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Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL

Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP


Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em


DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Disciplina

Prova, Sentença e Coisa Julgada

Aula 4
Índice
Leitura complementar 1.....p.0 1
Leitura complementar 2.....p. 25

LEITURA COMPLEMENTAR 1

Cândido Rangel Dinamarco


Professor Titular de Direito Processual Civil da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

RELATIVIZAR A COISA JULGADA MATERIAL

Como citar este artigo:

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material.


Revista da Escola Paulista da Magistratura, v. 2, n. 2, p. 7-45, jul-dez
01. Material da 4ª aula da disciplina Prova, Sentença e Coisa Julgada,
ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em
Direito Processual Civil – UNISUL - IBDP – REDE LFG.

SUMÁRIO
§ 1º - A coisa julgada entre as outras garantias constitucionais - premissas - 1. Minhas premissas -
2. Coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão - 3. A coisa julgada material no
processo civil de resultados - 4. A proposta do Min. José Augusto Delgado - 5. O Supremo Tribunal
Federal e a garantia do justo valor - 6. De Pontes de Miranda a Humberto Theodoro Júnior - 7.
Eduardo Couture - 8. Juan Carlos Hitters - 9. Hugo Nigro Mazzilli e as lições que invoca - 10.
Direito norte-americano - 11. Um caso examinado pela profª. Ada Pellegrini Grinover - 12. Não
levar longe demais a autoridade da coisa julgada - § 3º - Proposta de sistematização - 13. A coisa
julgada material na garantia constitucional, na disciplina legal e no sistema - 14. Método indutivo
- 15. Coisa julgada, efeitos da sentença e impossibilidades jurídicas - 16. Impossibilidade jurídica
e convivência entre princípios e garantias - 17. Justo preço e moralidade: valores constitucionais
relevantes - 18. Sentenças juridicamente impossíveis - a favor ou contra o Estado - 19. A
dimensão da conclusão proposta - 20. Remédios processuais adequados - 21. Ação rescisória - 22.
Minhas preocupações

§ 1º - A coisa julgada entre as outras garantias constitucionais – Premissas

1. Minhas premissas

Escrevi em sede doutrinária que “sem ser um efeito da sentença, mas especial
qualidade que imuniza os efeitos substanciais desta a bem da estabilidade da tutela
jurisdicional, a coisa julgada não tem dimensões próprias, mas as dimensões que tiverem os
efeitos da sentença.”[1]. Sendo um elemento imunizador dos efeitos que a sentença projeta
para fora do processo e sobre a vida exterior dos litigantes, sua utilidade consiste em
assegurar estabilidade a esses efeitos, impedindo que voltem a ser questionados depois de
definitivamente estabelecidos por sentença não mais sujeita a recurso. A garantia
constitucional e a disciplina legal da coisa julgada recebem legitimidade política e social da
capacidade, que têm, de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da
sentença.
Venho também pondo em destaque a necessidade de equilibrar adequadamente, no
sistema do processo, as exigências conflitantes da celeridade, que favorece a certeza das
relações jurídicas, e da ponderação, destinada à produção de resultados justos. O processo
civil deve ser realizado no menor tempo possível, para definir logo as relações existentes
entre os litigantes e assim cumprir sua missão pacificadora; mas em sua realização ele deve
também oferecer às partes meios adequados e eficientes para a busca de resultados
favoráveis, segundo o direito e a justiça, além de exigir do juiz o integral e empenhado
conhecimento dos elementos da causa, sem o que não poderá fazer justiça nem julgará bem.
A síntese desse indispensável equilíbrio entre exigências conflitantes é: o processo deve ser
realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com isso se
impeça ou prejudique a justiça dos resultados que ele produzirá. Favorecem o primeiro
desses objetivos os prazos preclusivos impostos às partes, as preclusões de toda ordem e, de
modo superior, a autoridade da coisa julgada material que incide sobre os efeitos da sentença
a partir de quando nenhum recurso seja mais possível; são fatores ligados ao valor do justo o
contraditório oferecido às partes e imposto ao juiz, as garantias constitucionais da igualdade,
da ampla defesa, do devido processo legal, do juiz natural etc., assim como os recursos e a
ação rescisória, mediante os quais o vencido procura afastar decisões que o desfavorecem e o
Poder Judiciário tem a oportunidade de aprimorar seu produto [2].
2
A partir dessas idéias, em uma obra ainda inédita proponho a interpretação
sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais do processo civil, dizendo
que “nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto,
devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de
efetivar a promessa constitucional de acesso à justiça (entendida esta como obtenção de
soluções justas — acesso à ordem jurídica justa). Como garantia-síntese do sistema, essa
promessa é um indispensável ponto de partida para a correta compreensão global do conjunto
de garantias constitucionais do processo civil”, com a consciência de que “os princípios
existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem
processual”.[3]
Digo ainda: “não fora essa seguríssima premissa metodológica, haveria grande
dificuldade para a justificação sistemática das medidas urgentes, concedidas inaudita altera
parte e portanto não preparadas segundo um contraditório entre as partes. Mas o próprio
valor democrático do contraditório, que não é fim em si mesmo mas um dos meios de
construção do processo justo e équo, há de ceder ante as exigências substanciais de promover
o acesso à justiça, em vez de figurar como empecilho à efetividade desta”.
Tais são as premissas que proponho, como ponto de início e de apoio para os
raciocínios a desenvolver no presente estudo sobre a relativização da garantia constitucional
da coisa julgada no momento presente. Venho dizer, em síntese, (a) que essa garantia não
pode ir além dos efeitos a serem imunizados e (b) que ela deve ser posta em equilíbrio com as
demais garantias constitucionais e com os institutos jurídicos conducentes à produção de
resultados justos mediante as atividades inerentes ao processo civil.

2. Coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão

Como é notório e já foi dito, um dos valores buscados pela ordem jurídico-processual é
o da segurança nas relações jurídicas, que constitui poderoso fator de paz na sociedade e
felicidade pessoal de cada um. A tomada de uma decisão, com vitória de um dos litigantes e
derrota do outro, é para ambos o fim e a negação das expectativas e incertezas que os
envolviam e os mantinham em desconfortável estado de angústia. As decisões judiciárias,
uma vez tomadas, isolam-se dos motivos e do grau de participação dos interessados e
imunizam-se contra novas razões ou resistências que se pensasse em opor-lhes (Niklas
Luhmann, Tércio Sampaio Ferraz Jr.) [4] chegando a um ponto de firmeza que se qualifica
como estabilidade e que varia de grau conforme o caso.
O mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais é representado pela coisa
julgada, que a doutrina mais conceituada define como imutabilidade da sentença e de seus
efeitos, com a vigorosa negação de que ela seja mais um dos efeitos da sentença (Liebman).5
Não há dois institutos diferentes ou autônomos, representados pela coisa julgada formal e
pela material. Trata-se de dois aspectos do mesmo fenômeno de imutabilidade, ambos
responsáveis pela segurança nas relações jurídicas; a distinção entre coisa julgada formal e
material revela somente que a imutabilidade é uma figura de duas faces, não dois institutos
diferentes (sempre, Liebman) [6].
A coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de
mérito. Quer se trate de sentença meramente declaratória, constitutiva ou condenatória, ou
mesmo quando a demanda é julgada improcedente [7], no momento em que já não couber
recurso algum institui-se entre as partes e em relação ao litígio que foi julgado uma situação,
ou estado, de grande firmeza quanto aos direitos e obrigações que os envolvem, ou que não
os envolvem. Esse status, que transcende a vida do processo e atinge a das pessoas, consiste
na intangibilidade das situações jurídicas criadas ou declaradas, de modo que nada poderá ser
feito por elas próprias, nem por outro juiz, nem pelo próprio legislador, que venha a
contrariar o que houver sido decidido (ainda Liebman) [8]. Não se trata de imunizar a
sentença como ato do processo, mas os efeitos que ela projeta para fora deste e atingem as
pessoas em suas relações — e daí a grande relevância social do instituto da coisa julgada
3
material, que a Constituição assegura (art. 5o, inc. XXXVI) e a lei processual disciplina (arts.
467 ss.).
Com essa função e esse efeito, a coisa julgada material não é instituto confinado ao
direito processual. Ela tem acima de tudo o significado político-institucional de assegurar a
firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma vez
consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material
das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar
ou pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está definitivamente dissipada,
quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionam juridicamente na vida comum, ou
quanto à pertinência de bens a um deles. As normas e técnicas do processo limitam-se a reger
os modos como a coisa julgada se produz e os instrumentos pelos quais é protegida a
estabilidade dessas relações — mas a função dessas normas e técnicas não vai além disso.
Nesse sentido é que prestigioso doutrinador afirmou ser a coisa julgada material o direito do
vencedor a obter dos órgãos jurisdicionais a observância do que tiver sido julgado (Hellwig).
Quando porém já não se pensa nos efeitos imunizados da sentença, mas na sentença
em si mesma como ato jurídico do processo, sua imutabilidade é conceituada como coisa
julgada formal. Em um momento, já não cabendo recurso algum, ela opera sua eficácia
consistente em pôr fim à relação processual (art. 162, § 1o) e, a partir de então, nenhum
outro juiz ou tribunal poderá introduzir naquele processo outro ato que substitua a sentença
irrecorrível. Como é inerente à teoria dos recursos e está solenemente proclamado no art.
512 do Código de Processo Civil, o julgamento proferido em um recurso cassa sempre a
decisão recorrida e, quando não a anula, substitui-a desde logo ainda que lhe confirme o teor
(improvimento - lição corrente em doutrina: Barbosa Moreira etc.) [9] A coisa julgada formal
existe quando já não for possível, pelas vias recursais, cassar a sentença proferida e muito
menos substituí-la por outra. Ela incide sobre sentenças de qualquer natureza, seja de mérito
ou terminativa, porque não diz respeito aos efeitos substanciais mas à própria sentença como
ato do processo.
A distinção entre coisa julgada material e formal consiste, portanto, em que (a) a
primeira é a imunidade dos efeitos da sentença, que os acompanha na vida das pessoas ainda
depois de extinto o processo, impedindo qualquer ato estatal, processual ou não, que venha a
negá-los; enquanto que (b) a coisa julgada formal é fenômeno interno ao processo e refere-se
à sentença como ato processual, imunizada contra qualquer substituição por outra.
Assim conceituada, a coisa julgada formal é manifestação de um fenômeno processual
de maior amplitude e variada intensidade, que é a preclusão — e daí ser ela tradicionalmente
designada como præclusio maxima. Toda preclusão é extinção de uma faculdade ou poder no
processo; e a coisa julgada formal, como preclusão qualificada que é, caracteriza-se como
extinção do poder de exigir novo julgamento quando a sentença já tiver passado em julgado.
O sistema procedimental brasileiro é muito mais preclusivo que os europeus, o que é uma
decorrência das fases em que a lei distribui os atos do procedimento, sem possibilidade de
repetições ou retrocessos — e daí ser a rigidez do procedimento um dos mais destacados
elementos caracterizadores do modelo processual infraconstitucional brasileiro [10].
A coisa julgada material, a formal e as preclusões em geral incluem-se entre os
institutos com que o sistema processual busca a estabilidade das decisões e, através dela, a
segurança nas relações jurídicas. Escuso-me pelo tom didático com que expus certos
conceitos elementares referentes a esses institutos; assim fiz, com a intenção de apresentar a
base sistemática dos raciocínios que virão, onde porei em destaque e criticarei alguns
tradicionais exageros responsáveis por uma exacerbação do valor da coisa julgada e das
preclusões, a dano do indispensável equilíbrio com que devem ser tratadas as duas exigências
contrastantes do processo. O objetivo do presente estudo é demonstrar que o valor da
segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é portanto a garantia da
coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que
é o da justiça das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a garantia do
acesso à justiça (Constituição, art. 5o, inc. XXXV).

4
3. A coisa julgada material no processo civil de resultados

Um óbvio predicado essencial à tutela jurisdicional, que a doutrina moderna alcandora


e realça, é o da justiça das decisões. Essa preocupação não é apenas minha: a doutrina e os
tribunais começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o
instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar
injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.
Com preocupações dessa ordem é que, em seguidas manifestações como magistrado e
como conferencista, o min. José Delgado defende uma “conceituação da coisa julgada em
face dos princípios da moralidade pública e da segurança jurídica”, fórmula essa que em si é
uma proposta de visão equilibrada do instituto, inerente ao binômio justiça-segurança. Do
mesmo modo, também Humberto Theodoro Júnior postula esse equilíbrio, em parecer onde
enfrenta o tema do erro material arredio à autoridade do julgado. E conhece-se também a
posição assumida pelo procurador de Justiça Hugo Nigro Mazzilli ao defender a “necessidade
de mitigar a coisa julgada”. Esses e outros pensamentos, aos quais associo uma
interessantíssima narrativa de Eduardo Couture e importantes precedentes do Supremo
Tribunal Federal e do direito norte-americano, abrem caminho para a tese relativizadora dos
rigores da auctoritas rei judicatæ e autorizam as reflexões que a seguir virão, todas elas
apoiadas na idéia de que “levou-se muito longe a noção de res judicata, chegando-se ao
absurdo de querê-la capaz de criar uma outra realidade, fazer de albo nigrum e mudar
falsum in verum” (Pontes de Miranda).
De minha parte, pus em destaque a necessidade de produzir resultados justos, quando
há mais de dez anos disse: “em paralelismo com o bem-comum como síntese dos objetivos do
Estado contemporâneo, figura o valor justiça como objetivo-síntese da jurisdição no plano
social”. Essas palavras estão em minha tese acadêmica escrita no ano de 1986, incluídas em
um capítulo denominado “justiça nas decisões”[11]. Em outro tópico da obra, disse também
que “eliminar conflitos mediante critérios justos” é o mais nobre dos objetivos de todo
sistema processual [12]. São essas as premissas, de resto já referidas logo ao início do
parecer, sobre as quais cuido de assentar a proposta de um correto e razoável
dimensionamento do poder imunizador da coisa julgada, relativizando o significado dessa
garantia constitucional e harmonizando-o naquele equilíbrio sistemático de que falo.

4. A proposta do min. José Augusto Delgado

Em voto proferido como relator na Primeira Turma do Col. Superior Tribunal de


Justiça, o min. José Augusto Delgado declarou sua “posição doutrinária no sentido de não
reconhecer caráter absoluto à coisa julgada” e disse filiar-se “a determinada corrente que
entende ser impossível a coisa julgada, só pelo fundamento de impor segurança jurídica,
sobrepor-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações
assumidas pelo Estado”.
A Fazenda do Estado de São Paulo havia sido vencida em processo por desapropriação
indireta e, depois, feito acordo com os adversários para parcelamento do débito; pagas
algumas parcelas, voltou a juízo com uma demanda que denominou ação declaratória de
nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito. Sua alegação era a de que
houvera erro no julgamento da ação expropriatória, causado ou facilitado pela perícia, uma
vez que a área supostamente apossada pelo Estado já pertencia a ele próprio e não aos
autores. Apesar do trânsito em julgado e do acordo depois celebrado entre as partes, o min.
José Delgado votou no sentido de restabelecer, em sede de recurso especial, a tutela
antecipada que o mm. juiz de primeiro grau concedera à Fazenda e o Tribunal paulista,
invocando a auctoritas rei judicatæ, viera a negar. A tese do ministro prevaleceu por três
votos contra dois e a tutela antecipada foi concedida [13].

5
Essas idéias, há algum tempo já as vinha defendendo o ilustre magistrado em
conferências e já as defendera quando juiz de primeiro grau no Estado do Rio Grande do
Norte. No primeiro semestre do corrente ano de 2000, voltou a elas em uma exposição feita
na cidade mineira de Poços de Caldas, quando reafirmou que a autoridade da coisa julgada
está sempre condicionada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem cuja
presença a segurança jurídica imposta pela coisa julgada “não é o tipo de segurança posto na
Constituição Federal”. Discorrendo didaticamente perante uma platéia composta na maioria
por estudantes, o conferencista ilustrou seu pensamentocom hipotéticos casos de sentenças
impondo condenações ou deveres absurdos, como aquela que mandasse a mulher carregar o
marido nas costas todos os dias, da casa ao trabalho; ou a que impusesse a alguém uma pena
consistente em açoites por chicote em praça pública; ou a que, antes do advento das
modernas técnicas biológicas (HLA, DNA), houvesse declarado uma paternidade irreal. “Será
que essa sentença, mesmo transitada em julgado, pode prevalecer?” indaga retoricamente,
para depois responder apoiando-se em obra de Humberto Theodoro Júnior: “as sentenças
abusivas não podem prevalecer a qualquer tempo e a qualquer modo, porque a sentença
abusiva não é sentença”.

5. O Supremo Tribunal Federal e a garantia do justo valor

Já em julgados da década dos anos oitenta proclamou o Col. Supremo Tribunal Federal que,
em dadas circunstâncias, “não ofende a coisa julgada a decisão que, na execução, determina
nova avaliação para atualizar o valor do imóvel, constante de laudo antigo, tendo em vista
atender à garantia constitucional da justa indenização”. A circunstância especial levada em
conta em mais de um julgado foi a procrastinação do pagamento por culpa do ente
expropriante, às vezes até mediante a indevida retenção dos autos por anos. Em um desses
casos, o relator, min. Rafael Mayer, aludiu ao “lapso de tempo que desgastou o sentido da
coisajulgada”, como fundamento para prestigiar a realização de nova perícia avaliatória,
afastando de modo expresso a autoridade da coisa julgada como óbice a essa diligência [14].
Em outro caso, o min. Néri da Silveira votou e foi vencedor no sentido de fazer nova avaliação
apesar do trânsito em julgado da sentença que fixara o valor indenizatório, apesar de não ter
havido procrastinações abusivas mas sempre com o superior objetivo de assegurar a justa
indenização, que é um valor constitucionalmente assegurado; esse caso viera do Estado do Rio
Grande do Norte e a R. sentença de primeiro grau jurisdicional, no mesmo sentido, fora da
lavra do então juiz José Augusto Delgado [15].
Discorreu-se também sobre a questão da correção monetária não imposta em
sentença, em virtude de lei superveniente e da inflaçãoque viera a corroer o valor aquisitivo
da moeda. Pacificamente vem sendo entendido que corrigir valores não ultraja a garantia
constitucional da coisa julgada, porque não implica alteração substancial da indenização,
mas mero ajuste nominal. Essa é minha opinião exaradahá pelo menos vinte-e-cinco anos e
posta em artigo no ano de 1984 [16].

