertido do que
esse contretemps aconteceu depois que a suposta estátua de São Pedro foi
descoberta por arqueólogos irreverentes que disseram tratar-se de nada
menos do que Júpiter Capitolino, e depois que a identidade do Buddha com o
São Josafá católico foi satisfatoriamente demonstrada.