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Orquídea Nativa

A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros.


— Jacques Le Goff

Bromélias cercavam o homem no coração duma selva pantaneira. As folhagens


barravam parte do sol, mas acentuavam o mormaço entre as palmeiras e os xaxins, sobre
o chão de folhas mortas e bichos rastejantes. Suor pesando a camisa, os mosquitos sem
dar trégua, multidão de pássaros grasnando ao redor. Cheiro de terra e mato, de madeira
velha onde nasce urupê, fedor de pau d’alho, aviso de chuva. Vai andando cauteloso,
olhando as trepadeiras. Pode ter cobra. Buscou o cantil no bornal e balançou, vazio.
As plantas que ele buscava se escondiam no alto das árvores, difíceis de encontrar.
Até então, nenhuma nas proximidades. Parou por um momento, prestando atenção aos
sons. Não ouvia os bugios guinchando, só aves e cigarras. Passou a língua pelos lábios.
Caminhou até uma enorme bromélia, cujo espiral de folhas duras acumulava água da
chuva. Como não havia macacos por perto, a água devia prestar, e melhor beber agora
do que esperar achar o riacho que o fazendeiro mencionou.
Goles mirrados, frescos. Respirou fundo, limpou o suor com a manga da camisa e
sorveu mais um pouco de água. Voltou a caminhar. Odor de pau d’alho passou, as
sombras aumentaram. Embrenhou-se num mato de taiobas, pegou o facão, catou
algumas folhas e as meteu no bornal, pra cozinhar depois. Na árvore mais próxima, de
surpresa, percebeu uma mancha de cor num dos galhos. O pequeno cacho de flores
coroava uma orquídea agarrada à madeira. Por instantes, o homem buscou na memória
se já tinha aquele espécime em seu orquidário. Anos de prática, muitas plantas. Melhor
levar.
Tronco alto, seu braço não alcançava. Amarrou o serrote curvo na ponta dum cabo
comprido. Escolheu a melhor parte do galho onde o corte não danificaria as raízes da
epífita, pra não ficar tão curto nem tão longo, e começou a serrar. Apertava os olhos
conforme o pó de madeira ia caindo, grudando no suor que já molhava a face. Força no
braço, cuidado para não balançar tanto. Suspirou e limpou o rosto novamente.
Voltou ao lugar onde deixara o bornal, para guardar o espécime. Olhou bem as
hastes e as folhas, se tudo estava intacto, e admirou o cacho com cinco flores brancas,
pequenas, as pétalas espetadas. Colocou o toquinho num caixote de madeira e passou a
língua pelos lábios de novo, provando o suor.
Lembrou do velho falando do riacho. Encher o cantil, ferver água. Ia precisar achar
o lugar. O céu alaranjando, as árvores do matagal cada vez mais indistintas, fundindo-se
conforme escurecia. Só restava continuar caminhando até ver água corrente. O dono da
fazenda comentou que tinha peixe e o anzol de galho ia servir. As águas eram bem
cristalinas, mas pouca gente vinha ver. Vem um ou outro desocupado caçar cateto, mas
ninguém para no riozinho, não, nem fica pra dormir. Depois que o menino morreu
afogado, não tem filho de peão que vai banhar lá, não. Tinha gente que contava até de
assombração, maldição de índio. Lembrou do fazendeiro gesticulando o sinal da cruz.
Um sorriso curvou a boca do homem. A natureza significava muito pra aquela gente
nativa, e julgamento daquele tipo era de todo contestável. O fazendeiro contou, ecoando
as palavras de um avô seu, que os índios usavam dos vapores frescos de uma cachoeira
para canalizar os espíritos de seus mortos, isso há muito, muito tempo. Com as
gerações, as lendas criavam casca e juízo de valor, e o acaso amaldiçoava as coisas.
Isso tudo motivou o caçador de orquídeas a buscar pelo riacho e decidir passar a
noite entre as árvores, dormindo em rede como os antigos, para aproveitar o dia seguinte
no meio do mato e voltar com o caixote cheio. Vez ou outra, quando ouvia algo que
parecia ser o sussurro das águas, as palavras do velho retornavam. Conforme penetrava
na selva, cipós e ramas alastravam-se mais e mais, e o homem parou de guardar o facão.
Troncos grossos e rugosos elucidavam séculos passados, um tempo em que esse
desconhecido era chamado de sertão e outros pés andavam sobre aquele chão de folhas
mortas e bichos rastejantes. Pés de gente que carregava cruz no peito e espada na mão,
aos bandos marchando, de jesuítas a bandeirantes vindos do litoral.
Tinha lido sobre eles em enciclopédias de história e gostava das gravuras. Os
chapéus levantados numa ode ao heroísmo das suas aventuras, as armas sempre bem
limpas, polidas, olhos claros, barba longa e acinzentada pela idade. O homem sorriu de
novo. Pensou que a memória amaldiçoava alguns e fazia pinturas heroicas de outros. As
imagens do passado e a atmosfera de antiguidade daquela selva mexiam com ele,
riscavam fagulhas dum prazer quase fantástico que fazia seus olhos marejarem. Como a
criança que imagina formas nas nuvens, ele imaginava grandes lutas naquelas selvas,
dos tempos da colônia, das sesmarias onde a palavra de Deus costumava reinar.
As ararinhas já tinham parado de grasnar havia algum tempo, e davam lugar aos pios
solitários do urutau. Por esta altura o homem ouviu o barulho de água corrente, batendo
em pedras, a cachoeira que encimava o riacho, e foi caminhando direto pra lá, abrindo o
matagal com o facão que já perdia o fio. Chegou à prainha que havia na margem do
meandro, passos pesados, botina afundando no areião barrento. A água era mesmo bem
limpa e, da cachoeira, subia uma nuvem de vapor. Lavou o rosto, molhou bem o cabelo
e refrescou a nuca. Pegou o cantil e encheu na queda d’água, bebeu metade em goles
fartos e encheu de novo. Largou o bornal e o caixote de madeira numa pedra lisa que
evitava a água e foi preparar os anzóis. Tinha pouca árvore pendendo por cima do
riacho, que não era dos maiores e nem dos mais fundos, ao menos naquele ponto, mas o
homem conseguiu achar três boas galhas, onde amarrou a linha e soltou os anzóis com
isca. A luz do poente refletia na superfície da água, criando espelhos de roxo e laranja
que pareciam sair duma aquarela. Na outra margem, um lagarto descansava sobre a
relva e uma jaçanã bicava insetos por entre os aguapés, ignorando a presença humana.
Ele assoviou. O lagarto correu para o mato, a ave girou, espirrando água com os pés
desajeitados, e abriu asas. O homem ergueu a gola da camisa e abaixou as mangas.
Contemplou o voo do pássaro, que foi pousar longe, nos galhos duma grande paineira
sem folhas, onde os jaburus faziam ninhos.
Foi procurar um lugar pra pendurar a rede e fazer fogo. Forçando a vista, banhou o
pavio com querosene; riscando um fósforo, acendeu a lamparina. Deixou-a próxima,
sobre um grande tronco caído, de modo a iluminar o chão. Amarrou a rede nas árvores
que julgou serem as ideais, na altura onde ia dormir, longe o bastante das cobras no
chão e dos morcegos que já voavam, guinchando fino. Depois de certificar que as
cordas estavam firmes, amarrou outra, um pouco acima da rede, na qual dobrou uma
lona que servia de cabana. Também fez luz num lampião a gás para afastar os bichos e o
pendurou num galho horizontal sobre o acampamento improvisado.
Na meia luz do lampião foi que o homem percebeu, numa árvore bem próxima, uma
planta que ele havia negligenciado a presença até então. Uma orquídea nativa que ele
nunca havia visto em toda sua vida, agarrada pelas raízes grossas ao tronco de um pau-
brasil tão antigo quanto a chegada do homem branco àquelas terras. A epífita se
encaixava majestosa onde os galhos se bifurcavam, suas raízes de um vermelho escuro
feito sangue. O homem ergueu a mão e alcançou a planta, tocando minhas pernas. Com
a lamparina em mãos, iluminou o resto do vegetal, sua boca aberta num sorriso
encantado, os olhos brilhando. Os bulbos sustentavam folhas verde-escuras, bem largas
e vincadas no meio, e o homem aproximou a mão novamente, tocando meus braços. Do
meio de toda a folhagem saía uma única haste, que sustentava uma única flor, grande,
do tamanho dum palmo. O homem parou, me encarando nos olhos. Observou as pétalas
delicadas, vermelho-amarronzadas, detalhadas por pequenos riscos de um vermelho
vivo. O labelo era profundamente púrpura e na sépala superior havia dois pontos negros,
brilhando à luz.
O homem coçou a barba e decidiu voltar ao acampamento para buscar as
ferramentas. Ao sair de perto da grande orquídea, sua mão resvalou num objeto gelado
preso ao tronco. Voltou o olhar, aproximou a lamparina. Havia pedaços de um tecido
presos ao tronco, meio que fundidos à madeira devido o apodrecimento paralelo ao
crescimento da árvore. Olhando bem de perto, o homem notou uma cruz vermelha
riscada, quase totalmente apagada pela ação do tempo. Havia um fino cordão metálico
que dava várias voltas no tronco, amarrando tanto o tecido quanto as raízes da orquídea
ao pau-brasil, e, de um dos gomos do cordão, pendia um crucifixo enferrujado.
Primeiro, com auxílio da luz, identificou as três voltas que a correntinha dava no
tronco. Depois, com cuidado e ajuda de sua faca, foi enfiando a lâmina entre a casca da
árvore e o metal enferrujado, desprendendo a corrente. Tentou preservar ao máximo o
pano e principalmente as raízes, mas vez ou outra furou o tecido. Não piscava, não
ouvia o pio das corujas, não sentia o vento noturno. Quando terminou, viu que o
crucifixo era muito pesado. Enrolou a correntinha e dobrou o tecido com a pintura para
guardá-los no bornal. Depois pegou o facão e voltou ao pau-brasil para arrancar o
espécime. Não tinha como serrar o tronco, pois a orquídea assentava-se justo na
forquilha mais grossa da árvore. Então ia enfiando a ponta da lâmina e, num movimento
e força, alavancava o facão, desprendendo a casca grossa.
Suspirou fundo e olhou para as estrelas. Seu pescoço doía depois de certo tempo
olhando para cima, esculpindo o tronco para remover seu achado. Enquanto levava a
orquídea no colo, na curta distância entre o pau-brasil e sua rede, notou que a flor
assemelhava-se a um rosto humano, adornado de pinturas tribais, um lábio púrpura e um
par de olhos negros. O homem abriu um sorriso. Julgou ser a luz da lua pregando peças
em sua mente cansada. Conhecia plantas cujas flores pareciam pássaros fantásticos ou
demônios rubros, como um espécime nativo das selvas colombianas, mas que nunca
deixavam de parecer, num primeiro momento, uma flor. Aquela em seus braços,
conforme a pálida luz da lua oscilava, lembrava tanto um rosto que, num milésimo, o
homem esqueceu que segurava uma orquídea. Deixou-a ao lado do caixote de madeira.
Vestiu sua jaqueta, pegou o lampião e foi checar os anzóis na curva do riacho. Sob o
luar, viu uma sucuri se contorcer entre os aguapés e depois afundar por completo na
água com um ruído. Uma das três linhas dos anzóis de galho estava rígida, balançando
em golpes bruscos para lá e para cá.
Limpou o peixe e assou na brasa, picou bem as folhas de taioba e refogou numa
panelinha pretejada. Graças a Deus não ouviu esturro de onça, e por isso conseguiu
dormir. As cigarras cantavam, vez ou outra o urutau voltou a piar. Levantei, toquei sua
testa com minha história e fui embora em passos tranquilos. O homem sonhou com
sangue, com um passado violento, com homens marchantes portando bandeirões, cruz
no peito e espada na mão, desbravando o sertão brasileiro.
Desapareciam e voltavam como mergulhos de sombra em sua consciência.
Acordava, voltava a dormir, transitando entre o mundo onírico e o real, açoitado pelo
frio noturno no coração da floresta. Entre o vai e vem de imagens e sons, uma cena
ficou nítida, cravada em sua memória. Um grupo de jesuítas, suas vestes negras feito as
penas de um mutum, cruz de ferro pendurada no pescoço. Faziam parte de uma bandeira
não muito grande, composta por alguns portugueses, vários mestiços e muitos índios da
terra que estavam amarrados, sentados no chão úmido. Haviam parado para descansar,
queimando a carne de um cateto sobre a fogueira. Os padres pareciam aflitos, agitando
as mãos, fazendo o sinal da cruz. Um deles rezava o Pai Nosso. Os jesuítas estavam
curando os nativos com o Espírito Santo, como diziam. Tome as ervas e junto delas a
hóstia, e o corpo de Cristo os salvará. Naquele sonho, havia uma mulher que se recusou
a tomar a comunhão, e os padres deixaram-na arder em febre encostada num pau-brasil.
Seu rosto moreno-avermelhado, marcado por pinturas e um par de olhos negros,
convulsionava. Deixaram-na agonizar. Quando amanheceu, cobriram-na com um dos
bandeirões da tropa, e um dos jesuítas enrolou o cordão com seu crucifixo sobre o
cadáver.
O homem acordou com falta de ar, seus cabelos encharcados de suor. Os primeiros
raios do sol brilhavam no orvalho das folhagens. Logo recordou do sonho e olhou para
o caixote de madeira ao lado. A grande orquídea não estava mais lá. Em vez dela, havia
uma trilha de pegadas humanas, passos tranquilos, pequenos, marcando o chão rumo ao
areião barrento do riacho. O homem não pôde ver para onde as pegadas iam depois de
adentrarem a água, mas sabia que seguiam para a cachoeira de vapores frescos, onde os
espíritos livres dos índios encontravam seu caminho no passado.
Mopiguaçu

