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MARIA HIRSZMAN

CONVERSA COM

JULIANA KASE

Essa exposição, com o título sugestivo de "Clichês", nasce de uma investigação


profunda de um arquivo morto sobre o período da ditadura militar. Qual foi seu
ponto de partida? Em 2014, um amigo me procurou dizendo que tinha sido procurado por um homem que
queria vender uma caixa de clichês. Se ninguém comprasse ele ia jogar fora, mandar para o
ferro velho. Acabei oferecendo 100 reais e recebi uma mala, toda cheia de envelopes
amassados, dobrados, os clichês todos jogados, bem empoeirada mesmo. Fui ver o que
era e me deparei com retratos de alguns presidentes do período da ditadura, imagens da
inauguração da Transamazônica e pensei: “nossa, isso vai me dar muito trabalho. Preciso de
tempo para isso. E guardei de volta, por quase um ano. Porque não dá para dar uma
olhadinha só.”.
Foi difícil lidar com esse material, tanto pelo seu caráter caótico, como pelo
vínculo com esse período terrível da história recente? Fale um pouco mais sobre
esse processo. E eu nem sabia o que ia fazer, não tinha ideia. Nem sabia se eu ia usar realmente para
alguma coisa. Não é fácil você reimprimir imagens que você nem concorda. Você fica se
perguntando: para que eu vou reimprimir uma imagem que eu detesto? Esse trabalho não
é da ordem do prazer. Na verdade, é bem pesado.
Organizar, hierarquizar, classificar de certa forma faz parte do seu método, não?
Faz. Eu já não sei se era o material que estava pedindo ou é meu procedimento mesmo,
mas tento organizar. Realmente vi que era um material do período da ditadura, misturada à
propaganda, provavelmente de um jornalzinho, cujo nome não consegui identificar. Foram
necessários vários meses para imprimir tudo, a demora foi fundamental para conviver com
essas imagens. Eu ia ao Centro Cultural São Paulo (CCSP) semanalmente imprimir, era um
processo muito lento, e as imagens foram se tornando familiares.
E se transformaram num corpo de trabalho, uma reflexão atual sobre um
momento histórico? Sim, acho que sim, porque você vê aí que você precisa fazer aquilo mesmo, que seria uma
irresponsabilidade deixar esses clichês assim. Levar para o Arquivo do Estado e deixar lá
entende?
Essas imagens não têm em si essa potencia plástica ou conceitual. Só adquirem
isso através de você. É, mas isso acho que vai naturalmente. Não é uma coisa intencional. É o procedimento
artístico mesmo. Acho que é essa a graça da coisa. Catalogar, imprimir, limpar foi a primeira
parte. Em seguida, no fim de 2015, imprimi a segunda parte do projeto, esses conjuntos
que funcionam como álbuns de figurinhas. Foi importante organizar o material em grupos
mais concisos, mais coerentes. Como eram mais de duzentas imagens no total, percebi que
ele se tornava ilegível para as pessoas. Sinto que hoje as pessoas têm uma dificuldade para
filtrar essas imagens sabe? Então eu fiz um recorte, que contempla a economia, vinculada à
política, vinculada a aparatos bélicos e vinculada à toda uma ideologia. Não tem como
separar, elas vão de mãos dadas até hoje.
É curioso porque você só tem imagem, não tem o texto. Mas recorreu ao máximo às poucas
referências que recebeu. O que eu tenho de texto é isso, alguns envelopes escritos a mão. Fui anotando tudo que
eu consegui identificar. Esta foi a primeira vez que eu trabalhei com imagem de terceiros,
sabe? É outra responsabilidade. A estética vira ética, sabe? Cada cor usada na gravura tem
um significado, o verde militar, o verde bandeira, o verde dos dólares... A trama em ziguez-
ague usada nas gravuras vem do interior dos envelopes. Não há nada supérfluo.
A exposição, que na verdade pode ser considerada uma grande instalação, contempla
ainda dois outros trabalhos com forte caráter de denúncia: o mapa e uma seleção de
clichês contrapostos a imagens sobre os temas tratados de forma apologética no mate-
rial de base. Eu queria mostrar os clichês também. Difícil falar deles sem as pessoas saberem o que é.
Quis mostrá-los ao lado de uma imagem análoga, sobre o mesmo tema, que não foi
veiculada. O mapa para mim já deriva de outro sentimento, de superação, de uma
proposta, um redesenho de um mapa da América Latina principalmente com os nomes
indígenas. Também contribui o fato de as pessoas poderem também botar a mão na massa,
imprimir trechos dele e levar para casa, ao invés de ficar só olhando.
O mapa se contrapõe diretamente a esse Brasil do progresso, que você vai ver
nos clichês? O que é que vivem na Amazônia e no Acre? A colonização. A gente está em 1500, não
