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O Cálice.

O silêncio ecoava pelos vastos corredores do tribunal de Khalmyr.  

    Em  Ordine,  O  Reino  do  Deus  da  Justiça,  nada  se  movia.  Ninguém  caminhava  pelos  largos 
caminhos  de  suas  perfeitas  planícies.  Nenhum  pássaro  voava  entre  as  uniformes  nuvens  que  cruzavam o 
límpido azul do céu. O salão, normalmente ocupados pelas almas de artonianos mortos – esperando serem 
recompensados ou punidos pelo o que fizeram em vida –, não abrigava ninguém. Tudo porque ele assim o 
desejava. Tudo porque assim era preciso. 

   Na câmara principal, dezoito lugares encontravam‐se vazios na enorme mesa colocada no meio 
da sala. Na mesa, um vasto mapa representava Arton, seus habitantes seguindo suas vidas como diminutas 
formigas, sem saber que eram observados.  

    Apenas  dois  lugares  permaneciam  ocupados.  As  únicas  evidências  de  que  mais  alguém  havia 
estado presente eram os cálices vazio, símbolos do pacto e da concordância com o que havia sido decidido. 
E que aconteceria em breve.  

    Khalmyr  observava  fixamente  seu  companheiro.  Podia  ver  coisas  que  os  mortais  nem  sabem 
existir, mas mesmo assim não percebia qualquer sinal de medo ou hesitação. Muito pelo contrário. 

   Os olhos púrpuras brilhavam e pareciam sorrir. As mãos, repletas de anéis intricados dos mais 
variados metais, brincavam com um dos cálices. O longo cabelo trançado mesclava as cores azul, branca, 
anil,  negra,  verde  e  vermelha.  As  jóias  que  cobriam  seu  peito  nu  e  a  longa  capa  que  adornava  as  largas 
costas mostravam orgulho, empáfia, nunca arrependimento ou remorso. 

    Outros  dois  haviam  passado  pela  a  cerimônia  com  pesar  e  dor.  O  terceiro,  por  outro  lado, 
parecia chegar de uma festa onde havia sido o convidado principal. Parecia tudo, menos o que realmente 
era. 

   Um deus condenado. 

   Khalmyr apoiou as mãos sobre a mesa e levantou‐se, por fim. Não por impaciência, mas porque 
tinha que ser assim.  

   ‐ Sabe o que tenho que fazer, não ?  

   O outro pareceu não ouvir. Estava aparentemente entretido demais, divertindo‐se com o objeto 
que tinha nas mãos. Somente instantes depois, dirigiu um olhar distante ao Deus da Justiça. Parecia absorto 
em pensamentos muito mais importantes.  

   ‐ Por que os outros foram embora, Khalmyr ? Por que não ficaram para ver o fim do espetáculo 
? – sua voz era doce, clara como o vento passando entre estalactites de uma caverna de cristal.  

   ‐ Nenhum deles precisava ficar.  

   ‐ Sim... sei bem disso – respondeu o outro, levantando‐se devagar. – Mas ninguém abriu mão de 
seu precioso voto quando Tilliann foi jogado entre os bárbaros naquela carcaça demente e inútil. Ninguém 
deixou de opinar quando a bela e inocente Valkaria foi transformada em estátua, esperando de joelhos por 
heróis improváveis. Todos falaram. Alguns acusaram, alguns pediram clemência. Mas todos julgaram. Até 
mesmo Marah e Lena. 

   Ergue as sombrancelhas. 

   ‐ Porque é diferente comigo ?  

   ‐ Você nunca foi o mais querido. Nem o menos temido.  

    Lá  fora,  grossas  gotas  de  chuva  começaram  a  cair  de  repente.  O  sol,  que  há  pouco  brilhava 
imponente, escondeu‐se com pressa atrás das nuvens negras recém‐formadas. 

   O outro gargalhou. Por instantes, o palácio pareceu tremer. 

    ‐  É  verdade  meu  nobre  Khalmyr  –  retrucou,  dando  a  volta  na  mesa.  O  cálice  dançando  entre 
seus  dedos,  passando  de  uma  mão  para  outra  como  um  brinquedo  nas  mãos  de  uma  criança,  os  anéis 
tilintando na superfície cristalina. – Mas mesmo assim faço parte da família, não faço ?  

   ‐ Você escolheu seu próprio destino. Nossas leis são claras. Aceitar seu destino com honra é a 
única coisa que lhe resta. 

   ‐ Khalmyr, meu caro ! Não me venha falar em leis ou honra ! Eu estava lá quando as duas foram 
criadas, lembra‐se ? Eu e você ! 

    Khalmyr  baixou  a  cabeça,  resignado.  Talvez  tivesse  deixado  fugir  um  suspiro  impaciente.  Mas 
não era capaz de entender tal sentimento. Nem era capaz de deixar fugir coisa alguma.  

    O  outro  caminhou  até  a  parede  mais  próxima.  Ali,  uma  enorme  tapeçaria  retratava  a  união 
entre o Nada e o Vazio. O nascimento dos deuses. 

   ‐ Ainda me lembro como era no início. No outro lugar. Você se lembra ? 

   ‐ Às vezes.  

    ‐  Fui  um  dos  primeiros  a  ser  criado  e  um  dos  primeiros  a  criar.  Jamais  vou  me  esquecer.  A 
sensação de poder... a energia fluindo enquanto moldava a vida na forma mais perfeita que a existência já 
conheceu.  Você  nunca  experimentou  isso.  Por  isso  não  entender.  Os  outros  talvez  não  se  lembrem,  ou 
tentem esquecer. Mas eu lembro. Lembro muito bem... 