6. De Pontes de Miranda a Humberto Theodoro Júnior

Para ilustrar a assertiva de que se levou longe demais a noção de coisa julgada, Pontes
de Miranda discorre sobre as hipóteses em que a sentença é nula de pleno direito, arrolando
três impossibilidades que conduzem a isso: impossibilidade cognoscitiva, lógica ou jurídica.
Fala, a propósito, da sentença ininteligível, da que pusesse alguém sob regime de escravidão,
da que instituísse concretamente um direito real incompatível com a ordem jurídica nacional
etc. Para esses casos, alvitra uma variedade de remédios processuais diferentes entre si e
concorrentes, à escolha do interessado e segundo as conveniências de cada caso, como (a)
nova demanda em juízo sobre o mesmo objeto, com pedido de solução conforme com a
ordem jurídica, sem os óbices da coisa julgada, (b) resistência à execução, inclusive mas não

6
exclusivamente por meio de embargos a ela e (c) alegação incidenter tantum em algum outro
processo [17].
Nessa mesma linha, Humberto Theodoro Júnior, invocando o moderno ideário do
processo justo, os fundamentos morais da ordem jurídica e sobremaneira o princípio da
moralidade que a Constituição Federal consagra de modo expresso, postula uma visão larga
das hipóteses de discussão do mérito mediante os embargos do executado. O caso que
examinava em parecer era de uma dupla condenação da Fazenda a pagar indenizações pelo
mesmo imóvel. Segundo se alegava, ela já havia satisfeito a uma das condenações e com esse
fundamento opunha-se à execução que se fazia com base na outra condenação, mas pelo
mesmo débito. Em suas conclusões, o conhecido mestre mineiro propôs o enquadramento do
caso na categoria do erro material, para sustentar afinal que, conseqüentemente, “não
haveráa res iudicata a seu respeito”[18]

7. Eduardo Couture

Mais de uma vez Eduardo Juan Couture escreveu sobre a admissibilidade e meios da
revisão judicial das sentenças cobertas pela coisa julgada, particularmente em relação a
ordenamentos jurídicos, como o do Uruguai àquele tempo, cuja lei não consagre de modo
expresso essa possibilidade. Preocupavam o Príncipe dos processualistas latino-americanos as
repercussões que a fraude pudesse projetar sobre a situação jurídica das pessoas (partes ou
terceiros), ainda mais quando os resultados da conduta fraudulenta estiverem reforçados pela
autoridade da coisa julgada. Disse, a propósito desse elegante tema, que “a consagração da
fraude é o desprestígio máximo e a negação do direito, fonte incessante de
descontentamento do povo e burla à lei”. Maneja o sugestivo conceito de coisa julgada
delinqüente e diz que, se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças
passadas em julgado, acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à
fraude processual e às formas delituosas do processo. E disse também, de modo enfático:
“chegará um dia em que as forças vitais que o rodeiam [rodeiam o jurista] exigirão dele um
ato de coragem capaz de pôr à prova suas meditações”.
Couture examinou o caso do fazendeiro rico que, tendo gerado um filho em parceria
com uma empregada, gente muito simples, para forrar-se às responsabilidades de pai induziu
esta a constituir um procurador, pessoa da absoluta confiança dele, com poderes para
promover a ação de investigação de paternidade. Citado, o fazendeiro negou vigorosamente
todos os fatos constitutivos narrados na demanda e o procurador do menor e da mãe, que agia
em dissimulado conluio com o fazendeiro, negligenciou por completo o ônus de provar o
alegado; a conseqüência foi a improcedência total da demanda, passando em julgado a
sentença porque obviamente o advogado conluiado não recorreu. Mais tarde, chegando à
maioridade, aquele mesmo filho moveu novamente uma ação de investigação de paternidade,
quando então surgiu o problema da coisa julgada. O caso terminou em acordo, lamentando-se
não ter sido possível aprofundar a discussão e obter um pronunciamento do Poder Judiciário
sobre o importantíssimo tema [19]

8. Juan Carlos Hitters

Em monografia sobre a revisão da coisa julgada, o professor da Universidade de La


Plata faz uma longa resenha de casos apreciados por tribunais argentinos, em que a firmeza
de preclusões de diversas naturezas foi objeto de questionamentos, em busca de sustentação
para sua tese central — que também é a da admissibilidade dessa revisão ainda quando o
direito positivo não a haja previsto ou disciplinado. Procura conciliar harmoniosamente o
enquadramento normativo do tema com a sua dimensão sociológica, tendo em vista o culto da
justiça e em especial a eqüidade, que é a justiça singularizada para o caso específico; e
conclui alvitrando de modo entusiástico as aberturas para a revisão de sentenças
7
substancialmente injustas, infringindo-se a autoridade do julgado se isso for essencial para
fazer justiça e afastar desmandos [20]. Ao tempo em que escreveu Hitters, a Suprema Corte
havia afirmado a prevalência da auctoritas rei judicatæ em relação a sentenças portadoras
de vícios formais, mantendo-se, quanto a essa situação, na posição tradicional vinda das
origens. Mas, segundo informa o estudioso, ela nunca se pronunciara sobre a admissibilidade
de questionar a coisa julgada com fundamento em vícios substanciais da sentença (sendo
virgem a jurisprudência a esse respeito) [21].
Dos casos examinados por Hitters, nem todos dizem respeito à coisa julgada, mas, ao
ditar mitigação a graves preclusões ocorridas no processo, todas as decisões oferecem
elementos para a construção de uma teoria da revisão da coisa julgada sem previsão legal ou
além das previsões legais eventualmente existentes (como no Brasil). Em uma dessas decisões
estabeleceu- se (a) que os vícios substanciais podem afetar os atos processuais, (b) que ditos
defeitos são suscetíveis de serem alegados e reconhecidos mesmo depois de decorrido
eventual prazo preclusivo e (c) que um procedimento judicial pode ficar sem efeito quando,
por via de ação, vier a ser reconhecida a existência de um vício de fundo [22].

9. Hugo Nigro Mazzilli e as lições que invoca

O conhecido e respeitado procurador da justiça figura a hipótese de uma ação civil


pública haver sido julgada por serem inócuas ou mesmo benfazejas as emanações liberadas na
atmosfera por uma fábrica e, depois do trânsito em julgado, verificar-se o contrário, havendo
sido fraudulenta a perícia realizada. Para casos assim, alvitra que se mitigue a regra da coisa
julgada erga omnes ditada no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, porque “não se pode
admitir, verdadeiramente, coisa julgada ou direito adquirido de violar o meio ambiente e de
destruir as condições do próprio habitat do ser humano”. Alega em abono do que sustenta a
solene proclamação constitucional do direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado
(Const., art. 225) e invoca prestigiosas e bem conhecidas lições do processualista-pensador
Mauro Cappelletti e do constitucionalista Jorge Miranda. Essa exposição está contida em uma
rubrica a que sugestivamente dá o título de “a necessidade de mitigar a coisa julgada”[23]. É
muito profunda a observação de Cappelletti, no quadro de seu notório pensamento
reformador. Ele vai à raiz dessa problemática, ao estabelecer o confronto entre o tradicional
processo civil individualista dos Códigos e os modernos pilares da tutela jurisdicional coletiva,
onde se situa a temática das ações civis públicas e da coisa julgada nas sentenças ali
produzidas. É nesse contexto metodológico de primeira grandeza que estão as palavras
reproduzidas por Mazzilli. Para quem estiver atento aos novos ventos e às ondas renovatórias
do processo civil moderno, realmente, caem como um castelo de cartas as velhas estruturas
referentes a certos institutos básicos, entre os quais a legitimidade ad causam, a substituição
processual, a representação e sobretudo os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada. A
visão tradicional dessas categorias jurídicas resta comprometida por sua “impotente
incongruência diante de fenômenos jurídicos coletivos como aqueles que se verificam na
realidade social e econômica moderna”[24].
Jorge Miranda, discorrendo bem amplamente sobre a coisa julgada entre os demais
princípios e garantias residentes na Constituição, diz que aquela não é um valor absoluto e
por isso “tem de ser conjugado com outros”. E, mais adiante: “assim como o princípio da
constitucionalidade fica limitado pelo respeito do caso julgado, também este tem de ser
apercebido no contexto da Constituição”[25].

10. Direito Norte-Americano

A cultura jurídica anglo-americana não é tão apegada aos rigores da autoridade da


coisa julgada como a nossa, de origem romano-germânica. A presença francesa nas origens da
legislação das Colônias da América do Norte, e depois a espanhola,26 podem ter sido fontes
8
de alguma influência do direito romano antigo, não do germânico — sendo sabido que é deste
que nos advêm as regras mais rígidas de estabilização das decisões judiciárias em razão da
coisa julgada, como a da mais absoluta eficácia preclusiva desta em relação ao deduzido e ao
dedutível e como a geral e integral sanatória de eventuais nulidades da sentença (Pontes de
Miranda).27 Nesse quadro, sem a pressão dos dogmas que tradicionalmente nos influenciam,
eles são capazes de aceitar com mais naturalidade certas restrições racionais à res judicata,
relativizando esta para a observância de outros princípios e outras necessidades. Diz a
propósito a conceituada Mary Kay Kane: “há circunstâncias em que, embora presentes os
requisitos para a aplicação da coisa julgada, tal preclusão não ocorre. Essas situações
ocorrem quando as razões de ordem judicialalimentadas pela coisa julgada são superadas
por outras razões de ordem pública subjacentes à relação jurídica que estiver em discussão”
(trad. livre) [28]. Com dois cases, a professora ilustra essa linha sistemática.
Primeiro case. Em um processo relacionado com a compra-e-venda de imóvel, no qual
ambas as partes buscavam título de propriedade, a Corte rejeitou a alegação de coisa julgada
porque do contrário chegar-se-ia a um resultado injusto e não se teria a definição de um
título para a propriedade — quando a orientação jurídica referente à transferência de
propriedade exige que alguma definição quanto ao domínio seja oferecida às partes (Adams
vs. Pearson, Ill. 1952). Segundo case. A coisa julgada foi afastada em razão das regras da
leisalarial, de modo que uma ação anterior, omitindo alguns pedidos possíveis, não teve o
efeito de excluir a tutela de direito estatutário, limitando-se a reduzir-lhe o valor (Varsity
Amusement Co. vs. Butters, Colo. 1964).
Tais pensamentos são valorizados e legitimados pela ponderada ressalva de que “são
necessariamente limitadas essas exceções à normal aplicação dos princípios da coisa julgada.
Elas dependem da presença de razões sociais específicas e importantes, para que a coisa
julgada possa ser desconsiderada” (trad. livre) [29]
Ressalva dessa ordem está presente também na obra em cooperação de que participa
a mesma profa. Mary Kay Kane, em parceria com Jack H. Friedenthal e Arthur R. Miller, onde
se lê: “é importante observar que embora muitos casos possam depor no sentido de autorizar
exceções fundadas no ‘interesse público’ ou no fato de ‘evitar a injustiça’, essas assertivas
são geralmente exageradas. Como se verá, as exceções à coisa julgada são mais comumente
invocadas, e com mais propriedade, somente em situações específicas nas quais se repute
presente uma razão especial para superar os interesses da ordem processual”. Mas isso está
escrito em um parágrafo intitulado “exceções à aplicação da coisa julgada”, onde os autores,
antes de expor seus exemplos a partir de cases, arrolam as razões capazes de suplantar a
autoridade da coisa julgada [30].
“Em primeiro lugar, há situações em que as normais conseqüências da coisa julgada
podem comprometer certos escopos de disposições constitucionais ou legais, de modo que,
quando isso acontecer, ulteriores demandas sobre a mesma matéria devem ser admitidas”.
Os exemplos oferecidos, de difícil compreensão ao leitor brasileiro, referem-se a casos em
que, pelo direito norte-americano, ordinariamente ocorreria uma eficácia preclusiva mas esta
foi afastada porque “os direitos em jogo se reputavam suficientemente importantes para
superar a necessidade de uma decisão definitiva”.
A posição dos tribunais e dos autores americanos, como se vê, é de uma consciente e
equilibrada relativização da coisa julgada, cujo efeito imunizante eles condicionam à
compatibilidade com certos valores tão elevados quanto o da definitividade das decisões.
Evitar a propagação de litígios, sim, mas evitá-la sem prejuízo a esses valores. Esse
pensamento está presente na obra de James-Hazard-Leubsdorf, onde se coloca de modo
explícito a regra de equilíbrio entre duas exigências opostas, de que venho falando, quando
eles dizem: “em diversos pontos pusemos em destaque o conflito entre dois fundamentais
objetivos da lei processual. De um lado, o sistema processual procura favorecer a plena
efetividade das discussões e das possibilidades probatórias de todas as partes, de modo que a
causa possa ser bem decidida no mérito; de outro, o sistema cuida também de proporcionar
a oferta de uma conclusão final com razoável rapidez e a um custo suportável”.31 Reputo

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emblemática e fortemente representativa do pensamento norte-americano sobre a coisa
julgada essa passagem colhida em doutrina mais antiga:
“os tribunais somente podem fazer o melhor a seu alcance para encontrar a
verdade com base na prova, e a primeira lição que se deve aprender em tema de coisa
julgada é que as conclusões judiciais não podem ser confundidas com a verdade
absoluta” (Currie) [32].

11. Um caso examinado pela profª. Ada Pellegrini Grinover

A conhecida estudiosa cuidou do caso de uma demanda de anulação de escritura de


reconhecimento de filiação, cujo fundamento era que tal declaração estaria eivada de
falsidade ideológica porque o declarante seria impotente ao tempo e o filho teria sido
concebido antes de qualquer relacionamento entre aquele e a mãe deste. Essa demanda foi
julgada improcedente, sobrevindo a coisa julgada. Cogitou-se depois da propositura de uma
demanda declaratória de inexistência de relação de paternidade entre o mesmo autor e o
mesmo réu; e a profª. Ada Pellegrini Grinover, consultada, em parecer respondeu que inexiste
o óbice da coisa julgada como impedimento a essa propositura [33]
Esse estudo coloca-se preponderantemente no plano dogmático e técnico- processual,
ao propor o estudo do caso à luz da teoria “dos limites objetivos da coisa julgada, da
correlação entre o objeto da demanda e o objeto da sentença”. Afirmou coisas de absoluto
acerto sobre a coisa julgada incidente de modo exclusivo sobre o preceito decisório da
sentença, sem estender-se aos motivos, como é cediço em doutrina e está claramente
disposto nos incisos do art. 469 do Código de Processo Civil. Invocou doutrina antiga e
doutrina moderníssima, convergentes sobre o tema. Mesmo assim, sente-se que a ilustre
professora foi movida pelo grande empenho, que coincide com o meu, por delimitar o âmbito
de incidência da coisa julgada, deixando fora de seus limites objetivos toda e qualquer
demanda que não coincida rigorosamente com a que já houver sido proposta e julgada. Suas
palavras são significativas nesse sentido, quando diz que “aquela demanda não teve
propriamente por objeto a declaração de inexistência da paternidade”. Parece claro que ela
quis realmente fazer uma opção.
De todo modo, a posição assumida em dito parecer é muito significativa e útil como
alerta contra possíveis ímpetos no sentido de ampliar os limites objetivos do julgado e, no
presente caso, serve muito como fundamento para a inadmissibilidade da reclamação
endereçada ao Col. Superior Tribunal de Justiça (infra, nº 34).

12. Não levar longe demais a autoridade da coisa julgada

Uma coisa resta certa depois dessa longa pesquisa, a saber, a relatividade da coisa
julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros
valores de igual ou maior grandeza e necessidade de harmonizá-los. Tomo a liberdade de,
ainda uma vez, enfatizar a imperiosidade de equilibrar as exigências de segurança e de
justiça nos resultados das experiências processuais, o que constitui o mote central do
presente estudo e foi anunciado desde suas primeiras linhas. É por amor a esse equilíbrio que,
como visto, os autores norte-americanos — menos apegados que nós ao dogma da res judicata
— incluem em seus estudos sobre esta a indicação das exceções à sua aplicação. Na doutrina
brasileira, insere-se expressivamente nesse contexto a advertência de Pontes de Miranda,
acima referida, de que se levou longe demais a noção de coisa julgada. É igualmente central
a esse sistema de equilíbrio a fórmula proposta em Portugal pelo constitucionalista Jorge
Miranda e também citada acima, ao propor que “assim como o princípio da
constitucionalidade fica limitado pelo respeito do caso julgado, também este tem de ser
apercebido no contexto da Constituição”. São essas as grandes premissas e as colunas em que

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se apóiam a minha tentativa de sistematização do riquíssimo tema em exame e as conclusões
que oferecerei em resposta à consulta recebida.
Para a reconstrução sistemática do estado atual da ciência em relação ao tema, é
também útil recapitular em síntese certos pontos particulares revelados naquela pesquisa, a
saber:
I - o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade como condicionantes da imunização
dos julgados pela autoridade da coisa julgada material;
II - a moralidade administrativa como valor constitucionalmente proclamado e cuja
efetivação é óbice a essa autoridade em relação a julgados absurdamente lesivos ao Estado;
III - o imperativo constitucional do justo valor das indenizações em desapropriação
imobiliária, o qual tanto é transgredido quando o ente público é chamado a pagar mais, como
quando ele é autorizado a pagar menos que o correto;
IV - o zelo pela cidadania e direitos do homem, também residente na Constituição Federal,
como impedimento à perenização de decisões inaceitáveis em detrimento dos particulares;
V - a fraude e o erro grosseiro como fatores que, contaminando o resultado do processo,
autorizam a revisão da coisa julgada;
VI - a garantia constitucional do meio-ambiente ecologicamente equilibrado, que não deve
ficar desconsiderada mesmo na presença de sentença passada em julgado;
VII - a garantia constitucional do acesso à ordem jurídica justa, que repele a perenização de
julgados aberrantemente discrepantes dos ditames da justiça e da eqüidade;
VIII - o caráter excepcional da disposição a flexibilizar a autoridade da coisa julgada, sem o
qual o sistema processual perderia utilidade e confiabilidade, mercê da insegurança que isso
geraria.
A partir desses elementos, duas ordens de raciocínios procurarei desenvolver no
capítulo a seguir, tentando com eles chegar à definição dos modos e limites de uma desejável
e equilibrada relativização da garantia constitucional da coisa julgada. Proponho-me:
a) a indicar critérios para a relativização racional e equilibrada da coisa julgada,
sopesando valores e opinando sobre quais devem prevalecer sobre o desta e quais não, em
quais circunstâncias sim e em quais circunstâncias não etc.;
b) a sugerir os modos como o Poder Judiciário pode ser chamado e deve manifestar-se
a esse respeito, ou seja, os remédios de que dispõem os litigantes para tentar a liberação do
vínculo que a coisa julgada representa.

§ 3o - Proposta de sistematização

13. A coisa julgada material na garantia constitucional, na disciplina legal e no sistema

Na fórmula constitucional da garantia da coisa julgada está dito apenas que a lei não a
prejudicará (art. 5o, inc. XXXVI), mas é notório que o constituinte minus dixit quam voluit,
tendo essa garantia uma amplitude mais ampla do que as palavras poderiam fazer pensar. Por
força da coisa julgada, não só o legislador carece de poderes para dar nova disciplina a uma
situação concreta já definitivamente regrada em sentença irrecorrível, como também os
juízes são proibidos de exercer a jurisdição outra vez sobre o caso e as partes já não dispõem
do direito de ação ou de defesa como meios de voltar a veicular em juízo a matéria já
decidida. Tal é a essência da coisa julgada, de que cuida Liebman ao dizer que ela consiste
“na imutabilidade da sentença, do seu conteúdo e dos seus efeitos, o que faz de\a um ato do
poder público portador da manifestação duradoura da disciplina que a ordem jurídica
reconhece como aplicável à relação sobre a qual se tiver decidido” [34].