Porcos morreram num mangueirão nas vizinhanças. Noite larga de tempestade, não
ouviram os bichos grunhir nem gritar. Encontraram no brejeiro uns vinte e tantos
animais mortos, as línguas pra fora, moscaiada voando e pousando nos olhinhos abertos
dos leitões. Isso é obra do diabo, disse um caboclo muito magro, apertando o chapéu
entre as mãos. Tentaram aproveitar pra comer, mas a carne quando cozida levantava um
fumaceiro fedido, e arrancava vômitos de qualquer um que a provasse.
— Morcego só se fosse do tamanho dum touro pra suceder esses estragos.
A velha balançava a cabeça branca. Isso aí é obra de coisa que não é nem gente nem
bicho, coisa que ficou no meio desses caminhos. Empurrou a lenha mais pra dentro do
fogão. As sombras dançavam no interior da casinha; o menino balançou os pés e
observou a luz quente aninhando o rosto nodoso da avó.
— Não quero dormir, não, vó. E se ele vier me pegar à noitinha?
Apertou os braços num abraço em si mesmo.
— Não pega – a vó falava enquanto mexia nas panelas. – Não pega, não. O vô cuida.
Tio também mora pertinho, lembra da cachorrada do tio?
O menino balançou a cabeça.
— Pois então se aquiete e dorme tranquilo.
Com as rezas o sono finalmente alcançou o menino. Ventou à noite, com chuva
brava que faz cair pedaços de barro da casinha de taipa. Os trovões martelavam o cimo
das serras e as vacas berravam no escurão. Num dos estrondos o menino acordou. Se
pós de pé no cantinho do quarto – o vento tinha arreganhado a janela.
O aguaceiro invadiu numa lufada solta, e lá fora o menino viu uma sombra mais
escura que a própria noite. Passou voando rasteiro. Bicho peludo de olhos brilhantes,
asas pesando, e aquele guincho inaudível ecoou bastante nítido para ele entre raios. As
tramelas das janelinhas de madeira balançavam com os urros do vendaval, e a velhinha
sentada na cama via, de quando em quando, os clarões relampeando pelas frestas.
Menino acordou mijado noutro dia e foi se esgueirando pra perto do fogão enquanto
a vó fervia água. O vô limpava o cachimbo. Alguém chamou lá fora e bateu palmas. Era
o primo. A vó o mandou limpar o barro dos pés e entrar.
— A cachorrada do pai – disse o menino franzino, beirando as feições dum
esqueleto. Apoiou-se no umbral, arfando. – Morreu tudinho na tempestade. Igual os
porco do vizinho, foi. Feridas poucas, mas sem sobrar sangue nenhum.
Sublinhou suas últimas palavras arregalando os olhos. O vô torceu a cara.
— Vamo ter de dar cabo num trem desses, ou daqui uns dia é as vaca que amanhece
morta. – Tossiu amargamente. – Os cachorro num brigaro, não?
O garoto balançou a cabeça, olhando pro chão.
— Teve um piseiro no pomar, sim – o menino assentiu com a cabeça. – Mas o pai
não quis sair na chuvarada à noite. Ainda bem, senão acabava igual os cachorro.
— Graças a Deus – disse a vózinha.
O primo foi embora.
As noites entraram e saíram, tantos dias tantos meses tantos anos. Gado morreu nos
pastos. O tio mudou-se depois das muitas desgraças. O menino parou de acordar
mijado. Numa noite quente, o vô morreu com um grito. Vieram outros tantos temporais.
Num deles a porta da casinha caiu com um estrondo, e sob os umbrais uma silhueta
esbranquiçada cortava a noite, tremelique de bicho fedendo a podridão, que disse:
— Vim buscar o menino.
A vó balançou a cabeça branca. Seus lábios tremiam quase convulsionando.
— Já é hora.
Viu os dentes da filha e não objetou. Buscou o menino no quarto e o entregou num
soluçar infindável. Diferente da avó, o menino não chorava. Foi embora aguaceiro
adentro, longe, longe na noite grande, e sumiu.
A velha encolheu de tanta dor nos ossos, já quase não enxergava mais nada. Pensou
que nunca mais veria o neto, mas erro seu. Ele voltou numa noite de tempestade pra
encher a casinha com um griteiro, estourando o telhado e as janelas com suas asas
duras, negras, cobertas de pelos eriçados. O nariz afiado pra cima farejava tudo. Aguçou
as presas pra fora. Feridas poucas, não restou sangue nenhum no cadáver da vó.
Ninhos Mortos

