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D uas vezes Lopes + Zigrino: três experiências com máscara no Brasil

D uas vezes Lopes + Zigrino:


três experiências com máscara no Brasil

F elisberto Sabino da Costa

A
o findar a Segunda Guerra Mundial, o tra- Leon Chancerel entre outros. Ao criar a escola
balho com a máscara na Europa não sofre do Vieux Colombier, Copeau tinha como obje-
mais solução de continuidade, estabele- tivo inicial formar atores para a sua companhia.
cendo-se um enredado que insere mais O diretor-pedagogo tencionava desenvolver em
fortemente o Brasil a partir dos anos 80. seus alunos qualidades técnicas e éticas, em que
O encontro de Jacques Lecoq, Amleto Sartori, o coletivo fosse o suporte, uma vez que se tor-
Dario Fo, Gianfranco de Bosio e Giorgio nar ator pressupunha também ser portador de
Strehler, entre outros, dá-se numa atmosfera uma cultura geral. Distanciando-se da prática
permeada pela máscara, e a importância dessas em que o ator é uma “cabeça falante”, a peda-
conexões reside no olhar com que ela é vista. gogia de Copeau privilegia o trabalho corporal
Não lhes interessava o seu resgate pelo viés que traduza uma atitude interior e, sob esse as-
museológico, mas trazê-la para aquela realida- pecto, a máscara pedagógica converte-se em um
de, inserindo-a em uma ambiência em que o instrumento valioso. O método propunha que
corpo e o objeto respondiam aos anseios e in- se partisse do silêncio para a fala, e esta resultava
quietações do seu tempo. No ambiente acadê- da ação e da percepção interna da sua necessi-
mico, o trabalho se dá por meio da experiência dade. De igual modo afeito ao universo da más-
de Lecoq na Universidade de Pádua. Posterior- cara, outro fundamento que constitui a base da
mente, a convite de Strehler e Paolo Grassi, aprendizagem é a observação dos jogos da infân-
Lecoq dirige-se a Milão, onde participa da cria- cia naquilo que eles têm de lúdico e espontâneo.
ção da Escola do Piccolo Teatro. É dessa época Com o retorno de Jacques Lecoq a Paris,
também o seu contato com Dario Fo, formado e com a fundação de sua escola em 1956, tem-
pela Escola de Belas Artes de Milão. se o início de uma experiência que se espraiou
Em paralelo a essas experiências, outros para diversas partes do planeta, constituindo-se
artistas-professores, muitos dos quais oriundos uma base para outras que a sucederam. Assim,
do Vieux Colombier, realizavam trabalhos a par- os trabalhos desenvolvidos pelas professoras Ma-
tir de diferentes perspectivas, na França, e de- ria Helena Lopes (UFGRS) e Elizabeth Lopes
pois em outros países. A título de ilustração, (Unicamp), bem como pelo artista-pedagogo
podemos citar Jean Dasté, Michel Saint-Denis, italiano Francesco Zigrino, a partir da primeira

Felisberto Sabino da Costa é professor do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

