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Infância

fazíamos hóstias
com pequenas rodelas de inhame- branquíssimas
e brincávamos de missa
e brincávamos de deus
matando minúsculas formiguinhas

Fugirei com a boca vazia e os pés descalços

bebo vinho às primeiras horas


bebo porquê sou eu mesma o meu próprio medo
e meu ódio, a única punição para meu ódio

viverei assim, fugindo. Longe demais de qualquer centro


da palavra que virou pó, mas não adubo
bebo por desesperada esterilidade

volver de um silêncio enorme para um maior ainda


fumar para me desprender da terra,
e flutuar como a fumaça
fumar para voltar ao elementar celeste
e não despencar no chão, assim, tão trágico

todas as vidas em mim: morrendo

as que deixei para trás, ruindo


e as que esqueci de viver, não sei

tanto fui que acabei não sendo


-há em todos os meus fins o desejo de ser mais um pouco

não sei mais soletrar d-e-u-s


e me apavoro em pensar em perdão
dirão haver horrores enquanto durarem os olhos
-morrer será a forma mais sábia de existir
para voltar à casa
vou-me enfiando mais em mim
minha formas tripas oco espasmos charco
amarrando os ossos em epopeia
meus mil nomes em metamorfose
vou existindo em uma sombra a se parecer sempre comigo
se me conheço. conheço nada

atravesso meu corpo, essa ficção


sento em frente ao espelho aguardando a alvorada

autoliberdade é um mito
acreditar, debilidade

sussurro palavras ridículas desejando margaridas


sussurro palavras frente à janela esperando que voem como gaivotas

em grandeza enganadora.
eu mesma só queria compreensão.

estamos tão embrenhados disso que nos tornamos isso


meu vício é a minha própria cura

a fumaça em caleidoscópio, a chama iluminando o rosto


-ritual de purificação

Milésima primeira noite

Me afundar em manhãs de maio que são as mesmas desde setembro

manter a cabeça numa pipa


e os pés no profundo abissal

engolir as espadas
conhecer a lâmina
redescobrir vida ou petróleo sob a epiderme

fundamental só é mesmo, aprender a sangrar


encantar as serpentes, domesticá-las
até poder chamá-las “gatinhos”

Caim

dizer loucuras
e beijar sua boca
pois o louco muito me agrada

tocar-te as mãos
e provar da existência
tocar-te as mãos para nos ver livres do corpo
e da própria existência

arrancar dos seus ouvidos


o som invisível,
inaudível
e tão impossível do amor
mas muito me agrada o impossível

ouvir sua voz, e ser mais digno


beijar sua boca e ter o grito tão próximo
-percorrer-te aos dedinhos

beijar sua boca


sorver-te o sopro emprestado

olhar em seus olhos, tão belos


desvendá-los pois
só me interessa o que escondes
e também muito me agrada certa beleza

então invadir seus olhos!


belos como Lúcifer, ou as chamas de Sodoma

mais belos que o tsunami que devastou a praia

mais belos ainda


que as mulheres que se deitam à praia
a auscultar a areia
-corpos paralelos aos dos maridos

beijar sua boca, depois partir


ser a solidão que lhe faltava
aprender-me triste, junto a mim
pois muito me agradaria uma verdadeira amizade

perder-te assim, devagarinho


sem a pressa a me atrasar a vida

incendiar os livros, e a memória


não confiar na palavra, nem na memória
ler todos os pretéritos nas escuras cinzas

esquecer pra sempre seus lábios


e ser livre
talvez viver
aprender a viver com o que já não sei

ir do céu ao inferno sem pisar à terra


contar nos dedos, como num relâmpago, até o infinito
atravessar as janelas, voar por telhados
-em direção oposta à passagem do tempo

errar todos os caminhos, vadiar


como único cúmplice: o absurdo
sem ser preciso dizer
o quanto me agrada o absurdo

A flor não se fez borboleta

A força da tempestade leva os mosquitos embora qualquer ruído é um silvo ríspido aos
ouvidos
essa noite sou um animal fraco e indigno
à mercê da minúscula tragédia

o som da radiola é suficiente para tornar-me ébria


os pequenos cantos me doem como um corte
cada detalhe é doloroso e cruel

os vizinhos que gritam


vovó que dorme um sono sublime, como brincando de morta
o ontem que não é mais nosso, e assim será com o agora

meus olhos se curvam como dois mendigos


em busca do que não se mostra
o barulho que nasce do interior das córneas
dá nome ao invisível

o vento desenhando a água sobre o fogo


o detalhe revelando-se
nos exorcizando de nós mesmos

me sento à mesa da cozinha


pelos últimos dois mil anos, que são instantes
com toda a força atravesso o quotidiano
até não me pensar forte

-olho os pirilampos no escuro e de alguma


forma posso saber de deus

os homens lunáticos sempre acima de nós


já eu, fada. a estar sempre entre paredes
ou por fora delas
que me olham mais que eu as olho
me seguindo, imóveis, até mim

tenho receio de tocá-las e sentir meu próprio corpo


e ao beijá-las saber-nos da mesma dureza
ainda de pé, ante o aguardo da queda
unidas por um único medo: a maior das intimidades

os fragmentos são tristes


encobertos por trás do que é inteiro

deu-se o apogeu do verbo, no primeiro dia falado


toda a beleza extinguiu-se
caberá à feiura salvar o mundo

uma seda translúcida me separa do lugar em que me perco


inútil inútil é minha pena
ferida a sensibilidade já não tenho as coordenadas de onde fugir

e me encolho ao ouvir vovó dizer


_família é como chamamos os nossos.
não chamo ninguém_

enquanto isso formiguinhas de luz dançam


saindo dos hiatos das calçadas e da sua cara

o cachorro persegue sua sombra. como quem entendeu tudo

como descobrindo a extinção, as aranhas tecem as mortalhas


-com as sobras do arame farpado

e as paredes se calam, aprisionadas em sua espera

há um certo conforto, meio incômodo nas coisas miúdas

tenho pavor dos pequenos momentos


mas me encanta a grandeza quase calculada
que os constrói

Tentativa

Escuta, eu só queria uma palavra que te trouxesse mais perto


algum algarismo fonema vocabulário antigo
simpatia
coisa pouca.
Contudo, não escrevo

Escuta, o que me atormenta é o som das folhas se partindo


o paulatino aumento da ruptura
o mundo em constante fissão
e esse nosso vício obstinado de continuar vivendo

Escuta, também eu enlouqueço as vezes


e vejo para além dos olhos
e escuto para além dos ouvidos
e dorme em mim a rocha e a verdade e o deus
que não existe

Escuta, eu também temo a lucidez


e me assusta o esclarecimento
e no escuro eu choro e roo as unhas esmaltadas e não durmo

Escuta, qualquer ato é um ato desesperado


uma parcela de tentativa.
A ânsia, o impulso
o cerne da condição humana

Escuta, essa declaração que não digo


a paixão não revelada
o silêncio do deus dos mitos
o tempo após o tempo
A interminável gestação das horas
O gosto do nosso beijo,
cheio de fome

O meu sangue, em sua presença, fervendo

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