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80 RAE-Revista de Administração de Empresas | FGV-EAESP

PENSATA
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020140108

MERITOCRACIA
E SOCIEDADE BRASILEIRA

ABAIXO A MERITOCRACIA

“Abaixo a meritocracia” é uma das frases que aparecem com frequência em cartazes que ilus-
tram as demandas de diferentes categorias profissionais em greve e outras demandas sindicais
no Brasil. Está, portanto, longe de ser uma novidade. O interessante, no momento atual, é que
essa demanda – “abaixo a meritocracia” – se reproduz simultaneamente a uma mudança no dis-
curso político partidário, administrativo e institucional brasileiro, que justamente quer promover
o que ela quer extinguir. As atuais e frequentes menções à meritocracia no discurso de autorida-
des governamentais, de políticos e de empresários invocando a necessidade de “implantação da
meritocracia” (termo comumente adotado), nas várias esferas da sociedade brasileira, são ilus-
trativas dessa mudança. Essa transformação discursiva faz-se acompanhar de movimentos em
inúmeras organizações, públicas e privadas, de médio e grande portes, cuja alta administração
tem encarregado, a partir de meados da primeira década do século XXI, a sua área de Recursos
Humanos (RH) e/ou de Desenvolvimento Organizacional (DO) de “implantar a meritocracia” em
seus ambientes de trabalho. Essa tarefa não deixa de ser irônica, porque grande parte dessas
organizações já possui sistemas de avaliação de desempenho, um dos instrumentos mais usa-
dos para se medir e reconhecer o mérito, com promoções, aumentos salariais e bônus como con-
sequência dos resultados. Se considerarmos que avaliar é atribuir valor, mérito aos resultados
obtidos, o que a expressão ”implantar uma meritocracia” quer efetivamente dizer? Que fatores
encontram-se na raiz dessa mudança de discurso político, administrativo e empresarial e nessa
pressão pela “implementação de uma meritocracia” institucional?
Nessa oportunidade, quero explorar o que subjaz a essa demanda por meritocracia nas or-
ganizações brasileiras, tanto nas privadas como nas públicas, tanto da administração direta
LÍVIA BARBOSA como da indireta, e os discursos que se estruturam em torno da sua implementação.
Pesquisadora na Pontifícia O material qualitativo utilizado nesta análise advém da minha experiência como pesquisa-
Universidade Católica do Rio de Janeiro
e Diretora da Socius Consultoria Ltda. –
dora do tema meritocracia há mais de uma década. Durante todo esse período, tive contatos fre-
Rio de Janeiro – RJ, Brasil quentes com profissionais de RH e DO, realizei grupos focais com funcionários de diferentes ní-

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veis hierárquicos (inclusive diretoria e alta ses europeus e os Estados Unidos livra- cionam. Mas em que consiste esse proces-
gerência) e entrevistas individuais, exami- ram-se de seus spoil systems (assim cha- so, do ponto de vista prático?