   Khalmyr bem sabia, aquela simples lembrança era uma ameaça a ser eliminada.  

    Aos  poucos  aproximou‐se  da  mesa  novamente.  Num  movimento  rápido,  imperceptível  para 
olhos mortais, devolveu o cálice à mesa. Desta vez invertido, com a boca para baixo. 

   ‐ Sabe me dizer o que é isto, Khalmyr ? 

   ‐ Um cálice. 
   ‐ Tem certeza ? – um sorriso zombeteiro dançando nos lábios. – Um objeto é apenas o seu nome 
? Ou seria sua função, seu destino ? Se tentássemos preenchê‐lo com vinho, assim como está, não teríamos 
sucesso. Mas mesmo assim... 

   ‐ Mesmo assim o cálice ainda é um cálice. 

   ‐ Exato – disse, como um sábio que aprova a resposta de um ignorante. – As leis. As regras. A 
honra.  São  como  o  cálice,  Khalmyr.  Há  sempre  um  modo  de  torcê‐las,  virá‐las  de  cabeça  para  baixo.  E 
mesmo sem servir mais a seu propósito original, continuam sendo o que eram, continuam a reger a quem 
regiam. Leis. Regras. Honra.  

   ‐ Onde espera chegar com isso ?  

   ‐ Oh, a lugar algum – afastou‐se novamente. – Acho até que já tomei demais o seu tempo. 

    ‐  Errado  –  respondeu  Khalmyr,  aproximando‐se  de  seu  companheiro.  Passos  firmes  ecoando 
pela sala, a mão direita sobre o cabo da espada. – Não se pode tomar tempo de um deus. 

   ‐ Tem certeza ? – retrucou o outro. Enquanto falava, ajoelhou‐se e despiu‐se. Primeiro o manto. 
Depois, as jóias. – Pergunte a Valkaria, daqui a um milênio ou dois. 

   Khalmyr desembainhou Rhumnam, sua espada sagrada, a lâmina reluzente refletindo a luz dos 
globos espalhados pela sala. Ergueu‐a acima da cabeça do outro deus. 

   ‐ Você contrariou as leias do Panteão. Contribuiu com Valkaria e Tilliann, na criação do povo que 
não deveria haver. Distorceu nossas normas para tramar minha queda e a de meus aliados. Deflagrou uma 
guerra. E por pouco não destruiu todos nós. 

    O outro continuou sorrindo. 

   ‐ Por seus crimes além do perdão, Kallyadranoch, eu o condeno ao esquecimento. 

    O  silêncio  imperou  por  alguns  instantes,  até  ser  cortado  pela  gargalhada  afiada  do  deus 
ajoelhado. 

   ‐ Ah, mas alguém irá se lembrar. É a lei. Tilliann sempre saberá quem foi. As crias de Valkaria um 
dia irão se esconder sob sua sombra, feito passarinhos sob as asas da mãe. E quanto a mim ? Quem irá se 
lembrar de Kallyadranoch ? 

   O Deus da Justiça permaneceu impassível. A espada firme em suas mãos. 

   O outro levantou a cabeça em desafio. Os olhos brilharam. Seu semblante parecia ameaçador. 
Mais fera do que homem.  

   ‐ Sempre seis de meus filhos irão se lembrar, e carregarão meu legado. E enquanto ao menos 
um  deles  viver,  eu  viverei.  Nem  você,  nem  qualquer  dos  demais  podem  mudar  isso.  É  a  lei.  Jamais  se 
esqueça, Khalmyr. 

   Mas dois trovões ecoaram, quase em uníssono. Duas gazelas passaram correndo em frente ao 
palácio e procuraram abrigo embaixo das formas perfeitas de duas árvores no simétrico jardim frontal. 
   ‐ Eu já disse tudo. Acabe logo com isso. Cerimônias sempre me deixam entediado. 

    Rhumnam  girou  acima  da  cabeça  de  Khalmyr,  riscando  um  círculo  de  luz  brilhante.  A  lâmina 
cortou a realidade com um silvo agudo e ensurdecedor.  

   ‐ Adeus, Deus dos Dragões. 

   Kallyadranoch sorriu mais uma vez.  

   ‐ Até logo, Deus da Justiça. 

    A  espada  desceu  repentina.  A  lâmina  enterrou‐se  no  peito  do  deus  condenado,  o  urro  de  mil 
dragões foi ouvido em toda Ordine. Kallyadranoch desapareceu como se jamais houvesse existido.  

   E jamais havia existido. 

    Khalmyr  embainhou  calmamente  a  espada.  Tudo  estava  certo  novamente.  Tudo  estava  em 
ordem.  

   Aos poucos, pôde ouvir o leve sussurro das almas voltando a preencher o salão, aguardando seu 
julgamento justo. Lá fora, a chuva parou de modo tão brusco quanto havia começado.  

    Khalmyr  caminhou  em  direção  da  saída.  Parou  por  alguns  instantes,  seguiu  até  a  mesa,  e  só 
então saiu para retomar seus eternos afazeres. 

    Na  câmara  principal,  agora  vazia,  silenciosa  e  estéril,  tudo  permanecia  como  se  nada  tivesse 
acontecido. E nada acontecera.  

   Todos os cálices tinham a boca voltada para cima. 

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