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metade da década de oitenta do século passado, pois, foram se agregando outras técnicas como,
têm referências na metodologia de Lecoq e con- por exemplo, a busca do próprio clown e as más-
tribuíram para fomentar a linguagem cênica e a caras larvárias, na sua forma branca – antes da
pedagogia da máscara em nosso país. pintura que nelas é realizada para a festa de car-
naval de Basiléia (Suíça).
Fundamentalmente, a metodologia de
Jacques Lecoq: Lecoq baseia-se no seguinte postulado: “como
da máscara neutra ao clown as coisas se movem e como refletem em nós”.
O eixo norteador da pedagogia é a “viagem do
Na passagem que Lecoq denomina “a viagem silêncio à palavra”, e desenvolve-se em dois anos,
pessoal”, ele nos diz que fora convidado a tra- entre a atuação e a improvisação, por um lado,
balhar na Universidade de Pádua, para ensinar e o estudo do movimento (técnica e análise),
movimento e improvisação. Nessa cidade, deci- por outro, constituindo um duplo caminho que
de continuar o trabalho com a máscara nobre1 é complementado com as criações pessoais dos
(por ele definida como neutra), que o havia in- próprios alunos.
fluenciado quando do seu contato com os Co- O primeiro ano tem início com a atua-
médiens de Grénbole. Inicialmente confecciona- ção psicológica silenciosa, em que Lecoq vale-
da segundo a técnica aprendida com Jean se do conceito de “rejeu” (re-jogo), no qual bus-
Dasté,2 é a partir do seu contato com Amleto ca resgatar o universo da criança, ou seja, voltar
Sartori3 que resulta a elaboração da máscara ao espírito lúdico, à brincadeira, por intermédio
neutra e a sua feitura em couro. do jogo dramático. Nesse momento, não há a
Após a “aventura italiana” que se estende preocupação com o público, que aparecerá pos-
por oito anos, Lecoq regressa a Paris, levando teriormente na atuação, quando o ator, consci-
consigo duas descobertas (cf. Lecoq, 1997, ente da dimensão teatral, “dá uma forma à sua
p. 21): a commedia dell’arte e o trabalho com o improvisação” (Lecoq, 1997, p. 41). O “rejeu”,
coro da tragédia grega que, juntamente com a para Lecoq, é o momento em que a recreação
máscara neutra, expressão corporal, pantomima torna-se (re) criação, “é fazer com que o ator
branca, figuração mimada, máscaras expressivas, reencontre a liberdade de movimento que pre-
música, acrobacia dramática e mimo de ação, domina na criança antes que a vida social im-
compõem o programa inicial de sua escola. De- ponha outros comportamentos” (id., ibidem). A

1 O começo da vida profissional de Jacques Lecoq se deu em 1945, na companhia Comédiens de Grénoble,
dirigida por Jean e Marie-Hélène Dasté, retomando em parte Copeau, o espírito dos copiaux, e bus-
cando um público popular com um teatro simples e direto. Lecoq entrou em contato com o jogo da
máscara por intermédio das encenações O Êxodo, figuração mimada com a máscara nobre, e O que
murmura o rio Sumida, uma peça Nô em que os atores mimavam os movimentos de um barco enquan-
to vozes evocavam sons de um rio (cf. Lecoq, 1997).
2 Basicamente, a técnica consistia na modelagem da máscara em argila e, depois de retirado um negativo
em gesso, em confeccionar a máscara nesse molde por meio da aplicação de camadas de papel e cola.
3 Conforme Lecoq, foi ele quem apresentou Sartori a Strehler, para quem elaborou as máscaras para a
encenação de Arlequim Servidor de dois Amos. A peça já havia estreado, porém, os atores utilizavam
máscaras de papel machê e maquiagem-máscara. Apaixonado pela máscara, durante a Segunda Guerra
Mundial Strehler trabalha em Genebra, onde realiza, com refugiados de língua francesa, uma monta-
gem da peça Assassinato na Catedral, de T. S. Elliot, utilizando máscaras planas.