nei material institucional e analisei políti- mados os sistemas de distribuição de Para a alta administração, a implanta-
cas administrativas concernentes à avalia- cargos e funções públicas pelos políticos e ção da meritocracia é a solução imaginada
ção de desempenho. partidos vencedores das eleições aos com- para o aumento dos resultados organizacio-
Baseada nesse conjunto de dados, cir- panheiros e amigos), ainda no século XIX, nais e a sobrevivência no mercado. É mais
cunscrevi minha análise ao que denomino por pressão social, ou mesmo antes dis- uma questão de estratégia do que de valo-
“meritocracia institucional”, ou seja, o prin- so, como consequência de revoluções que res. A forma de se “chegar lá” é estabelecer
cípio consagrado nas organizações moder- aboliram os sistemas de privilégios exis- com clareza e cobrar com firmeza o quanto
nas de que a admissão, a mobilidade e a tentes, caso da França, entre nós, a meri- cada funcionário entrega, com base no que
ascensão profissional das pessoas devem tocracia constituiu-se e constitui-se ain- foi previamente acordado com os seus su-
ser pautadas pelo seu desempenho na rea- da como um critério formal e eventual em periores, e alinhar os resultados individuais
lização das tarefas que lhes foram alocadas permanente disputa com o nepotismo, o com o planejamento estratégico da organi-
nas organizações. Essa lógica fundamen- fisiologismo e os privilégios corporativos. zação. Nesse processo de implantação da
ta-se na ideia de que, com base em crité- Expressões e eufemismos do tipo “minis- meritocracia, a reformulação do sistema de
rios de seleção, cujas regras são previa- tro da cota do presidente”, “cargo ou mi- avaliação de desempenho é fundamental, e
mente estabelecidas e conhecidas de todos nistério técnico”, “política de reciprocida- dois aspectos são centrais. Primeiro, tornar
os participantes, como a exigência de um de”, “é dando que se recebe”, “QI (quem as metas as mais objetivas e mensuráveis
tipo específico de qualificação, se estabe- indica)”, “entrar pela janela”, ”amigos do possíveis. Segundo, tornar clara a articula-
lece uma situação igualitária inicial que ga- rei”, ”apadrinhados”, “afilhados”, entre ção entre o trabalho que se realiza e a sua
rante uma igualdade de oportunidade para outros, são utilizados frequentemente no contribuição para o resultado final da orga-
todos naquela circunstância. As diferencia- linguajar político, organizacional e coti- nização.
ções que resultarem desse momento inicial diano para ilustrar as lógicas e as práticas O custo da meritocracia, entendido
são interpretadas como consequência do de preenchimento, promoção e reconheci- como a quantidade e a qualidade da rea-
conjunto de habilidades e talentos de cada mento de cargos e funções que as pessoas ção dos funcionários a essa mudança de
um, medido por meio de sistemas de ava- julgam ser prevalecentes entre nós, tanto patamar em relação aos resultados que en-
liação de desempenho, como provas teóri- nas organizações públicas como privadas, tregam, é um fator que preocupa a alta ad-
cas e práticas, análise de currículo, entre- e que soam, pelo menos discursivamente, ministração, principalmente nas empresas
vistas, entre outros. de maneira condenatória. públicas. A cobrança efetiva, a responsabi-
Nesse sentido, não serão analisados Nesse contexto, o que significa a ta- lização pela não entrega dos resultados e a
aspectos históricos, conceituais e socioló- refa, proposta por inúmeras organizações diferenciação por meio do reconhecimen-
gicos mais amplos da discussão sobre me- ao RH e ao DO, de implantarem uma meri- to do desempenho individual interferem na
ritocracia no Brasil, nem os fundamentos tocracia ou uma cultura de meritocracia e zona de conforto das organizações brasilei-
morais do merecimento individual, como responsabilização? Significa admitir que, ras e nas relações com os sindicatos. Em
explorado nas obras dos filósofos políti- embora existam sistemas de avaliação de algumas empresas, conceitos como inova-
cos contemporâneos John Rawls, Ronald desempenho, as pessoas julgam que não ção e criatividade são, também, associados
Dworkin, Amy Gutmann, entre outros. Fica- existe uma meritocracia. Ou seja, os prin- à implantação de uma cultura meritocráti-
rá de fora, também, a forma como a meri- cípios que ela esposa não são legitimados, ca. Mas, quaisquer que sejam as adições,
tocracia é abordada no âmbito do mundo segundo alguns, nas práticas organizacio- a meritocracia é vista como uma das chaves
acadêmico brasileiro, comparativamente a nais. Se assim o fossem, não haveria neces- para o enfrentamento da concorrência e da
outros países. sidade de se demandar a sua implantação. globalização, as alavancas por trás dessa
Essa proposta de implantação sugere, proposta de implantação.