mudou nada. Ou aí, no Pico do Jaraguá. É a mesma coisa. Não tem genocídio o tempo
inteiro?
Essa necessidade de estar no mundo é uma marca sua?
É, mas eu não conheço um artista que não esteja atento. Alguns podem estar mais atentos
para um aspecto mais visual, que chama mais a atenção, mas sempre tem algum nível de
atenção. A gente tem que beber de algum lugar senão fica se retroalimentando. Como diz
Massao Ohno (editor e artista gráfico sobre o qual Juliana Kase prepara atualmente um
documentário), "interessa a poesia em todos os níveis, porque é nos diversos níveis que ela
vai sensibilizar as diversas pessoas". Nas artes visuais também acho que interessa essa
pluralidade. As pessoas cobram posturas das outras, discursos. Não acho que um pintor
formalista ou um que pinta flores seja menos importante que um que fale sobre política ou
assuntos atuais. Importa é a pessoa estar coerente no seu processo. Porque sempre esta-
mos em movimento e sempre aprendendo.
Você não tem um lugar de preferência. Talvez na fotografia, ou melhor, nas
imagens reproduzíveis? É. Na verdade eu gosto de todas, sabia? Gosto de estar num lugar em que estou sempre
aprendendo alguma coisa. Se não aprendo, eu saio. Vou para outro lugar. As pessoas têm
às vezes dificuldade para entender quando você transita muito, por linguagens artísticas ou
técnicas.
É curiosa a força do clichê no seu trabalho, tanto em termos de suporte gráfico como
pela forte carga semântica do termo. Qual seria a imagem mais "clichê" deste conjunto?
Há uma imagem síntese? Tem uma da marinha mercante que quando eu vi fiquei chocada. É uma imagem da costa
brasileira com uma porção de navios, acompanhada por um poeminha enaltecendo a ideia
do progresso, a ideologia desenvolvimentista: "Os navios levam cargas, os países fazem
comércio, as pessoas viajam, isso é comunicação. A comunicação traz o progresso, o
progresso é nossa meta". E não é claro para as pessoas até hoje o quanto que custa isso.
Este projeto nasce de um grande encontro. É como se o arquivo tivesse te encon-
trado e não o contrário. Se você está poroso, você é atravessado pelos assuntos que estão em volta de você. Mas
no caso específico da ditadura, você vai esbarrar no dia a dia em algum momento. Ou na
ação de uma pessoa, ou numa noticia de jornal, ou num clichê que aparece, sabe? Sempre
se esbarra nesse assunto no Brasil.
Não está superado, né? Não, ele está aí. É só tirar a casquinha para ter a ferida exposta. Porque mesmo os que não
foram vitimados por torturas ou violências praticadas pelo Estado também são vítimas de
um condicionamento ideológico e de um embrutecimento das relações humanas sem se
dar conta.
A gente tem um grande analfabetismo visual.
Se as pessoas ainda acham que a mídia é neutra?
Você acha que isso que vivemos hoje é resquício daquela época? É continuação ou
retorno? É continuação. Pode ter ficado um pouco menos intenso por um período, mas não foi
resolvido. A gente não teve um processo judicial para incriminar as torturas e as mortes
durante a ditadura. Como é que vai ter superação? Ainda com os governos que a gente
tem agora, estadual, municipal e federal. Aí as pessoas se sentem no direito de botar para
fora todo o ódio. Por isso que estou chamando a memória que não foi resolvida, sabe?

Maria Hirszman é jornalista e crítica de artes, colaborando com diversas publicações como o
Jornal da Tarde, o Estado de S. Paulo e as revistas Fapesp e Arte!Brasileiros. É também
pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), além de integrar o Grupo de Estudos Arte&Fotografia
da ECA-USP e o Conselho Editorial da Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural.
Juliana Kase é mestranda em cultura japonesa na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP) onde estuda sobre conceitos estéticos japoneses e o papel da imagem em culturas não eurocên-
tricas. Tem graduação em Artes Plásticas pela Faculdades Santa Marcelina e em Desenho Industrial pela
Universidade Mackenzie, além de estudos e experiência em cinema documentário. Desde 2004 tem partici-
pado e realizado exposições de arte em espaços institucionais e independentes no Brasil e no exterior.
Trabalha em múltiplas linguagens das Artes Plásticas com ênfase em projetos de instalação e processos de
reprodução de imagem, tais como os meios fotográficos analógicos e diversas linguagens de gravura.
Atualmente dirige o documentário “Editor por Editor” sobre a produção editorial e poética de Massao Ohno,
contemplado pelo edital Rumos.

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