11
Com esses contornos, a coisa julgada é mais que um instituto dedireito processual. Ela
pertence ao direito constitucional, segundo Liebman [35], ou ao direito processual material,
para quem acata a existênciadesse plano bifronte do ordenamento jurídico [36]. Resolve-se
em uma situação de estabilidade, definida ela lei, instituída mediante o proceso, garantida
constitucionalmente e destinada a proporcionar segurança e paz de espírito às pessoas.
Na lei processual, a concreta ocorrência da coisa julgada é condicionada ao advento da
irrecorribilidade da sentença (art. 467) e, uma vez que ela ocorra, o juiz é proibido de
pronunciar-se novamente sobre a mesma demanda, seja no mesmo processo ou em outro
(arts. 267, inc. V, 467, 468, 471, 474 etc.). De modo expresso, dois remédios apenas
predispõe a lei para a infringência a sentenças de mérito cobertas pela autoridade da coisa
julgada, a saber, (a) a ação rescisória e, em uma única hipótese (b) os embargos à execução.
Aquela, como é notório, é admissível no campo estrito dos fundamentos tipificados em lei
(incisos do art. 485); os embargos do executado só são meio hábil a desfazer os efeitos da
sentença, quando fundados na falta ou nulidade de citação do demandado no processo de
conhecimento, havendo ele ficado revel (art. 741, inc. I).
Alguma abertura, fora desses casos e desses modos processuais para a revisão de
sentenças passadas em julgado, existe ainda na disposição contida no art. 463, inc. I, do
Código de Processo Civil, autorizador de nova decisão depois de publicada a sentença, em
caso de inexatidões materiais ou erros de cálculo. Como postura geral, têm os tribunais
entendido que tais inexatidões ou erros só são oponíveis quando não passarem de meros
equívocos no modo de expressar as intenções do julgador, não se admitindo a revisão das
sentenças se o juiz houver adotado conscientemente um critério ou chegado
intencionalmente a um resultado aritmético, especialmente quando sobre o tema tiver havido
discussão entre as partes. Há também casos de ineficácia da sentença, para os quais o
Supremo Tribunal Federal reputa hábil qualquer meio a ser experimentado pelo sujeito
atingido ou ameaçado pelos efeitos de um julgamento dado em processo sem sua participação
(o que sucede quando houver sido omitido um litisconsorte necessário-unitário); entre essas
vias admitidas inclui-se a de um processo autônomo, com pedido de declaração de nulidade
ou ineficácia da sentença [37].
Tal é o material jurídico-positivo e tais as aberturas sistemáticas sobre as quais se
apoiarão os raciocínios a desenvolver no presente capítulo, a partir do próximo item.

14. Método indutivo

Há um indisfarçável casuísmo em todo o elenco de casos em relação aos quais foi


aceito ou preconizado algum meio de mitigar os rigores da coisa julgada. Assim foi na história
muito eloqüente do fazendeiro uruguaio que simulou um processo a dano do filho
extraconjugal, contada por Eduardo Couture; assim é nos cases da jurisprudência norte-
americana indicados por Mary Kay Kane; assim também naquela desapropriação indireta onde
a Fazenda do Estado de São Paulo fora condenada a indenizar por ter “invadido” um imóvel
que era de sua propriedade ou naquela história da Fazenda condenada e executada duas
vezes pela mesma indenização; também nos casos de avaliações imobiliárias superadas pelo
agravamento da inflação e decurso de longo tempo, com ou sem culpa do ente expropriante,
considerados pelo Supremo Tribunal Federal; e ainda nos muitos precedentes levantados por
Juan Carlos Hitters a partir da jurisprudência argentina.
O que há de comum em todos esses casos é a premissa consistente na prevalência do
substancial sobre o processual, ou seja, o culto ao valor do justoem detrimento das regras
processuais sobre a coisa julgada. Não vejo, porém, constantes critérios objetivos para a
determinação das situações emque essa autoridade deve ser afastada ou mitigada, nem dos
limites dentro dos quais isso deve acontecer. Alguns sinais já foram dados, no entanto, como
a alusão a uma coisa julgada inconstitucional (José Augusto Delgado) e a invocação de outras
garantias constitucionais que com a coisa julgada devem conviver, como a da moralidade
administrativa, a do justo preço nas desapropriações e a do meio-ambiente ecologicamente
12
equilibrado (Mazzilli). Invocam-se também a fraude, o princípio da razoabilidade e o da
proporcionalidade, como fundamentos para a relativização da autoridade da coisa julgada em
certos casos.
Proponho-me, neste ponto, a tentar o esboço de uma reconstrução dogmática dos
princípios e conceitos emergentes dessas idéias colhidas aqui e ali, em busca de critérios
objetivos constantes e capazes de oferecer segurança no trato da coisa julgada material em
face dos demais valores presentes na ordem jurídica. Será um trabalho conduzido pelo
método indutivo, partindo do particular em busca do geral — ou seja, partindo da casuística
levantada e das idéias invocadas em cada caso, com vista a encontrar um legítimo ponto de
equilíbrio entre a garantia constitucional da coisa julgada e aqueles valores substanciais.
Como fio condutor dessa investigação e das hipóteses de mitigação da coisa julgada, valho-me
do conceito técnico-jurídico da impossibilidade jurídica dos efeitos da sentença.

15. Coisa julgada, efeitos da sentença e impossibilidades jurídicas

No plano puramente conceitual, sabe-se e já foi lembrado acima que a coisa julgada
material consiste na imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença, ou seja, na sua
imunidade a futuros questionamentos. Quem já era credor, ou já tinha o direito à anulação
de um contrato, ou à retomada de um imóvel etc., com o advento da coisa julgada terá o
mesmo direito que tinha antes, mas agora com a aura de uma intangibilidade e perenidade
que antes não havia. São efeitos substanciais da sentença, que a coisa julgada material
pereniza, a declaração de existência ou inexistência de uma relação, a constituição de uma
situação jurídico-substancial nova ou a declaração da existência de um direito, acompanhada
da criação de um título executivo que o ampare (sentenças meramente declaratórias,
constitutivas ou condenatórias); e tais efeitos reputam-se substanciais, em oposição aos
efeitos processuais que todas as sentenças têm, porque se referem às realidades da vida dos
litigantes, em suas relações um com o outro ou com os bens da vida (supra, nº 1). Ora,
incidindo a auctoritas rei judicatæ sobre os efeitos substanciais da sentença, é óbvia a
constatação de que, onde esses efeitos inexistam, inexistirá também a coisa julgada material.
É isso que se dá nas sentenças terminativas, que, pondo fim ao processo sem julgar-lhe o
mérito (ou seja, sem pronunciar-se sobre a pretensão trazida pelo demandante), nada
dispõem sobre as relações substanciais eventualmente existentes entre os litigantes na vida
comum — e tal é a razão por que, segundo entendimento comum e absolutamente pacífico,
tais sentenças podem ficar cobertas da coisa julgada formal, mas da material, jamais. Agora,
pensando na problemática central do presente estudo, digo que é isso que se dá também com
certas sentenças de mérito que, pretendendo ditar um preceito juridicamente impossível,
não têm força para impor-se sobre as normas ou princípios que o repudiam. Só
aparentemente elas produzem os efeitos substanciais programados, mas na realidade não os
produzem porque eles são repelidos por razões superiores, de ordem constitucional.
Imagine-se uma sentença que declarasse o recesso de algum Estado federado
brasileiro, dispensando-o de prosseguir integrado na República federativa do Brasil. Um
dispositivo como esse chocar-se-ia com um dos postulados mais firmes da Constituição
Federal, que é o da indissolubilidade da Federação. Sequer a mais elevada das decisões
judiciárias, proferida que fosse pelo órgão máximo do Poder Judiciário, seria suficiente para
superar a barreira política representada pelo art. 1o da Constituição. Imagine-se também uma
sentença que condenasse uma pessoa a dar a outrem, em cumprimento de cláusula
contratual, determinado peso de sua própria carne, em conseqüência de uma dívida não
honrada [38]. ou que condenasse uma mulher a proporcionar préstimos de prostituta ao
autor, em cumprimento ao disposto por ambos em cláusula contratual. Sentenças como essas
esbarrariam na barreira irremovível que é o zelo pela integridade física e pela dignidade
humana, valores absolutos que a Constituição Federal cultiva (art. 1o, inc. III e art. 5o).
Pensar ainda na condenação do devedor à prisão por dívida, fora dos casos
constitucionalmente ressalvados (art. 5o, inc. LXVII).

13
Ora, como a coisa julgada não é em si mesma um efeito e não tem dimensão própria,
mas a dimensão dos efeitos substanciais da sentença sobre a qual incida (supra, nº 1), é
natural que ela não se imponha quando os efeitos programados na sentença não tiverem
condições de impor-se. Por isso, como a Constituição não permite que um Estado se retire da
Federação, ou que se imponha por execução forçada o cumprimento da obrigação de dar um
peso da própria carne etc., da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre
logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô-los.
Visivelmente, estou manejando o argumento das impossibilidades, antes empregado
por Pontes de Miranda e já referido neste estudo (supra, nº 7). Das três ordens de
impossibilidades por ele sugeridas, a jurídica é que tem maior aderência à problemática aqui
versada. A impossibilidade jurídica é bastante versada pelos processualistas em geral,
principalmente brasileiros, em relação ao pedido — dado que a possibilidade jurídica da
demanda é expressamente incluída pelo Código de Processo Civil entre as condições da ação
(art. 267, inc. VI). Conceitua-se como a inadmissibilidade do que o demandante pretende,
em tese — ou seja, independentemente das circunstâncias do caso [39]. A impossibilidade
jurídica do pedido, ou sua inadmissibilidade a priori, constitui antecipação da impossibilidade
jurídica do resultado pretendido, ou seja, dos efeitos sentenciais postulados. O pedido de
recesso da Federação, feito por um Estado, é juridicamente impossível porque juridicamente
impossível é o resultado pretendido. Idem, o pedido de condenação a dar um pedaço da
própria carne etc.
Uma sentença contendo o enunciado de efeitos juridicamente impossíveis é, em
verdade, uma sentença desprovida de efeitos substanciais, porque os efeitos impossíveis não
se produzem nunca e, conseqüentemente, não existem na realidade do direito e na
experiência da vida dos litigantes. Por mais que o juiz ou a mais elevada Corte do país
determine o recesso de uma unidade federativa, isso não acontecerá e esse efeito não se
produzirá, porque as forças da nação e do Estado estão autorizadas a impedi-lo, até pela
força se necessário. Por mais que uma sentença condenasse alguém a despojar-se em vida de
partes de seu corpo, essa sentença não comportaria execução alguma e legítima seria a
resistência que o condenado viesse a opor a ela. E, não havendo efeitos a serem imunizados
pela coisa julgada material, essa autoridade cai no vazio e não tem como efetivar-se.
A sentença com o enunciado de efeitos impossíveis não será um ato jurídico
inexistente, embora inexistentes os efeitos substanciais por ela programados. Como ato
jurídico processual, ela terá, p.ex., o efeito de pôr fim ao processo. Faltar-lhe-á somente a
eficácia pretendida. São de primeira importância as lições de Emilio Betti sobre a eficácia e
ineficácia do ato jurídico, de plena aplicação ao objeto do nosso tema [40].
Repito, para clareza: sentença portadora de efeitos juridicamente impossíveis não se
reputa jamais coberta pela res judicata, porque não tem efeitos suscetíveis de ficarem
imunizados por essa autoridade. Pode-se até discutir, em casos concretos, se os efeitos se
produzem ou não, se são ou não compatíveis com a ordem constitucional etc., mas não se
pode afirmar que, sem ter efeitos substanciais, uma sentença possa obter a coisa julgada
material. Esse é um enunciado conceitual e metodológico, que se impõe independentemente
de qualquer tomada de posição em relação aos valores políticos, éticos, humanos ou
econômicos a serem preservados. Como dito, a sentença terminativa é um belo exemplo de
sentença que não obtém a autoridade da coisa julgada material porque não tem efeitos
externos, mas ela não é o único caso no sistema.
O que está dito acima coincide com a idéia posta por Humberto Theodoro Jr., de que
“as sentenças abusivas não podem prevalecer a qualquer tempo e a qualquer modo, porque a
sentença abusiva não é sentença”. Não cumpre a finalidade das sentenças de mérito aquela
que, por estar propondo um resultado impossível, não é capaz de produzir resultado algum.

16. Impossibilidade jurídica e convivência entre princípios e garantias

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Tornemos agora ao item inicial deste estudo, onde se salienta a necessidade de
estabelecer uma convivência equilibrada entre os princípios e garantias constitucionais, a
partir da idéia de que todos eles existem para servir o homem e oferecer-lhe felicidade, sem
que nenhum seja absoluto ou constitua um valor em si mesmo (supra, nº 1, com transcrição
de trechos de livro ainda no prelo). Não há uma garantia sequer, nem mesmo a da coisa
julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação das demais ou dos
valores que elas representam. Afirmar o valor da segurança jurídica (ou certeza) não pode
implicar desprezo ao da unidade federativa, ao da dignidade humana e intangibilidade do
corpo etc. É imperioso equilibrar com harmonia as duas exigências divergentes, transigindo
razoavelmente quanto a certos valores em nome da segurança jurídica mas abrindo-se mão
desta sempre que sua prevalência seja capaz de sacrificar o insacrificável.
Nessa perspectiva metodológica e levando em conta as impossibilidades jurídico-
constitucionais acima consideradas, conclui-se que é inconstitucional a leitura clássica da
garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e,
como era hábito dizer, capaz de fazer do preto branco e do quadrado, redondo. A
irrecorribilidade de uma sentença não apaga a inconstitucionalidade daqueles resultados
substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia. Daí a propriedade
e a legitimidade sistemática da locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada
inconstitucional.

17. Justo preço e moralidade: valores constitucionais relevantes

A premissa conceitual e sistemática é esta: a impossibilidade jurídica dos efeitos


substanciais programados pela sentença impede a formação da coisa julgada material porque
essa é uma autoridade incidente sobre efeitos e não pode incidir quando não houver efeito
algum que se possa produzir. Passemos agora à busca dos critérios para determinar, com
utilidade para a tomada de posição em relação ao caso, quais são essas forças capazes de
impedir que a sentença produza os efeitos programados. Ponhamos nossas atenções na
garantia constitucional da justa indenização e no princípio da moralidade administrativa, que
também é constitucionalmente consagrado.
Aparentemente, a garantia da justa e prévia indenização poderia parecer destinada com
exclusividade ao resguardo do direito de propriedade e, portanto, configurar-se apenas como
uma proteção endereçada aos particulares em face do Estado, sem ter também este como
destinatário. Essa insinuação vem não só da topologia da garantia, situada no capítulo dos
direitos e garantias individuais e coletivos, mas também de sua própria redação. Os
precedentes jurisprudenciais que se formaram a esse respeito, todavia, apóiam-se, ainda que
não tão explicitamente, em uma visão bipolar da garantia expressa pelo inc. XXIV do art. 5o
constitucional. Nessa perspectiva, o preço justo figura como uma garantia com que ao mesmo
tempo a Constituição Federal quer proteger a efetividade do direito de propriedade e
também resguardar o Estado contra excessos indenizatórios. Nem haveria como entender de
modo diferente o emprego do adjetivo justo, dado que a própria justiça é em si mesma um
conceito bilateral, não se concebendo que algo seja “justo” para um sujeito sem sê-lo para
outro. Não se faz “justiça” à custa de uma injustiça.
Ao discorrer sobre a justiça igualitária, corretiva ou sinalagmática, o jurisfilósofo Luís
Recaséns Siches põe em destaque o princípio de igualdade inerente a ela e realça
particularmente a equivalência entre o que se dá e o que se recebe. Depois, remontando à
æquitas romana, lembra o suum cuique tribuere como imperativo da eqüidade e da justiça
[41].
Essa comutatividade, sem a qual não há justiça, é reforçada, na ordem constitucional
brasileira, pela solene afirmação da moralidade administrativ como valor a ser objeto de
muita atenção pelo Estado, por seus governantes, por seus cidadãos e por seus juízes (Const.,
art. 5o, inc. LXXIII).

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Hely Lopes Meirelles, que há muito vinha expondo idéias sobre a moralidade
administrativa, mostrou que ela não coincide com a moral comum mas resolve-se na
fidelidade às normas inerentes à Administração Pública. Invocando Hauriou, diz que o
administrador, “ao atuar, não terá de decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o
injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o
honesto e o desonesto”. Ele “não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta”. [42]
Depois, a profa. Odete Medauar, procurando sair do vago e do impreciso, mostrou as
dificuldades antepostas ao correto entendimento da locução moralidade administrativa e com
muita agudeza de espírito veio a propor a contraposição entre moralidade e improbidade,
dizendo incisivamente: “a improbidade administrativa tem um sentido forte de conduta que
lese o erário público, que importe enriquecimento ilícito ou proveito próprio ou de outrem
no exercício de mandato, cargo, função, emprego público”. A prestigiosa professora paulista
invoca as disposições com que a Constituição Federal cuida da improbidade administrativa
(art. 37, § 4o e art. 85, inc. V) e vai à Lei da Improbidade Administrativa, que, entre outras
disposições, tipifica condutas criminosas de improbidade (Lei nº 8.429, de 2.6.92) [43].
Resulta que o conceito de moralidade administrativa coincide com a idéia de zelo
pelo patrimônio moral e material do Estado e dos demais entes públicos; não só os próprios
administradores são os institucionais guardiões desse valor, como também os demais órgãos
estatais e também o povo. A Constituição Federal manifesta essa intenção, em um primeiro
plano, ao dar aos integrantes do povo, que são os cidadãos, legitimidade para buscar da
Justiça a observância dos padrões exigíveis de moralidade administrativa (art. 5o, inc. LXXIII)
e, correspondentemente, ao outorgar aos juízes o poder de fazer o controle da moralidade e
da improbidade. Também ao Congresso Nacional é conferido o poder-dever de controlar as
contas do Chefe do Poder Executivo (art. 49, inc. IX) e, de um modo geral, “a fiscalização
contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonialda União e das entidades da
administração direta e indireta” (art. 70), para o que contará com o auxílio técnico do
Tribunal de Contas da União (art. 71). Confirma-se, portanto, que o encargo de zelar pela
moralidade administrativa é difuso entre os organismos estatais e membros do congregado
político denominado povo.
Nesse quadro, não é justa uma indenização que vá extraordinariamente além do valor
de mercado do bem, porque, ao contrariar a regra da moralidade administrativa, ela estará
em choque com os próprios objetivos do Estado, traçados na Constituição. Justiça é, na lição
sempre respeitada de Norberto Bobbio, a correspondência da norma “com os valores últimos
ou finais que inspiram um determinado ordenamento jurídico”. É lícito dizer, parafraseando
o grande pensador, que perguntar se uma indenização é justa ou injusta significa perguntar se
ela é ou não apta a atuar equilibradamente o valor da garantia da propriedade e o da
moralidade administrativa, plantados na Constituição Federal [44].

