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O desejo natural de Deus e o conhecimento por analogia em Bernard Lonergan

Numa conferência proferida em 1949 à Jesuit Philosophical Association e publicada


com o título The Natural Desire do See God, o filósofo canadiano Bernard Lonergan
considera que existe um desejo que é natural ao intelecto, que se manifesta em perguntas, o
qual não depende da vontade, não se ensina, nem necessita da graça1. Trata-se de um desejo
de compreender ou de conhecer as causas, usando a linguagem clássica, e cuja satisfação
pode acontecer de duas formas: de maneira própria ou de maneira analógica. A satisfação
própria é dada pela receção no intelecto de uma forma inteligível ou de uma espécie
proporcionada ao objeto que é compreendido2. A satisfação analógica dá-se pela receção no
intelecto de uma forma que tem alguma semelhança com o objeto a ser compreendido, mas
não plenamente. A este nível o que é compreendido deve ser integrado na metodologia
aplicada pela teologia natural (via affirmationis, via negationis e via eminentiae).
Como exemplo de satisfação analógica podemos referir o que o intelecto recebe no
âmbito dos mistérios da fé por via de analogias com a natureza. Trata-se de um
conhecimento impróprio que não satisfaz plenamente o desejo de compreender, pois as
respostas dão origem a perguntas ulteriores. Para Lonergan, só a satisfação própria nos
aquieta, mas esta só é possível no conhecimento das realidades materiais ou dos objetos
proporcionados ao intelecto. Por isso, o conhecimento analógico de Deus não satisfaz
plenamente. Mas Deus é infinito e no intelecto finito do homem não é possível uma forma
apropriada a este objeto. Só um ato de compreensão estritamente sobrenatural, comumente
chamado de visão beatífica, permitirá o conhecimento pleno de Deus3. Mas isso já pertence
ao plano da fé, pelo que só com a luz da razão natural não é possível compreender Deus de
modo próprio. Só em Deus existe identidade entre o ipsum intelligere e o ipsum esse, pelo
que no plano racional o máximo que podermos dizer é o paradoxo de um desejo natural de
compreender que se estende a Deus, mas cuja satisfação só pode ser dada no plano
sobrenatural da visão beatífica4.
No contexto de reconhecimento deste desejo natural de um fim sobrenatural,

1
Cf. Bernard Lonergan, Collection. Collected Works of Bernard Lonergan, vol 4, Toronto, University
Press, 1988, p. 81.
2
Cf. ibidem, p. 82.
3
Cf. ibidem, p. 83.
4
Cf. ibidem, p. 84.
2

Lonergan recusa a separação entre uma ordem necessária do mundo, exigida pelas leis da
natureza finita, e uma ordem contingente, proveniente do livre e sobrenatural dom de Deus,
que teria como consequência uma separação entre filosofia, como ciência, e a teologia,
como mero catálogo de verdades reveladas. Por isso, entende que a ordem do mundo não é
uma consequência das caraterísticas das naturezas finitas, mas deve-se à bondade e
sabedoria de Deus, constituindo-se como uma unidade inteligível em que as naturezas
inferiores estão subordinadas às mais elevadas por via de uma finalidade intrínseca5.
Por outro lado o conhecimento desta ordenação dos seres não é a visão de um objeto
fora de nós, mas é um processo dinâmico intencional, pelo que o desejo natural de ver a
Deus tem de ser compreendido fora das clássicas teses essencialistas e conceptualistas. Tem
de ser compreendido no âmbito de uma sabedoria que é um processo cumulativo de uma
longa série de atos de compreensão empíricos, inteligentes, racionais e deliberativos e
amorosos. Estes atos são suscitados no plano imanente por um desejo desinteressado e
irrestrito de conhecer, que é a origem não só de todas as perguntas que levam o sujeito ao
conhecimento do ser proporcionado material, como também das novas perguntas radicais
que o levam para além dos limites definidos e dos temas particulares até ao ser
transcendente. Abandonando as noções estáticas tradicionais das potências (intelecto,
memória e vontade) e assumindo a nova linguagem das operações conscientes e
intencionais (experimentar, entender, julgar e decidir), Bernard Lonergan vai definir o
desejo como dinamismo fundamental da consciência e energia motriz da auto-
transcendência cognitiva e moral do sujeito: «(…) os vários níveis de consciência não
passam de estágios sucessivos do desdobramento de uma única verdade, o eros do espírito
humano»6.
Para Bernard Lonergan, «Ser é, pois, a meta do desejo puro de conhecer»7, que não se
reduz ao processo lógico e intelectual, mas que exige a unidade integral da consciência
humana. O desejo de conhecer é entendido não como uma inteleção ou um pensamento,
mas como a orientação dinâmica e o impulso prévio que promove o processo cognitivo