Discursos sobre meritocracia no também, que a meritocracia é algo extrín- No âmbito de RH e DO, a implantação
Brasil seco à organização, algo que deve ser trazi- de uma cultura meritocrática e de respon-
do de fora para dentro, não sendo intrínse- sabilização – termo que todos usam com
Historicamente, a prática e a ideologia me- co ao tecido organizacional brasileiro. Daí a muito cuidado, por suas possíveis relações
ritocrática nunca foram uma demanda da necessidade de se “adotar/implantar uma com a noção de culpa e punição – é vista
sociedade brasileira. Enquanto vários paí- cultura meritocrática”, como muitos men- como um processo complexo de “mudança

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de cultura” profundo. Certamente que este drinhamento e a acomodação, sem qual- brasileira, na qual ela não é um valor englo-
passa pelo foco em resultados, pelos geren- quer tipo de responsabilização individual. bante. É um discurso crítico da cultura “pa-
tes assumirem os seus papéis de chefes e Estabelecer a meritocracia, portanto, é vis- ternalista brasileira” que, segundo ele, se
cobrarem seus subordinados – tarefa reco- to por alguns como necessário para a so- perpetua nas organizações e promove valo-
nhecidamente difícil tanto no âmbito das brevivência das organizações. Por isso, ela res inversos aos meritocráticos. Apadrinha-
organizações públicas como no das empre- tornou-se mais que um discurso, tornou-se mento, relações pessoais, falta de cobrança,
sas privadas. Nas primeiras, a variabilidade uma cobrança dos escalões superiores que QI, nepotismo, entre outros, são práticas so-
da posição de chefe, devido às injunções funciona como uma pecking order, do go- ciais utilizadas como ilustrações desse cará-
políticas, faz com que os que detêm, no pre- verno federal para os altos escalões das or- ter paternalista e das suas consequências.
sente, posição de chefia temam pelo futu- ganizações públicas, desses para as suas Embora o discurso meritocrático saúde a ini-
ro, caso avaliem negativamente os seus su- diretorias de RH e daí para o corpo de fun- ciativa da alta administração, de RH e/ou
bordinados atuais. Eventualmente, alguns cionários. Nas empresas privadas, o senti- DO, ele não confia inteiramente nas condi-
deles poderão tornar-se chefes um dia. Nas do é o mesmo: da direção ou do dono/fun- ções e na “vontade política” existentes para
segundas, o peso das relações sociais torna dador para RH e DO e daí para o corpo de implementar verdadeiramente uma prática
difícil fazer cobranças, devido à valorização funcionários. meritocrática, na medida em que quem se
do clima organizacional. E, em ambas, a ló- Um outro fator invocado, para a neces- propõe fazê-lo encontra-se permeado e in-
gica de justificação de desempenho legiti- sidade de implantação de uma meritocra- fluenciado por essas mesmas práticas.
ma todo e qualquer resultado e tira o peso cia, é a necessidade de se reterem novos Todos reconhecem que nenhuma or-
da responsabilidade dos ombros dos fun- talentos. Segundo os profissionais de DO ganização no mundo é inteiramente me-
cionários. Relatos de gerentes indicam que e RH, a famosa geração millenium não está ritocrática. Capital de relacionamento, in-
afetar o clima organizacional é sinônimo de disposta a aceitar os “velhos esquemas”, dicações e política organizacional estão
afetar a sua imagem de bom gestor e líder, ela quer desafios, “ver as coisas acontece- presentes em todos os países. As diferen-
colocando em risco a sua própria posição. rem” e o reconhecimento do que fazem. ças entre o que acontece “lá” e no Brasil
Para DO e RH, entretanto, uma mudan- Nesse contexto organizacional, de de- são a frequência e a qualidade dessas si-
ça cultural passa, também, pela neutraliza- manda de uma meritocracia vinda de cima, tuações e as consequências que se seguem
ção do paternalismo; pelo reconhecimento estruturam-se, basicamente, três discur- quando elas não dão os resultados espe-
“dos que fazem” em detrimento dos “en- sos, no âmbito dos funcionários das dife- rados. Lá elas são enfrentadas. Os Esta-
costados e dos que não trabalham”; pelo rentes organizações, que denomino meri- dos Unidos, a Inglaterra e mesmo a França
fim da promoção por senioridade, tão de- tocrático, antimeritocrático e “por que isso são citados como referências de socieda-
fendida pelos sindicatos, principalmente agora”? Eles representam tomadas de posi- des meritocráticas, mesmo com as possí-
nas organizações públicas; pelo fim da ló- ções distintas em face da demanda da alta veis distorções que possam ocorrer. O que
gica de igualdade substantiva na distribui- administração e fazem-se presentes em to- os adeptos do discurso meritocrático apon-
ção dos recursos alocados para promoção, das as organizações analisadas. As diferen- tam é o “despudor” existente entre nós.