18. Sentenças juridicamente impossíveis - A favor ou contra o Estado

As premissas postas acima autorizam a firme conclusão de que a garantia


constitucional da justa indenização, tendo uma feição bifronte em sua destinação ao
expropriante e ao expropriado, implica simultaneamente repúdio a indenizações
absurdamente aquém do real e também repúdio a indenizações absurdamente acima do real.
Esse é um imperativo da interpretação dessa garantia em consonância com os postulados da
isonomia e da moralidade administrativa, também residentes na Constituição da República.
Desdobrando a garantia da justa indenização à luz dessa interpretação sistemática, temos
que: a) permitir que o ente público pague menos do valor real transgride o direito de
propriedade e a garantia de reposição patrimonial, que ela contém; b) exigir pagamento além
do valor real implica dano ao Estado e ultraje à moralidade administrativa,
constitucionalmente exigida.
Na linha dos conceitos e do método propostos nos tópicos precedentes, conclui-se
portanto (a) que são constitucionalmente impossíveis as determinações do valor indenizatório

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muito além ou absurdamente aquém do devido; b) que as decisões judiciárias contendo
determinações assim absurdas não são capazes de impor os efeitos programados, porque
colidiriam com aquelas superiores regras constitucionais; c) que, não havendo efeitos
substanciais suscetíveis de serem impostos, não incide a coisa julgada material sobre ditas
sentenças, porque essa autoridade incide sobre efeitos substanciais e não tem como incidir
quando os efeitos forem repudiados por razões superiores — ou seja, quando esses efeitos
inexistirem no caso concreto.

19. A dimensão da conclusão proposta

Os precedentes jurisprudenciais brasileiros colhidos na pesquisa feita apontam


exclusivamente casos em que se questionavam indenizações a serem pagas pelo Estado,
notando-se até uma preocupação unilateral pela integridade dos cofres públicos, mas o tema
proposto é muito mais amplo, porque a fragilização da coisa julgada como reação a injustiças,
absurdos, fraudes ou transgressão a valores que não comportam transgressão, é suscetível de
ocorrer em qualquer área das relações humanas que são trazidas à apreciação do Poder
Judiciário. Onde quer que se tenha uma decisão aberrante de valores, princípios, garantias ou
normas superiores, ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e portanto não incidirá a
autoridade da coisa julgada material — porque, como sempre, não se concebe imunizar
efeitos cuja efetivação agrida a ordem jurídico-constitucional.
O critério proposto aplica-se em cheio ao caso, julgado pelo Superior Tribunal de
Justiça e já referido neste estudo (supra, nº 5), do ente estatal condenado a indenizar pelo
apossamento administrativo de um imóvel que depois se verificou ser de seu próprio domínio,
ou daquele que foi condenado duas vezes pelo mesmo dano causado ao particular (supra, nº
6). Aplica-se também ao caso narrado por Couture (supra, nº 8), do processo simulado
promovido em nome do filho adulterino de um rico fazendeiro, com o escopo de obter
sentença favorável a este. Deve aplicar-se também a todos os casos de ações de investigação
de paternidade julgadas procedentes ou improcedentes antes do advento dos modernos testes
imunológicos (HLA, DNA), porque do contrário a coisa julgada estaria privando alguém de ter
como pai aquele que realmente o é, ou impondo a alguém um suposto filho que realmente
não o é (infração ao disposto no art. 1o, incs. IIII, da Constituição Federal).
Não me impressiona o argumento de que, sem a rigorosa estabilidade da coisa julgada,
a vida dos direitos seria incerta e insegura, a dano da tranqüilidade social. Toda flexibilização
de regras jurídico-positivas traz consigo esse risco, como já venho reconhecendo há mais de
uma década; mas a ordem processual dispõe de meios para a correção de eventuais desvios
ou exageros, inclusive mediante a técnica dos recursos, da ação rescisória, da reclamação aos
tribunais superiores etc. [45]. Além disso, não estou a postular a sistemática desvalorização
da auctoritas rei judicatæ mas apenas o cuidado para situações extraordinárias e raras, a
serem tratadas mediante critérios extraordinários. Cabe aos juízes de todos os graus
jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraordinariedades que devam conduzir a
flexibilizar a garantia da coisa julgada, recusando-se a flexibilizá-la sempre que o caso não
seja portador de absurdos, injustiças graves, transgressões constitucionais etc. Não temo
insistir no óbvio, ao repetir que “o momento de decisão de cada caso concreto é sempre um
momento valorativo”.
Relembro a referência já feita à obra de autores norte-americanos, que, ao
sustentarem a necessidade de flexibilizar a coisa julgada, ressalvam a excepcionalidade dessa
solução (“são necessariamente limitadas essas exceções à normal aplicação dos princípios da
coisa julgada. Elas dependem da presença de razões sociais específicas e importantes, para
que a coisa julgada possa ser desconsiderada” — supra, nº 11).
Aqui tem pertinência o reclamo, já feito por estudiosos do tema, à razoabilidade
interpretativa como indispensável critério a preponderar quando tais valorações são feitas
nos pronunciamentos judiciais: o logos de lo razonable, da notória e prestigiosa obra de
Recaséns Siches, quer que se repudiem absurdos agressivos à inteligência e aos sentimentos
17
do homem comum, sendo absurdo eternizar injustiças para evitar a eternização de
incertezas. O jurista jamais conseguiria convencer o homem da rua, p.ex., de que o não-pai
deva figurar como pai no registro civil, só porque ao tempo da ação de investigação de
paternidade que lhe foi movida, inexistiam os testes imunológicos de hoje e o juiz decidiu
com base na prova testemunhal. Nem o contrário: não convenceríamos o homem da rua de
que o filho deva ficar privado de ter um pai, porque ao tempo da ação movida inexistiam
aquelas provas e a demanda foi julgada improcedente, passando inexoravelmente em
julgado.
Homem da rua é o homem simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos,
mas capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato e o insensato, o justo e o injusto,
segundo a imagem criada por Piero Calamandrei (l’uomo della strada).
Para dar efetividade à equilibrada flexibilização da coisa julgada em casos extremos,
insisto também na afirmação do dever, que a ordem político-jurídica outorga ao juiz, de
postar-se como autêntico canal de comunicação entre os valores da sociedade em que vive e
os casos que julga [46]. Não é lícito entrincheirar-se comodamente detrás da barreira da coisa
julgada e, em nome desta, sistematicamente assegurar a eternização de injustiças, de
absurdos, de fraudes ou de inconstitucionalidades.
O juiz deve ter a consciência de que a ordem jurídica é composta de um harmonioso
equilíbrio entre certezas, probabilidades e riscos ,sendo humanamente impossível pensar no
exercício jurisdicional imune a erros. Sem a coragem de assumir racionalmente certos riscos
razoáveis, reduz-se a possibilidade de fazer justiça. O importante é saber que onde há riscos
há também meios para corrigi-los, o que deve afastar do espírito do juiz o exagerado apego à
perfeição e o temor pânico aos erros que possa cometer [47]. O juiz que racionalmente negar
a autoridade da coisa julgada em um caso saberá que, se estiver errado, haverá tribunais com
poder suficiente para reformarlhe a decisão. Deixe a vaidade de lado e não tema o erro,
sempre que estiver convencido da injustiça, da fraude ou da inconstitucionalidade de uma
sentença aparentemente coberta pela coisa julgada.

20. Remédios processuais adequados

A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada caso


concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir de quando se
aceite a tese da relativização dessa autoridade — esse, sim, o problema central, polêmico e
de extraordinária magnitude sistemática, como procurei demonstrar. Tomo a liberdade de
tornar à lição de Pontes de Miranda e do leque de possibilidades que sugere, como (a) a
propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada, (b) a
resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao
próprio processo executivo e (c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo,
inclusive em peças defensivas [48].
No caso do ente estatal condenado a indenizar sem ter ocupado imóvel alheio, depois
do trânsito em julgado chegou a ser celebrado entre as partes um negócio jurídico (transação)
e a Fazenda veio a juízo com pedido de anulação deste, simplesmente desconsiderando a
coisa julgada anterior; o Superior Tribunal de Justiça aceitou a admissibilidade dessa via e
prestigiou a pretensão fazendária, porque o importante era afastar o absurdo que a
auctoritas rei judicatæ ia perenizando. No caso da avaliação que ficou desatualizada por
causa da inflação, alterações ocorridas na ordem econômica e retardamento
intencionalmente causado pelo ente expropriante, o expropriado obteve do Supremo Tribunal
Federal a determinação de que se realizasse nova avaliação no mesmo processo da ação
expropriatória. O menino uruguaio que fora vítima de um fraudulento processo de
investigação de paternidade limitou-se a repetir em juízo a propositura dessa demanda,
aparentemente transgredindo o veto ao bis in idem, que ordinariamente se imporia. A
Fazenda que fora condenada duas vezes pelo mesmo imóvel e satisfez a obrigação na primeira
das execuções instauradas, opôs embargos à segunda delas e esses embargos foram recebidos.
18
A casuística levantada demonstra que os tribunais não têm sido particularmente
exigentes quanto à escolha do remédio técnico-processual ou da via processual ou
procedimental adequada ao afastamento da coisa julgada nos casos em exame. Em caso de
sentença proferida sem a regular citação do réu, admitiu o Supremo Tribunal Federal que
esse vício tanto pode ser examinado em ação rescisória, quanto mediante embargos à
execução se for o caso (sentença condenatória) ou ainda em “ação declaratória de nulidade
absoluta e insanável da sentença” (voto condutor: min. Moreira Alves).49 Para a hipótese
específica de desobediência às regras do litisconsórcio necessário-unitário, também venho
sustentando essa ampla abertura de vias processuais, cabendo ao interessado optar pela que
mais lhe convenha — seja a ação rescisória [50], mandado de segurança se houver liqüidez-e-
certeza, ação declaratória de ineficácia etc. (essas idéias estão em monografia sobre o tema
do litisconsórcio, referindo e apoiando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal) [51].
A ação autônoma a que alude o Supremo Tribunal Federal é aquela sugerida por Piero
Calamandrei, segundo o qual “o único meio adequado contra a sentença nula será a ação
declaratória negativa de certeza, mediante a qual, sem aportar modificação alguma ao
mundojurídico, far-se-á declarar o caráter negativo que o conteúdo dasentença trouxe
consigo desde o momento de sua concepção” [52]. O Supremo, corretamente, ao aceitar o
alvitre dessa ação autônoma não a toma como caminho único para o resultado pretendido.

21. Ação rescisória

Outra legítima abertura ao reconhecimento da inconstitucionalidade dacoisa julgada


em casos extremos pode e deve ser o redimensionamento da ação rescisória e dos limites de
sua admissibilidade. Ela é tradicionalmente apontada como um remédio rigorosamente
extraordinário de infringência à coisa julgada material, reputada esta um valor a ser
preservado a todo custo e sujeito a questionamentos apenas em casos verdadeiramente
extraordinários. O rol das hipóteses de sua admissibilidade é um numerus clausus (CPC, art.
485) e os tribunais brasileiros esmeram-se em afunilar a interpretação de cada um dos incisos
que tipificam as hipóteses de sua admissibilidade, sempre assumida a premissa da prevalência
do valor da segurança jurídica. Na nova ordem de relativização da coisa julgada material,
contudo, é imperioso abrir os espíritos para a interpretação dos incisos do art. 485 do Código
de Processo Civil, de modo a permitir a censura de sentenças ou acórdãos pelo prisma da
constitucionalidade das decisões que contêm — ou seja, impõe-se a relativa e prudente
flexibilização das hipóteses de admissibilidade da ação rescisória, para que ela sirva de
remédio contra os males de decisões flagrantemente inconstitucionais, ou fundadas em prova
falsa, na fraude ou no dolo de uma das partes em detrimento da outra etc.
Dezenas de servidores de determinado ente estatal vieram à Justiça e obtiveram a
vantagem funcional que pleiteavam, com trânsito em julgado do acórdão que os favorecia.
Outras dezenas de servidores do mesmo ente, ocupando a mesma situação estatutária que
aqueles outros, receberam julgamento desfavorável, também com trânsito em julgado.
Resultado prático: na mesma função, na mesma repartição ou até mesmo na mesma sala,
convivem servidores integrados na mesmíssima situação funcional, mas alguns percebendo
remuneração sensivelmente inferior à dos outros. Não é necessário maior esforço para afastar
essa revoltante quebra do princípio constitucional da isonomia, bastando interpretar o inc. V
do art. 485 do Código de Processo Civil no sentido de permitir que, pelo fundamento da
violação à literal garantia da igualdade substancial (Const., art. 5o, caput e inc. I), em sede
da ação rescisória se abra caminho para a concessão dos benefícios antes negados a um
significativo grupo de integrantes daquela categoria profissional.

22. Minhas preocupações

19
Uma das razões de meu empenho em descobrir e propor um critério geral para
relativizar racionalmente a autoridade da coisa julgada material é a tendência, que em várias
manifestações tenho visto, a buscar soluções benéficas ao Estado sem pensar nos adversários
dos entes estatais e em todos os sujeitos que, de algum modo, tenham sua esfera de direitos
comprimida pelos rigores da coisa julgada. Repudio os privilégios dados pela lei processual ao
Estado, que reputo de índole fascista; sou um crítico do Estado-inimigo, que litiga e resiste
em juízo com a consciência de não ter razão, abusando do direito de recorrer com o objetivo
de postergar a satisfação de suas vítimas; reputo indecente a prática de legislar mediante
medidas provisórias destinadas a ampliar os privilégios do Estado em juízo e combato as
repetidas indulgências dos juízes para com os entes estatais, a dano da garantia
constitucional da isonomia. Nesse quadro, é de esperar que não aceite nem endosse soluções
favoráveis ao Estado, só porque favoráveis ao Estado — e isso justifica o grande esforço por
uma reconstrução dogmática e conceitual muito sólida e coerente, a que me apliquei no
presente estudo, evitando casuísmos. É indispensável o estabelecimento de uma linha de
equilíbrio, que favoreça o Estado quando for ele o lesado por decisões absurdas, mas que
também favoreça quem quer que se encontre em situação assim — ou seja, postulo uma linha
sem qualquer engajamento com os interesses nem sempre justos nem condizentes com o da
população, com enorme freqüência sustentados pelos defensores estatais.
O próprio Superior Tribunal de Justiça, que no caso acima indicado relativizou a coisa
julgada em benefício do Estado (supra, nº 5), em outra Turma radicalizou ao extremo essa
autoridade, ao dizer que “seria terrificante para o exercício da jurisdição se fosse
abandonada aregra absoluta da coisa julgada”, sendo libertadora a regra legal que a assegura
(CPC, art. 468). Tratava-se de uma sentença já trânsita em julgado, afirmando a paternidade
de uma pessoa em face de um suposto filho, sem a realização do exame de DNA. Tal exame,
feito depois de consumada a coisa julgada, veio a afastar essa paternidade, mas o Superior
Tribunal de Justiça fez prevalecer a autoridade do julgado, nos termos absolutos retratados
na ementa [53]. O resultado é que, em homenagem ao mito da segurança das relações
jurídicas, aquela pessoa arcará com todos os deveres de pai perante uma pessoa que não é
seu filho e em relação ao qual provavelmente não nutre afeição alguma; seus filhos daquela
pessoa suportarão, no futuro, uma partilha que aquinhoará o não-filho. Esse fortíssimo
precedente jurisprudencial, que se alinha na postura tradicional em relação à auctoritas rei
judicatæ e portanto é uma manifestação integrada em determinado ambiente cultural, na
minha óptica merece a censura que merece o próprio pensamento tradicional e suscita ainda
uma vez, a preocupação em equilibrar valores constitucionais, sem dar peso absoluto a
qualquer um deles. Vejo também com muita preocupação a relativa disposição a favorecer o
Estado com a flexibilização da coisa julgada, sem flexibilizá-la em prol de outros sujeitos ou
em face de valores ainda mais nobres que os relacionados com os interesses estatais
puramente patrimoniais. Animo-me no entanto com um julgado do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios, em que a autoridade do julgado foi corajosamente relativizada,
abrindo-se com isso caminho ao realista Reexame de uma relação de paternidade. Proclamou
o voto condutor do relator, des. Valter Xavier, ser “imperativo que os registros públicos
traduzam a efetiva realidade das coisas” e disse ainda que “o interesse público, no caso,
prevalece em face do interesse particular ou da estabilidade das decisões judicias”
Se tiver razão no que sustento, terei chegado a uma visão sistemática da relativização
da coisa julgada segundo critérios que em primeiro plano são objetivos — despontando
sobretudo o da prevalência de certos valores, constitucionalmente resguardados tanto quanto
a coisa julgada, os quais devem prevalecer mesmo com algum prejuízo para a segurança das
relações jurídicas. Daí aceitar a idéia da coisa julgada inconstitucional, que assenta na
premissa da harmoniosa convivência entre todos os princípios e garantias plantados na ordem
constitucional, nenhum dos quais pode ser tratado como absoluto. A posição defendida tem
apoio também no equilíbrio, que há muito venho postulando, entre duas exigências opostas
mas conciliáveis — ou seja, entre a exigência de certeza ou segurança, que a autoridade da
coisa julgada prestigia, e a de justiça e legitimidade das decisões, que aconselha não
radicalizar essa autoridade. Nessa linha, repito: a ordem constitucional não tolera que se
eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios.

20
A linha proposta não vai ao ponto insensato de minar imprudentemente a auctoritas
rei judicatæ ou transgredir sistematicamente o que a seu respeito assegura a Constituição
Federal e dispõe a lei. Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações
extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações
à Constituição — com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser
tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. Não me move o intuito
de propor uma insensata inversão, para que a garantia da coisa julgada passasse a operar em
casos raros e a sua infringência se tornasse regra geral.