Havia uma fazenda cujas cercas foram fincadas aos próprios motivos das gerações
antigas. Quando nenhum machado havia beijado os troncos da mata, e não havia
vizinhos para se preocupar com as extensões de terras outras, de modo que os campos e
as florestas eram inteirinhas debaixo dum único par de botinas. A casa grande foi
erguida com tijolos vermelhos de barro cozido, construída em cima dum morro. O
telhado de quatro águas era baixo, preguiçoso, feito as folhas das palmeiras que
pontilhavam o carreador. A varanda dava vista pruma baixada. No fundo desse valinho
se formava uma lagoa ampla e tranquila, onde havia de ter tilápias e outros peixes. Vez
ou outra se via um martim-pescador desafiar a presença dos gansos e dos marrecos, num
zunido feito flecha, e despontar pra fora dágua com uma piabinha no bico.
Os marrecos costumavam fazer seus ninhos nas beiradas dessa lagoa, pra depois de
trinta dias os filhotes pintadinhos saírem numa piadeira pelas margens, bicando os
alevinos e estalando a água sob seus bicos. Difícil mesmo era os gansos colocarem
ovos. Até reza fizeram, diziam, pra que os bichos tirassem alguma ninhada. Mas nada.
A criançada costumava brincar no pátio quando não tinha café sendo abanado, corriam
pelos campos das cercanias ou trepavam nas tábuas altas da mangueira. Ora brincavam
nas beiras da grande lagoa, mas logo alguém surgia abanando os braços. Sai daí, menino
besta! Vai cair na água! O ganso pega! E a criançada corria dispersa pelo gramadão.
Visitei a fazenda num sábado monótono, sem brisa ou sinal de chuva, só um cinzeiro
bravo de junho, que se vestir só camisa passa frio, e se botar casaca transpira de calor.
Vim com meu pai e um amigo dele, pra comprar carneiros. Os peões disseram que
vinha onça dos matões que rodeavam a casa, e os carneiros estavam acabando. Com o
tempo, o fazendeiro mandou prender os animais num paiol velho perto do pasto, mas
nem sempre se dispunham a tocar os bichos e ficar prendendo carneiro por carneio antes
de anoitecer. Ouvi os meeiros resmungando. Tamo aqui pra lavrar o café, não prender
carneiro. O fazendeiro não ouvia os murmúrios, mas sabia bem a opinião estampada nos
olhos estreitos dos meeiros. Decidiu por vez vender todas as cabeças.
Eu, meu pai e seu amigo chegamos de manhãzinha, apartamos os bichos no curral e
fomos embarcando um a um. Logo um berreiro desatou, e eu não queria ficar ali pra
ouvir. Avisei o pai e fui dar uma volta pra conhecer os arredores. A criançada brincava
no pátio: a filha do fazendeiro, num vestidinho azul, e mais três crianças, filhas dos
meeiros. Nunca fui de enturmar e a timidez me empurrou pros lados. Fui ver o rodão
dágua, o chiqueiro, o pomar de goiabeiras, e depois voltei pelo pasto. Vi que as crianças
estavam perto da grande lagoa. Se abaixavam, levantavam segurando alguma coisa, e
depois torciam o corpo impulsionando os punhos, atirando pedras contra os bichos.
Fiquei de longe, quieto, só olhando. Um dos moleques saiu do mato saltitando na
direção da filha do fazendeiro.
— Olha! Olha! – disse ele, girando os braços e meneando a cabeça na direção dum
bambuzal. – Olha o que eu achei ali!
As crianças seguiram o rapaz e adentraram o bambuzal.
— Meu Deus! – a voz da menininha.
Os gansos tinham fugido por causa das pedras e agora nadavam calmamente na
lagoa, não se deram conta da invasão desmedida pela multidão de pezinhos. Não dava
de ouvir direito o que as crianças conversavam, embrenhadas no bambu. Um menino
abaixou e catou um objeto branco do chão.
— Quebra ele! – a menininha disse.
O menino olhou pra ela e não disse nada. Olhou pra baixo de novo. Ergueu o
bracinho e depois abaixou com força, tacando o que tinha em mãos.
— Pega um tijolo, vai!
Os meninos não obedeceram.
— É errado, já quebramos um, já tá bom. Pai vai brigar e vai bater.
Agora todos olhavam uns pros outros, espantando os mosquitos com as mãos. A
menina bufou a balançou a cabeça, saindo do bambuzal em passos apressados. Correu
até a beira dágua e pegou uma pedra grande de seixo que mal conseguia carregar.
— Vocês são medrosos! – ela empinou o nariz.
Então escolheu bem o lugar e largou a pedra.
— Vai, sua vez.
Outro estalo de ovos.
— Vai, menino.
A pedra caiu de novo, som abafado.
— De novo, de novo!
A menininha repetiu o gesto.
Agora os gansos vinham correndo da lagoa com um guincho estridente, as asas
abertas e o pescoço curvado para baixo. As crianças fugiram depressa, rindo e soltando
gritinhos, e se espalharam. O casal de aves adentrou a moita de bambu cacarejando
baixinho, bicando a pedra que agora ocupava o ninho morto – todos os ovos esmagados.
Corri pro curral e descobri que o pai me chamava, tendo todos os carneiros
devidamente embarcados. Subi e partimos, um rastro de poeira pra trás. Os gansos têm
companheiros únicos pela vida toda. Alguém me contou que o ganso da fazenda sumiu
numa revoada silenciosa e nunca mais voltou. A fêmea permaneceu no ninho com a
cabeça baixa, sem comer nem beber nem dormir, e morreu sozinha tempo depois.
Eu nunca disse nada sobre isso a ninguém. Não sei se algum dia encontraram o
ninho. Mas escrevo em razão dos sucedidos na fazenda recentemente. Talvez os filhos
das capatazes não se recordem, mas a menina do vestidinho azul deve lembrar daquela
manhã de junho. Seu pai, o fazendeiro, morreu há uns tantos anos. A menina herdou a
fazenda sozinha. Logo casou-se com um rapaz da capital, versado nos livros. Rotação
de culturas, ele dizia por trás dos óculos redondos. Sujeitinho infeliz. Nada nasceu
naquelas terras, nem quiçaça de joio, por mais calcário e adubo que jogassem, por mais
que gastassem enxadas! O gado crescia magro, ossos quase varando a pele, isso quando
não serviam às onças. Não havia espingarda suficiente pra dar cabo dos bichos do mato
naquela fazenda. A herdeira e o marido tiveram um casal de gêmeos depois duns três
anos de casados, já afundados em dívidas e beirando miséria. Nasceram os dois
loirinhos, grandes, pesando bem, bracinhos gordos e cabelo encaracolado. Uma carícia
naquela gente que já passava fome. Foi numa noite sem lua, contou o capataz. Na
manhã seguinte a vizinhança acordou com os berros estridentes da mulher. O berço era
agora um ninho morto  –  uma pedra grande de seixo, e embaixo dela os nenês macetados
feito carne de pilão. Que gente faria isso?, o homem se perguntava soluçando de chorar.
Gente nenhuma, disse a mulher. Levantou a pedra e viu que os olhos dos bebês tinham
sido vazados, e os rostinhos retalhados numa vermelhidão fruto de muitas bicadas.
Fogo-apagou