que divide o montante disponível em par- ças existentes entre as organizações públi- O cerne do discurso meritocrático é a
tes iguais, sem hierarquizar por rank; pelo cas e privadas são mais de ênfase em certos importância atribuída ao valor do reconhe-
feedback claro e constante aos funcioná- aspectos e de distribuição interna desses cimento dos resultados individuais. O não
rios; pela arte de compatibilizar resultado discursos entre os distintos segmentos da reconhecimento ou a premiação indevida,
objetivo sem perder o foco nas habilidades hierarquia organizacional do que efetiva- segundo seus partidários, gera insatisfação
e competências, entre outros. mente de substância. Ao apresentar esses e desestímulo. Induz à acomodação, pro-
Independentemente do que a implan- discursos, portanto, não farei distinções, move injustiças e a desmoralização das co-
tação da meritocracia implica, em relação a procurando centrar-me nas suas caracterís- branças e dos planejamentos previstos na
custos organizacionais, porém, tanto a alta ticas básicas. organizações. Nesse discurso, a meritocra-
gerência como o RH e o DO a consideram cia é um estímulo, um instrumento para se
inevitável, porque se instalou no País um Discurso meritocrático fazer mais e melhor. Esse estímulo não é só
novo ritmo competitivo, que não comporta pecuniário, mas é, também, simbólico. As
mais os antigos métodos de trabalho e im- O discurso meritocrático é minoritário na pessoas sentem-se recompensadas pelos
põe uma lógica meritocrática que estimule maioria das organizações, refletindo a posi- esforços despendidos e gratificadas pelo
e reconheça os funcionários, e não o apa- ção histórica da meritocracia na sociedade seu reconhecimento público.

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Os meritocráticos argumentam que a neira implícita. Ela não quebra o “bom am- O discurso antimeritocrático é anta-
zona de conforto, gerada pela cultura pa- biente de trabalho”, pois isso já aconteceu. gônico, também, a qualquer inovação e
ternalista brasileira, que não cobra resulta- Trabalhar e não ser reconhecido, e ver o co- proposta de mudança organizacional que
dos e não institui consequências palpáveis lega “ganhando sem ter feito nada”, azeda implique alteração do status quo. “Não vai
para aqueles que “não entregam” o previa- igualmente as relações. dar certo”, “Isso já foi feito”, “Não é pos-
mente estabelecido, é um círculo vicioso sível”, entre outros, são mantras. A razão
que precisa ser quebrado. Da mesma forma Discurso antimeritocrático desse antagonismo nasce da síndrome de
que não existe bom resultado sem recom- “reivindicações sucessivas”. Para qualquer
pensa, não existe resultado ruim sem con- O discurso antimeritocrático caracteriza-se mudança acontecer e as coisas melhora-
sequência. Por essa última, não se enten- por ver na meritocracia uma ameaça exter- rem, faz-se necessária uma série de trans-
de necessariamente punição, o que seria o na trazida pelo neoliberalismo, globaliza- formações anteriores, que, como não acon-
caso extremo, mas gestão de pessoas. Utili- ção e elites, entre outros. Além de exter- teceram, impedem as mudanças sugeridas.