5
Cf. ibidem, p. 85.
6
«(…) the many levels of consciousness are just sucessive stages in the unfolding of a single thrust,
the eros of the human spirit.» ( Bernard Lonergan, Method in Theology, Toronto, Lonergan Research Institute,
1994, p.13.)
7
«Being, then, is the objective of the pure desire to know.» ( Idem, Collected Works of Bernard
Lonergan - Insight: A Study of Human Understanding, Edited by Frederick E. Crowe and Robert M. Doran,
Toronto, University of Toronto Press, 1997, p. 372.)
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desde os sentidos e a imaginação até à compreensão e aos juízos do conhecimento


verdadeiro do ser proporcionado e do ser transcendente. Enquanto fonte imanente da
transcendência no ser humano, é um desejo desinteressado e irrestrito de conhecer, porque
a noção de ser estende-se para além do conhecido8. Há um paralelismo entre o dinamismo
da mente e o dinamismo do ser proporcionado, pelo que o universo objetivo não se
encontra em repouso, não é estático nem fixo no presente, mas está em processo e vai
fluindo. Assim como conhecimento atual é um momento no processo para um
conhecimento mais pleno, também a realidade atual é um momento no processo para uma
realidade mais plena9.
No entanto, ao desejo irrestrito de conhecer do ser humano corresponde uma
capacidade limitada de cumprimento desse desejo, porque só Deus é o ato irrestrito de
10
saber , que se compreende como invulnerável, incondicionado e não suscetível de
qualquer correção ou melhoramento, isto é, sem qualquer carência ou imperfeição 11. No ser
espiritual completamente perfeito que é Deus, o inteligível primeiro é idêntico não apenas a
um ato irrestrito de compreensão, mas também a um ato de afirmação perfeito da verdade
primeira e a um ato de amor perfeito12.
Assim, Deus não é objeto de conhecimento no sentido positivista e kantiano de
fenómeno, em analogia com a visão, mas é objeto no campo do dinamismo intencional das
várias configurações cognitivas da consciência (experiência, inteligência, juízo e
deliberação). Esta perspetiva opõe-se, por um lado, ao empirismo e ao materialismo, que
supõem erradamente a experiência como única via de acesso ao ser, limitando o
conhecimento a um olhar exterior, e por outro lado, opõe-se ao idealismo que reduz a
realidade conhecida à subjetividade. Há uma continuidade entre os campos de significação
intelectual, moral e religioso, que pertencem ao único acontecimento da auto-
transcendência. Assim, o desejo irrestrito de conhecer proporciona a ascensão das
atividades cognitivas até ao campo dos atos humanos deliberados e o sujeito que é
consciente de maneira empírica, inteligente e racional, transforma-se num sujeito

8
Ibidem, p. 377.
9
Cf. ibidem, p. 471.
10
Loc. cit..
11
Cf. ibidem, p. 681.
12
Cf. loc. cit.
4

consciente no plano moral e religioso.13


O desejo puro e irrestrito de conhecer, que se materializa na impossibilidade do ser
humano em deixar de perguntar até às questões últimas e radicais, revela a região do divino
ou do estritamente incondicionado, como um fundamento transcendente do Universo. No
plano da reflexão existencial os factos do bem e do mal, do nascimento e da morte, do
progresso e da decadência fazem surgir questões acerca do sentido último do Universo. Na
auto-transcendência ao nível religioso dá-se a experiência do amor de Deus que é infundido
nos nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5,5). Assim como em todo o questionar está
implícita a pergunta por Deus (consciência experimental, intelectual e racional), assim o
estar enamorado d'Ele é a realização básica de toda a nossa intencionalidade (consciência
responsável), a qual traz consigo uma felicidade profunda e uma paz que, não dando
resposta a todas as perguntas, dá sentido a todas as aporias existenciais como são os factos
do mal e da morte14.
A pergunta por Deus surge da intencionalidade consciente do sujeito, do impulso a
priori que leva do experimentar ao esforço de entender, deste ao esforço de julgar com
verdade e do juízo ao esforço de eleger retamente (dinamismo de auto-transcendência)15. A
vontade boa ou apropriada é uma espécie de caridade participativa do ato de amor divino:
associa-se ao desejo desapegado, desinteressado, irrestrito do intelecto ordenado à
compreensão completa que é o ato irrestrito de Deus pessoal, inteligente e livre 16. Esta
experiência do mistério divino, que se concretiza no amor santificante, é consciente não ao
nível empírico, reflexivo ou racional, mas sim ao nível da responsabilidade livre. O
máximo conhecimento de Deus acessível ao ser humano é o conhecimento da fé17.
Ao nível do discurso intencional, a noção de desejo natural corresponde ao
dinamismo de auto-transcendência. Este movimento ascensional de desejo de Deus
encontra o seu cumprimento no movimento descendente do amor divino pela ação do
Espírito Santo. Este amor, que pela graça de Deus está presente na intencionalidade do
sujeito, não se deve ao raciocínio e precede o conhecimento, pelo que fica salvaguardada a
gratuidade do dom de Deus. Excluindo o irracional do pecado, todo o Universo está

13
Ibidem, p. 622.
14
Cf. idem, Method in Theology, p. 104.
15
Cf. ibidem, p. 103.
16
Cf. idem, Insight, p. 720.
17
Cf. idem, Method in Theology, ibidem, p. 116.
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enamorado por Deus. A ordem atual do Universo é um valor e um bem, escolhidos por
Deus para a manifestação da sua perfeição e plenitude.
O intelecto só funciona de modo apropriado desde que o desejo desapegado e
desinteressado de conhecer presida às operações cognitivas. Trata-se pois de um desejo
puramente espontâneo que é a raiz da autoconsciência inteligente e racional, e opera
previamente aos nossos atos de intelecção, aos nossos juízos e às nossas decisões. Para que
conserva a sua pureza, tem de ser auxiliado pela determinação da vontade que tem por
objeto o bem próprio do intelecto. Um desejo que exclua tanto o desespero como a
presunção é uma esperança confiante, pelo que a forma conjugada da disposição volitiva
que ajuda, sustenta e fortalece o desejo puro é uma esperança confiante de que Deus elevará
o intelecto do ser humano ao conhecimento, à participação e à posse do ato irrestrito de
compreender18.

18
Cf. Insight, p. 724.

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