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partir desse passo inicial, investigam-se “as di- O território da máscara no Brasil:
nâmicas da natureza”, em que os elementos três experiências multiplicativas
materiais, as cores, os animais, as luzes, os sons
e as palavras são (re) conhecidos pelo corpo do Como visto acima, a partir de seu resgate no
ator, prática que serve à composição dos perso- século XX, o trabalho com a máscara em esco-
nagens. A dinâmica do movimento é trabalha- las de teatro insere-se em uma perspectiva esté-
da a partir do corpo em ação, no qual se (re)co- tica e pedagógica e a partir da década de 80, ve-
nhecem as leis que a constituem, tendo como rifica-se um impulso no Brasil, tanto no que se
base, essencialmente, três manifestações natu- refere à formação do ator quanto à exploração
rais: a ondulação; a ondulação inversa e a eclo- da linguagem. Nesse período, há o retorno de
são.4 Para Lecoq, “o mimo de ação nos leva a professores e artistas que foram estudar no ex-
descobrir que tudo o que faz o homem em sua terior e, ao regressarem, contribuem para a dis-
vida pode resumir-se a duas ações essenciais: seminação de um trabalho mais sistemático. A
empurrar e puxar”, e esses dois procedimentos tradição européia, principalmente a francesa e a
(com suas variações) estão na base dos territó- italiana, é a principal referência, e mesmo a ver-
rios dramatúrgicos. tente americana que aqui aportou é tributária
No segundo ano da “viagem”, a “geodra- das escolas européias. Soma-se ao retorno, a che-
mática” experimenta os caminhos da criação, gada de pesquisadores, artistas e companhias te-
que têm início com as linguagens do gesto (Pan- atrais que contribuem para a discussão, a divul-
tomima e História Mimada) e encerram-se com gação e a multiplicação dessa linguagem. Além
a exploração das seguintes extensões dramáticas: das escolas, ou de equipes vinculadas a institui-
melodrama (sentimentos), commedia dell’arte ções, surge no seio dos grupos de teatro autô-
(comedia humana), bufões (grotesco e misté- nomos um espaço de criação, de investigação e
rio), tragédia (o coro e o herói) e o clown (bur- de formulação de uma pedagogia. Nesse seg-
lesco/absurdo). O coro trágico, conforme ob- mento, o Théâtre du Soleil destaca-se como a
serva, “é a multidão elevada ao nível da máscara” principal referência, aliando trabalho artístico e
(Lecoq, 1997, p. 139). prática político-pedagógica.
Na escola de Lecoq, a máscara tem, ba- Nesse período, as professoras Maria He-
sicamente, duas funções: uma teatral e outra lena Lopes e Elizabeth Lopes, após passarem por
pedagógica. Com a linguagem da máscara, experiências no exterior, estão entre as primei-
busca-se trabalhar o potencial expressivo do ras a introduzir o trabalho prático com a más-
corpo – que, sob a máscara neutra, está em es- cara em universidades brasileiras. Formada pela
tado de suspensão – e territórios cênicos. O en- ECA/USP, em 1974, Elizabeth Lopes é autora
sino se dá pela via negativa: não se indica ao alu- da primeira tese de doutorado sobre o assunto,
no o que deve fazer e, para o observador, não se defendida em 1990, na Unicamp. Concluído o
trata de opinar, mas de constatar. No percurso curso de graduação, embarca para os Estados
que se estende da máscara neutra ao clown, Unidos, para fazer mestrado em direção teatral
cultiva-se o treino do olhar para a leitura justa na State University of New York (SUNY), em
do movimento. Albany. Nessa cidade, mantém contato com o

4 A ondulação seria o primeiro movimento do corpo humano e de todas as locomoções, como, por
exemplo, o andar, que compõe uma multidão saindo de um metrô. A ondulação inversa partiria de um
móvel exterior ao corpo e a eclosão está ligada à relação comprimir/expandir.