A tropa parou nas bordas dum ribeirão cristalino, encimado por ribanceiras de pedra
pelas quais escorriam pequenas cachoeiras. Lá adiante se alargava um mato vasto de
capituva, donde brotavam uns tantos pés de jenipapo e macaúba. Um peão velho pegou
a rédea do seu animal e das outras duas éguas que vinham ao lado, conforme seus
montadores desceram e foram lavar a cara suada, e guiou os animais. Os cavalos
sofregaram, batendo as patas na grama, e afundaram os cascos na areia molhada.
Abaixaram a cabeça e fungaram sobre a água antes de banhar os focinhos, e aí eriçaram
as orelhas. O pio duma fogo-apagou veio alto do mato.
O velho franziu as sobrancelhas grossas e acinzentadas, enxaguou o rosto vincado
feito couro e olhou acima. Uma das éguas fungou e tremeu a pele das ancas balançando
o rabo, como quando quer espantar os mosquitos. Havia um tremor naquele ar, que
vinha no sopro solitário daquele pássaro. A fogo-apagou piou de novo.
— Tem gente ali – disse um peão se aproximando.
O velho levantou e estreitou os olhos meio cegos, divisando a pedreirinha de
cachoeiras, para conseguir enxergar dois meninos que brincavam na água. Tinham a
pele morena e não vestiam roupa alguma. Um deles bateu com os pés na correnteza e
fez erguer uma nuvem de gotículas que brilharam sob o sol, enquanto o outro levou as
duas mãos à boca e estufou o peitoral para assoprar. Abrindo e fechando os dedos ele
soou, e o canto da fogo-apagou tornou a eriçar os pelos dos cavalos.
— E que diabo de índio astuto!
Arrancou o chapéu e mergulhou os cabelos na água. Os garotos não se
incomodavam com a presença dos três homens do outro lado do ribeirão.
— Não tem mãe, não? – o velho gritou, os braços erguidos acenando.
Sentou numa pedra, procurou um pedaço de fumo na casaca e pôs-se a enrolar um
cigarro. Os cavalos pastavam mansamente.
— Me dá o fósforo. Vai lá falar com os meninos, traz eles aqui.
Além das nuvens de fumaça do palheiro o homem foi e voltou, afundando metade
das pernas na água, e os meninos não se assustaram nem correram. Vieram como ele e
se juntaram aos homens na prainha.
— Faz o que cê tava fazendo com a boca.
O menino ficou quieto. O velho levou as duas mãos ao rosto e imitou o gesto do
indiozinho, sem entretanto emitir som. O menino arregalou os olhos e saltitou na areia,
ergueu as mãos e fez o pio da fogo-apagou. As montarias relincharam.
— Num matagal sem ver de onde vem, diriam que é a pomba cantando.
O velho riu, torcendo o bigode:
— Pode-se dizer que foi esse bugre que as ensinou como é que se canta.
E feito gente que acha filhote de bicho no mato e leva pra criar em casa, sem postas
as diferenças entre índio e animal àqueles caboclos de fel no peito, botaram os
indiozinhos na garupa e subiram de novo a ribanceira, tomando o estradão de terra roxa.
Os meninos permaneceram em silêncio no lombo dos cavalos. Aquele que cantava
feito pássaro ficou cabisbaixo, revolvendo os dedinhos uns nos outros, na garupa do
cavalo do peão velho. O irmão foi na garupa duma das éguas, mastigando um talo de
capim que havia arrancado ainda nas margens do ribeiro. O canto das saíras foi dando
lugar ao pio notívago dos curiangos, e as sombras das árvores foram aumentando sobre
a estrada, transformando o rosto dos peões em carrancas penumbrosas. Faz como o
bicho, às vezes o velho dizia, e o índio obedecia: fogo-apagou. E os peões riam. Fogo-
apagou. E o irmãozinho permanecia quieto, mascando o talo de capim.
Em certos trechos da andança, as árvores se debruçavam sobre o caminho. Nesses
túneis de vergéis já era noite, inda os últimos raios do poente manchassem as chapadas
lá na distância. Passando num desses matagais que quase engoliam a estrada, o
indiozinho ergueu as duas mãos agarrou um galho que vinha reto para a estrada, feito
um braço magro da árvore adjacente, e puxou para si. O menino fez força e quebrou a
madeira verde, tomando em mãos aquele último pedaço da sua terra. Seu irmão
continuava mascando o capim, calado. O velho tropeiro praguejou alguma coisa e
esporeou o dorso do cavalo. Não reprimiu o índio. Canta, bugre: fogo-apagou.
Depois do bosque, a estrada irrompeu num campo largo, levemente ondulado por
colinas de gramíneas. A lua cheia banhava o caminho e fazia brilhar o cabelo preto dos
índios. Aquele que imitava a pomba ora ou outra mordia a ponta do galho que havia
arrancado, primeiro removendo tiras de casca, depois puxando nacos de madeira verde,
dando forma à ponta da estaca.
— Não vamos parar pra dormir, não? – grunhiu um dos peões na escuridão.
O velho cuspiu um chumaço de fumo e respondeu algo inaudível. Depois, seu grito
ecoou pela campina. O indiozinho não hesitou. Golpeou de novo e de novo as costas do
velho, com todas as forças que tinha nos braços de criança, destruindo por completo a
ponta do galho afiado feito lança. O cavalo relinchou e empinou, obrigando o velho
puxar as rédeas e xingar. Os outros dois peões olharam assustados, vendo no meio dum
monte de sombras a estaca subir e descer contra o peão.
O braço do velho veio num arco de frente para trás, e o cotovelo rijo foi buscar o
rostinho do índio na escuridão. O menino caiu do cavalo. Seu irmão esbugalhou os
olhos, ainda bem quieto, e largou o capim que mascava. O velho desmontou
resmungando – a camisa branca manchada de sangue. Os outros peões murmuraram
alguma coisa. Outro grito ecoou pelas campinas, um grito de criança, choroso e
mirrado. O peão chutou de novo. Uma nuvem de poeira ergueu-se e cobriu a cena toda,
como se para proteger os bichos noturnos das visões que decorriam sobre o areião.
— Bugre maldito!
O velho cuspiu emendando um chute no queixo da criança.
— Bicho do mato!
Um peão fez o sinal da cruz quando ouviu o estalo de osso quebrando.
— E você que aprenda – a poeira de terra havia grudado no rosto suado do velho,
que ergueu os olhos vermelhos e fitou com firmeza o outro índio na garupa da égua –,
que se tentar astúcias de menino sabido, vai acabar igual ao seu irmão!
Montou no cavalo. Seguiram viagem noite adentro, indo acampar longe do corpo do
menino, que agora servia um banquete ensanguentado aos formigões da noite.
Pelo que sei, esse caboclo velho foi morrer uns anos depois do acontecido, fervendo
de febre numa casinha miserável de sapê. Quanto aos outros peões, sequer sei o nome,
muito menos seus destinos. Homens do sertão grande, que vêm e que vão, como tantos
outros. Meu vô tinha a mania de mascar capim. Coisa de bicho do mato, mãezinha dizia
aos risos. Não dá de culpá-la, não. Não eram todos que conheciam essa história, tenho
dito, e conto ela assim, nessas noites mansas, feito as noites que meu vô gostava de
sentar no terreirão enluarado e reavivar suas memórias.
Hoje mais velho eu entendo o marejo em seus olhos ao falar daquelas cachoeiras.
Algumas vezes fui ao ribeirão cristalino em passeios a cavalo. Parece que a pedreira
cresceu e a água mirrou, e no ribeiro as taboas tomaram conta da prainha. O matagal
que havia do outro lado deu lugar à pastagem. Um silêncio pesado abraçava o lugar,
lembro bem. Desci o barranco e fui molhar os pés. Quando voltei, subindo a ribanceira,
o cavalo eriçou as orelhas. Um pio solitário ecoou no banhado: fogo-apagou. Virei o
rosto e olhei pra a cachoeira. Procurei no matagal. Nem bicho nem gente, só o pio
retumbante: fogo-apagou. Nunca soube de onde veio esse canto, e não me dei por
satisfeito pensar que faíscas duma memória atiçavam ilusões. Ouvi de verdade, tenho
jurado. Mas vou morrer sem saber se o pio era a pomba do mato em seus modos alheios
ao homem, ou se eram astúcias de menino sabido – o sopro triste dum ente dessa terra.