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25. LIEBMAN, Enrico Tullio, “Nulidade da Sentença Proferida sem Citação do Réu”, in Estudos
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26. LIEBMAN, Enrico Tullio. Efficacia ed Autorità Della Sentenza, Milão, Giuffrè, 1962
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27. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di Diritto Processuale Civile, 4a ed., Milão, Giuffrè,
1981.
28. LIEBMAN. Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil, I, 2a ed., Rio, Forense, 1987
(trad. Cândido Rangel Dinamarco).
29. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento, Brasília, UnB, 1980.
30. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 10a ed., S. Paulo,
Saraiva, 1998.
31. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 4a ed., S.Paulo, Ed. RT, 2000.
32. MEIRELLES, Hely Lopes.Direito Administrativo Brasileiro, 17a ed., S.Paulo, Malheiros,
1992.
33. MILLER, Arthur R. Civil Procedure - Cases and Materials, 6a ed., St. Paul (Minn.), West
Publishing, 1993 (em coop.).
34. MILLER, Arthur R. Civil Procedure, St. Paul (Minn.), West Publishing, 1993 (em coop.).
35. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 3a ed., Coimbra, Coimbra Edit., 1996.
36. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil (de
1939), 2a ed., Rio, Forense, 1960.
37. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ação Rescisória das Sentenças e de
Outras Decisões, 5a ed., Rio, Forense, 1976.
38. RECASÉNS SICHES, Luís. Tratado General de Filosofía del Derecho, 9a ed., México, Porrúa,
1986.
39. SEXTON, John E. Civil Procedure - Cases and Materials, 6a ed., St. Paul (Minn.), West
Publishing, 1993 (em coop.).
40. THEODORO JR., Humberto. “Embargos à Execução Contra a Fazenda Pública”, na
coletânea Regularização Imobiliária de Áreas Protegidas, II, publicação do Centro de Estudos
da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, S.Paulo, 1999.

Notas.
1. Cf. DINAMARCO, “Intervenção de Terceiros”, nº 1, p. 14. Sentença é, por definição legal, o
“ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (CPC, art.
162, § 1o). Estamos falando da sentença de mérito, que é a única suscetível de obter a
autoridade da coisa julgada material.
2. Cf. DINAMARCO, “A Instrumentalidade do Processo”, nº 32, pp. 229 ss. O que ali digo tem
assento em sábias e notórias lições dos prestigiosos Piero Calamandrei e Francesco Carnelutti,
que cito.
3. Cf. DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, I, nº 96.

22
4. Cf. Apresentação da edição brasileira de “Legitimação pelo Procedimento”, p. 3.
5. Cf. “Efficacia ed Autorità Della Sentenza”, § 1o, esp. p. 5.
6. Cf. “Efficacia ed Autorità Della Sentenza”, nº 19, pp. 44-45; “Manuale di Diritto
Processuale Civile”, II, nº 395, esp. p. 422.
7. Neste último caso, sentença invariavelmente declaratória.
8. Cf. “Manuale di Diritto Processuale Civile”, II, nº 394, esp. p. 420.
9. Cf. BARBOSA MOREIRA, “Comentários ao Código de Processo Civil”, V, n. 222, p. 392.
10. Cf. DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, I, n. 73, e II, nn. 632-633.
11. Cf. “A Instrumentalidade do Processo”, que agora está na oitava edição e já foi citada
acima, esp. nº 36.3, p. 293.
12. Op. cit., nº 21, esp. p. 161
13. Cf. STJ, 1a T., REsp nº 240.712/SP, j. 15.2.2000, rel. José Delgado, m.v.
14. Cf. STF, 1a T., RE nº 93.412/SC, j. 4.5.82, rel. Rafael Mayer, m.v.
15. Cf. STF, 1a T., RE nº 105.012-RN, j. 9.2.88, rel. Néri da Silveira, m.v.
16. Cf. “Inflação e processo”, que figura como capítulo no livro-coletânea Fundamentos do
Processo Civil Moderno”, I, nºs 154-159, pp. 352 ss.
17. Cf. “Tratado da Ação Rescisória das Sentenças e de Outras Decisões”, § 18, nº 2, esp. p.
195.
18. Esses pensamentos estão no parecer editado com o título “Embargos à execução contra a
Fazenda Pública”.
19. Cf. “Revocación de los Actos Procesales Fraudulentos”, esp. nº 1, p. 388; sobre o
pensamento de Couture, v. ainda Juan Carlos Hitters, “Revisión de la Cosa Juzgada”, cap.
VIII, c, esp. pp. 255-257.
20. Cf. “Revisión de la Cosa Juzgada”, cap. VIII e IX, pp. 256 ss., esp. pp. 325.
21. Op. loc. cit., esp. pp. 305-306.
22. Op. loc. cit., esp. p. 272.
23. Cf. MAZZILLI, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, cap. 35, nº 3, pp. 171-172.
24. Cf. MAURO CAPPELLETTI, “Formações Sociais e Interesses Coletivos Diante da Justiça
Civil”, XII, esp. p. 147.
25. Cf. “Manual de Direito Constitucional”, II, nº 141, esp. pp. 494-495.
26. Cf. PETER HERZOG, “Histoire du Droit des États-Unis”, nºs 1-2, p. 3.
27. Cf. “Tratado da Ação Rescisória”, § 4o, nº 7, esp. p. 26.
28. Cf. “Civil Procedure”, §§ 6-10, p. 225. O texto em inglês está assim: “there are some
circumstances in which even though the standard for applying res judicata has been met,
preclusion will not result. These situations arise when the judicial economy policies fostered
by claim preclusion are outweighed by some other public policy underlying the type of action
that is envolved”.
29. Op. cit., p. 226.
30. Cf. “Civil Procedure”, § 14.8, pp. 657 ss.
31. Cf. FLEMING JAMES JR., GEOFFREY C. HAZARD JR. e JOHN LEUBSDORF, “Civil Procedure”,
§ 11.2, p. 579.
32. “Courts can only do their best to determine the truth on the basis of the evidence, and
the first lesson one must learn on the subject of res judicata is that judicial finding must not
be confused with abolute truth”: cfr. “Mutuality of collateral estoppel: limits of the
23
Bernhard doctrine”, 9 Stan. L.Rev. 281, 315 (1957), apud COUND-FRIENDENTHAL-MILLER-
SEXTON, “Civil Procedure — Cases and Materials”, cap. 17, p. 1.208.
33. Cf. parecer publicado in Informativo Incijuris, ano 1, nCfr. 10, Joinville, maio de 2000,
pp. 5-6, com a ementa “Coisa julgada. Limites objetivos. Objeto do processo. Pedido e causa
de pedir. Trânsito em julgado de sentença de improcedência de ação de nulidade de
escritura pública de reconhecimento de filiação. Possibilidade de ajuizamento de ação
declaratória de inexistência de relação de filiação, fundada em ausência de vínculo
biológico”.
34. Cf. “Manuale di Diritto Processuale Civile”, II, nº 394, esp. p. 420.
35. Cf. “Efficacia ed autorità Della Sentenza”, nº 15, pp. 40-41.
36. “Institutos Bifrontes: só no processo aparecem de modo explícito em casos concretos,
mas são integrados por um intenso coeficiente de elementos definidos pelo direito material e
– o que é mais importante – de algum modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas
relações entre si e com os bens da vida. Constituem pontes de passagem entre o direito e o
processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídico
(Calamandrei)” (cf. DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, I, nº 6).
37. Cf. DINAMARCO, “Litisconsórcio”, nº 64.8, esp. p. 293; nº 65.1, texto e nota 51, esp. p.
301.
38. Alusão ao drama “O mercador de Veneza”, em que o personagem shakespareano Khylock
alimentava uma pretensão desta ordem.
39. Cf. A apresentação do tema que faço na tese “Execução Civil”, nºs 246-250, pp. 382 ss.,
com farta indicação doutrinária.
40. Cf. “Teoria Generale Del Negozio Giuridico”, III, nº 57, esp. p. 9 trad.. Discorri sobre o
tema in “Fundamentos do Processo Civil Moderno”, I, nº 181, pp. 550 ss., esp. nota 28, pp.
551-552.
41. Cf. “Tratado General de Filosofía del Derecho”, cap. XVIII, nº 3, esp. p. 483.
42. Cf. “Direito Administrativo Brasileiro”, pp. 83-84.
43. Cr. “Direito administrativo moderno”, n. 7.6, pp. 148-150.
44. Cf. Teoria Genrerale Del diritto”, n. 9. pp. 23-24.
45. Cf. “A Instrumentalidade do Processo”, nº 36.3, pp. 293 ss.
46. Id. Ib
47. Op. cit., nº 33, pp. 236 ss.
48. Cf. “Tratado da Ação Rescisória”, § 18, nº 2, esp. p. 195.
49. STF, Pleno, RE nº 97.589, 17.11.82, rel. Moreira Alves, v.u., DJU 3.6 83.
50. Liebman nega a admissibilidade da ação rescisória nesse caso, porque a sentença seria
inexistente e, sendo inexistente, não haveria coisa julgada a debelar: cfr. “Nulidade da
Sentença Proferida Sem Citação do Réu”, p. 183.
51. Cf. DINAMARCO, “Litisconsórcio”, nºs 65 a 65.4, pp. 300 ss.
52. Cf. “Vizi Della Sentenza e Mezzi de Gravame”, n. 9., esp. p. 260.
53. Cf. STJ, 3a T., REsp nº 107.248, j. 7.5.98, rel. Menezes Direito, v.u., DJU 29.6.98, p. 160.

24
Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL
Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em


DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Disciplina

Prova, Sentença e Coisa Julgada

Aula 4

LEITURA COMPLEMENTAR 2

Ada Pellegrini Grinover


Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP),
Coordenadora Científica dos cursos de pós-graduação
da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes

PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
COISA JULGADA E JUSTA INDENIZAÇÃO.

Como citar este artigo:

GRINOVER, Ada Pellegrini. Princípio da proporcionalidade. Coisa


julgada e justa indenização. Material da 4ª aula da Disciplina Prova,
Sentença e Coisa Julgada, ministrada no Curso de Especialização
Telepresencial e Virtual em Direito Processual Civil – UNISUL - IBDP –
REDE LFG.
25
I) Colisão de princípios constitucionais.

O fenômeno de antagonismo, de tensão ou de colisão entre princípios de um mesmo


sistema jurídico – tanto mais quando tais princípios estejam consagrados em nível
constitucional – é, sem dúvida, um dos maiores desafios postos ao jurista contemporâneo.
Não que o tema seja novo, porque ele certamente é tão antigo quanto as tensões e
antagonismos que marcam a própria vida em sociedade e que o Direito se propõe a regular.
Contudo, fato é que, em tempos mais recentes, no confronto entre o público e o privado;
entre o cidadão e o Estado; entre o interesse público dito “primário” e o dito “secundário”,
para não falar na superação entre o público e o privado, pelo reconhecimento de direitos e
interesses pertencentes a coletividades de pessoas (determinadas ou mesmo indeterminadas);
por tudo isso, enfim, avulta o (quando menos) potencial conflito interno de valores tutelados
pelo ordenamento jurídico, gerando, como dito, tensões e antagonismos que precisam ser
resolvidos pelo próprio sistema.
Conforme já disse José Carlos Barbosa Moreira, “con mucha frecuencia deben tenerse
en consideración, al mismo tempo, dos o más princípios que tienden a proteger valores
igualmente importantes para el derecho, pero que son susceptibles de encontrarse en
recíproca oposición. Se trata de un fenomeno harto conocido: no sería temerario afirmar que
toda norma jurídica resulta de una tentativa, más o menos lograda, de conciliar
necessidades contrapuestas de política legislativa, entre las cuales es menester fijar un
punto de equilíbrio”1 (grifei).
Para mais adequado entendimento do fenômeno, não será demasiado lembrar, com
José Afonso da Silva, que princípios “são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas
de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] ‘núcleos de condenações’
nos quais confluem valores e bens constitucionais. Mas, como disseram os mesmos autores,
‘os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente
incorporadas, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da
organização constitucional”2.
A propósito do tema, Gomes Canotilho observou que os princípios não constituem uma
ordem ou sistema fechados e que, por isso mesmo, poderão se reconhecer momentos de
tensões ou antagonismos entre diferentes princípios que devem ser objeto de ponderação e
concordância prática. Nas palavras do constitucionalista português, “o facto de a
constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir
fenómenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes
princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou
sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo,
que ela é, muitas vezes o resultado de um compromisso entre vários actores sociais,
transportadores de ideais, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até
antagónicos ou contraditórios”3 (grifei). E conclui:

“Daí o reconhecimento de momentos de tensões ou antagonismos entre


vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os
princípios não obedecem, em caso de conflito, uma ‘lógica do tudo
ou nada’, antes podem ser objecto de ponderação e concordância
prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso concreto.
Assim, por ex., (...) se o princípio democrático, na sua dimensão
econômica, exige intervenção conformadora do Estado através de

1
“Resticciones a la prueba en la Costitución Brasileña”, in Revista de Derecho Procesal, n. 3, Madrid,
1995, p. 792.
2
Curso de direito constitucional positivo, 19ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2001, p. 96.
3
Direito constitucional e teoria da constituição, 4ª edição, Almedina, Coimbra – Portugal, pp.
1145/1146.
26
apropriação política dos meios de proteção (art. 83º), isso não significa
que se posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do
Estado de direito (princípio de legalidade, princípio da justa
indenização, princípio de acesso aos tribunais para discutir a medida de
intervenção)”4 (grifei)

Ainda sobre o tema, entre nós Alexandre de Moraes, lembrando o


pensamento de Jorge Miranda, observou que “a contradição dos princípios deve ser superada,
ou por meio de redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em
alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios”. Assim, nas
palavras do mencionado autor, “a aplicação dessas regras de interpretação deverá, em
síntese, buscar a harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas,
adequando-as à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e
liberdades públicas”5 (grifei).
Nessa mesma linha, Alexandre de Moraes lembra ainda que “os direitos e garantias
fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez
que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna
(princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). Desta forma, quando
houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve
utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e
combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos
outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em
busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua
finalidade precípua”6 (grifei). Nesse sentido Suzana de Toledo Barros observou que a
exigência de uma ponderação de interesses em conflitos demanda “uma tarefa de
concordância prática entre os direitos em jogo”7 (grifei).
Os direitos e garantias inscritos na Constituição, enfim, não podem ser lidos
isoladamente. Compõem eles um conjunto harmônico, exercendo limitações recíprocas, de
modo que cada princípio ou norma constitucional não seja posto por terra por outro princípio
ou norma constitucional. A interpretação constitucional demanda uma constante obra de
compatibilizar direitos e garantias, princípios e normas, a fim de que toda a ordem
constitucional seja observada e cumprida. A questão, em certo sentido e embora o tema aí
não se esgote, é de lógica formal: trata-se de estudar um objeto previamente definido sem
incorrer no erro, de que nos falou o Mestre Goffredo da Silva Telles, de “tomar uma parte do
objecto pelo objecto todo, e o de estudar o todo imperfeitamente, por desconhecer a
existência ou o valor de todas as partes”8 (grifei).
A harmonização de que acima se falou, embora não invariavelmente, colocar-se-á
como tarefa – por vezes árdua, sem dúvida - do Poder Judiciário. Conforme oportuna
lembrança de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “a todo o momento, no curso do processo, o
juiz resolve as questões relevantes que se põem sobre os mais diversos assuntos: condições da
ação, pressupostos processuais, a prova, concessão ou não de liminares, se o processo deve
ou não sofrer julgamento antecipado ou mesmo a antecipação dos efeitos da sentença, e
assim por diante. Não são raras as vezes que o juiz tem de fazer uma escolha entre uma ou
outra interpretação; em outras situações, a opção não se coloca mais no campo da simples
interpretação, mas alcança a disputa entre duas normas, entre dois princípios que se
encontram em conflito. Para sair deste dilema, o julgador projeta e examina os possíveis
resultados, as possíveis soluções, faz a comparação entre os interesses em jogo, e,
finalmente, a opção, a escolha daquele interesse mais valioso, o que se harmoniza com os

4
Direito constitucional e teoria da constituição, 4ª edição, Almedina, Coimbra – Portugal, p. 1146
5
Direito constitucional, 9ª edição, Jurídico Atlas, São Paulo, 2001, p. 43.
6
Direito constitucional, 9ª edição, Jurídico Atlas, São Paulo, 2001, P. 59.
7
O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, Livraria e Editora Brasília Jurídica, Brasília, 1996, pp. 25/26.
8
Tratado da conseqüência, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1949, p. 205.
27
princípios e os fins que informam este ou aquele ramo do direito. Esta atividade retrata a
utilização do princípio da proporcionalidade”9 (grifei).
Conclui Carneiro que “na realidade, o princípio da proporcionalidade permeia, se
encontra presente e, a todo momento, influencia os demais princípios, as demais linhas da
acessibilidade, da operosidade e da utilidade”10 (grifei). Na seqüência, portanto, passar-se-á a
examinar justamente o princípio da proporcionalidade para, depois, se analisarem os dois
princípios que, segundo os termos da consulta, estão em jogo, confrontando-os à luz do retro
mencionado princípio.

II) Princípio da proporcionalidade.

Em caso de colisão de princípios constitucionais, a solução deve ser buscada aplicando-


se o princípio da proporcionalidade11.
A referida proporcionalidade deve ser entendida como justo equilíbrio entre os meios
empregados e os fins a serem alcançados. Assim, segundo a doutrina, a proporcionalidade
deve levar em conta os seguintes dados: (i) adequação, ou seja a aptidão da medida para
atingir os objetivos pretendidos; (ii) necessidade, como exigência de limitar um direito para
proteger outro, igualmente relevante; (iii) proporcionalidade estrita, como ponderação da
relação existente entre os meios e os fins, ou seja, entre a restrição imposta (que não deve
aniquilar o direito) e a vantagem conseguida12, o que importa na (iv) não excessividade13.
Sobre o tema, José Joaquim Gomes Canotilho sustentou que o princípio da
proporcionalidade em sentido amplo comporta subprincípios constitutivos: a) princípio da
conformidade ou adequação de meios (Geeignetheit), que impõe que a medida seja
adequada ao fim; b) princípio da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) ou
princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que impõem a idéia de menor
desvantagem possível ao cidadão; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito
(Verhältnismässigkeit) importando na justa medida entre os meios e o fim. Confiram-se
suas palavras:

“O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida


adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à
prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Conseqüentemente, a
exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o
acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da
sua adopção (Zielkonformität, Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de
controlar a relação de adequação medida-fim.