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grupo de teatro Black Ensemble, especializado experiência de Keith Jonhstone, como subsídio
em clown e em commedia dell’arte. Entusiasma- para a compreensão do “transe controlado” em
da por essa experiência prática, Lopes decide ir sala de aula. Quanto às referências metodoló-
à África, no intuito de observar a cultura dos gicas, conta ainda com profissionais america-
povos Dogon, para pesquisar o fenômeno da nos e europeus que passaram pela escola de
possessão por intermédio das máscaras. De re- Jacques Lecoq. No ritual de iniciação à másca-
gresso ao Brasil, realiza trabalhos em commedia ra, reelabora os procedimentos de Jean Dorcy e
dell’arte, e retorna à França, para estudar antro- de Saint-Denis, quando este se refere ao uso do
pologia, com a qual buscava subsídios para espelho. Na indução ao “transe hipnótico”, que
embasar a sua prática. Permanece em Paris du- funciona também como elemento de concen-
rante dois anos, período em que realiza um tração, a professora não permite que os alunos
estágio com Mário Gonzalez, ex-ator do Théâ- permaneçam sozinhos. Como Johnstone obser-
tre du Soleil e professor de máscaras no Con- va, o transe precisa ser controlado pelo profes-
servatório Nacional Superior de Arte Dramática sor em sala de aula, o aluno não pode portar a
(CNSAD).5 O método utilizado por Gonzalez máscara de forma isolada (cf. Johnstone, 1981,
tem suas raízes na Escola de Jacques Lecoq, p. 167). Para Elizabeth Lopes, em decorrência
onde foi aluno e professor. Ao desligar-se da da herança africana no Brasil, um componente
Escola, desenvolve um trabalho próprio, a par- expressivo sobre a possessão permeia nossa cul-
tir das bases do seu antigo mestre. tura, haja vista os rituais de umbanda e do can-
Quando retorna de uma outra estada em domblé (cf. Lopes, 2004).
Albany, Lopes é convidada pelo diretor Celso A disciplina era ministrada durante dois
Nunes, seu antigo professor na ECA, a integrar semestres letivos, partindo do silêncio para a
o Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, fala, iniciando-se com a máscara neutra, depois
como professora de máscaras. Inicia a sua traje- meia-máscara neutra, máscara expressiva e fi-
tória nessa Universidade em 1987, lá permane- nalizando com as máscaras da commedia dell’ar-
cendo quatro anos. Na Unicamp, emprega uma te. Na meia-máscara neutra – também utilizada
metodologia baseada no “transe controlado”, no Vieux Colombier – poderia haver a inclusão
desenvolvida a partir de pesquisa própria e do da sonoridade. A abordagem da commedia
trabalho de Keith Johnstone. O método tem dell’arte tem como base os procedimentos utili-
por objetivo “a formação de atores com másca- zados por Philippe Hottier, ex-integrante do
ra, visando não ao teatro mascarado, não ao Théâtre du Soleil, quando estabelece a relação
transe, mas sim a um suporte sólido para o ator, das linhas da máscara com corpo do ator. Se-
a fim de que ele possa abandonar a máscara (ob- gundo Hottier, uma vez sobre o rosto, a másca-
jeto concreto) e abordar, com muito mais segu- ra é o corpo inteiro que representa, e no objeto
rança, a máscara metafórica dos personagens estão inscritas a energia mental e física do per-
que vai representar ao longo de sua carreira pro- sonagem (cf. Hottier, 1989, p. 235). Assim, ele
fissional” (Lopes, 1990, p. 12). Lopes elabora o transpõe essas linhas de energia para o corpo,
seu percurso, fundamentalmente, com a junção situando as que formam o nariz da máscara na
de técnicas originárias da escola de Copeau e a extremidade inferior do osso externo. Neste

5 Gonzalez ingressa no Conservatório (CNSAD) em 1981. Natural da Guatemala, no início de sua car-
reira trabalhou com teatro de bonecos. Em Paris, integra o Théâtre du Soleil, durante oito anos, parti-
cipando dos espetáculos Les Clowns, em que fez o papel de Pépé la Moquete, 1789 e L’Âge d’Or. Em
1989, funda a Companhia Mário Gonzalez, e exerce a função pedagógica em diversos países do mundo.