Rancho Velho

While the prospect of eternal life in eternal death seduces me more and more.
— Thomas Ligotti

Parte dessas bandas foram sítio dos meus avós há muito tempo. Lembro do tio
falando dos arados que trouxeram nas carroças pra arar a terra depois de abrir a mata.
Nos fundões do sítio havia um riacho bom de peixe. Meu vô construiu um chalezinho
na beira, onde morou a vida toda com a vó, onde os filhos nasceram, cresceram e foram
embora pra sempre. Hoje são terras engolidas pelo matagal. Por causa do riozinho,
deixaram o matagal preservado, num canto da fazenda. As planícies adjacentes viraram
campo de soja. Aqui e ali existe a casinha de algum cuidador. Pela boca de um deles,
fiquei sabendo que o rancho velho ainda existia, mas ninguém mais se aproximava.
Fui decidida a passar uma noite por lá.
O chalé era uma construção baixa, de telhado pretejado e tábuas apodrecidas na
beirada inferior, sempre lambidas pela chuva e pela relva densa. O rio corria poucos
metros ao lado, e descobri a existência duma pequena ponte branca que ligava as
margens. A pintura da ponte estava descascada, a madeira toda apodrecida. Senti
vontade de atravessá-la, pra explorar o matagal da outra margem, mas ponderei. Desde
os tempos do avô diziam que era um rio fundo e traiçoeiro.
A porta estava trancada com ripas pregadas, e tive de arrancá-las uma por uma antes
de entrar. Dentro do chalé, um fedor de mofo. Abri as janelas, e junto da luz veio uma
brisa úmida. Ainda havia alguns móveis. Uma cama de solteiro larga o suficiente para
acomodar um casal abraçado, um grande guarda-roupas, vazio e bem conservado, e uma
poltrona ao lado da janela que dava para o rio. Descarreguei meus pertences sobre a
cama, separei uma vara e um anzol, vesti um chapéu e desci para o rio.
Sentei num barranquinho entre as taboas e atirei o anzol com isca. Não deu nem
tempo de ver movimentos nas águas, ouvi uma voz áspera que falava comigo.
— Não pode pescar aqui.
Virei pra ver quem falava. Era uma mulher de cabelo muito comprido, cinzento,
dum rosto esbranquiçado e olhos fundos, aquosos. Usava um vestido comprido. Talvez
fosse uma moça muito bonita se não estivesse num estado tão decrépito de imundície.
— Não pode pescar aqui.
Algo me apertou o coração, que me fez recolher a vara e o anzol. A mulher
permaneceu ali, me encarando, os pés descalços afundados na grama.
— Você é filha de algum cuidador por essas bandas? – perguntei.
Ela não respondeu. Abriu um sorriso largo, mostrando os dentes podres. Peguei
minhas coisas e decidi pescar num outro ponto do rio, longe da ponte e daquela mulher.
Já era quase noite quando voltei.
Tinha chovido à tardinha e agora o rio, o chalé e a ponte estavam envoltos por uma
névoa fria. As aves noturnas piavam em volta. Entrei e comecei limpar os peixes, duas
piaparas graúdas. Enquanto os peixes salgavam no limão, decidi debruçar-me sobre o
parapeito da janelinha que dava para o rio e fumar um cigarro. Lembro que o grito que
eu dei foi de fazer revoar as aves empoleirados nos galhos próximos. Meu coração
galopava no peito. Vi aquela mesma mulher sobre a ponte branca, que cortava o rio,
envolta pelo nevoeiro. Meu grito, entretanto, não chamou sua atenção.
Senti que devia fugir, correr dali. As paredes de madeira me encaravam com olhares
macabros. Era um grande vazio, como se uma parte faltasse. Mas sabia que esses
sentimentos não eram meus, não por completo. Vou embora.
Às pressas, comecei juntar tudo pra ir embora. E foi revirando um criado-mudo ao
lado da cama, enquanto juntava meus documentos, que abri a última gaveta do móvel.
Dentro havia apenas uma fotografia coberta de poeira: um casal de jovens à beira de um
rio, vestiam roupas antigas. Ambos sorriam, abraçados, e atrás deles havia belo chalé.
Veio um choro estridente lá de fora.
Corri pra janela e ouvi novamente. A mulher sobre a ponte encarava a correnteza.
Observei a foto novamente, aquele rosto sorridente congelado no passado. Naquele
instante senti vontade de desatar num berreiro, num choro convulsivo, gritar até perder a
voz. Mas som nenhum saiu da minha boca. Caí sobre a cama, ofegante, uma dor
lacerante invadindo meus pulmões, como se enchessem dágua, e consegui enxergar,
como se mergulhasse, um esqueleto coberto de lodo. Libertei-me com um suspiro
desesperado e voltei para a janela. De relance, na escuridão enevoada, vi o vulto dum
vestido despencar da ponte em direção às águas furiosas.
Meses depois eu decidi perguntar ao meu pai: como o vovô morreu?
— Ele morreu afogado, minha filha. Lá no sítio.
— E a vovó, pai?
Então ele chorava sem parar. Eu nunca tive uma resposta.