zar os resultados para treinar e adequar me- na, é um tipo de imposição cultural. O fato Como muitas dessas reivindicações esbar-
lhor as pessoas. de ela existir e ser adotada em outros paí- ram em dificuldades que estão além da
Outro aspecto criticado é a utilização ses não significa que ela o deve ser aqui. possibilidade de a gestão, ou mesmo a or-
da senioridade como mecanismo de avanço Se, nesse contexto, esse “outro” é negati- ganização, resolver, o discurso termina por
na carreira, permitindo que, independente- vo, ele se torna positivo quando querem in- privilegiar o status quo, mesmo que expli-
mente dos resultados e do esforço de cada dicar que “ela (a meritocracia) lá também citamente o critique de maneira abstrata e
um, todos sejam beneficiados. O resultado tem problemas ou não funciona”. Ela é vis- formal.
é um quadro desalentador. Por que alguém ta como desagregadora do ambiente de tra- O valor enfatizado pelo discurso anti-
vai se esforçar mais do que o mínimo neces- balho, pois estabelece a competição onde meritocrático é a senioridade, tratada como
sário? Cobrar, estipular consequências, es- ela não existia. Ela é equivocada, pois tro- sinônimo de experiência. A sua valoriza-
tabelecer metas são ações que impactam ca quantidade por qualidade. Ela é injusta, ção é entendida como uma forma de reco-
as relações de trabalho, e o “brasileiro” pri- porque não reconhece e retribui o trabalho nhecimento da empresa pela “dedicação”
vilegia o “bom clima organizacional”, que de todos. Em suma, ela é uma nova forma do funcionário, categoria pouco clara, mas
se resume, na prática, a cada um cuidar de de exploração e de estresse organizacio- que contém “assiduidade e cumprimen-
si e a organização de todos. nal. O discurso antimeritocrático clama por to das obrigações”, sem especificações. O
Para esse grupo, avaliar desempenho mais benefícios para todos e vê no trabalho grande mérito da senioridade é o seu papel
e atribuir mérito não é tecnicamente pro- diário de cada um a contrapartida do salá- na garantia da carreira, é a sua capacidade
blemático, na medida em que todos sabem rio. A meritocracia é uma cobrança extra in- de levar o funcionário até o seu final, inde-
quem faz e quem não faz, quem é compe- devida. Seus adeptos antagonizam, portan- pendentemente do seu maior ou menor de-
tente e quem não é no seu trabalho. Ter sis- to, qualquer cobrança maior de resultados sempenho. A partir do momento de ingres-
temas que mensurem adequadamente o e desempenho dos funcionários. so na organização, a carreira passa a ser
que deve ser feito é, portanto, fundamen- A responsabilização dos indivíduos é entendida como uma promessa organiza-
tal, pois dificulta as acusações de injustiças quase sempre rejeitada, recaindo toda a cional, um direito adquirido.
e as cobranças invertidas, dos funcionários “culpa” pelos resultados em uma variável Os adeptos do discurso antimeritocrá-
em relação aos gerentes, pelos resultados. externa ao sujeito, que varia da gerência di- tico professam uma lógica isonômica: o que
O discurso meritocrático utiliza sempre reta ao governo da ocasião, todos respon- se dá a um tem que se estender a todos, e
exemplos limites e contrastantes para mar- sáveis por fornecerem os instrumentos ne- não legitimam o mérito alheio como mere-
car posição, mas admite a complexidade de cessários para que se faça o que tem que cedor de um reconhecimento diferenciado,
se avaliarem muitos casos concretos, prin- ser feito. Habilidades como proatividade, principalmente se esse consiste em diferen-
cipalmente aqueles mais definidos pelas iniciativa, comprometimento, que pontuam ças pecuniárias. Por isso, são adeptos da
nuances do que pelos contrastes. o discurso meritocrático e dos gestores, es- distribuição equitativa de qualquer verba
A competição, sempre arguida pelos tão ausentes. No seu lugar, estão presentes adicional alocada para premiar o bom de-
demais grupos como uma consequência dedicação e amor à camisa, principalmen- sempenho. O lema é: um pouco para todos
negativa da meritocracia, não é percebida te entre funcionários públicos e de ex-esta- é sempre melhor do que mais para alguns.