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sentido, para o personagem Pantallone (Panta- te o qual aprofunda o contato inicial com as
leão), o ponto culminante do nariz situa-o na máscaras de trabalho, principalmente, a másca-
base do referido osso, e as arcadas supracialiares ra neutra, as máscaras utilitárias e as máscaras
são relacionadas aos ombros, direcionando-os larvárias. Os princípios que constituem essa lin-
para trás. Contrapondo-se a esse vetor, a bacia guagem são postos em ação, em diversos proce-
tende a ir para frente, fazendo com que haja dimentos, como, por exemplo, instaurar o jogo
uma flexão nas pernas. A voz do personagem a partir das impressões que uma máscara produz
surge dessa organização corporal, cuja dificul- em outra. O olhar mútuo afeta o corpo-mente
dade leva-a a ter uma característica própria em daquele que veste a máscara, alimentado por um
virtude da respiração. O mesmo processo é apli- fluxo de mão-dupla, em que as (im)pressões co-
cado às demais máscaras, nas quais “a posição lhidas reverberam e geram as fricções que ali-
do corpo modifica as percepções do pensamen- mentam o improviso. Segundo a diretora-pe-
to” (Hottier, 1989, p. 236), contribuindo para dagoga, interessava-lhe obter o conhecimento
a composição do personagem. da linguagem e aplicá-lo na Escola de teatro da
Considerando-se tributária da pesquisa UFRGS (cf. Lopes, 2006).
iniciada por Jacques Copeau, Lopes diz distan- Da viagem pedagógica proposta por
ciar-se da “postura cartesiana” de Jacques Lecoq, Lecoq, Maria Helena Lopes manteve o ponto
“que enfatiza as regras e técnicas, mantendo cer- de partida e o de chegada; os recursos utilizados
to distanciamento professor-aluno” (Lopes, entre um e outro pólo, contudo, sofriam varia-
2004). Porém, mesmo que por via indireta, há ções. Durante sua permanência na França, tra-
pontos de contato com o trabalho de Lecoq. balhou outras formas de máscaras que propicia-
Atualmente, Elizabeth Lopes centra sua pesqui- ram o desenvolvimento de sua metodologia.7
sa na linguagem do clown, tendo abandonado, Nesse sentido, a utilização de determinados ob-
momentaneamente, o trabalho com as outras jetos, ligeiramente ou bastante modificados, re-
modalidades de máscaras envolvendo o transe sultava em configurações expressivas no territó-
controlado. Este torna-se algo complexo quan- rio da máscara. É nessa linha que se situa, por
do se trabalha numa perspectiva em que o ator exemplo, o trabalho com máscaras elaboradas
deva ter consciência da sua presença em cena. com garrafas plásticas de água.
Corpo e movimento são primordiais na No início dos anos 80, quando introduz
pedagogia de Maria Helena Lopes, tanto como o trabalho no Departamento de Arte Dramá-
diretora quanto professora. Em 1967, ingressa tica (DAD), as máscaras tornam-se instrumen-
no Curso de Artes Cênicas da UFRGS,6 e tra- tos valiosos, no exame dos múltiplos aspectos
balha como docente até o início dos anos 90, da improvisação. O percurso iniciava no segun-
quando se aposenta. O seu primeiro contato do semestre do primeiro ano, quando realizava
com a máscara, como instrumento para a for- algumas inserções com a máscara neutra. Nos
mação e o treinamento do ator, foi por meio de dois semestres do ano seguinte, a exploração
um estágio promovido por Jacques Lecoq. Mo- com a máscara neutra estava plenamente desen-
vida por essa experiência, decide cursar o pri- volvida, bem como as abordagens com as ou-
meiro ano da Escola, em 1979, período duran- tras modalidades.

6 Atualmente, chama-se Departamento de Arte Dramática (DAD) do Instituto de Artes. Maria Helena
foi professora de Interpretação, Improvisação, Expressão Corporal e Direção.
7 Entre outros, Maria Helena trabalhou com Serge Martin, ator e diretor francês. Martin ensinou na
Escola de Jacques Lecoq e na Universidade de Caen.