Mortalha de Moscas

Mesmo há muito passado o tempo dos coronéis, ainda havia uns e outros homens
que se achavam donos de tamanho poder, em veredas mais interioranas. Poder esse
traduzido em olhos cinzentos duma crueldade que fazia transbordar veneno do próprio
sangue. Existia um sujeito desse feitio numa fazenda lá pelas beiras do Ivaí, vestido
sempre com roupas negras e muito limpas, chapéu campeiro, botas alongadas e, mais
por mania que necessidade, uma bengala. Exigia que o chamassem de coronel.
Comportava muitas cabeças de gado na grande propriedade, e, pra cuidar do rebanho,
algumas casinhas pontilhavam os campos. Os serviçais trocavam a força de seus braços
morenos por um teto sob o qual viver, e assim vivam às ordens do tal coronel.
Ao longo das gerações a pastagem aumentou, o capim melhorou, e os tabapuãs
foram enchendo as terras. O coronel mandou erguer cercas de piquetes que cortavam a
fazenda em pequenos pastos, pra rotacionar o gado. Um afluente caudaloso do riozão,
curvando próximo à sede da fazenda, atravessava as terras. Há muito tempo, o avô do
coronel lá ergueu um paiol, e, na sombra duma quedinha dágua, construiu um grande
monjolo pra descascar e moer os grãos. Por muito tempo se plantou milho e centeio
num filete de terra fértil, que hoje também virou pasto. O pai do coronel mandou erguer
um moinho dágua, de rodão, pra processar os cereais. Assim, o monjolo do avô ficou
sem uso, engolido pelo matagal, mas ainda funcionando. Constante barulho, ainda que
abafado, podia incomodar quem não fosse acostumado; mas era bastante útil para
afugentar as lontras e as pacas que vinham do rio pra comer no paiol.
Numa manhãzinha gelada os peões do coronel foram aparelhar os cavalos. Era dia
de rotacionar o gado pra um novo piquete, antes que a geada queimasse os brotos do
pasto já muito baixo. Foram dois capatazes para o serviço, não muito amigos. Havia
certa pendenga por conta: a filha do mais velho e as intenções do rapaz. A preocupação
do coronel ia só até onde os conflitos ameaçassem seus negócios, de modo que advertia
os serviçais constantemente sobre as picuinhas, e os homens abaixavam a cabeça e
montavam nos cavalos, sem encarar uns aos outros nos olhos, e faziam seu trabalho.
Foram assim os dois peões pro campo, muito quietos, e tocaram os animais.
Cavalo bom não espanta a boiada, e a mancha branca de tabapuãs foi escorrendo
pelo gramado num bom passo, guiada pelas montarias e pelos assovios dos capatazes.
Findado o serviço, tendo apenas as porteiras para fechar lá e cá, os peões combinaram
de cada um prum canto, fechar suas porteiras, e serviço acabado. Depois disso rumariam
pra casa, que já anoitecia e esfriava muito. Coronel ficaria satisfeito.

Já bem tarde da noite, a cachorrada iniciou um estardalhaço na sede da fazenda. O


coronel levantou, vestiu as botas e, espingarda na mão, foi ver o que sucedia lá fora. No
pátio iluminado a figura dum homem brotou da noite: o velho capataz.
— Noite, coronel.
O homem disse olhando pro chão.
— Que diabo te arrancou da cama essas horas? — O coronel resmungou, abaixando
o cano da arma ao reconhecer seu capataz. — Morreu gente, sô?
— Acordei ca barulheira do rebanho, coronel. Correria no pasto, e uns assovios.
— Ladrão?
— E muito bem facilitado, coronel.
— Como diabo facilitado, sô?
— No serviço que fizemo hoje de tardinha. O rapaz que mora lá na beira do rio, que
se engraça com a minha filha. Combinamo de fecha as portera, depois da boiada tocada.
Mas ele num fechô, não. Largou aberto tudinho, e os ladrão se apressaro. Não tinha
como sabe das portera, num fosse tudo combinado, coronel. Facilitado, foi.
O coronel balançou a cabeça e mandou o capataz rumar embora. Os cachorros se
aquietaram e foram deitar na área. Dali mesmo, sem largar a espingarda, o coronel
pegou o caminho tortuoso que ia pra casinha do peão na beira do rio. Seguiu a trilha
iluminada pela lua, seus passos acompanhando as batidas do velho monjolo no matagal.
Arrebentou a porta do casebre com um chute, arrancando o rapaz da cama aos gritos.
O peão levantou de pernas bambas, procurando o invasor na escuridão, e viu de relance
o rosto vincado, os olhos brilhantes do coronel. Não houve tiros.
O coronel desferiu uma coronhada no rosto do peão. Pingos vermelhos. Uns tantos
chutes e outros golpes com a espingarda caíram sobre ele. O coronel buscou um rolo de
corda na parede, donde pendiam os arreios. Amarrou as mãos e os pés do peão, que
recebeu uma joelhada no rosto quando tentou murmurar alguma coisa.
— Quieto, bicho, ou te meto a faca.
Foi arrastado para fora da própria casa, a terra seca grudando nas feridas, o suor e o
sangue empapando nas roupas. O coronel nada dizia. Arrastou o rapaz amarrado,
passando pelo moinho dágua, até chegar ao velho monjolo oculto pela folhagem. Lá
puxou o homem pelos cabelos e colocou sua cabeça sobre o toco do pilão. Com o resto
da corda, amarrou o peão ao pau, e, enquanto dava nós apertados, o malho subiu e
desceu algumas vezes. Brotaram novas feridas. Dadas todas as voltas possíveis na
corda, o coronel se ergueu e chutou novamente o rapaz, que tentou falar alguma coisa
quando o pilão do monjolo desceu de novo e cortou sua testa. Coronel permaneceu lá
por um tempo, como se esperando que viesse algo além de sangue e dentes quebrados
dos lábios inchados daquele homem. Mas nada ouviu, e logo foi embora noite adentro.
O peão viu o brilho de relâmpagos que faiscavam na distância. Desistiu, depois de
muito tempo, de tentar se livrar das cordas ou do pilão. A chuva caiu brava, lavando o
sangue do seu rosto, mas não foi de alívio nenhum: a água pesada fazia com que a
gamela do monjolo enchesse mais depressa, e o pilão descia mais vezes em menos
tempo, rasgando seu rosto, trincando o crânio. Demorou pra morrer. Agora enxergava
tudo vermelho, as folhagens cor de sangue, o rio caudaloso correndo rubro, o pilão
descendo feito um pau de cabreúva. Entre os golpes do monjolo, respeitando os
intervalos que a água implicava, o homem cuspia sussurros ensanguentados pro
matagal. Falava com os bichos da noite – não com as lontras e as pacas, pra sempre
afugentadas, mas com as coisas sem nome que nunca deixavam de habitar a escuridão.
Tempestade passou, dia clareou, e o monjolo trabalhava. O peão jazia meio inerte
meio silencioso, deformado, às vezes denunciando algum rastro de vida com espasmos
depois duma pancada do monjolo. Só lá pela tarde, o sol já bem alto secando o sangue,
que foi findar a agonia do rapaz. Uma nuvem de moscas negras cobria o morto.
Ele foi enterrado feito bicho, sem velório, nem caixão e nem reza, por ordens do
coronel. No mesmo dia os cavalos foram selados, peões armados, e saíram seguindo os
rastros do gado roubado. O coronel mandou alguns dos seus serviçais buscaram uns
tantos enxadões e serrar tábuas. Mandou arrancar a grande porteira da fazenda, e jurou
que mais nenhuma cabeça de gado seria tocada por ladrões daquela terra afora. Pra tal
propósito viria um mata-burro: mandou cavar uma grande vala no lugar da porteira do
carreador, e mandou dispor as tábuas de atravessado, com frestas entre elas.
Quando noite, o coronel foi junto dos cachorros para os estábulos do outro lado da
fazenda, pra ter notícias dos homens que chegavam. Disseram que não encontraram
nada. A tempestade transformou o areião da estrada num brejeiro, e os rastros se
perdiam na lama, nos matagais, nas encruzilhadas. Nem sinal da boiada, nem nada.
O coronel balançava a cabeça, andava pra lá e pra cá, resmungando, mas não tinha
mais onde descarregar sua ira. Dispensou os homens e rumou pra sede da fazenda.
Percorreu a estradinha que contornava o curral, o vale estreito, a ponte de madeira que
cortava um riacho, e adentrou o carreador cercado de paus-ferro.
Atravessando o arvoredo, os cachorros se eriçaram, latindo sem parar. Os animais
deram meia-volta, farejando. O homem não conseguiu ver nada, ao contrário dos cães,
que agora rosnavam com as cabeças erguidas. Os rosnados deram lugar a um ganido
amedrontado; os cães abaixaram as orelhas, esconderam as caudas por entre as pernas, e
correram dispersos uivando pelos campos. Coronel largou sua bengala e começou a
fugir. Irrompeu numa descida correndo o mais veloz que podia. Passadas largas, vento
cortando o rosto, vultos na noite, cachorros uivando, escuridão, passadas largas,
pulmões doendo, cheiro de mijo e podridão, barulho de moscas, cachorros gritando,
noite, noite, noite. Avistou as luzes da casa adiante, não muito longe. Aumentou a
velocidade: não tinha porteira. Mas tinha o mata-burro. Na escuridão, o coronel não se
deu conta nem lembrou do serviço dos capatazes, das tábuas feito um estrado sobre a
vala funda. Sua perna esquerda entrou direto por uma das frestas do mata-burro. O
impulso da correria arremessou o coronel pra frente feito um cavalo derrubado: o joelho
dobrou ao contrário. Estalo surdo de osso. Um grito.
Olhou pra trás, por não aguentar encarar a brancura do osso despontado pra fora da
coxa, quebrado numa ponta que rasgou a pele e a calça. Viu na escuridão o que os cães
tinham visto, mas não podia fugir uivando pelos campos. Era uma nuvem de moscas
negras pairando sobre a estrada; a lua refletia pálida nas asas e na miríade de pequenos
olhos. No centro do enxame, sustentado por farrapos e teias de aranha, repousava um
cadáver torto e sujo de terra, seus olhos vermelhos de sangue pendendo pra fora das
órbitas. Outros bichos rastejavam sobre ele. O cadáver revelou uma das mãos, antes
oculta pelas moscas: trazia nela uma cabeça degolada. O coronel viu bem: o rosto do
velho capataz. A aparição mostrou a outra mão, vazia, e a estendeu na direção do
homem preso entre as tábuas. A mandíbula do cadáver arqueou num sorriso cheio de
larvas, e os tendões repuxaram rente aos músculos, guiando as moscas para frente.
Unhas longas e pouco afiadas. O coronel gritou até se afogar no próprio sangue. As
moscas envolveram-no num abraço quente e rançoso, e o cadáver deformado degolou o
coronel pra ter sua cabeça na mão vazia. Depois foi embora noite adentro.