dessa maneira pelos meritocráticos. Segun- tais, anos de casa, experiência e carreira, Embora seja um discurso extremamen-
do eles, ela já existe de fato, embora de ma- entre outros. te crítico da meritocracia e invoque com fre-

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quência a oposição justo e injusto nesse do “para que isso agora?” preferem asse- nue. São grandes críticos do estresse orga-
contexto, não inclui, como parte da sua ar- gurar “um pouco para todos, e não mais só nizacional contemporâneo, e a meritocra-
gumentação na busca por mais justiça e di- para alguns”. O que, para o discurso meri- cia seria mais uma instância dele, e têm no
reitos dos funcionários, a oposição às prá- tocrático, pode soar como um desestímulo, passado uma referência importante. Exem-
ticas nepóticas, corporativas, relacionais e uma injustiça, para esse discurso soa justa- plos sobre uma época pretérita são sempre
fisiológicas que permeiam a sociedade bra- mente como o contrário. invocados para servirem de exemplo do que
sileira e muitas das nossas organizações. Os valores básicos do “para que isso deveria ser feito. Ressentem-se com o ritmo
Ao contrário, não as menciona espontanea- agora?” são a “harmonia social” e o “traba- atual “do mercado” e com as “crescentes
mente e, quando é instado a responder so- lho em equipe”, os aspectos que serão afe- demandas organizacionais”. Qualquer ino-
bre elas, recorre à síndrome das reivindica- tados pelas hierarquias estabelecidas com vação é vista com suspeita, indicando um
ções sucessivas para explicá-las. base no desempenho. Esse não é um dis- certo cansaço das novas tecnologias geren-
curso que intencionalmente busca um igua- ciais, sempre promovendo novas mudan-
Discurso “para que isso agora”? litarismo social, mas que enfatiza o prima- ças, quando a última nem acabou de ser
do das relações pessoais, como uma forma adotada. Daí o tom do “mais uma” ou do
Esse discurso é fundamentalmente pratica- de acomodação e mediação das diferenças “por que isso agora?”.
do por aqueles cuja prioridade é a manu- individuais, que devem ser reconhecidas e
tenção do que chamam “um bom ambiente legitimadas em face das demandas da or-
de trabalho”. Ele tem mais pontos em co- ganização. Seus adeptos arguem, também, OBSERVAÇÕES FINAIS: A
mum com o discurso antimeritocrático do em favor da senioridade, da “dedicação” e
MERITOCRACIA VEIO PARA
que com o meritocrático, embora seus obje- do “amor à camisa”, valores fundamentais
tivos sejam menos explicitamente políticos que tornam as pessoas merecedoras de re- FICAR?
e reivindicatórios. conhecimento e, portanto, de se moverem
Para os adeptos desse discurso, a me- na própria carreira. Os articuladores des- Com base na demanda da implantação de
ritocracia criaria uma competição negati- se discurso, como os do antimeritocrático, uma meritocracia nas organizações brasilei-
va entre as pessoas. As futuras cobranças, toleram bem a invasão da vida privada na ras e das posições dos três discursos, que
responsabilizações e culpabilizações cria- vida organizacional, mas por motivos dife- interpretações podemos encaminhar acer-
riam conflitos abertos que terminariam com rentes. No caso dos antimeritocráticos, é ca da apropriação da lógica meritocratica
o bom ambiente corporativo e afetariam a um sentimento de posse em relação à orga- entre nós? Podemos ver, nessa mudança
produtividade e os bons resultados. nização, principalmente no caso das públi- discursiva e tentativas de implementação
Os defensores do “para que isso ago- cas. A empresa é mais deles do que da so- prática, um passo em relação à consolida-
ra?” partem do pressuposto de que todos ciedade e dos acionistas. No caso dos “para ção de uma ideologia meritocrática nas or-
trabalham, são igualmente competentes e que isso agora?”, o fundamento encontra- ganizações brasileiras, que terá como con-
dedicados, portanto não há razão para se se no vínculo moral que mantêm com a or- sequência a quebra de outros critérios de