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Quanto à fatura do objeto-máscara, a que não vai necessariamente utilizar aquela lin-
professora procurava fazer com que os próprios guagem, quanto para aquele que a toma como
alunos o confeccionassem. Geralmente, elabo- expressão, principalmente o clown.
rado com papel e cola, buscava-se nesse objeto Enquanto as professoras Elizabeth Lopes
uma feição destituída de traços particulares. e Maria Helena Lopes foram em busca de aper-
Além das restrições financeiras para obtenção de feiçoamento no exterior, na via de mão dupla
máscaras de couro, Lopes observa que que sedimentou o trabalho com a máscara no
Brasil, o ator e diretor italiano Francesco Zigri-
não era muito o caso de ficar repetindo um no perfaz o sentido contrário; situa-se entre
mesmo modelo. Eu precisava de uma másca- aqueles que aportaram em nosso país, para rea-
ra suficientemente neutra, mas que não fos- lizar cursos, oficinas, seminários e montagens
se, necessariamente, a da Escola de Lecoq, até que resultaram num processo que gerou conti-
porque para obter as máscaras de couro, era nuidade. Diversos profissionais brasileiros que
muito complicado. O importante era a más- hoje trabalham com a linguagem da máscara ti-
cara ter uma sensibilidade e eles conseguiam veram contato com a pedagogia de Zigrino,
resultados que se aproximavam bastante da concentrada na commedia dell’arte e no clown.
idéia de máscara neutra desenvolvida na Es- Formado na década de 70, na Disciplina
cola de Jacques Lecoq (Lopes, 2006). de Arte, da Música e do Espetáculo (DAMS),
pela Universidade de Bolonha, Zigrino ingressa
Em 1981, ao fundar o grupo Tear, Maria na Escola de Jacques Lecoq em busca de uma
Helena alia criação artística e pedagogia, proce- formação prática. Originário do sul da Itália,
dimento ao qual se alinha, nos anos seguintes, parte em busca de um trabalho técnico, que tem
os grupos Fora do Sério (Ribeirão Preto-SP), referências nas experiências do pós-guerra en-
Barracão (Campinas-SP), Amok (Rio de Janei- gendradas pelo Piccolo Teatro, por Amleto
ro-RJ) e Moitará (Rio de Janeiro-RJ). No Tear, Sartori, por Dario Fo e pelo próprio Jacques
a diretora emprega as máscaras de trabalho, Lecoq entre tantos outros. Na escola deste últi-
como estágio necessário à máscara do clown, re- mo, tem a oportunidade de sistematizar uma
curso imprescindível para a constituição do prática que se alia aos estudos teóricos empre-
clown almejado. A montagem de Os Reis Vaga- endidos em Bolonha. Em sua trajetória, há que
bundos (1982) repousa numa pesquisa sobre ressaltar ainda a experiência de grupo; certa-
catadores de lixo, levada à cena com a lingua- mente, um elemento fundamental para a refle-
gem do clown.8 xão e prática da sua metodologia. Estabelecido
Maria Helena Lopes trabalha a máscara em Tarando, funda, juntamente com outros ar-
como objeto teatral, buscando a sensibilidade e tistas, um grupo de teatro, no qual exerce as
a percepção necessárias ao aluno para vestir uma funções de diretor e preparador de atores, reali-
máscara, criando um estado favorável ao jogo. zando um trabalho em consonância com a po-
Todavia, não é sempre que utiliza a máscara: isso pulação local.
ocorre de forma pedagógica, quando oferece No início da década de 80, Zigrino de-
cursos, ou quando trabalha com um grupo de sembarca em São Paulo, inicialmente, para a
atores que vão constituir o seu elenco. A másca- apresentação de um espetáculo; posteriormen-
ra pode ser um instrumento tanto para o ator, te, intermediado pelo Instituto Italiano de Cul-