9
Acesso á justiça, juizados especiais cíveis e ação civil pública, Editora Forense, Rio de Janeiro,
1999, p. 95.
10
Acesso á justiça, juizados especiais cíveis e ação civil pública, Editora Forense, Rio de Janeiro,
1999, p. 96.
11
Embora não se desconheça a diferença entre os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, não cabe aqui aprofundar a distinção. Basta lembrar que, para alguns, o princípio
da proporcionalidade é uma faceta da razoabilidade (cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de
direito administrativo, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 68), enquanto para outros a razoabilidade
determina a consideração das condições pessoais e individuais dos sujeitos envolvidos (exame
concreto), e a proporcionalidade demanda a análise de dois bens jurídicos protegidos pela Constituição
e a medida adotada para sua proteção (exame abstrato) (cf. Humberto Bergmann Ávila, “A distinção
entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade” in Revista de Direito
Administrativo, v. 215, pp. 173/176, com jurisprudência do STF e, ainda, Suzana de Toledo Barros, O
princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos,
Brasília Jurídica. Brasília, 1.996, passim).
12
Cf. Luiz Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, Saraiva, São Paulo, 1996, p.
209.
13
Cf. Humberto Bergman Ávila, op. cit., p. 159.
28
(...)
O princípio da exigibilidade, também conhecido como ‘princípio da
necessidade’ ou da ‘menor ingerência possível’, coloca a tónica na ideia
de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim,
exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados
fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o
cidadão.
(...)
c) Princípio da proporcionalidade em sentido restrito
(“Verhältnismässigkeit”)
Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida
coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste
caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é
proporcional à ‘carga coactiva’ da mesma. Está aqui em causa o
princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como
princípio da ‘justa medida’. Meios e fim são colocados em equação
mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o
meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se,
pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um
fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.”
14
(grifei)

Aliás, sob esse aspecto, vale lembrar o pensamento de Karl Larenz, para quem, “no
caso do princípio da proporcionalidade, na sua formulação mais geral, em que requer ou exige
apenas uma ‘relação adequada’ entre meio e fim e que o dano que sobrevenha não ‘esteja
sem relação com o risco’ que devia ser afastado (§ 228 do BGB), trata-se de um princípio
‘aberto’, porque nestes casos não é indispensável uma valoração adicional. Não se trata aqui
de outra coisa senão da idéia de justa medida, do ‘equilíbrio’, que está
indissociavelmente ligada à idéia de justiça” 15 (grifei).
No mesmo sentido, escreveu Paulo Bonavides, com apoio em autorizada doutrina:

“Em sentido amplo, entende Muller que o princípio da


proporcionalidade é regra fundamental a que devem obedecer tanto os
que exercem quanto os que padecem o poder.
Numa dimensão menos larga, o princípio se caracteriza pelo fato de
presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins
determinados e os meios com que são levados a cabo.
Nesta última acepção, entende Muller que há violação do princípio da
proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, toda vez que os
meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos
apropriados e ou quando a desproporção entre meios e fim é
particularmente evidente, ou seja, manifesta.” 16 (grifei)

Quanto à sua natureza, Caio Tácito lembra que, no direito alemão, se confere ao
princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso “a natureza de norma
constitucional não escrita, que permite ao intérprete aferir a compatibilidade entre meios e

14
Direito constitucional e teoria da Constituição, 3ª edição, reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra,
Portugal, pp. 264/265. Confira-se, também, Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 5ª
edição, revista e ampliada, Editora Malheiros, São Paulo, 1994, p. 360.
15
Metodologia da ciência do direito, 3ª edição, Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian,
Tradução de José Lamego, Portugal – Lisboa, 1997, 684.
16
Cf. op. Cit., p. 357.
29
fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos
fundamentais”17.
E, nessa linha de raciocínio, Raquel Denize Stumm ressalta a atribuição, ao princípio
da proporcionalidade, de princípio jurídico geral fundamental, também no direito pátrio:

“Em sendo um princípio jurídico geral fundamental, o princípio da


proporcionalidade pode ser expresso ou implícito à Constituição. No
caso brasileiro, apesar de não expresso, ele tem condições de ser
exigido em decorrência da sua natureza. Possui uma função
negativa, quando limita a atuação dos órgãos estatais, e uma função
positiva de obediência aos seus respectivos conteúdos.”18 (grifei)

No mesmo sentido, Paulo Bonavides escreveu:

“A importância do princípio tem, de último, crescido de maneira


extraordinária no Direito Constitucional. A lesão ao princípio assume
maior gravidade nos sistemas hermenêuticos oriundos da teoria
material da Constituição. Aí prevalece o entendimento incontrastável
de que um sistema de valores via de regra faz a unidade normativa da
lei maior. De tal sorte que todo princípio fundamental é norma de
normas, e a Constituição é a soma de todos os princípios fundamentais.
(...)
Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no
princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de
interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos
fundamentais e se busca desde aí solução conciliatória, para a qual o
princípio é indubitavelmente apropriado.”19 (grifei)

O princípio da proporcionalidade obriga a todos os Poderes: legislativo, executivo e


judiciário. A propósito lecionou José Joaquim Gomes Canotilho:

“O campo de aplicação mais importante do princípio da


proporcionalidade é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias
por actos dos poderes públicos. No entanto, o domínio lógico de
aplicação do princípio da proporcionalidade estende-se aos conflitos de
bens jurídicos de qualquer espécie. Assim, por exemplo, pode fazer-se
apelo ao principio no campo da relação entre a pena e culpa no direito
criminal. Também é admissível o recurso ao princípio no âmbito dos
direitos a prestações. É, por exemplo, o que se passa quando se trata
de saber se uma subvenção é apropriada e se os fins visados através de
sua atribuição não poderiam ser alcançados através de subvenções mais
reduzidas.
O princípio da proibição do excesso aplica-se a todas as espécies de
actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a
jurisdição.”20 (grifei)
Especificamente com relação ao Poder Judiciário, ouça-se a límpida lição de João
Batista Lopes:
17
“A razoabilidade das leis”, in Revista de Direito Administrativo 204: 1-7, abr./jun. 1996, p. 2.
18
Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, livraria do Advogado editora,
São Paulo, 1995, p. 121.
19
Curso de Direito Constitucional, 5ª edição, revista e ampliada, Editora Malheiros, São Paulo, 1994 ,
p. 362-365-386/387.
20
- Cf. op. Cit. , p. 266.
30
“Pelo princípio da proporcionalidade o juiz, ante o conflito levado
aos autos pelas partes, deve proceder à avaliação dos interesses em
jogo e dar prevalência àquele que, segundo a ordem jurídica,
ostentar maior relevo e expressão. (...) Não se cuida, advirta-se, de
sacrificar um dos direitos em benefício do outro, mas de aferir a
razoabilidade dos interesses em jogo à luz dos valores consagrados
no sistema jurídico”.21

Por último, cabe lembrar que o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade,


tem sido reconhecido e aplicado pelo Supremo Tribunal Federal.
Ainda sob a égide da Constituição de 1.967, com Emenda n. 1 de 1.969, o STF aplicou
o princípio da proporcionalidade, embora sem esse rótulo, como critério para a limitação de
restrições de direitos, deixando assentado que as medidas restritivas de direito não podem
conter limitações inadequadas, desnecessárias e desproporcionais 22. Referência expressa
ao princípio, com a denominação de “critério de razoabilidade”, ocorreu no voto proferido
pelo Ministro Rodrigues Alkmin, considerado o leading case em matéria de aplicação do
princípio: ao manifestar-se sobre a Lei n. 4.116/62, que estabelecia exigências para o
exercício da profissão de corretor de imóveis, ficou assentado que o legislador somente
poderia estabelecer condições de capacidade respeitando o critério de razoabilidade,
devendo o Poder Judiciário aferir se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse
público23.
E, em 1984, dois outros julgados do Supremo pautaram-se pelo princípio da
proporcionalidade: as Representações n. 1077 e n. 1054, sendo relator o Ministro Moreira
Alves. Na primeira, tratava-se da elevação da Taxa Judiciária no Estado do Rio de Janeiro,
sob o prisma da razoabilidade, entendendo-se que o poder de tributar não pode ser exercido
de forma excessiva24. Na segunda, cuidava-se da constitucionalidade do art. 86 da Lei n. 5681,
de 1971, que vedava o exercício da advocacia aos juízes, membros do Ministério Público e
servidores públicos civis e militares, durante o período de dois anos a contar da inatividade ou
disponibilidade. Aqui também, a questão foi decidida com suporte no princípio da
proporcionalidade, sustentando-se que a restrição estabelecida não era razoável. 25.

III) Colisão entre os princípios constitucionais da coisa julgada e da justa indenização:


aplicação do princípio da proporcionalidade.

Que a coisa julgada constitui princípio constitucional não se discute. Como é sabido,
está ela garantida pelo art. 5o, inciso XXXVI, da CF., entre os direitos fundamentais, como
instituto que, conferindo imutabilidade à sentença e a seus efeitos, se destina à estabilidade
das relações jurídicas intersubjetivas e à segurança do direito objetivo. Conforme oportuna
observação de Cândido Rangel Dinamarco, “a coisa julgada material não é instituto confinado
ao direito processual. Ela tem acima de tudo o significado político-institucional de assegurar a
firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional”.
Segundo Dinamarco, “na fórmula constitucional da garantia da coisa julgada está dito
apenas que a lei não prejudicará (art. 5o, inc. XXXVI), mas é notório que o constituinte minus
dixit quam voluit, tendo essa garantia uma amplitude mais ampla do que as palavras
poderiam fazer pensar. Por força da coisa julgada, não só o legislador carece de poderes para
dar nova disciplina a uma situação concreta já definitivamente regrada em sentença
irrecorrível, como também os juízes são proibidos de exercer a jurisdição outra vez sobre o
21
Tutela Antecipada no Processo Civil Brasileiro, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 72/73.
22
- HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, 1968 (RTJ 44/322).
23
- Rep.n. 930/DF, Rel. Min. Rodrigues Alkmin, DJU de 2.9.1977.
24
- Rep. n. 1077, Rel. Min. Moreira Alves (RTJ 112/34).
25
- Rep. n. 1054, Rel. Min. Moreira Alves (RTJ 110/967).
31
caso e as partes não dispõe do direito de ação ou de defesa como meios de voltar a veicular
em juízo a matéria já decidida”. Com esses contornos, concluiu Dinamarco, “a coisa julgada é
mais que um instituto de direito processual. Ela pertence ao direito constitucional, segundo
Liebman, ou ao direito processual material, para quem acata a existência desse plano
bifronte do ordenamento jurídico”26 (grifei).
Sob essa perspectiva, portanto, a coisa julgada se apresenta como verdadeira garantia
que se incorpora ao patrimônio das pessoas; ou, nas palavras um pouco diversas de Celso
Bastos, na coisa julgada “o direito incorpora-se ao patrimônio de seu titular por força da
proteção que recebe da imutabilidade da decisão judicial”27 (grifei).
Ao lado da garantia da coisa julgada, a Constituição também assegura, em caso de
desapropriação, a justa indenização, insculpida no artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição
Federal, dispondo que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa indenização em
dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.” O princípio da justa
indenização, insculpido no mesmo art. 5 o, em seu inciso XXIV, da Constituição, diz com o
justo ressarcimento de todo e qualquer prejuízo advindo da desapropriação, afastados os
excessos que possam dar causa ao enriquecimento ilícito, seja do expropriante, seja do
expropriado.
Consoante observou Maria Sylvia Zanella Di Pietro, lembrando o pensamento de
Marcello Caetano, “‘a expropriação vem a resolver-se numa conversão de valores
patrimoniais: no patrimônio onde estavam os imóveis, a entidade expropriante põe o seu
valor pecuniário’. E acrescenta que ‘a garantia principal da justiça da indenização está na
possibilidade de, em caso de desacordo, o expropriado poder recorrer aos tribunais judiciais
para discutir o seu montante’”28 (grifei).
Conforme autorizada lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, “indenização justa,
prevista no art. 5º, XXIV, da Constituição Federal, é aquela que corresponde real e
efetivamente ao valor do bem expropriado, ou seja, aquela cuja importância deixa o
expropriado absolutamente indene, sem prejuízo algum em seu patrimônio. Indenização
justa é a que se consubstancia em importância que habilita o proprietário a adquirir outro
bem perfeitamente equivalente e o exime de qualquer detrimento”29 (grifei).
Nas palavras de José Cretella Júnior, em comentários à Constituição brasileira em
vigor, “justa também deverá ser a indenização, isto é, consistirá em quantia equivalente ao
preço que a coisa alcançaria caso tivesse sido objeto de contrato normal (e não
compulsório) de compra e venda”30 (grifei). Aliás, em obra precedente, Cretella já afirmara
– e, ratificou quando dos comentários acima mencionados 31 – que “justo é o exato
equivalente econômico do bem expropriado”, lembrando que “justo preço é o preço
adequado na técnica e terminologia do direito vigente e não o do excesso individualista da
corrente proprietarista; a preponderância do interesse público é norma a obedecer com
rigor”. E, nessa linha de raciocínio, Cretella encampou o pensamento de Ildefonso
Mascarenhas da Silva:

“Indenização justa é a compensação exata do prejuízo sofrido na


medida somente em que há prejuízo. A retribuição ao proprietário
deve ser tal que ele saia indene da operação jurídica, isto é, a

26
“Relativizar a coisa julgada material” in Informativo Incijur, n. 29, dezembro de 2.001, Joinvile,
Santa Catarina, pp. 4 e ss.
27
Dicionário de direito constitucional, Saraiva, São Paulo, 1994. p. 20.
28
Direito administrativo, 3ª edição, Editora Atlas, São Paulo, 1992, p. 131.
29
Curso de direito administrativo, 9ª edição, revista, atualizada e ampliada, Malheiros Editores, São
Paulo, 1997, p. 538.
30
Comentários à constituição 1988”, v. I, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1989, p. 367.
31
Comentários cit., pp. 374/375.
32
preponderância do interesse público é norma a obedecer com
rigor”32 (grifei)

Ainda sobre o tema, Manoel Gonçalves Ferreira Filho observou, com a costumeira
acuidade, que “a Constituição e o bom-senso mandam que a indenização seja justa. Daí
decorre que ao patrimônio do expropriado deve voltar o valor do bem desapropriado.
Nota-se que esse valor para haver reparação justa deve ser, normalmente, o preço que o
bem alcançaria, se vendido no mercado livremente”, embora, reconheça o jurista, possa
até ser menor “na medida em que se possa medir o proveito que para o expropriado advenha
da passagem desse bem para a propriedade pública”33 (grifei).
Da doutrina, como se vê, resulta que a idéia de justa indenização, no âmbito da
desapropriação, não foge – e nem poderia – das dificuldades próprias inerentes ao conceito de
justiça. Na determinação do que seja a justa indenização, valor constitucionalmente tão
relevante quanto o da coisa julgada, o que se parece buscar é aquilo que Del Vecchio
chamou de “elementos lógicos da justiça: bilateralidade, paridade, reciprocidade,
contracâmbio e remuneração”. Para alcançar o justo, é preciso, na síntese do mencionado
jurista, buscar a “posição objetiva da subjetividade” e, também, “a coordenação
intersubjetiva daí resultante”34.
Daí porque, no assunto específico de que aqui se trata, busca-se, como visto, “o exato
equivalente econômico do bem expropriado”, ou “a compensação exata do prejuízo sofrido
na medida somente em que há prejuízo” ou, ainda, que ao “patrimônio do expropriado deve
voltar o valor do bem desapropriado”, para usar expressões empregadas pela autorizada
doutrina. Portanto, o que se quer e se busca, nessa seara, é que o patrimônio do expropriado
não reste diminuído; mas que, de outra parte, para o expropriado também não resulte um
aumento patrimonial que, a um só tempo, padeceria dos graves vícios de (i) atentar contra o
interesse social ou interesse público – na medida em que os recursos para pagamento da
indenização advém da própria sociedade – e (ii) proporcionar enriquecimento sem causa do
expropriado à custas do Estado e, na verdade, às custas da sociedade.
Prosseguindo, então, nessa linha de raciocínio, convém lembrar, mais uma vez com
Celso Antonio Bandeira de Mello, que “o princípio da supremacia do interesse público sobre
o interesse privado é princípio geral Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria
condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da
Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como,
por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do
meio ambiente (art. 170, III, V e VI), ou em tantos outros. Afinal, o princípio em causa é um
pressuposto lógico do convívio social”35 (grifei).
Aliás, conforme lembrança desse mesmo ilustre jurista, o princípio da
proporcionalidade, já largamente examinado, está mesmo atrelado à idéia do interesse
público, na medida em que aquele primeiro “enuncia a idéia — singela, aliás, conquanto
freqüentemente desconsiderada — de que as competências administrativas só podem ser
validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente
demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”36
(grifei).
Nesse mesmo sentido é a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, lembrando o
pensamento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa que “‘o que se pretende é
considerar se determinada decisão, atribuída ao Poder Público, de integrar
32
Tratado geral da desapropriação, v. 2, Forense, Rio de Janeiro, 1980, pp. 130/131.
33
Curso de direito constitucional , Saraiva, São Paulo, 1993, pp. 264/265.
34
Cf. Giorgio de Vecchio, A justiça, Saraiva, São Paulo, 1960, pp. 76 e ss., tradução de Antonio Pinto
de Carvalho e prefácio de Clóvis Beviláqua.
35
Curso de direito administrativo, 9ª edição, revista, atualizada e ampliada, Malheiros Editores, São
Paulo, 1997, p. 55.
36
Curso de direito administrativo, 9ª edição, revista, atualizada e ampliada, Malheiros Editores, São
Paulo, 1997, p. 67.
33
discricionariamente uma norma, contribuirá efetivamente para um satisfatório atendimento
dos interesses públicos’.”37 (grifei).
No âmbito mais estritamente processual, a doutrina, posta a refletir sobre as
demandas ligadas a direitos e interesses coletivos, fala mesmo em um “processo civil de
interesse público”. A esse propósito, Carlos Alberto Salles, valendo-se de amplo exame
doutrinário, falou do surgimento de um “novo modelo processual” ou “de adjudicação
judicial, para usar a expressão usual na literatura norte-americana”, baseado em premissas
diversas daquelas vigentes para o modelo tradicional de litigância 38.
Nesse “processo civil de interesse público”, o “escopo da ação judicial não é
exogenamente dado, mas é modelado principalmente pela corte e pelas partes” e “o exame
dos fatos não é histórico e adjudicativo, mas prospectivo e legislativo”. Mais ainda, a resposta
judicial é “elaborada ad hoc em medidas de linhas flexíveis e abrangentes,
freqüentemente tendo importantes conseqüências para muitas pessoas (...); “a sentença
não termina o envolvimento judicial no problema”, porque “sua execução requer a
contínua participação da corte”; enfim, o juiz não é passivo, “é ativo, com responsabilidade
não apenas por palpável avaliação dos fatos, mas por organizar e moldar a litigância para
assegurar um resultado justo e viável”39 (grifei).
Não bastasse a prevalência do interesse público a justificar a também prevalência da
justa indenização sobre a coisa julgada, a essa conclusão também se chega quando se
constata que a prevalência da coisa julgada acarretaria enriquecimento sem causa.
A respeito da enriquecimento sem causa, Caio Mário da Silva Pereira sustenta que
“muito embora a literatura jurídica nacional reclame a sistematização do instituto do
enriquecimento sem causa, que alguns confundem com a idéia de ilícito, mas sem razão,
porque a dispensa, verdade é que todas as hipóteses previstas pelos construtores da teoria
estão disciplinadas no nosso Direito, em ligação com a instituição que mais se lhe avizinha. O
que nos faltava, conseguintemente, era a construção do enriquecimento sem causa como
instituto dotado de autonomia e disciplina legal própria.”40 Caio Mário afirma que “no seu
desenvolvimento, necessário será erigi-lo sobre requisitos específicos, os quais, ad instar da
doutrina alemã, deverão compreender:

1º) a diminuição patrimonial do lesado, seja com o deslocamento, para o patrimônio


alheios, de coisa já incorporada ao seu, seja com a obstação a que nele tenha entrada o
objeto cuja aquisição era seguramente prevista; 2º) o enriquecimento do beneficiado sem a
existência de uma causa jurídica para a aquisição ou a retenção; 3º) a relação de
imediatidade, isto é, o enriquecimento de um provir diretamente do empobrecimento do
outro, de tal maneira que aquele que cumpre a prestação de auto-empobrecimento possa
dirigir-se contra o que se enriqueceu em virtude de uma causa jurídica suposta não existente
ou desaparecida, ou, para dizê-lo mais sucintamente: o enriquecimento de uma e mesma
circunstância.” 41

A propósito, Sílvio Rodrigues sustenta que “embora a lei brasileira não acolha
expressamente a regra geral de repulsa ao enriquecimento sem causa, isso representa uma
lacuna que se supre pela analogia e, quando assim não fosse, pelos princípios gerais do
direito. A analogia consiste na aplicação de soluções idênticas para os casos semelhantes.
Ora, se em numerosos casos contemplados pelo legislador a lei repele o enriquecimento

37
Direito administrativo, 3ª edição, Editora Atlas, São Paulo, 1992, p. 69.
38
“Processo civil de interesse público” in Direito processual público, vários autores, Malheiros, São
Paulo, 2000, especialmente pp. 60/63.
39
Cf. Op. Cit., p. 62.
40
Instituições de direito civil, volume II, Teoria Geral de Obrigações, 6ª edição revista e atualizada,
Forense, Rio de Janeiro, 1981, pp. 253/254.
41
Instituições de direito civil, volume II, Teoria Geral de Obrigações, 6ª edição revista e atualizada,
Forense, Rio de Janeiro, 1981, p. 254.
34
sem causa, é compreensível que em outras hipóteses, por ele não antevistas,
especificamente, igual solução se aplique. Ubi eadem ratio, idem jus. Mas, se porventura
não se entender cabível a solução analógica, nada impede o recurso aos princípios gerais de
direito, a fim de disciplinar a espécie sub judice.” 42 Postas esses considerações iniciais, Sílvio
Rodrigues conceitua o que vem a ser o repúdio ao enriquecimento sem causa no ordenamento
jurídico brasileiro:

“O repúdio ao enriquecimento indevido estriba-se no princípio maior


da eqüidade, que não permite o ganho de um, em detrimento de
outro, sem uma causa que o justifique.” 43

Conforme Arnoldo Wald os elementos da caracterização do enriquecimento sem causa


são: “o empobrecimento de uma pessoa (que pode ser também um dano moral) e o
enriquecimento correlato de outra, sem razão jurídica. Pode, a rigor, não haver
empobrecimento, mas enriquecimento à custa de outrem, como no caso de aproveitamento
de um direito da personalidade alheia ( como a utilização não autorizada da imagem para fins
comerciais). Não é preciso comportamento culposo de qualquer das partes (poderá haver).
Basta o fato objetivo. Além disso, pode a causa existir, induzindo o prejudicado a agir,
desaparecendo após, donde o enriquecimento sem causa.” 44
E, postas essas considerações (que ligam o princípio da proporcionalidade à idéia de
preservação do interesse público), é possível, dando um passo adiante, chegar ao cerne da
questão e, assim, examinar de que forma há que se resolver o conflito entre os princípios
constitucionais da coisa julgada, de um lado, e da justa indenização, de outro.
Sobre isso, avulta um primeiro aspecto: a desapropriação, ela própria, já é uma clara
e inequívoca manifestação da prevalência do interesse público sobre o interesse privado.
De fato, se de um lado é rigorosamente certo que a Constituição consagra e protege o direito
de propriedade, não é menos certo que, além de reconhecer que esse direito há que observar
sua função social, sobrepuja o interesse individual pelo social quando reconhece o poder
estatal de promover a desapropriação, mediante justa e prévia indenização, “por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social”.
Sendo assim, parece lícito afirmar que os desdobramentos da desapropriação hão
mesmo que se pautar pela prevalência do interesse público ou interesse social – o que, como
se pode antever, já sugere o caminho a seguir na hipótese de tensão entre princípios
constitucionais ligados ao tema e que, em dado momento, possam se entrar em conflito
(como é o caso da consulta).
E, especificamente no confronto entre coisa julgada e justa indenização, sendo
imprescindível que um dos dois princípios ceda, a aplicação dos postulados inerentes à
proporcionalidade e à razoabilidade (inclusive sua ligação com o interesse público) permitem
concluir que deve prevalecer o princípio da justa indenização.
Conflito dessa ordem, diga-se, não é desconhecido da doutrina e mesmo dos pretórios.
Tratando especificamente do tema da coisa julgada, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro
disse ser “importante falar da influência do princípio da proporcionalidade no próprio
instituto da coisa julgada”. Segundo lição desse autor, devem prevalecer os interesses
sociais e coletivos sobre a coisa julgada, por influência do princípio da proporcionalidade,
exemplificando com o tema da coisa julgada na ação popular e na ação civil pública: “Quais
são os interesses em jogo? Normalmente, nesses tipos de ações predomina, as mais das vezes,
o interesse social, o interesse coletivo: portanto, adotando o princípio da
proporcionalidade, o juiz deve, em princípio, optar pelo indeferimento da alegação de

42
Direito civil, volume 2, parte geral das obrigações, Saraiva, São Paulo, 1981, p. 175.
43
Direito civil, volume 2, parte geral das obrigações, Saraiva, São Paulo, 1981, p. 175.
44
Obrigações e contratos, 6ª edição revista e atualizada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,
1983, p. 45.
35
coisa julgada e permitir que esta lesão possa ser submetida ao Judiciário, em condições
mínimas de servir ao fim de obtenção da justiça”45 (grifei).
Particularmente nas ações de desapropriação, é evidente a necessidade da
supremacia do interesse público sobre o privado – o que, para o caso sob consulta, traduzir-
se-á na prevalência da justa indenização sobre a coisa julgada formada em cada qual dos
processos e das ações individuais.
Sobre isso, em primeiro lugar, sejam lembradas as lições já transcritas, no sentido de
que “justo preço é o preço adequado na técnica e terminologia do direito vigente e não o do
excesso individualista da corrente proprietarista; a preponderância do interesse público é
norma a obedecer com rigor”; e de que “a retribuição ao proprietário deve ser tal que ele
saia indene da operação jurídica, isto é, a preponderância do interesse público é norma a
obedecer com rigor”46 (grifei).
Além disso, Celso Antonio Bandeira de Mello afirmou que, para “o Direito
Administrativo interessam apenas os aspectos de sua expressão na esfera administrativa, tais
como os mencionados. Sem embargo, para não deixar sem referência constitucional algumas
aplicações concretas especificamente dispostas na Lei Maior e pertinentes ao Direito
Administrativo, basta referir os institutos da desapropriação e da requisição (art. 5º, XXIV
e XXV), nos quais é evidente a supremacia do interesse público sobre o interesse
privado”47 (grifei).
Ainda especificamente com relação à aplicação do princípio da proporcionalidade, em
tema de conflito entre a coisa julgada e a justa indenização, vale lembrar o voto do atual
Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário Velloso, quando no antigo Tribunal
Federal de Recursos:

“Em caso de conflito entre princípios constitucionais atinentes à coisa


julgada e à justa indenização por expropriamento de bens, deve
prevalecer aquele que, de forma imediata, melhor atenda às
liberdades públicas”48 (grifei).

E, por sua vez, as manifestações do Supremo Tribunal Federal estão atualmente


evoluindo no sentido de que o princípio da proporcionalidade pode e deve abranger
exatamente os precatórios judiciais. Com efeito, o Estado de São Paulo, em caso de pedido
de intervenção federal, levou à Corte Suprema a questão dos precatórios trazidos à colação
para fundamentar o pedido, argüindo sua inconstitucionalidade sob o prisma da
proporcionalidade. O caso encontra-se atualmente em julgamento, tendo o Ministro Gilmar
Mendes votado contra a intervenção, exatamente com fundamento no princípio da
proporcionalidade.

IV) Via processual adequada

Examinadas as questões que decorrem da colisão de princípios constitucionais, com


recurso ao princípio da proporcionalidade e, em particular, a análise do conflito entre os
princípios da coisa julgada, de um lado, e o da justa indenização, de outro lado, tudo a
propósito de processo de desapropriação, chegou-se à conclusão de que a aplicação da
proporcionalidade, o reconhecimento do interesse público e o impedimento ao

45
Acesso á justiça, juizados especiais cíveis e ação civil pública, Editora Forense, Rio de Janeiro,
1999, p. 100.
46
Cf. Lição de José Cretella Júnior e doutrina por ele invocada.
47
Curso de direito administrativo, 9ª edição, revista, atualizada e ampliada, Malheiros Editores, São
Paulo, 1997, p. 55.
48
Apel. Cível 39.153 (RTFR n. 67/3).
36
enriquecimento sem causa justificam a prevalência da justa indenização sobre a coisa
julgada, tornando inexigíveis quaisquer valores que superem o patamar da justa indenização.
Cabe agora verificar qual a via processual adequada para se chegar à afirmação da
prevalência do valor “justa indenização” sobre o da coisa julgada.

a) Possibilidade de reconhecimento incidental da inexigibilidade dos valores que superam


a justa indenização.

Em termos estritamente processuais, o reconhecimento de que não prevalece a


autoridade da coisa julgada mas, ao revés, de que prevalecem os limites da justa indenização
(que, como visto, afasta os juros compensatórios), autoriza dizer que, na parte do excesso,
nem mesmo se pode falar em título executivo. A prestação é inexigível não porque falte
alguma contra-prestação, mas simplesmente porque não há, naquela apontada extensão,
decisão judicial a respaldar a prática de atos executivos (ainda que na forma de execução
contra a Fazenda Pública). A bem da verdade, a situação não é de excesso de execução, mas,
repita-se, de ausência de provimento estatal que autorize a atuação da sanção e, portanto, a
adoção de medidas executivas (lembrando-se que, embora de forma excepcional, medidas
dessa natureza ou, quando menos medidas coercitivas, podem ter lugar mesmo em se
tratando de execução em face da Fazenda Pública).
Lembre-se, a propósito, a observação de Paulo Lucon no sentido de que “o processo de
execução distancia-se do seu escopo se não for instrumentalmente conexo ao direito
subjetivo existente. Torna-se injusta sem dúvida a execução”49 (grifei). A ausência de título
– que diz respeito à adequação da via executiva (interesse de agir) – é matéria de ordem
pública que compete ao magistrado conhecer de ofício, que pode e deve fazê-lo nos autos
da própria execução.
Sobre o assunto – divergências terminológicas à parte – vem bem a calhar a lembrança
de que a doutrina e a jurisprudência, através da chamada “exceção” ou “objeção de pré-
executividade”, têm admitido que “a defesa que nega a executividade do título
apresentado pode ser formulada nos próprios autos do processo de execução”50 (grifei).
Como disse, mais uma vez, Paulo Lucon, no “caso de exigências de ordem pública, como
aquelas relativas às condições da ação e aos pressupostos processuais, o interesse é do
próprio Estado em declarar de ofício que não se dispõe a exercer a função jurisdicional no
sentido de outorgar ou negar o bem da vida pretendido pelo demandante”51 (grifei).
Contudo, se é certo, como dito, que o estabelecimento do modo de ser da relação
jurídica (débito/crédito) poderia – como de fato pode – ser feito incidentalmente em cada
qual das execuções, também é rigorosamente certo que (i) se considerada a função da ação
declaratória e seus limites no ordenamento processual e (ii) se consideradas as circunstâncias
de casos que tais, chegar-se-á à conclusão da admissibilidade da tutela meramente
declaratória. É o que se passa a demonstrar.

2) A garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional.

A questão de saber qual a “via processual” adequada para que se deduza em juízo
determinada pretensão passa necessariamente pelo adequado entendimento da extensão da
garantia constitucional da ação ou, por outras palavras, da garantia da inafastabilidade do
controle jurisdicional que, entre nós, está expresso no inciso XXXV do art. 5º da Constituição
49
Cf. op. cit., p. 202.
50
Cf. Theotonio Negrão, Código de processo civil e legislação processual em vigor, São Paulo,
Saraiva, 2.001, pp. 698/699, nota n. 3 ao art. 618 do CPC, com amplas referências à jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, de onde se origina a citação feita no texto.
51
Cf. op. cit. p. 219.
37
Federal, ao estabelecer que não se pode excluir da apreciação do Judiciário a apreciação de
lesão ou ameaça a direito.
Falando sobre a garantia constitucional da ação no direito italiano, Adolfo di Majo
observou que se trata de um princípio de “generale tutelabilità di ogni diritto al soggeto
riconosciuto”, cabendo ao legislador estabelecer meios de tutela suficientes para cada um
dos interesses juridicamente tuteláveis52 (grifei).
Na doutrina, fala-se na universalidade da tutela jurisdicional. Conforme lembrança de
Flávio Yarshell, “as garantias constitucionais da ação e da inafastabilidade do controle
jurisdicional devem ser interpretadas de sorte a delas se extrair ‘formas de tutela’ ou
‘tipos de provimento’ aptos a solucionar, efetiva e adequadamente, todas as situações de
violação (ou ameaça de violação) de direitos e interesses protegidos no plano substancial.
Por outras palavras, é preciso extrair das aludidas garantias - e do sistema processual que
as “regulamenta” - efeitos aptos à tutela de todos os direitos ou posições jurídicas de
vantagem. Daí a ênfase que a doutrina moderna tem dado aos resultados que o processo é
apto a proporcionar.
Conforme lembrança do mencionado autor, “é preciso reconhecer a atipicidade da tutela
jurisdicional, no sentido de que, ao menos em princípio, não há um ‘rol’ previamente
estabelecido de provimentos aptos à proteção de direitos e interesses materiais”. Além
disso, “é preciso ter em conta que as ‘formas de tutela’ ou os ‘tipos’ de provimento são
estabelecidos a partir da situação substancial, que estabelece não apenas qual o ‘bem da vida’
a ser proporcionado ao autor, mas bem assim a eficácia jurídica apta a conduzir a esse bem”. E
mais:

“Daí porque a doutrina fala em “reler” o enunciado contido no artigo


75 do Código Civil: firmada e posta a salvo de qualquer risco a
autonomia científica do direito processual, não há qualquer
constrangimento em se admitir que a todo direito deve corresponder
um provimento apto a torná-lo efetivo. Ou seja, para toda posição
jurídica de vantagem é preciso identificar no sistema - no qual ‘ação’ e
‘tutela’ não são, ao menos em princípio, estatuídos de forma rígida e
exaustiva - um ato estatal apto a proporcionar ao titular a respectiva
fruição. A questão, portanto, é saber se o direito material autoriza a
produção deste ou daquele efeito jurídico; se positiva a resposta, deve
existir um provimento apto a produzí-lo.” (grifei).

Precisamente nessa linha é a disposição contida no art. 83 da Lei 8.078/90 - Código de


Defesa do Consumidor - que fala na admissibilidade de “todas as espécies de ações” aptas à
tutela dos direitos no respectivo campo de abrangência. Daí as palavras de Kazuo Watanabe
que, em comentários ao citado dispositivo, e falando da releitura do art. 75 do Código Civil,
afirmou bastar “que se leia o texto como se nele estivesse escrito que toda a afirmação de
direito (e não um direito efetivamente existente) ‘corresponde uma ação, que o assegura’”53
(grifei).
Postas essas premissas, é possível dar um passo, buscando determinar, em concreto, qual
a via processual adequada para que se deduza em juízo a situação de direito material tratada
anteriormente. É o que se passa a fazer.

3) A ação declaratória como remédio processual adequado para desconsideração da coisa


julgada e estabelecimento do modo de ser da relação jurídica entre as partes.

52
Cf. La tutela civile dei diritti, Milano, Giuffrè, 1.993, p. 68.
53
Cf. Código brasileiro de defesa do consumidor, São Paulo, Forense Universitária, 2001, p.. 767.
38
Como se sabe, o que se busca através de provimento de natureza meramente
declaratória (CPC, art. 4º) é precisamente estabelecer certeza acerca da existência,
inexistência ou modo de ser de uma relação jurídica (excepcionalmente, um fato, consistente
em autenticidade ou falsidade de documento). Dessa forma, busca-se afastar uma dúvida
objetiva que pode ser provocada por qualquer das partes (em sentido material) ou,
eventualmente, por terceiro.
Conforme observou, mais uma vez, Flávio Yarshell, “o direito à certificação – ou o direito
à certeza jurídica –, embora possa ser divisado no plano substancial, reputa-se uma
decorrência inafastável do próprio direito de ação e da garantia de acesso à tutela
jurisdicional. A esse propósito, basta lembrar que a função declaratória está presente em toda
e qualquer modalidade de provimento dito “cognitivo”, sendo inerente ao próprio exercício da
jurisdição”54 (grifei). E mais:

“(...) pode-se dizer da tutela meramente declaratória - talvez mais do


que qualquer outra forma de tutela - ser aquela que não apresenta
contornos de tipicidade, não se encontrando sujeita - salvo as
exceções referidas na sequência - a qualquer espécie de “previsão
legal” para que possa ser invocada e não está presa a um modelo
legal.”55 (grifei)

A tutela meramente declaratória, não de hoje, tem sido invocada como forma de
reconhecer certos vícios da sentença que, analogamente ao que se extrai do caso sob
exame, sobrevivem ao trânsito em julgado ou, por assim dizer, impedem ou simplesmente
desconsideram a formação da coisa julgada. Sendo assim, não será incorreto recorrer aos
subsídios da doutrina a propósito do cabimento da ação meramente declaratória nas hipóteses
em que o comando contido na sentença – total ou parcialmente – seja inexigível porque o ato
estatal ressente-se de vício de tal gravidade que é insanável.
Sobre o cabimento de ação declaração “de nulidade de sentença com trânsito em
julgado”, João Batista Lopes, reconhecida autoridade sobre o tema, afirmou que “a ação
declaratória situa-se no plano da existência, e não da validade, razão por que seria impróprio
falar em declaratória de nulidade. É possível, porém, superar tais objeções invocando-se
princípios superiores de justiça que repelem a utilização do processo para fins
fraudulentos ou a condenação sem o chamamento do réu”56 (grifei).
Também sobre o tema, Sálvio de Figueiredo Teixeira falou das decisões “inexistentes ou nulas
de pleno direito” na medida em que “inquinadas de vício insanável, a exemplo do que
ocorre quando proferida em processo onde não houve a citação válida e não houve
suprimento, ou quando do processo não participou litisconsorte necessário” 57. Para o referido
processualista, “embora não sujeitos à rescisória, estes atos poderão ser invalidados em
ação própria, ou incidentalmente, em qualquer procedimento, e mesmo de ofício. E até
em ação rescisória (...)”58 (grifei).
Como se percebe, as referências doutrinárias conduzem ao reconhecimento da
subsistência, em nosso sistema, da assim denominada querela de nulidade.
Sobre o tema, Adroaldo Furtado Fabrício expressou conclusão no sentido de “continuar
admissível no direito brasileiro contemporâneo a ação autônoma de desconstituição da
sentença proferida contra o revel não citado, que representa a continuidade e a
sobrevivência, pelo menos nessa limitada hipótese, da querela nullitatis. Significa isso que a
postulação em juízo pela nulidade da sentença independe, no caso, tanto de sua rescisão
54
Cf. Op. Cit., pp. 142/143.
55
Cf. Op. e loc. Cit.
56
Ação declaratória, 4ª edição revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p.
79.
57
“Ação rescisória – apontamentos”, in Repro 53, p. 66.
58
“Ação rescisória – apontamentos”, in Repro 53, p. 66.
39
como do uso de embargos à execução, com algumas conseqüências relevantíssimas. A
primeira é a de não se precisar dirigir a argüição a um juízo de grau ou hierarquia superior
à do prolator da sentença, mas a este mesmo. Outra é a de não se submeter a ação cogitada
ao curso prazo decadencial em que é proponível o pedido de rescisão” 59 (grifei). E disse
Furtado Fabrício:

“A absorção das velhas hipóteses de querela nullitatis pela moderna


ação rescisória, portanto, não se fez por completo no direito brasileiro.
O vício em causa continua a ser considerado suficientemente grave para
resistir a essa absorção, assim como resistiu à eficácia sanatória da res
judicata. Com a doutrina, a jurisprudência tem consagrado a
admissibilidade da querela nullitatis sob essa forma moderna,
tratando-a como ação autônoma, ‘ordinária’ (no sentido de atípica,
sem referência ao procedimento) e declaratória.”60 (grifei)

Ainda consoante lembrança do ilustre processualista gaúcho, o Supremo Tribunal


Federal já reconheceu a subsistência do aludido remédio, especialmente com relação à
alegação de nulidade de citação: “A mesma tese tem prevalecido no STF, dentre cujos
arestos sobre o tema pode ser destacado o seguinte, emitido por seu plenário e contendo em
alguns votos proferidos análise excelente do tema: ‘Ação declaratória de nulidade de
sentença por ser nula a citação do réu revel na ação em que foi proferida: 1. Para a hipótese
prevista no art. 741, I, do atual CPC — que é a da falta ou nulidade da citação, havendo
revelia — persiste, no direito positivo brasileiro, a querela nullitatis, o que implica dizer que
a nulidade da sentença, nesse caso, pode ser declarada em ação declaratória de nulidade,
independentemente do prazo para a propositura da ação rescisória, que, a rigor, não é
cabível para essa hipótese”61 (grifei).
Mas o exame da doutrina e da jurisprudência revela uma tendência ao alargamento
das hipóteses de cabimento da tutela meramente declaratória, passando a abranger não
apenas a falta de citação ou a falta de citação de litisconsorte necessário 62, mas outros vícios,

59
“Réu revel não citado, querela nulitatis e ação rescisória”, in Repro 48, p. 37.
60
“Réu revel não citado, querela nulitatis e ação rescisória”, in Repro 48, p. 37.
61
“Réu revel não citado, querela nulitatis e ação rescisória”, in Repro 48, p. 37.
62
“Processual civil. Nulidade de citação (inexistência) – Querela nullitatis. I – A tese da querela
nullitatis persiste no direito positivo brasileiro, o que implica em dizer que a nulidade da sentença
pode ser declarada em ação declaratória de nulidade, eis que, sem a citação, o processo, vale falar, a
relação jurídica processual não se constitui nem validamente se desenvolve. Nem, por outro lado, a
sentença transita em julgado, podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com esse
objetivo, ou em embargos à execução, se for o caso. II – Recurso não conhecido.” (STJ, 3ª Turma, Resp
12.586 – SP, rel. Min. Nilson Naves, v.u., j. 08.10.91, DJ 04.11.91) No voto do Relator Ministro NILSON
NAVES é colacionado os seguintes entendimentos doutrinários: “A tese da querela nullitatis, no que
pertine, é desenvolvida por LIEBMAN, questionando-a com a seguinte indagação: ‘...Qual seria, em
verdade, o processo adequado para a declaração de tal nulidade? Não há outra resposta que esta: todo
e qualquer processo é adequado para constatar ou declarar que um julgado meramente aparente é na
realidade inexistente e de nenhum efeito. A nulidade pode ser alegada em defesa contra que pretende
tirar da sentença um efeito qualquer, assim como pode ser pleiteada em processo principal,
meramente declaratória.’ (Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro, 1976, Bushatsky, pág. 184).
Relativamente à sanabilidade e repetibilidade dos atos nulos em geral deve-se concluir com FREDERICO
MARQUES: ‘De um modo geral, pode ser afirmado que todo ato nulo é sanável ou sujeito a ser repetido.
Ato nulo de efeitos irremediáveis só será aquele que atingir a relação processual, tornando
inadmissível a sentença de mérito. Mas, isso só se verificará em hipóteses raríssimas, e quando o
autor deixar de promover providências saneadoras ordenadas pelo juiz’ (Rev. de Processo nº 9,
1978, pág. 64)”
40
reputados igualmente insanáveis que, por exemplo, atingem a relação processual 63, como a
falta de intervenção obrigatória do Ministério Público 64.
Na doutrina brasileira atual, Teresa Arruda Alvim Wambier, admitindo com
largueza a admissibilidade de ação declaratória no contexto apontado, observou que, “por
meio da ação declaratória de inexistência, serão atingidas as sentenças proferidas em
processo a que tenha faltado pressuposto processual de existência, e em ‘ação’ admitida e
julgada no mérito, apesar da falta de uma (ou mais) de suas condições (...)”. De forma
bastante proveitosa para os fins deste parecer, Teresa Alvim Wambier lembrou que a “ação
declaratória de inexistência, embora seja sempre possível, nem sempre é necessária. Parece-
nos, todavia, ser sempre necessária uma declaração judicial a respeito, ainda que incidenter
tantum, no bojo de outro processo, qualquer que seja ele”. E concluiu, com preciosas
considerações que já fazem antever o interesse de agir para o aforamento da ação
meramente declaratória:

“Nada impede, contudo, que, a qualquer tempo, havendo resistência


em reconhecer-se a inexistência de uma decisão judicial final (ou
porque sobre essa inexistência não se tenha manifestado ainda o Poder
Judiciário, ou porque a decisão deste Poder tenha sido exclusivamente
incidenter tantum), se intente a ação específica, que, segundo
pensamos, é a ação declaratória de inexistência. Procedente esta,
se suprimirá ex radice e definitivamente a totalidade dos efeitos
jurídicos decorrentes da pretensa existência da “sentença.”65 (grifei)
Tais considerações, colhidas das doutrina e da jurisprudência a propósito do cabimento
de ação meramente declaratória para reconhecer certos vícios insanáveis da sentença não
são, reconheça-se, integralmente aplicáveis à situação de que se ocupa este parecer. Neste

63
Julgado em que se declarou a nulidade de execução de sentença de despejo em que o fiador não foi
cientificado nem da ação, nem da intimação da penhora e nem da designação das datas da arrematação:
“Execução de sentença. Ação de despejo. Ação ordinária de anulação da praça. 1. Não é possível no trânsito do
recurso especial conhecer e decidir sobre matéria que não foi suscitada nem discutida em nenhum momento, nem
na sentença, nem na apelação. 2. Como já decidiu a Corte anteriormente, presente a querella nullitatis,
possível é a solução pela via da ação ordinária. 3. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ, 3ª Turma, REsp
19.241, rel. Min. Ari Pargendler, DJ 11.09.00)
64
Trata-se de ementa proferida em ação rescisória, fulcrada na alegação de que não houve intimação do Ministério
Público para se pronunciar em ação ordinária anulatória a qual envolvia questão de interesse público, implicando
na violação do comando inserido no artigo 82, III, do CPC. “Processual civil. Ação rescisória. Nulidade do processo.
Falta de intervenção obrigatória do Ministério Público. Impropriedade do meio. Querella nullitatis insanabillis. A
falta de intervenção obrigatória do Ministério Público torna nulo de pleno direito o processo, sendo pois
inadequado o manejo da ação rescisória para desconstituir a sentença nele proferida. A declaração da
nulidade deve ser pleiteada junto ao próprio órgão prolator da decisão defeituosa ( querella nullitatis
insanabillis). Só se rescindem os atos que tenham produzido efeitos no mundo jurídico.” (TJDF, 2ª Câm. Civ.,
Ação rescisória nº 575/97, rel. Des. Wellington Medeiros, j. 02.09.98) Quando do julgamento do feito em
referência, o Tribunal acabou por reconhecer que a ação rescisória se tratava de meio inadequado para o
reconhecimento de nulidade de processo. Vale destacar o seguinte enxerto do posicionamento do Des. Presidente
GETÚLIO MORAES OLIVEIRA em seu pedido de vista: “Em minha concepção existe diferente entre o objeto da ação
rescisória – que necessariamente incursiona no mérito da lide – da chamada querella nullitatis insanabillis,
solucionável na via ordinária – e quem estabelece essa diferença é o caput do art. 485, CPC, que diz que ‘a
sentença de mérito pode ser rescindida...’ Como diz o Min. Dias de Andrade, do STJ (Resp. nº 19241-SP) a
presença de nulidade subsume-se nos ‘casos de querella nullitatis, em que, tanto a doutrina, quanto a
jurisprudência, têm admitido ser solucionada pela via ordinária e não exclusivamente rescisória...’ Barbosa
Moreira ensina que a sentença que é por Direito nenhuma, nunca em tempo algum passa em julgado (comentários
V, 5ª ed. Nº 67), ou seja, conserva os auctoritas rei judcate enquanto não anulada pela via da querella nullitatis.
Nesta Corte predomina igual entendimento, como se vê de arresto a seguir transcrito: ‘... As nulidades relativas ou
anulabilidade ensejam a desconstituição do julgado por obra da ação rescisória, a ser proposta em dois anos, pena
de decadência. As nulidades plenas ou ipso jure são objeto de actio nullitates, de caráter perpétuo, já que
dela não decai o prejudicado, nem sofre o efeito extintivo da prescrição vintenária ...’. ‘... A competência é
do juízo monocrático, não do colegiado, que se reserva para as ações rescisórias...’ (ApC. Nº 197712 – 1ª Turma
Cível, Rel. Des. Irajá Pimentel) Desta forma, na concepção predominante, as nulidades absolutas, perpétuas,
permanentes, enquadram-se nos casos das nullitatis insanabillis e desafiam ação ordinária; as questões
remanescentes, ligadas ao mérito, ainda que importem em violação literal da lei, amoldam-se à ação rescisória.”
65
Nulidades do processo e da sentença, 4ª edição revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,
1998, pp. 391/392.
41
caso, adiante-se, não se trata propriamente de “error in procedendo” que gere invalidade ou
inexistência da sentença.
Contudo, tais subsídios prestam-se a respaldar uma conclusão: se existe algum
fundamento jurídico consistente e forte o suficiente para que não prevaleça a autoridade
da coisa julgada (o que, no caso sob exame, decorre da prevalência do princípio da justa
indenização), então pode e deve ser manejada a tutela meramente declaratória para se
obter o “acertamento” da relação jurídica entre as partes, tendo em vista a dúvida
objetiva resultante precisamente da inexigibilidade do comando contido na sentença.
Em tais hipóteses, nada obstante, como visto, seja possível o reconhecimento da
inexigibilidade no bojo do próprio processo em que se pretende promover atos de execução,
há, sem qualquer sombra de dúvida, interesse de agir para o ajuizamento de ação
declaratória em face dos credores para que, reconhecendo-se a prevalência do princípio da
justa indenização (com base na aplicação do princípio da proporcionalidade e pela
prevalência do interesse público), seja estabelecido (“acertado”) o modo de ser da relação
jurídica débito/crédito entre as partes, declarando-se inexigíveis os valores que excedam
ao limite constitucional da justa indenização.
Quanto ao interesse de agir, ponto que merece destaque nestas considerações,
convém lembrar que ele se traduz na utilidade do provimento jurisdicional, quer em relação
ao demandante, quer em relação ao próprio Estado. Sua presença, nas autorizadas palavras
de Cândido Rangel Dinamarco, “se condiciona à verificação de dois requisitos cumulativos, a
saber: necessidade concreta da atividade jurisdicional e adequação do provimento e do
procedimento desejados”66 (grifei). Particularmente no caso da ação meramente
declaratória, observou João Batista Lopes que “a relação jurídica futura não pode ser objeto
de ação declaratória, a menos que se cuide de desenvolvimento ou repercussão futura de uma
relação jurídica já existente. Quanto à relação jurídica pretérita, só será viável a ação
quando se questionar sobre as conseqüências, ou efeitos presentes, daquela”67 (grifei).

V) Conclusões

As considerações precedentes permitem concluir este estudo da seguinte maneira:


antever que,

1 - Partindo-se da premissa de que não prevalece, pelas razões largamente expostas, a


autoridade da coisa julgada, é perfeitamente cabível e adequado o ajuizamento de ação
meramente declaratória para que, reconhecendo-se a prevalência do princípio da justa
indenização (pela aplicação do princípio da proporcionalidade e preservação do interesse
público), seja declarada a inexigibilidade de qualquer valor superior ao referido limite
constitucional, estabelecendo-se, assim, o “acertamento” da relação entre a consulente
(devedora) e seus credores.

2 - O interesse de agir para o aforamento da referida demanda é indiscutível porque:

(a) existe dúvida objetiva acerca do modo de ser da relação


jurídica (débito/crédito) entre a Fazenda Pública e seus credores,
lembrando-se, como visto, ser adequado o remédio em tela “quando se
questionar sobre as conseqüências, ou efeitos presentes” de uma relação
jurídica, sendo precisamente esse o caso. Há, portanto, necessidade de

66
Execução civil, Malheiros, São Paulo, 1997, n. 264, p. 406.
67
Ação declaratória, 4ª edição revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p.
61.
42
que seja editado provimento que estabeleça certeza quanto, repita-se,
ao modo de ser da relação jurídica em questão.
(b) Embora a inexigibilidade de qualquer valor que exceda à justa
indenização possa ser reconhecida incidentalmente no bojo da própria
execução, decisão a respeito – que, nesse caso, seria uma típica
interlocutória – não teria o condão de conduzir à formação da coisa
julgada material. Ora, a imutabilidade dos efeitos do provimento é, sem
dúvida, componente que se agrega ao conceito de interesse de agir nas
ações meramente declaratórias e tal imutabilidade, à toda evidência,
somente poderá ser obtida com o aforamento da demanda e prolação de
uma sentença de mérito. Portanto, a obtenção de sentença de mérito
que, promovendo o “acertamento” da relação jurídica, venha a
transitar materialmente em julgado evidencia a utilidade do
provimento, deixando fora de dúvida a presença do interesse de agir.
(c) Não bastasse o interesse de agir resultante da obtenção de
sentença de mérito sobre o tema, fato é que a propositura de demanda
que alcance a todos – ou a parte expressiva – dos credores resultará em
provimento que regerá de modo uniforme todas as relações mantidas
com os expropriados, evitando-se a prolação de decisões não apenas
desprovidas do atributo da coisa julgada material, mas com grave
potencial de serem contraditórias. Aqui, o interesse processual não é
apenas da parte, mas do próprio Estado (“legítimo” interesse de agir), a
quem não beneficia, só prejudica, a proliferação de entendimentos
discrepantes sobre o tema.

3 – Por último, pode ser útil e conveniente deixar claro que:

(a) referida demanda poderá ser ajuizada pela Fazenda Públicaem


face de todos ou de alguns dos credores (que poderão ser agrupados no
pólo passivo segundo critérios de conveniência, por exemplo, quanto à
dimensão dos respectivos créditos)68, em situação de litisconsórcio
passivo, que, à toda evidência, será facultativo, embora unitário. Isto
é: diferentes pessoas poderão ser demandas de forma simultânea, o que
se justifica amplamente pela regra do art. 46 do CPC. Contudo, dada a
identidade de fundamento em relação a todos os credores, a procedência
da demanda há que resultar em provimento de idêntico contudo
(=reconhecimento da inexigibilidade de qualquer valor que exceda à justa
indenização) – raciocínio que, só para argumentar, valeria em caso de
eventual improcedência da demanda, invertendo-se, naturalmente, o
resultado acima alvitrado.
(b) A competência para processamento e julgamento da referida
demanda (ou demandas, caso credores venham a ser “agrupados” em
diferentes pleitos) é, sem dúvida, de órgão monocrático, nada havendo
que justifique – por não se tratar propriamente de ação rescisória, mas de
ação declaratória (vide lição neste parecer, de Adroaldo Furtado Fabrício)
– de competência originária de tribunal, inclusive porque esta pressupõe
expressa previsão legal que, neste caso, não existe.
(c) Ainda quanto à competência, devem ser observadas as regras
de competência territorial do Código de Processo Civil.. A relação de
prejudicialidade de que abaixo se fala não interfere com isso.
(d) Aforada a demanda (ou demandas, como visto acima), passa a
existir inequívoca relação de prejudicialidade entre essa (ou essas), de
um lado, e a solução dos processos individuais em que figuram os
credores, de outro lado: se julgada procedente a ação declaratória, à
68
Se eventualmente ajuizadas diferentes demandas, “agrupando-se” diferentes credores, poderá,
também eventualmente, ser o caso de reunião para julgamento conjunto, aplicando-se o disposto nos
arts. 105 e 106 do CPC.
43
toda evidência, o depósito a ser efetuado pela consulente será inferior ao
que ora pretendem seus credores. Embora a causa prejudicial (ação
declaratória) não seja anterior às causas prejudicadas, é de todo
recomendável que ocorra suspensão das execuções – quando menos de
forma parcial – nos termos do art. 265, IV, “a” do CPC, aplicável no
mínimo por analogia.

Poderão estar presentes os requisitos para a concessão de tutela de urgência, sob a


forma de antecipação de tutela: (i) há prova inequívoca do direito alegado (CPC, art. 273,
caput), o que decorre da prevalência do princípio da justa indenização, por força da
aplicação da proporcionalidade, como visto à saciedade; (ii) há evidente “periculum in mora”
(CPC, art. 273, I) na medida em que há risco de comprometimento de patrimônio público e de
grave prejuízo ao interesse público; (iii) não há perigo de irreversibilidade do provimento
antecipatório, porque se a ação declaratória fosse (para argumentar) improcedente, a
eventual diferença de valores poderia ser recebida pelos credores (embora o contrário seja
inviável, evidenciando, mais uma vez, o perigo a justificar a urgência); (iv) a antecipação da
tutela meramente declaratória é perfeitamente possível, porque se trata de antecipar um dos
efeitos do provimento final, como admite a lei. A antecipação significará, em termos
práticos, sustar-se a exigibilidade de todo e qualquer valor que exceda indevidamente os
limites da justa indenização, tudo conforme amplamente demonstrado.

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