diferenciarem uns e outros. Utilizam muito ganização, assentado em um tipo de “lei de hierarquização que as perpassam? Ou essa
expressões do tipo “equipes de alta perfor- reciprocidade”, que funciona em termos de nova demanda configura-se, apenas, como
mance”, “times de alto desempenho” para débitos e créditos. A dedicação dos funcio- uma estratégia de ocasião, uma forma de
justificarem a sua posição em relação à me- nários é compensada pela compreensão, enfrentar a concorrência e a globalização,
ritocracia. Segundo eles, ela não dá conta por parte da organização, das eventualida- como sugerem os objetivos que a alta ge-
dos casos mais comuns, das pequenas di- des que surgem na vida cotidiana. Já no dis- rência associa à implantação da meritocra-
ferenças de desempenho entre uma pes- curso meritocrático, essa mesma invasão cia? Ou, ainda, o acirramento dessa cobran-
soa e outra, mas apenas dos casos limites surge como um sintoma do paternalismo ça pela meritocracia é apenas mais uma das
e contrastantes, os exemplos mais utiliza- brasileiro e, como tal, uma separação mais estratégias de acusações políticas que cos-
dos pelo discurso meritocrático. Se os sis- rígida entre a vida privada e o mundo públi- tumam vir a reboque das eleições, desapa-
temas de avaliação não permitem estabele- co do trabalho é reivindicada. recendo logo a seguir?
cer com segurança quem fez mais e melhor Embora muitos das pessoas que ado- O quadro atual, embora sugestivo, não
que o outro, como premiar um, e não am- tam esse discurso concordem com que me- vem acompanhado de uma demanda efeti-
bos? Como hierarquizar? Semelhantemente tas e resultados devem ser estabelecidos e va por parte da sociedade nem do público
ao discurso antimeritocrático, os adeptos cobrados, a cobrança admitida é muito tê- interno das organizações por meritocracia,

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muito pelo contrário. A própria frase “abai- responsabilização pelos próprios resulta- sempenho individual, definido no interior
xo a meritocracia”, com a qual iniciei esta dos e os privilégios não parecem causar da- de um enquadramento institucional especí-
pensata, e a predominância dos discursos nos? Não são interpretados como subtrain- fico. Isso significa um impacto na zona de
antimeritocrático e “do por que isso ago- do da cidadania e dos direitos individuais, conforto de todos, e não apenas de alguns.
ra?” no âmbito das organizações sugerem e contrariando um estado igualitário que É justamente essa seletividade que volta-
isso. As vozes das ruas, em junho de 2013, o discurso antimeritocrático e do “por que mos a observar. Clamamos por mais meri-
também não ser fizeram ouvir de modo con- isso agora?” afirma privilegiar? Questões de tocracia em algumas áreas, mas não ataca-
sistente sobre o tema e, passados alguns difíceis respostas, mas que merecem algu- mos o nosso spoils system e os privilégios
meses, já se calaram. Se acrescentarmos mas sugestões para reflexão. que lhe são atrelados. Embora a alta admi-
a isso um sobrevoo sobre a nossa história, Primeiro, no Brasil, prevalece um tipo nistração das organizações esteja “dispos-
verificaremos que essa demanda, de cima de individualismo de semelhança, como di- ta” a alterar a zona de conforto dos funcio-
para baixo, não é uma novidade entre nós, ria Simmel (1971), que rejeita a construção nários, públicos e privados, em prol de mais
brasileiros. Ela já aconteceu outras vezes. A de hierarquias que enfatizem as distinções resultados, não há menção de transforma-
introdução de critérios meritocráticos, prin- entre as pessoas. É justamente isso que a ções de suas práticas internas. Consideran-
cipalmente na esfera pública, sempre foi ideologia meritocrática visa promover no do-se o caráter extremamente hierárquico,
uma outorga do Estado para a sociedade, âmbito das organizações. Após um suposto personalista, relacional e não transparente