8 Outros espetáculos significativos do grupo foram Quem Manda na Banda (1981) e Crônica da Cidade
Pequena (1984).

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tura, ministra cursos na Escola de Arte Dramá- dos quais, lastreados direta ou indiretamente na
tica (EAD/ECA) e na Fundação Armando Ál- pedagogia de Jacques Lecoq. No trabalho de
vares Penteado (FAAP), durante os quais diver- cada professor, as metodologias constroem-se
sos alunos têm o primeiro contato com a em conformidade com o percurso, no qual as
máscara neutra, segundo os princípios articula- referências são (re) trabalhadas em cada contex-
dos por Jacques Lecoq. O pedagogo amplia sua to. A ampla possibilidade de utilização da más-
inserção e atua como diretor e preparador de cara reflete-se na prática dos professores, quan-
atores com as técnicas do clown e da commedia do percebemos que eles não se fecham em
dell’arte.9 Fundamentalmente, a configuração apenas uma escolha.
do palhaço efetua-se mediante o jogo teatral e A máscara não se presta somente à cons-
o improviso, estimulado pelo orientador, que trução do personagem, mas apresenta-se como
veste a “máscara” do Monsieur Loyal, o “pro- instrumento para a compreensão do fenômeno
prietário” do circo. Buscam-se, nessa relação teatral, distanciando-se de uma perspectiva ex-
assimétrica, os aspectos particulares do aluno clusivamente técnica. O projeto pedagógico
que servem à composição do clown. colabora na formação do ator, e permite aguçar
A experiência de Francesco Zigrino resul- a percepção e a análise nesse fazer: ainda que
ta num processo multiplicativo, estimulando a ele não eleja a máscara como escolha artísti-
formação e o aprofundamento de numa quan- ca, trabalha procedimentos que são essenciais
tidade expressiva de profissionais brasileiros que para a compreensão do seu ofício. A dimensão
trabalham com a commedia dell’arte e o clown, que ela instaura é a própria essência do teatro e
seja como linguagem seja como instrumento fundamenta-se na tríplice relação: do ator com
para a formação e o treinamento do ator. Há ele mesmo, com o outro, e com o espectador.
que ressaltar ainda a inserção na EAD, propon- Nesse lugar de metamorfose – em que as certe-
do linguagens distintas das que eram predomi- zas do ator e do espectador são postas em jogo
nantes naquele momento, proporcionando uma na flexuosidade da cena –, a máscara faz apelo
revitalização do processo de criação teatral. É ao outro, e é pelo olhar desse outro que ela se
oportuno lembrar que Cristiane Paoli-Quito, constitui. Nesse fluxo contínuo que a caracte-
uma das alunas que mantiveram contato com riza, jogo e improvisação integram a sua natu-
Zigrino, em 1983, é a atual diretora da Escola. reza, de tal modo que, embora existam princí-
Os percursos trilhados pelos três profis- pios determinantes para a sua configuração
sionais caracterizam-se pela diversidade e se cênica, quando posta em moção, esses princí-
interseccionam em princípios comuns, muitos pios se relativizam.

9 Zigrino monta as peças O Arranca Dentes, resultado do exercício da commedia dell’arte, empreendido
pela turma de 1983, da EAD; Pinóquio, de Carlo Collodi, e Esperando Godot, de Samuel Beckett, na
qual utiliza linguagem do clown. Na montagem de Você vai ver o que você vai ver, realizada pelo Circo
Grafitti, atua como professor de técnica de clown. Em 2005, Zigrino retorna ao Brasil, a convite do
Clã – Estudos das Artes Cômicas.

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Referências bibliográficas

HOTTIER, P. La structure du masque agit sur le corps et le mental du comédien. In: Le masque. Du
rite au théâtre. Paris: CRNS, 1989. p. 235-9.
JOHNSTONE, K. Impro. Improvisation and theatre. London: Methuen, 1981.
LECOQ, J. Le corps poetique. Un enseignement de la création théâtrale. En colaboration avec Gabriel
Carasso et Jean-Claude Lallias. Paris: Actes Sud-Papiers, 1997.
LOPES, E. P. A máscara e a formação do ator. Tese (Doutorado em Artes). Instituto de Artes da
UNICAMP, 1991.

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