Houve velório, dois caixões. A filha do velho capaz pediu pro padre fazer reza sobre
um dos evangelhos. Era uma moça muito pálida, de olheiras fundas, olhos arregalados e
cabeleira emaranhada. Não piscava. O pescoço rijo segurava um grito eterno.
Descobriram que ela só conseguia balbuciar o número do capítulo e dos versículos, e
nada mais. Três dias depois, acharam ela enforcada numa árvore.
Naquele dia, o padre fez um sermão breve e comedido, e leu bem alto as palavras:
portanto, não os temais; porque nada há encoberto que não haja de revelar-se, nem
oculto que não haja de saber-se. O que vos digo em trevas dizei-o em luz; e o que
escutais ao ouvido pregai-o sobre os telhados. Amém. Não demorou pra que toda aquela
gente abandonasse a fazenda. Por muitas vezes os homens relembraram e ponderaram
sobre aqueles sucedidos, sobre as coisas sem nome que nunca deixavam de habitar a
escuridão. Nessas trevas, zumbiam quietas, e coroavam seu rei apodrecido.

As Bonecas

Às quartas-feiras, Gabriel sentia-se embaraçado. Nem sempre ouvia o que gostaria


de ouvir, e frequentemente era contrariado, mesmo tendo alguma autoridade no colégio.
Enquanto as meninas jogavam vôlei, o professor Gabriel conferia os nomes e os
números anotados no seu caderno. Algumas vezes passava os olhos por um dado
registrado e franzia a testa; olhava em volta, procurando a garota em questão, fitando as
pernas, as cinturas e os ombros de cada uma delas, e, ao encontrar aquela que
procurava, semicerrava os olhos e corrigia suas anotações meticulosamente.
Natália aproximou-se. Devia ter uns onze, doze anos, o cabelo loiro e leve estava
preso por uma tiara amarela para trás. Seus cílios grandes coroavam um par de olhos
verdes. A menina balançou a camiseta segurando pela gola, espantando o calor.
— Professor, ainda não tirei minhas medidas.
Gabriel olhou de lado. Os dentes dela eram tão pequenos.
— Venha aqui.
A garotinha sorriu e aproximou-se.
— Abra o braço. Isso.
— De que cor vão ser?
O professor abriu um sorriso sem som.
— Da cor que vocês quiserem, já ia me esquecendo. Qual cor você quer, Natália?
— Amarelo!
Ele olhou para o tênis que a garota usava. Os cadarços eram amarelos.
— Certo... — Gabriel escreveu a cor e pegou a fita. — Trinta e seis. Fique parada.
Natália riu.
— Prontinho — ele colocou o caderno de lado e ergueu as mãos. – Pode ir jogar.
A menina correu para a quadra e juntou-se ao time.
O professor não notou que um garoto se aproximava. Era moreno, de cabelo liso e
espetado. Seus olhos eram apertados e os lábios curvados feito um papagaio.
— Professor — disse em tom inquiridor. — Não vamos jogar mais futebol?
Gabriel não olhou para o menino.
— No próximo semestre.
— Você disse a mesma coisa no semestre passado.
Gabriel não respondeu. Estava compenetrado olhando para a quadra e fazendo
anotações de cima abaixo na página com nomes e medidas. Agora adicionava detalhes.
— Não vamos tirar medidas para os nossos uniformes? — o menino insistiu.
O sino tocou e a criançada correu para a mureta onde suas mochilas estavam. O
professor pegou sua jaqueta azul, guardou o lápis no bolso e o caderno sob o braço. Sem
responder ou olhar pros rapazes, Gabriel levantou e andou em direção ao portão.