como no caso dos concursos públicos, que estado igualitário inicial, dado no momen- da gestão no Brasil, parece que queremos
inicialmente sofreram uma grande reação to da admissão para os diferentes cargos, continuar com a lógica de combinar siste-
dentro do próprio governo, entre os políti- não se legitima o resultado alheio como mas modernos com tradicionais. O uso de
cos e no interior das organizações. Nunca fonte de hierarquização e objeto de reco- princípios não meritocráticos para a ocupa-
foi uma demanda da sociedade. Posterior- nhecimento, mesmo que medido por crité- ção de cargos na diretoria e nos conselhos
mente, esses critérios outorgados pelo go- rios previamente acordados, conhecidos e administrativos, a existência de carreiras
verno cristalizaram-se e passaram a coa- estabelecidos ao longo da vida organiza- com critérios de avanço extremamente sub-
bitar com outros de hierarquização social, cional. A lógica que prevalece é a isonômi- jetivos, que tiram do indivíduo sua capa-
sem que, contudo, a lógica meritocrática ca, que pleiteia “o mesmo ou mais para to- cidade de autogestão, a existência de feu-
que os inspirava se tornasse o valor englo- dos”, independentemente das diferenças dos e “puxadinhos” e o crescimento de um
bante, no interior do próprio Estado e das de entrega. Nesse sentido, a única hierar- “nepotismo meritocrático” (uma forma bra-
organizações. É muito provável, assim, que quia admitida é aquela baseada na senio- sileira de degreeocracy, que justifica a no-
as possíveis mudanças que se seguirão às ridade, na qual todos podem ser inseridos meação de parentes baseada em seus di-
atuais demandas por mais meritocracia fi- se permanecerem tempo suficiente em suas plomas) são algumas das instâncias que
quem circunscritas a determinadas dimen- posições. Da mesma forma, a competição maculam o imaginário daquilo que se quer
sões das organizações e continuem a coa- explícita é rejeitada, pois esse mecanismo implantar no andar de baixo. Nesse contex-
bitar com outros critérios de hierarquização social, supostamente, evidencia a diferen- to, não é de se admirar o sabor amargo que
social no seu interior. A invocada necessi- ça entre indivíduos em um ambiente que se sempre acompanha os resultados das ava-
dade de mais meritocracia institucional não quer igualitário do começo ao fim. liações de desempenho.
sugere o fim do nosso spoils system, que, Segundo, no Brasil de ontem e de hoje,
ao que tudo indica, continuará atuante apesar das muitas mudanças observadas,
como sempre foi no topo das organizações continuamos a professar uma modernida-
REFERÊNCIAS
e na esfera pública. de e um individualismo seletivos. Quere-
E por que, caberia perguntar, a socie- mos os resultados materiais da eficiência, Dworkin, R. (1977, November 10). Why Bakke
dade e o público interno das organizações da produtividade, da competitividade, mas, has no case. New York Review of Books.

brasileiras desenvolvem mais discursos ao mesmo tempo, não queremos os seus Gutmann, A. (1980). Liberal equality. Cam-
bridge: Cambridge University Press.
que rejeitam do que demandam a merito- custos, principalmente os pessoais. Que-
cracia? Por que, por um lado, a ideologia remos a igualdade, mas aceitamos múlti- Rwals, J. (2001). Justice as fairness: a restate-
ment. Edited by E. Kelly. Cambridge: Harvard
meritocrática é criticada e/ou temida como plas lógicas hierárquicas quando elas nos
University Press.
algo externo e ameaçador ao tecido orga- beneficiam. A meritocracia é um valor que
Simmel, G. O. (1971). Individuality and social
nizacional e à própria sociedade, mas, por rejeita a mobilidade organizacional advin- forms. In D. Levine. Chicago: Chicago Univer-
outro, o mau desempenho, a ausência de da de critérios outros que não sejam o de- sity Press.

ISSN 0034-7590 © RAE | São Paulo | V. 54 | n. 1 | jan-fev 2014 | 80-85

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