Colocou as doze xícaras sobre a bandeja de alumínio. A água do chá já fervia na


chaleira, e uma pequena nuvem de vapor grudava no ladrilho pintado da cozinha. Abriu
o armário e procurou nas latas e pacotes. Tinha esquecido de comprar biscoitos de novo.
Pegou a bandeja e caminhou com cuidado até o quarto das meninas. Todas sentavam-se
num sofá em L e sorriram ao ver Gabriel. O chá da tarde era a melhor parte do dia.
— Como vocês estão, minhas queridas?
As meninas responderam que estavam muito bem e não viam a hora de tomar chá.
— Já vou trazer — Gabriel sorriu. — A água já está fervendo.
Voltou à cozinha e terminou de preparar o chá. Colocou açúcar e provou. Voltou ao
quarto das meninas e serviu as doze xícaras com calma. O vapor subia ondulante.
— Como está de açúcar?
As meninas responderam que estava perfeito.
— Fico muito feliz.
Gabriel encheu a última xícara e pegou para si, assoprando antes de beber.
— Vocês já conheceram a nova aluna? — ele olhou todas elas no rosto. — Sua nova
amiga. Ela acabou de chegar, mas ainda não se juntou à nós.
As meninas perguntaram se era a garotinha chamada Natália.
— Ela mesmo, de olhos verdes e dentes pequenos.
As meninas responderam que ela era linda. Tinham jogado muito vôlei com ela, e
era uma ótima jogadora. Disseram que estavam ansiosas para tomar chá com a amiga.
— Eu também! — Gabriel terminou de beber e pôs mais chá. — Querem mais?
As meninas balançaram suas cabeças negativamente.
— Hoje à noite ela vai se juntar à vocês.
Todas as meninas sorriram e disseram que estavam ansiosas.
Depois do chá, Gabriel fechou a porta, pois as meninas gostavam de ter seu tempo
para brincar e conversar sozinhas. Se davam muito bem. Na cômoda havia papel, giz de
cera, pequenas bonecas, livros de fábulas e alguns bichinhos de plástico. Gabriel pegou
seu caderno e sentou-se à máquina de costura para fazer Natália.

Por volta das onze da noite, Gabriel bateu à porta do quarto das meninas. Elas
responderam que podia entrar. O homem entrou em passos tranquilos, trazendo a
pequena Natália nos braços. Todas as garotas sorriram e se animaram, ansiosas para
conversar com a nova amiga e descobrir coisas novas sobre ela.
— Ela não é linda?
As meninas concordaram.
— Tratem ela muito bem!

Era madrugada quando Gabriel acordou assustado, banhado em suor. Correu para o
quarto das meninas e, quando acendeu a luz, viu que Natália estava caída no chão.
— Vocês brigaram com ela?
As meninas não disseram nada.
— Eu não disse para tratarem ela bem?
Gabriel pegou Natália no colo e sentou-se do outro lado do sofá. Começou fazer
carinho no seu cabelo fino e passar a mão sobre suas pequenas bochechas.
— Você é tão linda – ele disse sussurrando.
A menina respondeu que ele também era lindo.
— Elas maltrataram você?
Natália fez que sim com a cabeça. Ele a abraçou com força.
— Você está triste?
A menina disse que sim.
— Você pode dormir comigo hoje se quiser.
A menina respondeu que gostaria.
— Não está com medo de mim?
Natália jurou que não.

Na quarta-feira, as garotas jogavam vôlei.


— Hoje a quadra de cima está desocupada — Gabriel disse em voz alta para os
meninos. — Se quiserem, podem ir jogar futebol lá. As bolas estão na salinha do lado.
Os garotos correram para a quadra. As doze meninas revezavam os times e jogavam.
Gabriel marcava os pontos. Em certo momento, a bola veio quicando lentamente até ele,
que parou-a com seu pé. Natália correu para buscar.
— Está melhor, minha pequena?
A menina olhou para cima e franziu as sobrancelhas.
— O quê, professor?
— Não está triste?
— Não! — ela abriu um sorriso largo mostrando seus dentinhos. — Estou ótima!
Gabriel sorriu enrubescido. O sino soou, o professor levantou e foi para casa.

Durante a tarde, Gabriel foi ao centro da cidade pagar contas. Seus pés suavam
dentro das meias de poliéster. No calçadão, as pessoas eram manchas de rostos
enrubescidos, defeituosas, seus cabelos oleosos esvoaçando. Gabriel desviava o olhar.
Não eram perfeitas como suas meninas. Muitas dessas pessoas — velhas, crianças,
homens sujos — estavam rasgadas e apenas na escola isso poderia ser considerado
normal. Nas quartas-feiras. Um cachorro cruzou o caminho de Gabriel, um bicho
empelotado de doenças, que rosnou seco para ele. Evitou o animal tremendo e suando e
deu a volta na praça para pegar o caminho da lotérica. Depois, passou numa lojinha para
comprar brinquedos novos para suas meninas. Sempre que ia nesse lugar, pensava em
levar consigo algumas das garotas que lá estavam presas, mas elas deveriam ter um
cuidador tão zeloso quanto ele, e seria um sacrilégio privar alguém de tais cuidados.
Comprou um cogumelo de pelúcia e dois gatos cujas cabeças, presas por uma mola
oculta, balançavam ao toque. Quando voltava para casa, por volta das seis horas, já
atrasado para o chá, encontrou Natália numa praça ao lado do bosque. Nesse horário, os
velhos que jogavam cartas e ficavam conversando sob as árvores já tinham ido embora.
A menina estava sozinha tomando sorvete. Gabriel correu até ela.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou aterrado. Sua voz tremia.
Começou suar e lembrou do cachorro doente no calçadão.
— Eu não vivo só na escola, professor — ela riu, desconfortável.
Gabriel sentou-se no banco ao lado dela.
— Posso te dar uma carona para casa. Já vai anoitecer, vai esfriar.
— Não precisa, professor. Eu moro aqui pertinho.
Gabriel notou que ela estava estranha. Havia algum defeito, como em toda a gente
da cidade. Precisava cuidar dela com urgência. Os olhos estavam molhados, muito
brilhantes. Só podiam ter sido as outras meninas, que maltrataram Natália enquanto ele
estava fora. Por sua culpa, a Natália tinha fugido do quarto das meninas.
— Vamos — ele a pegou pelo bracinho com força.
A menina não conseguiu reagir. Ficou quieta, petrificada, e largou o sorvete.
Gabriel a puxou com pressa, e foram para casa enquanto anoitecia.

Deixou-a na sala. Não podia colocá-la no quarto das meninas antes de ter uma
conversa bem séria com elas. Foi até lá e aplicou-lhes um sermão. As meninas pediram
desculpas. Retornou à sala e viu que Natália estava agachada no canto do cômodo.
Gabriel foi até ela. O que fizeram com sua pobre menina? As meninas do quarto
pareciam tê-la machucado. Tinham rasgado sua boca, e ela não parava de gritar. Os
olhos estavam molhados, sujando todo o rosto com lágrimas. A pele estava fria.
Antes de devolvê-la ao quarto, teria de fazer os reparos necessários. Pobre menina,
toda mole e esfarrapada. Tremia como ele nunca havia visto uma de suas meninas
tremerem. Gabriel sentou-se à mesa de costura, pegou tecidos, botões novos e um rolo
de linha. Primeiro, costurou a boca rasgada da menina, que fez com que ela parasse de
gritar. Ela certamente estava doente, pois aquilo tudo não era normal para uma de suas
meninas, que estavam sempre tão felizes. Depois da boca, secou bem os olhos molhados
com uma toalha e limpou-os com álcool. A garota se debatia, e ele sussurrava palavras
de consolo, sobre o quanto ela estava doente e que logo estaria melhor. Já tinha
repreendido a atitude das outras meninas no quarto, e as maldades não se repetiriam.
Depois de limpar os olhos dela, Gabriel costurou dois botões novinhos em folha no
lugar. Como ela estava tremendo de frio, precisava de uma roupa melhor. Gabriel a
despiu de todos os trapos que cobriam seu corpo, pegou um casaquinho de lã e o
costurou cuidadosamente sobre a pele dela, agulha na carne, para esquentá-la.
Já era noite quando Gabriel terminou os reparos e levou Natália para o quarto. Fez o
chá para suas meninas e levou treze xícaras na bandeja. O vapor subia ondulante.
— Como está de açúcar?
As meninas responderam que estava perfeito.

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